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O SACERDÓCIO UNIVERSAL DOS FIÉIS

Alderi Souza de Matos

Introdução

Dentre os princípios fundamentais defendidos pelos reformadores do século XVI, está o


“Sacerdócio Universal dos Fiéis” ou “Sacerdócio de Todos os Crentes”. Os outros princípios, dos
quais este decorre, são as Escrituras como norma suprema de fé e vida e a salvação pela graça
mediante a fé, alicerçada na obra redentora de Jesus Cristo.

Embora o Antigo Testamento apresente claramente a noção de um ofício sacerdotal


exercido por elementos da tribo de Levi em benefício do povo de Israel, existem passagens que
antecipam um entendimento mais amplo dessa função. Êxodo 19.5-6: “Se diligentemente
ouvirdes a minha voz, e guardardes a minha aliança, então sereis a minha propriedade particular
dentre todos os povos... vós me sereis reino de sacerdotes e nação santa”. Outro texto relevante
é Isaías 61.6: “Vós sereis chamados sacerdotes do Senhor, e vos chamarão ministros de nosso
Deus”.

1. Novo Testamento

No Novo Testamento, o conceito de sacerdócio tem dois aspectos:

(a) Jesus Cristo é o grande sumo sacerdote: todas as funções do sacerdócio da antiga
dispensação concentram-se nele, e são por ele transformadas. Ele é o único mediador entre
Deus e os seres humanos (1 Tm 2.5). Ele é o representante de Deus junto aos homens e o
representante dos homens junto a Deus. Ele é, ao mesmo tempo, o sacerdote e o sacrifício. A
Carta aos Hebreus expõe claramente a superioridade do sacerdócio de Cristo sobre o
sacerdócio levítico e apresenta o caráter definitivo e totalmente eficaz do seu auto-sacrifício
sobre a cruz (Hb 2.17; 3.1; 4.14s; 5.10; 6.20; 7:24-27; 9:12,26; 10.12). A literatura joanina
também fala repetidamente do sacerdócio de Cristo, como em João 1.29.

(b) Todos os crentes partilham desse sacerdócio: isso se expressa principalmente nas áreas da
adoração, serviço e testemunho. 1 Pedro 2.5: “Também vós mesmos, como pedras que vivem,
sois edificados casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios
espirituais, agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo”. 1 Pedro 2.9: “Vós, porém, sois
raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de
proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz”. O
Apocalipse destaca o aspecto governamental desse sacerdócio: “Àquele que nos ama, e pelo
seu sangue nos libertou dos nossos pecados, e nos constituiu reino, sacerdotes para o seu Deus
e Pai...” (1.5-6); “Digno és de tomar o livro e de abrir-lhe os selos, porque foste morto e com o
teu sangue compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação, e para o
nosso Deus os constituíste reino e sacerdotes” (5.9-10).

O Novo Testamento não menciona a existência de um ofício sacerdotal na Igreja. Essa


idéia surgiu posteriormente, em escritores como Clemente (ministério cristão composto de sumo
sacerdote, sacerdote e levita), a Didaquê (chama os profetas cristãos de “vossos sumos
sacerdotes” e refere-se à eucaristia como um sacrifício) e, mais especificamente, em Tertuliano
e Hipólito, que se referem aos ministros cristãos como “sacerdotes” e “sumos sacerdotes”.

2. Idade Média
Na Idade Média, desenvolveu-se plenamente a idéia do sacerdócio (o clero) como uma
classe distinta dos leigos, dotada de dignidade e direitos especiais. Essa idéia resultou do
entendimento da eucaristia como um sacrifício – a repetição do sacrifício de Cristo –, o que
exigia a figura do sacerdote. Além disso, a noção de que os (sete) sacramentos são canais
quase que exclusivos da graça de Deus e só podem ser ministrados através do sacerdócio, deu
aos sacerdotes, à hierarquia, um enorme poder sobre as vidas dos fiéis. Os leigos tornaram-se
totalmente dependentes da ministração dos sacerdotes para receberem os benefícios da graça
de Deus e, em última análise, a própria salvação.

Um exemplo dos malefícios causados por esses dogmas pode ser visto na prática do
interdito ou interdição, um instrumento utilizado pelos papas e outros líderes religiosos contra os
reis europeus, mediante o qual o clero ficava proibido de ministrar os sacramentos em uma
cidade, região ou país inteiro como um instrumento de pressão político-religiosa.

3. Martinho Lutero

Em sua peregrinação espiritual, Lutero veio a ter uma compreensão da graça de Deus
que se chocou frontalmente com esse entendimento da Igreja e do ministério cristão. A partir de
1512, quando se tornou professor de estudos bíblicos na Universidade de Wittenberg, ele
começou a encontrar nas Escrituras uma série de verdades revolucionárias a respeito da
salvação. A salvação fundamentava-se exclusivamente na graça de Deus e na obra expiatória
de Cristo. Mediante a fé ou confiança nessa graça e nessa obra, o indivíduo era justificado, ou
seja, aceito como justo por Deus, sendo que essa fé também era uma dádiva do alto. As obras
ou méritos humanos não desempenhavam nenhum papel nesse processo, mas a salvação era,
do começo ao fim, uma dádiva da livre graça de Deus ao pecador arrependido.

