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TIMOTHY WARD

TEOLOGI A DA

AS ESCRITURAS
COMO PALAVRAS DEVIDA

VIDA NOVA
Com seu tratamento da identidade, da natureza e do papel da Bíblia na eco­
nomia divina da salvação e da revelação, esse livro é um divisor de águas. Ele
apresenta uma teologia bíblica das Escrituras, a relação entre a Bíblia e Deus
como Trindade, doutrinas essenciais sobre as Escrituras e uma teologia prá­
tica da leitura e pregação da Bíblia. Ele nos mostra como nossa adoração fiel
a Deus não pode deixar de fora uma profunda atenção às Escrituras. Uma
grande contribuição para o catálogo da IVP. Graças a Deus por ele.
Peter Adam, diretor da Ridley Theological College, Melbourne
Sensato, lúcido, inovador, incisivo e, acima de tudo, fundamentado nas
Escrituras, esse é um livro espetacular. Durante sua leitura, várias vezes
minhas ideias foram aperfeiçoadas e ganharam em precisão.
Julian Hardyman, pastor titular da igreja Eden Baptist Church,
Cambridge
Um tratamento sofisticado da doutrina clássica das Escrituras Sagradas,
esse livro baseia-se principalmente na sabedoria teológica da tradição
reformada. Um ponto forte que nele se destaca é a maneira como o autor
elabora sua explanação da Escritura a partir da própria Escritura, em
especial de seu caráter como livro de aliança. Teologia da revalação é bem
escrito, bem conduzido, inteligente e sensato.
Paul Helm, professor emérito da University of London
Esse livro é notável e demonstra o vínculo necessário entre a Palavra de
Deus e o Espírito de Deus para a consecução da obra dele. Valendo-se
de uma pesquisa histórica de longo alcance e de aplicações atualizadas
para nossos dias, ele aprofunda nossa confiança na autoridade e na com­
petência da Bíblia ao lidarmos com seu conteúdo. E um livro que reno­
va nossa certeza de que a Bíblia está na vanguarda da revitalização e do
crescimento do cristianismo.
David Jackman, ex-presidente do The Proclamation Trust
Temos aqui uma excelente leitura e uma obra de erudição superlativa.
Seu alcance é amplo, sua consciência histórica é profunda e sua crítica é
incisiva. Ele reverencia o passado sem o idolatrar, bebe moderadamente
da moderna teoria da fala, apresenta uma fina percepção da relação entre
Escritura e tradição e oferece uma avaliação sensata da questão da iner-
rância. Livro-texto e deleite em um só volume!
Donald Macleod, diretor da Free Church College, Edinburgh
O tratamento que Timothy Ward dá à natureza e ao papel da Bíblia é
bem fundamentado, fruto de profunda ponderação. Esse livro é produ­
to de uma percepção atual caracterizada por um espírito alerta, por um
discernimento teológico de alto grau e por um juízo pessoal maduro.
Dificilmente um livro sobre esse assunto me desperta tanta admiração e
me leva a concordar com tamanha ênfase.
J. I. Packer, professor de Teologia da Regent Theological College,
Vancouver
Finalmente um texto de referência sobre a doutrina da Escritura concebi­
do com brilhantismo, preocupado com questões acadêmicas e escrito com
grande beleza. Tim Ward se sai muito bem porque tem o cuidado de lan­
çar os fundamentos bíblicos e teológicos de seu tema antes de partir para
o exame das categorias doutrinárias tradicionais. Sua discussão da iner-
rância, do sola Scriptura e da pregação vale a leitura e estimula o pensa­
mento. Essa é, sem dúvida, uma importante contribuição para a literatura.
Jonathan Stephen, diretor da Wales Evangelical School of
Theology, País de Gales
Faz anos que espero uma publicação que dê um tratamento convincente
e atualizado à natureza e à autoridade da Escritura. Diante de cada novo
livro promissor, eu pergunto: “Tu és aquele que deveria vir, ou devemos
esperar outro?”. Esse livro de Ward pode ser o que eu esperava. Teologia
da revelação acerta ao fundamentar suas ideias na doutrina de Deus, ou
seja, na teologia trinitária. Esse é seu pensamento central: a Palavra de
Deus é algo que Deus faz. A Bíblia não é simplesmente um objeto de
estudo, mas o grande veículo pelo qual o Senhor arregimenta seu povo e
administra sua aliança. Seu hábil tratamento da questão da inerrância é
uma boa surpresa. Recomendo com grande entusiasmo!
Kevin Vanhoozer, professor pesquisador de Teologia Sistemática
daTrinity Evangelical Divinity School
— T E O L O G I A DA —

REVELAÇÃO
A SSO O A C A O ^ ^ ^ ^ ^ ^ T O SR H T O G R Á FtC O S

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Angélica Ilacqua CKB-8/7057

Ward, Timothy
Teologia da revelação: as Escrituras como palavras de vida /Timothy
Ward; tradução de A. G. Mendes. - São Paulo : Vida Nova, 2017.
224 p.

ISBN 978-85-275-0742-4
Título original: Words o f li fe : Scripture as the liv in g a n d active
Word o f God

1. Bíblia - Inspiração 2. Palavra de Deus (Teologia cristã) 3. Vida


cristã I. Título II. Mendes, A. G.

17-0294 CDD 220.13

índices para catálogo sistemático:

1. Bíblia: Inspiração
TIMOTHY WARD

— T E O L O G I A DA —

REVELAÇÃO
AS ESCRITURAS
COMO PALAVRAS DE VIDA

Tradução
A. G. Mendes

□i
VIDA MOVA
®2009, de Timothy Ward
Título do original: Words ó f life: Scripture as the liv in g a n d a ctive Word o f God,
edição publicada pela I n t e r -V a r s i t y P r e s s (Nottingham, Inglaterra).

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por


S o c ie d a d e R e l ig io sa E d iç õ e s V i d a N ova

Rua A n tô n io C a r lo s Tacconi, 75, S ã o Paulo, SP, 04810-020


vidanova.com.br |vidanova@vidanova.com.br

l . a edição: 2017

Proibida a reprodução por quaisquer meios,


salvo em citações breves, com indicação da fonte.

Impresso no Brasil / P rinted in Brazil

Todas as citações bíblicas foram extraídas da Almeida Século 21 (A21),


salvo indicação em contrário.

D i r e ç ã o e x e c u t iv a

Kenneth Lee Davis

G e r ê n c ia e d it o r ia l

Fabiano Silveira Medeiros

E d iç ã o de texto

Robinson Malkomes

R e v is ã o da tradução

Mareia B. Medeiros

P reparação de te x to

Larissa B. Medeiros

R e v is ã o de pro vas

Ubevaldo G. Sampaio

G e r ê n c ia d e p r o d u ç ã o

Sérgio Siqueira Moura

D ia g r a m a ç ã o

Catia Soderi

C apa
Souto Crescimento de Marca
SUMÁRIO

A gradecim entos..............................................................................................9

Introdução: Deus e a B íb lia ............................................................. 11

1. D eus e as E scrituras: um a perspectiva b íb lic a ...................... 23


A ação de Deus e suas palavras ................................................................ 23
O Antigo Testamento......................................................................... 23
O Novo Testamento.......................................................................... 29
A pessoa de Deus e suas palavras............................................................ 30
As palavras de Deus e as palavras humanas.......................................... 38
As palavras de Cristo, a ação e a pessoa de Deus.................................. 43
As palavras de Cristo e as palavras humanas........................................ 47
As palavras de Deus e a Bíblia................................................................. 52

2. A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica....... 59


O Pai e as Escrituras: o livro da aliança ................................................ 62
A redenção e as Escrituras............................................................... 62
A revelação e as Escrituras .............................................................. 72
O Filho e as Escrituras: as palavras da Palavra .................................... 81
Jesus e a Bíblia, ambos “Palavra de Deus” ..................................... 81
A Escritura e a encarnação.............................................................. 89
O Espírito Santo e as Escrituras: a Palavra soprada por Deus.................94
A inspiração das Escrituras ............................................................. 95
A preservação das Escrituras......................................................... 107
A iluminação das Escrituras......................................................... 111
Resumo.................................................................................................... 114
8 Teologia da revelação

3. Atributos das Escrituras: um a perspectiva d o u trin ária...... 117


A necessidade das Escrituras ............................................................... 119
A suficiência das Escrituras ................................................................. 130
A clareza das Escrituras........................................................................ 140
A pregação e uma Bíblia clara...................................................... 147
Interpretações distintas e uma Bíblia clara................................. 149
Definindo a clareza das Escrituras .............................................. 151
A autoridade das Escrituras................................................................. 155
A natureza da autoridade bíblica................................................. 155
Inerrância e infalibilidade .............................................................. 158

4. A B íblia e a vida cristã: aplicação da doutrina


das E scritu ras..................................................................................... 171
O significado do sola Scriptura .............................................................. 171
As Escrituras e a comunidade cristã .................................................. 183
As Escrituras e a pregação .................................................................. 189
O Espírito e a Bíblia ..................................................................... 194
O Espírito e o pregador ............................................................... 198
O Espírito e o povo de Deus ...................................................... 203
As Escrituras e o cristão ...................................................................... 205
A leitura individual da Bíblia em relação à leitura
coletiva e à pregação................................................................... 207
O objetivo da leitura bíblica.......................................................... 210

R e su m o ................................................................................................ 215

ín d ice on om á stico.................................................................................. 219


ín d ice de passagens b íb lica s................................................................ 221
AGRADECIMENTOS.

ou profundamente grato a inúmeras pessoas que muito me


ensinaram a respeito de Deus e de sua Palavra no decorrer
dos anos. Algumas delas, além de outras que interagiram
com meu ensino sobre esse tópico em diversas situações, talvez
encontrem aqui ponderações de sua autoria que, involuntaria­
mente, aparecem como se fossem minhas. Só me resta pedir que
me desculpem a memória fraca, e saibam que reconheço minha
dívida com vocês. Alguns leitores notarão a influência acadêmica
contínua de meu orientador no doutorado, o professor Kevin
Vanhoozer. Serei para sempre grato a ele pela ajuda que me deu.
David Gibson, Tim Oglesby e Judi Oglesby tiveram a bondade
de gastar tempo para ler o manuscrito e deram excelentes suges­
tões para aprimorá-lo. Phil Duce, da IVP, provou ser um editor
paciente e sempre pronto a me encorajar, pelo que sou extrema­
mente grato a ele. Agradeço à igreja H oly Trinity Church, em
Hinckley, família da qual faço parte, que me proporciona um
ambiente extraordinário para viver e trabalhar. Espero que este
livro seja um pequeno sinal para ela de que “sabático” não signi­
fica apenas “férias”!
Quero agradecer também a meu filho, Jonathan, por não me
deixar esquecer de que devo ser um pai que também brinca e
não um pai que só trabalha. A minha esposa, Erica, meus mais
profundos agradecimentos por seu amor e sua paciência leais, e
por me dizer, de um jeito carinhoso, que não basta apenas falar de
um livro para que ele passe a ser realidade: é preciso arregaçar as
mangas e escrever.
10 Teologia da revelação

Versões anteriores de partes deste livro foram publicadas em


outros volumes e são aqui reproduzidas com permissão das editoras:

1. Word an d supplement: speech acts, biblkal texts a n d the sufficiency


o f Scripture (Oxford: Oxford University Press, 2002).
2. “The incarnation and Scripture”, in: David Peterson, org.,
The Word becam e ftesh : E van geticah a n d the incarnation
(Carlisle: Paternoster, 2003), p. 152-84.
3. “The sufficiency of Scripture”, in: Lynn Quigley, org.,
R eform ed th eology in con tem poraryperspective: W estminster:
yesterday, tod a y— a n d to m o rro w ? (Edinburgh: Rutherford,
2006), p. 10-45.
4. “Proclamation in the power of the Spirit”, in: David
F. W right, org., S pirit o f truth a n d p o w e r (Edinburgh:
Rutherford, 2001).
INTRODUÇÃO:
DEUS E A BÍBLIA

ação anglicana, da qual faço parte, é costume


o leitor diga “Esta é a Palavra do Senhor” ao
tura pública da Escritura. No decorrer da his­
tória cristã, a visão amplamente predominante em relação à Bíblia é
que ela é a Palavra viva e ativa de Deus. Dizer que a Bíblia é a Palavra
de Deus é dizer, em outros termos, que “aquilo que a Bíblia diz Deus
diz”. Neste livro, farei referência a essa visão de diferentes maneiras:
ora como a visão evangélica da Escritura, ora como a visão cultivada
pelos reformadores protestantes do século 16, ora, por vezes, como
o ponto de vista ortodoxo. Quando, porém, me expresso dessa
forma, essas diferentes definições não devem obscurecer o fato de
que a convicção mais aceita sobre a Bíblia pelos cristãos sempre foi
e continua sendo que ela é a P alavra de Deus.
Contudo, nem sempre é fácil defender essa visão da Bíblia
diante dos críticos ou compreendê-la nós mesmos. Vi certa vez
uma charge feita a lápis de um homem sentado sozinho em uma
sala vazia, em uma cadeira que parecia desconfortável. Sobre seu
colo havia um livro de tamanho absurdamente descomunal, cujo
título era visível na lombada: B reves notas sobre L evítico. Ele estu­
dava o livro com toda a atenção e tinha um aspecto sério e aus­
tero. Na legenda logo abaixo lia-se: “Chris, o calvinista, vivia só
para o prazer”.
Sei que se trata apenas de uma charge (não estou levando em
conta a observação injuriosa que a ch a rge faz dos calvinistas,
12 Teologia da revelação

com os quais faço questão de me identificar!). Todavia, ela põe


o dedo em uma questão preocupante sobre a Bíblia que não
está muito longe da realidade de diversos cristãos. A liás, para
algumas pessoas, esse é um problema que há tempos veio à tona,
e elas tiveram de enfrentá-lo. Trata-se, na verdade, do seguinte:
se insistirmos que a Bíblia é a Palavra de Deus, talvez prestemos
tanta atenção à Escritura que acabemos por não dar a Cristo
toda a atenção que ele merece. Esse seria um grande erro com­
parável ao pecado da idolatria (ou, conforme é chamado neste
caso, “bibliolatria”: adoração do livro). M uitas vezes gosta­
mos de pensar que nossos problemas e dúvidas são novos, mas
é claro que isso raramente acontece. Essa preocupação com
Bíblia e com Cristo já foi analisada ao longo dos séculos, con­
forme veremos.
A mesma questão básica pode ser formulada de diferentes
maneiras: "Será que a plenitude da vida trazida por Cristo de
fato exige que se dê atenção especial à Bíblia? A nossa nova
vida no Espírito deve estar mesmo centrada no que parecem
ser exercícios de compreensão dos textos bíblicos? Será que a
alta conta em que temos a Escritura tem feito com que trans­
formemos nossos encontros semanais de adoração em nada
mais que uma série de pregações em que nos sentamos passi­
vamente quando, na verdade, nossas reuniões deveriam ser ale­
gres, participativas e animadoras? M as Cristo veio nos chamar
para ser seus discípulos e não ratos de biblioteca, certo? Por
acaso não é verdade que Jesus dirigiu algumas de suas críticas
mais duras a grupos como de fariseus e mestres da lei, censu­
rando-os pela obsessão de interpretar com exatidão detalhes
da Escritura, deixando passar as grandes realidades espiri­
tuais para as quais a Escritura lhes queria chamar a atenção?
Portanto, a visão evangélica da Escritura, no fim das contas, é
mais farisaica do que plenam ente cristã?".
Introdução: Deus e a Bíblia 13

John Barton, estudioso da Bíblia, que tem como propósito


discorrer sobre preocupações desse tipo, no intuito de incenti­
var as pessoas a se afastar da perspectiva evangélica da Escritura,
expressou seu pensamento da seguinte forma:

a Bíblia não é primordialmente a Palavra de Deus, e sim Jesus


Cristo. Não creio que encontremos um único cristão que discor­
de dessa proposição, porque fazê-lo seria incorrer claramente no
que às vezes se costuma chamar bibliolatria: colocar a Bíblia
acima do próprio Cristo [...]. Cristão não é quem crê na Bíblia, mas
quem crê em Cristo.1

É fácil encontrar cristãos que dizem ter abandonado a dou­


trina evangélica da Escritura porque acharam convincente o
tipo de argumento acima. (Em alguns lugares, há pessoas que se
referem a si mesmas como “evangélicos conservadores” e “pós-
-conservadores”). De fato, pode parecer impossível, à prim eira
vista, discordar do que Barton diz acima. Os cristãos certa­
mente se relacionam com um Salvador, e não com um livro de
papel e tinta. Nossa devoção deve se dirigir a um Senhor vivo,
e não a palavras impressas em uma página. E claro que muitos
cristãos, ao relerem as palavras de Barton, logo se darão conta
de que na últim a frase ele está nos impondo uma falsa dico-
tomia. Não temos de escolher entre “crer na B íblia” e “crer em
Cristo”. Como cristãos, somos chamados a fazer as duas coisas.
Na verdade, um meio crucial pelo qual demonstramos nossa fé
em Cristo consiste em crer também no que a B íblia diz. Talvez
o argumento mais objetivo nesse sentido comece pela obser­
vação do fato de que o próprio Jesus se referiu às Escrituras

'John Barton, People o f the Book? The authority o f the Bible in Christianity
(London: SPCK, 1988), p. 81, 83.
14 Teologia da revelação

judaicas, nosso A ntigo Testamento, como palavras de Deus.


Portanto, se queremos ser fiéis a ele, precisamos estar certos de
que nossa visão da Escritura seja a mesma que ele tinha.2
Isso nos leva ao ponto central do que estou tentando fazer
neste livro: quero enunciar, explicar e defender o que estamos
querendo dizer quando proclamamos (e realmente devemos pro­
clamar) que a Bíblia é a Palavra de Deus. Sendo mais específico,
quero lidar com essa questão da seguinte forma: estou tentando
d escrever a natureza da relação en tre D eus e a Escritura. Por que,
para sermos fiéis na adoração a Deus, temos de dar tanta aten­
ção à Bíblia? Por que razão, para ser um discípulo fiel da Palavra
encarnada, devo basear minha vida nas palavras da Escritura? Por
que, para andar em consonância com o Espírito, preciso confiar
na Escritura e obedecer ao que ela diz? E como podemos fazer
tudo isso sem que adoremos um livro em vez de adorar o Senhor?
O que estou oferecendo aqui, portanto, é um esboço do que costu­
m am os cham ar de doutrina da Escritura.
Esse esboço tem três componentes principais, cada um cons­
truído com base no anterior. O primeiro deles é uma p ersp ectiva
bíblica. Vamos olhar para dentro da própria Bíblia a fim de dis­
cernir a descrição que ela faz da relação, por um lado, entre Deus
e Cristo e, por outro, entre as palavras por meio das quais eles
falam e agem. Antecipando um breve resumo: veremos que as
palavras da Bíblia constituem um aspecto significativo da ação
de D eus no mundo. A relação entre Deus e a Bíblia está intrinse-
camente vinculada às ações que Deus realiza por meio da Bíblia.
(Afinal de contas, a palavra de Deus é viva e eficaz, de acordo com
Hebreus 4.12.) •

2Uma exposição clássica (e ainda muito útil) da grande importância que


Cristo dava ao Antigo Testamento encontra-se em John Wenham, Christ and
theB ible (Surrey: Eagle, 1993).
introdução: Deus e a Bíblia 15

É importante que comecemos dessa maneira, com uma


perspectiva bíblica, porque muitas vezes o que se escreve sobre a
doutrina bíblica, seja a favor, seja como crítica ao ponto de vista
evangélico da Escritura, começa em outra parte e não com a forma
bíblica dos atos de fala de Deus. Essa forma diz respeito à história
dos atos divinos de revelação e redenção no mundo. Ela se detém
inicialmente em seu povo da aliança, em Israel, e, em seguida,
chega ao clímax com o nascimento, a morte, a ressurreição e a
ascensão de seu Filho, a Palavra encarnada, antes de se espalhar
pelo mundo todo por meio do derramamento do Espírito Santo
e da proclamação do evangelho. A afirmação de que “a Bíblia é a
Palavra de Deus” deve ter uma relação inequívoca com o discurso
e as ações divinas na história.
Escrever sobre a Escritura e não levar isso em conta geralmente
resulta em um ou outro tipo de problema. Exemplos disso podem
ser encontrados em escritos evangélicos conservadores conscien­
tes cujo propósito é defender uma ou outra formulação histórica da
doutrina da Escritura sem refletir seriamente sobre áreas em que essa
formulação talvez exija uma reavaliação à luz da Escritura. Contudo,
a marca distintiva da teologia protestante deve ser sempre sua
adesão à máxima da Reforma: ecclesia sem per reform anda (a igreja
sempre se reformando). Outros autores abordam a Escritura de
um ponto de partida teológico ou doutrinário. Suas obras podem
proporcionar perspectivas legítimas, mas lhes faltam as âncoras
bíblicas que cada aspecto da doutrina da Escritura requer para
evidenciar sua coerência no âmbito da teologia sistemática, bem
como sua conformidade genuína com o conteúdo do livro que
pretende descrever e com as ações do Deus revelado nesse livro.3
Outros autores iniciaram sua obra sobre a Escritura com categorias

3Penso aqui em um livro mais recente e inspirador de John Webster, Holy


Scripture: a dogmatic sketch (Cambridge: Cambridge University Press, 2003).
16 Teologia da revelação

extraídas de fora dela e da teologia, geralmente com o objetivo


apologético de atualizar essa doutrina, a fim de torná-la mais
compreensível (e, em alguns casos, aparentemente mais crível)
para uma nova geração em uma nova cultura.4 O fundamento
bíblico inequívoco com que trabalharei tem como objetivo evitar
alguns desses problemas.
Seguindo essa perspectiva bíblica, começarei a unir os fios
em uma p ersp ectiva teológica da E scritura em sua relação com D eus,
detendo-me no papel da Escritura em relação a cada uma das
Pessoas da Trindade. Na construção de qualquer aspecto da dou­
trina cristã, é conveniente seguir desse modo, passando de uma
análise dos dados bíblicos para uma exposição teológica desses
dados. Contudo, é muito importante deixar claro esses passos teo­
lógicos por causa da história da doutrina evangélica da Escritura
em séculos recentes e também em virtude das críticas que nor­
malmente lhe são dirigidas.
Boa parte dos escritos evangélicos conservadores sobre a
Escritura dos últimos quatro séculos tem sido alvo de críticas por
não ser, conforme se alega, verdadeiramente teológica quanto deve­
ria. Em outros palavras, afirma-se que a doutrina da Escritura

4Lembro-me principalmente da obra de William Abraham sobre inspira­


ção que, embora preserve a palavra “inspiração”, há tempos usada nas doutrinas
evangélicas da Escritura, na verdade redefine a acepção teológica do termo de
acordo com o uso regular em contextos vernaculares não teológicos (William
Abraham, The divine inspiration o f Holy Scripture [Oxford: Oxford University
Press, 1981]). Meu livro anterior, Word and supplement: speech acts, biblical texts
and the suffciency o f Scripture (Oxford: Oxford University Press, 2002), também
foi criticado por alguns por depender em demasia de um conceito extraído da
filosofia da linguagem, a saber, a teoria dos atos de fala. Contudo, minha inten­
ção não era dizer que a filosofia da linguagem é capaz de proporcionar toda a
base para uma completa reviíão da doutrina da Escritura. Minha intenção era
usar essa filosofia como ferramenta para apresentar um novo ângulo sobre a
Escritura, que depois pudesse ser examinado por uma obra bíblica e teológica. Este
livro é uma tentativa de fazer esse exame.
Introdução: Deus e a Bíblia 17

não se acha integralmente relacionada eom as principais dou­


trinas cristãs: as doutrinas de Deus, de Cristo, do Espírito, da cria­
ção e da salvação. De fato, no período que se seguiu à Reforma
protestante do século 16, houve uma mudança expressiva na
forma pela qual a teologia evangélica era formulada. Os refor­
madores do século 16, em sua grande maioria, não dedicaram uma
seção inteira à Escritura em seus escritos teológicos. Assim, as
Institutas da religião cristã (1559), de João Calvino, não apresen­
tam uma seção dedicada exclusivamente à Escritura. Em vez dis­
so, ele lida com a Escritura em uma seção introdutória mais geral
intitulada “O conhecimento de Deus, o Criador”. Já os teólogos do
século 17 costumavam iniciar suas teologias sistemáticas com uma
discussão introdutória a respeito da natureza da teologia (o que
geralmente chamavam de “prolegômenos”), seguida por uma seção
dedicada inteiramente à doutrina da Escritura. Só depois disso
vinham as discussões sobre Deus, a Criação, Cristo e a salvação.
Obras modernas de teologia sistemática evangélica muitas vezes
seguem esse mesmo padrão.
Costuma-se dizer que isso representa uma grande porém
equivocada guinada teológica na teologia protestante ortodoxa
depois da Reforma. Afirma-se que a partir do século 17 desen-
volveu-se uma doutrina da Escritura que se tornou fundamen­
tal para a teologia, expressa sobretudo em termos filosóficos e
especulativos e distante do ensino bíblico sobre Deus e Cristo.
Portanto, a teologia de várias gerações que vieram depois dos
reformadores é muitas vezes acusada de discorrer a respeito da
Bíblia sem perceber ou, no mínimo, sem deixar explícito, que
não devemos fazer teologia ou teorizar sobre a Escritura sem
partir diretamente do ensino da Bíblia a respeito do caráter e das
ações de Deus. Todavia, essa visão da teologia nos séculos 17 e 18
tem sido objeto de críticas convincentes e judiciosas. Na verdade,
os teólogos estavam mudando o fo r m a to com o qual escreviam
18 Teologia da revelação

suas teologias, mas sem se afastar substancialmente das perspec­


tivas teológicas básicas da Bíblia, que Lutero, Calvino e outros
haviam enunciado.5
Não obstante, é provável que, desde o século 18, esse novo
formato da teologia sistemática evangélica venha exercendo um
impacto negativo não previsto sobre o pensamento evangélico
popular. Muitas apresentações da teologia evangélica costumam
começar discutindo a Escritura, e a discutem segundo tópicos dou­
trinários como a suficiência da Escritura, sua clareza e autoridade.
Certamente não estamos dizendo que esses tópicos podem levar a
equívocos. M ais adiante pretendo defendê-los e explicá-los. O pro­
blema, ao contrário, é que quando a doutrina da Escritura é apre­
sentada principalmente dessa forma, isso pode, no mínimo, dar a
en tender que a Escritura não está relacionada com as grandes dou­
trinas centrais da fé cristã. Em pelos menos boa parte do ensino
evangélico contemporâneo e do que se escreveu sobre a Escritura
não houve muito esforço para mostrar, em forma e conteúdo, que
tais acusações estão equivocadas. O possível resultado é que não

5Veja Carl R. Trueman; R. S. Clark, orgs., Protestant scholasticism: essays in


reassessment (Carlisle: Paternoster, 1999). Sobre a teologia reformada e lute­
rana do período pós-Reforma, veja respectivamente Richard A. Mueller,
Post-Reformation Reformed dogmatics, vol. 2, Holy Scripture: the cogn itivefou n -
dation o f theology (Grand Rapids: Baker, 1993); Robert D. Preus, The theology
o f post-Reformation Lutheranism: a study o f theological prolegomena (St. Louis:
Concordia, 1970). O formato da teologia estava mudando no século 17 devido à
necessidade de respostas às objeções cada vez mais sofisticadas à perspectiva da
Reforma sobre a Bíblia por parte de católicos romanos e céticos. As influências
filosóficas da cultura ao redor também afetaram o modo pelo qual se acredita­
va que os argumentos teológicos deviam ser apresentados. De fato, os prolegô-
menos das teologias sistemáticas dp século 17, embora lidassem com questões
filosóficas e se apoiassem em conceitos filosóficos, de modo geral têm raízes in­
teiramente bíblico-teológicas. Portanto, mais à frente quando tratarmos da dou­
trina da Escritura, ela será apresentada sob uma perspectiva teológica, embora as
discussões mais abrangentes sobre Deus, Cristo, o Espírito e a salvação venham
apenas posteriormente.
Introdução: Deus e a Bíblia 19

fica muito claro para o crente por que exatamente a Bíblia deve ser
tão central para a fé e, sobretudo, como é possível preservar essa
centralidade sem que isso a leve a tirar a atenção de Cristo, tornan­
do-se assim um foco idólatra de adoração.
De fato, se conversarmos sobre a Bíblia sem estruturar clara­
mente o que dizemos sobre ela em torno das grandes doutrinas de
Deus, de Cristo e do Espírito, observaremos duas coisas lamentá­
veis. Em primeiro lugar, a doutrina da Escritura pode começar a
ganhar contornos de prefácio ou apêndice às doutrinas centrais da
fé cristã expressas nos grandes credos da igreja. Nesse caso, pode
parecer facilmente dispensável. (A maioria dos livros, afinal de con­
tas, perde pouco de sua substância se for privada de seus prefácios e
apêndices.) A doutrina da Escritura certamente não é dispensável,
mas os evangélicos podem, às vezes, ao contrário de suas intenções,
fazer parecer que seja. Essa é uma opção bastante atraente para os
que têm uma experiência dolorosa resultante das polêmicas entre
evangélicos sobre a natureza da Escritura e que, por causa disso,
passaram a achar que, de modo geral, a ênfase em detalhes doutri­
nários acerca da Escritura leva a uma diminuição gradual da pre­
sença de Cristo na vida do cristão. É também atraente para aqueles
cristãos que desejam permanecer em grande medida ortodoxos em
seu entendimento de Deus, mas que discordam da doutrina orto­
doxa da Escritura.
A segunda conseqüência lamentável de uma doutrina da
Escritura isolada de outros ensinamentos centrais da fé cristã, e da
estrutura narrativa da Escritura como um todo, é que ela pode se tor­
nar uma doutrina aparentemente empobrecida e esquálida, sem raí­
zes profundas nas riquezas da glória do caráter e das ações de Deus.
Isso pode acontecer mesmo que a doutrina, analisada detalhe por
detalhe, seja impecavelmente ortodoxa e bíblica. Até os que desejam
de coração preservar essa doutrina poderão percebê-la mais como
um acessório teológico interessante e necessário e não como parte da
20 Teologia da revelação

essência da própria teologia. Ela acaba sendo uma espécie de limpeza


preliminar do terreno antes da ação principal que é falar sobre Deus,
como se ao enunciar a doutrina da Escritura estivéssemos dizendo
pouco mais do que isto: “Vamos fixar as bases sobre as quais conver­
saremos sobre Deus [...] e é aí que entra a Bíblia. Esclarecido esse
ponto, podemos nos dedicar a falar realmente sobre Deus”.
Poderá haver ocasiões na história cristã em que será certo come­
çar uma teologia pela doutrina da Escritura, porque na cultura
dominante, do ponto de vista da apologética, é importante lidar
com questões que desde o início tratem da viabilidade do conhe­
cimento de Deus. Contudo, a doutrina da Escritura é com frequên­
cia distorcida por esse enfoque e, portanto, o tipo de doutrina da
Escritura que delinearemos tem como objetivo demonstrar que
todos os seus aspectos são trabalhados, desde a base, pelo caráter e
pelas ações de Deus, estando plenamente integrados ao ser e à ação
de Deus, mas sem que um livro inerte ofusque o Salvador vivo.
Depois dessas perspectivas bíblicas e teológicas, aparece, em
terceiro lugar, um a p ersp ectiva doutrinária da Escritura. É nesse
capítulo que discuto a Escritura em conformidade com os tópicos
de modo geral mais conhecidos pelos evangélicos, a saber, a neces­
sidade, a suficiência, a clareza e a autoridade da Escritura. Esses
tópicos doutrinários certamente fluem de forma natural e neces­
sária dos contornos teológicos e bíblicos da Escritura, e minha
preocupação será demonstrar cuidadosamente que isso de fato
acontece. Eles costumam ser chamados “atributos” da Escritura,
e a perspectiva doutrinária procurará mostrar que não consistem
em uma lista de qualidades abstratas atribuídas à Escritura por
razões filosóficas questionáveis. Pelo contrário, trata-se de des­
crições oportunas e necessárias da Escritura à luz de sua função
dinâmica e integral no âmbito das ações de Deus na história da
redenção. Apresentarei uma definição de cada atributo em con­
formidade com os dados bíblicos e teológicos precedentes.
Introdução: Deus e a Bíblia 21

O último capítulo, de grande relevância, procura apresentar


algumas áreas importantes em que a doutrina da Escritura por
mim delineada deve ser aplicada. Analisaremos em primeiro lugar
o famoso moto da Reforma, sola Scriptura (somente a Escritura)
e, depois, mais especificamente, algumas questões básicas sobre o
lugar da Escritura na comunidade cristã. Em seguida, as duas últi­
mas seções: uma sobre a pregação à luz da natureza e da função da
Escritura que estou descrevendo, e outra sobre o papel e os obje­
tivos próprios da leitura da Escritura pelo cristão. Nessas seções,
quero demonstrar de que modo uma boa doutrina da Escritura pode
e deve estabelecer o modo pelo qual o cristão aborda a Bíblia no dia
a dia com mais fidelidade, dinamismo e vida.
Para ajudar o leitor a acompanhar a doutrina da Escritura que
irá se formar à medida que o livro for avançando, fui incluindo pará­
grafos com um resumo, geralmente no fim de cada seção principal.
Vale a pena chamar a atenção aqui no início para os textos
teológicos em que mais me baseei. À medida que avançar na lei­
tura, o leitor perceberá que o nome de certos teólogos aparecerá
com mais frequência que outros, tanto no texto quanto nas notas
de rodapé. São estes os quatro principais:

1. Joã o C alvino, o grande sistematizador da teologia da


Reforma no século 16.
2. F rancis T urretin de Genebra, figura influente e destacada
da teologia reformada a partir de meados do século 17.
3. B. B. Warfield, teólogo americano do fim do século 19 e
início do 20, cujos textos sobre a Escritura foram deter­
minantes para muitos debates sobre a Bíblia no último
século, sobretudo nos Estados Unidos.
4. H erm an Bavinck, brilhante contemporâneo de Warfield,
na Holanda.
22 Teologia da revelação

Isso não significa que eles concordem uns com os outros em todos
os detalhes; tampouco devem ser seguidos de modo servil em
todos os pontos, uma vez que, como nós, eram falíveis.Também não
estou insinuando que nada de importante a respeito da Escritura
foi escrito depois da década de 1950; os textos de J. I. Packer,
por exemplo, ajudaram muita gente a compreender a doutrina
evangélica da Escritura nas últimas décadas e a se comprometer
com ela. Contudo, os livros desses quatro teólogos mais antigos
nos apresentam alguns pontos altos da história cristã no que se
refere à explicação e à defesa da doutrina evangélica da Escritura.
Portanto, em nossos dias estaremos em situação de carência para
lidar com a Escritura e com os desafios contemporâneos que se
colocam diante dela, se não estivermos alicerçados no pensa­
mento de pessoas como as mencionadas acima.
De modo geral, portanto, este livro pretende descrever a natu­
reza e a função da Escritura em termos explicitamente bíblicos
e teológicos, bem como doutrinários. Proponho-me a oferecer
uma estrutura da doutrina da Escritura em estrita conformidade
com o melhor das tradições teológicas que chegaram até nós, cuja
expressão seja também adequada para o século 21. Se isso levar o
leitor a se sentir ajudado a compreender com mais profundidade
as ações de Deus na Escritura e por meio dela, e assim adorar ao
Deus da Bíblia com mais segurança e alegria, meus propósitos
terão sido alcançados.
1

DEUS E AS ESCRITURAS:
UMA PERSPECTIVA BÍBLICA

pergunta fundamental neste capítulo para a qual buscamos

A uma resposta é a seguinte: de acordo com a Bíblia, o que


de fato acontece quando Deus fala? Precisamos ter clareza
a esse respeito, para que seja verdadeiro e coerente o que venhamos
a dizer sobre nossa compreensão da Bíblia como “Palavra de Deus”.
Nossa atenção estará voltada para a forma como Deus se relaciona
com as palavras, tanto faladas quanto escritas. Portanto, este
capítulo apresenta um esboço de como a linguagem é fundamental
para que entendamos quem são e o que fazem Deus e Cristo. Se
essa maneira de apresentar o assunto parecer abstrata para alguns
leitores, o quadro cujas peças serão reunidas aqui deverá ficar mais
claro à medida que o capítulo for avançando.

A ação de Deus e suas palavras


O Antigo Testamento
Observa-se com frequência que as palavras e ações de Deus estão
intim am ente relacionadas na Bíblia. Dizer que Deus falou e
24 Teologia da revelação

dizer que ele fez costumam ser a mesma coisa. Os exemplos


que se seguirão foram extraídos deliberadam ente de diferentes
partes da Bíblia. Um dos exemplos mais claros se encontra
nos relatos bíblicos da Criação. De acordo com a Bíblia, Deus
cria por meio da fala: “Disse Deus: H aja luz. E houve luz”
(Gn 1.3). Parece que aqui, quando Deus expressa o desejo de
que a luz exista, e a vinda ã existência da luz, são duas maneiras
de descrever o mesmo acontecimento. Em Gênesis 1.6, ele
diz: “H aja um firmamento no meio das águas”, e o versículo 7
acrescenta: “E Deus fez o firmamento”. A luz do versículo 3,
os versículos 6 e 7 não parecem estar descrevendo duas ações
diferentes. Não é que Deus primeiro dê expressão verbal a
seu desejo de criar e depois, de fato, crie sem palavras. Um a
leitura mais natural entende que os versículos 6 e 7 apresentam
dois aspectos diferentes do ato divino único da Criação. O
restante do capítulo 1 de Gênesis segue o mesmo modelo. Em
alguns casos, o ato da fala divina é suficiente para um ato de
criação, sem nenhum relato adicional em que Deus “faz” ou
“cria” (como nos versículos 9 e 11, cada um dos quais term ina
com a simples descrição “E assim foi”). Em outros casos, suas
palavras criadoras são seguidas de uma descrição sucinta a res­
peito do que aquele ato da fala realizou (“Deus fez/criou
v. 14-16,20,21,24-27).
Imediatamente depois da Criação, vem o relato da Queda, no
qual a humanidade peca e, juntamente com o resto do mundo,
incorre na maldição divina. Depois da criação da humanidade
por meio de um ato de fala, aconteceu, de forma trágica, de a
queda da humanidade ser também parcialmente precipitada pela
linguagem. E, de fato, foi ô que aconteceu. A serpente armou o
bote contra a humanidade e, portanto, contra a ação de Deus na
Criação pela palavra. A serpente pronuncia palavras que colocam
em dúvida a realidade do que Deus havia de fato ordenado.
Deus e as Escrituras: uma perspectiva bíblica 25

Deus havia dito: "... não comerás da árvore do conhecimento do


bem e do mal; porque no dia em que dela comeres, com certeza
morrerás” (Gn 2.17). A serpente embaralha essa ordem clara,
distorcendo primeiramente as palavras de Deus: "... Foi assim
que Deus disse: Não comereis de nenhuma árvore do jardim ?”
(Gn 3.1) e, em seguida, negando a conseqüência fatal prevista por
Deus em razão da desobediência à sua ordem: “... Com certeza,
não morrereis” (Gn 3.4).
A resposta imediata de Deus a esses acontecimentos trágicos
consistiu em fazer ele mesmo uso objetivo da palavra. Primeiro,
ele se dirige ao homem: “... Onde estás?” (Gn 3.9); em seguida,
pronuncia maldições sobre a serpente, sobre a mulher e sobre
o solo e, por extensão, sobre o homem (Gn 3.14-19). Seria
perfeitamente possível Deus fazer a mulher dar à luz em meio
a dores, fazer a serpente passar a rastejar sobre o ventre e tornar
difícil o trabalho do homem sobre a terra, tudo isso sem dizer
coisa alguma, por meio de atos sem palavras. No entanto, o Deus
que nos é apresentado na Bíblia é muito diferente disso: ele é um
Deus que, por natureza, age por meio da fala. A palavra divina,
que primeiro criou, continua a falar advertindo a humanidade
contra a desobediência a Deus e, depois, pronunciando maldições
quando há desobediência. O ato de amaldiçoar é para Deus tão
eficaz quanto o ato de criar; porque, para ele, proferir palavras é
executar uma ação.
A atividade divina de falar prossegue no Antigo Testamento,
à medida que seu plano de redenção começa a se desenrolar.
Essa redenção pôde ser primeiramente vislumbrada já na m al­
dição pronunciada por ocasião da Queda (Gn 3.15). À medida
que as Escrituras avançam, vai ficando claro que Deus atua para
redimir a humanidade da maldição do pecado e da morte prin­
cipalmente p elo estabelecim en to da aliança. Uma aliança, natural­
mente, é uma relação celebrada por meio da enunciação de uma
26 Teologia da revelação

promessa.1 Portanto, a aliança com Noé, simbolizada pelo arco-


-íris, assume a forma de uma promessa falada segundo a qual a
terra não será nunca mais destruída por um dilúvio (Gn 9.8-17).
Ao longo de todo o Antigo Testamento, Deus vincula suas ações
futuras às palavras de sua promessa.
O mesmo fenômeno fica evidente em alguns capítulos poste­
riores de Gênesis, quando Deus começa o longo processo de reden­
ção em que, por meio do chamado de Abraão (então Abrão),
formará um povo que levará seu nome. M ais uma vez, poderíamos
imaginar a possibilidade de Deus começar esse longo processo
histórico por meio de atos silenciosos na história, fazendo por sua
providência que Abraão saísse de sua terra natal para a terra que lhe
havia planejado. Em vez disso, no entanto, Deus age falando. Ele
chama Abraão e lhe faz uma promessa de aliança, convidando-o
a aceitá-la como base sólida para confiar que ele cumprirá o que
prometeu (Gn 12.1-3). Ao dirigir a Abraão as palavras de uma
promessa (“todas as famílias da terra serão abençoadas por meio
de ti” [v. 3]), Deus se compromete com um curso de ação fiel
que leva ao nascimento de Cristo e ao derramamento do Espírito
no Pentecoste, seguidos pelos “últimos dias” de então até a volta
futura de Cristo. Com essas palavras, Deus define e explica o
objetivo de sua atividade redentora futura, comprometendo-se
com um curso específico de ação na história.
Vale a pena mostrar que a ideia aqui ilustrada (que, na
Bíblia, Deus costuma agir simplesmente falando) não é um
acontecimento visto apenas nos pontos altos da ação lingüís­
tica divina, como quando ele cria, amaldiçoa e faz alianças. Pelo

'Telford Work apresenta uma descrição prática do papel das palavras de


Deus na história da redenção de Israel em L iving and active: Scripture in the
economy o f salvation (Grand Rapids: Eerdmans, 2002), p. 130-66. Por exemplo,
“uma parte fundamental da misericórdia divina em relação a Israel certamente
assumiu a forma de palavras” (p. 136).
Deus e as Escrituras: uma perspectiva bíblica 27

contrário, trata-se de uma característica da ação de Deus que


permeia todo o Antigo Testamento. M ais adiante, exemplos de
diferentes gêneros literários contidos no Antigo Testamento fo­
ram escolhidos praticamente de forma aleatória para ilustrar
esse argumento.
A mesma relação entre a ação divina e suas palavras pode ser
encontrada, por exemplo, em IR eis 13. Esse capítulo faz uma
narrativa relativamente longa dos acontecimentos estranhos e
tristes que se deram logo após a divisão de Israel em dois reinos,
do Norte e do Sul, durante o reinado de Jeroboão. Um profeta
foi de Judá a Israel, mas foi enganado e levado a desobedecer às
palavras que Deus já lhe havia dito. Começa assim o capítulo: “Por
ordem do S e n h o r , veio um homem de Deus de Judá a Betei; e
Jeroboão estava junto ao altar, para queimar incenso. O homem
clamou contra o altar, por ordem do Senhor: Altar, altar! Assim
dizo S e n h o r .. .”(v. 1,2). A id eia de “ordem”ou “palavra”do Senhor
se repete em vários pontos do capítulo (v. 5, 9,20,21,26,32), de
tal forma que a “palavra” desponta como o principal agente na
condução da narrativa. Para um comentarista, “Trata-se de uma
história sobre o poder que a palavra tem de se concretizar”.2
No entanto, é claro que as palavras por si mesmas nada podem
realizar. A palavra do Senhor tem poder somente porque é o
Senhor que a envia. Portanto, atribuir à “palavra” a capacidade
de agir, transformando-a em agente, é uma forma de falar que
o próprio Deus realiza certas ações. Para IR eis 13, dizer que
um acontecimento se deu “por ordem [ou palavra] do Senhor”
eqüivale a dizer que “Deus agiu por meio da linguagem para que
aquilo acontecesse”.

2Richard Nelson, 1 & 2 Kings, Interpretation Commentary (Louisville:


John Knox, 1987), p. 84-5.
28 Teologia da revelação

A mesma equiparação — Deus fala eqüivale a Deus age —


fica evidente no salmo 29. Um tema central desse salmo é o poder
da voz de Deus:

A voz do S en h o r quebra os cedros;


sim, o S en h o r despedaça os cedros do Líbano [...].
A voz do S en h o r faz tremer o deserto;
o S en h o r faz tremer o deserto de Cades (SI 29.5,8).

O paralelismo poético de cada um desses versículos coloca em pé


de igualdade a realização de uma ação por meio da voz de Deus e
o próprio Deus executando tal ação. A metade de cada versículo
é uma forma diferente de falar sobre a mesma realidade divina.
Portanto, dizer que Deus fez alguma coisa e dizer que sua voz
fez alguma coisa é referir-se à mesma ação de Deus de duas
maneiras diferentes.
Uma passagem clássica nesse sentido é Isaías 55.10,11:

Porque, assim como a chuva e a neve


descem dos céus
e não voltam para lá,
mas regam a terra
e a fazem produzir e brotar,
para que dê semente ao semeador e pão ao que come,
assim será a palavra que sair da minha boca;
não voltará para mim vazia,
mas fará o que me agrada
e cumprirá com êxito o propósito da sua missão.

O Deus transcendente descreve aqui sua palavra como meio pelo


qual ele age no mundo. A linguagem que descreve a “palavra” de
Deus parece ser um meio de falar sobre a presença ativa de Deus
Deus e as Escrituras: uma perspectiva bfblica 29

no mundo. Isso evita uma insistência muito forte na transcendên­


cia como modo primordial de ser de Deus, de tal maneira que sua
presença no mundo venha a parecer estranha ou incompreensí­
vel, ao mesmo tempo que nos impede de pender para uma visão
de Deus sobretudo, ou exclusivamente, de imanência. Deus e sua
palavra compartilham da capacidade divina de realizar esse pro­
pósito de forma infalível. As palavras humanas, de modo geral,
falham por não realizar o propósito por elas acalentado, mas não
as palavras de Deus. Portanto, uma ação de Deus pode ser ade­
quadamente descrita dizendo-se que a Palavra de Deus realizou
uma ação para a qual ele a enviou, e também dizendo-se que o
próprio Deus realizou uma ação.

O Novo Testamento
Passando para o Novo Testamento, a relação entre as palavras de
Cristo e a ação de Deus será delineada posteriormente neste capí­
tulo. Contudo, neste ponto podemos dar dois exemplos do ensino
neotestamentário sobre a ação de Deus na salvação. Em primeiro
lugar, a teologia protestante ortodoxa muitas vezes identifica um
aspecto do ato divino de salvação em que Deus declara o pecador
justo aos seus olhos. Esse ponto é tradicionalmente desenvolvido
no tópico “justificação” com o objetivo de deixar claro que Deus
nos restaura em um relacionamento adequado com ele mesmo
antes de qualquer mudança de fato em nosso estado espiritual, e
não depois dessa mudança ou simultaneamente a ela. Conforme
diz o apóstolo Paulo, “Cristo [morreu] por nós quando ainda éra­
mos pecadores” (Rm 5.8). Deus institui, por sua declaração, uma
mudança fundamental em nossa posição diante dele antes de
concretizar, pelo envio do Espírito Santo, uma mudança real em
nosso estado pecaminoso. Aqui existe um visível paralelo com os
relatos de Gênesis a respeito dos atos de criação de Deus discu­
tidos acima. Deus não declara sua intenção de nos tornar santos
30 Teologia da revelação

perante ele e, em seguida, entra em ação para nos dar condições


de estabelecer um relacionamento com ele. Em vez disso, ele fala,
tornando-nos, por sua declaração, justificados em nosso relacio­
namento com ele. Depois ele passa a realizar em nossa vida, pelo
incremento da santidade, os efeitos necessários e naturais daquela
mudança em nossa condição diante dele. Essa realidade maravi­
lhosa na execução da obra divina de salvação é exemplificada na
disposição de Jesus de conversar e de partilhar o alimento com os
párias sociais e pecadores infames, com frequência para o horror
do sistema religioso. Portanto, um aspecto fundamental da obra
redentora de Deus ocorre quando ele escolhe falar, e ao fazê-lo
unilateralmente nos leva a participar aqui e agora da justa condi­
ção que Jesus Cristo tem junto dele.
Em segundo lugar, a teologia protestante sempre reconhe­
ceu na descrição neotestamentária da salvação um ato de Deus
conhecido como “chamado eficaz”. Trata-se de um ato pelo qual
ele nos chama para sermos salvos e em que a própria ação de
chamar nos leva à salvação (veja, p. ex., Rm 8.30). Deus pode
escolher chamar as pessoas para si, de tal modo que é correto
dizer que o chamado provoca no coração da pessoa exatamen­
te o que Deus pretende, isto é, que ela responda com fé salva­
dora. Em outras palavras, Deus fala não apenas para d escrev er a
salvação ou para nos incentivar a buscá-lo para sermos salvos,
embora ele certamente faça essas duas coisas. O fa la r de Deus
é parte indissociável de seu a g ir para salvar. Por conseguinte, na
linguagem e teologia bíblicas, o fa la r e o a g ir de D eus costum am
ser a m esm a coisa.

