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EEB 453: Princípios de Aplicação Bíblica

Prof. Heber Carlos de Campos Júnior


Email: heber.campos@mackenzie.br

Aula 12: Falando a Diferentes Grupos de Ouvintes

Na aula 11, nós falamos sobre conhecer pessoas, não apenas o texto sagrado. Como
mediadores que comunicam as verdades eternas do texto antigo a um povo contemporâneo,
temos que conhecer as características desse povo. Como parte dessa busca em conhecer melhor
as pessoas a quem ensinamos as Escrituras, falamos especificamente sobre conhecer as
cosmovisões dominantes.
Após falar sobre a importância de conhecer o espírito da época, agora vamos abordar a
importância de conhecer as pessoas para quem pregamos, em suas particularidades. Se na aula
anterior nós vimos os elementos da coletividade (cosmovisão compartilhada), agora atentaremos
para as individualidades de nossos ouvintes. Precisamos conhecer o nosso público em toda a sua
diversidade individual.

1. Linguagem comum sem desconsiderar diferenças


Falar de conhecer as pessoas em suas particularidades não significa que cada pessoa
precisa de uma mensagem diferente. É claro que não podemos desconsiderar as características
comuns a todo ser humano, como já foi dito na aula anterior. Por exemplo, a constituição
psicológica, espiritual do ser humano continua sendo a mesma de tempos passados. Exemplo
disso é que a sabedoria de Provérbios continua verdadeira e que as orações dos Salmos parecem
escancarar nossa alma ainda hoje.
Outro ponto comum precisa ser a nossa linguagem, de tal forma que atinja a todos.
Frequentemente nos esquecemos de pregar na igreja como se um incrédulo estivesse nos
ouvindo. Só nos lembramos do incrédulo na hora de fazer apelo, de clamar por sua conversão.
Todavia, no momento de exemplificar no dia a dia, ou de explicar conceitos, ou de usar jargões
evangélicos, nós nos esquecemos de pregar tendo os incrédulos em vista.
Nossa linguagem precisa atingir todos os níveis de conhecimento bíblico. Recentemente
ouvi de um pastor a história de quando ele era jovem e foi pregar entre pessoas simples na
1
região da Amazônia. Após ter feito uma exposição em Romanos, ele perguntou ao seu sogro
(que era professor de seminário) o que ele havia achado da exposição. Seu sogro respondeu:
“Você deu de comer para girafas. Jesus não pediu que você desse de comer para as girafas. Ele
ordenou que você alimentasse as ovelhas. Deixa que as girafas dobrem o seu pescoço e comam
do mesmo alimento.” Aquele professor de seminário estava demonstrando uma sabedoria
enorme ao ensinar seu jovem genro a pregar de forma a atingir o povo simples, inculto, pouco
instruído na Palavra, crendo que a pregação simples (não simplista) seja boa inclusive para que
os ‘entendidos’ se humilhem. Precisamos usar uma linguagem que seja para todos.
Ainda que seja uma linguagem acessível a todos, ela deve ser contextualizada. João não
temeu se referir a Cristo como o Logos, um termo pagão que comunicava aos gregos algumas de
suas aspirações mais profundas, ainda que sem identificar Cristo com o conceito grego do
logos.1 No entanto, João está remodelando os conceitos, as preocupações e os anseios culturais.
No contexto atual poderíamos tomar a palavra “satisfação”, a qual tem uma conotação quase que
exclusivamente emocional e resgatar um sentido importante de satisfação na teologia, de
cumprimento de deveres legais (ex: a obra expiatória de Cristo satisfez a ira divina). Nosso
maior anseio deve ser pelo último sentido. A satisfação legal é pré-requisito para que tenhamos
satisfação emocional em Deus. Contextualizar, nesse caso, significa respeitar as peculiaridades
culturais ainda que haja confrontação dos ídolos culturais.2
Esses pontos não se contrapõem à necessidade de atentarmos para os aspectos específicos
de cada um.3 Um exemplo seria pensar em diferentes situações em que o princípio extraído do
texto bíblico se aplica. Observe como o princípio de sermos consolados por Deus a fim de
consolar outros (2 Co 1.3-11) serve para:
a. encorajar a mãe de primeira viagem, a qual parece não enxergar seu filho aprendendo a
obedecer, a acreditar no valor de investir na criança no contexto de aliança;
b. fortalecer a pessoa que descobriu um câncer e passou a temer aquilo que pode matar o
corpo mais do que aquele que pode vivificá-lo;

