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Ca p í t u l o 15

O princípio
regulador
no culto
Paulo R. B. Anglada

E
ste capítulo investiga o conceito reformado acerca do culto público, focalizando,
especialmente o modo como Deus deve ser adorado. Não se trata de um estudo
exegético, mas de um ensaio sobre teologia prática histórica. O objetivo deste
ensaio não é interpretar e sistematizar a revelação bíblica referente ao assunto, mas sim-
plesmente descrever a concepção reformada do culto público a Deus e do princípio que
deve regulá-lo. Também não se discutirá aqui a aplicação do princípio regulador do culto
às diversas práticas litúrgicas envolvidas na adoração pública reformada. Entretanto,
a descaracterização litúrgica de considerável parcela do evangelicalismo moderno, in-
clusive no Brasil, exige que a questão do culto cristão seja considerada e justifica uma
exposição da posição reformada histórica quanto ao tema.

A relevância da forma bíblica de culto na tradição reformada

Duas questões foram de suma importância na Reforma protestante do século XVI:


o culto e a doutrina da salvação – e nessa ordem. É nessa ordem que Calvino apresen-
ta os dois principais males da época, como ele mesmo afirma no seu tratado sobre a
376 A glória da graça de Deus: Ensaios em honra a J. Richard Denham Jr.

necessidade de reforma na Igreja,1 escrito em 1543: “Primeiro, o modo como Deus é


cultuado devidamente; e, segundo, a fonte da qual a salvação pode ser obtida. Quando
se perde de vista estas coisas, embora possamos nos gloriar no nome de cristãos, nossa
profissão de fé é vazia e vã”.
Tem-se reconhecido que, durante os primeiros anos da reforma protestante em
Genebra, “o foco de atenção não foi a questão da justificação, mas sim a questão da missa
e das imagens, e todos os abusos relacionados a ela”.2 De fato, o foco principal dos refor-
madores, tais como Zwinglio, Bullinger, Bucer, Farel e Calvino foi a purificação do culto
das superstições e idolatria medievais.3 Ilustrando a importância do culto na concepção
reformada, Iain Murray reconhece que:

A questão do culto esteve no centro da revolução espiritual e


nacional que marcou a Reforma do século XVI. Mártires escoceses
foram para a estaca por se recusarem a obedecer à forma de culto im-
posta pela Igreja de Roma. Pela mesma razão, cerca de 288 homens e
mulheres foram queimados vivos na Inglaterra entre os anos de 1555
e 1558. Depois, quando a doutrina protestante tornou-se oficial-
mente estabelecida na Inglaterra e na Escócia, em 1560, um conflito
continuou nos dois países para purificar o culto público das práticas e
cerimônias pré-reformadas. Ministros evangélicos foram silenciados,
banidos e mesmo executados por protestarem contra corrupções no
culto. A emigração dos Pais Peregrinos e dos Puritanos para a Nova
Inglaterra estava essencialmente ligada à mesma questão. ‘O prin-
cipal propósito desta nova plantação’, escreveu Cotton Mather, ‘era
estabelecer e desfrutar das ordenanças do evangelho e cultuar o Se-
nhor Jesus Cristo de acordo com suas próprias instituições’.4

Mathew Henry resumiu bem a importância do culto na tradição reformado-purita-


na, ao escrever: “a religião é toda a razão da nossa vida, e o culto a Deus a razão da nossa
religião”.5
A importância do nosso tema se evidencia mais claramente quando consideramos
a história das religiões, a diversidade litúrgica nos cultos evangélicos contemporâneos, e
o contraste do culto contemporâneo com a forma de culto reformado.

História das religiões


A história das religiões demonstra que, quando o próprio homem se atribui o
1 The Necessity of Reforming the Church (Protestant Heritage Press, 1995).
2 Carlos M. N. Eire, War Against the Idols, citado por Terry Johnson, “Introduction to Worship”, em Premise 3/1 (1996).
3 Johnson, Ibid.
4 Iain Murray, “The Directory for Public Worship”, em Premise 3/1 (1996).
5 Citado por Murray, “The Directory for Public Worship”.
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direito de conceber formas de adoração a Deus, grandes absurdos podem acontecer,


como, por exemplo: prostituição cultual, luxúria, sacrifícios humanos, autoflagelação,
idolatria, culto a demônios, etc.
A história da igreja católica, em particular, ilustra o perigo da imaginação litúr-
gica humana. Um número enorme de crenças e inovações litúrgicas foi incorporado ao
culto católico-romano no decurso dos séculos. A Reforma protestante ocorreu em uma
igreja repleta de adições espúrias ao culto, como missas pelos mortos, a própria missa
(um sacrifício não cruento), confessionários, sete sacramentos, celibato, indulgências,
penitências, rezas de terços, sinal da cruz, uso do latim na missa, imagens, rosários,
crucifixos, representações, relíquias, peregrinações, procissões, vestes sacras, músicas
sacras, livros de oração, dias santos, etc.