A Pessoa de Deus e suas palavras


Devemos considerar agora a relação entre a Pessoa de Deus
(o próprio Deus) e as palavras que ele fala. O que achamos nas
Deus e as Escrituras: uma perspectiva bíblica 31

Escrituras é uma relação extraordinariamente próxima entre o


próprio Deus e as palavras por meio das. quais ele fala.
Isso fica evidente já no Éden. Deus estabeleceu um relaciona­
mento entre ele mesmo e Adão e Eva em parte por meio de uma
ordem (“... não comerás da árvore do conhecimento do bem e do
mal” [Gn 2.17a]) e de uma conseqüência ameaçadora caso a ordem
fosse desobedecida (“... porque no dia em que dela comeres, com
certeza morrerás” [Gn 2.17b]). Essas palavras trazem também uma
promessa: as bênçãos da vida no jardim continuarão a fluir para a
humanidade se ela obedecer à ordem divina. A queda da humanidade
no pecado é uma queda na desobediência nesse relacionamento que
Deus estabeleceu entre ele mesmo e suas criaturas humanas e ocorre
quando elas desobedecem à sua ordem verbal. A ação divina em
resposta a isso é uma maldição que cumpre a promessa negativa de
Gênesis 2.17 e redunda em morte espiritual, uma vez que corta a
humanidade da árvore da vida (Gn 2.24), maldição cujo clímax
é posteriormente a morte física (Gn 5.5). Portanto, quando
Adão e Eva desobedecem à ordem fa la d a de Deus, rompem seu
relacionamento com o p róp rio Deus. Do lado divino, quando as
palavras de sua ordem são irrelevantes para suas criaturas por
causa dos seus desejos pessoais e de suas pretensões de sabedoria,
então o próprio Deus é posto de lado.
O que isso denota sobre a relação entre Deus e suas palavras
parece bastante óbvio. Desobedecer às palavras que Deus profere
é simplesmente desobedecer ao próprio Deus; e se recusar a se
submeter às ordens que Deus profere é simplesmente romper o
relacionamento com ele. Portanto, (podemos dizer) Deus in v es­
tiu a si mesmo em suas palavras, ou podemos dizer que Deus
identificou -se de tal forma com suas palavras que, seja o que for
que alguém faça com essas palavras (seja para obedecer, seja para
desobedecer) estará fazendo diretamente ao próprio Deus. Por
mais óbvio que isso pareça, nas páginas a seguir descobriremos
32 Teologia da revelação

que suas implicações são enormes. Quando não levadas em conta,


sempre haverá prejuízo para nossa compreensão das Escrituras.
Perguntar como ou por que existe uma relação tão íntima entre pala­
vras e pessoas é entrar em águas teológicas e filosóficas profundas
(nas quais molharemos os dedos dos pés no próximo capítulo).
Para Deus, o que sign ifica investir a si mesmo em suas palavras ou
identificar-se com elas? A despeito de sua complexidade, o ponto
em questão é bastante inequívoco.
Embora o termo “aliança” não seja usado nesses prim ei­
ros capítulos de Gênesis, sempre se acreditou que o relaciona­
mento de Deus com Adão e Eva tem o caráter de uma alia n ça,
isto é, está em harmonia com o mesmo modelo que ele repeti­
rá nos futuros relacionamentos com suas criaturas humanas e
que se tornará a característica fundamental de sua relação salví-
fica com a humanidade. As características comuns da aliança de
Deus com seu povo são a declaração do relacionamento que ele
está estabelecendo entre si mesmo e seu povo, a explicação de
como seu povo deve viver como parceiro da aliança, as promes­
sas de bênçãos se eles forem fiéis a essa aliança e os avisos de
conseqüências se o povo abandonar suas responsabilidades. No
caso de Adão e Eva, é uma aliança que promete implicitamente
a vida. No caso de Abraão, é uma aliança que promete que todos
os povos da terra serão de algum modo abençoados “por meio
de” Abraão (Gn 12.3).
Deus vai a Abraão inicialmente com uma ordem: “Sai da tua
terra, do meio dos teus parentes e da casa de teu pai, para a ter­
ra que eu te mostrarei” (Gn 12.1). A promessa de que Deus fará
de Abraão uma grande nação e que abençoará todos os povos da
terra por meio dele vem logo em seguida (v. 2,3) e parece dei­
xar subentendido que seu cumprimento depende da obediência
fiel de Abraão à ordem. Neste ponto, no nascimento do povo da
aliança de Deus, ele se relaciona com seu povo falando. Abraão
Deus e as Escrituras: uma perspectiva bíblica 33

deixa sua terra em Harã e parte. Ele age em obediência direta à


ordem divina, confiando que Deus cumprirá as promessas que
fez. Simplesmente agindo dessa forma, obedecendo às palavras da
ordem e confiando nas palavras de uma promessa, Abraão inicia
uma relação de aliança com Deus. Em outros termos, a resposta
de Abraão às palavras de Deus é também uma resposta ao pró­
prio Deus. Sua obediência às palavras de Deus e a confiança nelas
depositada são também, a um só tempo, obediência ao próprio
Deus e expressão de confiança nele. Por conseguinte, de manei­
ras aparentemente não sofisticadas e diretas, as Escrituras reve­
lam coisas profundas sobre a relação de Deus com as palavras que
ele profere.
A mesma característica serve de base para a manifestação
seguinte da aliança, ou seja, a aliança da lei proclamada por
Deus através de Moisés. Como prefácio a essa proclamação, Deus
repete a Moisés a promessa relativa à terra que ele havia feito a
Abraão e seus descendentes (“Eu vos farei entrar na terra que
jurei dar a Abraão, a Isaque e a Jacó; e a darei a vós por heran­
ça. Eu sou o S e n h o r ”; E x 6.8). Isso m ostra que a aliança em
questão é mais um a revelação da aliança in iciad a com Abraão
e não algo que a substituía. E la é então inaugurada com as
seguintes palavras proferidas por Deus a M oisés no monte
Sin ai, palavras que deveriam ser repassadas a toda a nação
de Israel:

Assim falarás à casa de Jacó e anunciarás aos israelitas: Vistes o


que fiz aos egípcios e como vos carreguei sobre asas de águias e vos
trouxe a mim. Agora, portanto, se ouvirdes atentamente a minha
voz e guardardes a minha aliança, sereis minha propriedade
exclusiva dentre todos os povos, porque toda a terra é minha;
mas vós sereis para mim reino de sacerdotes e nação santa. Essas
são as palavras que falarás aos israelitas (Ex 19.3b-6).
34 Teologia da revelação

Uma vez redimido por esse ato gracioso e soberano de Deus


no Êxodo, o povo de Deus continua a se relacionar com ele como
seu Deus, obedecendo às estipulações de uma aliança verbal. O
povo preservará a identidade e a condição que tem em virtude da
relação que Deus está desenvolvendo com ele (“reino de sacerdotes
e nação santa”) somente se permanecer fiel às novas palavras
que Deus lhes falará. Portanto, a realidade e a natureza de sua
relação com Deus serão determinadas inteiramente pela realidade
e natureza de sua relação com as p a la vra s que Deus está prestes
a lhes falar.
Esse ponto é exemplificado de forma decisiva para o povo
da aliança na instituição do tabernáculo, cujas característi­
cas físicas são prescritas em detalhes extraordinários na aliança
mosaica (Ex 25—30). No coração do tabernáculo (e depois no
coração do templo mais permanente de Jerusalém) estava a arca da
aliança, que continha as pedras com a inscrição do resumo da lei
da aliança (Ex 25.10-22). Além disso, foi diretamente sobre essa
arca, contendo as palavras da aliança divina, que Deus prometera
se encontrar com Moisés e falar a ele (Ex 25.22). Essa é uma
ilustração contundente de todos os relacionamentos de Deus com
seu povo baseados na aliança. Suas palavras, escritas em pedra,
representavam o lugar onde ele se encontrava com o líder de seu
povo, no meio de seu acampamento (e, mais tarde, no centro de
sua cidade, Jerusalém). Essa era uma referência poderosa ao fato
de que as palavras de Deus, em certo sentido, eram o modo que
ele havia escolhido para estar presente entre seu povo.
Isso também explica por que se considera que o povo agia
em relação direta com Deus simplesmente agindo em relação
com a arca inanim ada da aliança e, por causa disso, experimen­
tando às vezes bênção e às vezes juízo (conforme se lê especial­
mente em 2Sam uel 6, em que a ira do Senhor se acende contra
alguém que toca a arca de forma irreverente, e sua bênção recai
Deus e as Escrituras: uma perspectiva bíblica 35

sobre a casa onde a arca é guardada). A questão não é que Deus


“se rebaixou” para investir um objeto inanimado de um reflexo
dos seus poderes divinos, de modo que a arca ou as tábuas com o
objetos em si tivessem poder para trazer bênção ou juízo; não se
trata de objetos “sagrados” mágicos. Tampouco Deus estipula
um teste arbitrário “de cima” em relação à arca, como se estivesse
dizendo: “Se vocês tocarem nela com irreverência, acontecerão
coisas ruins; levem -na com respeito às suas casas e eu abençoa­
rei vocês. Foi assim que decidi agir”. Em vez disso, Deus se vin­
culou de tal modo às palavras inscritas nas tábuas na arca, que
em certo sentido está presente nessas palavras. Telford W ork
analisou bem esse ponto no Antigo Testamento: “É na arca de
Deus e nas palavras que se considera ali residirem que o Israel
antigo vê Deus presente para salvar”.3
A natureza da “presença pessoal” representada pelas palavras
escritas de uma pessoa é algo a ser explorado no próximo capítulo.
Por enquanto, porém, assim como em todo este capitulo, obser­
vamos simplesmente que as Escrituras deixam bem claro que as
palavras de Deus, de algum modo, transmitem sua presença.
Precisamos agora fazer uma pausa e refletir um pouco. A
natureza do relacionamento de Deus com seu povo, calcada na
aliança, deve nos levar a tirar duas conclusões sobre a relação
de Deus com as palavras que ele profere. Em primeiro lugar, é
nas p a la v ra s da a lia n ça , e através delas, que ele fala ao seu povo
e se dá a conhecer pela humanidade. Conhecemos outras pes­
soas vivendo algum tempo nos relacionando com elas, ouvindo-
as falar sobre si mesmas e sobre outros, e observando-as agir. Na
aliança do Antigo Testamento, Deus permite graciosamente que
seu povo venha a conhecê-lo da mesma maneira. É claro que
não estamos dizendo que Deus somente fala e não age, uma vez

3Work, L iving and active, p. 142 (grifo do original).


36 Teologia da revelação

que seu grande ato no Pentateuco é a redenção de seu povo do


Egito por meio do Êxodo. Contudo, como já se assinalou tantas
vezes, o Êxodo como acontecimento seria incompreensível como
redenção divina aos que o experimentavam, não fosse ele precedido
e seguido de palavras explanatórias de Deus. Além disso, Deus
decretou que o evento do Êxodo deveria estabelecer um padrão
(um modelo tipológico) para a totalidade de sua obra redentora, e
que a lembrança desse evento deveria moldar a vida de seu povo
no futuro por meio da repetição verbal do acontecimento e de seu
significado (Êx 12.24-28).
Assim, Deus se apresenta ao seu povo como o Deus de
Abraão, de Isaque e de Jacó: o Deus que faz e guarda sua aliança
com seu povo. Deus nos promete que ele é realmente o Deus
que se apresenta na aliança que estabelece entre ele mesmo e
nós, A aliança não é um meio pelo qual Deus lida conosco, por
assim dizer, à distância. A aliança de Deus não é uma forma de
mediação, transação ou negociação entre duas pessoas separadas,
uma das quais permanece totalmente transcendente. Não é
uma relação em que Deus permanece ausente. Pelo contrário, a
aliança e, portanto, as palavras humanas nas quais a aliança ganha
expressão e é posta em prática são o meio pelo qual Deus escolhe
ser Deus relacionando-se conosco. São elas justamente o meio
pelo qual ele vem a ser Deus para nós. Portanto, quando Abrão
ouve e obedece à ordem divina de sair de Harã e ir para a terra
que o Senhor lhe mostraria, ele entra em uma relação direta com
Deus. Confiar na promessa da aliança divina não é firmar um
acordo com um Deus ausente; é confiar no Deus que veio até nós.
Há, portanto, uma relação complexa, porém real, entre Deus e
suas ações, expressas e realizadas por intermédio das palavras de
Deus. Em termos filosóficos, existe uma relação ontológica entre
Deus e suas palavras. Parece que as ações d e Deus, incluindo suas
ações verbais, são um tipo de extensão dele.
Deus e as Escrituras: uma perspectiva bíblica 37

Nossa segunda reflexão sobre a aliança é esta: a não ser que


use palavras, Deus não pode estabelecer conosco uma aliança
que tenha significado, não pode fazer sua promessa para nós. A
promessa da aliança de Deus é um assunto complexo em que ele
se refere a si mesmo, ao relacionamento que está firmando com
seu povo, ao que agora passa a ser exigido desse povo, e também
ao futuro, prometendo bênção se seu povo guardar a aliança e
advertindo-o de um futuro maldito em caso de desobediência.
Nada disso é possível sem palavras. Deus escolhe usar palavras
como meio principal de se relacionar conosco, porque, podemos
supor, o tipo de relação que ele quer estabelecer não é possível
sem palavras. Além disso, as palavras que ele usa devem ser
palavras que os seres humanos possam compreender, uma vez que
somente se a promessa da aliança for feita com tais palavras será
uma aliança à qual poderemos responder.
Tudo isso significa que as palavras, incluindo as palavras
humanas, não obscurecem necessariamente o relacionamento
com Deus, atrapalhando as coisas. Pessoas mais místicas supõem
às vezes que as palavras, por sua própria natureza, são um
empecilho à consecução de uma comunhão mais profunda
com Deus, mas não é bem assim. Pelo contrário, as palavras
são um veículo imprescindível a um relacionamento com Deus.
Depositar nossa confiança nas palavras da promessa da aliança
que Deus nos faz é o mesmo que depositar nossa confiança em
Deus: os dois atos são a mesma coisa. Portanto, com unicação
com origem em Deus é com unhão com Deus, desde que haja uma
resposta de confiança de nossa parte.
Isso não significa que as palavras sejam tudo, como se falar e ser
alvo da fala de alguém constituíssem a íntegra de nosso relaciona­
mento com Deus. O reino de Deus não se resume à fala. Há e deve
haver variedades de contemplação de Deus sem palavras, e des­
canso sem palavras em sua presença. Contudo, é também verdade
38 Teologia da revelação

que se o Deus com quem temos um relacionamento é de fato o


Deus verdadeiro, e não um ídolo, nosso único acesso a uma relação
real com o Deus vivo — em que as palavras, às vezes, se perdem
— estará justamente nas palavras que Deus falar conosco. Afinal
de contas, um homem e uma mulher sentados em um restaurante,
olhando em silêncio um nos olhos do outro, após vinte anos de um
casamento com pleno diálogo em seu histórico, vivenciam um rela­
cionamento muito mais genuíno do que se estiverem em um pri­
meiro encontro e ainda não trocaram palavra alguma.
Portanto, é um erro perigoso imaginar que as palavras pelas quais
Deus escolhe firmar seu relacionamento conosco o apresentem por
completo. H á muita coisa que não sabemos sobre Deus e sobre suas
ações, simplesmente porque ele não nos disse. Na vida e no pensa­
mento cristãos há um lugar certo para o mistério de Deus, con­
forme o Senhor afirma com veemência a Jó (Jó 38— 41). Contudo,
a ênfase necessária sobre Deus como mistério não deve permitir que
se obscureça o extraordinário ato de graça pelo qual Deus nos trans­
mite palavras humanas de promessa, de modo que confiar nessas
palavras é em si mesmo um ato de confiança no próprio Deus.

As palavras de Deus e as palavras humanas


A terceira relação a considerar é a relação entre as palavras de
Deus e as palavras humanas. Com boa parte do discurso divino
nas Escrituras, especialmente no Antigo Testamento, o modo exato
pelo qual Deus “fala” não nos é dado a conhecer. Muitos leitores
da Bíblia perguntam: “O que realmente significa dizer que Deus
‘fala’, já que ele não tem cordas vocais que lhe permitam produzir
sons e não tem mãos que lhe permitam escrever?”. Em face dessa
pergunta, é verdade, alguns chegaram à conclusão de que devemos
parar de dizer que Deus “fala”, mas em vez disso dizer que ele inspira,
guia e supervisiona, ou que se vale de outras ações sem palavras.
Deus e as Escrituras: uma perspectiva bíblica 39

Todavia, um pouco de reflexão sobre a “fala” até mesmo entre


seres humanos mostra que não precisamos chegar a essa conclusão.
Podemos “falar” através dos movimentos de nossas mãos com
linguagem de sinais, ou através do piscar de luzes de um navio
para o outro em código Morse, ou através de uma mensagem de
nossa parte entregue por um terceiro (como um embaixador que
transmite uma mensagem entre dois chefes de Estado). Portanto,
a ideia de “falar” pode ser estendida além do contato face a face e
entre falante e ouvinte, até mesmo além do movimento de ar nas
cordas vocais ou de uma caneta sobre um papel, sem que a “fala”
deixe de ser identificável ou deixe de ter sentido.
Se, porém, aplicarmos esse pensamento ao significado preten­
dido quando nos referimos à “fala” de Deus, nos veremos pergun­
tando: o que exatamente aconteceu quando Deus “falou”e “chamou”
Adão e Eva no jardim, quando “falou” a Abraão ordenando-lhe que
saísse de sua terra e fazendo-lhe grandes promessas, e quando
“falou” a Moisés no alto do monte, dando-lhe a lei da aliança para
que a entregasse a todo o Israel? Podemos especular a esse respeito,
mas a verdadeira resposta é que não podemos ter certeza, porque
não temos essa informação. Contudo, a diversidade de formas de
“fala” até mesmo entre seres humanos, as quais vão bem além das
enunciações orais, significa que não se pode afirmar que a natureza
incorpórea de Deus o torna incapaz de falar.4
À medida que o Antigo Testamento se desenrola, uma for­
ma do falar divino ganha proeminência: Deus fala por meio de
seus profetas escolhidos com palavras que eles proferem em lín­
guas humanas comuns. O Antigo Testamento parte geralmente do

4Veja uma reflexão mais profunda a esse respeito em Nicholas Wolterstorff,


D ivine discourse: philosophical reflections on the claim that God speaks (Cambridge:
Cambridge University Press, 1995); Michael S. Horton, Covenant and eschatol-
ogy: the divine drama (LouisviUe: John Knox, 2002).
40 Teologia da revelação

pressuposto de que Deus pode e fala de fato, comunicando-se com


certas palavras humanas e através delas, de tal modo que podemos
dizer que essas palavras são verdadeiramente palavras dele. Isso é
notável, mas é tão comum nas Escrituras que a maior parte das
pessoas que conhece a Bíblia não se espanta com isso. A Bíblia não
apresenta nenhum relato teológico ou filosófico elaborado de como
as palavras humanas podem ser consideradas também palavras de
Deus. De fato, para muitas pessoas, tal afirmação parece absurda
e até mesmo idólatra. Como se pode dizer que algo tão limitado
como a linguagem humana seja capaz de transmitir alguma coisa
sobre Deus de maneira confiável?
A Bíblia dá uma pista de sua resposta a isso no relato que
faz da criação da humanidade. Deus faz suas criaturas humanas,
conforme ele diz, “à nossa imagem, conforme nossa semelhança”
(Gn 1.26). O significado preciso dessa frase, naturalmente, é
muito debatido, mas vale a pena notar que, no contexto imediato
de Gênesis 1, a atividade de Deus mais citada é sua fala. A luz
disso, parece que “a imagem de Deus” na humanidade inclui, no
mínimo, alguma referência à capacidade humana para interagir
com linguagens complexas, um reflexo do próprio caráter divino
como um Deus que fala. De fato, o uso que Deus faz do verbo na
primeira pessoa do plural na criação da humanidade (“Façamos...”),
seguindo diretamente seus atos de fala anteriores no capítulo, pode ser
mais bem compreendido como a primeira indicação daquilo que
o Novo Testamento iria revelar como uma pluralidade de pessoas
capazes de se comunicar dentro de “Deus”.5 Seja lá o que se diga

5Sei que essa interpretação de Gênesis 1.26 é antiquada, mas me parece


uma explicação mais provável do que a ideia de que Deus está se dirigindo à
“corte real” das hostes celestiais, ou de que ele está usando alguma versão divina
do “plural majestático”, conforme preferem alguns seres humanos detentores de
poder. Ela é mais provável porque está relacionada à atividade reiterada de Deus
ao longo do capítulo.
Deus e as Escrituras: uma perspectiva bíblica 41

sobre a linguagem humana, faz todo sentido supor que ela tenha
a capacidade de falar sobre Deus, pois nos foi dada por um Deus
que fala dentro de si mesmo como três pessoas eternas, e também
porque nossa fruição da linguagem, como criação à imagem de
Deus, é análoga à capacidade de comunicação divina. Deus pode
fazer com que nossa linguagem fale dele com propriedade porque
tem sua origem nele e, de certo modo, assemelha-se à linguagem
divina. A Queda torna isso mais problemático, é claro, mas o
pecado não apaga da humanidade a imagem de Deus e, portanto,
não destrói a capacidade da linguagem humana de falar com
propriedade sobre Deus.
Ao longo de toda a vida de Moisés, em especial, Deus lhe
dá palavras para falar ao restante do povo de Israel que, embora
transmitidas por um homem em linguagem comum, devem
ser identificadas também como palavras de Deus. Esse princí­
pio geral do discurso profético é expresso com veemência em
Deuteronômio 18.15-20, em que Deus promete enviar um profeta
depois de M oisés: “... lhe porei na boca as m inhas palavras...”
(v. 18). O início do livro de Jeremias oferece um exemplo excelente
da completa identificação das palavras do profeta com as palavras
de Deus. Deus diz a Jeremias: “Ponho as minhas palavras na tua
boca. Olha, no dia de hoje te estabeleço sobre as nações e sobre os
reinos, para arrancares e derrubares, para destruíres e demolires,
e também para edificares e plantares” (Je 1.9b,10). Jeremias é
escolhido por Deus para que tenha poder sobre nações e reinos,
mas esse poder vem unicamente através das palavras divinas que
Deus pôs em sua boca. Somente Deus tem esse poder sobre as
nações. Jeremias, como porta-voz que o representa, recebe o
mesmo poder apenas no sentido de que fala as palavras que lhe
foram dadas por Deus — palavras que, portanto, podem executar
o que Deus planejou que executassem. Jeremias falará simples
palavras humanas em uma linguagem humana comum. Deus não
42 Teologia da revelação

põe na boca de Jeremias fórmulas mágicas especiais nem uma


linguagem celestial antes desconhecida. Contudo, ainda assim essas
palavras serão também palavras de Deus. As palavras de Jeremias
são palavras humanas comuns, mas nem por isso menos divinas
por também serem totalmente humanas. Em um episódio um
tanto diferente, Deus põe suas palavras na boca de Balaão, e até
mesmo na boca de sua mula (Nm 22). Ao fazê-lo, o Senhor talvez
estivesse advertindo os profetas israelitas de que não fossem
presunçosos ou arrogantes, só porque ele às vezes os usava para
transmitir suas palavras.
Essa identificação entre as palavras humanas e as divinas
se estende além do discurso profético e abrange também os tex­
tos escritos do Antigo Testamento. Essa ideia foi defendida
recentemente, no tocante ao livro de Jeremias, por Gordon
M cConville. Ele assinala como Jeremias 36 permite que pala­
vra uma vez transmitida ao profeta também seja eficaz e regis­
trada por escrito como palavra de Deus que não se lim ita à vida
de Jeremias e vai além das circunstâncias nas quais lhe foi dada
pela primeira vez.6 Esse capítulo mostra como Jeremias ditou a um
escriba todas as palavras que Deus lhe havia entregado, e o escriba as
escreveu em um rolo destinado à proclamação pública. Com relação
aos aspectos não proféticos do livro, McConville diz que as expe­
riências de Jeremias narradas pelo livro, cujo sofrimento reflete o
sofrimento de Deus em virtude da infidelidade de Israel, “tudo
isso, de certa forma, marca o envolvimento de Deus na histó­
ria de Israel de um modo que pode se chamar encarnado’”. Ao
acrescentar a todo o cânon do Antigo Testamento tanto esse
tema quanto a nítida esperança de uma nova aliança, o livro

6Gordon McConville, “Divine speech and the book of Jeremiah”, in: Paul
Helm; CarlTrueman, orgs., The trustworthiness o f God:perspectives on the nature
ofScripture (Leicester: Apollos, 2002), p. 25-6.
Deus e as Escrituras: uma perspectiva bíblica 43

de Jeremias se torna parte do discurso de Deus por meio das


Escrituras.7 As partes não proféticas e mais comuns do livro,
portanto, estão profundamente entrelaçadas com o discurso
profético, de modo que as comunidades posteriores as recebe­
ram em sua totalidade como canônicas.8
Talvez seja bom resum ir a perspectiva bíblica deste capítulo a té aqui.
Quando deparamos com certaspalavras humanas (e.g., as palavras de
um profeta do Antigo Testamento), estamos em contato direto com
as palavras de Deus. Este é em si mesmo um encontro direto com a
atividade de Deus (uma vez que o discurso divino é uma forma pela
qual ele costuma agir), especialmente com sua atividade associada à
celebração de aliança. Um encontro com a atividade comunicativa de
celebração da aliança de Deus é, em si mesmo, um encontro com Deus.
Estivemos preocupados até aqui com o Antigo Testamento.
Voltamo-nos agora para o Novo Testamento para analisar a rela­
ção das palavras proferidas por Jesus Cristo, a Palavra encarnada,
com a ação e a pessoa de Deus.

As palavras de Cristo, a ação


e a Pessoa de Deus
Jesus Cristo vem como cumprimento de todas as promessas da
aliança do Antigo Testamento. De modo especial, como Palavra
encarnada, ele vem como cumprimento de tudo o que “a palavra
de Deus” no Antigo Testamento vinha antecipando.

'Ibidem, p. 32,37.
8Herman Bavinck diz: “palavra e fato, as dimensões religiosas e históri­
cas, o que foi falado por Deus e o que foi falado por seres humanos estão de
tal modo entrelaçados e emaranhados que é impossível separá-los. As partes
históricas das Escrituras são também revelação de Deus” (Herman Bavinck,
“Prolegomena”, in: John Bolt, org., Reformed dogmatics, tradução para o inglês
de John Vriend [Grand Rapids: Baker, 2003], vol. 1, p. 438).
44 Teologia da revelação

Embora esteja claro em todo o Novo Testamento, isso fica


especialmente nítido nos escritos de João. Jesus comunica a um
de seus discípulos, no Evangelho de João, uma espécie de resumo
dessa ideia: “Filipe, há tanto tempo estou convosco e ainda não me
conheces? Quem vê a mim, vê o Pai. Como podes dizer: Mostra-
-nos o Pai?” (Jo 14.9). Ele está afirmando que quem quer que o tenha
encontrado em pessoa também encontrou a Deus. Conforme a igreja
primitiva logo veio a perceber, as palavras e ações de Cristo não eram
apenas um reflexo da imagem de Deus em um ser humano muito
mais claro do que em qualquer outra pessoa. Bem mais do que isso,
encontrar Cristo era, em si mesmo, encontrar a Deus, embora na
forma até então inesperada de um ser humano. Em outra parte
do Novo Testamento, Paulo afirma justamente a mesma coisa
quando se refere a Cristo como “poder de Deus e sabedoria de
Deus” (ICo 1.24) e como aquele em quem “foi da vontade de Deus
que [...] habitasse toda a plenitude” (C l 1.19). Vale a pena notar,
a propósito, que esses comentários de Paulo mostram que essa
visão de Cristo era uma característica não apenas dos escritos de
João no Novo Testamento, mas também era fundamental para a
proclamação apostólica de Cristo desde o início.
Essa “plenitude” de Deus em Cristo inclui, é claro, as ações
de Cristo. Jesus explica então a Filipe, na passagem de João há
pouco citada, “... o Pai, que permanece em mim, é quem faz as
suas obras. Crede em mim; eu estou no Pai e ele está em m im ...”
(Jo 1 4 .1 0 b -lla). Antes, no mesmo Evangelho, ele havia dito algo
semelhante: “Em verdade, em verdade vos digo que o Filho nada
pode fazer por si mesmo, senão o que vir o Pai fazer; porque tudo
quanto ele faz, o Filho faz também” (5.19). Portanto, por exemplo,
testemunhar o Filho ressuscitar a Lázaro dentre os mortos era
testemunhar diretamente a ação do poder de Deus sobre a morte.
E os doentes curados por uma palavra ou um toque de Cristo
eram curados diretamente pela ação restauradora de Deus.
Deus e as Escrituras: uma perspectiva bíblica 45

Além disso, a “plenitude” de Deus, que lhe aprouve habitar


em Cristo, também incluía as p a la v ra s que Cristo pronunciou.
É importante nos determos um poucó neste ponto. Cristo diz "...
nada faço por mim mesmo; mas falo como o Pai me ensinou”
(Jo 8.28b). E também: “Pois não falei por mim mesmo; mas o
Pai, que me enviou, ordenou-me o que dizer e o que falar. E sei
que o seu mandamento é vida eterna. Assim, o que eu falo é exata­
mente o que o Pai me ordenou” (Jo 12.49,50). E, mais uma vez, ele
diz ao orar ao Pai por seus discípulos: "... porque lhes transmiti as
palavras que tu me deste” (Jo 17.8a). A implicação mais provável
é que essas palavras foram dadas pelo Pai a Cristo na eternidade,
e não exclusivamente durante sua vida terrena como, por exemplo,
durante sua infância ou vida adulta antes do início de seu minis­
tério público, ou durante os quarenta dias no deserto, ou ao longo
de sua vida (por exemplo, durante os momentos de oração), embora
nenhuma dessas possibilidades possa ser excluída. Isso fica mais
claro se continuarmos a ler o último versículo citado: "... e eles
[os discípulos] as acolheram e verdadeiramente reconheceram que
vim de ti e creram que tu me enviaste” (Jo 17.8). Embora essa afir­
mação, em si mesma, não seja prova conclusiva da preexistência
de Cristo (para isso, é preciso tratar o assunto mais amplamente,
o que pode ser feito tomando-se o Novo Testamento como um
todo), a implicação decisiva é que o Pai deu ao Filho as palavras
que falaria na terra antes de sua “vinda” e de “ser enviado”.
Podemos dizer, portanto, que essas afirmações de Jesus dão
um vislumbre da vida eterna do Deus trino. E um vislumbre do
Pai preparando a manifestação do Filho em forma humana, dan­
do-lhe as palavras que ele haveria de falar em seu ministério ter­
reno. A obediência humilde do Filho, portanto, não é vista apenas
em sua sujeição dolorosa e voluntária ao sofrimento e à morte,
mas também na transmissão fiel e obediente das palavras que
seu Pai lhe havia ensinado. Em conseqüência, toda sua existência
46 Teologia da revelação

terrena, em obra e palavra, foi uma revelação genuína da sabedo­


ria e do poder de Deus. Assim, as afirmações de Jesus que temos
considerado constituem uma revelação mais ampla da atividade
comunicadora entre as pessoas da Trindade, vislumbrada pela pri­
meira vez nos relatos de Gênesis 1 acerca da criação do universo
e da humanidade.
Isso esclarece o que Jesus quer dizer quando afirma: “... as
palavras que eu vos tenho falado são espírito e vida” (Jo 6.63).
Jesus não está dizendo em sentido metafórico que suas palavras
trarão plenitude de vida e levarão as pessoas a andar no poder
do Espírito se obedecerem, por mais verdadeiro que isso seja. O
que ele quer dizer (literalmente) é: suas palavras são palavras que
Deus identifica como totalmente suas e, portanto, são literal­
mente “cheias do Espírito”, que é o próprio Deus, e cheias de vida
eterna. Pois como podem palavras cuja origem está em Deus, e
que Deus diz serem dele, ser outra coisa qualquer?
Na mesma passagem, onde muitos seguidores de Cristo
o abandonam, ele pergunta a Pedro: “... Vós também quereis
retirar-vos? Simão Pedro respondeu-lhe: Senhor, para quem
iremos? Tu tens as palavras de vida eterna. E nós cremos e
sabemos que tu és o Santo de Deus” (Jo 6.67-69). Nessa etapa
precoce do desenvolvimento da compreensão de Cristo pelos
discípulos, é difícil ter certeza do que Pedro está afirmando
aqui. Na época, pode bem ter sido simplesmente uma maneira
veemente de dizer algo do tipo “Como M essias, tu és fiel ao
anunciar a mensagem messiânica que Deus te deu”. Por mais
que isso seja possível, a reflexão que os apóstolos fizeram poste­
riormente sobre a vida e ©ensino de Cristo logo levou a uma afir­
mação muito mais forte e que venho esboçando aqui: a afirmação
objetiva, porém extraordinária, de que Deus Filho, a Palavra
encarnada, por meio de palavras humanas comuns fala conosco
justamente as coisas que ouviu Deus Pai dizer na vida eterna da
Deus e as Escrituras: uma perspectiva bíblica 47

Trindade. João começa sua primeira carta chamando a atenção


exatamente para isso:

O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com


nossos olhos, o que contemplamos e nossas mãos apalparam, a
respeito do Verbo da vida (pois a vida foi manifestada, nós a
vimos, damos testemunho dela e vos anunciamos a vida eterna
que estava com o Pai e a nós foi manifestada) (ljo 1.1,2).

O que estava com o Pai e agora foi revelado em Cristo (o que João
chama aqui de “Verbo da vida [...] a vida eterna”) inclui, conforme
ele descreve, as ações e as palavras de Cristo.

As palavras de Cristo e as palavras humanas


O ministério terreno de Jesus estava lim itado no tempo e no
espaço. A Palavra se fez carne em um indivíduo para viver uma vida
humana real e sofrer uma morte. Isso é muitas vezes descrito como
“escândalo da particularidade”, e ao longo da história muitos a quem
foi apresentado o evangelho de Cristo tropeçaram nisso. Muitos gre­
gos que ouviram os apóstolos proclamando Cristo como Senhor
ressurreto e como juiz que viria não estavam receptivos à possibi­
lidade da revelação da verdade divina na vida de um indivíduo nas­
cido em um rincão palestino. Eles esperavam encontrá-la, em vez
disso, em uma “sabedoria”que lhes parecesse mais de origem divina.
Paulo responde a isso em ICoríntios 1.20-25 na defesa que faz
de sua pregação da cruz.
De modo semelhante, cerca de dezesseis séculos depois, muitos
teólogos protestantes pós-iluministas sentiram-se à vontade para
continuar a falar da origem divina das Escrituras, contanto que
ela fosse despida de suas peculiaridades históricas, revelando
assim um conjunto de verdades morais e humanas supostamente
48 Teologia da revelação

universais. Um personagem fundamental no desenvolvimento dessa


abordagem das Escrituras foi Baruch Spinoza, pensador holandês
do século 17. Para Spinoza, a história e a doutrina contidas na
Bíblia não têm autoridade para nós; a religião e a autoridade
bíblica são assuntos que dizem respeito à m oralidade apenas. O
que ele diz dos profetas é sintomático de sua atitude em relação
à Bíblia toda: “a autoridade dos profetas tem peso apenas em
questões de moralidade e [...] suas doutrinas especulativas pouco
nos afetam”.9 A convicção filosófica por trás dessa perspectiva da
Bíblia está sintetizada na declaração tantas vezes citada do autor
alemão do século 18, G. E. Lessing, de que “verdades acidentais da
história não podem jamais se tornar prova de verdades essenciais
da razão”.10
A declaração filosófica persiste, às vezes de forma inconsci­
ente e, portanto, sem questionamento, dando forma à boa parte
da rejeição da doutrina ortodoxa das Escrituras na atualidade. Na
verdade, a rejeição das Escrituras como revelação divina especial
é, não raro, efeito colateral da rejeição em escala maior da parti­
cularidade de Cristo como autorrevelação final de Deus no mundo.
Vale a pena notar aqui um aspecto que está por trás de várias dis­
cussões sobre as Escrituras: a opinião que as pessoas têm sobre
ela é, em grande medida, determinada pelo conceito que têm de
Jesus Cristo. Essa é uma razão prática pela qual a doutrina das
Escrituras deve ser expressa de um modo que deixe nítida sua
dependência da doutrina de Cristo.
É claro que a particularidade da revelação de Cristo leva dire­
tamente à oferta universal de vida nova nele. O Antigo Testamento

9Spinoza, Tractatus theolagicus-politicus, in: The ch ief works o f Benedict de


Spinoza, tradução para o inglês de R. H. M. Elwes (London: George Bell &
Sons, 1883), vol. 1, p. 8.
“Lessing, Lessings theological imitings, edição de Henry Chadwick (London:
A .& C . Black, 1956), p. 53.
Deus e as Escrituras: uma perspectiva bíblica 49

é a história tanto da expansão do povo de Deus quanto do estrei­


tamento de seus propósitos salvíficos, à medida que o reino do
sul, de Judá, continua a ocupar o centro do palco, e o reino do norte,
de Israel, desaparece; à medida que o “remanescente fiel” emerge
nos propósitos salvíficos de Deus como mais importante do que
a nação toda; e à medida que as esperanças de Israel para o futuro se
concentram no surgimento de uma única figura messiânica. Esse
estreitamento chega ao clímax com o advento de Cristo. Ele é o
novo Moisés que proclama uma nova lei, o novo Davi que estabe­
lece o reino de Deus na terra. Contudo, ele é também o represen­
tante de toda a nação de Israel, tentado por Satanás no deserto,
assim como ela também foi. Ele ainda representa toda a nova
humanidade à qual Deus está proporcionando nascimento espiri­
tual, ideia que Paulo expõe em Romanos 5 e 6.
Por causa do papel representativo de Cristo, o foco que antes
se voltava para o desenvolvimento da redenção e agora se concen­
tra nele é imediatamente seguido por uma expansão. Depois da
ascensão daquele que morreu no Calvário e ressuscitou, o Espírito
pode ser derramado sobre todos os seguidores de Cristo. Aliás, o
livro de Atos é estruturado em torno do recebimento do Espírito
por uma diversidade cada vez maior de pessoas, à medida que os
acontecimentos se expandem para fora de Jerusalém. Junto a esse
derramamento do Espírito, as boas novas sobre Jesus Cristo em
forma verbal vão se difundindo cada vez mais. O Filho de Deus
viveu uma vida humana em um lugar, em uma época. O modelo
de seu ministério em curso, agora oferecido a todos por meio de
seus seguidores, gira em torno do Espírito e das palavras.
Jesus ensinou isso a seus discípulos em sua última semana
de vida. Ele orou ao seu Pai: “... porque lhes transmiti as pala­
vras que tu me deste [...]. E rogo não somente por estes, mas tam­
bém por aqueles que virão a crer em mim pela palavra deles...”
(Jo 17.8,20). Isso amplia a história das palavras divinas que se
50 Teologia da revelação

tornam humanas esboçada na seção anterior. Pois as palavras


que Deus Pai entregou a Deus Filho foram transmitidas por
este, em linguagem humana comum, a seus discípulos. Agora
essas palavras devem ser transmitidas por meio das palavras
dos discípulos. Portanto, todo aquele que nunca teve um encon­
tro direto com a Palavra encarnada, mas ouve as palavras de
Cristo através de seus discípulos, encontra as palavras do Pai
e de Cristo, que nessas palavras se apresentam a nós como um
Deus que firma uma aliança.
O tema aparece também no Evangelho de Mateus. Quando
Jesus envia os Doze, de acordo com Mateus, ele lhes diz:

E, se ninguém vos receber, nem ouvir vossas palavras, sacudi o pó


dos pés ao sairdes daquela casa ou daquela cidade. Em verdade
vos digo que, no dia do juízo, haverá menos rigor para a terra de
Sodoma e Gomorra do que para aquela cidade [...]. Quem vos
recebe, recebe a mim; e quem me recebe, recebe aquele que me
enviou (Mt 10.14,15,40).

Portanto, rejeitar as palavras dos discípulos, palavras que têm ori­


gem em Cristo e falam sobre ele, é rejeitar a Deus e tornar-se pas­
sível de condenação. É fácil ter conhecimento dessas palavras e
não se deixar afetar pelo que está logo abaixo da superfície. Deus
se identificou com Jesus Cristo em pessoa e com a propagação,
por meio de seus discípulos, das palavras que ele trouxe do Pai, de
modo que rejeitar as palavras humanas proferidas pelos discípu­
los é rejeitar a Deus. É somente pela rejeição de Deus que as pes­
soas se colocam debaixo de sua condenação, e é justamente isso
que elas fizeram quando_ rejeitaram as palavras humanas que os
discípulos trouxeram da parte de Cristo.
A mesma ideia é apresentada na parábola das ovelhas e dos
cabritos (M t 25.31-46). Ali o Filho do homem salva ou condena
Deus e as Escrituras: uma perspectiva bíblica 51

as pessoas com base no tipo de ação que elas praticam “a um


destes meus irmãos, ainda que dos mais pequeninos”. Uma das
questões fundamentais para a interpretação dessa parábola é se
ela diz respeito à humanidade sofredora em geral ou aos cristãos
em particular, sobretudo aos discípulos que levam o evangelho
de Cristo a lugares culturalmente hostis. Um estudo dessa frase
e de outras semelhantes em todo o evangelho de M ateus indica
com muita ênfase o segundo sentido.11 Portanto, também nessa
parábola, rejeitar aqueles que proclamam as palavras de Cristo é
a mesma coisa que rejeitar Cristo.
Por último, no que diz respeito ao Novo Testamento, é impor­
tante observar que os escritos canônicos dos apóstolos antecipam
o futuro além de seu tempo de vida e estabelecem a base sobre a
qual a igreja pós-apostólica deveria prosseguir. Paulo descreve a
comunidade da aliança como fam ília de D eus,“[edificada] sobre
o fundamento dos apóstolos e dos profetas, sendo o próprio
Cristo Jesus a principal pedra de esquina” (E f 2.20). Os escritos
dos apóstolos foram o principal legado que eles deixaram para as
gerações seguintes de cristãos. Portanto, Paulo, na verdade, esta­
belece o vínculo mais próximo possível entre a igreja fundada
sobre Cristo e a igreja fundada sobre as palavras que Cristo pro­
feriu através dos apóstolos, conforme registradas em seus escritos.
Ela não pode ser uma sem ser também a outra.
Desse modo, o advento da Palavra encarnada não altera o fato de
que, para todos os que vêm depois de Cristo, a linguagem humana é
o meio essencial pelo qual Deus age em relação a nós e se apresenta
oferecendo uma relação de aliança com ele em Cristo. O passo final
nessa perspectiva bíblica consistirá em traçar o elo entre as palavras
da Bíblia e a linguagem humana através da qual Deus fala.

uVeja,e.g.,DonaldA.Hagner,M«#ifeTO-Z^—.2<í,WordBiblicalCommentary
33B (Dallas: Word, 1995), p. 744-5.
52 Teologia da revelação

As palavras de Deus e a Bíblia


Até aqui dirigimos o foco não para a Bíblia em particular, mas
para a proclamação geral das palavras de Cristo e da aliança.
Agora, porém, é preciso perguntar: “Por que colocar em pé de
igualdade as palavras de Deus (e tudo o que esse conceito implica
teologicamente) e as palavras humanas da Bíblia?”. Porque mui­
tos teólogos dispostos a se referir à proclamação do evangelho
como discurso divino recusam-se a identificar a B íblia toda como
Palavra de Deus.
Contudo, é impossível evitar o fato de que nosso único acesso a
Cristo e às suas palavras está no conteúdo da Bíblia. No momento
em que algumas partes da Bíblia são aceitas como Palavra de Deus,
ao passo que outras são rejeitadas, segue-se, em geral, um processo
em que os teólogos procuram tirar da Bíblia as seções ou temas
que, para eles, expressam o verdadeiro evangelho em contraposição a
outras partes da Bíblia. Esse procedimento é geralmente conhecido
como discernimento de “um cânon dentro do cânon”.12De fato, por
mais liberal que alguém se torne em sua avaliação das Escrituras,
essa pessoa, em geral, haverá de considerar que pelo menos algumas
frases curtas das Escrituras, tais como “Deus é amor”, são expressões
humanas exatas da real natureza de Deus.
Para ser claro, é importante ressaltar que esse “cânon dentro
do cânon” é uma abordagem bem diferente do reconhecimento
normal de que algumas partes da Bíblia não informam a verdade
toda sobre um assunto porque, por exemplo, elas apenas prenun­
ciam uma realidade ainda por vir. Também é muito diferente de
reconhecer que certas partes das Escrituras não devem ser aplica­
das aos crentes de hoje exatamente como se apresentam, porque

12John Goldingay apresenta uma análise lúcida dos diferentes sentidos da­
dos à expressão “cânon dentro do cânon” (Theological diversity and the authority o f
the OldTestament [Grand Rapids: Eerdmans, 1987], p. 122-7).
Deus e as Escrituras: uma perspectiva bíblica 53

elas foram claramente substituídas em um estágio posterior da


progressão da revelação divina. Um exemplo disso são as leis ali-
mentares do Antigo Testamento, que foram radicalmente rein-
terpretadas por Cristo em Marcos 7.18,19. O “cânon dentro do
cânon”, por sua vez, diz respeito à identificação de certos ensina­
mentos que a Bíblia afirma de fato, mesmo quando interpretados
de forma adequada e canônica, como de origem apenas humana
e de modo algum como palavra de Deus. Uma vez identificado
esse “cânon dentro do cânon”, um suposto núcleo da “Palavra de
Deus” nas Escrituras, ele pode então ser usado como base de uma
“crítica intracanônica” de outras partes das Escrituras, uma crítica
pela qual se faz distinção entre as palavras bíblicas por meio das
quais Deus escolhe de fato falar e as palavras através das quais
ele supostamente não fala, porque se acredita não expressarem de
modo algum o evangelho.
Essa estratégia é empregada de modo especialmente claro
pelo teólogo contemporâneo Wolfhart Pannenberg. Ele diz que a
Bíblia é Palavra de Deus somente à medida que dá expressão ao
evangelho apostólico. Ele crê que certas partes da Bíblia o fazem,
ao passo que outras, não. Diz Pannenberg:

... a autoridade das Escrituras repousa sobre o evangelho e seu


conteúdo: a presença salvadora de Deus na pessoa e história de
Jesus Cristo. Somente à medida que dão testemunho desse con­
teúdo é que as palavras e declarações das Escrituras têm autori­
dade na igreja [...]. Até que ponto isso é verdade deve ser objeto
de teste para cada texto e cada declaração em cada texto.13

13Wolfhart Pannenberg, Systematic theology, tradução para o inglês de


Geoffrey W. Bromiley (Grand Rapids: Eerdmans, 1991), vol. 1, p. 463 [edição
em português: Teologia sistemática, tradução de Werner Fuchs (Santo André/
São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2009)].
54 Teologia da revelação

Ele acredita que os escritos do Novo Testamento podem ser con­


siderados Escritura inspirada “somente à medida que testificam
da atividade salvadora de Deus na morte de Jesus na cruz e em
sua ressurreição, conforme o evangelho paulino”.14 Qualquer parte
das Escrituras que, na opinião dele, ficar aquém disso não deve ser
considerada palavra de Deus com autoridade na igreja.
A dificuldade dessa abordagem é que, como nosso único acesso
ao evangelho de Cristo se dá por meio das Escrituras, é difícil ver de
que maneira será possível discernir um princípio de crítica intraca-
nônica que não seja arbitrário e determinado, em larga medida, por
nossos próprios gostos e preconceitos. Em outras palavras, o resul­
tado de qualquer processo de “crítica intracanônica” consiste, geral­
mente, em uma Bíblia simplificada cujo conteúdo, de modo muito
suspeito, está de acordo com as perspectivas, obsessões e neuroses de
nossa própria cultura, limitado pela experiência espiritual que temos
(inadequada, como não pode deixar de ser) de nossa existência em
Cristo. Desconfia-se de que o que está sendo oferecido como palavra
“verdadeira” de Deus na Bíblia é uma construção humana, e não dis­
curso divino. Bruce Metzger, estudioso do Novo Testamento, afirma:

Os especialistas do Novo Testamento têm a responsabilidade,


como servos da igreja, de investigar, entender e elucidar, para
o desenvolvimento da vida cristã dos crentes, o sentido pleno
de todos os livros do cânon e não apenas daqueles que talvez
sejam mais populares em certos contextos e épocas. Somente
desse modo a igreja poderá ouvir a Palavra de Deus em todo o
seu alcance e profundidade.15

14Wolfhart Pannenberg, “On the inspiration of Scripture”, Theology Today


54 (1997), p. 213.
15Bruce M. Metzger, The canon o f the New Testament: its origin, development,
andsignificance (Oxford: Clarendon, 1987), p. 282.
Deus e as Escrituras: uma perspectiva bíblica 55

Nosso único acesso às palavras que o Pai entregou aos profetas e


a seu Filho, e às palavras que Cristo transmitiu a seus primeiros
discípulos, se dá de modo geral pela Bíblia.
De fato, constatamos que Cristo, perto do fim de sua vida
terrena, previu uma época em que suas próprias palavras conti­
nuariam a ser transmitidas pela comunidade apostólica. Em uma
passagem extremamente importante, ele diz aos Doze:

Ainda tenho muito que vos dizer; mas não podeis suportá-lo
agora. Quando, porém, vier o Espírito da verdade, ele vos con­
duzirá a toda a verdade. E não falará de si mesmo, mas dirá o
que tiver ouvido e vos anunciará as coisas que hão de vir. Ele me
glorificará, pois receberá do que é meu e o anunciará a vós. Tudo
quanto o Pai tem é meu; por isso eu vos disse que ele, recebendo
do que é meu, o anunciará avós (Jo 16.12-15).

A questão fundamental levantada por esses versículos, natu­


ralmente, é a seguinte: "Em que sentido Deus quis que essa decla­
ração fosse dirigida, em última análise, a um público mais amplo
que o grupo original dos Doze?". Se é dirigida — conform e se apre­
senta em última análise para além dos Doze — a cada um dos cren ­
tes, então o resultado parece ser uma situação infeliz em que todos
os cristãos, em face da ampla variedade de posições questioná­
veis que sustentam, poderiam afirmar que Cristo, pelo Espírito,
os guiou àquela “verdade”. Se, porém, esse ensino tiver sido diri­
gido — conforme se apresenta para além dos Doze — à fu tu ra igreja
como instituição, segue-se que estamos igualmente em uma situação
problemática em que as autoridades incumbidas do ensino na igreja
poderiam acrescentar outra revelação “fidedigna” à Escritura e inter-
pretá-la impunemente conforme lhes aprouvesse. Ou então, o que é
mais provável, Cristo quis que esses versículos fossem aplicados,
em sua totalidade, apenas aos doze discípulos (e, em pequena escala
56 Teologia da revelação

a partir disso, a seus companheiros mais imediatos). Em outras


palavras, nesse ensinamento Jesus prevê a comunicação futura,
por meio da obra fiel e obediente do Espírito Santo, de palavras
que provêm dele e cuja origem, em última análise, está no Pai,
dirigidas à comunidade apostólica original. Com isso, está firmada
parte da plataforma teológica para a redação posterior dos tex­
tos que vieram a formar o Novo Testamento pelo fato de serem
reconhecidos como Escritura. Trata-se também da contribuição
de Cristo na terra para nosso entendimento do que geralmente
se chama “inspiração” das Escrituras, que será tema do próximo
capítulo. Podemos acrescentar mais um ponto: esse ensino de
Cristo serve de garantia, com base nos evangelhos, para a prática
da igreja primitiva de fazer do “apostolado” (seja na autoria, seja
na fonte) um critério externo vital para o reconhecimento de cer­
tos textos como Escritura.
Nas diferentes interpretações de João 16.12-15 apresentadas
acima, pode-se observar a repetição de uma das questões funda­
mentais que os principais reformadores do século 16 tiveram de
enfrentar. A atividade persistente de comunicação fidedigna do
Espírito Santo reside na instituição da igreja de acordo com a
interpretação que ela faz da Bíblia, conforme o catolicismo romano
veio a afirmar? Ela reside no crente, conforme os anabatistas da
Reforma radical do século 16 vieram a afirmar?16 Ou, conforme
estavam convencidos os reformadores, essa autoridade do Espírito

I6“Anabatista” significa “rebatizador”. Esses grupos rejeitavam a validade


do batismo infantil e insistiam no batismo dos crentes adultos. Eles tinham
outras crenças centrais sobre as Escrituras e a obra do Espírito Santo que os
distinguiam claramente dos reformadores clássicos, crenças das quais trataremos
mais adiante. Entre os líderes mais importantes de diversos grupos anabatistas
encontram-se Thomas Münzer, Conrad Grebel,Jacob Hutter e Menno Simons.
Os dois últimos têm seguidores até os dias de hoje, conhecidos pelo nome de
seus fundadores: huteritas e menonitas.
Deus e as Escrituras: uma perspectiva bíblica 57

Santo tem lugar nas Escrituras à medida que ela é lida e à medida
que a igreja, desse modo, constata que Deus se dirige a ela por
meio de sua Palavra escrita no poder do' Espírito? Esta últim a
resposta é sugerida pela aplicação de João 16.12-15 apenas à
comunidade apostólica.
Outra evidência bíblica de que essas palavras de Jesus deviam
ser limitadas aos apóstolos é o fato de que os escritos posteriores
do Novo Testamento, de modo especial, apontam de forma cons­
ciente para a proximidade do encerramento dos escritos canônicos.
Portanto, as epístolas pastorais, que se acham visivelmente à porta
do período pós-apostólico, caracterizam-se não por prescrições aos
futuros líderes para que permaneçam receptivos a quaisquer pala­
vras que Cristo continue a enviar do Pai pelo Espírito. Seu foco, pelo
contrário, consiste em instruir a geração de líderes pós-apostólicos a
preservar e a transmitir fielmente o evangelho já transmitido pelos
apóstolos (e.g., 2Tm 2.2; 3.14). De igual modo, o livro de Apocalipse
chega ao fim encerrando a perspectiva de uma extensão através de
outras revelações verbais com autoridade de Escritura (Ap 22.18).
A perspectiva bíblica apresentada neste capítulo pode ser
resumida de modo muito simples. Deus escolhe se apresentar
a nós e a agir em nós por palavras humanas e através delas, cuja
origem está nele, palavras que ele identifica como suas. Quando
deparamos com elas, Deus age em nós, sobretudo pela promessa de
uma aliança conosco. Deus se identifica com seu ato de prometer
de tal modo que, para nós, encontrar a promessa divina é, em si
mesmo, encontrar a Deus. A forma suprema pela qual Deus vem ao
nosso encontro em sua promessa de aliança são as palavras da Bíblia
toda. Portanto, en con trar as p a la vra s das E scrituras é en con trar D eus
em ação. Essa perspectiva bíblica será o fundamento sobre o qual
os demais capítulos serão construídos e determinará a forma de
nossa doutrina das Escrituras.
2
mm

A TRINDADE E AS ESCRITURAS:
UMA PERSPECTIVA TEOLÓGICA

este capítulo passaremos à análise sistemática das Escrituras

N em sua relação com Deus e com cada Pessoa da Trindade.