A partir de 31 de outubro de 1517, Lutero passou a elaborar as implicações mais amplas


dessa nova percepção. Ele o fez principalmente através de uma obra que escreveu em 1520, A
Liberdade do Cristão, onde argumenta que “a alma crente, por seu compromisso de confiar em
Cristo, livra-se de todo pecado, do temor da morte e do inferno, e se reveste com a justiça
eterna, a vida, e a salvação de Cristo, o seu esposo”. É isto o que concede plena liberdade ao
cristão.

Diz Lutero: “De posse da primogenitura e de todas as suas honras e dignidade, Cristo
divide-a com todos os cristãos para que por meio da fé todos possam ser também reis e
sacerdotes com Cristo, tal como diz o apóstolo Pedro em 1 Pe 2.9... Somos sacerdotes; isto é
muito mais que ser reis, porque o sacerdócio nos torna dignos de aparecer diante de Deus e
rogar pelos outros”.

Mais adiante ele pondera: “Tu perguntas: ‘Que diferença haveria entre os sacerdotes e os
leigos na cristandade, se todos são sacerdotes?’ A resposta é: as palavras ‘sacerdote’, ‘cura’,
‘religioso’ e outras semelhantes foram injustamente retiradas do meio do povo comum, passando
a ser usadas por um pequeno número de pessoas denominadas agora ‘clero’. A Escritura
Sagrada distingue apenas entre os doutos e os consagrados, chamando-os de ministros, servos
e administradores, que devem pregar aos outros a Cristo, a fé e a liberdade cristã. Já que,
embora sejamos todos igualmente sacerdotes, nem todos podem servir, administrar e pregar.
Como disse Paulo em 1 Co 4.1: “Assim, pois, importa que os homens nos considerem como
ministros de Cristo, e despenseiros dos mistérios de Deus.” (A Liberdade do Cristão, cap. 17).

Os leigos têm a mesma dignidade que os ministros. Todas as profissões e atividades são
igualmente valiosas aos olhos de Deus. Os ministros diferenciam-se dos leigos simplesmente
nisso: foram escolhidos para realizar certos deveres definidos, para que haja ordem na casa de
Deus. Foi esse princípio do sacerdócio de todos os crentes que libertou os homens do temor e
dependência do clero. É o grande princípio religioso que jaz na base de todo o movimento da
Reforma. Não somente Lutero, mas todos os demais reformadores o afirmaram, em especial
João Calvino.

4. Implicações práticas

Dessa verdade bíblica, decorrem algumas implicações práticas:

a) O princípio do sacerdócio universal dos crentes nos fala do grande privilégio que temos como
filhos de Deus: cada cristão é um sacerdote, cada cristão tem livre e direto acesso à presença
de Deus, tendo como único mediador o Senhor Jesus Cristo.

b) Todavia, esse princípio jamais deve ser entendido de maneira individualista. A ênfase dos
reformadores está no seu sentido comunitário. Somos sacerdotes uns dos outros, devendo orar,
interceder e ministrar uns aos outros. À luz do Novo Testamento, todo cristão é um ministro
(diákonos) de Deus, o que ressalta as idéias de serviço e solidariedade.

c) Num certo sentido, todos os crentes são “leigos”, palavra que vem do termo grego laós, o
povo de Deus. Todavia, a Escritura claramente fala de diferentes dons e ministérios. Alguns
cristãos são especificamente chamados, treinados e comissionados para o ministério especial
de pregação da Palavra e ministração dos sacramentos.

d) Os leigos, no sentido daqueles que não são “ministros da Palavra”, também têm importantes
esferas de atuação à luz do Novo Testamento. Os líderes da Igreja devem falar sobre o
ministério do povo de Deus, bem como instruir e incentivar os crentes e desempenharem o seu
ministério pessoal e comunitário. A placa de uma igreja nos Estados Unidos dizia o seguinte:
“Pastor: Rev. tal; Ministros: todos os membros”.

e) O sacerdócio universal dos crentes corre o risco de tornar-se mera teoria em muitas igrejas
evangélicas. Sempre que os pastores exercem suas funções com excesso de autoridade (1
Pedro 5.1-3), insistindo na distância que os separa da comunidade, relutando em descer do
pedestal em que se encontram, concentrando todas as atividades de liderança e não sabendo
delegar responsabilidades às suas ovelhas, tornando as suas igrejas excessivamente
dependentes de sua orientação e liderança, não dando oportunidades para que as pessoas
exerçam os dons e aptidões que o Senhor lhes tem concedido, há um retorno ao sacerdotalismo
medieval contra o qual Lutero e os demais reformadores se insurgiram.

Que o Senhor nos dê a graça de valorizarmos e praticarmos fielmente o princípio bíblico do


sacerdócio de todos os crentes, redescoberto pelos reformadores do século XVI. Dessa
maneira, seguindo a verdade em amor, cresceremos “em tudo naquele que é o cabeça, Cristo,
de quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado, pelo auxílio de toda junta, segundo a justa
cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edificação de si mesmo em
amor” (Ef 4.15s).

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