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EEB 453: Princípios de Aplicação Bíblica

Prof. Heber Carlos de Campos Júnior


Email: heber.campos@mackenzie.br

Aula 1: O Desafio de Aplicar a Escritura

Seja bem-vindo à nossa disciplina. Esta primeira aula intenta destacar o que nos espera na
tarefa de mestres ou expositores da Escritura como algo extremamente importante, porém
marcantemente desafiador. Sua importância deve levar-nos a desejar fazê-lo bem, mas o seu
desafio deve conduzir-nos a estudar esse assunto com muito afinco.

1. A Importância de Aplicar
Aplicar é uma tarefa extremamente importante na vida de um pregador ou professor de
Bíblia. Quando pregamos ou ensinamos a Bíblia Sagrada aos que nos ouvem, temos que fazê-lo
no intuito de ver mudança de vida e progresso na caminhada cristã. Pregamos com o intuito de
que pessoas sejam não só informadas, mas transformadas (2 Tm 3.16). Quem tem coração de
pastor quer ver como a Bíblia conecta com a vida real e com pessoas reais. Para pastores que
foram comissionados para alimentar as ovelhas de Deus, a Bíblia, nas palavras de Jeffrey
Arthurs, "é mais do que um tomo acadêmico ou literário. Ela é pão para o faminto, leite para os
infantes, lâmpada para os desviados, e água para os manchados."1
Contudo, pessoas não são transformadas se não compreendem como a verdade de Deus
deve ser aplicada às suas vidas. A etimologia da palavra latina "applicatio" tem o sentido de
colocar uma substância sobre a outra de tal forma a modificá-la. Quando você aplica tinta a uma
parede você a modifica; quando você estuda matemática aplicada, você quer mostrar como a
matemática faz a diferença em questões cotidianas. Aplicar, portanto, é sempre colocar duas
coisas em contato de tal forma que uma afeta a outra.2 A Palavra de Deus é aquilo que deve ser
colocado sobre nossas vidas para nossa modificação. Como mestres e pregadores, devemos nos
tornar especialistas em aplicar a Palavra às necessidades das pessoas que nos ouvem.

1
Jeffrey Arthurs, "The Fundamentals of Sermon Application (part 1), in LARSEN, Craig Brian (org.), Interpretation and
Application (Peabody, MA: Hendrickson, 2012), p. 68-69.
2
ADAMS, Jay, Truth Applied (Grand Rapids: Zondervan, 1990), p. 15.

1
Nosso interesse por vidas transformadas deve levar-nos a treinar nossos ouvintes a
sempre procurar no sermão ou na aula o momento em que o mensageiro de Deus está
respondendo à pergunta “e daí?!” (esse processo de procura pode ser mais automático e
inconsciente, ou pode ser um exercício consciente). A percepção constante da praticidade do
sermão corroborará para a convicção de que a Palavra de Deus é sempre relevante, como uma
espada de dois gumes que penetra no mais interior de nosso ser (Hb 4.12). Não podemos perder
a confiança no poder da Palavra pregada (1 Co 1.21).3 Um sermão bem aplicado é um
testemunho da relevância das Escrituras que transpõe povos (transcultural) e tempos
(transtemporal). Isto é, a mensagem bíblica não está restrita aos povos e aos tempos nos quais
Deus se revelou a homens. Pelo contrário, ela tem se mostrado atual em cada período e em cada
nação em que é pregada (veja Rm 4.23-24; 15.4; 1 Co 10.11). Nunca essa verdade fica tão clara
quanto durante uma boa aplicação da mensagem bíblica. Por isso, os puritanos costumavam
chamar as aplicações de “usos”, como testemunho da utilidade das Escrituras em nossa vida.
O pregador puritano do século 17, James Durham, expressou o interesse geral dos
puritanos pela aplicação (chamada de “usos” pelos puritanos) quando afirmou:
“Aplicação é a vida da pregação; e não há menos estudo, habilidade, sabedoria,
autoridade e clareza necessárias na aplicação de um ponto à consciência dos ouvintes, e
no atingir o seu objetivo, do que é exigido na exposição de alguma verdade profunda;
portanto, ministros deveriam estudar tanto uma quanto a outra... Assim, pregação é
chamada de persuasão, testemunho, súplica, clamor ou pedido, exortação, etc. Todas elas
em parte dizem respeito ao que acontece na aplicação, que não é somente uma explicação
mais específica de uma questão, mas um dirigir-se às consciências dos ouvintes
presentes. E especialmente nisto é que fica evidente a fidelidade, a sabedoria e a destreza
do pregador, assim como o poder e a eficácia do dom.”4
Diante da importância de tal tarefa, iremos observar os desafios para a aplicação
(dificuldade), observando as razões que tornam essa incumbência tão difícil.