Em algumas formas sistemáticas da teologia cristã, a
Bíblia não está relacionada diretamente a Deus. Por exemplo, na
teologia católica romana, e também cada vez mais em alguns ramos
da teologia protestante contemporânea, as Escrituras estão rela­
cionadas, sobretudo, à doutrina da igreja. Além disso, conforme
observamos na introdução, algumas teologias evangélicas, par­
ticularmente em suas formas mais populares, apresentam uma
doutrina sistemática das Escrituras como discussão preliminar
sobre as fontes e autoridades da verdade cristã, antes do trata­
mento explícito da natureza de Deus e de suas ações. Isso con­
duz à alegação, nem sempre infundada, de que a doutrina das
Escrituras resultante parece mais um exercício de filosofia do que
de teologia cristã centrada em Cristo e voltada para Deus. Nosso
primeiro nível de sistematização, portanto, relaciona a Bíblia ao
Deus trino e uno, e não a outra coisa qualquer, em razão dos elos
60 Teologia da revelação

fundamentais entre a pessoa e as ações de Deus e suas palavras já


esboçados no capítulo anterior.1
É claro que ao descrever a relação da Bíblia com cada pessoa
da Trindade em separado corre-se o risco da abstração, como em
qualquer tipo de análise trinitária. As Escrituras falam constan­
temente da unidade de Deus em suas ações e, como os teólogos
muitas vezes dizem, as três Pessoas da Trindade estão envolvidas
nas ações que Deus realiza além de si mesmo. Não obstante, con­
forme se tem observado muitas vezes, as Escrituras enfatizam a
prioridade de determinadas Pessoas da Trindade em determina­
das ações divinas. Portanto, na Bíblia, o Pai parece ter prioridade
no ato da criação, o Filho é o sujeito voluntário e ativo da encar­
nação, e o Espírito é o agente da inspiração das Escrituras. Cada
seção desse capítulo analisará esses aspectos das Escrituras mais
intimamente relacionados a cada Pessoa da divindade.
M uitos críticos das doutrinas evangélica e reformada das
Escrituras receiam que essas doutrinas tenham passado depressa
demais da forma não sistemática, em que a relação da Bíblia com
Deus é descrita nas Escrituras, para declarações dogmáticas,
gerando assim formas sistemáticas dotadas de exatidão excessiva,
sobretudo em temas como perfeição, necessidade, suficiência,
clareza, inspiração e autoridade das Escrituras. A análise da
Bíblia a partir desses temas como maneira p rim o rd ia l pela qual
as Escrituras são descritas teologicamente passa muitas vezes
rápido demais sobre a complexidade do testemunho bíblico e
do ensino acerca da natureza e da função da Bíblia em relação
a Deus e seus propósitos. Ou, de modo mais sutil, o que talvez

'Estou, portanto, acatando a útil advertência de John Webster de que algu­


mas formas de dogmática pós-Reforma prepararam involuntariamente o caminho
para “interpretações não teológicas da Bíblia” ao desenvolver uma epistemologia
teológica não muito trinitária (John Webster, “Hermeneutics in modem theology:
some doctrinal reflections”, Scottish Journal o f Theology 51 [1998], p. 323-4).
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 61

tenha acontecido foi que, embora as soluções aparentemente


exatas de clareza, suficiência etc. possam um dia ter sido expressas
como conclusão de uma rigorosa apresentação bíblico-teológica,
houve uma mudança: o que antes era oferecido como conclusão
doutrinária passou a ser apresentado como p o n to de p a rtid a do
que se diz a respeito da Bíblia. Em conseqüência disso, a doutrina
evangélica das Escrituras, para muitos, pareceu ter ficado sem
vida, esvaziada das raízes bíblicas e teológicas profundas e ine­
quívocas, raízes necessárias à sua vitalidade espiritual. Aliás, é
provável que muitos tenham rejeitado a doutrina evangélica
das Escrituras não tanto porque a consideraram biblicamente
errônea ou intelectualmente inadmissível, mas porque acharam
suas exposições destituídas do que podemos chamar de espiri­
tualidade dinâmica. As formulações da teologia de fato precisam
de exatidão; mas haverá vezes também em que a doutrina estará
relacionada diretamente à vida e a esperanças cristãs experimentadas
no relacionamento com Deus.2
Este capítulo apresenta uma perspectiva de sistematização
dos dados bíblicos do capítulo anterior em que se procura dar
conta dessas preocupações válidas. Portanto, é somente no pró­
ximo capítulo que surgirão conceitos como “suficiência” e “clareza”
das Escrituras. Aqui ainda estaremos às voltas com a tarefa vital
de fazer uma apresentação inequívoca das Escrituras em todos os
pontos sob a luz do caráter e das ações de Deus revelados e tes­
temunhados nas Escrituras. Se o leitor suspeitar de que conceitos
como “autoridade”, “suficiência”, “clareza” e “necessidade” estão
aparecendo neste capítulo, mas não estão sendo chamados por

2Creio que a exposição da doutrina da revelação de Bavinck contém uma


das doutrinas das Escrituras espiritualmente mais vitais que conheço, e mes­
mo assim elaborada com cuidado e raciocínio inteligente (Herman Bavinck,
“Prolegomena”, in: John Bolt, o r g Reformeddogmatics, tradução para o inglês de
John Vriend [Grand Rapids: Baker, 2003], vol. 1, p. 283-494).
62 Teologia da revelação

esses nomes, isso se explicará pelo fato de que, por ora, meu pro­
pósito é permanecer fiel às formas, conceitos e termos bíblicos,
evitando assim entrar muito depressa em definições doutrinárias,
por mais provadas, consagradas e verdadeiras que possam vir a ser.

0 Pai e as Escrituras: o livro da aliança


Em toda a narrativa das Escrituras, as duas grandes ações do Pai,
posteriormente à glória de seu ato criador e à tragédia da Queda
da humanidade, são red im ir e rev ela r? Seus atos reiterados de
redenção conduzem à redenção máxima realizada na vida, morte e
ressurreição de Cristo. A medida que essa história avança, Deus
está agindo constantemente para revelar o significado de seus atos
redentores e para mostrar às pessoas a base sobre a qual elas
podem se unir aos que estão sendo redimidos. Portanto, o Êxodo,
conforme vimos no capítulo anterior, seria incompreensível sem
as palavras de Deus explicando sua importância. E as Escrituras,
conforme também já vimos, não são apenas um meio pelo qual
Deus revela o significado de suas ações. Ela é também um dos atos
redentores pelo qual ele conduz as pessoas à união com Cristo e ao
relacionamento consigo. Portanto, analisaremos agora o papel das
Escrituras na obra de redenção e de revelação do Pai.

A redenção e as Escrituras
“... serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo” (Lv 26.12). Essa
é a forma mais direta pela qual Deus expressa o relacionamento
redentor que estabelece com seu povo. Trata-se de um relaciona­
mento de aliança firmado por meio de uma promessa. Em toda
a Bíblia, “aliança” é a descrição mais abrangente e importante

3AIiás, conforme Bavinck costuma dizer, os atos redentores de Deus na his­


tória são sua revelação de si mesmo.
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 63

da forma como Deus se relaciona com a humanidade em seu


desejo de redim i-la. A aliança é estabelecida de forma unilateral
e incondicional. É verdade, naturalmente, que nas Escrituras os
meios pelos quais um criador santo propõe que a humanidade
pecadora seja reconciliada com ele em uma relação de aliança sejam
a expiação e a união com Cristo. Contudo, esses atos divinos de
expiação pelo pecado humano em Cristo e de união dos crentes
com seu Filho decorrem da natureza pactuai do relacionamento
que Deus escolhe ter conosco. Em Cristo, estamos redimidos pela
cruz, porque Deus agiu para que isso ocorresse em cumprimento
às promessas da aliança feitas e registradas nas Escrituras. Deus
nos redime porque na aliança ele prometeu ser nosso Deus e fazer
de nós seu povo. Portanto, através de suas várias manifestações
na história da redenção, a aliança divina é um modo único de
relacionamento, e seu pleno significado e realidade se manifestam
no tempo.
Portanto, a morte de Cristo só faz sentido como auge da
fidelidade divina à sua aliança. Por meio do profeta Jerem ias,
Deus prometeu:

... farei uma nova aliança


com a casa de Israel
e com a casa de Judá. [...]
Porei a minha lei na sua mente
e a escreverei no seu coração.
Eu serei o seu Deus,
e eles serão o meu povo (Jr 31.31,33).

O Novo Testamento cita essa passagem na íntegra, relacionan­


do-a de modo específico ao que Cristo realizou na cruz simul­
taneamente como grande sumo sacerdote e como sacrifício
definitivo (Hb 7.23— 8.13). A mesma ideia se evidencia nos
64 Teologia da revelação

relatos da redenção do Novo Testamento. Quando um dos crimi­


nosos crucificados ao lado de Cristo confessa seu crime e a inocên­
cia de Cristo, e apela implicitamente para sua condição de Messias,
Cristo lhe promete: “... hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23.43).
Essa é uma promessa feita e expressa em linguagem de aliança reti­
rada do Antigo Testamento. O criminoso agora pertence a Cristo;
sua maldade e pecado foram esquecidos por Deus (cf. Jr 31.34).
A aliança que Cristo realizou foi transm itida por escrito.
E bem sabido que a aliança no Sinai apresentada no Antigo
Testamento tem semelhanças significativas com os tratados de
aliança do mesmo período celebrados entre um soberano e seus
súditos no antigo Oriente Próximo, e isso tem sido objeto de pes­
quisas detalhadas.4 Aliás, no Antigo Testamento, o título “livro da
aliança” é atribuído a trechos menores e maiores do conteúdo da
Torá (Êx 24.7; 2C r 34.30).5
Os eventos messiânicos e redentores relatados pelo Novo
Testamento cumprem a aliança que Deus vinha estabelecendo
desde o início. Conforme disse Jesus antes de sua morte: “Esta­
mos subindo para Jerusalém, e se cumprirá com o Filho do
homem tudo o que foi escrito pelos profetas” (Lc 18.31). Cristo
vem para preservar e cumprir a lei do Sinai exposta e aplicada
pelos profetas: “Não penseis que vim abolir a L ei ou os Profetas;
não vim abolir, mas cumprir” (M t 5.17). Sua vida, em palavras e
ações, cumpre a aliança. Conforme vimos no capítulo anterior,

4A obra de G. E. MendenhaU e M. G. Kline é geralmente citada nesse con­


texto. Veja uma breve exposição em W illiam Sanford LaSor; David Allan
Hubbard; Frederic W illiam B.ush, Old Testament survey: the message, fo rm
a n d background o f the Old Testament (Grand Rapids: Paternoster, 1982), p.
144-6 [edição em português: Introdução ao Antigo Testamento (São Paulo,
Vida Nova, 1989)].
5Peter Jensen trabalha esse ponto em The revelation o f God (Leicester: IVP,
2002), p. 82 [edição em português: A revelação de Deus, tradução de Valdeci da
Silva Santos (São Paulo: Cultura Cristã, 2007)].
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 65

antes da ascensão ele também prevê e autoriza a transmissão de


outras palavras de sua parte à comunidade apostólica através
da atuação do Espírito Santo. Era isso que a igreja prim itiva
percebia nesses textos que ela passou a considerar como Escritura:
eles traziam as marcas necessárias que os caracterizavam como
palavras do Cristo ressurreto, tanto em seu conteúdo quanto
por causa de sua autoria oriunda da comunidade apostólica
primitiva. Portanto, esses escritos transmitidos por Cristo, de
autoria dos apóstolos e de seus companheiros mais próximos,
expondo e aplicando o significado de Cristo como cumprimento
da aliança, constituem o Novo Testamento como um todo.
Sob essa perspectiva, o Novo Testamento compõe os capítu­
los finais do livro da aliança divina. As Escrituras como um todo
constituem a forma constante pela qual Deus faz a promessa de
aliança a seu povo. Elas são o meio pelo qual o Pai expressa a
promessa de aliança que ele cumpriu em Cristo, agora oferecida
ao mundo todo, e na qual demonstra sua fidelidade à aliança em
meio a altos e baixos extraordinários. A Bíblia é corretamente
considerada o livro da aliança inaugurada e cumprida.
E claro que muitos trechos das Escrituras não aparecem
diretamente como declarações de uma promessa de aliança.
Portanto, alguns indagarão se não seria simplista demais descre­
ver toda a coleção de 66 livros diversos como um grande e único
livro de aliança. Que tipo de promessas da aliança de Deus são
expressas na narrativa de Crônicas ou nas palavras de sabedo­
ria de Provérbios? Como podem os salmos dirigidos a Deus ser
entendidos como palavras de promessa de Deus? Contudo, todos
os gêneros e formas literárias nas Escrituras estão associados dire­
tamente à sua forma e função básicas de aliança.
Os m andam entos apresentam as condições da aliança. K p r o ­
fe c ia e as epístolas, em especial, expõem e aplicam essas condições
em contextos específicos. Elas são, de fato, a aliança pregada em
66 Teologia da revelação

diferentes situações. A n arrativa apresenta o desenrolar dos acon­


tecimentos nos quais o povo confiou em Deus e o rejeitou e em
virtude dos quais Deus pôs fielmente em prática as conseqüên­
cias de suas promessas, seja como bênção, seja como julgamento.
Aliás, a narrativa ocupa na Bíblia mais espaço que qualquer outro
gênero literário. Talvez isso se deva ao fato de que ela é a forma
de texto mais adequada para responder, com clareza e convicção,
às principais interrogações que a oferta de uma promessa sempre
suscita: posso confiar na pessoa que faz a promessa? O que acon­
tece quando a pessoa parece não cumprir o que promete? Quais
serão as conseqüências se eu confiar nela? E se não confiar? A
narrativa bíblica serve para dar respostas a essas perguntas funda­
mentais sobre a aliança (veja IC o 10.1-13; Hb 4.1-13).6 Os sal­
m os apresentam exemplos de formas pelas quais o crente pode
se dirigir a Deus em muitas situações da vida, permanecendo, ao
mesmo tempo, fiel à aliança, quer esteja ele cheio de louvor pela
experiência da bênção, quer esteja confuso e desesperado por
Deus ter aparentemente deixado de cumprir suas promessas. Os
textos apocalípticos mostram com clareza a realidade plena do
presente e as conseqüências derradeiras da bênção ou maldição
decorrente da obediência ou desobediência à aliança.
Dizer, portanto, que as Escrituras são o “livro da aliança” não
significa que elas, sendo ricas e complexas, devam ser colocadas à
força em um molde teológico unidimensional. Devemos sempre
desconfiar de nossa tendência de encontrar um meio conveniente
para não ter de lidar com a diversidade e a complexidade da palavra

6S abemos que, muitas vezes, pregadores e teólogos evangélicos conservadores,


quando lidam com a narrativa bíblica, costumam se sentir menos à vontade do
que quando trabalham com o material mais didático e explicitamente teológico
representado pelas epístolas do Novo Testamento. Contudo, se a realidade da
aliança de Deus é central para nossa vida e nosso pensamento, então a narrativa
deve nos tocar como uma forma bastante natural de texto bíblico.
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 67

que Deus nos deu, transformando-a em algo mais administrável


e que possa ser mais facilm ente compreendido. Todavia, tra­
tar a Bíblia como “livro da aliança” não é algo sim plista nem
reducionista. Significa, antes, reconhecer o papel essencial das
Escrituras no relacionamento que Deus quer estabelecer com
a humanidade.
Ê claro que está se fazendo aqui uma afirmação muito espe­
cial em relação à Escritura: ela é um aspecto da ação do Deus sobe­
rano e fiel que se autorrevela ao mundo e, especificamente, é a ação
por meio da qual esse Deus declara sua aliança contínua com seu
povo, cujo clímax é Cristo. Algumas escolas do pensamento teo­
lógico cristão acreditam que esse tipo de afirmação chega peri­
gosamente perto da “divinização” das Escrituras (esse é o termo que
parece ser mais usado). A questão central nessa preocupação é que
as Escrituras sejam transformadas em uma manifestação do pró­
prio Deus no mundo de tal modo que ele e suas ações sejam colo­
cados em pé de igualdade com a linguagem humana e reduzidos à
sua sintaxe e semântica. Isso, assim se acredita, acaba fazendo de Deus
outro verbete de dicionário, sujeito à investigação humana, assim
como achamos que conseguimos “dominar” Shakespeare ao estu­
dar suas peças e poemas. É claro que qualquer tentativa humana de
dominar a Deus, em vez de ser um servo por ele dominado, é idolatria
imperdoável. Mais adiante neste capítulo falaremos mais sobre essa
crítica à doutrina que estou defendendo, mas por enquanto podemos
simplesmente ressaltar que a descrição das Escrituras como “livro
da aliança” parece nos ser imposta pelo que Deus diz nas Escrituras
sobre si mesmo e sobre ela própria. Declarações verdadeiras sobre
Deus e sobre seus caminhos podem, no fim das contas, se aproxi­
mar muito do erro, embora não deixem de expressar uma verdade
importante, quando ainda não foram plenamente expostas e refina­
das. Não são necessariamente menos verdadeiras por causa disso. A
história das doutrinas da pessoa de Cristo e da Trindade, só para
68 Teologia da revelação

mencionar duas, deixa isso claro. Deve-se esperar o mesmo com a


doutrina das Escrituras.
Nos últimos anos, escrevendo sobre as Escrituras, alguns auto­
res apelaram a um ramo da filosofia da linguagem para nos ajudar
em nossa reflexão. A “teoria dos atos de fala”, como esse campo é
chamado, propõe uma forma convincente para entender o que é a
linguagem e para que ela serve.7 Ela começa rejeitando a ideia tão
difundida de que a linguagem é basicamente um sistema lógico
para a transmissão de segmentos de informações, algo parecido
com o que faz um computador que envia dados para outro. Esse
modelo de linguagem é geralmente considerado correto se pen­
sarmos no ser humano sobretudo da perspectiva de sua mente e

7Os grandes textos da teoria dos atos de fala que exerceram influência
sobre a teologia são os seguintes: J. L. Austin, How to do things w ith words,
2. ed. (Oxford: Claredon, 1975) [edição em português: Quando dizer éfaz er:
palavras e ação (Porto Alegre: Artes Médicas, 1990)]; John R. Searle, Speech
acts: an essay in the philosophy o f language (Cambridge: Cambridge University
Press, 1969) [edição em português: Os actos de fa la : um ensaio de filosofia da
linguagem (Lisboa: Livraria Almedina, 1984)]; Expression andm eaning: studies
in the theory o f speech acts (Cambridge: Cambridge University Press, 1979)
[edição em português: Expressão e significado: estudos da teoria dos atos de fala,
tradução de Ana Cecilia G. A. de Camargo; Ana Luiza Marcondes Garcia
(São Paulo: Martins Fontes, 1995)]. São os seguintes, entre outros, os teólogos
e estudiosos bíblicos que recorreram a essas obras: Anthony Thiselton, Kevin
Vanhoozer e Francis Watson. O que se segue aqui é extraído principalmente da
obra criativa do filósofo e teólogo Nicholas Wolterstoríf em D ivine discourse:
philosophical reflections on the claim that God speaks (Cambridge: Cambridge
University Press, 1995). A teoria dos atos de fala, naturalmente, é um campo
diversificado. Veja uma análise teológica de seu desenvolvimento de Austin
a Searle e Wolterstoríf em Timothy Ward, Word and supplement: speech acts,
biblical texts, and the suffciency o f Scripture (Oxford: Oxford University Press,
2002), p. 75-105. Devo esclarecer aos leitores com algum conhecimento da
teoria dos atos de fala que considero a exposição de enfoque ético dessa teoria
por Nicholas Wolterstoríf, que analisa a fala como ela é no mundo real, muito
mais verdadeira e frutífera para fins teológicos do que a abordagem filosófico-
analítica bastante distinta de John Searle. Portanto, sempre que me refiro neste
livro à “teoria dos atos de fala” tenho em mente a variante de Wolterstoríf e
não a teoria de Searle.
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 69

racionalidade, como muitas vezes aconteceu na filosofia ocidental


desde o Iluminismo. Em vez disso, a teoria dos atos de fala pen­
sa a linguagem como meio pelo qual uma pessoa realiza ações em
relação a outra. Toda filosofia da linguagem pressupõe certa pers­
pectiva acerca do que seja um ser humano. A antropologia mais
condizente com a teoria dos atos de fala, naturalmente, implica
que somos pessoas dotadas de corpo e mente que praticam ações
em relação umas às outras e ao mundo à nossa volta, e tais ações
não se reduzem à mera transmissão de informações.
O exemplo clássico que os teóricos dos atos de fala costumam
usar para explicar sua tese é a enunciação de uma promessa. Se
digo a você “Prometo encontrá-lo na cidade amanhã”, não pas­
sei apenas uma informação. Fiz alguma coisa que implica o
relacionamento entre nós. Coloquei-o em uma situação em que
você é obrigado a confiar em mim. (É claro que você pode não se
sentir obrigado a confiar em mim se tiver boas razões para achar
que sou um mentiroso contumaz, ou que serei incapaz, por algum
motivo, de manter minha promessa. Esses fatores de “desqualifi-
cação” não anulam a declaração básica sobre a linguagem e sobre
o discurso feita aqui.) Quanto a mim, coloquei-me em uma situa­
ção que me obriga a agir em relação a você de um modo que per­
mita o cumprimento de minha promessa.8
Esse talvez seja um ponto extremamente óbvio a ser ressal­
tado sobre as promessas, mas ele também vale para os usos da
linguagem que, ao contrário das promessas, parecem simples­
mente transmitir informações. Por exemplo, você me pergunta
que horas são; olho para o meu relógio e lhe digo as horas. Esse

8“0 falar introduz o potencial para uma nova gama de culpabilidades — e


realizações — morais. Na verdade, é nossa dignidade como pessoas que requer
que se confie em nossa palavra e em nós mesmos por causa de nossa palavra”
(Wolterstorff, D ivine discourse, p. 94).
70 Teologia da revelação

parece ser um acontecimento em que ocorre troca de informa­


ção de uma mente para a outra e nada mais. Na verdade, porém,
é muito mais que isso. Se em seguida você aborda outra pessoa
e lhe pergunta as horas, chego à seguinte conclusão lógica: “Não
acreditou em mim, não é?”. Essa conclusão natural revela que o
intercâmbio lingüístico entre as pessoas, embora naturalmente
inclua a comunicação de proposições, está associado a algo dife­
rente e muito mais profundo. Ele im plica relações ativas de
confiança e de obrigação.9 Não são apenas as palavras impres­
sionantes de meus votos de casamento, por exemplo, que me
obrigam a viver no âmbito de uma relação específica, a me com­
portar de certas formas e a evitar determinadas ações. O mesmo
se aplica a qualquer palavra que dizemos, talvez de forma menos
explícita à prim eira vista, mas igualmente significativa.10
Os fortes elos entre nós, nossas ações e as palavras pelas quais
realizamos muitas delas ficam evidentes no curso normal da vida.
Isso acontece, sobretudo, quando pensamos nas respostas dadas a
uma promessa. Quando você me diz “Confio que você cumprirá
sua promessa”, ou “Confio em sua promessa”, ou ainda “Confio em
suas palavras”, está na verdade dizendo o mesmo em relação a mim.
Quando você desconfia das pa lavras de minha promessa está sim­
plesmente desconfiando de mim . As pessoas e as ações se acham
tão intimamente identificadas nas relações interpessoais que as

9“Ao dizermos uma coisa qualquer, introduz-se nas relações humanas


{prima facie) o direito de que confiem em nossa palavra quando nos referimos
àquela coisa” (ibidem, p. 84-5).
“ Esse ponto crucial esclarece algo que costuma ser mal compreendido
sobre a teoria dos atos de fala; Ela oferece uma descrição abrangente de todas
as instâncias de uso da linguagem, não apenas aquelas que realizam, mais
obviamente, ações (tais como os votos matrimoniais). E, uma vez que seu relato
da linguagem diz respeito fundamentalmente a pessoas e relacionamentos, uma
visão da linguagem baseada em um “ato de fala”terá implicações profundas para
a antropologia e para a pessoalidade.
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 71

ações passam a ser uma extensão de nossa pessoa nas relações com
os outros. Isso é extremamente difícil de. descrever filosoficamente
(ainda bem que nosso objetivo aqui não é esse!), mas parece sen­
so comum para qualquer um que viva no mundo real e reflita um
pouco sobre o modo pelo qual a linguagem atua em nosso dia a dia.
Acima de tudo, é claro, isso se encaixa perfeitamente com o que vi­
mos no capítulo anterior sobre a relação íntima nas Escrituras entre
Deus, suas ações e suas palavras. Isso obviamente não significa que
os leitores da Bíblia tenham se dado conta desse aspecto somente
quando os teóricos dos atos de fala fizeram a gentileza de apontá-
-lo aos teólogos agradecidos. O fato é que os conceitos que estamos
tomando emprestado da teoria dos atos de fala podem nos ajudar
a perceber com muito mais clareza um aspecto das Escrituras que
nem sempre foi bem exposto nas descrições de sua natureza e de
seu conteúdo propostas pelas diversas ramificações do pensamento
cristão, incluindo o pensamento evangélico.
Desse ponto de vista, fica claro que colocar as p a la vra s de uma
pessoa que pratica determinadas ações em pé de igualdade com
as ações dessa pessoa é, na verdade, fazer plena justiça à natureza
da linguagem e da ação conforme o plano de Deus. Portanto, o
contrário, isto é, distanciar acentuadamente as ações de uma pes­
soa de suas palavras é violentar a própria linguagem. Pior que isso,
essa atitude deprecia a condição da pessoa como ser que age, se
relaciona e que (em condições normais) merece que confiem em
sua palavra. Separar-me demais de minhas palavras é o mesmo que
insuflar um ataque contra mim como pessoa, sob o falso argu­
mento de que me faltam a responsabilidade de ser verdadeiro em rela­
ção à minha palavra e o direito de que acreditem em mim com
base nela. Isso se aplica aos seres falantes criados à imagem de Deus.
Conforme vimos no último capítulo, aplica-se também a Deus —
à imagem de quem, isto é, de um Deus que fala, fomos criados
— , quando ele decide agir de maneira redentora em seu mundo
72 Teologia da revelação

por meio de uma linguagem humana dada por ele. Na verdade, é


provável que haja uma ligação ainda mais profunda entre ações e
palavras em se tratando de Deus, em virtude do que ele revela ser
sua credibilidade em relação à sua palavra, que excede em muito a
credibilidade humana. E possível que persista o receio de que um
texto escrito em linguagem humana seja erroneamente “divinizado”e
idolatrado. Contudo, o perigo oposto (fazer separação entre as ações
de Deus no mundo e a linguagem e o significado das Escrituras, o
que traz como resultado inevitável a impossibilidade da certeza
de que seus atos redentores são dignos de crédito) deve ser muito
mais preocupante, uma vez que contribui para a destruição da teo­
logia e da vida cristã.

A revelação e as Escrituras
A perspectiva bíblica apresentada no capítulo anterior levou à
conclusão de que há relações muito íntimas entre as palavras de
Deus, suas ações e o próprio Deus. Fiz referência ao relato do
Antigo Testamento segundo o qual aquele que tocasse a arca
da aliança de forma inadequada incorreria na ira divina, porque
em certo sentido as palavras escritas nas tábuas de pedra eram
uma forma da presença de Deus no meio de seu povo. E aqueles
que rejeitavam a proclamação apostólica do evangelho de Cristo
ficavam, por causa disso, sujeitos à condenação divina, porque
ao rejeitar essas palavras eles estavam rejeitando a Deus. De
igual modo, ouvir as palavras de Cristo era ouvir diretamente
o discurso divino. Segue-se que falar das Escrituras como livro
da aliança, forma constante pela qual Deus repete sua promessa
de aliança no mundo, deve nos levar a falar das Escrituras como
uma forma da presença de Deus no mundo. Em outras palavras,
a ideia hoje disseminada de que as Escrituras não são em si
mesma revelação, devendo ser consideradas em vez disso simples
testem unha da revelação, demonstra ser uma reflexão inadequada
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 73

da descrição que as Escrituras fazem-de sua relação com Deus,


com seus atos na história e com seu povo. É inadequada, quer as
Escrituras sejam consideradas parciais ou integralmente como
testemunho da revelação. Essa perspectiva da Bíblia como teste­
munho pode parecer normativa no pensamento moderno e às
vezes é afirmada como se já estivesse comprovada e não res­
tasse mais dúvida alguma. Todavia, tal postura não faz jus à rela­
ção entre Deus e suas palavras im plícita na natureza pactuai da
redenção por ele realizada em prol da humanidade. De fato, a
Bíblia dá testemunho de acontecimentos e realidades espirituais
além de si mesma, mas esse é apenas um aspecto de seu papel
nas mãos de Deus.
Dito isso, nos damos conta, obviamente, de que temos de
caminhar e refletir com muita atenção para não incorrer no tipo
de idolatria contra a qual Deus nos adverte severamente nas
Escrituras, idolatria na qual a humanidade cai vezes sem fim. Pois
é idolatria tomar algo que a humanidade criou e colocá-lo em
pé de igualdade com Deus, venerando assim algo que não seja o
Deus vivo. Às vezes, costuma-se dizer que a doutrina protestante
das Escrituras posterior à Reforma resultou precisamente em algo
próximo da idolatria. No século passado, um dos expoentes mais
eloqüentes desse tipo de crítica foi o teólogo suíço Karl Barth.
Ao discutir a doutrina da inspiração bíblica delineada por muitos
teólogos luteranos e reformados do século 17, Barth julga que “a
declaração de que a Bíblia é a Palavra de Deus foi agora trans­
formada [...] de uma declaração sobre a graça gratuita de Deus
em uma declaração sobre a natureza da Bíblia exposta à inves­
tigação humana controlada”.11 Para ele a perspectiva evangélica
das Escrituras compartilhava raízes profundas e surpreendentes

uKarl Barth, Church dogmatics 1/2, tradução para o inglês de G. T.


Thompson; Harold Knight (Edinburgh: T. &T. Clark, 1956), p. 522.
74 Teologia da revelação

com a posição liberal, que rejeitava a identificação das Escrituras


como Palavra de Deus, e as considerava, no máximo, como a mais
profunda expressão do in sight religioso humano. As duas coisas,
disse Barth, são “produtos da mesma era e do mesmo espírito.
Uma característica comum é que ambas representam meios pelos
quais o homem do Renascimento tentou controlar a Bíblia e criar
obstáculos para que ela deixasse de controlá-lo, conforme de fato
deve fazer”.12
As críticas de Barth à doutrina evangélica conservadora das
Escrituras foram impulsionadas, em parte, por seu forte desejo
de proteger a singularidade do Cristo encarnado como instância
única do divino que para sempre se une ao humano, a única
entidade da criação da qual realmente se pode dizer “Eis o Senhor”
sem cair em blasfêmia. Trata-se de um objetivo com o qual todos
os crentes ortodoxos se solidarizam profundamente. Para Barth,
no momento em que as Escrituras foram identificadas objetiva­
mente com a Palavra de Deus, este terá sido domesticado, porque
poderemos então nos enganar achando que estudar as Escrituras
é estudar a Deus. Tendo identificado Deus com um objeto que
podemos dominar intelectualmente, cometemos o pecado primor­
dial de tentar nos exaltar acima de Deus. A verdade, porém, é que
Deus é quem sempre nos domina, não o contrário!
As críticas de Barth ao tipo de doutrina das Escrituras que
descrevemos aqui são sérias, motivadas principalmente por
preocupações teológicas ortodoxas e profundas. (Também é
verdade que a doutrina barthiana das Escrituras foi moldada
por sua aceitação, em geral, de muitas conclusões de eruditos
céticos no tocante ao valor histórico das Escrituras, algo que os
autores evangélicos conservadores costumam criticar. Contudo,

12Karl Barth, Church dogmatics 1/1, tradução para o inglês de G. W.


Bromiley (Edinburgh: T. &T. Clark, 1975), p. 112-3.
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 75

levarei em conta aqui as críticas que Barth fez à doutrina


reformada das Escrituras em sua versão mais ortodoxa.) Podemos
apresentar inicialmente dois tipos de resposta a Barth e àqueles
que partilham de suas preocupações com a doutrina evangélica
conservadora das Escrituras. Em primeiro lugar, conforme já
dissemos, identificar as Escrituras com a Palavra de Deus conta
com a garantia exegética da própria Escritura. E verdade que essa
visão das Escrituras pode ser transformada bem depressa pelo
homem pecador em práticas idólatras que nos deixam surdos à
voz de Deus, ao supormos que nossa compreensão das Escrituras
já está completa e não precisa ser aperfeiçoada pelo Deus que fala
nas Escrituras. Contudo, embora possa ser mal usada, trata-se de
uma perspectiva à qual somos convidados pelo próprio Deus nas
Escrituras. É possível que os evangélicos conservadores tenham
algumas vezes expressado e formulado a doutrina das Escrituras
com uma forma e um conteúdo que devem muito aos modelos
de pensamento pós-iluministas. Todavia, não é certo concluir
que eles tropeçaram em sua doutrina dando ouvidos ao canto da
sereia do humanismo renascentista, que os desviou da ortodoxia e
os fez andar de mãos dadas com o liberalismo.
Em segundo lugar, em m inha resposta a Barth, apelo
de novo à teoria dos atos de fala. Ela apresenta uma visão
da linguagem que, devemos mais uma vez acentuar, é ú til à
teologia unicam ente porque condiz com o que se depreende
do relato que a Bíblia faz de Deus, da hum anidade e da
linguagem . Conforme vimos, nós, como pessoas que intera­
gimos umas com as outras, estamos de tal m aneira investidos
de nossas palavras que, ao falar, agimos em relação a nós
mesmos e ao outro (e.g., ao fazer uma promessa a alguém,
assumo a responsabilidade, em condições norm ais, de cumprir
minha promessa e de atribuir a meu interlocutor a obrigação
de confiar em m inha palavra). Segue-se que aquilo que você
76 Teologia da revelação

faz com minhas palavras (com minhas ações realizadas por


minhas palavras) você faz a mim.
H á, portanto, um tipo de presença pessoal nas palavras que
alguém profere. E uma presença misteriosa sob certos aspectos,
difícil de descrever conceitualmente, mas nem por isso deixa de
ser real. Podemos cham á-la de “presença semântica” das pes­
soas em suas palavras (palavras usadas como meio de realiza­
ção das ações). Estendemos o alcance de nosso eu proferindo
ou escrevendo palavras que podem então viajar por uma sala
ou pelo mundo, palavras que, em forma escrita ou gravada, pode­
rão permanecer depois de nossa m orte.13 É claro que isso não
significa dizer algo absurdo como, por exemplo, que você tem
uma carta que lhe escrevi e isso é o mesmo que eu estar presente
onde você está. No entanto, isso leva em conta o fato de que
a linguagem e as pessoas, tanto em suas funções quanto em
suas definições, não são nem um pouco tão simples — como
poderíamos supor a princípio — quando refletimos devidamente
sobre elas. Na verdade, podemos dizer que nossa curiosa habi­
lidade humana de estender nosso eu em relação uns aos outros,
por meio de nossas capacidades lingüísticas, tem raízes no fato
de termos sido criados à im agem de Deus. Pois esse Deus que
fala, à imagem de quem fomos feitos, tem a capacidade exclu­
siva de ser ao mesmo tempo transcendente e presente em rela­
ção a nós, o que se reflete de maneira mais modesta na interação

13Quanto à legitimidade de estender as ideias da teoria dos atos de fala para


a linguagem escrita, em contraposição aos que estabelecem distinções impor­
tantes entre fala e escrita (como Fazem, de diferentes maneiras, Paul Ricoeur
e Jacques Derrida), veja Kevin J. Vanhoozer, Is there a meaning in this text? The
Bible, the reader and the morality ofliterary knowledge (Leicester: Apollos, 1998)
[edição em português: Há um significado nesse texto? Interpretação bíblica: os enfio-
ques contemporâneos, tradução de Álvaro Hattnher (São Paulo: Vida, 2005)];
Ward, Word and supplement.
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 77

lingüística humana, de tal modo que estou e não estou presente


nas palavras que digo e escrevo. Essa é uma das principais manei­
ras pelas quais um aspecto da graça comum de Deus se m ani­
festa à hum anidade.14
D iga-se de passagem, talvez seja bom que alguns leitores
façam uma relação entre essas observações sobre a linguagem
e as questões de linguagem e significado na cultura contempo­
rânea. Nas últimas décadas, um dos aspectos importantes do
pensamento ocidental tem sido a constante dúvida sobre a capa­
cidade da linguagem de produzir sentidos estáveis. De modo
especial, os pensadores que trabalham com os temas da “des-
construção” e do “pós-estruturalismo” procuraram mostrar que
qualquer afirmação de que o texto “significa” alguma coisa não
passa de uma tentativa sem fundamento de alguém que deseja
exaltar sua interpretação de um texto em detrimento do que os
outros talvez achem que o mesmo texto signifique. Além disso,
alguns teóricos da literatura, escrevendo sob a égide da “crítica da
resposta do leitor”, procuram mostrar que os textos não têm sen­
tido em si mesmos, mas apenas o sentido que o leitor lhes atri­
bui. Hoje em muitas áreas do pensamento ocidental parte-se da
premissa de que o significado não está “fora” e sim “dentro de
nós”. Nós não o descobrimos, mas o inventamos. É imprescin­
dível que não percamos de vista o fato subjacente de que essa
é uma questão teológica. Se Deus não for levado a sério como
fundamento sólido e supremo sobre o qual repousa todo signi­
ficado, e como base sobre a qual se pode dizer com confiança

14Portanto, é incorreto e desnecessário insistir, conforme faz Barth, que as


Escrituras não são em si mesma a Palavra de Deus, mas apenas “tornam-se”
Palavra de Deus. Veja ainda a esse respeito Kevin J. Vanhoozer, “Gods mighty
speech acts: the doctrine of Scripture today”, in: Philip E. Satterthwaite; David F.
Wright, orgs,,Apathway into the Holy Scripture (Grand Rapids: Eerdmans, 1994),
p. 143-81; Ward, Word andsupplement, p. 106-36.
78 Teologia da revelação

que nossa linguagem tem significado, acabaremos por fitar um


abismo no qual o significado se torna para sempre inatingível.
Somente através de um firme compromisso com o fato de que
nossa capacidade lingüística nos foi dada por Deus como refle­
xo de seu caráter, de um Deus que fala, é que, em última análise,
daremos uma resposta satisfatória à crise atual de confiança na
linguagem e no significado.15
Voltando a Deus e à Escritura, podemos dizer então que dois
aspectos da presença de Deus apresentados pelas Escrituras con­
sistem em estar ele sem anticam ente presente nas Escrituras e
pessoalm ente presente na pessoa do Espírito. Portanto, aque­
les que, como Barth, temem que identificar as Escrituras com a
Palavra de Deus seja identificar erroneamente um texto humano
com o próprio Deus, não levaram muito em conta as profundas
complexidades envolvidas na relação entre pessoa e linguagem,
sobretudo no caso de Deus, conforme ele se revela nas Escrituras
e, em segundo lugar, no caso de suas criaturas.
Para voltar especificamente à Escritura, é importante, à
luz do que foi dito acima, esclarecer o que pretendo dizer aqui
quando me refiro à E scritura como um modo da presença de
Deus. Não me refiro a um livro físico. É verdade que algumas
tradições da igreja cristã veneram um exemplar da Bíblia em sua
adoração coletiva, mas isso dificilmente já foi algum dia, se é que
foi, uma característica da prática evangélica. Também não estou
dizendo que Deus esteja presente no meio dos cristãos quando
a Bíblia é aberta e lida e que praticamente desapareça quando ela
é fechada, como se, de algum modo, abrir uma Bíblia o liber­
tasse à semelhança de um gênio da garrafa. Talvez seja impos­
sível encontrar alguém que creia nisso, embora às vezes se diga

1SA melhor análise dessas questões, com uma resposta cristã de peso, está
em Vanhoozer, Is there a meaning?
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 79

que os evangélicos pensam assim; estes, por vezes, defendem


com veemência o significado correto da pregação na assembleia
cristã e da leitura da Bíblia para o indivíduo, e isso pode dar a
impressão errada de que creem em algo parecido. Também não
estou dizendo que cada palavra ou frase da Bíblia, quando lida
em particular ou em voz alta perante os crentes reunidos, esteja
de algum modo permeada da presença divina, como se fosse o
equivalente evangélico das relíquias religiosas que supostamente
têm poderes mágicos.
Para não deixar dúvidas sobre o que está sendo dito quando
dizemos que Deus está semanticamente presente para nós nas
Escrituras, precisamos entender com clareza a linguagem que
Deus nos deu. Isso é fundamental, porque muitos pronuncia­
mentos feitos por cristãos sobre a Bíblia, seja para exaltá-la, seja
por desconfiança em relação a ela, são confusos ou equivocados
(ou os dois) quando tratam desse ponto. A unidade básica de lin­
guagem efetivamente usada na fala ou na escrita (contrapondo-se
à análise que dela faz um dicionário) não é cada palavra, mas o ato
defala} k Com “ato de fala” entenda-se cada ato de promessa, adver­
tência, afirmação, felicitação, agradecimento etc. praticado por meio
da linguagem. Um ato de fala pode ser tão breve quanto uma única
palavra (“Vá!”) ou tão longo quanto uma coleção unificada de livros
(a Bíblia como promessa da aliança de Deus por escrito). Portanto,
quando falamos das Escrituras como um modo da presença de
Deus, estamos afirmando que é nos atos de fa la das Escrituras
que Deus revela a si mesmo estando presente semanticamente
a nós, à medida que ele promete, adverte, censura, tranqüiliza e

16E claro que, de fato, nem mesmo os dicionários dão o sentido fixo das
palavras. Eles apresentam um arquivo selecionado de palavras conforme as
acepções na vida real (como deixam claro os grandes dicionários por meio de
citações), dentre as quais o leitor deve escolher a palavra no contexto específico
em que deseja compreendê-la.
80 Teologia da revelação

assim por diante. Essa revelação ocorre quando lemos as pala­


vras das Escrituras, ou seja, quando, por meio da leitura, Deus
pratica de novo a mesma ação praticada quando essas palavras
foram escritas pela primeira vez.17
Se Deus não identificasse sua pessoa e suas ações com os
atos de fala nas Escrituras, disso se seguiria que não teríamos
um Deus a quem pudéssemos conhecer e em quem confiásse­
mos em qualquer sentido significativo, porque não poderíamos
dizer a seu respeito que ele se revelou através de uma aliança que
nos é compreensível e na qual podemos confiar. Contudo, a pró­
pria natureza de Deus como aquele que faz a promessa significa
que ele decide se apresentar a nós nas Escrituras de um modo
do qual, é lógico, podemos fazer mau uso de forma arrogante e
pecaminosa se assim quisermos, assim como foi tragicamente
possível que ele, uma vez revestido de carne humana, fosse per­
seguido por suas próprias criaturas. Contudo, do mesmo modo
como o Deus encarnado e humilhado foi o principal meio de
nossa redenção, assim também sem as Escrituras, conforme o
modelo aqui apresentado, Deus não seria para nós o Deus da
promessa que ele decidiu ser.18

17Para que não se pense que estou dizendo que Deus está presente na
força ou na intenção das Escrituras, mas não em suas proposições, devo enfa­
tizar que todo ato de fala é constituído tanto de “força ilocucionária”(termo do
ato de fala que se refere ao que está sendo feito através das palavras) quanto de
conteúdo propositivo (o que está sendo dito nas palavras).Trata-se de abstrações
da realidade unificada de um ato de fala. Portanto, no caso das Escrituras,
Deus está semanticamente presente em ambos. Isso será importante mais à
frente, quando discutirmos a ;nerrância bíblica.
18Veja uma útil exposição desse pensamento essencial aos interesses
dos reformadores protestantes, sobretudo Calvino, em Carl Trueman, “Tfcie
God of unconditional promise”, in: Paul Helm; Carl Trueman, orgs., The
trustiuorthiness o f God: perspectives on the nature o f Scripture (Leicester: Apollos,
2002), p. 175-91.
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 81

0 Filho e as Escrituras: as palavras da Palavra


Jesus e a Bíblia, ambos "Palavra de Deus"
Um importante aspecto da descrição que o Novo Testamento faz
da segunda Pessoa da Trindade é a referência a ela como “a Palavra”:
“No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus, e
era Deus” (Jo 1.1, NVI). Conforme já foi bem documentado, o
termo grego logos era amplamente usado na filosofia antiga e tinha
uma gama de significados que se estendia muito além das acepções
relacionadas apenas à linguagem como “palavra” ou “mensagem”.
Contudo, os referentes do termo no início do evangelho de João
devem incluir também os de natureza lingüística, uma vez que o uso
de logos no contexto desse Evangelho é mais bíblico do que grego.
João se refere muito mais diretamente aos significados da expressão
“a Palavra de Deus” no Antigo Testamento do que aos usos de logos
no pensamento grego. Se sua intenção foi fazer referência a este
último, ele o fez no intuito de incorporar os conceitos gregos à
realidade mais verdadeira e abrangente de Jesus Cristo e, ao fazê-
lo, ele pretendia transformá-los.
Conforme observamos na perspectiva bíblica do capítulo ante­
rior, a “Palavra de Deus” no Antigo Testamento funciona às vezes
como equivalente de “Deus mesmo” ou de “Deus em ação no
mundo”. Essa característica curiosa do Antigo Testamento ganha
destaque especial quando o próprio Deus, na pessoa do Filho cha­
mado “Palavra”, se faz carne humana e vive, fala e age no mundo.
Ele aparece como aquele que é Deus em pessoa, Palavra de Deus em
forma humana e Deus em ação. Portanto, no Antigo Testamento,
“Palavra”passa a ser visto como uma das sementes do que, mais tarde,
se tornou a interpretação que o Novo Testamento faz da pluralidade
de pessoas em um só Deus. A doutrina da Trindade jamais poderia
ter se originado exclusivamente do Antigo Testamento, e o Novo
Testamento apresenta uma nova revelação do Filho e do Espírito.
82 Teologia da revelação

Contudo, em retrospecto, essa nova revelação interpreta de maneira


profunda as formas veladas pelas quais o Antigo Testamento se refere
à ação divina como “Palavra” e “Sabedoria”.
Além disso, “palavra”e “palavra de Deus”continuam a ser usados
no Novo Testamento depois da ascensão de Cristo como descrições
que a mensagem apostólica faz da ação salvífica de Deus em Jesus
Cristo. Exemplo disso é lTessalonicenses 2.13, em que Paulo diz
aos crentes de Tessalônica que agradece a Deus por terem eles
recebido sua mensagem “não [...] como palavra de homens, mas
como a palavra de Deus, como de fato é”.19 Não é de estranhar
que sintamos certo nervosismo teológico ao dizer que as Escrituras
simplesmente são a Palavra de Deus por medo de comprometer a
identidade especial de Cristo como Palavra de Deus. Apesar de tais
receios, essa linguagem bíblica sobre a “palavra” deve evitar que nos
precipitemos fazendo afirmações sistematizadas, segundo as quais
a Bíblia não é a Palavra de Deus, por mais justa que seja nossa
motivação. Em vez disso, devemos permitir que nosso pensamento
e as descrições que fazemos da Bíblia sejam moldados mais pelas
Escrituras; pelo menos nesse ponto, Deus nos oferece na Bíblia
algumas garantias, de modo que prontamente apliquemos a
expressão “Palavra de Deus” tanto à Bíblia quanto a Cristo. Como
fazer isso sem que a veneração de um livro religioso ponha em
risco a devoção devida exclusivamente a Cristo é uma distinção
fundamental que precisa ser feita e à qual voltaremos em breve.
Aqui, porém, é preciso dizer algo mais sobre as Escrituras,
sobre como ela chega próximo de se referir a Deus e à mensagem
nela contida usando termos equivalentes. B. B. Warfield, influente
teólogo americano de fins do século 19 e início do 20, expôs
com clareza esse ponto'. Ele chama a atenção para duas maneiras

19Veja também Atos 4.31; 6.2; 8.4,14 (extraído deJ.I. Packer, “Fundamentalism’
and the Word o f God [London: Inter-Varsity, 1958], p. 42).
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 83

diferentes pelas quais as Escrituras expressam essa ideia: “Em


uma das passagens dessa natureza, as Escrituras são mencionadas
como se fossem Deus; em outra, fala-se de Deus como se fosse
ele as Escrituras”. Na primeira categoria está Romanos 9.17, que
atribui à “Escritura”palavras que, na verdade, registradas no livro de
Êxodo, foram proferidas por Deus (“Pois a Escritura diz ao faraó:
Para isto mesmo te levantei: para mostrar em ti o meu poder...”).
Para Paulo, em Romanos, está claro que se referir às palavras das
Escrituras não significa referir-se a uma autoridade menor do
que as palavras de Deus. Já em Mateus 19.4,5, Jesus põe na boca
do “Criador” algumas palavras de Gênesis que, em seu contexto
original, não são citadas como se tivessem sido proferidas por Deus,
mas fazem parte da narrativa (“Jesus respondeu: Não lestes que
desde o princípio o Criador os fez homem e mulher, e ordenou: Por
isso o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher; e serão os
dois uma só carne?”). “Assim, juntos, os dois grupos de passagens”,
conclui Warfield, “mostram haver na mente desses autores uma
identificação absoluta entre ‘Escritura e o Deus que fala”.20
Uma ideia semelhante fica evidente em algumas palavras de
Cristo dirigidas a seus discípulos pouco antes da crucificação.
Ele os admoesta, dizendo: “Permanecei em mim, e eu
permanecerei em vós [...]. Quem permanece em mim e eu nele,
esse dá muito fruto” (Jo 15.4,5). Depois, imediatamente, ele diz:
“Se permanecerdes em mim, e as m inhas p a la vra s permanecerem
em vós, pedi o que quiserdes, e vos será concedido. M eu Pai
é glorificado nisto: em que deis muito fruto; e assim sereis
meus discípulos” (v. 7,8; grifo do autor). A repetição de “muito

20B. B. Warfield, The inspiration and authority o f the Bible (Philadelphia:


Presbyterian & Reformed, 1948), p. 299-300 [edição em português: A inspiração
e a autoridade da Bíblia: a clássica doutrina da Palavra de Deus, tradução de Maria
Judith Prado Menga (São Paulo: Cultura Cristã, 2010)].
84 Teologia da revelação

fruto”, do versículo 5, mostra no versículo 7 que Jesus não havia


se afastado de seu tema da “permanência” mútua entre ele e
seus discípulos. A mudança no versículo 7 para suas p a la vra s
permanecendo neles, parece, na mente de Jesus, ser sinônimo
de sua presença que permanece com eles. No relacionamento
dos discípulos com Cristo, esse é um exemplo surpreendente
de identidade próxima entre relacionar-se com suas palavras e
relacionar-se com o próprio Cristo.
Além disso, costuma-se ressaltar que Lucas, no início do livro
de Atos, segundo volume de sua obra canônica, aponta claramente
para a convicção de que os acontecimentos que ele estava prestes
a narrar eram, em última análise, uma continuidade das ações de
Cristo, agora ressurreto e elevado ao céu (“Fiz o primeiro relato, ó
Teófilo, acerca de tudo o que Jesus começou a fazer e a ensinar...”
[At 1.1, grifo do autor]). Sob essa perspectiva, o livro de “Atos dos
Apóstolos” também poderia ser chamado de “continuação dos
atos de Jesus Cristo através do Espírito Santo”. Por analogia, na
Bíblia, o uso de um termo idêntico (“palavra”) em relação a Cristo
e à mensagem apostólica a seu respeito indica que podemos
pensar de modo inequívoco sobre as Escrituras como livro da
“continuação das palavras de Jesus Cristo, proferidas através do
Espírito Santo”. Isso ganha força quando nos lembramos da
provisão que Jesus deixou para a transmissão de outras palavras
de sua parte aos discípulos depois do derramamento do Espírito
em João 16.12-15 (já discutida no capítulo anterior). Em
conseqüência, as palavras de Jesus Cristo, registradas por escrito
no Novo Testamento, podem ser identificadas com a atividade
semântica contínua do Cristo ressurreto no mundo.
Essa é a base bíblico-teológica que nos permite atribuir a
expressão “Palavra de Deus” a Cristo e à Bíblia. Portanto, segundo
J. I. Packer, é correto dizer que “a revelação divina é chamada sua
‘Palavra’porque se trata de um discurso verbal lógico que tem Deus
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 85

como sujeito e fonte”.21 Também é verdade que não podemos


ser leais a Cristo como Palavra de Deus rejeitando ao mesmo
tempo sua perspectiva das Escrituras como Palavra de Deus
escrita, conforme expressa em textos como João 10.34,35, tal
como assinala Donald M acleod.22 De igual modo, não devemos
negligenciar a observação simples feita no século 17 por Francis
Turretin, teólogo de Geneva, em sua rejeição do argumento
católico, com base em M ateus 23.8, de que Cristo, e não as
Escrituras, deve ser nosso mestre. A resposta de Turretin foi que
“Cristo é nosso único mestre no sentido de que o ministério da
palavra não é excluído em razão disso, e sim necessariamente
incluído, porque agora, nesse ministério apenas, ele se dirige a
nós e, por seu meio, nos instrui”.23 Contudo, a razão mais funda­
mental que temos para falar de Cristo e da Bíblia como “Palavra
de Deus” está no fato de que os atos de fala nas Escrituras são
o meio pelo qual Cristo continua a se apresentar como pessoa
que pode ser conhecida no mundo. O teólogo holandês Herman
Bavinck, escrevendo há um século, trata desse ponto com a
clareza que lhe era típica: “[A Escritura] é produto da encarnação
de Deus em Cristo e, em certo sentido, sua continuação, o meio
pelo qual Cristo faz da igreja sua casa, preparação do caminho
para a habitação plena de Deus”.24 As palavras das Escrituras
são a “Palavra” não apenas porque ele as enviou e fala por meio