1
KELLER, Pregação, p. 119-120.
2
KELLER, Pregação, p. 121.
3
Precisamos estar conscientes que nossas aplicações são norteadas pela maneira como abordamos o texto. Ninguém
aborda o texto de forma totalmente isenta, como uma tábula rasa. Todos nós nos aproximamos do texto com perguntas (O
que esse texto quer me dizer? Como ele se aplica à juventude da minha igreja?), ou com preocupações específicas (às vezes
somos confortados por algo que não havíamos percebido antes no texto, mas nossa sensibilidade ao problema nosso ou do
outro nos deu uma nova perspectiva da passagem). Uma mesma passagem é lida de um jeito por um pastor que tem que
pregar ao grupo de senhoras da igreja, enquanto a leitura daquele que pensa em comunicar o mesmo texto a jovens
descrentes é outra. O que eu quero dizer por "ler" não é só interpretar, mas aplicar. O que não podemos fazer é deixar com
que nossos interesses distorçam o que o texto está afirmando. Todavia, aspectos subjetivos do intérprete acabam
influenciando a sua leitura do texto. Todos temos que ter o mesmo entendimento do que a passagem significa, mas a
maneira como nos aproximamos dela nos leva a ter aplicações distintas. Por isso é que precisamos de contatos com
pessoas distintas (aula 1) para ampliarmos nossas possibilidades de aplicações.

2
c. animar o jovem que procura emprego há bastante tempo a sossegar naquele que é o nosso
descanso.
Essa abrangência de situações nos ajuda a compreender a aplicabilidade do princípio bíblico
para diferentes problemas. “Uma série de exemplos multiplica o número de ouvintes tocados
pela aplicação.”4
Outro exemplo de abrangência de pessoas seria pensar em diferentes faixas etárias ou
condição espiritual. Quando ilustramos ou pensamos em situação para aplicar o princípio
bíblico, precisamos aprender a abranger diferentes grupos de ouvintes. Precisamos aplicar não
só ao casado mas também ao solteiro, não só ao adulto mas também à criança, não só ao
profissional mas também ao estudante, não só ao jovem mas também ao idoso. Isso não significa
que cada sermão precisa ter uma aplicação diferente para cada ouvinte, necessariamente. Porém,
se aprendemos a identificar com diferentes grupos de nossa igreja, uma ou duas situações são o
suficiente para que os demais grupos consigam trazer o princípio da aplicação para o seu
contexto.
O que devemos evitar é sempre aplicar ao mesmo grupo. Lembro-me do exemplo
negativo de um pastor que sempre fazia aplicações sobre filmes que acabavam de sair dos
cinemas para uma igreja cheia de ‘cabeças brancas’. Não é surpresa concluir que ele só atingia
os poucos jovens que lhe ouviam.
Por outro lado, se é nosso interesse falar a um grupo específico, precisamos estar
sensíveis às particularidades desse grupo. Qual é o desafio de falar sobre sexualidade para
crianças novas? Um colega de ministério prudentemente explicou às crianças o sétimo
mandamento (“Não adulterarás”, Ex 20.14) afirmando que o quarto do papai e da mamãe não
permite a entrada de uma terceira pessoa. Como se prega sobre educação de filhos para jovens
sem filhos mas que pretendem tê-los? Devemos trabalhar princípios antes do que revelar
pecados de uma experiência que não tiveram, até para não criar autojustiça neles – 'Quando tiver
meus filhos não vou fazer como fulano'. Como se fala sobre a relação com o filho ou sobre
matrimônio para quem nunca teve uma das experiências? Essas são algumas preocupações que
temos num grupo diversificado sobre assuntos que parecem não aplicar a eles.
Quando pensamos em grupos diferentes, temos que pensar em como aplicar pecados, por
exemplo, de maneira abrangente: do mais drástico ao mais comum. Essa abrangência na
aplicação nivela todos quanto àquilo que se está pregando. Todos precisam ouvir aquela
mensagem. Em cada um dos dez mandamentos, é possível ver as transgressões de quem é
incrédulo, além de quem está em igrejas menos instruídas biblicamente, mas também precisa ser