Diversidade litúrgica nos cultos evangélicos contemporâneos


Um número considerável de inovações litúrgicas também tem sido introduzido no
culto evangélico contemporâneo, tais como: orações em conjunto (em voz alta), orações
em pequenos grupos durante o culto, emprego de todo tipo de instrumento, ritmo e
linguagem, corais, conjuntos, bandas, solos, duetos, quartetos, cânticos responsivos, di-
rigentes, regentes e ministros de música, palmas etc. Testemunhos pessoais, recitações
de poemas e versos por adultos e crianças, palmas para Jesus, cumprimentos às pessoas
ao lado, apelos, danças, línguas, cântico em línguas, curas, emprego de luzes coloridas,
cultos jovens, cultos musicados, representações teatrais, coreografias, gargalhadas sa-
gradas, quedas, urros, etc.
John MacArthur faz referência a uma igreja no sudoeste dos Estados Unidos que
“instalou um sistema de efeitos especiais de um milhão de dólares que pode produzir fu-
maça, fogos, faíscas e feixes de raio lazer no auditório...” Nesta igreja “o pastor terminou
um culto sendo erguido ao ‘céu’ por meio de fios invisíveis, enquanto um coral e uma
orquestra faziam o acompanhamento à fumaça, fogo e neve”.6

Contraste com o culto simples reformado e puritano


Os reformadores aboliram a parafernália litúrgica do culto católico romano, e os
puritanos fizeram o mesmo com relação ao culto anglicano. Ambos instituíram uma
forma de culto simples, colocando de lado toda a pompa, esplendor, vestes, adereços,
procissões, cerimônias, livros de oração, representações, símbolos, gestos, etc.7 O culto

6 John MacArthur, “Verdade vs. técnica”, Os Puritanos, 4/5 (1996), p. 12-16.


7 Packer observa que os puritanos “insistiam que a adoração deve ser simples e bíblica. Para eles, a simplicidade fazia parte essen-
cial da beleza da adoração cristã”. J. I. Packer, Entre os gigantes de Deus: uma visão puritana da vida cristã (São José dos Campos,
SP: Fiel, 1991), p. 270. Com relação à simplicidade do culto reformado-puritano, ver também Leland Ryken, Santos no mundo: os
puritanos como realmente eram (São José dos Campos, SP: Fiel, 1992), p. 121-45.
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reformado-puritano consistia simplesmente de leitura bíblica, pregação, oração, cântico


de louvores a Deus, ministração dos sacramentos do batismo e da ceia do Senhor e a
bênção apostólica. A primazia, no entanto, cabia à pregação. O púlpito foi colocado no
centro do templo e da liturgia reformada.
O que explica a surpreendente uniformidade e simplicidade do culto reformado-
puritano? O que os levou a rejeitar as invenções litúrgicas romana e anglicana? O que
norteou a profunda reforma litúrgica que empreenderam? O princípio regulador do culto
reformado.