21J. I. Packer, God has spoken, 2. ed. (London: Hodder & Stoughton, 1993),
p. 72 [edição em português: Havendo Deus falado: uma seqüência do clássico O
conhecimento de Deus (São Paulo: Cultura Cristã, 2009)].
22Donald MacLeod, A fa ith to live by: understanding Christian doctrine
(Fearn: Mentor, 1998), p. 14.
23Francis Turretin, Institutes o f elenctic theology, tradução para o inglês
de George Musgrave Giger, edição de James T. Dennison, Jr. (Phillipsburg:
Presbyterian & Reformed, 1992), vol. 1, First through tenth topics, 2.2.12.
24Bavinck, Reformed dogmatics, vol. 1, p. 380-1.
86 Teologia da revelação

delas, mas também porque suas palavras são suas ações, pala-
vras-ações presentes da Palavra.
Contudo, ao fazer essa declaração particularmente extraordinária,
é claro que não estamos dizendo (como jamais foi dito com serie­
dade) que Cristo e a Bíblia são “Palavra de Deus” exatamente no
mesmo sentido. Minhas palavras, e as ações que realizo por meio
delas, identificam-se comigo — em certo sentido; todavia, é claro
que minhas palavras não são idênticas a mim, mas (num sentido
difícil de definir, mas real e verdadeiro) saem de mim como extensão
de meu eu em relação aos outros. Portanto, também as Escrituras
estão relacionadas à pessoa de Cristo, como veículo de sua ação no
mundo e da apresentação que ele faz de si mesmo a nós, de um
modo tão fundamental que podemos nos referir tanto a ele quanto
à Escritura como “Palavra”. Mas, ao dizer isso, não confundimos
necessariamente a pessoa com o livro. Um livro não é uma pessoa, e
uma pessoa não é um livro; nesse fato bastante óbvio encontram-se as
salvaguardas necessárias para uma adequada disposição mútua entre
“Cristo como Palavra” e a “Bíblia como Palavra”.
A Palavra é primordialmente a pessoa de Cristo. As Escrituras
falam dele em termos objetivos; ele é a “Palavra da vida” (IJo 1.1,
NVI). Cristo é aquele em quem a pessoa do Filho se encarnou
em uma união exclusiva de duas naturezas, a divina e a humana.
Concebido de maneira sobrenatural, sofreu uma morte vicária,
ressuscitou fisicamente e subiu para estar à mão direita do Pai; nele
a vida do crente está escondida (Cl 3.3). E a ele que devemos nossa
devoção; é ele quem será exaltado na eternidade como Cordeiro
que foi morto para nossa redenção. Não há referência à Bíblia na
visão apocalíptica da nova criação, porque a habitação do Pai e
do Filho com a humanidade renovada será íntima o bastante, a
ponto de provavelmente tornar desnecessária as Escrituras para a
vida de relacionamento com Deus (Ap 22.3-5). A transitoriedade
das Escrituras, fato de que serve para nos colocar na condição de
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 87

participantes da criação renovada, momento em que desapare­


cerá, é tema fundamental na doutrina das Escrituras de Bavinck:
“Assim como a revelação em sua totalidade, as Escrituras também
são um ato passageiro”.25
No entanto, há também referências diretas à Escritura como
Palavra de Deus, mas em um sentido subordinado, por estar ela em
uma relação de serva de Cristo. (Em dado momento, Bavinck
refere-se à Escritura como “criada de Cristo”.26 De fato, as
Escrituras como serv a de Cristo são um tema constante em
seus escritos.) As Escrituras estão relacionadas com o Filho da
mesma maneira que a promessa da aliança está relacionada com
a pessoa do Pai, como meio de sua ação no mundo e, portanto,
um tipo de extensão de si mesmo em relação a nós. Devemos lê-la,
ouvi-la e escutá-la quando pregada, para que sejamos apresentados
novamente a Cristo e para que ele possa se dirigir a nós. Quando
deparamos com as palavras das Escrituras, deparamos com o Filho
em ação, apresentando-se a nós em seu apelo para que tomemos
nossa cruz e o sigamos. Em face disso, seria realmente estranho
se a Bíblia e Cristo fossem considerados de alguma forma que os
separasse um do outro, a ponto de não poderem ser chamados pela
mesma expressão. Se relutamos em pensar nas Escrituras como
“Palavra de Deus” inequívoca, distanciamos Cristo das Escrituras
por meio da qual ele se apresenta a nós para que possamos conhe­
cê-lo. Em conseqüência, será difícil eliminar a suspeita de que,
conhecer Cristo pelas Escrituras não significa que tenhamos
comunhão com Deus como ele é de fato. As Escrituras dão
testemunho de uma relação real e ontológica entre o Filho e suas
palavras nela registradas. Portanto, não devemos nos afastar da
terminologia que o próprio Deus nos concedeu nas Escrituras

25Ibidem, p. 381.
26Ibidem, p. 440.
88 Teologia da revelação

para que possamos lidar com essa relação profunda entre Cristo
como Palavra e as Escrituras como Palavra.
O que podemos dizer então sobre o receio de que por meio
desse tipo de doutrina das Escrituras venhamos a venerar as
Escrituras como “Palavra de Deus” de um modo que deprecie
Cristo como Salvador e Senhor? Em primeiro lugar, tudo o que
nos leva a defender a natureza ímpar da identidade de Cristo
é digno de louvor. Contudo, aqueles que expressam esse receio
têm muito provavelmente em vista o tipo de prática que parece
extrair um prazer perverso do debate em torno de detalhes secun­
dários da interpretação bíblica, ignorando ao mesmo tempo o
ensino de Cristo, por exemplo, sobre o amor ao próximo. Isso
parece, conforme tantas vezes ressaltado, com o tratamento que
os fariseus davam às suas Escrituras (nosso Antigo Testamento),
e Cristo dirigiu algumas de suas condenações mais severas a
esse tipo de gente (M t 23, esp. v. 23,24). É claro que esse uso
das Escrituras pode ser visto nas igrejas evangélicas quando
alguém, por exemplo, com uma língua maldosa em particular,
mas com uma doutrina impecável em público, é nomeado para
um cargo de liderança na igreja, ou quando um tipo de pecado
(e.g., imoralidade sexual) é taxativamente condenado, ao mesmo
tempo que se faz vista grossa para outros pecados (fofocas ou
falta de hospitalidade).
Entretanto, a raiz desse triste problema não é uma doutrina defi­
ciente das Escrituras. O que ocorre, pelo contrário, é que uma dou­
trina correta acaba sendo aplicada apenas parcialmente à vida e ao
pensamento cristãos. Na realidade, costuma haver interpretações errô­
neas de qual seja o objetivo do conteúdo das Escrituras. O pro­
pósito divino nas Escrituras consiste em nos levar à verdadeira
devoção a Cristo, à obediência e ao amor por ele, com efeitos sobre
todas as áreas da vida e do pensamento. O objetivo das Escrituras
é também, conforme diz Bavinck reiteradas vezes, levar-nos do
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 89

pecado à glória eterna.27 Portanto, a solução correta não consiste em


propor uma doutrina das Escrituras que se distancie do testemunho
que Deus apresenta na Bíblia sobre a natureza dela mesma, já que
isso separaria a autoridade de Cristo daquelas suas palavras que,
de fato, precisam ser aplicadas com maior autoridade. O caminho
certo a seguir consiste, pelo contrário, em dar uma atenção maior
ao conteúdo, à forma e aos objetivos das Escrituras que Deus nos
deu. Foi exatamente assim que Cristo desafiou as interpretações
perigosamente míopes que os fariseus faziam das Escrituras. Ele
não tentou menosprezar o entendimento da plena divindade que
eles tinham das Escrituras; pelo contrário, endossou integralmente o
alto conceito que eles lhe atribuíam. Não obstante, instou-os a lê-las
novamente, mas desta vez com maior abrangência e mais sabedoria.
Há várias passagens que registram a pergunta de Jesus aos fariseus
e a outros adversários judeus devotos: “Não lestes...?” (M t 12.3,5;
19.4; 21.16,42; 22.31). É imprescindível dar atenção total, e sábia, à
Escritura como Palavra de Deus registrada por escrito se quisermos
adorar e seguir corretamente a Palavra encarnada, o Filho de Deus.

As Escrituras e a encarnação
Os atos de fala das Escrituras podem ser Deus em ação por meio
da linguagem, mas são igualmente os escritos de seres humanos caí­
dos vivenciando as realidades do mundo. Portanto, uma questão fun­
damental que se deve propor é a seguinte: como devemos avaliar a
inter-relação das características divinas e humanas nas Escrituras?
Daremos uma resposta mais completa a essa indagação na próxima

27“A revelação das Escrituras nos dá a conhecer outro mundo, um mundo


de santidade e de glória. Esse outro mundo desce sobre o mundo caído, não ape­
nas como uma doutrina, mas também como um poder divino [...] [que tira este
mundo] de um estado de pecado, pelo estado da graça, para o estado de glória”
(ibid., p. 376).
90 Teologia da revelação

seção sobre as Escrituras e o Espírito Santo. Mas, a pergunta deve ser


feita inicialmente nesta discussão sobre a relação das Escrituras com
Cristo, porque muitos dos que escrevem sobre as Escrituras indagam
se a encarnação do Filho de Deus é uma analogia útil para a compreen­
são da relação entre os aspectos divino e humano das Escrituras. Será
que a maneira pela qual o divino e o humano se relacionam em Cristo
nos ajuda a compreender como também se relacionam os aspec­
tos divino e humano das Escrituras? Não há dúvida de que a Bíblia é
completamente humana. Ela foi escrita por pessoas que usaram suas
habilidades de pesquisa histórica (veja Lucas 1.1-4), bem como suas
percepções espirituais, coragem profética, arte literária e convicções
pessoais. Nesse sentido, em sua humanidade, as Escrituras parece
ser análoga à natureza plenamente humana assumida pelo Filho. As
doutrinas evangélicas das Escrituras também sempre se referem à
Bíblia como “plenamente divina”, assim como Cristo era plenamente
divino. Uma vez que, segundo a linguagem teológica ortodoxa e
tradicional, Cristo é “uma pessoa com duas naturezas”, será que,
tomando emprestada essa descrição de Cristo, poderá nos ser útil
falar da Bíblia como “um livro com duas naturezas, uma humana e
outra divina”?
Nos debates de meados do século 20 no Reino Unido, os teó­
logos liberais, como sempre, acusaram os evangélicos conservadores
de negar a verdadeira humanidade das Escrituras, alegando que tal
postura era comparável à heresia que negava a Jesus Cristo uma
natureza totalmente humana. Tratava-se de uma afirmação cujo pro­
pósito era mostrar que os evangélicos conservadores haviam perdido
de vista as características plenamente humanas das Escrituras,
confundindo-as com suas características divinas. Os evangélicos
conservadores responderam que, na verdade, tinham uma visão das
Escrituras comparável à doutrina ortodoxa da dupla natureza da
pessoa de Cristo, que não era entendida como realidades separadas
nem mescladas. Eles então acusaram os liberais de cometer em
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 91

relação à Escritura um erro comparável à heresia cristológica dos


nestorianos na igreja antiga, segundo os quais Cristo não reunia duas
naturezas, mas duas pessoas, uma humana e outra divina. Em outras
palavras, os liberais faziam uma distinção muito radical entre a Bíblia
enquanto livro humano e como meio de comunicação divina.28
Na verdade, esse tipo de analogia entre as Escrituras e a encar­
nação tem valor muito limitado. Como reconhecem vários autores,
a união das naturezas divina e humana na encarnação tem um cará­
ter especial em si mesma, e desse modo ela pode ser usada como
comparação apenas de forma especulativa, e sua utilidade como tal
será profundamente limitada. De maneira especial, as ações divinas e
humanas que de algum modo interagem na produção das Escrituras
não servem de comparação útil com as naturezas humana e divina
que se unem na pessoa de Cristo. Uma “natureza” e um aspecto da
ação lingüística interpessoal são entidades bastante distintas.
John Webster, teólogo da atualidade, questiona, a exemplo de
outros antes dele, a legitimidade de apelar à analogia da encar­
nação para elucidar as Escrituras, mas desta vez sobre uma base
diferente. Diz ele:

... a aplicação de uma analogia a partir da união hipostática difi­


cilmente evitará a divinização da Bíblia que alega algum tipo de
identidade ontológica entre os textos bíblicos e a autocomuni-
cação de Deus. Em contraposição a isso, é preciso afirmar que
não se deve atribuir à Escritura nenhuma natureza ou proprie­
dade divina; sua substância é própria da realidade das criaturas
(mesmo que essa realidade seja vinculada à autoapresentação de
Deus), e sua relação com Deus é instrumental.29

28Veja Packer, °Fundamentalism p. 82-4.


29John Webster, Holy Scripture: a dogmatic sketch (Cambridge: Cambridge
University Press, 2003), p. 23.
92 Teologia da revelação

Nas páginas seguintes de seu livro, Webster rejeita reiteradas


vezes a atribuição à Escritura de “propriedades divinas”, e parece
que isso é o que ele quer dizer com “divinização da Bíblia”. Embora
o livro de Webster esteja repleto de pensamentos sutis e perspica­
zes, nesse ponto crucial ele não é tão cuidadoso com seus concei­
tos quanto deveria ser. É preciso perguntar: se a Bíblia é exaltada
(ou rejeitada) como “texto divino”, o que de fato está sendo pro­
posto (ou negado)? Naturalmente, não se está alegando que Deus
tenha comunicado atributos divinos a uma Bíblia de papel e tinta.
Nenhum cristão inteligente jamais afirmou isso.
Portanto, quando nos referimos a “propriedades” ou “natureza”
divinas de um “texto”, sobre o que estamos falando realmente? O
único sentido prático que isso pode ter é o seguinte: “trata-se da
origem, do propósito e do conteúdo [no sentido de ‘propriedades’
ou natureza’] pessoais dos atos de fala interpessoais constituídos
pelas palavras daquele texto [no sentido de ‘texto’]”. A natureza
da linguagem, incluindo-se a fala de Deus, consiste em um meio de
ação comunicativa interpessoal e não em uma “coisa” com “proprie­
dades”. Portanto, não estamos diante da escolha, conforme Webster
parece nos colocar, entre considerar a relação das Escrituras com
Deus como algo instrumental ou entendê-la como uma relação em
que há um compartilhamento de “propriedades” ou da “natureza”
divina que, com justiça, pertencem unicamente a Deus. Isso
significa, na verdade, pedir que escolhamos entre duas opções que
se apropriam da ideia da Bíblia muito mais como “uma coisa” do
que como realidade por meio da qual ocorre a ação comunicativa
interpessoal de Deus conosco. Um “instrumento” que manifesta
a aliança celebrada pelo Deus das Escrituras compartilha, inevi­
tavelmente, de parte da “natureza” e das “propriedades” desse
Deus. Isso é conseqüência do caráter de Deus, da natureza da
redenção por ele escolhida para nós e das qualidades do povo, da
língua e das ações que ele decidiu criar.
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 93

Um problema subjacente à discussão de Webster talvez seja


o fato de que, ao repetir a palavra “texto” aplicada à Escritura
nas descrições analíticas que dela fazemos (a exemplo do que
fazem Webster e inúmeros autores contemporâneos), podemos
acabar por esquecer o que é a linguagem e para que serve. Dizer
que algo é um “texto” talvez torne mais fácil pensar sobre ele
como um objeto submetido ao nosso olhar crítico. Contudo,
referir-se a alguma coisa como “palavra” ou “mensagem” faz com
que ela se torne, mais obviamente, um meio de encontro com a
ação comunicativa de outra pessoa. Em conseqüência, acabamos
por considerar as Escrituras mais como um objeto do que uma
instância de uso da linguagem, e assim procuramos julgar suas
descrições segundo categorias de “propriedades” que ela tem ou
deixa de ter, mas isso se aplica melhor aos objetos no mundo e
não a um meio de interação pessoal.30
Dizer que Jesus Cristo é divino, em categorias ortodoxas
tradicionais, é dizer que nele uma natureza plenamente divina se
uniu a uma natureza humana plena, sem separação entre ambas e
sem que elas se confundam. Dizer que a Bíblia é divina é correto
e necessário, mas trata-se de uma alegação totalmente distinta,
pois, no caso da Bíblia, não estamos descrevendo uma pessoa,
mas um conjunto de ações comunicativas interpessoais. Falar das
Escrituras como divina em si mesma é, portanto, falar da origem
divina de seus atos de fa la — uma característica decorrente de sua
identidade como atos de fala de Deus. Dizer que as Escrituras é
divina não é afirmar m enos do que isso, pois uma afirmação assim
deficiente introduziria uma divisão injustificável e destrutiva entre

30Trata-se de uma ironia, uma vez que um dos pontos fundamentais do li­
vro de Webster acerta ao criticar aquelas vertentes da teologia protestante que
tratavam as Escrituras relativamente isolada das doutrinas de Deus e da reden­
ção. Aliás, sob vários outros aspectos, seu livro analisa as Escrituras com sucesso
e profundidade, conforme ele deseja, como “sagrada”.
94 Teologia da revelação

Cristo e suas palavras. Contudo, também não é afirmar m ais do


que isso, uma vez que reconhecer as Escrituras como Palavra de
Deus não a exalta a ponto de competir com a união das naturezas
divina e humana na pessoa de Cristo.
O andam ento de nossa persp ectiva teológica a té aqui p o d e ser resu­
m ido da segu in te maneira'. Falar da “Escritura” é falar dos atos de fala
realizados por meio das palavras das Escrituras. As Escrituras são a
promessa da aliança do Pai em forma escrita. Por causa da unidade
do Pai e do Filho na revelação e na redenção, as Escrituras são ao
mesmo tempo as palavras pelas quais a Palavra, tanto encarnada
quanto elevada ao céu, e em quem todas as promessas de Deus são
cumpridas, continuam a agir e a se apresentar semanticamente, de
modo que ele seja conhecido no mundo sobre o qual tem toda a
autoridade. Isso começa a dar expressão ao que quisemos dizer ao
descrever as Escrituras como ato do Deus trino e uno. Portanto,
passamos agora a ponderar sobre a relação das Escrituras com a
terceira Pessoa da Trindade, o Espírito Santo.

O Espírito Santo e as Escrituras:


a Palavra soprada por Deus
H á três ações prim ordiais do Espírito Santo no que se refere
à Escritura. Em primeiro lugar, ele é o agente da autoria divina
das Escrituras. Foi por meio dele que Deus transmitiu as palavras
que os autores da Bíblia escreveram.31 Em segundo lugar, como o
Espírito é o Deus vivo, ele também p r eserv a as Escrituras por sua
providência de uma geração à seguinte. Em terceiro lugar, hoje
ele é quem abre a mente para que com preenda o que Deus diz nas

31Para ser simples, vou me referir nesta seção a autores da Bíblia. Com
isso, estão incluídos quaisquer editores que depois trabalharam com o material
bíblico. O grau a que certos textos bíblicos podem ter sido submetidos a
processos editoriais de pequena escala não será nossa preocupação aqui.
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 95

Escrituras e o coração para que confie no que ele diz. Essas três
ações (tradicionalmente chamadas in spiração,preservação e ilu m i­
nação) serão aqui analisadas.

A inspiração das Escrituras


0 Espírito como autor das Escrituras
Um grupo relativamente pequeno de passagens bíblicas cos­
tum a ser citado sempre que se toca na questão da inspiração, em
especial 2Timóteo 3.16 com 2Pedro 1.20,21. Ê importante res­
saltar que essas passagens não são declarações dispersas e iso­
ladas sobre as quais se constrói toda a doutrina das Escrituras de
forma um tanto precária, como uma pirâmide de cabeça para baixo
que se equilibra sobre um pequeno monte de terra. Às vezes,
é isso que se diz sobre a doutrina evangélica das Escrituras, e
parte do objetivo da perspectiva bíblica apresentada no capítulo
anterior é mostrar que esses versículos comumente citados de fato
expressam ensinos e pressupostos que se repetem nas Escrituras;
isto é, as palavras (ou melhor, os atos de fala) das Escrituras origi­
nam-se, em últim a análise, não da percepção espiritual humana,
mas da mente divina.
O Espírito Santo foi o agente de Deus para a transmissão
das palavras aos profetas do Antigo Testamento: “... a profecia
nunca foi produzida por vontade humana, mas homens falaram
da parte de Deus, conduzidos pelo Espírito Santo” (2Pe 1.21). H á
uma clara indicação aqui de que a origem divina da profecia não
eliminou suas características humanas. De fato, até mesmo uma
leitura superficial da profecia veterotestamentária mostra que, por
exemplo, Isaías, Jeremias e Ezequiel escreveram de maneiras que
expressavam naturalmente o caráter e o temperamento bem distintos
de cada um. Contudo, a ênfase principal desses versículos está na
passividade dos homens que transmitiram as palavras de Deus;
96 Teologia da revelação

Pedro afirma terem sido eles “conduzidos”. Conforme veremos, os


teólogos muitas vezes acentuam que essa passividade diz respeito
à origem das palavras, ao fato de que não foram inventadas por
seres humanos. Ela diz muito pouco sobre o m ecanism o pelo
qual as vontades humana e divina trabalharam juntas na redação
dessas palavras.
De igual modo, no que diz respeito ao Novo Testamento, em
João 16.12-15, Jesus promete que o Espírito é aquele que pos­
teriormente transmitirá aos apóstolos palavras para seu ensino
depois de sua ascensão. A ênfase recai novamente sobre a passi­
vidade dos apóstolos como receptores e não como fontes dessas
palavras. Às vezes, essa passagem é mencionada rapidamente nas
discussões sobre a inspiração bíblica. Contudo, ela é crucial, por­
que deixa claro que o papel do Espírito na autoria das Escrituras
não é o mesmo de um escritor que cria, mas de um agente das pala­
vras de Cristo. Embora estejamos falando do Espírito como autor
divino e imediato das Escrituras, poderíamos dizer com a mesma
facilidade que Cristo é seu autor.32 E, de fato, nessa mesma pas­
sagem, Cristo diz que todas as suas palavras têm origem no Pai
e, portanto, a autoria pode lhe ser igualmente atribuída. Tal é a
natureza da atividade trinitária de Deus no mundo.
O papel do Espírito Santo em relação à Escritura é expresso
de maneira mais sucinta em 2Timóteo 3.16 na frase “Toda a
Escritura é divinamente inspirada”. O Espírito não é citado
explicitamente aqui, mas há uma forte alusão a ele no adjetivo
grego theopneustos, usado por Paulo para qualificar as Escrituras.

32Calvino capta bem essa ideia ao dizer que os apóstolos escreveram “da
parte do Senhor, isto é, tendo por precursor o Espírito de Cristo” (John Calvin,
Institutes o f the Christian réligion, Library of Christian Classics, edição de
John T. McNeill, tradução para o inglês de Ford Lewis Battles [Philadelphia:
Westminster, 1960], vols. 20-21, 4.8.8) [edição em português: As institutas da
religião cristã (São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1985)].
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 97

Essa palavra é constituída por theos'{ Deus) e p n eu m a (que


pode ser traduzida, entre outras coisas, por “sopro”, “espírito”
ou “Espírito”). Esse versículo expressa, portanto, a atividade do
Espírito Santo no âmbito da ação de Deus em estilo bíblico
típico, atribuindo-lhe o papel de agente e ministro dos propó­
sitos divinos.
Theopneustos é tradicionalmente traduzido por “inspirada”, em
virtude da influência da Vulgata, tradução da Bíblia em latim, que
nesse versículo se refere à Escritura como inspirata. Entretanto,
há tempos os comentaristas se convenceram de que “soprada por
Deus” é uma tradução de theopneustos melhor do que “inspirada”.
Essa tradução deixa claro que o versículo não fala da ação divina de
“inspiração” na mente e na vida dos autores da Bíblia; em vez disso,
ela fala da “expiração”, do bafejar das palavras das Escrituras. Em
outros termos, 2Timóteo 3.16 declara que as palavras da Bíblia são
totalmente divinas. O versículo ensina que a Bíblia tem origem
divina e não o modo pelo qual os seres humanos colaboraram com
Deus para registrar por escrito essas palavras.
A célebre exposição detalhada do assunto por B. B. Warfield
já conta com mais de um século. Ele resumiu as implicações das
Escrituras como theopneustos com a expressão “o que as Escrituras
dizem, Deus diz”.33 Sempre que se usa uma frase como essa, é
comum as pessoas imaginarem que Warfield seja um daqueles que
leem as Escrituras sem dar atenção alguma aos contextos literários,
canônicos e históricos em que as frases ocorrem. Contudo, é claro

33Há quem diga que a doutrina das Escrituras de Warfield foi, de maneira
significativa, uma inovação e não representava verdadeiramente a doutrina dos
reformadores protestantes; e.g. JackB . Rogers; Donald K.McKim, lh e authority
and interpretation o f the Bible: an historical approach (San Francisco: Harper &
Row, 1979). Essa obra levou a uma refutação minuciosa e em grande parte bem-
sucedida de John D. Woodbridge, Biblical authority: a critique o f Rogers/McKim
proposal (Grand Rapids: Zondervan, 1982).
98 Teologia da revelação

que ele tinha uma abordagem sofisticada da interpretação das


Escrituras e sabia como interpretá-la de forma adequada. Quando
ele se refere ao que “as Escrituras dizem”, está se referindo à
“Escritura bem interpretada”.
Em seu estudo da língua e da literatura grega antiga, Warfield é
convincente ao afirmar que theopneustos se refere à origem da Bíblia
e não, conforme alguns de seus contemporâneos diziam, aos efeitos
“inspiradores” que a Bíblia tinha sobre seus leitores, tampouco à
atividade divina de “inspirar”seus autores para que escrevessem aquelas
palavras.34Warfield observa que a teologia reformada, de modo geral,
especialmente a influente Confissão de Fé de Westminster (1646),
afirma o fa to da inspiração, mas considera o modo da inspiração algo
“inescrutável”.35 Isso revela harmonia com 2Timóteo 3.16, texto
segundo o qual “as Escrituras são um produto divino sem indicação
de como Deus atuou para produzi-las”.36 O mesmo acontece com a
análise de Calvino, uma vez que o reformador também se deteve na
origem nas Escrituras e não em seu modo de composição.37
Para alguns, há uma nítida diferença em tomo dessa questão
entre Calvino e os teólogos reformados posteriores. Afirma-se que
Calvino considera a “natureza divina” das Escrituras como algo que
repousa sobre atos de revelação pessoais de Deus a certas pessoas
a quem ele se dirigiu. Boa parte desse conteúdo foi transmitida
oralmente, e só depois registrada por escrito.Teólogos posteriores, em
contrapartida, assim diz a história, concentram seu apoio à natureza
divina das Escrituras inteiramente na inspiração entendida como o

34Warfield, Inspiration anã authority, p. 245-96.


35Ibidem, p. 420.
36Ibidem, p. 133.
37“Contudo, seja porque Deus se fez conhecido aos patriarcas através de
oráculos e visões, seja porque, mediante a obra e ministério de homens, ele deu
a conhecer o que depois, pelas próprias mãos, houvessem de transmitir aos pós-
teros” (Institutas 1.6.2).
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 99

momento da redação. (Um expoente de peso dessa perspectiva da


história da teologia reformada foi Heinrich Heppe, escritor alemão
do século 19.)38 É possível que autores posteriores à Reforma tenham
mais a dizer em seus escritos sistemáticos sobre o ato da redação
das Escrituras do que os reformadores que os antecederam, porém
esse é um aspecto de exposição teológica, não de inovação. Todos os
principais autores, de Calvino até Warfield, concordam que a grande
força na doutrina da inspiração consiste no fato de que as palavras
das Escrituras têm origem em Deus-, Quer o foco de interesse no
meio pelo qual Deus agiu na produção das Escrituras repouse
sobre acontecimentos anteriores à vida do autor, em que Deus,
pelo Espírito, transmitiu-lhe palavras que ele depois escreveu, quer
repouse sobre o momento da redação, é questão secundária em tomo
da qual as diferenças de ênfase não contam muito. Podemos julgar
com o beneficio da retrospectiva que em determinados períodos dos
séculos 17 e 18 houve muita especulação sobre a mecânica da autoria
divina através de autores humanos.39 Mas, o fato é que, mesmo em
fins do século 19, B. B. Warfield, geralmente tido como herdeiro
direto dos teólogos posteriores à Reforma, leva em conta em sua
doutrina da inspiração atos de revelação de Deus aos indivíduos, e
tais atos são anteriores ao ato da redação das Escrituras.40 Bavinck
fala em termos muitos semelhantes aos de Warfield sobre o modo
pelo qual a ação do Espírito sobre os autores da Bíblia no momento
da redação constitui o clímax natural de um longo processo de

38Heinrich Heppe, Reformed dogmatics: set out and illustratedfrom the sources,
revisão e edição de Ernst Bizer, tradução para o inglês de G. T. Thompson
(Grand Rapids: Baker, 1950), p. 14-21.
390 produto dessa tendência que mais costuma ser citado é a visão que
alguns passaram a defender — e que poucos defenderiam hoje — de que a
sinalização das vogais do texto hebraico do Antigo Testamento também foi
inspirada por Deus (veja ibidem, p. 19-20).
40Warfield, Inspiration and authority, p. 71-102.
100 Teologia da revelação

preparação dos autores pelo Espírito por meio de seu “nascimento,


educação, talentos naturais, pesquisa, memória, reflexão, experiência
de vida, revelação etc”.41
Fica claro a partir de tudo isso que a ação de Deus a que
theopneustos se refere não significa nada próximo do sentido
que se dá ao termo “inspirar” em seu uso normal. Isso costuma
ser apontado em estudos sobre a inspiração bíblica, porém é
bom que seja sempre repetido, pois, embora não seja difícil de
compreender, é muitas vezes negligenciado nas discussões sobre
a inspiração. “Inspirar”, de acordo com o uso normal que se faz
do termo, refere-se ao impacto que uma pessoa tem sobre outra,
capacitando-a a realizar algo que, do contrário, não seria capaz. O
uso teológico do termo, porém, refere-se exclusivamente à origem
das palavras na Bíblia, e não à forma de sua autoria, tampouco
aos efeitos sobre seus leitores. Em conseqüência, é defensável que
abandonemos o termo “inspiração das Escrituras”, uma vez que a
expressão se presta tão facilmente à confusão. Todavia, ela já está
de tal modo consagrada, que a sugestão de mudá-la não é prática.
Desse modo, é importante lembrar o sentido de theopneustos em
2Timóteo 3.16.
Esse tipo de confusão pode ser exemplificado por alguns
escritos recentes sobre a inspiração. Inúmeros autores, que
por várias razões chegaram à conclusão de que a Bíblia não
tem origem inteiramente em Deus, apresentam a “inspiração”
fazendo referência ao modo pelo qual Deus guiou os autores
da Bíblia, inspirando-os a escrever o que escreveram. Colocada
nesses termos, a ação de Deus sobre os autores da Bíblia não

41Bavinck, Reformed dogmatics, vol. 1, p. 438. Esse é um aspecto do que


Bavinck chama de inspiração “orgânica”, seu termo predileto aplicado à com­
preensão da inspiração. As diferenças entre ele e Warfield nesse ponto são muito
mais de tom e estilo do que de substância e conteúdo.
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 101

parece nada especial, uma vez que seu pápel não é falar, mas
mobilizar e encorajar, o que muitas vezes leva à afirmação de
que hoje também devemos im aginar Deus se comunicando e
“inspirando” as pessoas de modos semelhantes.42 Para outros, a
inspiração não diz respeito à Bíblia propriamente dita, nem à
ação de Deus ao produzi-la, mas se trata da experiência da igreja
conduzida à salvação pelas Escrituras. Portanto, afirma-se que
as Escrituras são “inspiradas” no sentido de que os cristãos as
consideram espiritualmente inspiradora.43Tais perspectivas têm
em comum o fato de que teologizam sobre “inspiração” sem
levar muito em conta estudos lingüísticos cuidadosos sobre o real
significado de 2Timóteo 3.16 e de outros versículos afins. Entre
as muitas conseqüências problemáticas de tais perspectivas,
identificamos a incapacidade de explicar claramente por que
o cânon das Escrituras está fechado. Se hoje a ação de Deus
sobre alguns crentes, e através deles, não é muito diferente de
sua ação sobre os primeiros crentes, aqueles cujos escritos fazem
parte das Escrituras, é difícil im aginar quais razões teológicas
teríamos para não acrescentar à Escritura textos “inspiradores”
escritos posteriormente.

Umas Escrituras dadas pelo Espírito


O que mais se pode dizer sobre as características de umas Escrituras
cujo autor é Deus mediante a intermediação do Espírito? A
doutrina evangélica da inspiração tem sido geralmente explicada
dentro de uma visão da inspiração das Escrituras conhecida como

42Veja, e.g., James Barr, The Bible in the modem w orld (London: SCM,
1973); Paul J. Achtemeier, The inspimtion o f Scripture: problems and proposals
(Philadelphia: Westminster, 1980); William Abraham, The divine inspiration o f
Holy Scripture (Oxford: Oxford University Press, 1981).
43Kern Robert Trembath, Evangelical theories o f biblical inspiration: a review
and proposal (New York: Oxford University Press, 1987).
102 Teologia da revelação

p len á ria e verbal. “Plenária” significa simplesmente “plena” e que


todas as partes das Escrituras têm origem em Deus. Ela está
fundamentada na declaração bíblica inequívoca de que “toda a
Escrituras é inspirada por Deus”.
E importante esclarecer o que essa declaração não significa,
porque tanto os que a propõem quanto os que a rejeitam têm às vezes
imaginado que ela diz mais do que diz de fato. A inspiração plenária
não significa que todas as frases das Escrituras devem ser tratadas
como palavras transmitidas diretamente por Deus ao indivíduo.
Como toda as Escrituras são inspiradas por Deus, todas as suas par­
tes devem ser interpretadas à luz de seu lugar na história da salvação
por ela revelada e dentro de seu contexto literário próprio.Tampouco
a inspiração plenária nos leva necessariamente a tratar todas as partes
das Escrituras como partes igualmente significativas e importantes.
Por exemplo, os quatro Evangelhos devem ser lidos e pregados
com mais frequência do que o livro de Ester, porque estão mais
intimamente relacionados à vida atual da igreja em Cristo. Dizer isso
não significa negar a inspiração plenária de Ester; trata-se, antes, de
situar esse livro dentro da história da revelação e redenção divinas.44
A inspiração verb a l tem sido recentemente objeto de mais con­
trovérsias por estar no centro nervoso de alguns debates acalorados
sobre a inerrância e a infalibilidade das Escrituras, mas isso será
discutido no próximo capítulo. Falar de inspiração verbal é dizer
que a origem divina das Escrituras estende-se não apenas à sua

44Em relação a esses pontos, Bavinck diz: “As Escrituras não devem ser
vistas atomisticamente como se toda palavra e letra fosse inspirada por Deus
e detentora de conteúdo próprio e divino” e “até mesmo a menor parte tem
seu papel e sentido e, ao mesmo tempo, está muito mais distanciada do centro
do que outras partes” (Reformed dogmatics, vol. 1, p. 438-9). Desse modo, foi
perfeitamente coerente e prático para a igreja no passado sustentar uma doutrina
sólida das Escrituras, mesmo enquanto ela debatia a condição canônica de
certos livros, uma vez que (por definição, de fato) nenhuma doutrina importante
decorre unicamente desses livros.
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 103

mensagem em geral, mas a cada uma de suas palavras, e até letras,


uma vez que, muitas vezes, se uma única letra for modificada, o
sentido da palavra será modificado. Em outros termos, não se quer
dizer com isso, por exemplo, que o Espírito Santo deu a Isaías a
ideia geral do que ele deveria escrever, deixando ao profeta que
preenchesse os detalhes com palavras totalmente inventadas por
ele, tal como uma secretária que escreve uma carta com base em
um breve esboço verbal que lhe foi comunicado por seu chefe. Em
tal cenário, teríamos de imaginar que Deus concedeu aos autores
da Bíblia algumas pistas básicas, deixando-os então por conta de
seus instrumentos, maravilhando-se em seguida ao descobrir que,
com os recursos que possuíam, eles haviam escrito exatamente o
que ele queria que dissessem. Isso pressupõe que, sem a revelação
divina, o ser humano tem uma sabedoria e um conhecimento
de Deus muito maiores do que a Bíblia nos permite esperar
encontrar. Em vez disso, a inspiração verbal afirma que a Bíblia
diz exatam ente o que Deus quer dizer porque o Espírito Santo foi
responsável por todas as palavras registradas nas Escrituras. Ele é
o autor divino por trás dos autores humanos.
Se isso parece expressar um interesse doentio pelos mínimos
detalhes das Escrituras, a resposta sensata que se pode dar é que
o próprio Cristo estava igualmente preocupado com as letras e
traços das Escrituras (M t 5.17,18). Não obstante, os críticos da
inspiração verbal têm razão em um ponto, já que, isoladamente,
ao contrário do ato de fala, as palavras não constituem uma uni­
dade básica de sentido. (Conforme vimos, os atos de fala podem
ser breves como uma frase ou longos como um livro.) Na ver­
dade, é possível mudar uma letra, palavra ou estrutura de uma
frase sem alterar muito a força e o conteúdo do ato de fala rea­
lizado por aquelas palavras. O estudo da história da transmissão
dos manuscritos bíblicos através de cópias confirma esse ponto
reiteradas vezes. Algum as mudanças, até mesmo de letras, de
104 Teologia da revelação

fato alteram a força e o conteúdo do ato de fala, mas certa­


mente não em todos os casos. Segue-se que, embora a inspira­
ção “verbal” esteja certa no que afirma, sua ênfase não está no lugar
certo. São os atos d e fa la das Escrituras (suas unidades de sentido:
sentenças, parágrafos e livros) que têm origem na autoria divi­
na, porque os autores são, sobretudo, autores de atos de fala. As
palavras, individualmente consideradas, são inspiradas (proferi­
das por Deus) à medida que se unem para expressar esses atos de
fala. Em M ateus 5, Jesus está interessado em letras e traços das
Escrituras somente porque servem para expressar as promessas
que ele veio cumprir.45

Ação divina e ação humana na composição da Bíblia


Já dissemos que, ao falar da obra do Espírito Santo em relação
à Escritura, a Bíblia concentra-se em afirmar que, no que diz
respeito à origem das Escrituras, Deus é ativo, e o ser humano,
passivo. Vimos também que a Bíblia trata com relativo silêncio
o modo ou mecanismo pelo qual o Espírito conduziu as pessoas
a redigir as Escrituras. Contudo, resta ainda saber o que se pode
dizer com certeza sobre tudo isso. M uitos autores evangélicos
do passado referiram-se aos autores bíblicos como “escribas” do
Espírito Santo, “copistas” de Deus e autores a quem o Espírito
“ditava”as palavras. Às vezes, a doutrina evangélica conservadora
da inspiração é criticada nesse ponto por (supostamente) propor
o que os críticos chamam de ditado “mecânico”. Contudo,
poucos evangélicos conservadores se dispõem a falar dos
autores bíblicos como indivíduos totalmente passivos e de modo

45Mesmo quando Calvino diz que o Espírito Santo “ditava” as palavras das
Escrituras, conforme ele o faz às vezes, geralmente fica claro pelo contexto que
ele tem em mente não palavras isoladas, mas o ensinamento que essas palavras
expressam (e.g., Institutos, 4.8.8).
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 105

algum ativos na tarefa de redigir as Escrituras. A maior parte


reconhece que a Escritura, em seu caráter, é totalmente humana
tanto quanto divina. Os autores bíblicos apresentam estilos e
objetivos claramente distintos, condizentes com seu caráter,
dons e históricos pessoais. A linguagem da Bíblia é a linguagem
humana comum; às vezes, é uma obra artística de alto nível, ao
passo que outras vezes é muito comum. As histórias do Antigo
Testamento muitas vezes se referem ao uso que fazem de outras
fontes históricas, e Lucas introduz seu Evangelho recorrendo
ao mesmo expediente. Nesse sentido, a Bíblia é como qualquer
outro livro. Além disso, traduções da Bíblia para diversos
idiomas têm sido produzidas através de conhecimento das lín ­
guas originais. Some-se a isso o fato de que compreenderemos
corretamente as Escrituras somente se atentarmos para a forma
de sua literatura e para os contextos históricos que ela apresenta,
com base nos quais foi escrita. Deixar de dar a devida atenção
a quaisquer desses elementos, com o objetivo de defender a
origem divina das Escrituras, significa aviltá-las pelo desprezo
a algumas características fundamentais dos escritos que Deus
nos transmitiu.
Portanto, tanto o elemento plenamente divino quanto o ple­
namente humano das Escrituras devem ser levados em conta e não
contrapostos um ao outro. Isso quer dizer que quando pensamos
sobre a relação do divino e do humano atuando juntos na pro­
dução das Escrituras, fica evidente que ela é uma instância da
atividade providencial de Deus. Ao longo da história, com o
intuito de promover objetivos por ele decretados, Deus atua
por meio de ações escolhidas livremente por suas criaturas.
As pessoas agem livremente, mas não de forma autônoma sob
a soberania divina. Esse princípio surge inequívoco em muitas
partes das Escrituras, tal como na venda de José à escravidão
(Gn 45.8) e, principalmente, na morte de Cristo (A t 2.23). A
106 Teologia da revelação

isso às vezes se dá o nome de “operação de convergência” entre


a ação humana e a divina. Warfield define essa operação da
seguinte forma: “Nenhuma atividade humana — nem mesmo o
controle da vontade — é anulada, mas o Espírito Santo trabalha
em todas elas, em parceria com todas e através de todas, de tal
forma que transmite ao produto qualidades especificamente
supra-humanas”.46 Em seguida, ele faz uma detalhada aplicação
do conceito à produção das Escrituras: a inspiração, em sua
definição mais ampla, diz respeito ao longo preparo divino do
autor e do conteúdo. “[Deus] preparou Paulo para escrever, e o
Paulo a quem ele confiou essa tarefa era um Paulo que escreveria
espontaneamente as cartas [conforme Deus pretendia que
ele as escrevesse].”47 Portanto, a Bíblia é totalmente humana e
totalmente divina, e a ação de Deus ao produzi-la estende-se
além do momento da redação e abrange a totalidade de sua ação
providencial nos autores.
E exatamente nesse ponto que muita gente se opõe à dou­
trina da inspiração. Os últimos três séculos de erudição bíblica
nos proporcionaram um conhecimento das circunstâncias his­
tóricas e culturais nas quais os autores da Bíblia viveram e traba­
lharam, um conhecimento superior àquele das gerações que
nos antecederam. Afirma-se que isso fez do aspecto humano
das Escrituras um elemento de amplo alcance, diminuindo
proporcionalmente o aspecto divino e dificultando a proposição
de um modelo de operação de convergência entre o humano e
o divino.48 W arfield faz uma crítica específica a esse argumento,
salientando que, se tivermos uma compreensão adequada da
providência divina, o reconhecimento mais amplo do elemento

46Warfield, Inspiration and authority, p. 83.


47Ibidem, p. 155.
48E.g., Bruce Vawter, Biblical inspiration (London: Hutchison, 1972), p. 128.
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 107

humano das Escrituras não deverá diminuir nosso reconhe­


cimento do elemento divino. As ações divina e humana se
sobrepõem; elas não competem uma com a outra.49 Por trás de
muitas objeções à interpretação evangélica da ação do Espírito
Santo na autoria das Escrituras encontram-se objeções à
providência divina que tendem mais ao deísmo do que a uma
doutrina bíblica de Deus, segundo a qual, por mais insondável
que ela seja para nós, uma ação pode ser ao mesmo tempo um
ato de Deus e um ato genuinamente humano.

A preservação das Escrituras


O Espírito Santo e a transmissão das Escrituras
Depois de feita a definição correta de inspiração como ação
do Espírito Santo que fala diretamente por intermédio dos
au tores da Bíblia, fica claro que o Espírito Santo não atuou
exatamente da mesma m aneira através daqueles que copiaram
e tran sm itiram os manuscritos posteriores da Bíblia. Aliás,
cometeram-se erros durante a cópia dos manuscritos, e o
complexo campo de estudos conhecido como crítica textual
surgiu para trabalhar com esses manuscritos no intuito de
determinar a redação precisa dos textos originais (conhecidos
como “autógrafos”), os quais, até onde sabemos, não foram
preservados. Portanto, segue-se que Deus supervisionou por
sua providência o processo naturalm ente falível de cópia e
transmissão, disso resultando que os inúmeros textos preser­
vados tornam possível, com base nas diferenças entre eles,
reconstruir a redação do original com um alto grau de certeza
em quase todos os casos. De fato, a existência da Palavra

49A. N. S. Lane, “B. B. Warfield on the humanity of Scripture”, Vox


Evangélica 16 (1986), p. 77-94.
108 Teologia da revelação

de Deus em forma escrita, em vez de simplesmente oral,


tornou sua preservação e transmissão muito mais confiáveis.
Q uaisquer erros de im portância secundária que tenham se
infiltrado no processo de cópia de manuscritos, muitos dos
quais podem ser resolvidos pela crítica textual, são poucos
em comparação com as modificações que ocorrem na tradição
oral com o passar do tempo. Embora em alguns lugares das
Escrituras ainda haja dúvidas em torno da redação precisa do
texto original, nenhum ensino importante depende de algum
texto com sentido discutível.
O estudo anterior sobre a inspiração verbal também lança
luz sobre uma questão que surge aqui. A rigor, somente os
autógrafos, que não possuímos, são inspirados. Portanto, às
vezes se pergunta não tanto se a inspiração verbal não estaria
errada, mas qual seria seu valor prático, uma vez que se trata de
uma declaração direta sobre textos que não possuímos, e cuja
redação não pode ser reconstruída com precisão em todos os
pontos. Isso faz com que, para alguns, a inspiração verbal pareça
uma doutrina puramente hipotética. A resposta correta que
se costuma apresentar é que nenhum ensino de im portância
depende de textos cujas formas originais exatas não possam
ser reconstruídas com certeza e, seja como for, o grande
número de manuscritos bíblicos antigos à disposição permite
que decisões complexas acerca da redação do original sejam
tomadas com um grau de certeza muito maior em comparação
com qualquer outro texto antigo. Um a vez que o núcleo da
inspiração verbal são os atos de fala e não palavras isoladas,
e como as variações nos manuscritos antigos raramente colo­
cam em dúvida o propósito e o conteúdo do ato de fala em
uma frase ou parágrafo do original, podemos dizer que os
textos que hoje temos se aproximam bastante do original, de
tal modo que a inspiração verbal é uma doutrina importante
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 109

que de fato se aplica aos textos da forma como se encontram,


e não uma doutrina meramente hipotética.
Esse mesmo argumento nos ajuda a refletir sobre as
traduções da Bíblia: será que, por extensão, elas podem ser
consideradas a Palavra inspirada de Deus? É claro que as
palavras de Jesus proferidas neste mundo e registradas no Novo
Testamento já são traduções para o grego da língua aramaica
que ele falava. As palavras de Cristo em nossa língua foram,
portanto, duplamente traduzidas. (Só raramente deparamos
com o registro de uma frase curta de palavras em aramaico
proferidas por Jesus, tais como as que ele disse à filha de Jairo
quando a ressuscitou dos mortos em M arcos 5.41.) Essa
observação tem sido tradicionalm ente expressa por meio de
duas frases latinas: não temos as ipsissim a verb a de Jesus (suas
próprias palavras), mas temos sua ipsissim a vox (sua mensagem
— ou, nos termos que venho usando, seus atos de fala). Isso
pode ser motivo de preocupação para os cristãos, à medida que
as Bíblias atuais nos dão acesso às palavras de Cristo por meio de
um vidro embaçado, uma vez que as traduções necessariamente
deixam as águas mais turvas. Bem, é claro que aqueles que
estudaram as línguas originais podem às vezes nos ensinar
coisas sobre o significado de um texto que nossas traduções
não podem deixar claro. Contudo, se tivermos em mente que o
foco do ato de inspiração do Espírito Santo era os atos de fala,
podemos então ter certeza de que estes foram traduzidos com
exatidão, quaisquer que sejam as dúvidas em torno da tradução
de palavras isoladas de uma língua para outra. Essa observação
aponta para as virtudes das traduções normalmente conhecidas
como de “equivalência dinâmica”, tal como ocorre como a Nova
Versão Internacional. Elas se baseiam no conceito bastante
correto de que a unidade básica de sentido é o ato de fala
(como uma frase ou oração), e que isso, e não a palavra em si, é
110 Teologia da revelação

a unidade na qual o tradutor deve se concentrar ao reproduzir


o sentido na língua de chegada.50

0 Espírito Santo e o cânon das Escrituras


O Espírito também estava em ação nos primeiros séculos da igreja
na compilação do cânon das Escrituras. A história desse processo
já foi descrita com detalhes diversas vezes. Em termos muito
simples, ele consistiu no reconhecimento notavelmente rápido e
disseminado de, pelo menos, quatro Evangelhos e de várias cartas
de Paulo como Escritura (estas últimas foram assim reconhecidas
desde muito cedo, conforme 2 Pedro 3.15,16), estendendo-se
durante um longo período em que havia incertezas em algumas
áreas em relação a outros livros como Judas e Apocalipse.
O principal elemento nesse processo que estabeleceu a dis­
tinção entre a visão protestante e o entendimento católico foi a

50Contudo, é claro que toda boa tradução recorre auma mescla de “equivalência
dinâmica”e de “palavra por palavra”. Apesar de tudo o que ocasionalmente dizem
as editoras e os conselhos editoriais das novas traduções da Bíblia em relação
ao seu trabalho, todas as boas traduções se debruçam primordialmente sobre a
reprodução do “pensamento” (i. e., o ato de fala) do original, refletindo ao mesmo
tempo a estrutura da frase e a escolha de vocabulário do original, tanto quanto
o permitam as limitações da língua de chegada. Para dar um exemplo: dentre
as traduções de língua inglesa, o que diferencia em grande medida a recente
English Standard Version da New International Version, e contra o que muitos se
insurgiram, é somente o fato de que os tradutores da ESV estavam mais dispostos
a sacrificar a naturalidade da expressão em inglês para seguir o mais próximo
possível a estrutura da frase grega. Certamente não é nenhum mérito de tradução
satisfazer-se apenas com o “pensamento” geral sem se esforçar para refletir o
quanto possível a estrutura e o vocabulário usados no original. Todavia, uma
tradução não deve receber grandes elogios se transformar regularmente frases em
grego, que devem ter soado-muito naturais para um público falante desse idioma,
em fragmentos artificiais de inglês que nenhum nativo falaria, simplesmente
para refletir detalhes do original que talvez não tenham nenhum significado e
sejam apenas simples aspectos do estilo lingüístico do grego. Em outras palavras,
em tradução há mais de um tipo de precisão, e toda tradução tem de escolher
constantemente onde fazer sacrifícios.
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 111

natureza da ação do Espírito Santo que se acreditava existir por


trás da história. Para o catolicismo, o 'Espírito estava em ação
sobretudo na igreja e através dela de um modo essencialmente
novo, expandindo a autoridade da igreja no que dizia respeito à
definição do conteúdo das Escrituras. Com o passar dos séculos,
essa expansão transformou-se na autoridade do magistério da igreja
estruturada, que então passou a definir o sentido das Escrituras.
Para os protestantes, em contrapartida, a obra do Espírito nos acon­
tecimentos históricos de compilação do cânon não levou à criação
de uma nova realidade e de uma nova autoridade na igreja. Foi,
antes, um ato a serviço de sua autoria original das Escrituras, pelo
qual, através de um complexo processo histórico, ele levou a igreja
a reconhecer de quais livros ele era de fato autor e de quais não
era. As listas de livros canônicos que os líderes da igreja primitiva
eventualmente publicavam não eram tentativas por parte das
autoridades eclesiásticas de impor ordem a uma situação confusa.
Pelo contrário, eram expressões de uma realidade que a igreja estava
descobrindo no tocante à Escritura. A igreja, portanto, não criou o
cânon das Escrituras através do Espírito, mas veio a reconhecê-lo
por intermédio dele. Esse é um aspecto da fidelidade de Deus à sua
Palavra e de sua coerência com ela, promovendo o reconhecimento
humano do que ele já havia realizado ao inspirar as Escrituras.

