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EEB 453: Princípios de Aplicação Bíblica

Prof. Heber Carlos de Campos Júnior


Email: heber.campos@mackenzie.br

Aula 5: Perigos da Aplicação

É possível fazer boa hermenêutica do texto bíblico e, depois, aplicá-lo de maneira


indevida. Em outras palavras, temos o auxílio de comentaristas para interpretar o texto sagrado
em seu sentido original, mas por falta de recursos nós temos pouca familiaridade com o processo
de fazer a ponte ao leitor moderno. No âmbito popular, porém, quando alguém aplica bem o
texto sagrado, nós dizemos que fulano "entendeu" o texto. Em contrapartida, quem aplica
impropriamente não entendeu o texto. Nesse sentido, se hermenêutica suscita o sentido do texto,
aplicação traz o seu significado (sua validade perene).
Esta aula e a próxima (aula 6) visam ensinar por intermédio de exemplos negativos. Em
geral, as tendências descritas abaixo não são reconhecidas como problemas. Portanto, faz-se
necessário destacar porque são tão problemáticas e desonram a riqueza das Escrituras e a sua
relevância para as nossas vidas.
Às vezes é necessário aprender o que fazer sabendo, antes, o que não devemos fazer.
Com aplicação não é diferente. Esta aula visa ressaltar alguns equívocos comuns quando
pregadores e professores procuram aplicar o ensino bíblico. Queremos evitá-los e, por isso,
precisamos nos conscientizar quais são esses perigos. Alguns erros estão mais relacionados a
superficialidade e outros a legalismo, mas todos revelam uma hermenêutica doentia. A lista que
trazemos nesta aula contém três erros de aplicação: generalizações, trivializações e
espiritualização. Veremos mais dois erros na aula seguinte (aula 6). Cada um dos cinco erros
que iremos trabalhar demonstra uma miopia em relação a um belo atributo das Escrituras.
Por isso, creio ser útil distinguir um pouco mais cada um dos problemas. A divisão em
cinco perigos não é comum, mas foi feita para auxiliar os leitores a enxergam ênfases um pouco
diferentes em problemas que são sobrepostos. Isto é, pregadores e mestres podem cometer dois
ou três dos erros abaixo numa mesma aplicação. Todavia, nós estamos mostrando como cada
uma delas destaca algo singular que merece ser visto como tópico distinto. Exemplificando, o
que normalmente é chamado de “moralismo” no sentido mais lato, eu trago um sentido um

1
pouco mais restrito abaixo e distinto de alegoria e de normatização. Estudemos cada um dos
erros sob esses grupos maiores.

1. Generalizações
Frequentemente nossas aplicações não passam de generalizações onde o sermão termina
com algum apelo para a pessoa se entregar a Jesus, ou algum apelo para os cristãos: seja santo,
seja fiel, seja comprometido. Os membros da igreja ouvem semana após semana que precisam
servir mais, testemunhar mais, estudar mais a Bíblia, apoiar missões, etc. E quando
generalizamos, temos a tendência de sempre cair naquilo que nos é mais caro. Por exemplo,
aquele que tem o coração evangelista quase sempre termina o sermão fazendo algum tipo de
apelo à conversão, enquanto outros pregadores parecem sempre pender para uma mensagem de
santificação.
Não são aplicações erradas, só que não específicas. Falam sobre “o que” fazer, mas
param nisso. A falta de especificidade gera muita repetição e aplicações rasas. O pecador não se
vê confrontado quando a aplicação é generalizada, assim como a oração “Senhor, perdoa os
meus pecados” não é tão tocante quanto dar nome ao pecado. Especificidade traz realismo à
aplicação, e realismo não é nada monótono.
Portanto, aplicação requer especificidade. Exortar as pessoas a orar mais, ler mais a
Bíblia e vir mais à igreja soam tão comuns aos crentes que eles quase não precisam mais ouvir
isso (observe, eu disse “quase”). No entanto, tornar a Bíblia vívida para o mundo dos negócios, a
vida familiar, os relacionamentos sociais, nossa postura na esfera pública, hábitos pessoais e
sabedoria para estabelecer prioridades, isso é muito mais complexo. Há um sentido em que a
explicação do texto é mais simples, pois embora exija erudição, o sentido está estampado no
texto sagrado.1 A vida, porém, é um livro mais complexo de se ler.
Certa vez perguntei a alguns alunos: “Quando foi a última vez que você ouviu um sermão
sobre a perspectiva cristã da arte?” Foi engraçado detectar que tal pergunta suscitou o franzir da
testa de uns quase como se estivessem pensando: “E isso existe?” Tal estranheza se dá porque
não estamos acostumados a ser específicos. Não estou dizendo que você tenha que procurar
aplicar em áreas onde você não tem qualquer traquejo, pois o desrespeito pela complexidade de
assuntos e dos desafios de cada área gera aplicações simplistas. No entanto, o que quero dizer é
que a Escritura deve ser pensada como aplicável a todas as áreas da vida.