2. A Dificuldade de Aplicar
Aplicar não é tarefa fácil. David Veerman apresenta quatro razões para tal dificuldade: 1)
porque requer tempo e esforço do pregador, e nem sempre ele está disposto ou está em
condições de investir tanto na aplicação; 2) porque pregadores assumem (erroneamente) que os

3
“A reivindicação audaciosa da pregação cristã é que a proclamação fiel da Palavra de Deus, falada por meio da voz do
pregador, é muito mais poderosa do que qualquer coisa que música ou imagem possam comunicar... Como Deus deixou bem
claro, mesmo nos Dez Mandamentos, ele resolveu ser ouvido e não visto.” MOHLER, Deus não está em Silêncio, p. 23, 24.
4
Apud LEWIS, Peter. The Genius of Puritanism (Soli Deo Gloria, 1996), p. 49.

2
ouvintes conseguem fazer a ponte entre o ensino do texto e suas vidas particulares, o que na
prática quase nunca acontece; 3) o medo de simplificar tanto uma verdade majestosa, que se
torna simplista; 4) falta de treinamento específico, afinal, em um curso de homilética (pregação)
o tema da aplicação não passa de uma ou duas aulas.5
A lista de Veerman é bem abrangente. Ainda assim, acrescento mais duas razões que
percebo serem barreiras comuns aos pregadores. Em primeiro lugar, aplicação requer audácia.
Quando estamos trazendo informações curiosas sobre uma porção do Antigo Testamento, os
cristãos não costumam reclamar pois apreciam aprender coisas novas. Todavia, quando
passamos a mexer com suas vidas, cutucando-os onde dói, alguns se ofendem. Tal ofensa é
típica da pregação do evangelho, conforme o testemunho do ministério de Jesus e dos apóstolos.
A ofensa, porém, precisa ser resultado da verdade corretamente apresentada e aplicada, e não
resultado de nossa incompetência em aplicar devidamente. Precisamos considerar a condição do
coração caído, as dificuldades em responder à verdade bíblica, e fazermos aplicações que sejam
realistas, e não idealistas (exemplos de aplicações irreais: “crente vive sempre sorrindo, mesmo
quando não dá”, “você precisa aprender hebraico e grego para entender a Escritura
profundamente”, “tome a decisão de nunca mais ter medo”). Não devemos levar os ouvintes à
ira por uma aplicação utópica, apenas incomodá-los com a verdade sobre quão enganosamente
vis nós somos e quão carentes da graça de Cristo.
Lembre-se, porém, de que a audácia não exclui o falar a verdade em amor (Ef 4.15).
Quem aplica semana após semana e ainda vê o povo de Deus lento em mudar de atitude, precisa
ter um espírito perdoador e perseverante. A inércia ou lentidão do povo em responder não pode
causar-nos frustração, desânimo ou impaciência. Nossa atitude sempre precisa ser a de falar a
verdade amorosamente. Bryan Chapell escreve:
“O bem-estar espiritual de outros requer que você não obscureça seu pensamento em
idealismo abstrato, que não perturba ninguém e nem tem potencial para colocá-lo em
dificuldade. Se os jovens precisam parar de ver filmes violentos ou pornográficos, diga-
lhes isso. Se a igreja não irá se curar até que cesse a fofoca, diga-lhe isso. Se diferenças
políticas estão dividindo os crentes, trate do problema. [Todavia,] Fale com tato. Fale
com amor.”6
Em segundo lugar, aplicação requer maturidade cristã. Quando eu estava no seminário,
ainda bem jovem, lembro-me de um professor fazer a avaliação de meu sermão de prova
dizendo assim: “Heber Júnior, eu percebi que você se esforçou, mas teve dificuldades com a
aplicação.” Na época, eu ainda não tinha entendido como pouca vivência cristã dificultava o
5
VEERMAN, David, “Aplicação Interna”, em ROBINSON, Haddon e Craig Brian Larson, A Arte e o Ofício da Pregação
Bíblica (São Paulo: Shedd, 2009), p. 347-348.
6
CHAPELL, Bryan, Pregação Cristocêntrica: restaurando o sermão expositivo (São Paulo: Cultura Cristã, 2002), p. 243.