A iluminação das Escrituras


Com base em passagens como ICoríntios 2.6-16 e2Coríntios 3.12—
4.6, desenvolveu-se o que veio a ser conhecido como iluminação das
Escrituras pelo Espírito Santo. Isso significa que somente quando
o Espírito Santo abre nossa mente e coração às suas palavras nas
Escrituras é que a aceitamos como Palavra de Deus, podemos
entendê-la e nela confiar. Uma declaração típica do período posterior
à Reforma sobre a perspectiva que tinham os reformadores acerca
da iluminação e de sua relação com o papel da igreja pode ser vista
112 Teologia da revelação

em Francis Turretin, um dos teólogos reformados mais influentes


do século 17. Para ele, a Bíblia, com suas características e conteúdo
marcantes, é a razão pela qual ele crê; o Espírito Santo é a causa
eficiente e princípio que o induz a crer; e a igreja é o instrumento e o
meio pelos quais ele crê.51 Portanto, embora o testemunho da igreja e
a Bíblia sejam meios que Deus usa para nos levar a ele, o poder que
de fato nos conduz à fé salvadora no Senhor é o Espírito Santo.
Na visão que os reformadores tinham dessa ação do Espírito
era essencial o fato de que sua obra de iluminação ocorrera não
através da igreja, mas das Escrituras. Calvino faz a seguinte afir­
mação a esse respeito: “a Palavra é o instrumento por meio do qual
o Senhor dispensa a iluminação de seu Espírito aos crentes, pois
eles não conhecem nenhum outro Espírito além daquele que habi­
tou nos apóstolos e falou por meio deles”.52 De modo semelhante,
porém menos dinâmico, disse Turretin pouco mais de um século
depois ao se referir à Palavra e ao Espírito: “A primeira opera de
forma objetiva; o segundo, de forma eficiente; a primeira atinge os
ouvidos de fora para dentro; o segundo, abre o coração de dentro
para fora”.53
Esse argumento apontava para três direções ao mesmo tempo.
De forma negativa para o catolicismo romano, porque, ao contrário
deste, afirmava que o Espírito necessitava da igreja apenas como
instrumento, não como dinâmica real por cujo intermédio as pessoas
chegavam à fé. Também apontava de forma negativa para a R eform a
R adical do século 16, porque afirmava que o Espírito costuma ilumi­
nar as mentes por meio do conteúdo da Palavra escrita e não através
de revelações feitas ao indivíduo sem necessidade das Escrituras
ou a despeito dela. E, de forma positiva, servia para demonstrar a

51Turretin, Elenctic theology 2.6.6.


“ Calvino, Institutas 1.9.3.
53Turretin, Elenctic theology 2.2.9.
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 113

fidelidade e a coerência de Deus na revelação. Deus havia falado em


linguagem humana e se identificado com os atos de fala realizados
por meio de suas palavras. Disso resultou que o ser humano, que não
tem acesso a nenhum conhecimento de Deus que lhe traga salvação
nem acesso a ele por seus próprios meios, ou por meio de outra coisa
qualquer no mundo à sua volta, podia confiar verdadeiramente em
Deus como o criador da aliança que ele revelara ser. Agora que essas
palavras de Deus tinham sido registradas por escrito, Deus, através
da pessoa do Espírito, ficaria ao lado delas e lhes seria fiel onde quer
que as Escrituras fosse lida e pregada. O Espírito age para ministrar
o sentido das palavras das Escrituras e não para manipulá-la ou
modificá-la. (Direi mais a esse respeito quando analisarmos, no
capítulo 5, “As Escrituras e a comunidade cristã”.)
A doutrina da iluminação das Escrituras pelo Espírito Santo
é geralmente defendida como único meio pelo qual a autoridade
das Escrituras pode repousar, e deve repousar, sobre o próprio
Deus. As Escrituras como Palavra de Deus não estão destituídas
de evidências externas, conforme se pode ver em sua história
e conteúdo. Todavia, segundo Calvino, tais evidências, embora
sejam “recursos muito úteis”, têm valor somente depois que a
autoridade das Escrituras como Palavra de Deus é estabelecida
em nossa mente pelo Espírito Santo.54 Todavia, também não
há dúvida de que a iluminação não se alcança unicamente pela
dedução lógica, porque é obra natural do caráter e das ações
de Deus, conforme vimos na perspectiva bíblica do capítulo
anterior. Tendo proferido as palavras de sua aliança e feito com
que fossem registradas por escrito, Deus continua a se mostrar

54CaIvino, Institutas 1.8.1. A confirmação racional das Escrituras por meio


de evidências externas, embora jamais obscureça o testemunho interior do
Espírito, foi se tornando cada vez mais importante na teologia reformada, à me­
dida que se desenvolveu do século 16 ao 20.
114 Teologia da revelação

como Senhor sendo também o Senhor que serve, transmitindo


fielmente mais uma vez sua promessa de aliança em verdade e
poder, levando conhecimento de si mesmo por meio daquela
promessa. Deus está nas Escrituras no sentido de que os atos
de fala das Escrituras são um aspecto de sua presença ativa.
Portanto, é muito natural que a obra contínua de iluminação do
Espírito Santo se dê nessas palavras e por meio delas.

Resumo
Antes eu havia apresentado uma perspectiva bíblica da natu­
reza e da função das Escrituras como palavras de Deus, descre­
vendo-as como um aspecto da ação divina neste mundo.
Este capítulo deu expressão teológica à relação notavelmente
íntima das Escrituras com a atividade divina ao vinculá-la ao
Pai, ao Filho e ao Espírito, respectivamente. Devo esclarecer
que a visão das Escrituras que venho apresentando não pode
ser tratada meramente como prefácio à verdadeira essência das
doutrinas de Deus, de Cristo, do Espírito e da salvação. Pelo
contrário, quando bem compreendida, a doutrina das Escrituras
apresenta-se totalmente mesclada com a doutrina bíblica da
Trindade. Não há como fazer uma boa descrição das ações do
Deus trino e uno na redenção e na revelação sem atrelar as
Escrituras a Deus como parte fundamental de sua atividade de
redenção e revelação, uma vez que é justamente isso que ele fez.
Em conseqüência dessa realidade, os atos de fala das Escrituras
estão atrelados diretamente ao próprio Deus. Nesse sentido, a
doutrina das Escrituras deve ser uma subdivisão no âmbito de
nossas doutrinas sobre Deus, redenção e revelação.
Sempre que deparamos com os atos de fala das Escrituras,
deparamos com o próprio Deus em ação. O Pai se apresenta
a nós como um Deus que celebra e cumpre suas promessas de
A Trindade e as Escrituras: uma perspectiva teológica 115

aliança. O Filho dirige-se a nós como Palavra de Deus e se nos dá


a conhecer por meio de suas palavras. O Espírito ministra essas
palavras a nós, iluminando nossa mente e coração, de modo que,
recebendo-as, compreendendo-as e nelas confiando, recebemos a
Deus, o conhecemos e nele confiamos.
3

ATRIBUTOS DAS ESCRITURAS:


UMA PERSPECTIVA DOUTRINÁRIA

hábito dos evangélicos conservadores que escrevem

O sobre a doutrina das Escrituras é apresentá-la segundo


uma série de tópicos geralmente chamados “atributos”
das Escrituras. N ecessidade, suficiência, clareza e autoridade são,
historicamente, os atributos mais citados. Neste livro, gostaria
de seguir por essa direção porque esses pontos são verdadeiros e
importantes e, portanto, devem continuar a ser fundamentais para
nossa crença nas Escrituras. Porém, eu também gostaria de seguir
por uma rota que nem sempre tem sido seguida, a saber, através
das perspectivas bíblica e teológica dos dois capítulos anteriores.
É claro que por trás do desenvolvimento dessas declarações
doutrinárias sobre os atributos das Escrituras há uma boa dose
de reflexão bíblica e teológica cuidadosa. M as, conforme costuma
acontecer na história do pensamento teológico, pega-se uma
declaração doutrinária, que então é passada adiante, rejeitada por
alguns, defendida por outros e transformada em "grito de guerra"
dos ortodoxos contra os não ortodoxos e, nesse processo, os
118 Teologia da revelação

fundamentos teológicos daquela declaração se perdem na mente


das pessoas. Isso produz dois efeitos lastimáveis. Em primeiro
lugar, torna-se relativamente fácil para que os oponentes dessa
doutrina a retratem como algo cujas raízes remetem mais às
características das culturas e filosofias humanas do que à fé cristã,
argumentando, desse modo, que não se trata de um componente
essencial da fé e do ensino cristão. Em segundo lugar, os defensores
dessa doutrina podem estar construindo sua identidade sobre uma
doutrina profundamente arraigada nas Escrituras e na teologia,
algo que veem como natural, mas que não sabem expressar de
modo satisfatório. Nesses casos, há sempre um perigo à espreita:
a doutrina pode perder aos poucos seus contornos bíblicos
adequados e distorcer o ensino bíblico, em vez de propô-lo como
deveria. O entusiasmo evangélico pela teologia sistemática às
vezes impede que esse perigo seja percebido. Outros veem com
cautela a teologia sistemática justamente porque reconhecem
os riscos de sempre ler as Escrituras pelo crivo de um sistema
teológico inflexível. Ao dar forma a este livro, procurei ser sensível
a essa preocupação.
Este capítulo preserva os tópicos tradicionais referentes à
doutrina das Escrituras dos evangélicos conservadores, pois con­
tinuo convencido de que ainda são excelentes para expressar com
fidelidade o pensamento cristão sobre as Escrituras em forma de
doutrina.Todavia, as linhas bíblicas e teológicas dos dois capítulos
anteriores nos permitirão afirmar e esclarecer tanto o que está
implícito em cada um desses tópicos doutrinários, quanto o que
não está, firmando-os sobre fundamentos explícitos. M uitas
vezes essas diferentes doutrinas das Escrituras foram ampliadas
no calor do debate para além do que se pode dizer com justiça
que lhes é de direito," e isso acontece desde a Reforma por força
de evangélicos conservadores que, incomodados com os ataques
desferidos à doutrina, desejavam, com razão, sustentá-la com a
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 119

maior coerência possível. O mesmo fizeram seus adversários que,


seja de forma deliberada ou inadvertida, também propuseram uma
caricatura extrapolada dessa doutrina que por isso foi facilmente
desprezada como equivocada ou tola. Toda declaração doutrinária
surge da necessidade de refutar ensinamentos considerados falsos.
Em outras palavras, elas são formuladas com fins apologéticos e
polêmicos. Ao analisarmos o propósito de cada doutrina, veremos
de que modo podem se tornar uma ferramenta útil e afiada para a
vida e o pensamento cristão de hoje.

A necessidade das Escrituras


A respeito da doutrina das Escrituras, os autores evangélicos conser­
vadores costumam dizer, em primeiro lugar, que ela é necessária. Este
talvez não seja o primeiro atributo que muitos evangélicos conser­
vadores apresentariam hoje ao descrever as Escrituras. Contudo, ele
tem sido importante na teologia evangélica. Assim como muitos
aspectos da teologia protestante, essa doutrina foi formulada clara­
mente pelos primeiros reformadores e, em seguida, elaborada de
forma mais sistemática pelos teólogos nos dois séculos seguintes.
O exemplo mais conhecido do primeiro grupo é de João
Calvino, bem no início das Institutas da religião cristã. Na divisão
“Para que alguém chegue a Deus, o Criador, é necessário que as
Escrituras sejam seu guia e mestra”, Calvino faz uma célebre ana­
logia entre a necessidade das Escrituras e a necessidade de lentes
para corrigir a visão dos que têm visão ruim:

Exatamente como acontece com. pessoas idosas, ou enfermas dos


olhos, e tantos quantos sofram de visão embaçada, se puseres
diante delas mesmo um vistoso volume, ainda que reconheçam
ser algo escrito, contudo mal poderão juntar duas palavras; aju­
dadas, porém, pela interposição de lentes, começarão a ler de
120 Teologia da revelação

forma distinta. Assim as Escrituras, coletando-nos na mente


conhecimento de Deus que de outra sorte seria confuso, dissi­
pada a escuridão, nos mostram em diáfana clareza o Deus verda­
deiro. (Institutas 1.6.1)

Calvino tem em mente aqui a revelação que Deus concede de sua


realidade e glória de criador através da criação física (análoga ao
“vistoso volume”da citação), da qual Deus fala em Romanos 1.19,20.
Todavia, essa revelação em si mesma não tem nenhum benefício
salvador para a humanidade, porque em nossa pecaminosidade
suprimimos o conhecimento do criador, a quem tal conhecimento
deveria nos conduzir (Rm 1.18). Para Calvino, a Queda não apagou
totalmente o conhecimento humano sobre Deus e, por conseqüência,
as Escrituras servem como lente indispensável para nos pôr em
foco o conhecimento de Deus que já existe, o qual porém, sem sua
palavra que nos é dada nas Escrituras, fica seriamente obscurecido
em razão de nossa perspectiva marcada pelo pecado.
Calvino apresenta então outras razões para afirmar a necessi­
dade das Escrituras. Ao se revelar em palavras, quer tenham vindo
por meio de oráculos e visões, quer por meio do que Calvino
chama de “ministério dos homens”, Deus “fez para sempre com
que a fé não fosse dúbia, /? esta que deve ser superior a toda m era
opinião” CInstitutas 1.6.2). Neste ponto, o reformador tem em
mente a revelação verbal, mas não necessariamente em forma
escrita. O que ele quer dizer, assim parece, é que a forma verbal da
revelação é o que permite sua análise e interpretação, de tal modo
que se saiba, sem dúvida, que veio de Deus. Portanto, é diferente
de uma revelação não verbal na forma de um sentimento, por
assim dizer, ou de um estado emocional. Tal revelação não verbal
não poderia ser bem descrita em palavras por quem a recebesse,
fosse para si mesmo, fosse para outro. Não poderia, portanto,
apresentar-se como revelação divina demonstrável.
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 121

Esse tipo de afirmação sobre as Escrituras sustenta que deve­


mos identificá-la como Palavra necessária de Deus, porque sem tal
palavra, nosso conhecimento de Deus não estaria bem alicerçado,
não seria confiável e seria até (poderíamos dizer) subjetivo demais.
Sentimentos desse tipo foram expressos com intensidade
cada vez maior nos três séculos que se seguiram à Reforma e foram
submetidos à crítica rigorosa de que devem muito mais ao desejo
do Iluminismo de fazer repousar a certeza do conhecimento sobre
princípios derivados da razão humana que age com autonomia
do que a quaisquer convicções que possam ser definidas como
cristãs e bíblicas. Afinal de contas, pergunta-se, a fé cristã não
estaria mais associada ao andar por fé do que por vista? A crença
na necessidade das Escrituras, dirão alguns, não seria, no fim das
contas, uma doutrina produzida por pessoas cujo temperamento
não lhes permite viver a vida na incerteza?
Quanto aos teólogos posteriores à Reforma, não há neces­
sidade de defendê-los da acusação de terem se tornado racio-
nalistas demais em sua compreensão da certeza da fé, dado que
tal racionalismo fica evidentemente explícito em alguns de seus
escritos. Contudo, o que raras vezes se disse é que não apenas
Calvino, mas também muitos de seus herdeiros teológicos esta­
vam preocupados primordialmente com a certeza do crente de
que seu conhecimento de Deus é conhecimento do Deus verda­
deiro e não de um ídolo, e, portanto, que sua relação com Deus era
genuína e não uma fantasia ou algum fingimento. Esse é o cerne
da doutrina da necessidade das Escrituras. Não se trata de uma
tentativa de estabelecer a fé cristã como uma crença que atende
aos padrões filosóficos determinados por uma razão humana
supostamente autônoma.
Aliás, as Escrituras mencionam com regularidade certo tipo
de certeza na fé, e não se trata de uma certeza filosófica, mas de
uma certeza e confiança em relação à autenticidade de nosso
122 Teologia da revelação

conhecimento de Deus e de nosso relacionamento com ele. A pri­


meira carta de João, por exemplo, foi escrita com a intenção
expressa de que “saibais que tendes a vida eterna” (ljo 5.13).Todo
o Evangelho de Lucas foi escrito “para que tenhas certeza da
verdade das coisas em que foste instruído” (Lc 1.4), — disse o
evangelista a Teófilo — o que, sem dúvida alguma, refere-se à
importância do conhecimento confiável de certos fatos sobre Jesus
Cristo. À luz dessas afirmações dos autores bíblicos acerca de suas
intenções ao escrever, conclui-se que muitos comentaristas se
precipitaram ao acusar os teólogos evangélicos conservadores de
estarem obcecados pela certeza filosófica de um tipo nitidamente
ocidental, mas, acima de tudo, o que esses teólogos tinham em
mente era a certeza da realidade de um relacionamento com Deus.
Retomando a exposição de Calvino sobre a necessidade, o
reformador discorre a seguir sobre a necessidade da fo r m a escrita
da revelação verbal divina. Essa forma era necessária “a fim de
que a verdade possa permanecer para sempre no mundo, tendo
uma sucessão contínua de ensino, e subsistindo através de todas
as eras” {Institutas 1.6.2). Um texto cuidadosamente copiado terá
menos mudanças e distorções, quer acidentais, quer deliberadas,
do que um corpus de tradição puramente oral. Conforme a
síntese de Calvino, era preciso haver uma revelação escrita para
garantir que a revelação divina “não desvanecesse pelo ouvido, ou
se dissipasse pelo erro, ou fosse corrompida pela petulância dos
homens” (Institutas 1.6.3).
Essas duas últimas razões não foram deduzidas por Calvino
simplesmente do fato de a revelação ter forma escrita, podendo
ser encontradas, por vezes, expressas na próprias Escrituras.
Depois da derrota dos amalequitas por Josué, o Senhor disse a
Moisés: “... Escreve isto para memorial num livro e confirma a
Josué que apagarei totalmente a lembrança de Amaleque de
debaixo do céu” (Ex 17.14). O registro por escrito dos atos
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 123

de Deus aqui é ordem divina, para que fique mais fácil para
seu povo lembrar-se de sua vitória absoluta sobre seus inimigos
e, portanto, de sua fidelidade à aliança com eles. Em outra
passagem, Deus instrui Ezequiel com relação ao projeto do
templo, suas regulamentações e leis: escreve isto à vista deles,
para que guardem toda a sua forma e todas as suas normas, e as
cumpram” (Ez 43.11). Deus sabe que é mais fácil ser fiel às ordens
escritas do que às ordens meramente orais.
É interessante notar que Francis Turretin, teólogo de Genebra
que escreveu pouco mais de um século depois de Calvino, acres­
centa muito pouco à doutrina calvinista da necessidade. Os dois
principais desenvolvimentos consistem em que ele, muitas vezes,
apresenta esse ensinamento de forma mais sistemática e, além
disso, responde a várias objeções detalhadas feitas posterior­
mente, sobretudo por católicos romanos. Com mais clareza do que
Calvino, Turretin define a questão da necessidade das Escrituras
como, primeiramente, uma necessidade de revelação verbal e, em
segundo lugar, de uma forma escrita para essa revelação verbal. A
interpretação que ele dá à função das Escrituras é notavelmente
dinâmica: “Ela é a ‘semente’ da qual nascemos de novo (lP e 1.23),
a ‘luz’ que nos direciona (SI 119.105), o ‘alimento’ que nos nutre
(Hb 5.13,14) e o ‘fundamento’ sobre o qual somos construídos
(E f 2.20)” (E lenctic th eology 2.1.1). À semelhança de Calvino, ele
também acredita que há necessidade de uma revelação verbal que
nos conduza à salvação, e que isso se deve ao pecado que nos cega
à revelação que Deus faz de si mesmo na criação. Turretin enfa­
tiza com veemência as limitações absolutas da revelação através
da criação: “De fato, ela [a revelação natural] mostra que Deus
existe, e qual sua natureza, tanto no tocante à unidade da essência
quanto aos diferentes atributos que possui, mas não nos diz quem
ele é como indivíduo em sua relação com as pessoas” (E lenctic
th eo lo gy 2.1.6).
124 Teologia da revelação

Portanto, era imprescindível que houvesse uma revelação


v er b a l para que a humanidade soubesse quem Deus é de fato
e para que tivesse um conhecimento salvador dele. Turretin,
como vários outros teólogos posteriores à Reforma, explica que
a revelação escrita, em contrapartida, não é uma necessidade
absoluta. Isso ocorre porque houve ocasiões na história, tais como
antes do tempo de M oisés, em que algumas pessoas tiveram
conhecimento salvífico de Deus, embora não houvesse uma
revelação escrita. Portanto, o registro por escrito das Escrituras
é necessário somente no sentido de que Deus agora nos dá
uma revelação por escrito e decretou, desse modo, que ela é
necessária. Ele poderia ter continuado a se revelar a nós através
de visões, oráculos verbalizados, sonhos etc. Contudo, ele quis
que a revelação primordial de si mesmo não tivesse essa forma,
mas fosse escrita para nós na Bíblia. Turretin explica da seguinte
maneira: “De fato, Deus não estava limitado à Escritura, mas
ele nos lim itou a ela” (E lenctic th eo lo gy 2.2.2). Herman Bavinck
associa a necessidade das Escrituras diretamente ao fato de que
a revelação divina chegou ao clímax com Cristo.1
As teses de Turretin são dirigidas mais objetivamente contra
os católicos romanos, que negavam a necessidade da revelação
escrita “no intuito”, diz Turretin, “de firmar mais facilmente suas
tradições não escritas e o foro supremo do papa” (E lenctic theology
2.2.1). Isso evidencia o fato de que a doutrina da necessidade das
Escrituras não é tanto um subponto detalhado de um esquema
doutrinário logicamente construído, mas diz respeito a outra
perspectiva com base na qual se podem expressar os critérios
teológicos fundamentais da Reforma protestante. O fato é que

herm an Bavinck, “Prolegomena”, in: John Bolt, org., Reformed dogm at-
ics, tradução para o inglês de John Vriend (Grand Rapids: Baker, 2003), vol. 1,
p. 471.
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 125

a “necessidade das Escrituras” não se desenvolveu a ponto de se


tornar um dos grandes temas que vieram a sintetizar a Reforma,
como o sola Scriptura (somente as Escrituras). Não obstante, a
necessidade é crucial para que o sola Scriptura seja explicado e
defendido. Se somente as Escrituras são autoridade suprema do
pensamento e da vida do cristão, isso se deve ao fato de que tanto
seu conteúdo (revelação verbal) quanto sua forma (Escrituras
em registro escrito) são indispensáveis. (O sola Scriptura será
analisado com mais detalhes no próximo capítulo.)
Turretin conclui sua defesa da necessidade de um registro
escrito das Escrituras acrescentando duas coisas. A semelhança
de Calvino, ele sustenta que um registro por escrito das Escrituras
é necessário para a preservação da palavra e também para sua
propagação. Ele observa que a comunicação escrita era o meio
comum pelo qual os soberanos garantiam a preservação e a pro­
pagação fidedigna de suas leis (E lenctic th eology 2.2.6). Outros
teólogos posteriores à Reforma mencionaram Judas 3 neste
ponto, o que expressa o modo pelo qual a escrita foi conseqüência
natural da condição dos apóstolos como mestres universais.2
Turretin responde também a algumas objeções à ênfase na
necessidade da revelação escrita. Em primeiro lugar, ele admite que
as igrejas podem ter existido durante algum tempo sem a pala­
vra escrita de Deus, mas ressalta que não poderiam ter nascido se
a mensagem verbal das Escrituras não tivesse chegado a elas pela
expressão oral. Também não é verdade que a afirmação de Cristo
segundo a qual “não queirais ser chamados Rabi; porque um só é o
vosso Mestre, e todos vós sois irmãos”(M t 23.8) exclui as Escrituras.
Aqui, Cristo não se coloca em oposição à Escritura, através da qual

2Veja Richard A. Muller, Post-reformation Reformed dogmatics, (Grand


Rapids, Baker, 1993), vol. 2: Holy Scripture: the cognitive foundation o f theolo-
gy, p. 172-3.
126 Teologia da revelação

ele se dirige a nós, e sim aos fariseus, que haviam criado por conta
própria uma falsa autoridade {Elenctic theology 2.2.12).
Em segundo lugar, dizTurretin, as referências bíblicas, segundo
as quais os crentes são ensinados diretamente pelo Espírito Santo
e não precisam de nenhum outro mestre (p. ex., Jr 31.34; ljo 2.27),
não diminuem a necessidade das Escrituras. Pelo contrário: “O
Espírito é o mestre; as Escrituras são as doutrinas que ele nos
ensina”. Essa ideia, aparentemente dirigida contra alguns grupos
da ala radical da Reforma, sustenta que o ministério dos mestres
das Escrituras chegará ao fim somente no céu, porque só então
“cada um verá a Deus como ele é face a face” (E lenctic theology
2.2.9). Portanto, a promessa de Jeremias 31.34 ainda não foi
inteiramente cumprida. Esse ponto continua a ser fundamental
para a igreja contemporânea. Tanto os pronunciamentos feitos
pelos líderes ordenados da igreja quanto as declarações de pessoas
que se julgam , ou que outros julgam , especialmente ungidas pelo
Espírito, na prática podem vir a ser colocados em pé de igualdade
com as Escrituras como “palavra de Deus”. Isso se aplica ao
papa falando ex cathedra, a um profeta reconhecido que discorra
sobre o futuro (estes são os exemplos mais evidentes), ou até
mesmo (e de maneira mais sutil) a um pastor evangélico que,
de fato, ordena aos membros da igreja que creiam em coisas ou
pratiquem atos que não possam ser ratificados pelas Escrituras. A
doutrina evangélica das Escrituras, portanto, é um brado contra
as interpretações católicas da revelação e contra toda prática que
coloque no mesmo nível de autoridade as palavras de Deus nas
Escrituras e previsões ainda não cumpridas feitas por um profeta
contemporâneo. Trata-se, do mesmo modo, de uma advertência a
qualquer pastor evangélico que exerça uma autoridade que resida
nele mesmo e não onde deve residir, ou seja na ação do Espírito
Santo, que imprime o significado das Escrituras no coração e na
mente daqueles a quem o pastor ensina.
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 127

A essas duas exposições da necessidade das Escrituras feitas


por Calvino e Turretin gostaria de acrescentar algo que ambos
pressupõem e às vezes insinuam, mas não afirmam de modo
inequívoco: a base sobre a qual a doutrina é construída. Turretin
afirma, conforme vimos, que a revelação natural pode revelar
apenas a existência e a natureza de Deus, mas não quem ele é.
Aqui encontramos o alicerce mais profundo para a exposição da
doutrina da necessidade das Escrituras. O padrão da autorrevelação
de Deus consiste no relacionamento de aliança que ele estabelece
com seu povo, relacionamento através do qual se dá a conhecer.
Ele não se revela de forma exaustiva, porém o Deus que ele
mostra ser em sua relação de aliança é o Deus que ele é de fato. A
natureza divina de um ser em três pessoas, as quais se relacionam,
que opta por estender esse relacionamento para se relacionar
com outros, requer que sua revelação seja verbal. Sua relação
conosco simplesmente não seria o tipo de relação que ele tinha
a intenção de estabelecer se fosse ela firmada e sustentada sem
palavras. A realidade da Trindade, e o propósito da encarnação,
crucificação, ressurreição e ascensão são muito complexos para
que sejam reproduzidos sem palavras ou comunicados através de
um impulso ou sentimento religioso. Eles têm de ser falados. Um
dos objetivos dos dois capítulos anteriores foi deixar isso definido.
Voltando especificamente ao caráter de registro escrito das
Escrituras, esse aspecto da revelação divina está claramente suben­
tendido na natureza de aliança do plano e dos propósitos divinos
para a salvação humana. Turretin apela ao fato de que reis e prín­
cipes costumam fazer com que suas leis sejam escritas para garantir
sua permanência e facilidade de propagação. Observei em um
capítulo anterior as semelhanças entre trechos das Escrituras e
tratados antigos celebrados pelos senhores com seus vassalos, bem
como a maneira pela qual o Novo Testamento deixa claro que
Cristo, cuja palavra nos é ali transmitida, é em si mesmo e em suas
128 Teologia da revelação

palavras o cumprimento da antiga aliança. Com base nisso, referi-me


à Escritura como “livro da aliança”. Em sintonia com a natureza da
aliança que Deus firmou e revelou de modo progressivo ao longo
do tempo é que foram escritas suas condições e sua história como
testemunhos da fidelidade de Deus a ela. Não havia necessidade
absoluta de que assim fosse, mas a forma que Deus escolheu para
se revelar e para salvar garantiu que ela fosse assim escrita.3Ainda
sobre a necessidade da revelação escrita, podemos citar o último
ponto que se distingue no contexto do pensamento contempo­
râneo acerca da linguagem e da escrita. Diversos pensadores do
século 20, ainda que de diferentes maneiras, lançam dúvidas sobre
a estabilidade do significado da linguagem escrita em contraste
com o discurso face a face. O filósofo Paul Ricoeur disse que ler
um texto “não é uma relação de interlocução, não é uma instância
de diálogo”.4 O que o falante fa z por meio das palavras que
profere (chamado pelos teóricos de “força ilocucionária” do ato
de fala, tal como uma advertência, uma promessa etc.) é muitas
vezes comunicado em discursos proferidos através de meios não
verbais como os gestos, e estes, é claro, não estão representados na
linguagem escrita. Portanto, conclui Ricoeur, “a força ilocucionária
é menos passível de registro escrito do que o sentido propositivo”.5

3Bavinck é convincente ao tomar as Escrituras como registro da revelação


de Deus na história e como voz atual do Deus vivo: “[As Escrituras] estão
enraizadas em séculos de história e ela é fruto da revelação divina no meio do
povo de Israel e em Cristo [...] [mas também] nela Deus se dirige diariamente
a seu povo [...] Ela não apenas nos liga ao passado, como nos liga também ao
Senhor vivo nos céus” (R eformeddogmatics, vol. 1, p. 384-5).
4Paul Ricoeur, Hermeneutics and the human sciences: essays on language, action
and interpretation, organização e tradução para o inglês de John B. Thompson
(Cambridge: Cambridge Univjersity Press, 1981), p. 146.
sPaul Ricoeur, Interpretation theory: discourse and the surplus o f m eaning
(Fort Worth: Texas Christian University Press, 1976), p. 27 [edição em por­
tuguês: Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação (Lisboa:
Edições 70,2013)].
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 129

O influente filósofo alemão Hans Gadamer fez declarações pare­


cidas em meados do século 20.6 Se isso'fosse universalmente verda­
deiro, então o problema das Escrituras seria grave, uma vez que a
totalidade de sua força ilocucionária de criação de uma aliança é
fundamental à própria natureza de livro da aliança.
A melhor resposta da teologia cristã a esse questionamento,
indo ao encontro de nossos propósitos, veio de Kevin Vanhoozer.
Ele diz que os gên eros dos textos literários (p. ex., uma narrativa,
uma profecia ou um texto [...] apocalíptico) suprem os elementos
da comunicação presencial que faltam a quem lê ou ouve a leitura
de um texto escrito. “O conceito de gênero [...] descreve o ato
ilocucionário em nível geral”, diz ele.7 A situação de quem lê um
texto talvez não permita ver os gestos e as expressões faciais do autor,
mas a escrita pode transmitir a natureza do ato de comunicação por
ele realizado. Ela o faz de modo literário, à medida que a força
ilocucionária é comunicada através de diferentes gêneros literários.
Por exemplo, o início do Evangelho de Lucas nos diz que aquilo
que estamos lendo é um tipo de história; o começo do livro do
Apocalipse sinaliza que se trata de um texto escatológico, e assim
por diante. Portanto, a doutrina da necessidade de uma revelação
escrita não nos obriga a concluir, de uma perspectiva filosófica, que
estamos automaticamente condenados, como leitores da Bíblia, a
nos distanciar cada vez mais de Deus porque ele se dirige a nós
através de um texto e não por meio de uma visão ou de um sonho.

6Hans Georg Gadamer, Truth and method, 2. ed. rev., tradução para o inglês
e revisão de Joel Weinsheimer; Donald G. Marshall (New York: Crossroad,
1990) [edição em português: Verdade e método, tradução de Flávio Paulo Meurer
(Petrópolis: Vozes, 2012)].
7Kevin Vanhoozer, Is there a m eaning to this text ? The Bible, the reader and the
morality o f literary knowledge (Leicester: Apollos, 1998), p. 341 [edição em por­
tuguês: Há um significado neste texto? Interpretação bíblica: os enfoques contemporâ­
neos, tradução de Álvaro Hattnher (São Paulo: Vida, 2005)].
130 Teologia da revelação

Tampouco isso nos leva a concluir que temos menos certeza sobre
o significado da comunicação que recebemos de Deus só porque
ela vem através de um texto e não de algum discurso direto.

A suficiência das Escrituras


Antes de discutir o que estou chamando de suficiência das Escrituras,
é preciso deixar claro que não há nada consolidado sobre os termos
usados para descrever essas doutrinas das Escrituras. Nenhum desses
termos está na Bíblia e, portanto, não estamos presos a eles. O que
importa é o conceito a que cada um se refere, e não o termo. O uso do
termo “suficiência” é bastante fluido. Desse modo, Francis Turretin,
no século 17, não usa o termo como tópico geral, preferindo, em
vez disso, falar da “perfeição das Escrituras” (E lenctic theology 1.1.6).
Repetindo: embora o uso das terminologias tenha variado, os
conceitos a que esses termos distintos se referem foram amplamente
aceitos pela maior parte dos cristãos através dos séculos.
Dizer que a Bíblia é “suficiente”, observa um autor, “dá o tom
ao coro formado pela igreja”.8 O termo repousa sobre aquelas
muitas partes das Escrituras que fazem referência à completude
da lei e da palavra de Deus. Portanto, Salmos 119.1 parte do prin­
cípio de que a lei de Deus informa tudo o que precisamos saber
para viver uma vida irrepreensível:

Bem-aventurados os que se conduzem com integridade,


os que andam na lei do Senhor.

Paulo diz em 2Timóteo 3.15 que as Escrituras “podem fazer-te


sábio para a salvação, pela fé que há em Cristo Jesus”, referindo-se

8G. C. Berkouwer, Holy Scripture, tradução para o inglês e edição de Jack B.


Rogers (Grand Rapids: Eerdmans, 1975), p. 305.
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 131

no contexto imediato sobretudo à maneira pela qual o Antigo


Testamento dá um testemunho completo de Jesus Cristo e
prepara para a fé nele. O trecho final do livro de Apocalipse
promete uma maldição divina sobre quem acrescentar ou subtrair
palavras ao livro (Ap 22.18,19). Essas palavras, colocadas não
apenas no final de Apocalipse, mas também depois do cânon do
Novo Testamento, e seguidas imediatamente não pela expectativa
de mais revelação verbal da parte de Deus, mas agora somente
pela volta de Jesus Cristo (v. 20), olha em retrospecto toda a
Escritura e a enxerga completa.
A confissão de que as Escrituras, enquanto revelação divina,
são suficientes para o conhecimento da salvação e de uma vida
justa era uma afirmação comum nos primeiros séculos da igreja.
Atanásio, bispo de Alexandria no quarto século, afirma que “as
Escrituras sagradas e divinamente inspiradas são suficientes para
a exposição da verdade”.9 Para Agostinho, cerca de oitenta anos
depois, “nas passagens que as Escrituras oferecem encontram-se
com clareza todos os preceitos referentes à fé e aos costumes, à
esperança e à caridade”.10 Essa convicção de que as Escrituras
contêm tudo o que é necessário para a fé e a vida cristã é às vezes
chamada suficiência “material” das Escrituras. Ela se manteve rela­
tivamente inalterada, embora alguns pais da igreja primitiva se
expressassem de duas maneiras, o que, no decorrer dos séculos,
tornou-se uma ameaça ao desenvolvimento sadio da convicção na
suficiência das Escrituras. Em primeiro lugar, havia uma aceitação

9Athanasius [Atanásio], Against the pagans I, Nicene and post-Nicene


fathers, edição de Philip Schaff; Henry Wace (Grand Rapids: Eerdmans, 1957),
vol. 4.
“Augustine [Agostinho], On Christian doctrine 2.9, Nicene and post-Ni-
cene fathers, edição de Philip Schaff (Grand Rapids: Eerdmans, 1956), vol. 2
[edição em português: A doutrina cristã, tradução de Ir. Nair Assis de Oliveira,
CSA (São Paulo: Paulus, 2002)].
132 Teologia da revelação

cada vez maior do que podia ser considerado tradição apostólica


transmitida por outras vias, e não pelas Escrituras. Basílio de
Cesareia menciona essa ideia no quarto século. Ele tinha em mente
práticas como fazer o sinal da cruz no batismo e orar voltado para
o leste.11 Em segundo lugar, a capacidade das Escrituras de ser
sua própria intérprete foi posta em dúvida. Às vezes, isso recebe
o nome de suficiência “formal” das Escrituras (em contraste
com a suficiência “material”) e se aproxima bastante da ideia
de clareza das Escrituras. Essa tendência começou por motivos
compreensíveis, quando se tornou necessário lidar com aqueles
que estavam tendendo para a heresia, não porque recorressem a
outras fontes, mas porque interpretavam as Escrituras de maneira
equivocada (e.g., ao dizer que a divindade de Jesus não era a
mesma do Pai). Recorreu-se então à tradição da igreja, não como
segunda autoridade ao lado das Escrituras, mas para que ela
reforçasse sua mensagem verdadeira.12
No decorrer da Idade M édia, predominava a perspectiva de
que as Escrituras bastavam em questões relacionadas diretamente
à salvação. Conforme disse o teólogo mais influente da época,

nBasil of Caesarea [Basílio de Cesareia], Concerning the Holy Spirit 66,


Nicene and post-Nicene fathers, edição de Philip Schaff; Henry Wace (Grand
Rapids: Eerdmans, s.d.), vol. 8.
120 exemplo mais citado dessa tendência é de Vincent de Lérins, no quin­
to século: “Encerrado o cânon das Escrituras, sendo ele abundante o bastan­
te para todos os propósitos, que necessidade há de adicionar-lhe a autoridade
da interpretação da igreja? A razão, é claro, é que, por sua própria profundida­
de, as Escrituras sagradas não são recebidas por todos em um único e mesmo
sentido, [...] [de modo que] deparamos com tantas interpretações quantos são
os homens”. Como se chega então à interpretação correta? Diz Vincent: “Na
Igreja Católica, deve-se ter .atenção especial para que nos atenhamos ao que
foi crido por toda parte, sempre e por todos os homens. Isso é verdadeiramen­
te, e com justiça, católico” (Vincent de Lérins, “The commonitory”, in: Early
M edieval theology, Library of Christian Classics, tradução para o inglês e edição
de George E. McCracken; Allen Cabaniss [London: SCM, 1957], vol. 9, p. 38).
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 133

Tomás de Aquino, “a verdade da fé é clara o suficiente no ensi­


no de Cristo e dos apóstolos”.13 Contudo, duas visões ganhavam
força: a de que o material apostólico sobre questões de prática da
igreja havia sido transmitido no decorrer do tempo à parte das
Escrituras, quer oralmente, quer por meio de práticas de costu­
mes, e também a noção de que a voz definitiva sobre a interpre­
tação das Escrituras não era a voz do Espírito que falava por ela,
e sim a voz do Espírito que falava através de um centro eclesiás­
tico em Roma, cuja autoridade era cada vez maior. No momento
em que essas práticas da igreja, não bíblicas e supostamente apos­
tólicas, passaram a afetar áreas diretamente associadas à salvação,
conforme aconteceu, a suficiência material das Escrituras passou
de fato a ser negada.
No auge da Reforma protestante, na primeira parte do século
16, houve uma forte reafirmação da doutrina da suficiência das
Escrituras. A primeira Confissão Helvética de 1536 apresenta um
exemplo típico desse compromisso renovado com a reformulação
completa da suficiência material das Escrituras para a vida da
igreja: “Cabe à Escritura bíblica [...] e tão-somente a ela lidar
com tudo o que serve ao verdadeiro conhecimento de Deus, ao
amor e a honra devidos a ele, bem como à verdadeira piedade e
à consecução de uma vida santa, honesta e abençoada”. O sexto
artigo dos Trinta e Nove Artigos da Igreja da Inglaterra diz
algo na mesma linha: “A Santa Escritura contém todas as coisas
necessárias à salvação: portanto, não se deve exigir de homem
algum que creia como artigo de fé em algo que nela não se encontre
nem por ela possa ser provado, nem que isso seja visto como
requisito ou como necessário à salvação”. A influente Segunda
Confissão Helvética, de 1566, que, a exemplo da primeira, é em

13Tomás de Aquino, Summa theologiae (London: Blackfriars, 1964), 2.2. q.l


a. 10 [edição em português: Suma teológica (São Paulo: Loyola, várias datas)].
134 Teologia da revelação

grande parte produto da pena de Heinrich Bullinger, da igreja


de Zurique, dá um passo a mais ao especificar que a suficiência das
Escrituras se estende a ponto de derivarmos dela “a reforma e
o governo das igrejas”. Uma característica particularmente dis­
tintiva da Reforma foi sua insistência na suficiência formal
das Escrituras. Calvino afirma essa ideia da seguinte forma: “A
suprema prova das Escrituras se estabelece reiteradamente na
pessoa de Deus falando por meio dela”.14 Para os reformadores,
as Escrituras não apenas continha de modo suficiente tudo o que
era necessário para o conhecimento da salvação e da vida piedosa,
mas também derivava sua autoridade não de algum indivíduo ou
instituição eclesiástica, mas unicamente de Deus, visto que ele
falou pelas Escrituras de maneira suficiente para que a aceitemos.
Expressando assim a suficiência das Escrituras fica evidente
que os teólogos da Reforma tinham o intuito de atingir os adver­
sários de ambos os lados. Contra os católicos romanos, os refor­
madores negavam que, para conferir autoridade à Escritura, o
Espírito Santo fala primordialmente por meio da instituição
oficial de ensino da igreja em Roma. Contra os anabatistas da
Reforma Radical, os reformadores negavam que a autoridade
das Escrituras deriva de seu uso por parte de certos indivíduos
que se dizem especialmente agraciados com o Espírito. Na reali­
dade, essas duas posições aparentemente distintas, a romana e a
radical, cometiam o mesmo erro básico de sujeitar as Escrituras
à autoridade de certos indivíduos. Em vez disso, os reformadores
insistiam que as Escrituras, cujo autor havia sido o Espírito Santo
no passado, derivam sua autoridade no presente do fato de que o

14John Calvin [João Calvino], Institutes o f the Christian religion, Library


of Christian Classics, edição de John T. McNeill, tradução para o inglês de
Ford Lewis Battles (Philadelphia: Westminster, 1960), vols. 20-21,1.7.4 [edi­
ção em português: João Calvino, Institutas da religião cristã, tradução de Waldyr
Carvalho Luz (São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1985)].
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 135

Deus Espírito Santo continua a transmitir nela, e através dela, a


mesma mensagem que um dia ele transmitiu.
A relação entre as Escrituras e o Espírito fica particularmente
clara na resposta de Calvino ao cardeal Jacopo Sadoleto, arcebis­
po de Carpentras, que havia escrito uma carta na qual conclama­
va de volta ao aprisco romano a cidade de Genebra: “Ao ver como
era perigoso jactar-se do Espírito sem a Palavra”, argumentou
Calvino, “[Deus] declarou que a igreja é, de fato, governada pelo
Espírito Santo, mas para que o governo não fosse vago ou instá­
vel, ele o vinculou à Palavra”. Calvino põe o papa e os anabatis-
tas juntos acusando-os de se gloriarem no Espírito de um modo
que tendia a “fazer naufragar e sepultar a Palavra de Deus”.15 De
fato, nos séculos seguintes outros movimentos aparentemente
distintos dentro do cristianismo fizeram o mesmo que Roma e
os anabatistas. Racionalistas como Spinoza situaram a obra do
Espírito na mente humana e na consciência. O influente teólogo
Friedrich Schleiermacher localizou-a no sentimento religioso de
dependência que a comunidade tem em relação a Deus. Os efei­
tos de cada uma dessas perspectivas ainda persistem, e todas têm
em comum a separação entre o Espírito e a Palavra: a busca da
orientação do Espírito não nas Escrituras e através dela, mas em
alguns indivíduos supostamente especiais, ou em algum aspecto
universal da humanidade. Disso sempre resulta a recusa em con­
fessar a suficiência das Escrituras.
À medida que continuamos a formular e a explicar a suficiên­
cia das Escrituras, conforme nos cabe fazer, esse contexto polê­
mico em que ela ganhou plena expressão não pode ser ignorado.
Se for, será distorcida a doutrina, porque sustentará algo diferente

15John Calvin; Jacopo Sadoleto, A reformation debate: Sadoletos letter to the


Genevans and Calvins reply, edição de John C. Olin (New York: Harper & Row,
1966), p. 60.
136 Teologia da revelação

que, de modo geral, vai além do que se pode sustentar de fato. É


preciso que fique claro a esta altura que a questão fundamental
em jogo na doutrina protestante da suficiência das Escrituras diz
respeito à natureza da atividade incessante do Espírito Santo em
relação à Escritura. Não se deve imaginar que a extensa discus­
são desses atributos doutrinários das Escrituras exalte, de algum
modo, a “Palavra” em detrimento do “Espírito”. Em vez disso, por
trás de toda a discussão desses atributos da Bíblia encontra-se a
convicção de que o Espírito opera integralmente nas Escrituras
e através dela, e que sua obra deve ser devidamente apresentada
e reconhecida. Pode-se até dizer que essas doutrinas protestan­
tes da Palavra são, na verdade, aspectos da doutrina da obra do
Espírito Santo.
Um século ou dois depois da Reforma, a declaração confes­
sional mais completa e madura sobre a suficiência das Escrituras
seria encontrada na Confissão de Fé de W estminster (1646):

Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas neces­


sárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é
expressamente declarado nas Escrituras ou pode ser lógica e clara­
mente deduzido dela. À Escritura nada se acrescentará em tempo
algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições
dos homens; reconhecemos, entretanto, ser necessária a íntima
iluminação do Espírito de Deus para a salvadora compreensão
das coisas reveladas na palavra, e que há algumas circunstâncias,
quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja, comuns às ações
e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz
da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras gerais da
palavra, que sempre devem ser observadas. (1.6)

Essa breve definição de suficiência é excelente por ser ousada


mas também cautelosa. Ela deixa claro o fato da suficiência e
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 137

especifica suas principais conseqüências com relação às tradições


e pretensas revelações posteriores. Leva em conta que nem toda
doutrina verdadeira pode ser lida diretamente nas Escrituras,
mas que algumas devem ser dela deduzidas através do raciocínio
moldado pela Bíblia (um exemplo clássico é a doutrina da
Trindade). Além disso, ela adverte com firmeza àqueles que
pensam que as Escrituras falam com clareza absoluta sobre todos
os pontos nos quais toca, e nesse sentido faz menção explícita da
ordem na adoração coletiva e no governo da igreja.
M uitos estudiosos sustentam que nos séculos 17 e 18 a
teologia protestante ortodoxa modificou bastante seu enten­
dimento das raízes da autoridade das Escrituras em relação à
posição da prim eira geração de reformadores e que a Confissão
de W estm inster é típica representante dessa mudança. O argu­
mento diz o seguinte: ao passo que os primeiros reformado­
res estabeleceram uma relação coerente entre as Escrituras e
seu papel nos propósitos divinos para a redenção da criação,
seus sucessores basearam a autoridade das Escrituras no fato
de que ela havia sido inspirada por Deus e, assim, afastaram-
-na um pouco de alguns aspectos centrais da ação salvífica de
Deus no mundo.
Podem-se fazer duas observações a esse respeito. Em primeiro
lugar, uma vez que Deus inspirou as Escrituras, de acordo com
2Timóteo 3.16, justamente com o propósito de ensinar a respeito
de Cristo e de preparar as pessoas na justiça, não está claro de modo
algum que vincular a autoridade das Escrituras à inspiração faça
com que ela se distancie acentuadamente do cerne dos propósitos
salvíficos de Deus. Em segundo lugar, a citação da Confissão de
Westminster acima baseia a autoridade das Escrituras sobretudo
em sua natureza de Palavra de Deus, e não diretamente em sua
inspiração (lembrando, é claro, que entender as Escrituras como
“Palavra”, no sentido dado nos dois capítulos anteriores deste
138 Teologia da revelação

livro, é algo que não se pode dissociar da compreensão que se tem


dela como “soprada”por Deus).16
As exposições bíblica e teológica dos dois capítulos anteriores
devem agora ser retomadas orientando-nos no modo como deve­
mos expressar a suficiência das Escrituras. Aqueles capítulos refe-
riam-se à Escritura como “livro da aliança” e meio pelo qual Deus
estende sua ação ao mundo e, portanto, estende a si mesmo, a
fim de agir se comunicando conosco. À luz disso, eu definiria a
suficiência das Escrituras do seguinte modo: em fa c e dos meios p e ­
los quais D eus escolheu se relacionar com as Escrituras, ela é um m eio
suficiente p elo qual ele continua a se apresentar a nós p a ra que possa­
mos conhecê-lo, repetindo através dela a prom essa da aliança que ele
cum priu em Jesu s Cristo. Embora eu tenha acabado de defender os
teólogos posteriores à Reforma da acusação de que sua doutrina
das Escrituras se distanciou bastante do pensamento dos refor­
madores, pretendo com essa definição de suficiência colocar as
Escrituras em relação direta com a ação salvífica de Deus com
mais clareza se comparada com algumas formulações de suficiên­
cia dos séculos 17 e 18.
À semelhança de toda definição doutrinária, a que acabo de
oferecer é importante pelo que não afirma e pelo que não faz, mas
também pelo que faz. Ela não substitui uma relação viva e dinâmica
com o Senhor pelo estudo de um livro. Em vez disso, afirma que o
Senhor que deseja criar relacionamentos vivos com as pessoas esta­
belece tais relacionamentos através das Escrituras. Tampouco enfa­
tiza de modo obsessivo o estudo das Escrituras, tirando do Espírito
Santo o lugar que ele deve ocupar na vida do crente, porque não

16A descrição mais detalhada dos teólogos protestantes ortodoxos posterio­


res à Reforma sobre esse tópico encontra-se em Richard Muller, Post-Reformation
Reformed dogmatks, que os defende da acusação de terem abandonado, em larga
medida, a posição defendida pelos antigos reformadores.
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 139

exclui a necessidade de que o conteúdo material e suficiente das


Escrituras penetre em nossa mente e coração conduzindo-nos à
confiança salvadora em Cristo pela iluminação do Espírito.
Tampouco a suficiência proclama que as Escrituras respondem
a todas as perguntas que o crente talvez queira lhe fazer sobre
assuntos relacionados à igreja e à vida. Além disso, o fato de que as
Escrituras tocam numa questão não significa que, automaticamente,
ela discorra com grande clareza sobre o assunto. H á muita coisa
sobre o governo da igreja, por exemplo, que inúmeros evangélicos
têm em alta conta, embora muitas vezes não haja consenso entre
eles, porque se trata de coisas que não podem simplesmente ser
provadas de forma incontestável por uma ou outra parte.
Tampouco é o caso de que a suficiência das Escrituras im pli­
que a ideia de que a interpretação bíblica seja simples. Uma dou­
trina correta e sadia nem sempre pode ser derivada com facilidade
das páginas das Escrituras; pelo contrário, exige esforço. As bata­
lhas da igreja primitiva para definir e defender a pessoa de Cristo
como plenamente divina e plenamente humana, e para formular
a doutrina da Trindade, são claros testemunhos dessa dificuldade.
O Senhor nos deu umas Escrituras em que sua Palavra primor­
dial está clara para nós, mas que também tem profundidades com
as quais temos de lidar.
A suficiência das Escrituras não exclui a necessidade de a
igreja contemporânea aprender com as tradições de fé e prática
da igreja primitiva e de lhes dar toda a importância. Discorrerei
com mais detalhes sobre a relação das Escrituras com a igreja e
com a tradição no próximo capítulo. Contudo, por enquanto, deve­
mos observar que as novas gerações de cristãos não abordam
as Escrituras sem ser influenciadas pelo passado. Quer tenham
consciência disso, quer não, elas abordam as Escrituras com óculos
cujas lentes foram coloridas pela herança de séculos de crenças
e práticas. Sempre que as Escrituras tiverem plasmado com
140 Teologia da revelação

fidelidade essa herança, ela se mostrará suficiente outra vez como


meio pelo qual Deus fala. Sempre que essa herança trouxer
consigo elementos puramente humanos e, portanto, não bíblicos,
a suficiência das Escrituras clamará para que todas as crenças e
práticas que mais estimamos — sobretudo aquelas que usamos
para balizar nossa subcultura cristã em relação a outras — sejam
por nós submetidas à correção pela voz de Deus nas Escrituras.
Porque as Escrituras são meios suficientes pelo qual o Senhor
pode nos conduzir a uma fidelidade maior à aliança.