1
CHAPELL, Pregação Cristocêntrica, p. 235.

2
Stuart Olyott mostrou como o nosso Salvador não tinha o mesmo discurso para cada um
dos seus ouvintes.2 Diante do jovem rico ele não falou de forma genérica sobre idolatria, mas
confrontou o seu ídolo (Mt 19.21-22). Diante da mulher samaritana, não fez um apelo genérico
ao arrependimento de sua vida passada, mas lhe fez encarar seu triste histórico e condição
irregular (Jo 4.16-18). Diante de legalistas que não entendiam a profundidade de seu pecado, ele
não só trouxe à tona um princípio esquecido – “o que sai do homem, isso é o que o contamina” –
, mas listou cada um dos pecados que saem do coração humano (Mc 7.20-23).
Muitos pregadores falham na aplicação ou ficando aquém dela, ou extrapolando-a. O que
quero dizer é que alguns não são específicos o suficiente, ficam apenas no princípio bíblico.
Outros são bem específicos, mas fogem do princípio extraído do texto. Tomemos como exemplo
o seguinte texto conhecido: "Maridos, amai vossa mulher, como também Cristo amou a igreja e
a si mesmo se entregou por ela." (Ef 5.25). Se tudo o que eu digo é que devemos amar nossas
esposas de forma sacrificial, eu cheguei no princípio, mas não o apliquei. Se, por outro lado, eu
digo que maridos devem servir o café da manhã ou enviar flores às esposas como expressão do
seu amor, eu fui específico, mas fugi totalmente do princípio bíblico. Uma aplicação mais fiel
seria tomar o princípio de amor sacrificial e falar de momentos em que o marido tem que morrer
para si mesmo no casamento: quando renuncia à promoção profissional que irá tirá-lo de casa
por muitas semanas do ano, ou renuncia às noites com os amigos curtindo coisas só de homens.
Outro princípio a observarmos no texto é que o propósito do amor sacrificial de Jesus era
purificar a sua noiva (Ef 5.26-27). Portanto, a pergunta específica que a aplicação precisa
responder é a seguinte: como é que amamos sacrificialmente para a santificação de nossa
esposa? Primeiro, pense no modo masculino de evitar atritos com esposas para não perturbar o
seu próprio sossego. Homens são continuamente errados em sua omissão no trato de problemas
do lar, deixando que as esposas resolvam coisas que deveriam ser uma ação conjunta. Agora
pense no princípio bíblico de morrer para si. Quando um homem precisa sair de seu comodismo
e, por exemplo, confrontar uma atitude da esposa que é pecaminosa ou insensata, ele está
morrendo para si a fim de ser instrumento da santificação dela. Rechear essa aplicação com
problemas reais é a especificidade que demonstra não só “o que” fazer, mas “quando” e “como”
fazer.
Todavia, não devemos pensar em especificidade simplesmente no que tange a “deveres”.
Olyott escreve acerca dos “usos” ou aplicações nos sermões dos puritanos nos quais “falavam de
modo específico às suas congregações a respeito do seu pecado, deveres, problemas e
privilégios.”3 Observe como “deveres” é apenas uma categoria de aplicações onde devemos
almejar por especificidade. Porém, nas outras três também devemos ser mais detalhados em