O princípio regulador do culto reformado

A terminologia geralmente empregada na designação desse princípio de culto


(princípio regulador puritano) não expressa adequadamente o seu escopo. Não porque os
puritanos não defendessem o princípio que estamos considerando, mas porque ele não
indica o assunto, e porque a defesa e a aplicação desse princípio não estavam restritas ao
movimento puritano do século XVII.
Do ponto de vista do assunto, é melhor denominar o princípio em questão de
princípio regulador do culto. O princípio que estaremos considerando é a norma funda-
mental que norteou a reforma litúrgica que resultou na simplicidade do culto público
reformado-puritano.
Do ponto de vista daqueles que formularam e defenderam o princípio de culto em
questão, é melhor denominá-lo princípio regulador reformado. Afinal, esse foi o princípio
que norteou não apenas os puritanos na luta que travaram contra imposições litúrgicas,
por parte da igreja anglicana. Foi também o princípio que norteou os reformadores na
profunda reforma litúrgica que empreenderam contra a idolatria, a superstição e as tra-
dições litúrgicas da igreja de Roma.8
No que consiste, afinal, o princípio regulador do culto reformado? Ele é, simples-
mente, o princípio que sustenta que o culto público deve ser bíblico. Em oposição ao
princípio romano e anglicano (denominado princípio normativo), segundo o qual “o que
não for diretamente proibido nas Escrituras é permitido no culto”, os reformadores e
puritanos sustentavam que o que não for diretamente ensinado nas Escrituras ou necessaria-
mente inferido do seu ensino não deve ser incorporado ao culto. Expressando positivamente,
o princípio regulador reformado sustenta que só é permitido no culto aquilo que tiver
real fundamentação bíblica.

8 Uma extensa bibliografia relacionada à questão das cerimônias católicas e anglicanas pode ser encontrada em Christopher Col-
dwell, “Bibliographical Index for Dispute Against the English Popish Ceremonies”, em Premise 2/5 (1995), p. 6.
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Evidências históricas

As evidências históricas do caráter reformado do princípio regulador do culto são


abundantes. Mencionarei, entretanto, apenas alguns reformadores e símbolos de fé re-
formados mais representativos.
A posição de Calvino com relação ao culto encontra-se registrada em muitos dos
seus escritos. No tratado The Necessity of Reforming the Church (A necessidade de refor-
mar a igreja), por exemplo, escrito em 1543, ele adverte:

A regra que distingue entre o culto puro e o culto corrompido é


de aplicação universal, a fim de que não adotemos nenhum artifí-
cio que nos pareça apropriado, mas atentemos para as instruções do
único que está autorizado a legislar quanto ao assunto. Portanto, se
quisermos que Ele (Deus) aprove o nosso culto, esta regra, que Ele
impõe nas Escrituras com o máximo rigor, deve ser cuidadosamente
observada. Pois há duas razões pelas quais o Senhor, ao condenar e
proibir todo culto fictício, requer que obedeçamos apenas a sua voz:
Primeiro, porque não seguir o nosso próprio prazer, mas depender
inteiramente da sua soberania, promove grandemente a sua autori-
dade. Segundo, porque a nossa corrupção é de tal ordem que, quando
somos deixados em liberdade, tudo o que estamos habilitados a fazer
é nos extraviar. E, então, uma vez desviados do reto caminho, a nossa
viagem não termina, enquanto não nos soterremos em uma infinida-
de de superstições...

John Knox, o grande reformador escocês, lutou tenazmente para reformar o culto
de todas as superstições católicas. O Primeiro Livro de Disciplina da Igreja da Escócia,
escrito por John Knox e outros reformadores escoceses, em 1560, condena como “dou-
trinas contrárias”:
Qualquer coisa que homens, por leis, concílios ou constituições
têm imposto sobre as consciências dos homens, sem mandamento
expresso da palavra de Deus: tais como votos de castidade... im-
posição a homens e mulheres do uso de diversas vestes especiais,
observância supersticiosa de dias de jejuns, abstinência de alimentos
por motivo de consciência, oração pelos mortos, e a guarda de dias
santos instituídos por homens, tais como todos aqueles que os papis-
tas têm inventado, como as festas aos Apóstolos, Mártires, Virgens,
Natal, Circuncisão, Epifania, Purificação e outras festas... Coisas es-
tas que, não tendo nem mandamento nem garantia nas Escrituras de
Deus, julgamos devam ser completamente abolidas do nosso Reino.9

9 Em William Dickinnson (ed.), John Knox’s History of the Reformation in Scotland. vol. 2 (New York: Philosophical Library, 1950), p. 281.
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Esses exemplos são apenas ilustrativos da posição reformada calvinista quanto ao


assunto. Em muitos outros escritos, Calvino, John Knox e demais reformadores, tais
como Bucer e Bullinger, e mesmo os principais símbolos de fé reformados demonstram
o caráter reformado do princípio de culto que estamos considerando. A Confissão Belga,
por exemplo, ao professar a suficiência das Escrituras, declara:

Cremos que a Escritura Sagrada contém de modo completo a von-


tade de Deus, e que tudo o que o homem está obrigado a crer para ser
salvo é nela suficientemente ensinado. Portanto, já que toda forma
de culto que Deus requer de nós se encontra nela amplamente descri-
ta, não é permitido ao homem... ensinar nenhuma outra maneira [de
culto] que não aquela que agora é ensinada na Escritura Sagrada.10

No século XVII, dezenas de teólogos e pastores puritanos escoceses e ingleses


dos mais expressivos — tais como Thomas Cartwright (1535-1603), ministro não con-
formista inglês;11 William Ames (1576-1633), professor de teologia não conformista
exilado para a Holanda;12 David Calderwood (1575-1650?), ministro e teólogo da Igreja
da Escócia,13 e outros14 — escreveram tratados e outros tipos de escritos defendendo e
aplicando o princípio regulador do culto, condenando a imposição de cerimônias, festi-
vidades religiosas, gestos e símbolos não fundamentados nas Escrituras. As seguintes
citações são representativas da posição puritana quanto ao assunto:
George Gillespie (1613-1649), um dos ministros representante da Escócia na
Assembléia de Westminster,15 escreveu em 1637 um tratado contra a imposição de ceri-
mônias religiosas. Em um trecho da sua obra, ele afirma:

A igreja é proibida de acrescentar qualquer coisa aos mandamen-


tos que Deus nos deu, concernentes ao seu culto e serviço, Dt 4.3;
12.32; Pv 30.6. Por conseguinte, ela não pode prescrever qualquer
10 Guido De Brès, Creemos y Confesamos: Confisión de los Países Bajos (Rijswijk, Países Baixos: Asociación Cultural de Estudios de la
Literatura Reformada, 1976), § 7.
11 Ver A Confutation of the Rhemists Translation, 1618 (Amsterdam: Theatrum Orbis Terrarum; New York: Da Capo Press, 1971).
Observação: A Tradução de Rhems das Escrituras, contendo uma série de notas marginais, foi publicada (o Novo Testamento) em
1582 pelos jesuítas ingleses, com o propósito de subverter a Reforma na Inglaterra. O livro de Cartwright refuta essas notas, e,
em diversos lugares, expõe também o caráter não bíblico das cerimônias do culto anglicano. Por essa razão, a obra só foi publi-
cada após a sua morte. Ver Alan C. Clifford, “Thomas Cartwright”, em The Banner of Truth 302 (November 1988), p.12-15.
12 Ver The Marrow of Theology, 1623 (Durham, NC: Labyrinth Press, 1983, c1968); e A Fresh Suit Against Human Ceremonnies in
God’s Worship (Rotterdam: n.ed., 1633).
13 Em The Pastor and the Prelate, 1628 (Edmonton, Canada: Still Waters Revival, bound photocopies); e Against Festival Days, 1618
(Dallas: Naphtali Press, 1996).
14 Algumas citações de outros puritanos (tais como William Perkins e William Bradshaw) e de confissões de fé reformadas, em
defesa do princípio regulador puritano podem se encontradas em William Young, The Puritan Principle of Worship (Viena, VA:
The Publications Committee Presbyterian Reformed Church, n.d.), p. 30-36.
15 Quanto à participação de Gillespie e dos demais representantes escoceses na Assembléia de Westminster, ver Iain H. Murray,
“The Scots at the Westminster Assembly: With Special Reference to the Dispute on Church Government and its Aftermath”, em
The Banner of Truth, 371-372 (August-September, 1994), p. 6-40.
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coisa relacionada à prática do culto divino, que não se trate de mera


circunstância: incluídas entre aquele tipo de coisas que não são tra-
tadas nas Escrituras... a igreja cristã não tem maior liberdade para
acrescentar ao mandamento de Deus do que tiveram os judeus; pois
o segundo mandamento é moral e perpétuo, e nos proibiu, bem como
a eles, as adições e invenções humanas no culto a Deus.16

John Owen (1616-1683), um dos puritanos mais capazes, respeitados e conhe-


cidos, também escreveu um tratado contra a imposição de liturgias.17 Nesse livro, ele
sustenta o que segue:

A invenção arbitrária de qualquer coisa imposta como necessária


e indispensável no culto público a Deus, como parte deste culto, e o
uso de qualquer coisa assim inventada e ordenada no culto é ilegal e
contrária à regra da palavra...18 Portanto, todo o dever da Igreja, com
relação ao culto a Deus, parece consistir na precisa observação daqui-
lo que é prescrito e ordenado por Ele.19