A clareza das Escrituras


A doutrina da clareza das Escrituras exige uma exposição espe­
cial,17 porque muitas vezes foi ampliada para afirmar mais do que
pode ser afirmado, tanto por parte dos que a situam com gran­
de entusiasmo no centro de sua teologia quanto por aqueles que
gostariam de dispensá-la. Ela não é, conforme veremos, uma ino­
vação da Reforma, embora tenha ganhado destaque como conse­
qüência dela, sendo aplicada à vida e ao pensamento cristãos com
vigor renovado.
A grande declaração histórica da clareza das Escrituras é feita
por Martinho Lutero em Da vontade cativa (em latim, D e servo
arbitrio), publicado em 1525. Trata-se de uma resposta direta à
diatribe O liv re arbítrio (em latim, D e libero arbitrio sive collatiò),
escrito um ano antes pelo estudioso Erasmo de Roterdã.18 A
doutrina da clareza das Escrituras estava no centro da controvérsia
teológica de Lutero com a igreja de Roma. Ele contestava a

lyO term o mais antigo para essa doutrina era “perspicuidade”das Escrituras,
mas ele é muitas vezes substituído pelo sinônimo “clareza” (agora mais claro!).
18Veja uma exposição útil e mais extensa desse debate em Mark D.
Thompson, A dear andpresent Word: the darity o f Scripture (Leicester/Downers
Grove: Apollos/IVP, 2006), p. 143-50.
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 141

ideia de que o magistério da igreja tivesse a palavra final sobre


a interpretação da Bíblia e insistia, em vez disso, que o grande
intérprete das Escrituras é o Espírito Santo, que fala por meio
dela. Esse é o significado da breve expressão lapidar “as Escrituras
são sua própria intérprete”. Trata-se de uma declaração que não
retira Deus de cena; pelo contrário, vai em busca de sua declaração
fidedigna sobre o significado de sua palavra que ocorre pela palavra
escrita e não por meio de mestres apontados pela igreja que fazem
declarações supostamente decisivas acerca do significado das
Escrituras sob a direção do Espírito Santo. É claro que Deus usa
mestres da igreja para guiar os crentes à verdade da Bíblia.Todavia,
esses mestres são criaturas finitas e pecadoras e não podem ser o
meio primordial do pronunciamento que traz a autoridade divina
sobre o significado das Escrituras.
Erasmo se opôs à doutrina da clareza das Escrituras em
razão de evidências da própria Escritura: ela fala de um Deus
transcendente que, nas Escrituras, decide ocultar muitas coisas.
Ele disse ainda que havia tantas divergências em torno da
interpretação correta das Escrituras que não era possível que
ela fosse clara como Lutero havia afirmado.19 Em resposta,
Lutero fez uma distinção importante entre o que ele chamava
de clareza “interna” e clareza “externa” das Escrituras. Inúmeras
discussões posteriores a respeito da clareza das Escrituras caíram
na obscuridade por não levar em conta essa distinção. Clareza
in tern a refere-se ao que acontece internamente à pessoa que lê ou
ouve a Bíblia quando o Deus Espírito Santo abre sua mente para
compreendê-la. H á respaldo nas Escrituras para isso em textos
como iCoríntios 2.14: “O homem natural não aceita as coisas
do Espírito de Deus, pois lhe são absurdas; e não pode entendê-
-las, pois se compreendem espiritualmente”. A clareza externa das

19Ibidem, p. 144-5.
142 Teologia da revelação

Escrituras é a afirmação que a doutrina faz objetivamente sobre si


mesma: “Tudo o que está nas Escrituras é apresentado sob a mais
clara luz pela Palavra e proclamado ao mundo todo”.20 Em outras
palavras, Erasmo se equivocava quando dizia que a multiplicidade
de interpretações, inclusive entre os que apoiavam a doutrina da
clareza das Escrituras, mostrava que a doutrina estava errada. A
finitude humana e particularmente o pecado são as razões pelas
quais não compreendemos as Escrituras e não alguma falta de
clareza que se possa atribuir a ela.
Lutero não vê problema algum em reconhecer que algumas
partes das Escrituras continuam obscuras para nós, mas insiste que
“se as palavras estão obscuras em um lugar, estão claras em outro”. É
importante observar que a base dessa convicção é totalmente teo­
lógica e cristocêntrica: "... que verdade solene podem as Escrituras
ainda ocultar, agora que os selos foram rompidos, a pedra foi rolada
da entrada do sepulcro e o maior de todos os mistérios veio à luz
— Cristo, o Filho de Deus, tornou-se homem, Deus é Três em
Um, Cristo sofreu por nós e reinaremos para sempre?”. Cristo é
a suprema revelação da natureza e dos propósitos divinos; ele não
respondeu a todas as perguntas que se fizeram sobre Deus, mas
revelou muitas coisas com grande clareza. A Bíblia, enquanto
palavra escrita de Deus, deve compartilhar dessa clareza, uma vez
que nosso único acesso à revelação de Deus em Cristo ocorre por
meio das Escrituras, que falam dele e através das quais ele também
continua a falar. Portanto, nada importante para o evangelho está
contido em uma passagem obscura que não tenha sido procla­
mado claramente em outro lugar. Para Lutero, negar isso é não

20Martin Luther [Martinho Lutero], The bondage o f the will, tradução de


J. I. Packer; O. R. Johnston (Edinburgh: James Clarke, 1957), p. 74 [edição em
português: “Da vontade cativa”, in: Obras selecionadas: debates e controvérsias (São
Leopoldo: Sinodal, s.d.), vol. 4],
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 143

apenas se embrenhar em debates teológicos em torno de tópicos


relativamente insignificantes como também “retirar Cristo das
Escrituras”.21 A doutrina é muitas vezes defendida por meio de
referências a versículos isolados como Salmos 119.130:

A exposição das tuas palavras concede luz,


dá entendimento aos simples.

Contudo, versículos isolados como esse dão expressão apenas


para as bases bíblico-teológicas mais profundas do perfil da dou­
trina de Lutero.
Conforme Lutero reconheceu, o fato é que embora algumas
coisas tenham sido reveladas, nem tudo nos foi totalmente exposto
nas Escrituras. É o que diz Deuteronômio 29.29: “As coisas enco­
bertas pertencem ao Senhor, nosso Deus, mas as reveladas perten­
cem a nós e a nossos filhos para sempre, para que obedeçamos a
todas as palavras desta lei”. Isso continua sendo verdade mesmo em
estágios posteriores e mais desenvolvidos da história da autorreve-
lação divina. As relações entre as três Pessoas da Trindade, e a união
das naturezas divina e humana de Cristo, são exemplos de questões
teológicas não reveladas nas Escrituras de um modo que responda
a qualquer pergunta que possamos fazer a seu respeito. Mas, argu­
menta Lutero em oposição a Erasmo, isso não prova a obscuridade
das Escrituras. Em vez disso, Deus quis nos ensinar claramente
nas Escrituras que essas coisas são assim, mas não ensinar como são.
Dizer que as Escrituras são claras não é dizer que ela explica exaus­
tivamente todos os assuntos nos quais toca, porque Deus obvia­
mente determina que há coisas das quais não precisamos saber.22
Esse é o ponto central da resposta veemente de Lutero a Erasmo.

21Ibidem, p. 71.
22Ibidem, p. 73.
144 Teologia da revelação

Podem-se encontrar exemplos dessa formulação completa da


doutrina da clareza das Escrituras nos textos da igreja primitiva.
Agostinho tem uma declaração célebre: "... quase nada sobressai
nessas obscuridades que não esteja mais claramente expresso
em outro lugar”.23 De igual modo, um bispo do segundo século,
Ireneu de Lião, dizia que o princípio pelo qual as Escrituras
devem ser interpretadas é o “cânon da verdade”. Pode parecer que
isso submete as Escrituras a um princípio de interpretação fora
dela, deixando assim subentendida sua obscuridade em pontos
importantes. Todavia, não era essa a posição de Ireneu, já que,
para ele, esse “cânon” consistia em um resumo da mensagem das
Escrituras, e não em uma regra externa que lhe era imposta.24
Não obstante, ao longo dos primeiros cinco séculos da igreja,
a tendência cada vez mais freqüente foi a negação da clareza das
Escrituras. Observamos anteriormente que, nas disputas teológi­
cas, conforme disse um autor numa frase que ficou famosa, apela­
va-se “àquilo em que se cria por toda parte, sempre, por todos os
homens”.25 Isso, em si mesmo, não constitui uma atitude ilegíti­
ma, e era compreensível que fosse adotada como estratégia práti­
ca no combate aos que defendiam posições heréticas, não porque
criticassem abertamente as Escrituras, e sim algumas passagens
dela. Contudo, sem ressalva alguma, esse tipo de apelo à autorida­
de do magistério universal (católico) da igreja para interpretação
das Escrituras evoluiu com o tempo, consolidando a igreja roma­
na (“católica”) como guardiã autoproclamada e árbitra do signifi­
cado das Escrituras.

23Agostinho,ví doutrina cristã, 2.6.8.


24Veja J. N. D. Kelly, Early Christian doctrines, 5. ed. rev. (London: A. & C.
Black, 1977), p. 39 [edição em português: Patrística: origem e desenvolvimento das
doutrinas centrais daf é cristã, tradução de Márcio Loureiro Redondo (São Paulo:
Vida Nova, 1994)].
25Vincent de Lérins, “Commonitory”, p. 38.
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 145

Analisando-se o período que se seguiu à Reforma, costuma-


-se dizer que a doutrina da clareza das Escrituras passou por um
desenvolvimento importante (e indesejável) da forma expressa
por Lutero. A acusação é de que a ênfase na clareza da mensagem.
havia se transformado na visão de que, conforme disse um de seus
principais proponentes, a clareza referia-se sobretudo às “palavras
das Escrituras, particularmente em sua função semântica”.26
Trata-se de uma questão importante e que deve ser discutida,
pois em muitas áreas de doutrina, tal como o apoio à centralidade
da clareza, suficiência e autoridade das Escrituras, o pensamento
evangélico contemporâneo é descendente direto da doutrina pro­
testante ortodoxa em sua versão pós-Reforma. Se a ideia de uma
mudança de conteúdo entre os reformadores e seus sucessores
nos dois séculos seguintes estiver correta, segue-se que a doutrina
evangélica das Escrituras na forma em que foi herdada pode ser
descrita de modo convincente como um tipo de aberração no que
diz respeito ao protestantismo autêntico da Reforma. No entanto,
uma leitura cuidadosa dos principais teólogos tidos como suspeitos
de introduzir essa mudança revela que a acusação é injusta. Por
exemplo, no século 17, Francis Turretin falava da clareza dos
“sublimes mistérios” revelados nas Escrituras. De igual modo,
a Confissão de Fé de Westminster, escrita cerca de trinta anos
antes da grande obra de Turretin, afirma que aquilo que está claro
nas Escrituras são “coisas que precisam ser conhecidas [...] para
a salvação” (1.7). A ênfase teológica da doutrina da clareza das
Escrituras continuava no conteúdo semântico da revelação divina.
No entanto, é verdade que houve uma ênfase com plem entar
dirigida por autores dos séculos 17 e 18 à questão das palavras
das Escrituras. Como observou um dos principais comentaristas
da teologia reformada da época, a conclusão lógica foi que pelo

26Berkouwer, Holy Scripture, p. 272-5.


146 Teologia da revelação

menos os temas bíblicos cruciais “teriam de estar gramaticalmente


claros” para que se pudesse dizer que uma parte das Escrituras
iluminava outras sem que para isso fosse preciso apelar à igreja
como autoridade decisiva.27 Não se trata apenas de um ponto de
lógica geral, mas também de parte da lógica do caráter teológico
das Escrituras em relação a Deus, conforme mostraram os dois
últimos capítulos. A li dissemos que a Escritura é mais bem
concebida em termos gerais como ato de fala de Deus, da promessa
de sua aliança registrada por escrito, de tal modo que encon­
trar as Escrituras é encontrar a Deus em ação. A expressão verbal
dessa ação divina é um aspecto vital dela e não acidental; não é
uma casca que possa ser descartada para que se revele o suposto
núcleo. Uma aliança, ou uma promessa, é o que é unicamente em
virtude das palavras com as quais é proferida. Portanto, afirmar
que a m ensagem é clara implica dizer alguma coisa sobre a clareza
das palavras. Se imaginarmos poder falar da clareza da mensagem
sem fazer também afirmações sobre a clareza semântica das
palavras, cometeremos o erro de imaginar que a linguagem das
Escrituras funciona de uma maneira que contraria a natureza da
linguagem que nos foi dada por Deus, contrariando também o
testemunho constante das Escrituras de que confiar nas palavras
que Deus proferiu é, em si mesmo, confiar em Deus.
E claro que sempre houve a possibilidade de que uma ênfase
doutrinária complementar em palavras específicas das Escrituras
pudesse obscurecer o foco na clareza da mensagem que tais pala­
vras transmitem, e não há dúvida de que isso aconteceu algumas
vezes. Contudo, é importante compreender o clima teológico em
que trabalhavam os tçólogos protestantes ortodoxos dos séculos
17 e 18. Os ataques às doutrinas das Escrituras se tornaram cada
vez mais pormenorizados e sofisticados durante esse período. Eles

27MulIer, Post-Reform ation R eform ed dogmatics, vol. 2, p. 341.


Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 147

tinham, necessariamente, de defender suas doutrinas de forma


igualmente detalhada, para evitar que fossem acusados de evi­
tar as disputas. Infelizmente, conforme costuma acontecer, seus
argumentos polêmicos foram tratados como se fossem os pon­
tos positivos centrais de suas doutrinas.28 Não obstante, o juízo
mais convincente sobre a teologia protestante ortodoxa poste­
rior à Reforma, e sobre sua doutrina das Escrituras, insiste que
— embora a forma na qual a teologia era escrita tenha mudado
bastante, passando a ser bem mais sistematizada — o conteúdo
doutrinário básico da Reforma foi preservado.29
Tendo em vista essa revisão histórica, é importante refle­
tir sobre o que não está implicado na doutrina da clareza das
Escrituras. Isso nos ajudará, em breve, a expressar a ideia central
do que de fato ela implica.

A pregação e uma Bíblia clara


Acima de tudo, a doutrina não implica que pregar seja desneces­
sário. Algumas vezes se afirma com ironia que as igrejas que mais
defendem a clareza das Escrituras são também aquelas que põem
a pregação no centro de suas reuniões. Acredita-se que essa ênfase
na pregação seja uma espécie de negação da crença na clareza das
Escrituras. Afinal de contas, se as Escrituras são tão claras, por
que a necessidade de explicá-las em público com tanta frequência
e persistência?
Contudo, a pregação bíblica expositiva, na verdade, presume,
mais do que nega, a clareza das Escrituras. Todo aquele que prega

28Richard Muller crê que isso tenha ocorrido particularmente na segunda


metade do século 17 (ibid., p. 123-4).
29Veja Martin I. Klauber, “Continuity and discontinuity in Post-
Reformation theology: an evaluation of the Muller thesis”, Journal o f the
Evangelical Theological Society 33 (1990), p. 467-75.
148 Teologia da revelação

expositivamente sabe que seu sermão pode ser julgado como fiel
ou infiel por seus ouvintes, em função da exposição que se faz das
Escrituras, à medida que eles discernem por si mesmos se seu
ensino é ou não justificado pelo texto bíblico. Seu apelo não é
“meu ensino é verdadeiro porque fui designado oficialmente como
pregador”, nem tanto “meu ensino é verdadeiro porque estou cheio
do Espírito e sou um pregador ungido por ele”. Esses dois fatores
podem acrescentar peso a seu ensino, mas, no fim das contas, a
alegação implícita de quem faz pregação expositiva é “meu ensino
é verdadeiro porque pode-se ver nitidamente que aquilo que estou
dizendo está em harmonia com o sentido das Escrituras”.
Não há dúvida de que a doutrina da clareza das Escrituras
muitas vezes é objeto de descrédito não tanto por causa das
dúvidas teológicas que suscita, mas porque tem sido invocada por
certos líderes de igreja e pregadores para invalidar todo e qualquer
questionamento de suas posições: “O que digo está na Bíblia, e
a Bíblia é a palavra clara de Deus; portanto, estou certo, e quem
propuser outra visão bíblica estará equivocado”; essa é a lógica
implícita. É claro, portanto, que a doutrina da clareza das Escrituras
deve levar a uma atitude bem diferente e de maior humildade por
parte de pregadores e de professores. Uma vez que as Escrituras
falam com clareza a todos, e os pregadores não estão menos sujeitos
do que os outros à cegueira espiritual em relação ao ensino divino,
a postura correta do pregador consiste em se manter aberto ao
desafio e à correção dos demais que, a exemplo do que ele faz, leem
a mesmas Escrituras com iluminação vinda do mesmo Espírito.
Além disso, a doutrina da clareza das Escrituras não afirma
ter automaticamente poder para explicar as Escrituras sempre que
um trecho for lido. Uma função fundamental da boa pregação
expositiva consiste em explicar o significado e a força de uma
passagem quando interpretada de modo adequado à luz de seus
diferentes contextos: (1) o contexto literário imediato; (2) o
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 149

contexto dentro do desenrolar da história da revelação divina; e (3)


o contexto da Bíblia em geral. Tal pregação, uma vez mais, supõe
que a doutrina da clareza das Escrituras se aplica à Escritura em
geral e não a cada parágrafo. O pregador não está fazendo uso
das Escrituras de um modo que o ouvinte, p o r definição, também
não possa fazer, mas isso seria fato se o pregador apelasse acima
de tudo a uma unção espiritual especial ou ao cargo que ocupa
na igreja. Ele está fazendo algo que qualquer cristão que leia as
Escrituras, em princípio, também poderia fazer, conquanto tenha
tempo e conhecimento suficiente da Bíblia.

Interpretações distintas e uma Bíblia clara


Já vimos como Lutero lidou com a declaração de Erasmo segundo
a qual a ampla variedade de interpretações da Bíblia postulada
por diferentes pessoas mostra que a doutrina da clareza das
Escrituras é indefensável. Lutero disse que a doutrina, a rigor,
refere-se à Escritura à medida que transmite sua mensagem, e não
ao entendimento claro das Escrituras, que ocorre somente pela
iluminação divina. Contudo, a realidade das diversas interpretações
das Escrituras suscita dúvidas que temos de enfrentar.
Inicialmente, devemos observar que a unanim idade da inter­
pretação da Bíblia ao longo da história é notável. No tocante às
questões fundamentais acerca do caráter de Deus, da identidade de
Jesus Cristo e da natureza da ação salvífica, os cristãos, no decorrer
da história, sempre estiveram unidos, apesar das divergências de
alguns em direções diferentes. Na teoria, é possível, conforme
dizem os críticos, “fazer a Bíblia dizer qualquer coisa”, mas o fato é
que uma grande unanimidade em torno de tópicos fundamentais
sempre foi característica da história da igreja cristã. Contudo, o
que devemos dizer das discordâncias entre cristãos que afirmam
a clareza das Escrituras? Uma solução óbvia é insistir sempre
que ela é clara no tópico em questão, mas que o problema reside
150 Teologia da revelação

inteiramente na fragilidade do entendimento humano. Parte-se


do pressuposto de que determinado tópico das Escrituras será
esclarecido através de orações e estudos contínuos, de modo que
a unanimidade virá à tona.
M uitas vezes é isso mesmo o que acontece, porém a doutrina
da clareza das Escrituras não implica que seja sempre assim. O
que dizer, por exemplo, das discordâncias entre os evangélicos
conservadores em torno do batismo infantil de filhos de crentes?
Esse é um exemplo clássico de um tópico acerca do qual há tempos
não há unanimidade entre os crentes que compartilham de um
grau elevado de concordância doutrinária. A doutrina da clareza
das Escrituras não implica que, na Bíblia, Deus tenha sempre
pretendido ensinar de forma clara todos os aspectos de todos os
tópicos por ela mencionados. Deus ordena a seus seguidores que
façam discípulos e os batizem (M t 28.16-20). Porém, a rigor, as
Escrituras não apresentam nenhuma ordem clara segundo a qual
os filhos dos crentes devam ou não ser batizados. Alguns dizem
que a natureza da nova aliança em Cristo, como cumprimento da
aliança abrangente de Deus com seu povo, significa que os filhos
dos crentes devem ser batizados. Outros concluem com base em
relatos de adultos batizados nas narrativas bíblicas, mediante
profissão de fé em Cristo, que os filhos dos crentes não devem ser
batizados. Alguns textos referem-se didaticamente ao batismo,
porém o batismo de crianças não é o tema principal do tópico
em questão (e.g., C l 2.12); outro texto faz referência ao benefício
espiritual herdado pelos filhos de um casal crente, mas não faz
referência inequívoca ao batismo (ICo 7.14).
E tentador supor que o apoio à doutrina da clareza das Escrituras
deve nos instar a buscar a unanimidade convencendo outros com
base em nossa interpretação e abrindo-nos à correção por terceiros.
Também é teoricamente possível, debaixo da ação de Deus, que o
cristão com uma doutrina evangélica conservadora das Escrituras
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 151

descubra um dia que tal unanimidade na questão do batismo infantil


pode ser viabilizada. Mas tal expectativa não é requerida pela doutri­
na da clareza das Escrituras. É perfeitamente possível afirmar a dou­
trina como Lutero fez, e ainda dizer que Deus, nas Escrituras, não
pretendeu ensinar definitivamente se o batismo infantil dos filhos
dos crentes é apropriado. Levamos longe demais a doutrina da cla­
reza das Escrituras quando supomos que haverá nela ensino inequí­
voco sobre cada tópico mencionado. Quando a doutrina é ampliada
dessa maneira, por baixo disso sempre há um modelo de Escritura
em ação que a vê principalmente como um compêndio de ensino di­
vino do qual se pode extrair a doutrina e costurá-la de modo sistemá­
tico. Isso resulta no desejo de buscar instrução clara sobre qualquer
tópico referido na Bíblia porque a “instrução” é o modelo controla­
dor da natureza das Escrituras. O modelo proposto neste livro não
nega que ela contenha uma grande quantidade de instruções divinas,
mas é um modelo mais rico de Escritura como ato de comunicação
divina em que Deus nos apresenta sua promessa de aliança realizada
em Cristo. O ponto central da doutrina da clareza das Escrituras diz
respeito sobretudo a esse ato divino.

Definindo a clareza das Escrituras


Com isso, temos uma perspectiva prática a partir da qual pode­
mos considerar duas definições evangélicas recentes sobre clareza
das Escrituras, as quais cito aqui (grifo meu):

... dizer que as Escrituras são claras é dizer que a Bíblia está escrita
de modo tal que seus ensinam entos podem ser compreendidos por
todos os que a lerem buscando o auxílio de Deus e dispondo-se a
acatá-la (Wayne Grudem).30

30Wayne Grudem, Systematic theology: an introduction to biblical doctrine


(Leicester: IVP, 1994), p. 108 [edição em português: Teologia sistemática, tradu­
ção de Norio Yamakami et al. (São Paulo: Vida Nova, 1999), p. 73].
152 Teologia da revelação

Clareza das Escrituras é uma qualidade do texto bíblico que, como


ato de comunicação divino, assegura que seu significado esteja
acessível a todos os que se aproximam pela fé (MarkThompson).31

Em termos gerais, trata-se de duas reafirmações muito boas


da doutrina tradicional. Sobretudo a última apresenta o tipo de
compreensão da natureza das Escrituras formulada neste livro.
Todavia, elas diferem uma da outra: o uso que Thompson faz do
termo “significado”, depois de se referir à Escritura como “ato de
comunicação divino”, permite que se mantenha corretamente
a atenção sobre a clareza da presença dinâmica de Deus nas
palavras das Escrituras e através delas. Assim se estabelece um
contraste com o termo “ensinamentos” usado por Grudem, de
natureza mais geral e de tendência mais abrangente.
Ambas diferem ainda de duas maneiras em relação à defi­
nição clássica do século 17, de autoria de Francis Turretin, que
começa sua discussão sobre doutrina situando-a em seu forma­
to habitual de pergunta e resposta. Desse modo, temos: “Seriam
as Escrituras de tal modo perspícuas [claras] nas coisas necessá­
rias à salvação, que podem ser compreendidas pelo crente sem
a ajuda externa da tradição oral ou da autoridade eclesiástica?
Declaramos, contra os papistas, que sim”. E ele resume: “A ques­
tão se resume à possibilidade de as Escrituras serem tão claras
nas coisas essenciais à salvação [...] que, sem o auxílio externo da
tradição ou do julgamento infalível da igreja, possam ser lidas e
compreendidas com proveito pelo crente. Os papas negam essa
possibilidade; nós a afirmamos”.32

31Thompson, Clear andpresent Word, p. 169-70.


32Francis Turretin, Institutes o f elenctic theology, tradução para o inglês de
George Musgrave Giger, edição de James T. Dennison, Jr. (Phillipsburgh:
Presbyterian & Reformed, 1992), vol. 1: First through tenth topics, 2.17.1,2.17.7.
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 153

Em primeiro lugar, em contraste com a definição de Grudem,


que fala da clareza dos “ensinamentos” das Escrituras, e em contras­
te com Thompson, que faz referência a seu “significado”, Turretin
limita a clareza das Escrituras a coisas necessárias e essenciais à sal­
vação. Uma limitação semelhante fica evidente na declaração de
clareza das Escrituras da Confissão de Fé de Westminster, que
começa com uma afirmação inequívoca do que ela significa:

Nas Escrituras não são todas as coisas igualmente claras em si,


nem do mesmo modo evidentes a todos; contudo, as coisas que
precisam ser obedecidas, cridas e observadas para a salvação, em
um ou outro passo das Escrituras são tão claramente expostas
e explicadas, que não só os doutos, mas ainda os indoutos, no
devido uso dos meios ordinários, podem alcançar uma suficiente
compreensão delas. (1.7)

Em segundo lugar, Turretin especifica o objetivo polêmico


da doutrina. Ele está afirmando que Deus fala pelas Escrituras
sobre a salvação em Cristo de um modo tão claro e que auten­
tica a si mesmo, que a mensagem não precisa ser ilum inada nem
validada por outro indivíduo ou instituição para que seja enten­
dida e aceita. A declaração positiva de clareza das Escrituras é
nitidamente definida dentro de lim ites próprios, no momen­
to em que esse contexto polêmico é explicitado. Sem esse con­
texto em nossa definição de clareza bíblica, corremos o risco
de dar a impressão de que o crente, sem referência alguma à
pregação, ao ensino ou à boa erudição bíblica e, portanto, pri­
vado das tradições da interpretação bíblica mediada por esses
canais, é capaz de compreender as Escrituras por conta própria.
O Espírito pode, mediante sua graça, conceder-lhe essa capaci­
dade, mas Deus não promete que certamente o fará. A doutrina
deve servir principalmente como rejeição da ideia de que Deus
154 Teologia da revelação

fala de modo especial através de uma pessoa cheia do Espírito,


ou através do magistério da igreja, desse modo dando sentido à
sua palavra escrita. Por essa perspectiva, a relevância da doutri­
na é indiscutível.
Algumas pessoas leem a Bíblia sem explicação de terceiros
e compreendem perfeitamente o evangelho de Cristo. Outras,
porém, pedem a ajuda de Deus e leem as Escrituras com espírito
aberto, mas descobrem que o evangelho de Cristo não as atinge
com clareza se não houver um mestre que lhes ensine o evan­
gelho das Escrituras e mostre como lê-la (cf. A t 8.30-35). Essas
observações não são evidências favoráveis e tampouco contrá­
rias à clareza das Escrituras, a menos que o indivíduo tenha já
desde o início uma ampla compreensão dela. Nessa perspectiva,
as definições de Grudem e Thompson correm o risco de propor
uma situação individualizada demais, supondo que a situação
mais comum seja alguém ler a Bíblia por conta própria e enten­
der a maior parte dos parágrafos.
Contudo, quando afirmamos a doutrina da clareza das Escri­
turas, afirmamos algo não só mais geral mas também mais pro­
fundo. Em outros termos (e aqui ofereço minha definição pessoal
de clareza das Escrituras, admitindo ser mais longa), estamos
afirmando que:

As Escrituras são as palavras escritas da Palavra viva,


do ato divino de comunicação, e o Espírito, que é seu
autor, decide continuar a falar, sobretudo, diretamente
através dela.
• Portanto, temos razão para confiar que Deus falou nas
Escrituras e continua a falar de modo claro o bastante para
basearmos'nosso conhecimento salvador sobre ele e sobre
nós mesmos, e sobre nossas crenças e ações, somente no
conteúdo das Escrituras, sem validar, em última análise,
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 155

esse nosso conhecimento ou nossa confiança apelando a


um indivíduo ou instituição.33

Nosso objetivo é fazer hoje uma nova declaração nos mol­


des da formulação de Turretin. Concordamos com Turretin que a
doutrina decorre da natureza das Escrituras como livro da alian­
ça: “[As Escrituras] estão para nós no lugar de um testamento, de
um contrato de aliança ou de um edito de um rei, que deve ser
perspícuo, não obscuro”.34 Era isso que Lutero pretendia com sua
afirmação de que, por causa de Cristo, não há nada ensinado em
um trecho obscuro das Escrituras que também não seja ensinado
com clareza em outro trecho.
A igreja pode passar por uma revolução e, às vezes, deve mes­
mo passar, e o indivíduo pode ser chamado ao arrependimento e à
fé simplesmente porque Deus, através das palavras das Escrituras,
apresentou-se de modo claro como um Deus a ser conhecido e
em quem se pode confiar. Isso se aplica quer o sentido do texto
seja compreendido por pessoas que leem as Escrituras por con­
ta própria, quer sejam orientadas por um mestre mais experiente
com o mesmo fim. Esse é o foco dinâmico da doutrina da clareza
das Escrituras, que decorre de sua relação integral com as ações
salvíficas de Deus em Cristo.

A autoridade das Escrituras


A natureza da autoridade bíblica
A autoridade da Bíblia costuma ser a primeira alegação que os
evangélicos conservadores gostam de fazer sobre as Escrituras.

33Veja uma afirmação contemporânea semelhante com relação à perspectiva


reformada das Escrituras em Anthony C.Thiselton,iVín; horizons in hermeneutics
(London: HarperCollins, 1992), p. 184-5.
34Turretin, Elenctic theology, 2.17.11.
156 Teologia da revelação

É claro que, para outros, esse é o principal elemento que estão


dispostos a negar sobre a Bíblia. Nesses longos debates, há um
ponto crucial muitas vezes negligenciado. A expressão “a autoridade
das Escrituras” deve ser entendida como forma abreviada de “a
autoridade de Deus quando fala através das Escrituras”. Falar sobre
a autoridade das Escrituras é, na verdade, dizer mais sobre Deus
e sobre os meios que ele escolhe para agir e falar no mundo do
que dizer alguma coisa objetiva sobre as Escrituras. A autoridade
da Bíblia depende totalmente da autoridade de Deus, e sua razão
de ser se deve apenas à forma pela qual ele decidiu ser autor das
Escrituras e em virtude do que continua a fazer ao se apresentar
a nós por meio dela como um Deus que podemos conhecer e em
quem podemos confiar.
A autoridade de Deus, conforme a Bíblia descreve sua natu­
reza e suas ações, é fundam ental para a natureza divina. Além
disso, falar da autoridade de um livro de qualquer tipo é, na
verdade, fazer uma declaração sobre a autoridade do autor
do livro. Por exemplo, o “Código Rodoviário” britânico tem
autoridade sobre qualquer outro livro que procure explicar
as regras a serem respeitadas nas estradas porque se trata
das explicações do próprio governo sobre essas regras. Se a
autoridade de uma enciclopédia é m aior que de outra, isso,
na verdade, diz respeito a seus autores, pois o que se está
afirmando é que eles fizeram uma pesquisa de melhor qualidade
e usaram fontes mais confiáveis na produção daquele livro em
comparação com autores de outras enciclopédias. Portanto, a
bem da verdade, falar da autoridade das Escrituras não é dizer
algo sobre o que as Escrituras são em si mesma. Trata-se, antes,
de fazer uma declaração sobre o que as Escrituras são em
relação ao Deus de soberania incontestável, pois aquilo que as
Escrituras “são” pode ser definido de modo adequado somente
em relação a Deus e suas ações. A autoridade das Escrituras
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 157

é uma declaração sobre o que Deus fez ao escrevê-la e sobre


como ele continua a agir em relação a ela.35
E precisamente desse assunto que este livro trata do começo
ao fim. Ofereci uma perspectiva da mensagem bíblica explicando
como Deus proferiu as palavras da Bíblia e como ele decide con­
tinuar a se relacionar com elas, isto é, como ato de comunicação
contínuo no mundo. Em seguida, expressei esse conteúdo bíblico
de uma forma teológica mais sistemática, definindo as Escrituras
como meio pelo qual o Pai se apresenta a nós como o Deus fiel
da aliança e pelo qual o Filho, a Palavra de Deus, nos profere suas
palavras, de modo que sua mensagem e as próprias palavras foram
faladas e supervisionadas pelo Espírito Santo, que agora as ilu­
mina para nós. Ao falar sobre a autoridade das Escrituras, é nisso
tudo que penso e me baseio.
Além disso, as seções anteriores deste capítulo expuseram esse
conteúdo de forma mais doutrinária. Vimos, à luz das exposições
bíblicas e teológicas anteriores, que as Escrituras são necessárias.
Ela é necessária por causa da natureza do relacionamento que
Deus decide estabelecer conosco como Deus em quem se pode
confiar, que faz promessas e as cumpre. É também necessária em
virtude do relacionamento que ele exige de nós como resposta, um
relacionamento de confiança, amor e obediência. Ele não poderia
se apresentar a nós como Deus de outra forma que não fosse verbal
e por escrito, e sem as Escrituras não poderíamos responder a ele

35Bavinck traça um estreito paralelo entre o caráter da autoridade de Deus


e o da autoridade das Escrituras: “A autoridade com a qual Deus age na reli­
gião [...] é absoluta, porém resistível. Ela convida e apela, porém é invencível.
Da mesma forma acontece com a autoridade das Escrituras [...]. Diante dela,
tudo mais se rende [...]. Sua autoridade, por ser divina, é absoluta [...] [mas] não
necessita do apoio da igreja e de ninguém recrutar a espada ou a inquisição. Ela
não quer dominar por coerção e violência, mas busca o reconhecimento livre e
voluntário” (Bavinck, Reformed dogmatics, vol. 1, p. 465).
158 Teologia da revelação

como devemos. Vimos também ser uma decorrência natural o fato


de que as Escrituras são suficientes como meio pelo qual Deus se
apresenta a nós, ou seja, como Deus em quem se pode confiar e a
quem se pode conhecer. Vimos que, por haver Deus produzido as
Escrituras como meio pelo qual ele agiria dessa forma, também
é verdade que ela é clara o bastante como base que nos permite
conhecer a Deus e responder-lhe em fidelidade à aliança.
Afirmar a “autoridade das Escrituras” não acrescenta nada
substancial a tudo isso. E antes uma boa maneira de falar sobre a
soma de todas as partes. E também uma forma de resumir tudo
o que esse livro apresenta. Afirmamos crer que tudo isso é ver­
dade, ou seja, o Deus soberano de fato é o autor das Escrituras e
assim decidiu se relacionar conosco através dela. Cabe-nos dar à
Bíblia o lugar soberano em nossa vida, em decorrência do lugar
central que ocupa em relação a Deus e às suas ações.

Inerrância e infalibilidade
A seguir afirmarei e defenderei a inerrância das Escrituras.
Ao começar esta discussão, é importante deixar claro em que
penso fazer nesta seção e por que estou tratando desse tópico
numa subseção cujo tema é a autoridade das Escrituras. O que
direi aqui sobre a questão da inerrância e da infalibilidade das
Escrituras não deve ser entendido como um clímax doutrinário
para o qual as seções anteriores deste capítulo nos conduziram.
Tampouco esta seção deve ser entendida como paralela aos temas
da necessidade, suficiência, clareza e conseqüente autoridade das
Escrituras, igual em significado a eles. Em vez disso, a afirmação
de que as Escrituras são inerrantes é produto da autoridade dela
mesma. Trata-se especificamente da obra de confiabilidade das
Escrituras, que venho descrevendo e defendendo o tempo todo,
decorrente da identidade das Escrituras como palavra soprada
por Deus. Embora eu esteja discutindo a inerrância dentro do
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 159

tópico de autoridade das Escrituras, este não é o ponto principal


a ser tratado quando estudamos a autoridade das Escrituras. Já
disse o que considero mais importante em relação à natureza da
autoridade bíblica nos parágrafos anteriores. Portanto, além de
deixar claro nesta seção o que creio que devamos dizer sobre a
inerrância, quero esclarecer também por que penso que não se
justifica incluir esse tema dentro de uma lista de afirmações
doutrinárias básicas sobre as Escrituras. Em outras palavras,
sustentarei que a inerrância é uma afirmação verdadeira sobre a
Bíblia, mas não é a mais importante que se pode fazer sobre ela.
Alguns leitores britânicos talvez estejam menos acostumados
com os debates em torno da inerrância, porque eles sempre foram
mais acalorados na América do Norte. É importante começar
pela definição dos termos essenciais, para deixar claro exatamente
de quais afirmações sobre a Bíblia estamos tratando aqui. Assim
como em muitos debates, a confusão costuma aparecer quando
diferentes grupos vinculam definições distintas a termos básicos.
Foi isso que muitas vezes aconteceu no caso da “infalibilidade
versu s inerrância”, e devemos evitar essa armadilha.
A ideia de que a Bíblia é “infalível” significa que ela não
mente. Dizer que a Bíblia é “inerrante” é dizer, além disso, que ela
não afirma quaisquer erros de fato, quer se refira aos eventos da
vida de Cristo, quer a outros detalhes da história e da geografia.
O que ela afirma é verdadeiro.
Embora seja inevitável a existência de inúmeras variáveis de
cada ponto de vista, um “infalibilista” típico diria que a Bíblia é
totalmente confiável em seu propósito de nos trazer a salvação em
Cristo e de nos ensinar o que o apóstolo Paulo chama na epístola a
Tito de “verdade, que leva à piedade”(Tt 1.1). Portanto, sempre que
a Bíblia faz afirmações sobre acontecimentos históricos atrelados à
salvação e à piedade, os infalibilistas sustentam sua confiabilidade
histórica. Portanto, os ensinamentos bíblicos de que Cristo morreu
160 Teologia da revelação

numa cruz em certo lugar fora de Jerusalém, que ele ressuscitou


fisicamente dos mortos e foi visto por alguns grupos de pessoas,
são caracterizados pela exatidão histórica. Contudo, um infalibi-
lista não se preocuparia tanto com as alegações de que alguns dados
históricos irrelevantes estejam errados. O infalibilismo admite que
alguns detalhes sobre tempo e lugar nos Evangelhos possam estar
errados, sem concluir com isso que os ensinos da Bíblia sobre
salvação e vida espiritual não são confiáveis.
Por sua vez, um “inerrantista” típico diria que toda afirmação
que a Bíblia faz deve ser considerada verdadeira, e isso não se
refere apenas às suas declarações sobre salvação e vida espiritual,
mas também ao que ela afirma sobre história e geografia. Uma
declaração clássica dessa perspectiva é a “Declaração de Chicago
sobre a Inerrância Bíblica”, elaborada em 1978 por um amplo
grupo de estudiosos evangélicos conservadores. Seu décimo
segundo artigo diz o seguinte: “Afirmamos que, em sua totalidade,
as Escrituras são inerrantes, isentas de toda falsidade, fraude ou
engano. Negamos que a infalibilidade e a inerrância da Bíblia
estejam limitadas a assuntos espirituais, religiosos ou redentores e
não abrangem dados de natureza histórica e científica”.36
É importante esclarecer aqui três aspectos da perspectiva
inerrantista tradicional. Em primeiro lugar, ela não significa,
como tantas vezes já se disse, que o compromisso com a
inerrância bíblica seja invenção de um cristianismo ocidental
racionalista derivado do Iluminismo. Às vezes, afirma-se que a
doutrina da inerrância foi proposta primeiramente pelos teólogos
do Seminário de Princeton no século 19 como expressão do
desejo de apresentar a teologia cristã como disciplina admissível

36A declaração completa encontra-se no Apêndice I em J. I. Packer, God


has spoken, 2. ed. (London: Hodder & Stoughton, 1993) [edição em português:
Havendo Deus falado, tradução de Neuza Batista da Silva (São Paulo: Cultura
Cristã, 2009)].
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 161

do ponto de vista científico. De fato, é verdade que o termo


“inerrância” se tornou amplamente utilizado somente no século 19.
Também é verdade que nos séculos 18 e 19 a questão relativa à
possibilidade de existência de erros factuais na Bíblia assumiu
maior importância como argumento levantado contra a fé cristã
e, portanto, tornou-se muito mais evidente no pensamento
e nos textos teológicos que se empenhavam em defender o
cristianismo. Contudo, a ideia de que, antes do século 19, não
havia uma crença generalizada de que a Escritura como um todo
estava isenta de erros foi corretamente desmistificada. Portanto,
o term o “inerrância” talvez seja de origem recente, mas não se
pode dizer o mesmo da ideia de inerrância. O historiador M ark
Noll conclui que “a convicção de que nas Escrituras Deus faz
uma revelação de si mesmo e de seus feitos, e que essa revelação
é totalmente confiável, sempre foi crença comum da maior parte
dos católicos, dos protestantes, dos ortodoxos e até da maioria
das seitas à margem do cristianismo”.37
Isso tampouco significa que a inerrância decorre de um raciocí­
nio imperfeito, que comete o erro de impor a Deus a ideia de
que ele tinha de produzir uma Escritura inerrante porque ele é
perfeito, restringindo assim a liberdade soberana que ele tem de
usar umas Escrituras falível para atingir seus objetivos se assim o
desejar. Já se disse que a doutrina da inerrância comete o erro de
decidir de antemão o que Deus poderia ou não fazer como autor
das Escrituras, extraindo daí conclusões sobre a Bíblia, em vez de
examinar, antes de tudo e com a mente aberta, o tipo de Escritura

37Apud A. T. B. McGowan, The divine spiration o f Scripture: challeng-


ing E vangelicalperspectives (Nottingham: Apollos, 2007), p. 85. Veja também
John D. Woodbridge, Biblical authority: a critique o f the Rogers/McKim proposal
(Grand Rapids: Zondervan, 1982); e os ensaios de W. Robert Godfrey; John D.
Woodbridge; Randall H. Balmer, em D. A. Carson; John D. Woodbridge, orgs.,
Scripture and truth (Leicester: IVP, 1983).
162 Teologia da revelação

que Deus de fato produziu. É possível que alguns partidários


da inerrância tenham dado a impressão de estar cometendo o
mesmo erro, mas certamente essa não é a base adequada para a
doutrina. Em vez disso, a afirmação de que a Bíblia é inerrante
é uma conclusão derivada diretamente daquilo que as Escrituras
dizem a respeito de Deus e sobre ela mesma em relação a Deus.
As Escrituras dizem, conforme vimos, que ela é soprada por Deus
como sua palavra. Além disso, nas Escrituras Deus afirma com
grande clareza que seu caráter é de tal ordem que ele não pode
mentir, e só ele é totalmente verdadeiro e confiável (Tt 1.2; Hb 6.18).
A conclusão de que a Bíblia é inerrante decorre dos laços estreitos
que unem essas duas verdades relacionadas. Em outras palavras,
trata-se de uma doutrina que se pode demonstrar como uma clara
implicação do que as Escrituras dizem a respeito do caráter de
Deus e da maneira pela qual esse caráter molda sua ação como
autor das Escrituras. Deus decidiu atrelar as Escrituras a si mesmo
como sua palavra em ação e, portanto (conforme vimos no capítulo
sobre a perspectiva bíblica), os atos de fala das Escrituras são um
aspecto da ação de Deus no mundo. Pode-se então concluir que as
palavras das Escrituras derivam de Deus suas qualidades.
É importante que se faça aqui um segundo esclarecimento
sobre a inerrância. A crença na inerrância bíblica leva naturalmente
em conta uma série de características das Escrituras que decorrem
do fato de que ela foi escrita em linguagem humana comum
com características de uso cotidiano. Incluem-se aí o emprego
de números redondos e aproximações coloquiais, citações livres
(especialmente do Antigo Testamento no Novo), algumas formas
gramaticais pouco comuns (a rigor, erradas) e figuras de linguagem
como metáforas, parábolas, hipérboles etc.38 Nenhuma dessas

38Veja em Grudem, Systematic theology, p. 91-2, exemplos úteis de algumas


dessas características [edição em português: Teologia sistemática, tradução de
Norio Yamakami et al.. (São Paulo, Vida Nova, 2003), p. 59-60].
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 163

características contraria a afirmação dé que as Escrituras não erram


em tudo o que ela afirma. Pelo contrário, é por levar em conta todas
essas características que podemos discernir o que Deus, de fato, está
e não está afirmando nas Escrituras.
Um exemplo objetivo são os primeiros capítulos de Gênesis.
A questão de quanto do conteúdo desses capítulos Deus quis
que fosse uma descrição histórica e quanto ele quis que fosse
metafórico é, naturalmente, objeto de amplo debate entre os evan­
gélicos conservadores. Contudo, subscrever a inerrância não exige
que adotemos uma interpretação em particular desses capítulos;
acreditar, por exemplo, que o universo foi criado em seis dias de
24 horas. Muitos inerrantistas acreditam que Gênesis ensina isso
de fato, ao passo que muitos outros creem que não. A inerrância
não estabelece um princípio que requer que determinados trechos
das Escrituras sejam predominantemente histórias ou metáforas.
Essa questão deve ser tratada por meio de interpretação bíblica
adequada, e a resposta não é definida de antemão por uma doutrina
das Escrituras.Todos os inerrantistas, porém, concordam que não
importa em que se decida crer como afirmação das Escrituras,
esse conteúdo deve ser considerado isento de erro.
É preciso que se faça um terceiro e último esclarecimento
sobre a inerrância. Acredita-se, às vezes, que a crença na inerrân­
cia floresce somente quando as Escrituras são consideradas uma
compilação de afirmações factuais a respeito de Deus, da huma­
nidade e do mundo. Em trechos anteriores deste livro, argumentei
de forma relativamente exaustiva que as Escrituras são muito
mais do que isso, sobretudo porque nenhuma língua humana se
lim ita apenas à função primária de afirmar fatos. É claro que as
Escrituras afirmam muitos fatos e fazem inúmeras proposições,
mas tais afirmações são sempre apenas um aspecto de sua função
mais profunda como meio pelo qual Deus escolhe agir em relação
a nós, dando-se a conhecer como Senhor fiel da aliança.
164 Teologia da revelação

Sempre que se buscam teólogos ou grupos cristãos que podem


ter visto as Escrituras não como Palavra viva, mas como compên­
dio de fatos, os suspeitos de sempre, reunidos e levados a inter­
rogatório, são os teólogos do século 19 e início do 20 vindos do
Seminário de Princeton, principalmente W arfield e Hodge. De
fato, vivendo em uma época como a deles, em que a racionalidade
científica era, de longe, o critério por meio do qual todas as alega­
ções de verdade tinham de ser testadas, além de serem inevitavel­
mente influenciadas pela cultura à sua volta, não é de surpreender
que algumas de suas afirmações sobre a Bíblia e abordagens uti­
lizadas pareçam estar mais interessadas em fatos afirmados pelas
Escrituras do que na ação dinâmica de Deus nela e através dela.
Estas, portanto, são as duas posições básicas, infalibilidade
e inerrância, com três esclarecimentos sobre o que a inerrância
implica e o que ela não implica. Nos debates que se travam sobre
essas questões, evidentemente alguns evangélicos são levados
a rejeitar a “inerrância” não tanto porque discordem do que ela
afirma sobre as Escrituras, mas porque divergem da posição
central que alguns inerrantistas conferem à inerrância dentro
de sua doutrina das Escrituras.39 Contudo, desconfianças sobre

39Um exemplo bem recente é o de A.T. B. McGowan em seu livro The divine
spiration ofScripture. Cerca de metade do livro é dedicada à inerrância. McGowan
deixa claro ao longo do livro que não crê que os manuscritos bíblicos originais
estivessem isentos de erros: “[Deus] não nos deu um texto autógrafo inerrante”
(McGowan, D ivine spiration, p. 124). Mas, perto do final do livro, parece que a
razão principal para sua rejeição da inerrância não é tanto o fato de que ele esteja
convencido de que a Bíblia contém erros; talvez ele ache que sim, mas esse não é
seu pensamento principal. Concluindo, ele diz: “... minha rejeição ao uso do ter­
mo ‘inerrância’ não significa que eu defenda a ‘errância’. Estou simplesmente di­
zendo que falar de autographa inerrantes não é a maneira de apresentar e defender
uma perspectiva ‘superior’‘das Escrituras” (McGowan, D ivine spiration, p. 210).
(Os autographa são os documentos originais escritos pelos primeiros autores das
Escrituras e não chegaram até nós). McGowan está certo no que diz a respeito do
uso da doutrina da inerrância, mas erra ao não aceitá-la em si mesma.
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 165

a forma como alguns usam a doutrina da inerrância não devem


nos levar a rejeitar a doutrina em si mesma. Podemos resumi-la da
seguinte forma: a inerrância não é nem mais nem menos do que
a im plicação n atural do fato de que as Escrituras são identificadas
como ato de fala de um Deus que não pode mentir e que decidiu
se revelar a nós por meio de palavras.40 Essa conceituação requer
um pequeno esclarecimento.
Em primeiro lugar, a inerrância não é nada m ais que uma impli­
cação natural da inspiração. É possível que tal afirmação sobre as
Escrituras seja verdadeira; aliás, conforme argumentei brevemente,
ela é verdadeira. M as, embora verdadeira, não devemos exagerar
sua importância teológica. A inerrância é uma afirmação sobre as
proposições das Escrituras. A razão pela qual a inerrância não deve
ocupar um lugar central em nossa doutrina da Bíblia é que, se ela
for colocada nessa posição, estaremos levando em conta apenas
um aspecto do conteúdo das Escrituras, ou seja, suas declarações
propositivas, e baseando nossa doutrina nesse aspecto. O núcleo
de nossa doutrina das Escrituras provavelmente depreciará sua
característica fundamental: o fato de que através de suas palavras
Deus realiza atos de revelação e de redenção. Parecerá a outros que
cremos (e nós mesmos podemos vir a crer nisso) que a característica
mais importante das Escrituras são suas afirmações propositivas.
Assim, não será difícil adotar uma visão distorcida das Escrituras
segundo a qual ela seria uma coleção de proposições históricas e
teológicas, em vez de nos acercarmos dela primeiramente como
meio da revelação divina e de ação redentora em nosso favor.
Dizer que nossa principal alegação sobre um texto é que ele não
contém erros talvez seja algo verdadeiro, mas, no fim das contas,

40Donald Macleod refere-se à inerrância como conseqüência da inspira­


ção, não como qualidade dela (Donald Macleod, A faith to live by: understanding
Christian doctrine [Fearn: Mentor, 1998], p. 17).
166 Teologia da revelação

isso em si mesmo não contém nada de im portância especial.