2
OLYOTT, Pregação Pura e Simples, p. 104-105.
3
OLYOTT, Pregação Pura e Simples, p. 107.

3
nossas aplicações. Devemos buscar especificidade quando falamos de um pecado como orgulho
ou ganância, por exemplo (em que situações nós nos mostramos gananciosos?). Devemos buscar
especificidade quando abordamos o delicado problema da disciplina eclesiástica (quais os
passos, quais os desafios, qual a postura, dê exemplos). E devemos ser específicos ao aplicar os
privilégios que temos em Cristo contra nossas ansiedades e angústias. Perceba que
especificidade não diz respeito a "regras" somente, embora devamos cuidadosamente
exemplificar como devemos disciplinar filhos, evangelizar alguém, etc.
Por último, ser específico significa ir além da ponte com os dias de hoje para atingir as
necessidades daqueles a quem se prega. David Veerman explica que a aplicação vai além de ser
relevante, de fazer conexões entre as realidades bíblicas e o contexto contemporâneo. Ela
precisa atingir as necessidades específicas em minha comunidade e congregação. Por isso, o
pregador não só explica a idolatria dos tempos bíblicos (lá) e faz a ponte com as idolatrias do
nosso tempo (agora), mas confronta idolatrias específicas de sua comunidade (eu/nós).4 A
especificidade do qual ele trata, portanto, requer que conheçamos as necessidades locais.
Em suma, generalizações devem ser evitadas. Quem generaliza não entendeu que a
Escritura é cirúrgica (porque se aplica ao contexto específico do ouvinte) e também abrangente
(porque abarca todas as áreas da vida).

2. Trivializar
Se generalizações são um perigo, parece que o seu extremo é a tendência de trivializar.
Por trivializar, me refiro à tendência de alguns mestres e palestrantes de oferecer aplicações do
cotidiano que são bem específicas – isto é, não sofrem do mal de generalizações – mas rasas.
Tais aplicações não contemplam a riqueza e profundidade do evangelho. Acabam sendo
aplicações muito horizontais, possíveis de serem encontradas em outras fontes que não a
Palavra.
Deixe-me exemplificar. Se o coxo em Atos 3.1-12 representa alguém em necessidade que
devemos ajudar, você trivializa quando diz que ajudar é dar uma carona para alguém vir à igreja.
Dar carona é útil, mas secundário, e pequeno se comparado ao dom de Jesus Cristo oferecido
por Pedro na história de Atos. Se tomar a cruz e morrer pra si (Mc 8.34-38) é associado a abrir
mão do futebolzinho uma noite por semana para participar de um pequeno grupo, você pode até
estar propondo um sacrifício para alguns, mas ainda é pouco. Se você prega sobre o exemplo
dos Macedônios e a exortação paulina de contribuir com alegria (2 Co 8-9), depois encoraja os