3
surgimento de boas aplicações. Com o passar do tempo passei a entender como aplicação requer
que se tenha um pouco de vivência, se conheça melhor a realidade humana, suas reações
mediante problemas ou alegrias.
Maturidade não é sinônimo de experiência, necessariamente, mas de sabedoria (a arte de
aplicar a Bíblia para o dia a dia). O crente pode não gostar da aplicação, mas ele a ouve quando
tem respeito pela integridade do pregador/professor. Há um sentido em que não dá para separar
a pregação do pregador. A própria Escritura testifica desse impacto que o mensageiro pode ter
em um grupo de pessoas quando o Espírito opera poderosamente por intermédio dele (1 Ts 1.8-
10).
Todavia, audácia e maturidade não bastam para lapidar um pregador que saiba aplicar.
Seguindo a lista feita por Veerman, podemos até estar dispostos a investir o tempo e o esforço,
podemos assumir corretamente que os ouvintes carecem que façamos a conexão entre o texto e
suas vidas, e podemos até não ter medo de aplicar. O problema geral, porém, é que nos falta
treinamento. Seminaristas, por exemplo, costumam pregar sermões nos quais passam ótimas
informações do texto (exposição), mas mostram muitas dificuldades na hora de aplicar. Isso
pode parecer estranho ao membro da igreja que espera que o seminário forneça todas as
ferramentas para moldar um bom pregador, mas a própria estrutura do ensino teológico explica
tal dificuldade. Existem cursos de hermenêutica (interpretação) da Bíblia, e de homilética (que
costuma focar na forma do sermão), mas até alunos de teologia não tem um método de aplicação
que lhes é ensinado. Não há muitos livros de aplicação; é difícil de encontrar literatura
especializada. Quando muito, o livro de homilética gasta um capítulo com aplicação. Apenas
um. Nós estamos, em contrapartida, propondo um curso inteiro nessa tarefa porque
reconhecemos que nos faltam subsídios. Pastores que aprenderam a aplicar tem dificuldade de
ensinar como fazê-lo porque normalmente a sua aplicação é resultado de intuição, e não se
ensina intuição. Precisamos buscar ferramentas, aprender métodos, ouvir orientações que nos
ajudem a trazer a relevância da verdade bíblica para o ouvinte.
Por que é tão difícil aplicar? Porque temos que fazer exegese tanto do texto sagrado
quando de seres humanos. Isto é, temos que conhecer bem tanto o texto quanto as pessoas com
quem falamos. Não somente conhecer fatos de suas vidas, mas conhecer a natureza humana,
como o coração influencia nosso proceder, como funciona a tentação e o pecado, como as
pessoas reagem às tribulações, etc. Como aprender a fazer uma leitura mais profunda da
humanidade? Duas coisas: pastoreio e constante meditação. Sobre o primeiro elemento, quando
entrevistado sobre pregação Timothy Keller afirmou: “A principal maneira de se tornar um bom
pregador é pregando muito e gastando muito tempo no trabalho com pessoas – é assim que você