4
OVERDORF, Applying the Sermon, p. 170.

3
aplicada ao público de nossas igrejas (para que não gere soberba). Por exemplo, quando falamos
sobre não ter outros deuses além do Senhor (1º mandamento) podemos abordar tanto as
imagens, amuletos e outros objetos que são alvo de crendice (aplicável a descrentes ou a crentes
débeis que estão em sua igreja) quanto as idolatrias que temos em relação a coisas boas como o
trabalho ou a família (aplicável a todo cristão). Quando falamos de ganância, avareza (8º
mandamento), não podemos apenas pensar naqueles crentes que desembolsam centenas de
milhares de reais para comprar um carro sem se importar com o pobre, mas temos que pensar
nas ambições de quem procura em coisas criadas a segurança (seguros, investimentos), alegria
(compras, ausência de conflitos relacionais) e tranquilidade (viagens, férias) que vem de Deus.
Essa última abordagem atinge a todos, em algum grau. A ideia é que todos precisamos nos
arrepender de nossos pecados. E a aplicação dirigida a diferentes níveis de um mesmo pecado
saudavelmente nivela a igreja.
Somado às diferentes práticas do pecado, é imprescindível que nos lembremos de sondar
as motivações. Quando tratamos das razões por detrás das ações, todos são englobados no
pecado tratado. Ainda que nossas idolatrias não sejam tão evidentes no exterior, todos temos
idolatrias do coração. Portanto, trabalhar com motivações também nivela a congregação de
ouvintes.

2. Modelos de aplicação diversificada


Tanto pregadores antigos quanto os modernos têm se atentado para este aspecto da
aplicação. William Perkins (1558-1602), considerado por alguns o “pai do puritanismo”, é um
famoso exemplo de pregador preocupado com seus vários ouvintes.5 Em seu livro sobre
pregação, A Arte de Profetizar6 (publicado em latim em 1592, em inglês em 1606, e em
português em 2018), ele diz que o princípio básico da aplicação é saber se uma passagem é uma
afirmação da lei ou do evangelho. O entendimento do binômio lei/evangelho auxilia na
aplicação aos sete diferentes tipos de condição espiritual do ouvinte. Os quatro primeiros tipos
são incrédulos em diferentes estágios de sua incredulidade.
1. Aos ignorantes e não ensináveis, eles devem ser preparados para ouvir a doutrina através
de discussões e arrazoados expondo suas atitudes e disposição, até que tenham suas

5
O típico sermão puritano era dividido em três partes: explicação do texto (a parte mais objetiva e curta das três), dedução
de princípios doutrinários e morais do texto (frequentemente acompanhados de “provas” ou “razões” extraídos de toda a
Escritura), e aplicação dos princípios à vida cristã diária (essa parte era chamada de “usos”). A preocupação com a aplicação
era um zelo do puritanismo decorrente de sua rejeição das homilias da liturgia anglicana que impediam a especificidade de
uma situação local. Veja RYKEN, Leland. Santos no Mundo (São José dos Campos: Fiel, 1992), p. 111-114.
6
Veja PERKINS, A Arte de Profetizar, cap. 7 (p. 75-84).

4
consciências despertadas e se tornem ensináveis ou até que sejam deixados por se
mostrarem impenitentes.
2. Aos ignorantes mas ensináveis, deve-se instruir por meio de catecismos (explanação dos
fundamentos da fé cristã na forma de perguntas e respostas) o leite espiritual. Tanto o
leite quanto a carne se referem à mesma verdade, diferindo apenas na maneira ou estilo
de ensino.
3. Aos que tem conhecimento mas não ainda não foram humilhados, a lei deve ser aplicada
em relação a algum pecado óbvio do ouvinte para que desperte o arrependimento para a
vida. Perkins indiretamente se assemelha à postura de Cristo quando utilizou a lei para
confrontar os pecados específicos tanto do jovem rico (Mc 10) quanto da mulher
samaritana (Jo 4).
4. Aos que já foram humilhados, é importante discernir se tal humilhação não foi
superficial. Por isso, deve-se aplicar a lei temperado com o evangelho para que ao
ficarem horrorizados com seus pecados tenham o conforto no evangelho. O importante é
não receber conforto antes do apropriado, para que não sejam endurecidos em seu estado.
Essa preocupação de Perkins é semelhante à situação de pais que precisam disciplinar os
seus filhos. Se um pai repreende a criança e promete discipliná-la fisicamente, mas diante
do choro da criança acaba ‘amolecendo’, ele corre o risco de incentivar o choro esperto
da criança para se livrar da disciplina física.
5. Aos que já creram, deve-se pregar o evangelho (justificação, santificação e perseverança),
a lei deve ser exposta não como aplicável aos que estão sob sua maldição mas
despertando o fruto de uma nova obediência, e as maldições da lei ainda devem servir de
advertência.
6. Aos que retrocederam em fé ou em estilo de vida, deve-se fazer o diagnóstico do
problema e receitar o remédio adequado a partir do evangelho.
7. Às igrejas com crentes e descrentes, deve-se fazer como os profetas lidavam com a lei e o
evangelho, anunciando julgamento e destruição sobre o ímpio e prometendo libertação no
messias aos que se arrependessem.
Mark Dever, o renomado autor e pastor da Capitol Hill Baptist Church, tem uma tabela
de aplicação que tem sido muito discutida na internet.7 Ele aborda não só diferentes tipos de
ouvintes, mas diferentes situações também. Ele diz que das 25 a 30 horas gastas semanalmente
na preparação de sermão, 5 a 10 horas serão gastas só na aplicação. Ele toma cada ponto
principal de seu sermão e pergunta como cada um deles está relacionado às seguintes seis
categorias:

7
Veja uma amostra dessa tabela preenchida em
http://involve.9marks.org/site/DocServer/9MarksDoc_Sample_Application_Grid.pdf?docID=842

5
1. Aspecto singular na História da Salvação – Como essa passagem é importante para a
maneira como Deus revela seu plano da salvação na história? O que é impossível de ser
repetido por nós, mas digno de louvarmos a Deus por isso?
2. Não cristão – Como a passagem fala ao descrente? Como ela o adverte, o reprova, o
corrige, e o chama ao arrependimento? O que ela diz sobre o perigo da situação do
descrente, a exclusividade de Cristo, a necessidade que um pecador tem de um Salvador?
3. Público – O que essa passagem diz sobre nossas vidas e papéis na esfera pública, tanto
como cristãos e não cristãos (e.g. governo, vizinhança)?
4. Cristo – Como Cristo é tipificado ou apontado? Que perfeição de Cristo em particular é
descrita por esse tipo? Como Jesus é lembrado ou descrito em caráter, autoridade, glória,
ou essência?
5. Cristão – O que essa passagem significa para a vida do cristão individual? Como ela o
chama ao arrependimento ou fé mais profundos? Como ela adverte, repreende, corrige,
motiva, conforta, ou encoraja o cristão?
6. Igreja local – O que a passagem significa para a vida corporativa da igreja local? Como
ela inclina a igreja local à sua vida de comunhão ou ao testemunho corporativo à
comunidade em redor?
A proposta de Perkins e a de Dever não são excludentes, mas complementares.8 Elas
apenas ilustram a preocupação que devemos ter com os vários tipos de ouvintes e as diferentes
situações em que se encontram.

Conclusão
Com essa aula, terminamos os fundamentos teóricos, os princípios da aplicação. Na
primeira metade da disciplina vimos pontos relacionados à teologia da aplicação. Nas seis
últimas aulas vimos os pilares da aplicação. Nas aulas 7 e 8, vimos a necessidade de conhecer a
grande história e pregar cristocentricamente. Precisamos ter teologia bíblica em mente quando
vamos pensar em como o texto se aplica a nós hoje. Vamos chamar esse primeiro pilar de
panorama.
Em segundo lugar, vimos a importância de entender as ênfases de cada passagem (aulas 9
e 10). Precisamos detectar quando há lei, quando há evangelho, em porções diferentes da
Escritura. Nas epístolas, principalmente (mas também em textos proféticos e evangelhos), é
preciso atentar para indicativos e imperativos, para entender quando há descrição e quando há

8
Timothy Keller apresenta uma terceira lista complementar. Cf. KELLER, Preaching the Gospel in a Post-Modern World, p.
87-89.

6
prescrição. Isso significa entender a passagem específica a ser pregada. Vamos chamar esse
segundo pilar de perícope.
Em terceiro lugar, vimos nas aulas 11 e 12 a importância de conhecer o tempo em que
vivemos e as pessoas a quem servimos com a pregação da Palavra. As tendências de nosso
tempo revelam o elemento público da cosmovisão, ou o espírito da época. Considerar os
diferentes ouvintes proporciona uma amplitude de alcance em nossas aplicações. Vamos chamar
esse pilar de pessoas.
Panorama, perícope, pessoas. Esses são as três áreas de investigação para que sirvam de
pilares na construção de nossas aplicações.

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