4
VEERMAN, “Aplicação Interna” em A Arte e o Ofício da Pregação Bíblica, p. 350-351.

4
irmãos a parar de tomar refrigerante e reverter o dinheiro para a igreja, você trivializou e não
respeitou a história de um povo que deu acima de suas posses.
Não podemos diminuir o padrão bíblico de santidade, amor e serviço. Algumas
aplicações acabam banalizando o alto padrão de santidade exigido na Palavra e a profundidade
do evangelho da graça. Certa vez ouvi um renomado pregador falar que Deus não espera
perfeição de nós, mas sim coerência. Errado! Pedro diz que nossa santidade precisa ser perfeita
como a do Pai (1 Pe 1.16) e Paulo diz que caminha para atingir esse alvo de perfeição (Fp 3.12).
Não podemos abaixar o padrão bíblico. Isso é banalizar a Palavra!
Banalizamos também quando nossas aplicações são semelhantes ao que ouviríamos em
algum programa de televisão ou livro de autoajuda. Por exemplo, tirar princípios de liderança a
partir da biografia de Davi. Você não precisa da Bíblia para tirar princípios de liderança
encontrados em livros seculares. Mas crentes tem mania de querer ler a Bíblia para dar respaldo
divino a alguma coisa que aprenderam em curso de liderança na empresa. Não estou dizendo
que tais princípios de liderança secular sejam necessariamente errados. Todavia, você torna a
Bíblia inútil ao ouvinte se tudo o que você extrai dela é algo que ele encontra em uma livraria
secular.
O mesmo pode ser dito de conselhos psicologizados. “Você precisa aprender a dizer não,
a estabelecer limites”. Esse tipo de frase sai da boca de pregadores evangélicos quase na mesma
frequência que sai de palestrantes motivacionais. “Mas está errado falar isso, professor?”, você
pergunta. Bem, a pergunta chave é “Por quê? Por que estabelecer limites?” A psicologia popular
diria que é para você cuidar de si mesmo, para você voltar a se amar. Mas isso é totalmente
pagão. A Bíblia não nos ordena a amar-nos a nós mesmos. Ela parte do pressuposto que nos
amamos até demais. É por isso que ela estabelece o difícil padrão de amarmos os outros como a
nós mesmos. Portanto, na visão cristã, estabelecer limites pode ser egocêntrico e não sacrificial,
o que seria contrário à recomendação bíblica. Por outro lado, estabelecer limites pode ser
recomendável se a pessoa que não sabe dizer “não” o faz simplesmente por temor de homens
(teme o que os outros irão pensar). Isto é, se ela fica assoberbada de serviço porque age sempre
buscando a aprovação alheia, então ela manifesta temor de homens antes que temor do Senhor.
Percebe como as Escrituras chegam no âmago de nossas motivações? A lei de Deus não
trivializa o nosso dia a dia. Ela chega na raiz do nosso pecado. O evangelho é a solução divina
para os problemas mais profundos, não só para questões corriqueiras. Portanto, não faça o
desserviço de trivializar a Palavra. Quem trivializa não entendeu que a Escritura é profunda em
seus intentos, pois ela não provê apenas modelos corriqueiros de conduta, mas produz
transformação de nosso íntimo.

5
3. Espiritualização
Essa seção trata de um problema antigo na história da hermenêutica, mas que continua
enraizado em nossa cultura evangélica. Ele procede de corações tão desejosos de tornar sua
mensagem relevante, que eles julgam ser sua tarefa tornar o texto relevante ao invés de crerem
que o texto já é relevante. Como o evangelho é transcultural e transtemporal, nossa missão é
anunciá-lo, não torná-lo relevante. Nossa função é apenas a de transferir a mensagem relevante
do passado para o presente atravessando a lacuna histórico-cultural que separa o mundo do texto
de nosso mundo contemporâneo.5 Na tentativa de traspor essa lacuna, algumas formas
impróprias de aplicação se tornam comuns na boca de pregadores.
Desde muito na história da igreja tem se usado o método alegórico para se transpor a
lacuna. A escola de Alexandria ficou conhecida na história da igreja antiga como uma escola
que ensinava a se achar o verdadeiro sentido por detrás do sentido literal. Embora já tenha sido
muito criticada em tempos recentes, existem alguns pregadores que ainda alegorizam
regularmente.
Um amigo meu relatou ter ouvido um sermão sobre Davi e Golias que começou com uma
pergunta intrigante: “Se Davi poderia ter matado o gigante Golias com uma pedra, por que ele
pegou cinco pedras?” Meu amigo disse que ficou tão intrigado com a pergunta que se prendeu
na mensagem, interessadíssimo em ouvir a resposta. No decorrer da pregação, o mensageiro
afirmou que Davi precisava das cinco pedras: a pedra da fé, a pedra da coragem, a pedra da
perseverança, e por aí foi no caminho da alegoria. A subjetividade de tais aplicações é perigosa,
pois seria possível dizer qualquer coisa em relação às cinco pedras. A escolha dos adjetivos é
arbitrária.
Uma forma gêmea da alegoria é a espiritualização, que costuma descartar a realidade
histórica, física e terrena do texto, fazendo uma analogia espiritual do texto para comunicar-nos
algo relevante. Essa forma de aplicação é ainda mais comum que a alegoria clássica. Quando
pessoas pregam sobre a batalha de Josué em Jericó (Js 6), é costume perguntar à igreja: “Qual é
a sua muralha? Qual é a sua Jericó?” O problema desse método, como bem apontou Sidney
Greidanus, é que a escolha de apenas um ou dois elementos do texto é muito arbitrária.6 Por que
não se espiritualizam as trombetas, o arrail, a meretriz? Além disso, espiritualizar guerras para
falar de nossas batalhas espirituais, ou falar de nossas dificuldades em relacionamentos é muito
mais prático do que lidar com a licitude moral ou não da guerra no Antigo Testamento. Quando
espiritualizamos guerras, fugimos de dificuldades morais como as ordens divinas para aniquilar
tudo (e.g., 1 Sm 15).