(E possível que um bom dicionário esteja isento de erros, mas isso
não eleva sua condição acima da condição de dicionário.) M uito
mais importante a respeito de um texto é saber quem o escreveu
e quais eram os propósitos do autor. Felizmente podemos afirmar
a inerrância com convicção, enquanto a colocamos em seu lugar
correto em relação a outros aspectos da doutrina das Escrituras,
sem que venha a ocupar o centro do palco em nosso pensamento
a seu respeito.
Devo fazer aqui um aparte histórico e admitir que essa minha
argumentação é, de certo modo, controversa, e talvez reflita o
contexto britânico em que escrevo. J. I. Packer, cujos escritos sobre
o assunto desde a década de 1950 contribuíram bastante para a
manutenção e a defesa da doutrina evangélica das Escrituras, disse
que no tocante aos debates em torno das Escrituras no século 20
foi especialmente na América do Norte que:

a inerrância bíblica se tornou, desde o início, a pedra de toque


direta e explícita, muito mais do que nos debates paralelos na
Grã-Bretanha. Isso, creio eu agora (nem sempre pensei assim),
mostra a clareza de visão do Novo Mundo, porque, sem a iner­
rância, a estrutura da autoridade bíblica, conforme a concebem
os evangélicos conservadores, viria abaixo.41

Talvez a questão fundamental aqui esteja relacionada ao ponto em


que as Escrituras esteja sendo contestada nas circunstâncias em
que nos encontramos. Aliás, é sempre importante fazer distinção
entre a doutrina e a apologética. A doutrina, inevitavelmente, tem
uma ponta de apologética em si, mas também é verdade que ela

41J. I. Packer, Truth and pow er: the place o f the Bible in the Christian life
(Guildford: Eagle, 1996), p. 91.
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 167

não precisa ser sempre reformulada para lidar com toda acusação
momentânea. Packer afirma que, ao longo da história no contexto
norte-americano em que ele trabalhou por muito tempo, a dou­
trina evangélica conservadora foi abalada por alguns evangélicos
justamente na questão da inerrância bíblica; portanto, ela tinha
de ser defendida com mais veemência nesse ponto. Isso fez com
que a inerrância ganhasse destaque por razões apologéticas. M eu
argumento vai mais no sentido de que, ao formular a doutrina das
Escrituras, devemos nos afastar o máximo possível do calor das
batalhas atuais (embora, é claro, jamais devamos fazê-lo total­
mente) para que possamos analisar nossa doutrina das Escrituras
de uma perspectiva bíblica e teológica. Fazendo isso, veremos que
a inerrância deve ser situada sistematicamente no âmbito de nossa
doutrina geral das Escrituras em um lugar de menos destaque do
que aquele que às vezes lhe é conferido.
Assim, a inerrância não é nada mais que uma im plicação da
inspiração. Contudo, ela tam bém não é m enos do que uma implicação
natural da inspiração ,42 É um aspecto verdadeiro das Escrituras que
decorre do caráter de Deus e do fato de que ele escolheu se rela­
cionar conosco através das palavras que nos dirige. Entre os atos
de fala das Escrituras, através dos quais Deus fala conosco, encon-
tram-se muitas afirmações apresentadas como factuais. Conforme
dissemos em capítulo anterior, a língua não existe simplesmente
para fazer proposições: seu papel principal é servir de meio pelo
qual uma pessoa age em relação a outra. Colocar um peso teológico
muito grande sobre a inerrância nos fará incidir no erro de tratar
a língua como se seu propósito básico fosse fazer declarações pro-
positivas, mas isso é algo que a linguagem faz como parte de uma

42Nesse sentido, McGowan erra quando parece imaginar que, para evitar
alicerçar a autoridade das Escrituras na inerrância, ele precisa dar um passo
adiante e tentar esclarecer se existem erros na Bíblia.
168 Teologia da revelação

ação muito mais abrangente. Todavia, rejeitar a inerrância em favor


da infalibilidade é cometer o erro de simular que os propósitos para
os quais Deus se comunicou pelas Escrituras podem ser separados
com segurança de muitas afirmações propositivas que ele faz atra­
vés dela, cabendo a nós confiar em seus propósitos nas Escrituras,
questionando ao mesmo tempo muitas de suas declarações propo­
sitivas. Se tentarmos esse tipo de separação, faremos violência à na­
tureza coerente dos atos de fala das Escrituras e estaremos fazendo
distinção entre seu propósito geral e cada uma de suas afirmações,
mas esta é uma distinção que ela nunca faz. Além disso, não reco­
nheceremos o fato de que boa parte da revelação que Deus faz de
si mesmo e de seus propósitos encontra-se nos detalhes da histó­
ria que as Escrituras narram e está entrelaçada com esses detalhes.
O lugar da inerrância que recomendo ser atribuído à doutrina
das Escrituras harmoniza-se bem com o tratamento dado a ela por
Herman Bavinck. Em parte alguma ele dedica uma seção espe­
cificamente para a discussão da inerrância; tampouco se desvia de
sua rota para defendê-la em detalhes. Talvez seja essa característica
de sua doutrina das Escrituras que levou alguns a concluir que ele
não apoia a inerrância. Contudo, essa conclusão carece de respaldo.
Respondendo àqueles que negam a inerrância, Bavinck rejeita a visão
de que “a historiografia das Escrituras é inverídica e não confiável”.
Embora reconheça o profundo caráter humano das Escrituras, ele as
compara à perfeita humanidade de Cristo:"... assim como a natureza
humana de Cristo, ainda que frágil e humilde, permaneceu isenta
do pecado, também as Escrituras são concebidas sem defeito ou
mácula’; totalmente humana em todas as suas partes, mas também
divina em todas elas”.43 Portanto, embora afirme regularmente a

43Bavinck, Reformeddogmatics, vol. 1, p. 447,435. Veja mais em Richard B.


Gaffin, Jr., God s Word in servant-form : Abraham Kuyper and Herman Bavinck on
the doctrine o f Scripture (Jackson: Reformed Academic, 2008). Agradeço a David
Gibson por me chamar a atenção para esse livro.
Atributos das Escrituras: uma perspectiva doutrinária 169

total veracidade das Escrituras, ele faz isso ao longo do processo e


mantém o olhar constantemente voltado para o propósito redentor
mais profundo de Deus ao nos dar as Escrituras.
Resta uma questão final a ser respondida acerca da inerrância.
Se a apoiarmos, que tratamento deveremos dar aos aparentes ou
supostos erros das Escrituras? A resposta a essa indagação depen­
de muito do tipo de erro apontado. H á dois tipos que merecem
ser mencionados aqui. Alguns detalhes históricos das Escrituras
são postos em dúvida pela pesquisa arqueológica atual. Em casos
assim, vale a pena lembrar que esse tipo de estudo científico está
sempre produzindo novas descobertas e chegando a novas con­
clusões. Portanto, muitas vezes se exige que avaliações definitivas
fiquem em suspenso e aguardem a descoberta de novas evidên­
cias. Muitos livros foram escritos demonstrando como, ao longo
dos anos, diferentes ramos da pesquisa arqueológica respaldaram
narrativas veterotestamentárias, em vez de contrariá-las.
Em outros casos, argumenta-se que relatos divergentes do
mesmo acontecimento aparecem em diferentes partes das Escrituras,
e ambos não podem estar certos. Um enfoque sensível a tais
exemplos recomenda que não nos apressemos demais para tentar
harmonizar os relatos díspares, pois corremos o risco de perder a
riqueza da verdade que Deus está ensinando ao inspirar os dois
relatos. Um exemplo teológico é o recenseamento do povo de
Israel feito pelo rei Davi. Lemos em 1 Crônicas que foi Satanás
quem incitou Davi a fazer o recenseamento (IC r 21.1), ao passo
que 2Samuel 24.1 diz que o Senhor, em sua ira, foi quem incitou
Davi a fazê-lo. M uita gente tropeça no que considera ser uma
incoerência teológica nas Escrituras, concluindo a partir disso
que, de modo geral, ela não serve como base teológica de uma
fé confiável. M as, esses relatos paralelos, porém distintos, servem
para comunicar perspectivas diferentes, não contraditórias, de
realidades espirituais complexas. Nesse caso, lCrônicas e 2Samuel
170 Teologia da revelação

refletem aspectos diferentes da relação, em última análise, miste­


riosa entre a ação do Senhor soberano e as ações de Satanás no
âmbito dessa soberania. Essa relação é narrada de maneira mais
clara nos primeiros capítulos de Jó, em que Satanás age visivel­
mente dentro dos limites estabelecidos por Deus, mas depois sai
de cena, e as ações que executou passam a ser entendidas, no res­
tante do livro, como ações pelas quais Deus é responsável.
Outros exemplos são por natureza históricos. Jesus curou
o cego Bartimeu a caminho de Jericó (Lc 18.35) ou quando
voltava de lá? (M c 10.46)? Como fixar exatamente a cronologia
dos acontecimentos próximos da morte de Jesus em face dos
diferentes relatos dos quatro Evangelhos? Os comentários bíblicos
e os livros sobre passagens difíceis nas Escrituras costumam
apresentar diferentes maneiras de analisar os exemplos acima. E
importante, porém, reconhecer a aparente dificuldade, o que nos
obrigará a ler de novo as Escrituras com cuidado e perspectivas
renovadas. Quando fazemos isso, percebe-se muitas vezes que o
suposto erro é apenas superficial. Portanto, podemos deixar de
considerá-lo erro quando nos damos conta de que os Evangelhos
não alegam fazer exposições exaustivas de um relato da vida de
Jesus, nem narrativas verba tim [literais] de tudo o que ele disse
em todas as ocasiões, nem apresentações em ordem cronológica
exata de todo o seu conteúdo. A interpretação que a igreja faz dos
Evangelhos que Deus nos deu e, portanto, de nossa capacidade de
ouvir com mais clareza o que ele de fato nos diz através deles, quase
sempre cresce quando os cristãos reagem às alegações de erro nas
Escrituras, mas não porque tentem esclarecer rapidamente as
dúvidas, e sim porque voltam à Escritura para submeter o que
acreditamos que ela diz àquilo que ela realmente diz.
4

A BÍBLIA EA VIDA CRISTÃ:


APLICAÇÃO DA DOUTRINA
DAS ESCRITURAS

'este último capítulo, refletiremos sobre algumas das


principais formas pelas quais a doutrina das Escrituras
deve ser aplicada à prática e ao pensamento cristãos.
A primeira seção analisa mais detidamente a questão do sola
Scriptura e desenvolve os tópicos doutrinários do capítulo ante­
rior. As seções seguintes analisam, sob o aspecto prático, o lugar e
a função das Escrituras na vida da igreja e de cada crente.

O significado do sola Scriptura


Sola Scriptura é uma expressão latina que significa “somente as
Escrituras”. Conforme vimos, ela se tornou uma das expressões
principais usadas para resumir os pontos teológicos mais relevan­
tes sustentados pelos reformadores protestantes do século 16. De
fato, para muita gente, sola Scriptura ainda é a síntese de tudo o
que é o protestantismo evangélico conservador e, sobretudo, do
172 Teologia da revelação

que está em jogo na doutrina evangélica das Escrituras. Muitos


evangélicos conservadores de hoje se unem em torno de slogans
que defendem o “somente as Escrituras”.
Não é raro acontecer na história da igreja de uma doutrina ser
explicada com clareza e convicção em um período e, com o tempo,
se transformar aos poucos em algo bem diferente, mas sem perder
o rótulo descritivo que lhe foi conferido. Foi o que aconteceu
de modo especial com o sola Scriptura. Quando essa expressão
é definida por seus partidários e adversários contemporâneos,
a doutrina que se tem em vista é muitas vezes distinta daquela
encontrada nos escritos de Lutero, Calvino e outros autores pro­
testantes dos séculos passados. Em outras palavras, muitos que
atacam o sola Scriptura e o acusam de não ser bíblico nem lógico
atacam algo diferente daquilo em que acreditavam os principais
reformadores. Além disso, conforme veremos em breve, muitos
evangélicos modernos, que julgam preservar fielmente o legado
de Lutero e de Calvino, derivaram para uma posição muitas
vezes condenada por aqueles dois grandes reformadores. Para
que enxerguemos com clareza o caminho a percorrer nessa
situação por vezes confusa, é melhor começar pelos primórdios
do pensamento cristão acerca desse tópico.
A dificuldade por trás do sola Scriptura diz respeito à questão
da relação entre as Escrituras, de um lado, e a tradição, enten­
dida como certa mistura de tradições do pensamento, da fé e da
prática cristã, de outro. Tertuliano, teólogo dos primeiros séculos da
igreja cristã, costumava referir-se a algo que chamava de “Regra
de Fé”. Dizia ele que nossa busca de conhecimento deve estar
sempre dentro dos limites da Regra. Se nos desviarmos indo além
das fronteiras estabelecidas pela Regra, cairemos no erro da here­
sia. A Regra, portanto, era o contexto interpretativo dentro do
qual Tertuliano dizia que a Bíblia deve ser explicada. Ela era um
resumo do que ele entendia serem os ensinamentos básicos das
A Bíblia e a vida cristã: aplicação da doutrina das Escrituras 173

Escrituras talhados na forma de uma confissão de fé na divin­


dade trina e una do Pai, do Filho e do Espírito Santo.1 A Regra,
por conseguinte, é semelhante em forma e conteúdo ao que mais
tarde ficaria conhecido como Credo dos Apóstolos.
Quando os evangélicos de hoje deparam com esse ensino de
Tertuliano, alguns talvez se perguntem por que, afinal de contas,
precisamos dessa Regra. Por que não se contentar simplesmente
com as Escrituras? Por que acrescentar uma “regra” não bíblica
e extrínseca à Bíblia e, com isso, aparentemente comprometer a
suficiência das Escrituras? A resposta de Tertuliano a uma pergunta
desse tipo (até onde nos permite ir a imaginação!) consistiria em
explicar à pessoa que ela não compreendeu o que ele pretendia.
Ele não estava de modo algum acrescentando algo à Escritura, e
sim proporcionando uma ferramenta necessária à garantia de
que o ensino fundamental das Escrituras fosse constantemente
preservado na tarefa incessante de interpretação da Bíblia.
Tertuliano era confrontado (a exemplo de inúmeras gerações
posteriores de cristãos) por pessoas que diziam estar apoiando suas
crenças “somente nas Escrituras”, porém essas crenças haviam se
desviado do ensino cristão ortodoxo. (Os testemunhas de Jeová
são um ótimo exemplo nos dias atuais.) Como podemos mostrar a
essas pessoas que elas estão erradas? Uma estratégia fundamental
usada por Tertuliano e por muitos outros nos primeiros séculos da
igreja consistia em defender a Regra de Fé como síntese do ensino
que já era considerado a verdadeira síntese da mensagem da Bíblia.
A regra não atentava contra a raiz da suficiência das Escrituras; era
apresentada para defender sua autoridade suprema. Desviar-se da
Regra era desviar-se das Escrituras.

1Veja Tertulian, The prescription against heretics, Ante-Nicene Fathers,


edição de Alexander Roberts; James Donaldson (Peabody: Hendrickson, 1994),
vol. 3, caps. 12-13.
174 Teologia da revelação

A Regra de Fé, naturalmente, está na categoria do que se


costuma chamar de “tradição”. Para os que foram criados, como
muitos dos protestantes de hoje, em meio aos desdobramentos
contínuos dos debates suscitados pela Reforma, normalmente
descritos como uma confrontação entre as Escrituras e a tradição,
é preciso ressaltar com todas as letras que os primeiros pais da
igreja não entendiam o conceito de Escritura em oposição à
tradição. Um historiador disse que a Regra de Fé de Tertuliano,
semelhante ao conceito de “cânon da verdade” delineado por
Ireneu, outro teólogo da Antiguidade, não era “um credo formal,
e sim a forma e o padrão inerentes à própria revelação”.2 Outro
autor que escreveu sobre esses primeiros pais da igreja disse: “A
ideia da regra de fé como algo suplementar ou complementar, ou
algo que de fato fazia acréscimos à Bíblia, está completamente
ausente dos seus pensamentos. Na verdade, tal ideia contraria seu
conceito da relação da regra com a Bíblia”.3 Portanto, em uma
etapa bastante primitiva da vida da igreja, a tradição apostólica
e as Escrituras fluíam juntas na corrente única das Escrituras.
A independência de uma tradição que caminhava junto com
as Escrituras desapareceu, e a única maneira de avaliar se um
ensinamento era apostólico ou não consistia em apelar aos textos
apostólicos que constituíam as Escrituras.4
Para que possamos refletir claramente sobre as diferentes ma­
neiras pelas quais as Escrituras e a tradição podem se relacionar

2J. N. D. Kelly, E a rly C h ristian d octrin es, 5. ed. rev. (London: A. & C. Black,
1977), p. 40 [edição em português: P a trística : o rigem e d e se n v o lv im en to d a s d o u ­
trin a s cen tra is d a f é cristã , tradução de Márcio Loureiro Redondo (São Paulo:
Vida Nova, 1994)].
3R. P. C. Hanson, T ra d itio n in th e ea rly C hurch (London: SCM, 1962),
p. 126.
4Essa forma de se expressar é inspirada em Herman Bavinck,“Prolegomena’’,
in: John Bolt, org., R e fo r m ed d o gm a tics, tradução para o inglês de John Vriend
(Grand Rapids: Baker, 2003), vol. 1, p. 485.
A Bíblia e a vida cristã: ap licação da doutrina das Escrituras 175

uma com a outra, empregarei os termos encontrados em Heiko


Oberman, historiador do século 20.s São termos de uma clareza
que nos ajudará bastante e foram adotados por diferentes autores
que se dedicaram ao assunto. Oberman chama de “Tradição I” a
visão predominante cultivada pela igreja primitiva e que vimos
nos escritos de Tertuliano. E a visão de que a tradição é uma
ferramenta que auxilia na interpretação fiel das Escrituras e
esclarece seus ensinos básicos, mas as Escrituras é a única fonte
de revelação divina infalível à qual a tradição está sempre sujeita.
É claro que embora a Tradição I tenha sido a visão predo­
minante da igreja nos primeiros cinco séculos, o quadro era mais
variado do que uma mera sucessão de pensadores que copiavam
rigorosamente Tertuliano. No quarto século, Basílio de Cesareia
pareceu dar um importante passo adiante de Tertuliano e Ireneu
ao se referir às tradições fora das Escrituras, que se cria terem sido
legadas pelos apóstolos, as quais, disse ele, tinham força igual à
das Escrituras.6 Assim também, quando Agostinho explica como
alcançar clareza na interpretação bíblica, ele insiste que seja con­
sultada a Regra de Fé, composta pelas passagens mais claras das
Escrituras ep ela autoridade da igreja J Ao refletir sobre a suficiên­
cia das Escrituras, observamos que, de fato, Agostinho em outras
partes faz afirmações inequívocas acerca da suficiência material
das Escrituras. Portanto, é improvável que ele pretendesse, com
a afirmação acima, consolidar as Escrituras e a igreja como duas

5Heiko Augustinus Oberman, The h a r v e s t o fM e d i e v a l th eo lo g y : G a b riel B ie l


a n d la te M e d ie v a l n om in a lism , ed. rev. (Grand Rapids: Eerdmans, 1967).
6Basil of Caesarea, C o n cern in g th e H oly S p irit 66, Nicene and Post-Nicene
Fathers, edição de Philip SchafF; Henry Wace (Grand Rapids: Eerdmans, s.d.),
vol. 8.
7Augustine [Agostinho], On C h ristia n d o ctrin e, Nicene and Post-Nicene
Fathers, edição de Philip SchafF (Grand Rapids: Eerdmans, 1956), vol. 2, 3.2.2
[edição em português: A d o u trin a cristã , tradução de Ir. Nair de Assis Oliveira
(São Paulo: Paulus, 2002)].
176 Teologia da revelação

fontes distintas de autoridade. Pelo contrário, para ele a igreja não


faz acréscimos à mensagem clara das Escrituras, antes a reforça e
a ensina. Com efeito, é discutível se, nas declarações que fez sobre
a tradição, Basílio desejava constituir a igreja como autoridade
independente das Escrituras.
Todavia, quaisquer que tenham sido as intenções de Agostinho
e Basílio, suas declarações lançaram as sementes que gradativa-
mente germinaram no decorrer do milênio seguinte. Foi espe­
cialmente durante o período de 1100 a 1400 que se desenvolveu
uma nova perspectiva da relação entre as Escrituras e a tradição
que apelava regularmente às proposições de Agostinho e Basílio.
Oberman chama essa perspectiva de “Tradição II”. Diz ela que há
duas fontes distintas de revelação divina, as Escrituras e a tradição
da igreja, sendo esta última transmitida oralmente ou por meio de
práticas habituais da igreja. A Tradição II, portanto, representa a
negação objetiva da suficiência e da clareza das Escrituras bem como
da autoridade ímpar da Bíblia. Um ponto vital a destacar aqui é que
a Tradição II foi uma inovação no pensamento cristão. É duvidável
que fosse claramente cultivada por algum dos pais da igreja, tendo
se desenvolvido só bem mais tarde na Idade Média. No alvorecer
da Reforma, porém, no início do século 16, ela havia se tornado a
concepção nutrida pelas autoridades eclesiásticas romanas, com
quem os reformadores se indisporiam. No entanto, é verdade que,
mesmo na baixa Idade Média, a Tradição I era defendida por muitos
na igreja, e os exemplos mais notáveis são John W yclif e John Hus.8
Nesse contexto histórico, os reformadores não criam que esta-
vam introduzindo algum novo ensinamento com a expressão
“somente as Escrituras”; pelo contrário, achavam que com isso
combatiam a perigosa inovação trazida pelo crescimento da

8Veja Keith A. Mathison, The shape o f sola Scriptura (Moscow, Estados


Unidos: Canon, 2001), p. 79-80.
A Bíblia e a vida cristã: aplicação da doutrina das Escrituras 177

Tradição II e recuperavam para a igreja em geral a posição da


igreja primitiva da “Tradição I”. Para os reformadores, o sola
Scriptura era a volta à Tradição I. Em outras palavras, eles tinham
em alta conta a autoridade das tradições de interpretação da
Bíblia que haviam recebido, representadas pelos pontos de vista
das gerações anteriores de teólogos amplamente respeitados, bem
como o papel desempenhado pela igreja ao proporcionar um
contexto no qual as Escrituras pudesse ser compreendida.
Isso fica evidente, sobretudo, no modo como os reformadores
responderam a uma objeção que lhes foi feita. Agostinho escrevera
certa vez: “Da minha parte, não creria no evangelho se não fosse
movido pela autoridade da igreja católica”. Os adversários católicos
dos reformadores gostavam de citar essa declaração, argumentando
que ela prova que o entendimento dos reformadores acerca da
autoridade suprema das Escrituras, que dispensava a autorização
da igreja, conflitava com o que havia falado o maior dos pais da
igreja. Nenhum dos reformadores se contentou em responder
dizendo simplesmente que Agostinho estava errado e que eles
tinham certeza de que haviam sido ungidos pelo Espírito para
descobrir a verdade. Em vez disso, empenharam-se sobremaneira
para demonstrar que Agostinho estava dizendo algo com o que
concordavam. Conforme diz Calvino: “Ao contrário, [era intenção
de Agostinho] que apenas indicasse, o que também confessamos
ser verdadeiro, que aqueles que ainda não foram iluminados pelo
Espírito de Deus são induzidos à docilidade pela reverência à Igreja,
para que porfiem em aprender do evangelho a fé em Cristo”.9 Um
século depois, a Confissão de Fé de Westminster reconheceu o

9John Calvin, Institutes o f the Christian Religion, Library of Christian


Classics, edição de John T. McNeill, tradução de Ford Lewis Battles
(Philadelphia: Westminster, 1960), vols. 20-21, 1.7.3 [edição em português:
João Calvino, Imtitutas da religião cristã, tradução de Waldyr Carvalho Luz (São
Paulo: Cultura Cristã, 2003)].
178 Teologia da revelação

mesmo pensamento: “Pelo testemunho da Igreja, podemos ser


movidos e incitados a um alto e reverente apreço das Escrituras
Sagradas [...]” (1.5).
Um autor de nosso tempo, Keith Mathison, fez um exame útil
e detalhado da doutrina do sola Scriptura. Ele resume a doutrina
dos reformadores com uma frase citada com frequência: só as
Escrituras são nossa autoridade final, mas não umas Escrituras
que esteja só”. As Escrituras são a única fonte de revelação neces­
sária à fé e vida cristãs, mas não é a única coisa necessária à fé e
vida cristãs.10 Precisamos da Regra de Fé e também dos credos
históricos da igreja, os quais constituem uma forma mais plena
da Regra. Precisamos das tradições e das práticas da interpreta­
ção que a igreja faz das Escrituras para que nos ajudem a cami­
nhar com fidelidade em nosso entendimento das Escrituras e em
obediência a ela. A convicção dos reformadores em relação ao sola
Scriptura é a convicção de que as Escrituras são a única autori­
dade in fa lível, a única autoridade suprema. Todavia, não é a única
autoridade, porque os credos e o magistério da igreja exercem a
função de autoridades subordinadas importantes sob a autori­
dade das Escrituras.
Em resposta aos reformadores protestantes, a igreja cató­
lica romana endureceu a posição da “Tradição II”. Em 1546, o
Concilio de Trento decretou que “a verdade salvadora e as regras
de conduta” estão “contidas nos livros escritos [das Escrituras] e
nas tradições não escritas”. Alguns católicos romanos atuais afir­
mam que isso não expressa a ideia de que a revelação ocorre por
meio de duas fontes distintas, mas que o mesmo conteúdo che­
ga a nós de duas maneiras diferentes.11 Esse argumento foi acatado

“Mathison, Shape ofsola Scriptura, p. 257-9.


uJoseph Rupert Geiselmann, Die Heilige Schrift unddie Tradition (Freiburg:
Herder, 1962), p. 270.
A Bíblia e a vida cristã: aplicação da doutrina das Escrituras 179

por alguns e rejeitado por outros.12 Contudo, não há dúvida de


que nos séculos que se seguiram à Reforma, o ensinamento cató­
lico romano consolidou-se na Tradição II.
É preciso dizer mais algumas coisas sobre o contexto em que
os reformadores desenvolveram sua doutrina do sola Scriptura.
Eles não estavam respondendo apenas à posição católica romana
da “Tradição II”. De outro lado estavam os grupos divergentes
de crentes hoje conhecidos como grupos da “Reforma Radical”
ou anabatistas.13 Por mais diversos que fossem esses grupos,
eles costumavam compartilhar uma atitude de desconfiança em
relação a quaisquer tradições de teologia e prática que tivessem
sido herdadas. Eles percebiam, juntamente com os demais refor­
madores, os sérios erros de fé e prática nos quais a igreja havia
caído. M as, enquanto os reformadores buscavam a solução por
meio da volta à posição da Tradição I da igreja primitiva, os
radicais procuravam fugir dessa herança de modo que sua fé e
ensino derivassem “somente da Bíblia”. Portanto, a versão do
sola Scriptura dos anabatistas era muito diferente da versão dos
outros reformadores. Ela foi descrita em nossos tempos (com
base na terminologia de Oberman) como “Tradição O”.14 Exalta-
-se a interpretação individual das Escrituras em detrimento da
interpretação coletiva das gerações passadas de cristãos. No âmbito
de uma comunidade cristã, enfatizam-se mais as interpretações
das Escrituras oferecidas por alguém que se apresente como
mestre cheio do Espírito, e assim é reconhecido pelos demais,

12Acatado por George H. Tavard, H oly w r i t o r h o ly ch u rch : th e crisis o f th e


P ro testa n t R efo rm a tio n (London: Burns & Oates, 1959), p. 242-5; rejeitado por
Oberman, H a r v es t o f M e d ie v a l th eo lo gy , p. 407.
13Veja breves retratos de diversos líderes anabatistas em Mathison, S hape o f
sola S crip tu ra , p. 124-5.
14Mathison, S hape o f sola S crip tu ra , com base no estudo da Reforma feito
por Alister McGrath.
180 Teologia da revelação

mas não se confere muito peso à convergência desses ensinos com


os ensinos predominantes da igreja ao longo da história.
Keith Mathison argumenta que a posição da Tradição 0 encontra-
-se tão distante do sola Scriptura dos reformadores que requer outra
denominação: ele a chama de “solo Scriptura . Ele apresenta argumen­
tos convincentes que mostram que, desde o século 18, o evangelica-
lismo americano, sobretudo em suas formas populares, adotou uma
posição muito próxima da Tradição 0, embora muitas vezes imagi­
nasse estar sendo fiel a Lutero e Calvino. Certamente é verdade que o
evangelicalismo britânico não ficou imune a esse mesmo mal. Uma
exceção notável apontada por Mathison é a teologia representada
por Charles Hodge, do Seminário de Princeton, no século 19.1S Ele
diz que essa mudança de rumo, em grande parte inadvertida, para
a “Tradição 0” dos anabatistas, foi alimentada nos Estados Unidos
por fatores subjacentes: (1) a filosofia do Iluminismo, que destacava
o indivíduo como árbitro da verdade, à parte das tradições do
pensamento, e (2) uma forte convicção de que o indivíduo tinha
direitos democráticos.16 Na Europa, este segundo fator pode não
ter sido objeto de forte politização como foi do outro lado do
Atlântico, mas o primeiro sem dúvida exerceu a mesma influência.
Não são poucos os problemas da “Tradição 0”. Os mais impor­
tantes serão descritos aqui. É claro que se trata de uma inovação
introduzida em larga escala no cristianismo somente no século
16. Sua conseqüência prática mais significativa foi o escândalo do
sectarismo protestante, causador da multiplicação de denominações
diferentes. Um dos argumentos mais fortes do catolicismo romano
contra o protestantismo, não se pode negar, é a proliferação de deno­
minações protestantes em razão de questões cada vez mais ínfimas
de doutrina e prática em um evidente desprezo pela unidade visível

15Mathison, Shape o f sola Scriptura, p. 142-9.


16Ibidem, p. 239.
A Bíblia e a vida cristã: ap licação da doutrina das Escrituras 181

da igreja. Embora muitas vezes se diga que o principal motivo desse


sectarismo é o sola Scriptura, ele não pode ser responsabilizado, pelo
menos não no sentido que os reformadores dão ao termo (isto é, de
acordo com a Tradição I). Aliás, eles desejavam reformar a igreja a
partir de dentro e não abandoná-la. A doutrina que deu impulso
às constantes divisões de denominações e igrejas não foi a sola
Scriptura, mas, sim, a solo Scriptura.
Além disso, conforme apontam diversos críticos, a solo Scriptura
não pode dar conta sozinha da coleção de escritos que formam o
cânon das Escrituras conforme o temos. A Bíblia não nos chega
totalmente formada com a página do sumário soprada por Deus. Em
vez disso, o cânon das Escrituras foi compilado ao longo do tempo,
não por meio de decretos autoritários da alta liderança eclesiástica,
mas pelo reconhecimento gradual, através das igrejas, de quais livros
eram inspirados por Deus e quais não eram. Portanto, a página do
sumário na Bíblia é uma tradição herdada pela igreja, amplamente
reconhecida como correta pelas antigas gerações de crentes. Em
outras palavras, embora certamente seja fácil dizer que alguém está
abrindo mão da tradição, na verdade isso não é possível.
M uito mais que isso, Herman Bavinck diz que a tradição é
necessária para que nos conectemos novamente com as Escrituras.
As Escrituras são certamente a “voz viva de Deus”, mas, desde os
tempos em que foram escritas:

as pessoas, sua vida, seus pensamentos e seus sentimentos, muda­


ram. Portanto, é preciso que haja uma tradição que preserve a
ligação entre as Escrituras e a vida religiosa do nosso tempo.
A tradição, no sentido próprio do termo, é a interpretação e a
aplicação da verdade eterna no vernáculo e na vida da presente
geração. E impossível haver Escritura sem tal tradição.17

17Bavinck, Reformed dogmatics, vol. 1, p. 493.


182 Teologia da revelação

Isso chama a atenção para o papel necessário das tradições da


interpretação bíblica a cada nova geração de cristãos que leem a
Bíblia, definindo com muita clareza o que é “tradição” em sentido
positivo. Também nos leva a identificar mais uma dificuldade da
Tradição 0. Quem lê a Bíblia o faz com um conjunto herdado de
expectativas e premissas, algumas conscientemente preservadas,
outras inconscientes. É claro que será perigoso se tais expectativas
e premissas estiverem equivocadas. O que costuma ser igualmente
perigoso é alguém negar que as tenha. De fato, na prática, as
comunidades que cultivam a Tradição 0 não podem, em geral, deixar
de abraçar algum tipo de tradição, para que haja coerência na fé da
comunidade e para não resvalar para uma anarquia em que cada um
age e crê simplesmente segundo o que é certo aos próprios olhos.
Por isso, essas comunidades importam às ocultas a “tradição”, sem
identificá-la como tal, sob a forma de um cargo de superioridade no
grupo, concedido a um ou mais indivíduos considerados especialmente
capacitados para discernir a voz do Espírito nas Escrituras. Algumas
comunidades de Tradição 0, é verdade, mantiveram com êxito as
abordagens democráticas individualistas das Escrituras, em que cada
pessoa pode ser “seu próprio papa”. Na prática, porém, a maior parte
dessas comunidades percebeu que era preciso haver coesão em torno
de um indivíduo “ungido”cujos ensinamentos consolidam “tradições”
contemporâneas, ao mesmo tempo que sempre afirmam que a única
coisa que está acontecendo é que “estamos ouvindo Deus falar por
meio da Bíblia”.
Portanto, o sola Scriptura, em sua formulação adequada, encon­
trada no pensamento dos principais reformadores protestantes, não
é o que muitos de seus críticos ou defensores modernos imaginam
que seja. Ele não nega a necessidade das tradições de interpretação
bíblica, das formulações da fé bíblica e das práticas herdadas pela
igreja que ajudam a expressar a fé e passá-la adiante. Pelo contrário,
o sola Scriptura garante que todas essas tradições estão a serviço das
A Bíblia e a vida cristã: ap licação da doutrina das Escrituras 183

Escrituras, a autoridade suprema, e não competindo com ela. Sola


Scriptura significa “Escritura suprema”.

As Escrituras e a comunidade cristã


Nesta seção, continuaremos a aplicar à vida da igreja o que aca­
bamos de dizer a respeito do sola Scriptura. Nossa primeira tarefa
consistirá em examinar melhor a relação de subordinação entre
a autoridade da igreja e a autoridade suprema das Escrituras.
Em lTim óteo 3.15, lemos que a igreja é “coluna e alicerce da
verdade”. Esse texto deu aos católicos romanos que se opunham
à Reforma protestante a base para seu argumento segundo o qual
a autoridade das Escrituras repousa, de fato, sobre a autoridade
da igreja. Desse modo, o cardeal Perronius afirmou que a perfei­
ção e a suficiência das Escrituras são “mediatos” e não “imedia­
tos”. Em outras palavras, as Escrituras nos remete à igreja, que
complementa o que falta à Escritura.18 Em resposta, os protes­
tantes voltaram-se para textos como Efésios 2.20, que se refere à
igreja edificada “sobre os fundamentos dos apóstolos e dos pro­
fetas, sendo o próprio Cristo Jesus a principal pedra de esquina”.
Esse versículo coloca a igreja diretamente sobre o fundamento
dos escritos proféticos e apostólicos, não o contrário. Contudo,
poderíamos indagar de que maneira é possível mesclar isso com a
condição da igreja como “coluna e alicerce da verdade”.19 Francis

18Citado em Richard A. Muller, P ost-R eform a tion R efo rm ed dogm a tics (Grand
Rapids: Baker, 1993), vol. 2: H oly S cripture: th e co g n itiv efo u n d a tio n o fth eo lo g y, p. 334.
19Talvez valha a pena observar que a palavra às vezes traduzida por “alicerce”em
lTimóteo 3.15 (h edraiõm a ) não é o te r m o mais comum com essa tradução no Novo
Testamento (o mais comum é them elios) e ocorre uma única vez. Seu significado
exato não é claro. Pode se referir ao alicerce de um edifício, mas também a um “pilar”
ou “suporte”, que é como Turretin e a recente tradução English Standard Version
a traduzem. Veja George W. Knight III, The P astoral E pistles, New International
Greek Testament Commentary (Grand Rapids/Carlisle: Eerdmans/Paternoster,
1992), p. 181.
184 Teologia da revelação

Turretin explica que a função da igreja em relação à Escritura


consiste em cinco aspectos.20 A igreja é:

• gu ardadora ep reserva d ora das Escrituras;


gu ia que nos conduz às Escrituras;
defensora das Escrituras, fazendo distinção entre os livros
canônicos genuínos e os livros espúrios;
arauto que proclama a verdade das Escrituras;
intérprete dedicada à tarefa de revelar o sentido das Escrituras.

“Todos esses aspectos, porém”, conclui Turretin, “implicam um


poder somente ministerial, não magisterial”.
Segundo o costume da teologia ortodoxa protestante do
século 17, Turretin também explica em termos mais filosóficos
o que ele quer dizer com autoridade “m inisterial” da igreja, mas
não “magisterial”:

se a questão é por que, ou devido a que, creio ser a Bíblia divi­


na, responderei que o faço em função da próprias Escrituras que,
por suas marcas, provam-se como tal. Se me perguntarem por que
creio ou com base em que creio, responderei que creio por causa
do Espírito Santo e com base nele, que produz essa fé em mim.
Por fim, se me perguntarem por quais meios ou instrumentos
creio nisso, responderei que é pela igreja que Deus usa para me
transmitir as Escrituras.

Como exemplo, Turretin observa que a autoridade de uma lei


humana não repousa sobre os juizes que a preservam e a põem em

20Todas as referências a Turretin a seguir são de Institutes o f elenctic the-


ology, tradução de George Musgrave Giger, edição de James T. Dennison, Jr.
(Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1992), vol. 1: First through tenth top-
ics, 2.16.1-26.
A Bíblia e a vida cristã: ap licação da d o utrina das Escrituras 185

vigor, mas sobre o governante que a proclama. Portanto, a auto­


ridade das Escrituras repousa, em últim a análise, sobre Deus,
que é seu autor, e agora fala por meio dela. Contudo, os juizes
humanos exercem a função de “coluna e alicerce” da lei, porque
a guardam, transm item -na e agem com base nela. Por conse­
guinte, quando a igreja expõe doutrinas tais como a da Trindade,
que não são encontradas explicitamente nas Escrituras, ela não
está compensando algum a insuficiência das E scrituras, agin ­
do por meio de algum a outra autoridade. Pelo contrário, ela
está agindo como ministro, extraindo verdades im plícitas às
próprias Escrituras.
H á dois outros pontos que decorrem dessa explicação da
relação da igreja com as Escrituras. O primeiro deles é que uma
doutrina sólida do sola S criptu ra não precisa absolutamente
deixar de ter em alta conta a autoridade da igreja visível. Isso
precisa ser ressaltado com veemência em muitos círculos evan­
gélicos modernos, nos quais é comum pressupor que defender a
autoridade das Escrituras coloca o direito do indivíduo de inter­
pretá-las por si mesmo acima da interpretação coletiva historica­
mente feita pela comunidade. Por exemplo, o vigésimo artigo dos
Trinta e Nove Artigos da Igreja da Inglaterra, “Da autoridade
da igreja”, diz:

A Igreja tem poder de decretar Ritos ou Cerimônias, e autoridade


nas controvérsias da Fé, todavia não é lícito à Igreja ordenar coisa
alguma contrária à Palavra de Deus escrita, nem expor um lugar
das Escrituras em repúdio a outro. Portanto, embora a Igreja seja
testemunha e guarda das Escrituras Sagradas, assim como não lhe
é lícito decretar coisa alguma contra ela, também não deve obri­
gar que se creia em algo que nela não se encontre como necessária
para a salvação.
186 Teologia da revelação

Essa declaração bastante sucinta afirma claramente o entendi­


mento dos reformadores tanto do sola Scriptura quanto da suficiên­
cia das Escrituras, colocando sua aplicação pela igreja claramente
sob a autoridade do que as Escrituras dizem. Contudo, ela também
confere à igreja a autoridade para estabelecer padrões de adoração
coletiva que devem ser observados, contanto que fique provado
que eles não se opõem à Escritura. De fato, o trigésimo quarto
artigo dos Trinta e Nove Artigos exige que qualquer pessoa que
rompa abertamente tais padrões “por particular juízo, com ânimo
voluntário e deliberado,” seja publicamente repreendido como
quem ofende a “ordem comum da Igreja [...] a autoridade do
Magistrado [...] e a consciência dos irmãos débeis”. Não se afirma
ser necessariamente correto, nessas questões de adoração coletiva,
conferir tal autoridade a uma estrutura denominacional ou nacional;
não discutiremos esse tópico aqui. Pelo contrário, a questão é que
gerações anteriores de cristãos que acreditaram completamente na
suficiência das Escrituras e no sola Scriptura também consideravam
muito coerente com essas doutrinas dar autoridade à igreja em áreas
nas quais as Escrituras nada dizem explicitamente, e em questões
nas quais não há consenso entre os crentes que creem fielmente na
Bíblia. Se os evangélicos de hoje costumam não achar adequado
esse tipo de autoridade eclesiástica juntamente com o sola Scriptura,
isso seria uma prova a mais de que o entendimento que eles têm
está mais próximo do “solo Scriptura descrito na seção anterior do
que do sola Scriptura dos reformadores.
Essa suspeita de hoje em relação à autoridade da igreja
aplica-se não apenas aos evangélicos nas denominações cujas
estruturas são hierárquicas. M uitas vezes também se aplica aos
evangélicos cuja visão da igreja exclui o exercício da autoridade
externa sobre a congregação local. M ark Dever, líder da igreja
batista dos Estados Unidos, queixou-se recentemente da falta da
aplicação sólida e amorosa de disciplina eclesiástica nas igrejas
A Bíblia e a vida cristã: aplicação da d o utrina das Escrituras 187

americanas.21 São muitas as razões que se podem apontar para


o declínio da prática disciplinar na igreja no século 20, porém
uma delas certamente é o fato de que o surgimento do “solo
Scriptura tornou indefensável o exercício de poder por parte das
autoridades da igreja sobre o crente, uma vez que o indivíduo
tem a Bíblia em suas mãos e afirma ter o Espírito no coração,
e o faz com tanta firmeza quanto qualquer líder de sua igreja.
Todavia, se entendermos bem o que significa o sola S criptura,
será perfeitamente possível aliar a esse entendimento a prática
da disciplina eclesiástica e ter em alta conta a autoridade dos
presbíteros da igreja.
A segunda aplicação que decorre do sola Scriptura em relação à
igreja é que não precisamos, aliás, não devemos, negar que a igre­
ja precisa nos capacitar a recorrer primeiramente à Escritura, aju­
dando-nos a compreendê-la da maneira correta. Nesse sentido, o
teólogo americano Stanley Hauerwas escreveu em tom provocati­
vo (pensando nas igrejas dos Estados Unidos) que o sola Scriptura
“é uma heresia, e não uma ajuda à igreja”. Ele sabe que a aplicação
contemporânea do sola Scriptura não costuma ser a mesma que os
reformadores tinham em mente. Aliás, segundo ele, o conceito aca­
bou compartilhando muitos pontos em comum com a erudição
bíblica liberal. Ambos, diz Hauerwas, “partilham do pressuposto
de que o texto bíblico deve ter um sentido racional (para qualquer
pessoa), independentemente das aplicações que a igreja tem para
as Escrituras”. Ambos “querem disponibilizar o cristianismo para a
pessoa de bom senso sem transformação moral”.22

21Mark Dever, N in e m ark s o f a h ea lth y church, ed. rev. (Wheaton: Crossway,


2004), p. 167-93 [edição em português: N o v e m a rca s d e u m a ig r e ja s a u d á v e l (São
José dos Campos: Fiel,2011)].
22Stanley Hauerwas, U n lea sh in g th e S c r ip tu r e s :fr e e in g th e B ib le fr o m ca p t iv -
ity to A m erica (Nashville: Abingdon, 1980), p. 18,27,36.
188 Teologia da revelação

É verdade que, em seguida, Hauerwas vai longe demais ao


argumentar, ao que tudo indica, que as Escrituras têm sentido
apenas à medida que a igreja encontra nelas o sentido e a vivência.23
Contudo, a ideia principal de Hauerwas é muito útil. Na verdade,
há indivíduos que leram a Bíblia toda por conta própria sem contato
algum com comunidades de cristãos e acharam que a mensagem de
redenção do pecado através da obra expiatória de Cristo era clara o
bastante para convencê-los. Eles depositaram sua fé salvadora em
Cristo totalmente com base nessa leitura solitária. Contudo, tais
casos são raros e parecem ser obras especiais da graça de Deus.
O exemplo muito mais comum é alguém que encontra
uma comunidade de cristãos e aprende a estudar as Escrituras,
abrindo a mente e os olhos do coração para seu significado e sua
mensagem, assimilando assim o modo de vida da comunidade e
suas formas de ler a Bíblia. No ministério evangelístico de minha
igreja, dificilmente deparo com alguém que venha a entender o
pecado, a cruz e a graça sem antes passar algum tempo com outros
cristãos, observando como eles leem a Bíblia e se dando conta, às
vezes para sua surpresa, que já evidencia alguns comportamentos e
posturas da vida espiritual. Não se trata apenas de observar a vida
transformada dos crentes e então achar que o evangelho é mais
atraente. Isso sem dúvida acontece, mas o fato é que, à medida
que começam a adotar alguns hábitos e comportamentos cristãos,
essas pessoas percebem que a mensagem da Bíblia as alcança de
forma mais clara e convincente. Quanto mais a pessoa adota as
práticas e posturas da comunidade da aliança, mais compreensível
e assimilável se toma a fé no Deus da aliança.
Pode-se expressar essa realidade dizendo-se que o “pertencer”
deve preceder o “crer”ou vir junto com ele. Não discutiremos aqui

23Veja Timothy Ward, Word and supplement: speech acts, biblica! texts, and the
suffciency o f Scripíure (Oxford: Oxford University Press, 2002), p. 187-90.
A Bíblia e a vid a cristã: ap licação da d o u trin a das Escrituras 189

a teoria evangélica subentendida numa frase como essa. Quero


dizer que é perfeitamente coerente acreditar que, para muitos, é
difícil ouvir o evangelho e responder a ele sem pertencer a uma
comunidade de crentes, sem adotar seus hábitos de vida e seus
métodos de leitura da Bíblia e, ao mesmo tempo, crer em uma
doutrina tão inequívoca quanto a sola Scriptura que seja fiel à dou­
trina de Lutero e Calvino.

As Escrituras e a pregação
Ao discorrer sobre a pregação, quero expor também uma série de
tópicos estudados nas primeiras seções deste livro. Uma vez que a
pregação é um dos momentos mais importantes da vida da igreja,
o momento em que se abre as Escrituras, é bom refletir aqui de
forma mais detalhada sobre a pregação da perspectiva da doutri­
na das Escrituras.
Dois fatores importantes nos dias de hoje fizeram com que
a relevância da pregação fosse minimizada na mente dos cristãos
ocidentais. Em primeiro lugar, aprendemos a desconfiar de qual­
quer um que fale a partir de uma posição de poder. E o sermão,
ao lado do discurso das campanhas políticas e da conversa típica
das propagandas, é um dos principais exemplos de discurso cujo
propósito é exercer poder sobre outros. Não se pode negar que esse
tipo de desconfiança procede, uma vez que muitas vezes crentes
foram desviados por pregadores convincentes que se apresentavam
como porta-vozes de Deus e como canais especiais do poder
do Espírito Santo, mas seus ensinamentos vinham mais de sua
imaginação do que das Escrituras. Mesmo à parte desses apelos ao
Espírito Santo flagrantemente abusivos, colocar diretamente em
pé de igualdade a pregação e a própria Palavra de Deus, conforme
se reconhece com clareza na Segunda Confissão Helvética de
1566, pode muito bem ser uma prática protestante precursora das
190 Teologia da revelação

exageradas declarações de Roma sobre a infalibilidade papal. Em


algumas igrejas protestantes existe o que se chama de “papado
do púlpito”, em que a pregação tende a reproduzir um pouco
da proeminência autoritária e dominadora do papado romano,
embora, é claro, com um estilo geralmente mais ríspido.
É verdade que alguns pregadores, vendo claramente todos esses
perigos, procuram uma forma de pregar que evite o exercício de
poder e quaisquer afirmações teológicas exaltadas como conteúdo
do sermão. Em sermões desse tipo, o pregador não se apresenta
proclamando, declarando, exortando e repreendendo, mas com­
partilhando, refletindo, ponderando e imaginando. Todavia, esse
tipo de pregação, de modo geral, não provou ser mais aceitável no
mundo moderno (e no mundo cristão moderno) do que o outro
tipo que ostenta poder. Se o pregador exerce poder em demasia,
será combatido. Se for fraco demais, será desprezado.
O problema principal da pregação nesse estilo “fraco” é que
ele não é fraco pelos mesmos motivos que o apóstolo Paulo ju l­
gava ser fraca sua pregação. O que Paulo chamava de “fraca” era
sua decisão de não pregar em Corinto com floreios retóricos ou
especulações teológicas. Em vez disso, ele pregava Jesus Cristo, e
este crucificado, usando palavras simples e deixando a cargo do
Espírito Santo provar a seus ouvintes a veracidade de sua mensa­
gem (IC o 2.1-5). A pregação que procura aprender com esse mo­
delo de “fraqueza” deve ser confiante e assertiva em relação ao que
pode ser conhecido e ao que deve ser proclamado sobre Deus e
seus caminhos, pois Deus o revelou a nós. Essa pregação deve ser
também clara sobre o que não temos condições de dizer pelo fato
de Deus também não o haver revelado. A pregação se desvia tra­
gicamente de seu objetivo quando especula e pondera sobre coi­
sas que se deve proclamar de modo direto, mas também quando
proclama o que o pregador não tem condições de saber, porque se
trata de algo acerca do que as Escrituras silencia.
A Bíblia e a vida cristã: aplicação da d o utrina das Escrituras 191

O segundo fator que atualmente coloca os pregadores na


defensiva é mais teológico. É a recusa dá parte de alguns de vincular
a ação dinâmica e ininterrupta de Deus por meio do Espírito dire­
tamente aos atos de fala realizados pelas palavras das Escrituras
(os quais, conforme venho argumentando neste livro, estão uni­
dos em um nível fundamental). Em algumas teologias modernas,
a atividade contemporânea de comunicação do Espírito não está
relacionada de modo imperioso à linguagem e aos significados
das Escrituras. Quando queremos saber o que o Espírito diz à
igreja, não é obrigatoriamente à Escritura que devemos recorrer.
Em vez disso, o “discurso” do Espírito Santo é transformado em
algo mais metafórico e se acha naquilo que pensamos identificar
como orientações e estímulos sem palavras do Espírito.
A interpretação que um pregador faz da natureza da obra
do Espírito Santo em relação à linguagem e aos significados das
Escrituras afeta profundamente sua pregação, seja para melhor,
seja para pior. Por exemplo, se como pregador não sei ao certo se
o Espírito virá e agirá de forma decisiva através da minha prega­
ção dos atos de fala das Escrituras, pois ele um dia foi seu autor e
está vivo para proferi-los novamente, então minha pregação, para
que seja de proclamação, provavelmente assumirá uma de duas
formas. Posso acabar recomendando como norma minha própria
experiência espiritual, talvez usando alguns textos bíblicos para
ilustrar minha experiência, à guisa de precedente histórico. Ou
posso então me concentrar na repetição de crenças e práticas de
minha subcultura ou denominação cristã, que nos distingue de outros
grupos, reduzindo novamente a Bíblia a um guia de doutrinas ou a
um manual de ilustrações práticas.
Contudo, apesar dessa inquietação moderna para identificar
o sermão com a palavra de Deus, em todo o Novo Testamento
simplesmente se parte do princípio de que se deve realmente
identificar aquilo que os discípulos pregam com o discurso divino.
192 Teologia da revelação

Conforme vimos na perspectiva bíblica, Jesus diz aos setenta


antes de despedi-los: “Quem vos ouve, ouve a mim; e quem vos
rejeita, rejeita a mim” (Lc 10.16). Ele diz aos Doze: “Quem receber
aquele que eu enviar estará recebendo a mim; e quem me receber,
estará recebendo aquele que me enviou” (Jo 13.20). Paulo diz
que a mensagem divina de esperança de vida eterna vem à luz
através de sua proclamação (T t 1.3). Ele elogia os tessalonicenses
por aceitarem sua mensagem falada não como simples palavras
humanas, mas “como a palavra de Deus, como de fato é” (lT s 2.13).
Ele entra em conflito com os cristãos de Corinto que estavam
começando a duvidar de que seu discurso de estilo aparentemente
simplório devia ser identificado com o discurso direto de Deus a
eles (IC o 1 e 2).24
D izer que o discurso humano de um indivíduo sobre Cristo
crucificado é realmente D eus falando, e que o Espírito Santo
vem com poder através de um discurso aparentemente frágil,
parece algo que corre o perigo de beirar a blasfêmia. Todavia,
esse é claramente o padrão da difusão do evangelho depois do
Pentecostes, estabelecido por Cristo e pelos apóstolos. Embora
cheio de perigos e tentações, ele nos é simplesmente dado como
modelo para o ministério. Karl Barth adverte os pregadores de
que a verdadeira pergunta a ser respondida sobre a pregação
não é “Como fa z er} ”, mas “Como ter capacidade de fazer?”.25
A advertência im plícita nesse questionamento é sempre opor­
tuna. No Novo Testamento, o precedente é que o pregador sim­
plesmente pode e deve pregar, com temor e tremor, porque lhe
foi dado o privilégio de falar as palavras de Deus, e ele não tem

24Veja outras informações em Donald G. Bloesch, E ssen tia ls o f e v a n g e lic a l


th e o lo g y (Peabody: Prince, 1978), vol. 2: L ife, m in istry, a n d h op e, p. 71-103.
2SKarl Barth, The W ord o f G od a n d th e w o r d o f m a n , tradução para o inglês de
Douglas Horton (London: Hodder & Stoughton, s.d.), p. 103.
A Bíblia e a vida cristã: ap licação da d o u trin a das Escrituras 193

o poder de determinar o resultado da sua pregação, mas que não


o faça com tanto temor que ponha a perder sua resolução de
conhecer e proclamar Cristo, e Cristo crucificado.
O que protege o pregador contra a arrogância e a declaração
blasfema de que suas palavras são as palavras de Deus, apesar de
não serem, é a lembrança constante de que, sob todos os aspectos,
o ato de pregar só é possível pela atividade do Espírito Santo. Um
dos temas recorrentes de Calvino quando ele discorre sobre pre­
gação e pregadores é que Deus a um só tempo os exalta e os humi­
lha. Eles são separados por Deus como ministros do Espírito, mas
Deus reivindica para si todo poder e eficácia da pregação.26 Por
isso, quero examinar como o pregador está cercado de todos os
lados pela atividade do Espírito Santo. O Espírito está em ação
na comunicação efetiva de um sermão, mas não apenas nisso. Ele
também se antecipou ao pregador. No momento da comunicação
do sermão, os três elementos da pregação (o texto bíblico a ser
pregado, o p reg a d o r e a con gregação que ouve) derivam sua iden­
tidade verdadeira da obra do Espírito Santo neles e sobre eles.
Eles são o que são exclusivamente em virtude da obra do Espírito.
O sermão é pregado em um contexto preparado pelo Espírito e
cheio dele. A atividade poderosa do Espírito Santo no ato da
pregação não é, portanto, um relâmpago inesperado que, do nada,
corta o céu azul para que então Deus entre em cena com poder
durante dez, vinte ou quarenta minutos. Em vez disso, o poder do
Espírito que atua pela Palavra pregada é inseparável e dependente
da obra preparatória e incessante do Espírito sobre o texto bíblico,
sobre o pregador e sobre as pessoas que ouvem a pregação. Temos
de refletir um pouco sobre a obra preparatória do Espírito em
cada um desses três elementos.