4
cresce para se tornar não só um comentarista bíblico, mas um pregador de carne e sangue.”7
Keller está afirmando o ministério pastoral (aconselhamento e visitação) como um veículo de
aprimoramento na pregação. Isto é, conviver com pessoas e crescer no conhecimento delas nos
dá subsídios para a aplicação. Conviver com pessoas nos ajudam a entender tendências, estilos
de vida e cosmovisões. Conviver com elas suscita perguntas que não havíamos pensado durante
o nosso estudo. O segundo elemento importante para leitura da humanidade é a constante
meditação. Temos que ter atitude típica do apóstolo Paulo em Atenas que não se deixou levar
pelos prédios imponentes e pela erudição de seus filósofos, mas enxergou idolatria naquele lugar
(At 17.16). Tais olhos atentos são fruto de uma mente em constante reflexão sobre a
humanidade. Isso é meditar na lei do Senhor de dia e de noite, à medida que relacionamos os
ensinamentos bíblicos com a realidade ao nosso redor. Não é somente observar a cultura (Do
que a cultura ri? Quais são os seus heróis? Quais são alguns dos termos religiosos?), mas fazê-lo
com uma mentalidade cristã. Isso requer esforço e maturidade, coisas que não vem
imediatamente. Por isso, aplicação não é fácil.
É possível que alguém lendo essa aula, não considere a aplicação uma tarefa tão difícil
assim. Talvez você esteja entre aqueles que acham que aplicação é uma coisa tão simples e
natural, que assim que terminam de ler o texto perguntam aos ouvintes: “Como esse texto fala
com você?” Além de não ter tido qualquer interesse em primeiro entender o texto em sua
riqueza, essa postura convida a um subjetivismo de lições em que cada um fala o que quer –
muitas vezes segundo o engano do seu coração. Embora possam ter boas intenções quanto ao
que compartilhar com a igreja, o texto bíblico se torna mero ponto de partida para trazerem
algumas lições. Tais mestres e pregadores não têm problema com esse tipo de pulo da leitura
para a aplicação, pois na própria preparação de um estudo (muitas vezes mal feita), eles primeiro
pensaram o que gostariam de falar e depois procuraram um texto que se encaixasse em sua fala.
Observe, quem determinou a aplicação: o intérprete ou o texto? Deveria ter sido o texto, mas
neste caso não foi. Como afirma Albert Mohler: “o conteúdo da passagem deve ser aplicado à
vida – mas a aplicação tem de ser determinada pela exposição, e não vice-versa.”8
Porque não é tão fácil assim aplicar o texto, como pensam os que estão no grupo
mencionado no parágrafo anterior? Exatamente porque você tem que aplicar o “texto” e não
aquilo que está na sua mente naquela semana. Como comunicadores da Bíblia, nosso foco deve
ser o de desvendar os insights dela antes do que utilizá-la para apoiar os nossos.9 Você e sua

7
KELLER, Tim. “Ten Questions for Expositors”. In: http://unashamedworkman.wordpress.com/2007/04/04/ten-questions-
for-expositors/. Em outro material de Keller sobre pregação, ele afirma que nossos sermões são moldados pelo contexto de
pessoas em que estamos inseridos (suas perguntas, seus problemas, suas ansiedades). Por isso, ele sugere que aprendamos a
diversificar as pessoas com quem convivemos para ampliar nossas possibilidades de aplicação. KELLER, Preaching the
Gospel in a Post-Modern World (apostila não publicada), p. 86-87.
8
MOHLER, Deus não está em Silêncio, p. 26.
9
KELLER, Timothy. Pregação: Comunicando a Fé na Era do Ceticismo (São Paulo: Vida Nova, 2017), p. 38.

5
intuição são fonte que logo seca, mas a Palavra de Deus é fonte inesgotável de aplicação a
nossas vidas. O pré-requisito de uma boa aplicação é uma boa exposição do texto.10 Eu vou
pressupor que você recebeu bons fundamentos hermenêuticos e até didáticos em cursos
anteriores. Aplicação é o telhado de uma casa em construção, não pode vir antes do fundamento
e das paredes.11 Esse curso terá menos proveito se você não teve uma boa base com cursos sobre
teologia bíblica e interpretação bíblica.
A tentativa do programa de Ensino à Distância no CPAJ é fornecer a você bom
fundamento teológico para que você não perca as riquezas da Escritura na hora de aplicar. O
renomado professor de pregação, Haddon Robinson, diz que ouviu um sermão no livro de Rute
que falava sobre como lidar com sogros, sogras, genros e noras. Fazer esse tipo de aplicação é
focar em algo tangencial e perder o propósito central do livro. Então, ele aprofunda:
“Mas qual é o problema, você pode perguntar, com pregar algo verdadeiro e útil, mesmo
se isso não for o ponto central de seu texto ou não for o que o autor tinha em mente?
Bem, quando pregamos a Bíblia, pregamos com autoridade bíblica. Como Agostinho
disse, o que a Bíblia diz, Deus diz. Portanto, estamos aplicando, digamos, à questão de
sogros e genros, a plena autoridade de Deus. Uma pessoa ouvindo o sermão pensa: Se eu
não lido com minha sogra deste modo, estou desobedecendo a Deus. Isso é violentar a