5
GREIDANUS, O Pregador Contemporâneo e o Texto Antigo, p. 196.
6
GREIDANUS, O Pregador Contemporâneo e o Texto Antigo, p. 199.

6
A mesma seleção arbitrária acontece quando tomamos a história de Jesus acalmando a
tempestade (Mc 4.35-41) e falamos de confiar em Jesus em meio às tempestades da vida. Afinal,
como diz o cântico infantil, “com Cristo no barco tudo vai muito bem”. Quem está habituado a
espiritualizar acha esse tipo de aplicação fácil de fazer. Não precisa de estudar o texto com
afinco usando as ferramentas exegéticas e hermenêuticas. Como bônus, ainda ganha status de
pregação abençoada, pois abarca todo ouvinte. Quem não passa por alguma dificuldade? O
problema é que nessa espiritualização, houve uma seleção arbitrária e subjetiva. O pregador
escolheu o detalhe que lhe foi mais conveniente. Por que não espiritualizar a popa do barco ou o
travesseiro em que Jesus dormia (v. 38)?7
O mesmo problema de seleção dos detalhes de forma arbitrária acontece na aplicação que
Paul Hoff faz do texto de 2 Reis 4.1-7: “Deus procura ainda ‘vasilhas desocupadas’ para enchê-
las. Devemos nos despojar do que é mundano, do egoísmo e do orgulho e nos apresentar ao
Senhor. O Espírito Santo continua enchendo as vasilhas. Devemos fazer que nossos vizinhos se
aproximem do Senhor para que eles também sejam receptores da plenitude de Deus.”8 Além de
aleatoriamente pensar que a atitude da viúva possa significar um abandono do que é mundano,
do egoísmo e do orgulho (a viúva não é orientada a nenhum abandono de pecado na passagem),
a aplicação de Hoff só relaciona com o Espírito Santo quando convém. Como diz Walter Kaiser,
é inconsistente interpretar o azeite abundante que enchia as vasilhas da viúva de 2 Reis 4.1-7
como sendo o Espírito Santo – como se toda menção a óleo ou azeite fosse referência ao
Espírito –, mas não concluir que o Espírito deva ser vendido conforme o verso 7 da passagem.9
Certa vez ouvi uma aplicação espiritualizada de Jonas 1. Numa breve meditação a
pessoas descrentes o pastor ressaltou que a tempestade acalmou quando Jonas foi lançado no
mar e, então, o pregador pulou direto para a seguinte frase: “Precisamos lançar fora os nossos
problemas.” O erro dessa aplicação é que ela não percebe que os marinheiros num primeiro
momento não aceitaram a sugestão de Jonas de ser lançado no mar e tentaram remar contra o
mar tempestuoso. Essa atitude deles é nobre diante do contexto de serem gentios preocupados
com um judeu, quando esse judeu não se importou com outros gentios em Nínive. No final do
capítulo eles acabam lançando Jonas para fora do barco, mas em meio a muito temor do Senhor
e oração. Assim sendo, não podemos tomar Jonas 1 para falarmos de lançar fora os nossos
problemas e confiar em Deus. A história de Jonas ressalta o tema da compaixão por outros
ironicamente demonstrado por gentios (exatamente o que Jonas não demonstrara), não o de
resolver os nossos problemas.