36Vbja esp. John Calvin, Commentary on 1 Cor 3:7; 2 Cor 3:6; 1 Pet 1:25;
Institutes 4.1.16.
194 Teolog ia da revelação

O Espírito e a Bíblia
O que a Bíblia diz, Deus diz; e Deus Espírito Santo tem agido
com sua providência no mundo para que isso aconteça. O com­
ponente divino das Escrituras não exclui o humano, mas as ações
divina e humana se realizam juntas (de modo “concorrente”), à
medida que Deus supervisiona a produção das Escrituras. Na ver­
dade, “supervisionar” é um dos principais termos usados por B. B.
W arfield para descrever a ação providencial de Deus na autoria
e compilação das Escrituras.27 Portanto, como já observamos, esse
conceito de interpretação bíblica é de fato um aspecto da doutrina
da providência.
Essa doutrina da inspiração bíblica verbal plenária é de
grande benefício prático para o pregador. Ela lhe dá um con­
teúdo imbuído de autoridade e sentido: um ato de fala com
conteúdo propositivo e propósito ativo. Ela também lhe dá algo
para dizer que claramente não é palavra dele, algo que não tem
origem apenas humana, pois Deus a proferiu antes do pregador.
Portanto, este pode se proteger do risco de ser um falso mestre
no púlpito. O Espírito não inspira um evangelho novo a cada
sermão, cuja alegação de verdade esteja relacionada somente à
pessoa do pregador. Se assim fosse, estaríamos perdidos no tipo
destrutivo de culto à personalidade que parece ter atormentado
a igreja de Corinto em seus primórdios e que, desde então, tem
afetado muitas outras igrejas. Em vez disso, o Espírito conclama
tanto a congregação quanto o pregador de volta à mensagem
de uma vez por todas revelada. A atividade do Espírito através
dos atos de fala da Bíblia é coerente agora com a atividade dele
em sua composição no plano da gram ática e dos significados
naquela época. O Espírito, como Espírito de Cristo, conduz a

27Veja A. N. S. Lane, “B. B. Warfield on the humanity of Scripture”,


Vox E vangélica 16 (1986), p. 77-94.
A Bíblia e a vida cristã: aplicação da d o u trin a das Escrituras 195

igreja ao futuro chamando-a de volta à Palavra escrita da qual


ele é o autor.
Além disso, o Espírito se antecipou ao pregador na produção
das Escrituras de tal maneira que os textos bíblicos produzem
sentido da mesma forma que qualquer outro texto de autoria
humana. É claro que boa parte do conteúdo das Escrituras é
exclusiva, e o propósito para o qual ela foi escrita pode ser concre­
tizado somente por Deus, mas a maneira pela qual a lingua­
gem bíblica funciona enquanto linguagem é comum e humana.
O Espírito Santo imprime na mente e coração do pregador o
sentido natural das palavras da Bíblia, para que ele possa pregá-la
hoje, confiante de que Deus lhe deu uma mensagem que o isenta
da pregação blasfema de uma mensagem de autoria humana. E
inevitável que essa confiança acarrete riscos, pois no pecador pode
facilmente se transformar em autoconfiança. Contudo, o que não
se pode evitar é o fato de que Deus decidiu que palavras humanas
também são meios de seu discurso. Calvino observa que muitas
vezes há na Bíblia “tamanho vínculo e laço de união entre a graça
de Cristo e o esforço humano, que em muitos casos se atribui ao
ministro o que pertence exclusivamente ao Senhor”. O pregador
pode afirmar “Isto é o que Deus diz...” unicamente por causa do
testemunho da Bíblia quanto à ação providencial de Deus através
da ação humana e porque a ação de Deus nos atos de fala da Bíblia,
e através deles, constitui o conteúdo de sua proclamação. Pregar
é um excelente exemplo do que Calvino chama de “completa
dispensação do evangelho, que consiste, de um lado, na influência
secreta de Cristo e, de outro, nos esforços externos do homem”.28
Dessa perspectiva, o que o pregador fiel faz, e o que o
Espírito Santo faz com as Escrituras através dele, pode ser mais
bem descrito como o restabelecim ento contem porâneo do ato de fa la

28Calvin, Commentary on 2 Cor 3:6.


196 Teologia da revelação

p roferid o p elo E spírito na autoria origin a l do texto. Essa ideia de que


o sermão é em si mesmo um ato redentor de Deus no presente é
comum na literatura sobre a pregação. O sermão é um ato que dá
continuidade no tempo ao grande ato redentor que Deus reali­
zou uma vez na história ao enviar seu Filho. P. T. Forsyth, teólogo
escocês do final do século 19 e início do 20, diz que o evangelho
é “o ato de redenção de Deus antes de ser mensagem do homem
que comunica esse ato [...]. Esse ato é perpetuado na palavra do
pregador e não meramente proclamado”.29 A teoria e prática da
pregação de Calvino foram descritas em termos semelhantes:
“Calvino sempre pensa na pregação como uma traditio, a trans­
missão de alguma coisa recebida; como tal, é um momento na
reconciliação divina do mundo com o próprio Deus”.30
Neste ponto, a atividade humana e a divina se unem mais pro­
fundamente na pregação. Um texto bíblico escrito, por exemplo,
para instilar em seus primeiros leitores e ouvintes uma esperança
confiante de que, na vinda futura de Cristo, sua perseverança na
fé será vindicada, realiza novamente a mesma ação na vida dos
crentes atuais. Isso acontece no sermão se o pregador for fiel ao
p rop ósito do texto original e se o desenvolver não apenas como
um discurso sobre a esperança, mas como uma ação que inspira
esperança em si m esm a. Ê claro que alguns lugares e práticas
incidentais mencionados nas Escrituras serão modificados no
sermão ao serem aplicados aos ouvintes contemporâneos que

29P. T. Forsyth, P o sitiv e p r e a ch in g a n d th e m o d em m in d (London: Hodder &


Stoughton, 1907), p. 6. Embora de muitas maneiras Forsyth tenha sido influenciado
pelas conclusões de pesquisas bíblicas céticas, ele faz várias observações perspicazes
sobre a pregação. A respeito da pregação como ato redentor, veja também “Pregar
não é meramente uma palavra sob re Deus e seus atos redentores, mas uma palavra
d e Deus e, como tal, um eventó redentor” (Sidney Greidanus, The m o d em p r ea c h e r
a n d th e a n cien t tex t: in te r p r e tin g a n d p r e a ch in g b ib lica l litera tu re [Grand Rapids/
Leicester: Eerdmans/IVP, 1988], p. 9).
30T. H. L. Parker, C a lv in s p r e a ch in g (Edinburgh: T. &T. Clark, 1992), p. 36.
A Bíblia e a vida cristã: aplicação da d o u trin a das Escrituras 197

vivem, digamos, na G rã-Bretanha dó século 21 e não na antiga


Tessalônica. Contudo, o p rop ósito original do texto conferido
pelo Espírito e a essência do conteúdo de sua mensagem a
respeito de Cristo, de sua volta futura e da situação dos cristãos
no mundo serão reconstituídos com fidelidade. Pela graça, hoje
o Espírito está mais uma vez presente na mensagem pregada,
desde que esta seja fiel em p rop ósito e conteúdo àquilo que um
dia ele inspirou.
Obviamente a pregação deixará de ser fiel à Escritura se
seguir o propósito do texto sem que seja totalmente modelada
por seu conteúdo. Isso é comum na pregação das igrejas de
teologia liberal, que procura dar esperança e inspirar fé, mas não
raro proclama um Cristo diferente daquele encontrado no Novo
Testamento. Pode também acontecer em círculos evangélicos
mais ortodoxos que atribuem um valor particularmente alto ao
entusiasmo e à emoção de seus pregadores.
Contudo, a pregação também deixará de ser fiel à Escritura se
seguir o conteúdo das Escrituras e não procurar, ao mesmo tempo,
ser um veículo de reconstituição do propósito para o qual aquele
conteúdo foi transmitido. Isso pode acontecer em algumas pre­
gações evangélicas conservadoras, sobretudo quando o modelo
básico do pregador é, supostamente, o de um “mestre da Bíblia”
(como é comum acontecer na cultura em que fui preparado para o
ministério). A pregação bíblica fiel deve levar em conta, sem dú­
vida alguma, a instrução exegética e doutrinária, mas não pode se
dar por satisfeita somente com essas coisas. Se assim for, ela pro­
vavelmente será monótona e sem vida, destituída de poder para
despertar as emoções e a vontade. A pregação bíblica realmente
fiel exige do pregador que ele procure expressar todo aspecto ver­
bal (e físico) de sua pregação, de tal modo que o Espírito possa
a g ir através de suas palavras na vida dos ouvintes, ministrando o
conteúdo das Escrituras de acordo com o propósito dela.
198 Teologia da revelação

O Espírito e o pregador
Portanto, o Espírito se antecipa ao pregador e a seu sermão no que
diz respeito ao texto bíblico. Ele também se antecipa ao pregador
no que diz respeito ao próprio pregador. Em primeiro lugar, o
fiel pregador da Bíblia deve ser sempre alguém formado pelo
encontro pessoal com o Espírito Santo. Isso se aplica tanto à sua
identidade de crente que se relaciona com o Cristo ressurreto por
meio do Espírito quanto à sua identidade de pessoa que recebeu
do Espírito Santo o dom de pregar. O conhecido adágio de que
a boa pregação é fruto da “verdade através da personalidade”
expressa bem essa ideia, contanto que se entenda que se trata de
uma personalidade regenerada. O pregador deve ter lidado com
o significado do texto em seu preparo, desejando que o propósito
conferido pelo Espírito ao texto bíblico se torne real em sua
vida. Ele deve subir ao púlpito como alguém disciplinado pelo
Espírito, ou que dele recebeu nova esperança, ou que segue agora
um novo curso de ação, ou que tenha renunciado a um tipo de
comportamento, ou em cujo coração o amor arde novamente,
isto é, alguém que responde com fidelidade ao ato de fala rea­
lizado pelas Escrituras, sobre a qual ele está pregando. Somente
se o propósito do texto tiver sido reconstituído pelo Espírito
no pregador antes da pregação, poderá ele esperar ser o meio
de igual reconstituição pelo Espírito na vida de seus ouvintes.
John Goldingay expressa assim esse pensamento: “Na pregação,
não relatamos meramente o que um dia foi dito, tampouco
relatamos algo que ouvimos dizer. A pregação bíblica flui de um
ouvir renovado das Escrituras”.31 A graça de Deus é evidente na
coerência da obra do Espírito através do texto. Ele age na vida do
pregador com a mesma intenção com que agiu sobre os primeiros

31John Goldingay, Models fo r interpretation o f Scripture (Grand Rapids/


Carlisle: Eerdmans/Paternoster, 1995), p. 278.
A Bíblia e a vida cristã: aplicação da do utrina das Escrituras 199

leitores, e age sobre os ouvintes do sermão com a mesma intenção


com que agiu na vida do pregador.
Contudo, pode-se pensar que isso torna a obra poderosa do
Espírito Santo por meio da pregação dependente demais do
estado espiritual do pregador. Aliás, a experiência cristã nos diz
que o Espírito Santo, às vezes, atua através do sermão de pre­
gadores nada santos. A Segunda Confissão Helvética afirma
exatamente isso em sua identificação do sermão com a Palavra
de Deus: “a Palavra pregada deve ser objeto de atenção e não o
ministro que a prega; porque mesmo que seja ele mau e pecador,
não obstante a Palavra de Deus continua a ser verdadeira e
boa”.32 Aqui a pregação é considerada da mesma forma que os
sacramentos, cuja eficácia é independente da identidade ou do
estado espiritual daquele que os administra. O comentário do
apóstolo Paulo em Filipenses 1.15-18 nos vem à mente aqui.
Escrevendo da prisão, ele diz:

É verdade que alguns pregam Cristo até mesmo por inveja e dis­
córdia, mas outros o fazem com boas intenções. Estes o fazem
por amor, sabendo que fui posto aqui para defesa do evangelho;
mas aqueles anunciam Cristo por discórdia, não com sincerida­
de, pensando que assim podem aumentar o sofrimento das mi­
nhas prisões. Mas que importa? De qualquer forma, contanto
que Cristo seja anunciado, quer por pretexto, quer não, alegro-
-me com isso e, sim, sempre me alegrarei.

Na verdade, porém, Paulo não diz nada explicitamente sobre a


eficácia da pregação desses dois grupos distintos de pregadores.
Além disso, é bem provável que esses pregadores “rivais” sejam

32Arthur C. Cochrane, org,,Reformed confessions ofthe 16th century (London:


SCM, 1966), p. 225.
200 Teologia da revelação

cristãos ortodoxos e não hereges ou judaizantes, conforme se


diz às vezes. É provável que façam parte do grupo de “irmãos”
a quem Paulo se refere no versículo 14, que, segundo o apóstolo,
sentiram-se encorajados para pregar depois que souberam que ele
havia sido preso. Além disso, o conteúdo de sua pregação, apesar
da oposição desses pregadores a um apóstolo encarcerado, ainda
é Cristo.33 Apesar da veemência da linguagem de Paulo, o que
divide os dois grupos não é o fato de que só um deles vive em
obediência fiel a Cristo, mas, sim, que um grupo vê com clareza a
mão da providência na prisão de Paulo e o outro, provavelmente,
se sente constrangido e envergonhado por isso e, portanto, é pos­
sível que esteja zombando do apóstolo. A incapacidade de ver
a mão de Deus no sofrimento de Paulo é uma séria deficiência
deles, mas não parece invalidar completamente sua identidade
como cristãos e pregadores fiéis.
Contudo, há outra evidência no Novo Testamento que dá a
entender que a eficácia da pregação cristã no poder do Espírito
Santo de certo modo depende da qualidade daqueles que pregam.
Um exemplo magnífico disso pode ser encontrado no testemu­
nho de Paulo sobre seu ministério de pregação emTessalônica. Em
ITessalonicenses 1.4,5, Paulo diz aos crentes: “Irmãos, amados
de Deus, sabemos que fostes escolhidos por ele, porque o nosso
evangelho não chegou [egen êth ê] a vós somente com palavras,
mas também com poder, com o Espírito Santo e com absoluta
convicção. Sabeis muito bem como procedemos [_eegenêthémen\
em vosso favor quando estávamos convosco”. Na mente de Paulo,
a chegada do evangelho e sua própria chegada como cristão fiel a
Tessalônica estão relacionadas. A repetição de gin om a i como
verbo principal no ver,sículo 5 muito provavelmente enfatiza

33Veja Peter T. 0 ’Brien, The Epistle to the Philippians, New International


GreekTestament Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 1991), p. 103.
A Bíblia e a vida cristã: ap licação da d o utrina das Escrituras 201

esse ponto.34 O efeito da mensagem pregada por Paulo foi que


a vida de muitos que a ouviram foi transformada em um tipo de
vida vivida pelo pregador. O elo entre a vida do pregador e sua
pregação como mensagem eficaz torna-se bem mais nítido nesses
dois versículos se “absoluta convicção” for uma referência não
à maneira como Paulo pregava, mas à convicção da verdade do
evangelho que sua pregação suscitou nos tessalonicenses.35 Esse
tema é importante em lTessalonicenses: depois de esboçá-lo no
capítulo 1, Paulo o amplia em 2.1-12,17-20. Portanto, podemos
dizer que a Segunda Confissão Helvética está correta ao dizer
que a Palavra pregada, se fiel à Palavra escrita, ainda é Palavra de
Deus. Todavia, a eficácia que o Espírito lhe concede na vida das
pessoas como Palavra de Deus pode ser obstruída se a vida do
pregador estiver em desacordo substancial com a mensagem.
Anteriormente, eu era crítico da ideia de que o pregador deve
apresentar sua experiência espiritual como exemplo à congrega­
ção. Contudo, há algo no pregador que deve servir de exemplo.
Ele não deve testemunhar com orgulho do seu nível de obediên­
cia ao texto. Mas ele pode dar testemunho do que o Espírito fez
em sua vida através do texto e, portanto, o que o Espírito deseja
fazer a outros através do texto.
Desse modo, o pregador é formado através do encontro pes­
soal com o Espírito Santo, que age sobre ele através dos textos bíbli­
cos. Além disso, o pregador é formado em comunidades cheias do
Espírito. Pregadores bíblicos fiéis não aparecem do nada, como

34Devo essa observação a meu ex-colega Andrew Comes.


3SOs comentaristas não estão de acordo a esse respeito. F. F. Bruce relaciona
a expressão ao efeito sobre os tessalonicenses: F. F. Bruce, 1 a n d 2 T hessalonians,
Word Biblical Commentary 45 (Waco: Word, 1982), p. 15. Calvino e
Wanamaker a relacionam à pregação de Paulo: Charles A. Wanamaker, The
E pistles to th e T hessalonians, New International Greek Testament Commentary
(Grand Rapids/Carlisle: Eerdmans/Paternoster, 1990), p. 78-9; veja também
Calvin, C o m m en ta ry on 1 Thess. 1:4-5.
202 Teologia da revelação

se fossem um Melquisedeque moderno. Eles são instruídos,


formados espiritualmente e chamados a ser pregadores em igrejas
habitadas pelo Espírito Santo. Quando a igreja chama alguém
para ser pregador, ela reconhece que ficará sob a autoridade
daquela pessoa. Sob a direção do Espírito Santo, a igreja tem
autoridade para chamar o pregador, reconhecendo que o Espírito
haverá de atuar e falar profeticamente através dele.
M ais que isso, o pregador deve fazer com que as pessoas
tirem os olhos das particularidades de sua comunidade cristã e
os voltem para a natureza universal do evangelho. P. T. Forsyth
diz que “a mensagem do pregador para a igreja é, na verdade,
a igreja pregando para a igreja [...] [pregar] é a fé grandiosa,
comum, universal dirigindo-se à fé da comunidade local”.36 As
cartas de Paulo fazem isso em várias ocasiões. Ele lembra aos
pequenos grupos de crentes que eles pertencem a algo maior
que eles mesmos. Eles não escolheram a Deus; ele os escolheu
para que fossem parte do crescimento do reino do seu Filho no
mundo todo. Aquilo em que creem, por maiores que sejam suas
dificuldades, é o que creem também inúmeras outras pessoas
no mundo todo. Por meio desse tipo de pregação, o Espírito
lembra a igreja local de que ela é somente uma parte da grande
casa espiritual viva que Deus está edificando (veja IPe 2.4,5).
Através do pregador, o Espírito levanta a igreja local para que ela
vislumbre a realidade do reino que ele está edificando no mundo,
do qual ela faz parte. Sua fé não é fütil nem ilusória, por causa da
realidade da obra universal do Espírito.
Portanto, mais que o crente, o pregador deve tratar com
leveza as diferenças denominacionais, para que, através de sua
pregação, o Espírito fale sem restrições sobre sua vasta obra no
mundo. Isso não significa que devam negar quem são nem quem

36Forsyth, Positivepreaching, p. 92, 94.


A Bíblia e a vida cristã: aplicação da doutrina das Escrituras 203

é a congregação. Eles terão de explicar com base nas Escrituras


(sempre que possível!) a origem de suas características deno-
minacionais. Contudo, o pregador não deve ter uma postura
defensiva em relação a essas características, sobretudo quando
houver outros crentes ortodoxos fiéis ao mesmo credo, mas cujas
perspectivas são diferentes. (Aqui observamos a importância dos
credos para o pregador, mencionados na seção anterior sobre o
sola Scriptura). O pregador deve deixar claro para a congregação
que seu compromisso é sobretudo para com todas as igrejas em
que o mesmo Espírito do Cristo ressurreto está presente e agindo
com clareza.

O Espírito e o povo de Deus


O Espírito se antecipa ao pregador na formação do texto da pre­
gação e em sua formação pessoal, tanto como cristão quanto como
alguém chamado a pregar o evangelho universal a congregações
específicas. O Espírito também se antecipa ao pregador na forma­
ção do p o v o que o u ve sua p rega çã o. Foi o Espírito que formou
o grupo de pessoas que se senta diante dele. É somente por­
que essas pessoas andam em conformidade com o Espírito que
elas se disporão a ouvir o que ele quer dizer. Uma das ironias
no caso dessas pessoas é que somente quando estão em confor­
midade com o Espírito é que elas sabem que estão começando
a se afastar dele. O melhor motivo para se reunir com outros
cristãos é que eles, como corpo, querem ser chamados de volta
à fé e à vida fiel e obediente a Cristo. Nesse sentido, Dietrich
Bonhoeffer, autor alemão do século 20, disse certa vez a respeito
de Atos 2.42 que os primeiros cristãos perseveravam no ensino
dos apóstolos. Ele diz que a essência do ensino, em geral, torna-
-se supérflua, à medida que as pessoas aprendem o que é ensi­
nado. Contudo, no caso do ensino cristão, o que é necessário é
204 Teologia da revelação

justamente a repetição.37 Até que Cristo volte, a igreja a um só


tempo cheia do Espírito e pecadora precisará dessa repetição.
A igreja saberá de sua necessidade de pregação regular somente
quando, como templo do Espírito Santo, vir o quanto ainda está
distante da glória de Deus. A igreja já é habitada pelo Espírito
Santo, mas sabe de sua necessidade de ser continuamente cheia
do Espírito. Em outras palavras, ela precisa estar mais ciente e
mais em conformidade com a realidade daquele que realmente
habita nela.
O pregador de uma igreja cristã, portanto, não está trazendo
algo fundamentalmente novo em seu sermão. E claro que ele
deve ensinar aspectos da fé bíblica dos quais a igreja ainda não
tem consciência, mas ele está apenas trazendo à luz coisas das
Escrituras que já são verdadeiras para ela, explicando mais a
verdade que ela já detém. No fundo, ele faz com que se lembrem
da única coisa que é inegavelmente verdadeira a seu respeito desde
que se dedicaram pela primeira vez ao evangelho apostólico: que
pela obra do Espírito de Deus eles não são mais o que eram.
O pregador que quer ser canal da obra do Espírito na vida das
pessoas deseja ser esse canal para pessoas nas quais o Espírito
já opera sem sua pregação. Portanto, podemos dizer que, pela
pregação, o Espírito fala por meio da Palavra por ele concedida,
mediante um pregador por ele formado, a um povo no qual ele
habita. Qualquer que seja a situação, o pregador é cercado pela
obra e vida do Espírito.
A pregação é o momento da verdade na vida da comuni­
dade cristã. O Espírito que habita nas pessoas também está
fora delas, falando através das Escrituras que ele antes escreveu,

37Dietrich Bonhoeffer, lh e cost o f discipleship (New York: Touchstone, 1995


[1959]), p. 249 [edição em português: Discipulado, tradução de Ilson Kayser
(São Leopoldo: Sinodal,2011)].
A Bíblia e a vida cristã: aplicação da doutrina das Escrituras 205

conclamando-as a que sejam fiéis a obra que ele começou em sua


vida. Muitas vezes, o sermão é o momento na vida de um cristão
que passa dificuldades em que ele pode dizer: “Sim, é verdade. E
nisso que realmente creio”. Isso acontece quando o Espírito que
habita nosso interior nos abre ao que o Espírito está dizendo e fa­
zendo por meio da palavra pregada a nós. Portanto, a pregação é
parte do meio espiritual através do qual Deus envia seu Espírito
sobre nós, a fim de nos levar à união com Cristo e nos manter
como participantes de seu povo da aliança. Conforme deixa claro
o apóstolo Pedro, Deus, em sua glória e bondade, resolveu permitir
que participássemos da natureza divina através de “suas preciosas e
mais sublimes promessas” (2Pe 1.3,4). Conforme eu já disse mais
de uma vez, uma promessa não pode ser transmitida de nenhuma
outra forma senão pela linguagem. Ela deve ser falada, para que seja
uma promessa eficaz. Portanto, entramos em comunhão com Deus
através de sua comunicação lingüística conosco. São esses atos de
fala divina, realizados nas Escrituras, que o pregador é chamado
a proclamar e a repetir. Nessa proclamação e repetição, Deus está
presente, realizando uma vez mais para a congregação a promessa
da aliança que ele fez nas Escrituras. Para o pregador, é um privi­
légio que Deus escolha usar a reaplicação de seus atos de fala no
sermão como ocasião para levar as pessoas a participar da natu­
reza divina. Deus certamente age desse modo pelo poder do seu
Espírito no ato da pregação. Ele o faz apenas como clímax de uma
longa ação preparatória do Espírito na formação das Escrituras, do
pregador e da congregação que ouve.

As Escrituras e o cristão
Em boa parte da cultura evangélica, a leitura da Bíblia pelo cristão
está no centro das práticas que distinguem um crente fiel. Isso se
aplica principalmente aos círculos nos quais fui instruído e me
206 Teologia da revelação

formei, aos quais sou profundamente grato. Em relação à leitura


individual da Bíblia como aspecto do discipulado cristão, deve-se
valorizá-la, encorajá-la e ensiná-la. No centro das preocupações
da Reforma protestante estava a convicção de que o Espírito
Santo é derramado sobre cada um que se dirige a Cristo pela fé
e que, portanto, o Senhor estabelece um relacionamento com
cada um através da sua Palavra no poder do Espírito. É claro
que é perfeitamente possível individualizar em excesso nosso
entendimento da salvação e da relação com Cristo, e isso, sem
dúvida alguma, aconteceu algumas vezes no evangelicalismo.
Contudo, conforme discutimos em seções anteriores deste capítulo,
uma ênfase exagerada no individualismo não é necessariamente
uma característica importante da Reforma protestante. Quando
ocorre, isso aponta para uma infiltração de influências culturais
externas na comunidade cristã. M as também é possível exagerar
na ênfase concedida aos aspectos coletivos da fé cristã e com
isso negligenciar a verdade segundo a qual cada pessoa é, por si
mesma, responsável perante seu criador.
Muitos cristãos em regiões pobres do mundo anseiam com ra­
zão ter o que os cristãos ocidentais há muito tempo consideram
algo natural: acesso imediato à Escritura por conta própria em casa
em uma tradução confiável em sua língua. Os cristãos ocidentais
deveriam considerar a posse de tais riquezas uma bênção especial.
(Eu não seria o primeiro a ressaltar que talvez fosse melhor se o di­
nheiro investido em traduções da Bíblia para nichos específicos do
mercado fosse, em vez disso, gasto com meios que levassem boas
traduções às mãos de nossos irmãos e irmãs do mundo todo que
até hoje não dispõem de uma Bíblia.) Conforme diz o Artigo 24
dos 39 Artigos da Igreja Anglicana, a oração pública e a liturgia,
juntamente com as Escrituras, não deveriam jamais estar “em uma
língua que as pessoas não possam compreender”, porque tal coisa é
“simplesmente repugnante para a Palavra de Deus”.
A Bíblia e a vida cristã: aplicação da doutrina das Escrituras 207

H á duas questões sobre as quais devemos refletir no que se


refere à relação do cristão com a Bíblia da perspectiva da doutrina
das Escrituras que venho expondo aqui. A primeira é o tipo de rela­
ção entre a leitura particular das Escrituras, de um lado, e, de outro,
sua leitura e pregação na comunidade. A segunda questão diz
respeito ao propósito e objetivo do crente ao ler as Escrituras.

A leitura individual da Bíblia em relação


à leitura coletiva e à pregação
Hoje há muitos cristãos que valorizam uma dessas coisas em
detrimento da outra. Alguns se satisfazem absorvendo o ensino
e a pregação em reuniões e conferências e veem pouca neces­
sidade de abrir as Escrituras em privado. Para outros, a prega­
ção das Escrituras na igreja é algo que deve ser submetido a seu
julgamento para decidirem se o que é pregado está em harmo­
nia com o que sentem lhes ter sido transmitido pelo Senhor na
leitura bíblica que fazem em particular. Eu diria que a maneira
mais saudável de estabelecer uma relação entre ambas é pensar
na leitura individual das Escrituras como algo derivado e de­
pendente da leitura coletiva e da proclamação das Escrituras na
assembleia cristã.38
H á duas razões fundamentais para relacionar o individual ao
coletivo desse modo. Em primeiro lugar, não podemos ignorar
o fato de que a igreja é o principal meio que Deus nos deu
para encontrá-lo em sua Palavra de um modo que nos capacite
a ouvir sua voz e responder a ele. Conforme vimos acima, essa
observação geralmente não é feita no evangelicalismo popular
moderno, talvez porque soe “católica demais” para alguns, uma
traição à herança protestante. Contudo, conforme vimos também,

38Mark Thompson diz a mesma coisa: A cleor andpresent word: the clarity o f
Scripture (Leicester: Apollos, 2006), p. 120.
208 Teologia da revelação

se conferirmos à igreja esse importante papel, estaremos mais


alinhados com as perspectivas coerentes dos pais da igreja e dos
reformadores protestantes, ao contrário do que costuma acontecer
com o evangelicalismo moderno.
A leitura e a pregação das Escrituras em público devem
dar àqueles que as ouvem estruturas e ferramentas que lhes
permitam ser fiéis à Bíblia e não distorcê-la em sua leitura
particular, pois a boa pregação se concentrará nas verdades
fundamentais que Deus ensina nas Escrituras. Desse modo, a
pregação dá aos ouvintes indicações freqüentes dos principais
ensinos que devem esperar encontrar em sua leitura particular
da Bíblia. Lembro-me de ter notado, quando jovem e novo
convertido, que os mesmos ensinos vinham à tona inúmeras
vezes na pregação das Escrituras que eu ouvia. Eram os ensinos
fundamentais da Bíblia expressos nos credos históricos. Depois
de um ano, ocorreu-me que essas verdades eram fundamentais
nas Escrituras e deveriam pautar minha interpretação pessoal.
Nesse sentido, a boa pregação exerce na igreja local uma função
“própria do credo” e dá às pessoas uma estrutura interpretativa
dentro da qual podem compreender trechos específicos das
Escrituras quando deparam com eles.
Além de uma estrutura de interpretação, um bom pregador
também dará a seus ouvintes ferramentas com as quais aprende­
rão a interpretar as Escrituras por conta própria e com fidelidade.
Como interpretamos a literatura apocalíptica? Como entendemos
as profecias e as leis do Antigo Testamento à luz de Cristo? O que
fazemos quando nos parece que uma parte das Escrituras contra­
diz outra? Como as pessoas crescem no conhecimento e na com­
preensão das Escrituras quando há tanta coisa nelas que ainda não
conseguem entender sozinhas? (E assim por diante.) E claro que
os cristãos podem aprender essas coisas pela leitura de livros, mas
aprenderão melhor com o pastor-mestre na igreja local.
A Bíblia e a vida cristã: aplicação da doutrina das Escrituras 209

Desse modo, dar prioridade ao uso coletivo das Escrituras em


lugar do individual é reconhecer que o Senhor continua a dar à
sua igreja pastores-mestres que explanarão os escritos bíblicos dos
profetas e dos apóstolos, a fim de equipar seu povo para a obra do
ministério e para edificar o corpo de Cristo (conforme diz Paulo
em E f 4.11-13). Isso talvez dê aos cristãos um motivo para que
pelo menos uma parte dos textos de suas leituras privadas esteja
mais alinhada com os textos que ouvem nas pregações.
Uma segunda razão para tornar a leitura individual da Bíblia
dependente da leitura e exposição coletivas é o fato de que há dois
milênios ela tem sido lida e ensinada, sobre ela se tem orado e con­
versado e com ela se tem lutado antes que qualquer um de nós ti­
vesse nascido. Esses milênios geraram convicções bem arraigadas a
respeito dos ensinos mais importantes da Bíblia, além de práticas
confiáveis de interpretação. Nossa principal postura diante dessas
coisas deve ser de aprendizes humildes e não de críticos.
Uma pequena ilustração a esta altura poderá nos ajudar. Fui
algumas vezes incentivado por outros, tanto como pregador quanto
como cristão que lê as Escrituras em particular, a simplesmente
consultar comentários bíblicos como último recurso, sempre que,
depois de muito lutar e tentar sozinho, não conseguisse entender
uma passagem, ou talvez só para confirmar que aquilo que eu
julgava ser seu significado não estava totalmente equivocado. Sem
dúvida há mérito em não consultar simplesmente obras eruditas
em busca de “respostas”, em uma espécie de atalho preguiçoso
para que eu mesmo não tenha de lutar com as Escrituras. M as,
cada vez mais ao ler a Bíblia, sinto vontade de consultar logo um
bom comentário bíblico em vez de deixar para mais tarde. M eu
motivo para isso é o seguinte: um bom comentário me dará uma
percepção da visão consensual do significado de cada passagem
que tiveram as gerações de crentes que me antecederam. Essa
estrutura parece ser um bom lugar para começar, lugar marcado
210 Teologia da revelação

por sensatez, humildade e fidelidade. Para a maior parte dos


cristãos, que não têm tempo nem recursos, aos quais também
falta a inclinação para a pesquisa, a boa pregação é um meio
importantíssimo pelo qual esse consenso histórico a respeito do
sentido das Escrituras é transmitido a cada crente. Para isso, é
claro, o pregador precisa ter boa instrução teológica e bíblica,
histórica e sistemática.
Nada do que acabei de dizer nega objetivamente que Deus
possa fazer uma nova luz irradiar das Escrituras, capacitando-
nos a perceber verdades que nossos antepassados não perceberam.
Tampouco estou negando que o Senhor possa falar pelas Escrituras
a cada pessoa em particular, ensinando e agindo de tal modo que
ela se torne instrumento em sua mão para a reforma de práticas
e crenças na igreja de modo geral. Parte da verdade da Reforma
do século 16 foi justamente o fato de que Deus agiu assim, e é
claro que essa não foi a única vez. Contudo, isso é apenas parte
da verdade. Também é verdade (e talvez em um grau ainda mais
elevado) que o Senhor capacitou os reformadores a pôr em prática
tanto as crenças tradicionais sobre as Escrituras que remetiam
aos primeiros dias da igreja quanto as formas de interpretação e
de aplicação das Escrituras que haviam herdado, todas elas então
obscurecidas, mas não perdidas. Foi certamente desse modo que
Lutero e Calvino entenderam o que estavam fazendo.

O objetivo da leitura bíblica


A segunda questão de que devemos nos ocupar aqui é a seguinte:
qual deve ser o objetivo do cristão quando lê a Bíblia por conta
própria? A resposta a essa questão, é claro, não é diferente do
objetivo que ele deve ter ao ouvir sobre a Bíblia em uma pregação.
O que esperamos das Escrituras deve ser determinado totalmente
por aquilo que a Bíblia é pelo propósito para o qual Deus fez com
que fosse escrita. Conforme venho dizendo ao longo deste livro,
A Bíblia e a vida cristã: aplicação da doutrina das Escrituras 211

as palavras das Escrituras são o veículo do discurso divino e, por


conseqüência, os atos de fala das Escrituras são Deus em ação
comunicativa. Na Bíblia, Deus se apresenta a nós e faz sua promessa
de aliança. Como parte dessa ampla ação, ele realiza muitas outras
ações através das Escrituras: gera fé, adverte, repreende, encoraja,
suscita esperança, conduz ao arrependimento e à santidade etc.
E, como característica necessária a todas essas ações, Deus nos
ensina verdades sobre si mesmo, sobre nós, sobre o passado e o
futuro. Portanto, as Escrituras, a exemplo de toda linguagem
falada ou escrita, são constituídas por um conteúdo propositivo e
por um propósito autoral, e os dois jamais devem ser separados se
quisermos ouvir o que Deus está dizendo nas Escrituras.
Portanto, a pergunta mais adequada que devemos fazer a nós
mesmos quando abrimos as Escrituras é a seguinte: O que Deus está
q ueren dofazer a mim, e em m im, através das palavras que estou len do?
Quando lemos a Bíblia, devemos estar prontos, em primeiro lugar,
para que Deus aja em nós, porque ao encontrarmos suas palavras e
ao deparar com suas ações, encontramos o próprio Deus.
E importante deixar claro que isso não abre a possibilidade
para que alguém leia um trecho das Escrituras e declare que ali
encontra Deus fazendo apenas isto ou aquilo em seu favor por
meio daquele texto. Os atos de Deus através das Escrituras são
atos dzfala. Esses atos serão determinados inteiramente pelas pa­
lavras e por seu conteúdo semântico. As normas da interpretação
gramatical e histórica não são evitadas. Contudo, a interpreta­
ção não é um fim em si mesmo; ler a Bíblia não é principalmente
um exercício de compreensão. A interpretação deve servir apenas
para nos conduzir a um encontro com Deus à medida que ele se
faz presente a nós nas Escrituras.
Portanto, uma leitura individual das Escrituras deve também
indagar: o que o Senhor está me ensinando aqui? Se não fizermos
essa pergunta, é bem provável que façamos com que frases isoladas
212 Teologia da revelação

das Escrituras signifiquem o que gostaríamos que significassem, a


despeito do significado que Deus quis lhes dar nas Escrituras, da
qual é autor. Com isso, transformamos as Escrituras num ídolo que
reflete simplesmente nossos desejos e preconceitos. Mas, se nossa
leitura das Escrituras se limitar a indagar o que ela “ensina”, estare­
mos cometendo o erro de elevar o conteúdo das Escrituras acima
de seu propósito. As Escrituras terão sido separadas em duas coisas
que não devem ser separadas. Portanto, devemos também pergun­
tar: o que, nesse trecho das Escrituras, o Senhor está querendo^/azur
a mim e em mim com esse ensinamento?
Muitos evangélicos se preocupam com a possibilidade de “inter­
pretar mal as Escrituras”. É claro que devemos nos preocupar em
interpretá-la bem, porque todo crente deve crescer no conhecimento
e no entendimento da Bíblia. Contudo, nossa principal preocupação
deve ser a facilidade com que nos contentamos em aprender a
verdade, recusando-nos ao mesmo tempo a deixar que Deus aja em
nós com essa verdade, como espada afiada que ele quer que ela seja.
Se quisermos saber o que fazer ao ler a Bíblia, a resposta está na
pergunta: o que devo fazer quando deparar com palavras proferidas
por Deus, palavras por meio das quais ele se apresenta a mim como
Senhor a quem devemos conhecer e em quem devemos confiar?
A doutrina das Escrituras que venho expondo neste livro ensi­
na, portanto, que nossa postura básica em relação à Bíblia deve ser
de humildade. Devemos submeter nossos pensamentos, esperanças e
desejos aos pensamentos de Deus e à sua vontade, que ele nos comu­
nica através das Escrituras. Devemos pôr de lado o que simplesmen­
te nos parece verdadeiro, para que ouçamos a verdadeira palavra de
Deus, que dá vida. Essa, disse Herman Bavinck, “tem sido a postura
da igreja em relação à Escritura ao longo dos séculos”.39

39Bavinck, R eform ed dogmatics, vol. 1, p. 441.


A Bíblia e a vida cristã: ap licação da doutrina das Escrituras 213

Cabe aqui o último comentário.-Ao dizer essas coisas sobre


a Bíblia, não quero ser mal interpretado. Não estou dizendo que
o relacionamento do crente com o Senhor é devidamente “vivo”
apenas quando ele lê a Bíblia ou ouve um sermão. São várias as
ocasiões em que o Senhor, por sua graça, faz lembrar aos crentes
aspectos do seu caráter por meio de acontecimentos que ele faz
sobrevir à vida deles. H á muitos modos pelos quais ele trabalha
na vida das pessoas através das palavras que alguém lhes dirige,
palavras que para elas têm um impacto muito pertinente ou
profético, ou através de sentimentos, percepções e profundos
anseios que ele lhes dá. Ao deixar de mencionar essas coisas neste
livro, não nego sua existência nem pretendo tratá-las com frieza.
Simplesmente não as incluí no âmbito de um livro relativamente
breve sobre as Escrituras.
Preocupei-me, isto sim, com que nenhuma dessas coisas,
embora valiosas em si mesmas, se transformasse no lugar em que
os cristãos finalmente fizessem repousar sua segurança do conhe­
cimento de Deus, nem o lugar a que recorressem primeiramente
quando se sentissem desejosos de ouvir a voz divina. Porque o
lugar onde a voz de Deus e, portanto, o que chamei de “presença
semântica de Deus”, pode ser sempre encontrada com segurança
é seu falar e seu agir nas palavras das Escrituras.
RESUMO

s argumentos bíblicos, teológicos e doutrinários centrais

O deste livro podem ser aqui resumidos.

Com o termo E scritura queremos nos referir aos atos de


fala realizados por meio das palavras da Bíblia. É o principal meio
pelo qual Deus se apresenta a nós, de modo que possamos conhe-
cê-lo e com ele ter um relacionamento fiel. Uma vez que essa
definição da natureza da Escritura esteja clara para nós, podemos
fazer uma afirmação importante e verdadeira, embora, à primeira
vista, ela talvez pareça perigosamente próxima de transformar a
Bíblia em um ídolo: a Escritura é Deus em ação comunicativa.
Portanto, ter um encontro com as palavras da Escritura é ter um
encontro com Deus em ação.
De uma perspectiva teológica , a Escritura é o meio pelo
qual o Pai nos apresenta sua aliança e, portanto, o meio pelo qual
se apresenta a nós como Deus fiel da aliança. Segundo as palavras
da Escritura, Jesus Cristo, a Palavra de Deus, vem até nós para que
possamos conhecê-lo e nele permanecer. Através da Escritura, o
Espírito Santo fala conosco da maneira mais confiável, pois foi
seu autor, preservou-a e agora a ilumina. Afirmamos todas essas
coisas quando confessamos que “a Bíblia é a Palavra de Deus”.
De uma perspectiva doutrinária, a Escritura é necessária em
virtude do caráter de Deus e da forma de aliança pela qual ele
quis se comunicar conosco. Ela é suficiente enquanto forma da
promessa da aliança que Deus nos fez. Ela é clara no sentido de
que a voz de Deus, falando pela Escritura, nos dá fundamen­
tos sólidos o bastante para que somente nela baseemos nosso
216 Teologia da revelação

conhecimento de Deus, nossa confiança nele, nossa esperança e


nossas ações. Tudo isso eqüivale a uma exposição do que significa
dizer que a Escritura tem autoridade, uma vez que falar da autori­
dade da Escritura é, na verdade, uma forma sucinta de nos referir
ao modo pelo qual o Deus soberano decide falar com autoridade
conosco na Escritura e através dela.
Parece-me apropriado fazer agora três comentários finais.
Em primeiro lugar, tudo isso é apenas um esboço em que se reco­
menda a natureza fundacional que se deve atribuir à doutrina da
Escritura. Alguém poderá discordar dos fundamentos da dou­
trina que recomendo. Se assim for, pelo menos terá entendido
o que procurei fazer aqui. Contudo, se julgar que tratei uma
questão ou outra de maneira muito superficial, é provável que
esteja procurando mais do que pretendi oferecer.
Em segundo lugar, todo estudioso da doutrina da Escritura terá
muito a ganhar lendo a principal obra sobre o assunto de cada um
dos quatro autores a quem me referi na introdução, aos quais recorro
com regularidade. Seus textos encontram-se entre as melhores
exposições da doutrina evangélica conservadora da Escritura.

1. João Calvino, Institutas da religião cristã, livro 1.


2. Francis Turretin, In stitu tes o f elen ctic th eology, segundo
tópico: The H oly Scriptures.
3. B. B. Warfield, A inspiração e autoridade da Bíblia.
4. Herman Bavinck, R eform eddogm atics, vol. 1: P rolegom ena
— parte IV: Revelation.

O conhecimento prévio dessas obras entre os evangélicos pou­


pará muitos da exposição e defesa superficiais e pouco atraentes
da doutrina ortodoxa da Escritura. Evitará também que muitos
abandonem a ortodoxia sem antes encontrar a riqueza e a vitali­
dade da doutrina evangélica da Escritura.
Resum o 217

Por fim, resta saber de que maneira o tipo de doutrina da


Escritura que proponho se relaciona com as tradições herdadas
do ensino evangélico e reformado sobre a Bíblia. Alguns talvez
desconfiem de que tudo isso não passa de uma doutrina antiga
como, por exemplo, a doutrina de W arfield ou Turretin, enfeitada
com elementos teológicos e filosóficos contemporâneos um tanto
superficiais para fazer frente ao século 21. Outros talvez achem
que esse tipo de doutrina, de uma forma ou de outra, representa
um distanciamento teológico significativo do que se escreveu
inicialmente a respeito da Escritura e que, portanto, abre mão
de coisas de real valor. M inha intenção foi oferecer uma revisão
que, à luz da Bíblia, fosse fiel à doutrina ortodoxa da Escritura
que a maioria dos crentes cultivou com carinho ao longo da
maior parte da história da igreja, mas formulada em termos que
pudessem ajudar a torná-la mais obviamente essencial à vida e ao
pensamento sadios dos cristãos no presente.
Pois a grande verdade revelada na qual devemos confiar, e
que devemos explicar e defender, é que aquele que é a Palavra da
vida (ljo 1.1) fala conosco palavras de vida (Jo 6.68). Ele nos dá
a Escritura como nossa palavra de vida, o meio confiável, claro
e suficiente para conhecê-lo e permanecer em uma relação de
aliança com ele, no poder do Espírito Santo, até o dia em que não
mais precisarmos dela, porque então o veremos face a face.
ÍNDICE ONOMÁSTICO

A E
Abraham,W. 16,101 Erasmo 141,142,144,150
Achtemeier, P. 101
Agostinho 132, 144, 177, 178, F
179 Forsyth, P. 198,199,205
Aquino, Tomás de 133
Atanásio 131,132 G
Austin,J. 68 Gadamer, H.-G. 129
Geiselmann,J. 181
B Goldingay,J. 51,201
Barr,J. 101 Greidanus, S. 199
Barth, K. 73,74,75,77,78,195 Grudem, W. 152,153,154,155,164
Barton,J. 13
Basílio de Cesareia 132,177 H
Bavinck, H. 22,43,61,62,85,86,87, Hagner, D. 51
89,100,103,124,128,158,169, Hanson, R. 176
170.176.183.184.216.218 Hauerwas, S. 190
Berkouwer, G. 131,145 Heppe, H. 99
Bonhoeffer, D. 206 Horton, M . 40,195

C I
Calvino ,J . 1 7 ,1 8 ,2 0 ,7 9 ,9 6 ,9 9 , Ireneu 144,176,177
104, 112, 114, 119, 120, 121,
122,123,125,127,134,135,174, J
179, 182, 191, 195, 198, 199, Jensen, P. 64
204.213.218
K
D Kelly, J. 145,176
Derrida,J. 76 Klauber,M. 148
Dever, M. 189 Kline, M. 64
220 Teologia da revelação

L S
LaSor, W. 64 Schleiermacher, E 136
Lessing, G. 48,49 Searle,J. 68
Lutero, M. 18,141,142,143,144, Spinoza, B. 48,136
145,150,151,156,174,182,191,
213 T
Tavard, G. 181
M Tertuliano 174,175,176,177
Macleod, D. 85,166 Thiselton, A. 68,156
Mathison, K. 178,180,181,182 Thompson, M. 73, 99, 129, 141,
McConville, G. 42,43 153,154,155,210
McGowan, A. 162,165,166,168 Trembath, K. 101
McKim, D. 98,162 Trueman, C. 18,43, 80
Metzger, B. 55 Turretin, E 21, 85,112,113,123,
Muller, R. 125,138,146,147,148, 124,125,126,127,128,130,146,
185 153,154,156,186,187,218,219

N V
Nelson, R. 27 Vanhoozer, K. 9, 68, 76, 77, 78,
Noll, M . 162 129
Vawter, B. 107
O Vincent de Lérins 133,145
Oberman, H. 177,178,181
W
P Ward,T. 6,68,76,77,190
Packer,J. 22, 82,85,91,142,161, Warfield, B. 22, 83, 98, 99, 100,
167,168 106, 107, 165, 196, 197, 218,
Pannenberg, W. 54 219
Parker, T. 199 Watson, E 68
Preus, R. 18 Webster, J. 15,60,91,92,93
Wenham,J. 14
R Wolterstorff, N. 40,68,69
Ricoeur, P. 76,128,129 Woodbridge, J. 98,162
Rogers,J. 98,131,162 Work,T. 26,35
ÍNDICE DE PASSAGENS BÍBLICAS

ANTIGO TESTAMENTO
Gênesis IReis
1 24,46 13 27
1.26 40
2.17 25,31 1 Crônicas
2.24 31,32 2 1 .1 169
3 25,26
3.15 25 2Crônicas
5.5 31 34.30 64
9.8-17 26
12.1-3 26,32 Jó
45.8 106 1 e 2 170
38—41 38
Exodo
6.8 33 Salmos
12.24-28 36 29 28
17.14122 119.1130
19.3-6 33,34 119.105 123
24.7 64 119.130 143
25.10-22 34
Isaías
Números 55.10,1128,29
22 42
Jeremias
Deuteronômio 1.9,10 41
18.15-20 42 31.31-34 63
29.29 143 31.34126
36 42
2Samuel
6 34 Ezequiel
2 4 .1 169 4 3 .1 1 123
222 Teologia da revelação

NOVO TESTAMENTO

Mateus 13.20 192


5.17 64 14.9-11 44
5.17,18 103 15.4-8 83, 84
10.14,15 50 16.12-15 55,56, 84, 96
10.40 50 17.8 45,49
12.3-5 89 17.20 49
19.4,5 83, 89
21.16 89 Atos
21.42 89 1.1 84
22.31 89 2.23 106
23 88 2.42 203
23.8 85,125 4.31 82
25.31-46 50,51 6.2 82
8.4 82
Marcos 8.14 82
5 .4 1 109 8.30-35 154
7.18-19 53
10.46 170 Romanos
1.19-20 68
Lucas 5— 6 49
1.1-4 90 5.8 29
1.4 122 8.30 30
10.16 192 9.17 83
18.31 64
18.35 170 ICoríntios
23.43 64 l e 2 192
1.24 44
João 2.1-5 190
1.1 81 2.6-16 111
S.19 44 2.14 141
6.63 46 2.20-25 47
6.67-69 46 7.14 150
6.68 217 10.1-13 66
8.28 45
10.34.35 85 2Coríntios
12.49,50 45 3.12— 4.6 111
índice de passagens bíblicas 223

Efésios Hebreus
2.20 51,123,183, 4.1-13 66
4.11-13 209 4.12 14
5.13,14 123
Filipenses 6.18 162
1.15-18 199 7.23—8.13 63

Colossenses lPedro
1.19 44 1.23 123
2.12 150 2.4,5 202
3.3 86
2Pedro
lTessalonicenses 1.3,4 205
1.4,5 200 1.20,21 95
2.13 82 3.15,16 110

lTim óteo IJoão


3.15 183 1.1,2 47,86,217
2 .2 7 126
2Timóteo 5.13 122
2.2 57
3.14 57 Judas
3.15 130 3 125
3.16 95,96,97
Apocalipse
Tito 22.3-5 86
1 .1 159 22.18 57
1.2 162 22.18-20 131
1.3 192
Neste livro, Timothy Ward explica e defende o que realmente estamos
dizendo quando proclamamos nossa confiança na Bíblia como Palavra de
Deus. Em particular, ele descreve a natureza da relação entre o Deus vivo
e as Escrituras. Mostra também que, para adorarmos a Deus fielmente,
precisamos prestar atenção à Bíblia, para sermos fiéis discípulos de
Jesus, o Verbo Encarnado, precisamos fundamentar nossa vida nas
palavras da Bíbiia e, para nos mantermos em harmonia com o Espírito
Santo, precisamos confiar no que a Bíblia diz e a ela obedecer.

0 autor apresenta uma compreensão da natureza das Escrituras em três


seções principais: o esboço bíblico mostra que as palavras da Bíblia
formam parte significativa da ação de Deus no mundo; o esboço teológico
enfoca a relação das Escrituras com cada uma das Pessoas da Trindade; o
esboço doutrinário examina os "atributos” das Escrituras. 0 último
capítulo explora algumas áreas importantes em que a doutrina das
Escrituras deve ser aplicada.

Timothy Ward oferece uma exposição excelente e lúcida da natureza e da


função das Escrituras, expressa de forma adequada ao século 21,
amparada pelas pesquisas acadêmicas nessa área e em inarredável
consonância com o que há de melhor nas tradições teológicas.

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