10
Baseado na pesquisa de Hughes Oliphant Old, Tim Keller mostra como ao longo da história cristã as pregações foram
basicamente tópicas/temáticas ou expositivas. Antes do que dizer que uma é bíblica e outra não, Keller sabiamente expõe
como toda pregação expositiva lança mão de teologia sistemática para elucidar temas mencionados mas não explicados na
passagem, e que a pregação tópica faz uso de mini exposições de passagens. No entanto, Keller propõe que a pregação
expositiva seja a principal dieta de uma igreja pois expressa a convicção de que toda a Escritura é verdadeira. Através dela o
ouvinte percebe que a autoridade do sermão jaz não nas opiniões ou arrazoados do pregador, mas em Deus conforme se
revela no texto. A pregação expositiva também facilita enxergar o grande tema das Escrituras além de ajudar os crentes a
lerem a Bíblia por eles mesmos. No entanto, Keller suscita alguns perigos de um entendimento néscio de pregação
expositiva. Como primeiro alerta, ele afirma que longas séries em livros da Bíblia (lectio continua) funcionava melhor em
tempos antigos quando havia pouca mobilidade e o mesmo auditório praticamente a vida inteira. Mas hoje, com uma
dinâmica tão intensa de mobilidade, não seria prudente saber que uma família passou dois anos da sua igreja e só ouviu
mensagens em 1 Samuel. Melhor para os nossos dias é o conceito de mini-séries onde as exposições cobrem livros pequenos
da Bíblia ou porções de livros maiores. O segundo alerta é para não termos uma visão tão estreita de exposição onde só se
encaixa a explicação verso a verso. É possível expor o texto utilizando um esboço para extrair as principais ideias e tratar a
passagem de forma mais seletiva. Um terceiro alerta que ele faz é de pensar que um texto sagrado tenha apenas uma grande
ideia (teoria popularizada por Haddon Robinson). Baseado na pesquisa de Duane Liftin, Keller afirma que entender o
propósito de uma passagem fica mais claro em livros da Bíblia em que o grande propósito do livro está claro (ex: João), mas
em outros em que pode ter havido múltiplos propósitos (ex: Atos) fica mais difícil estabelecer apenas uma ideia exegética. O
pressuposto de que a passagem tenha uma proposição central é baseado em retórica clássica, o que não combina com a
mentalidade de escritores bíblicos. Literatura de poesia, ou narrativas, e até cartas como a de Tiago, ou as recomendações
práticas ao final de outras cartas (ex: Hb 13) trazem uma pluralidade de ideias. Com essa quebra de paradigma, porém, Keller
ainda sustenta que nos apeguemos às grandes ideias do texto antes do que nos perdermos nos detalhes tangenciais. KELLER,
Pregação, p. 39-53.
11
Isso não significa que a aplicação seja algo que só inicia após todo o processo exegético terminar. A linha que separa a
exegese e a aplicação pode ser tão tênue que não só as aplicações surgem durante o processo hermenêutico do texto, mas o
próprio surgimento das aplicações evidencia nossa compreensão do texto em sua riqueza. MICHELÉN, Sugel. Da Parte de
Deus e Na Presença de Deus: um guia para a pregação expositiva (São José dos Campos: Fiel, 2018), p. 236.

6
Bíblia. Você está dizendo o que a Bíblia não diz. Por meio desse processo, você mina as
Escrituras. No final das contas, as pessoas passam a acreditar que qualquer coisa com um
toque bíblico é o que Deus diz.”12
Aplicar a Palavra de Deus é coisa séria, como bem salienta Robinson. E na aplicação é quando
escorregamos ainda mais, distanciando-nos da voz de Deus. Não devemos tratar aplicação de
forma trivial.

Conclusão
Os pontos levantados acima nos dão uma noção inicial da complexidade da aplicação. A
intenção de caminhar por esses pontos era ressaltar a importância da aplicação para o bem-estar
do povo de Deus e a nossa (árdua) tarefa nesse processo. Pastores e professores não costumam
gastar tempo em aplicação, ou por julgarem fácil ou por má administração do tempo. Via de
regra gastam quase todos os seus esforços na compreensão do texto. Não podemos continuar
confiando na intuição ao sermos desorganizados em nossa preparação. Temos que mudar essa
tendência. Precisamos gastar tempo criando algum tipo de método, procurando algumas
diretrizes que deem norte à nossa intuição.
Portanto, mãos à obra. Dediquemo-nos a entender melhor como aplicar as Escrituras.

12
ROBINSON, Haddon. “A Heresia da Aplicação” em A Arte e o Ofício da Pregação Bíblica, p. 376.

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