7
OVERDORF, Applying the Sermon, p. 75.
8
HOFF, Paul. Os Livros Históricos, trad. Jefferson Magno Costa (São Paulo: Vida, 1996), p. 226.
9
KAISER, Walter C., Jr., Toward an Exegetical Theology: Biblical Exegesis for Preaching & Teaching (Grand Rapids:
Baker, 2006), p. 198-199.

7
Mas a compaixão dos marinheiros é apenas uma ironia do texto que aponta para a
compaixão do grande Senhor (Jn 4.2). É nisso que Timothy Keller conecta Jonas 1 e Marcos 4,
as duas passagens que acabamos de ver. Ele diz que Marcos 4 intencionalmente revive Jonas 1
onde Jonas e Jesus estão dormindo em meio à tempestade, são acordados pelos amedrontados,
ambas as tempestades são acalmadas miraculosamente e ambas as histórias concluem com
expectadores estupefatos depois que vem a calmaria.10 A grande diferença, porém, é que Jonas é
"sacrificado" no mar por negligência, enquanto Cristo entrega a sua vida pelos seus discípulos.
Só um demonstrou compaixão; só Cristo refletiu a compaixão do Deus altíssimo.
A razão desse paralelo com Cristo não ser uma espiritualização, é que ela não se detém
em um detalhe da história e salta para conectá-lo conosco. Não! Esse paralelo ressalta o grande
sentido das duas narrativas, a compaixão que é própria do Senhor é demonstrada pelo
"estrangeiro", pelo "samaritano" da história, que é Cristo. A espiritualização, em contrapartida,
desconsidera totalmente o sentido do autor. Embora digamos que todo texto tem um sentido,
mas várias aplicações, ainda assim cada aplicação precisa estar em conformidade com o sentido
do texto.
Hermenêutica que aponta para a redenção em Cristo é diferente de alegoria. Graeme
Goldsworthy ilustra com a história de Raabe e consequente destruição de Jericó (Js 2 e 6).
Apontar a Cristo baseado em um detalhe como o cordão vermelho apontando para o sangue de
Cristo é fazer relação entre objetos que em outros textos não será claro. Todavia, Deus conduz o
povo a posturas que em nada contribuem para ruir as muralhas: marchar, tocar trombetas e
gritar. Não há nada na física que explique o destruir muralhas com o som de gritos e trombetas
do povo. Sua postura, em contrapartida, revela uma dependência do Senhor: “Gritai, porque o
Senhor vos entregou a cidade!” (Js 6.16). Portanto, Goldsworthy conclui dizendo que o ato
redentor de Deus de livrar o seu povo dos inimigos sem a contribuição do povo é uma lição que
aponta para o tipo de redenção em Cristo.11 Em outras palavras, tanto na história de Jericó
quanto no Calvário, é Deus quem opera a nossa redenção, sem que tenhamos qualquer
participação contributiva.
Podemos fazer uso legítimo de tipologias nas Escrituras (ex: o afastamento do leproso é
um tipo do afastamento produzido pela impureza do pecado), mas espiritualização diz respeito a
excessos imaginativos. A espiritualização é uma ‘abordagem docética’ porque desconsidera a
historicidade e o contexto do autor e dos leitores primeiros.12 Portanto, façamos analogia do
texto (ponte com o ouvinte) sem alegoria do mesmo. Estudemos o texto para compreender o seu
sentido original e a lição que ele trazia para os seus primeiros leitores. Quem espiritualiza não

10
KELLER, Pregação, p. 95.
11
GOLDSWORTHY, Graeme Goldsworthy Trilogia – O Evangelho e o Reino, p. 120-121.
12
Cf. KAISER, Toward an Exegetical Theology, p. 206.

8
entendeu que a Escritura é histórica e que as lições que o autor queria trazer aos primeiros
leitores são relevantes para nós hoje.

Conclusão
Nesta aula apenas começamos a aprender como não fazer. A verdade é que talvez você já
tenha se enxergado em uma ou mais formas de aplicar que nós apontamos como perigos.
Portanto, devemos estar atentos das razões pelas quais essas formas de aplicar são indevidas.
Na próxima aula exploraremos mais perigos e concluiremos demonstrando a nossa
necessidade de trilhar um caminho melhor.

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