Jeremiah Burroughs (1599-1646), puritano independente e membro da Assem-


bléia de Westminster, escreveu, em 1648, um tratado com cerca de 400 páginas sobre o
culto evangélico. Burroughs começa essa obra argumentando, com base no relato bíblico
sobre o fogo estranho oferecido por Nadab e Abiú, “que, no culto a Deus, não pode haver
nada apresentado a Deus que Ele não tenha ordenado; o que quer pratiquemos no culto
a Deus deve ter fundamentação proveniente da Palavra de Deus”. 20
Refletindo o pensamento litúrgico reformado-puritano, a Confissão de Fé de West-
minster, símbolo de fé presbiteriano, sustenta o princípio regulador do culto, logo no
início do capítulo XXI, declarando que:

O modo aceitável de adorar o verdadeiro Deus é instituído por Ele


mesmo, e é tão limitado pela sua própria vontade revelada que ele não
pode ser adorado segundo as imaginações e invenções dos homens,
ou sugestões de Satanás, nem sob qualquer representação visível, ou
de qualquer outro modo não prescrito nas Santas Escrituras.21

16 George Gillespie, Dispute Against the English Popish Ceremonies Obtruded on the Church of Scotland (Edinburgh: Robert Ogle and
Oliver & Boyd, 1844), p.133.
17 John Owen, “A Discourse Concerning Liturgies and Their Impositions”, em The Works of John Owen. vol. 15 (Edinburgh: Banner
of Truth Trust, 1965).
18 Ibid., p. 33-34.
19 Ibid., p. 42.
20 Jeremiah Burroughs, Gospel Worship (Pittsburgh, Pennsylvania: Soli Deo Gloria, 1990), p. 3, 8.
21 Capítulo XXI.1.
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A Confissão de Fé Batista de 1689, de modo muito semelhante, professa:

Mas a maneira aceitável de se cultuar o Deus verdadeiro é aquela


instituída por Ele mesmo e que está bem delimitada por sua própria
vontade revelada, para que Deus não seja adorado de acordo com as
imaginações e invenções humanas, nem com as sugestões de Sata-
nás, nem por meio de qualquer representação visível ou qualquer
outro modo não descrito nas Sagradas Escrituras.22

Bases e concepção do princípio regulador

Princípio calvinista
O princípio regulador do culto reformado está em harmonia com as doutrinas re-
formadas da autoridade e da suficiência das Escrituras. Na realidade, esse princípio não
é nada mais do que a aplicação dessas doutrinas bibliológicas ao culto. A fé reformada
sustenta que as Escrituras são plenamente suficientes em matéria de fé e prática. Isso
significa que tudo o que o homem precisa conhecer, crer e fazer para ser salvo e viver de
modo agradável a Deus é revelado na sua Palavra: “Toda Escritura é inspirada por Deus
e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim
de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra”
(2Tm 3.16-17).
Trata-se também de um princípio coerente com a concepção calvinista a respeito
da natureza pervertida do homem, inclinada para o erro e para o pecado, e acerca de um
Deus soberano que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade para o louvor
da sua glória. Por causa da natureza pecaminosa do homem, sempre inclinada para o
erro e para o pecado, não lhe compete inventar e instituir como prática de culto nada que
não seja ensinado nas Escrituras. Essa é uma prerrogativa divina, e a atitude e o modo
pelos quais Deus quer ser adorado são suficientemente prescritos por Ele mesmo nas
Escrituras. O culto, portanto, na concepção reformada, não tem como propósito agradar
aos adoradores, e sim a Deus.
Charles Spurgeon, o conhecido pregador batista calvinista do século XIX, alertou
seus leitores contra o perigo incipiente, na época, de buscar agradar os ouvintes no culto
público, desviando-o do seu propósito. Em um pequeno artigo, intitulado Feeding Sheep
or Amusing Goats (Alimentando Ovelhas ou Entretendo Bodes),23 Spurgeon adverte:

O diabo tem raramente feito alguma coisa mais sagaz do que


sugerir à Igreja que parte da sua missão consiste em proporcionar

22 Fé para Hoje: Confissão de Fé Batista de 1689 (São José dos Campos, SP: Fiel, 1991), 22.1.
23 Em The Banner of Truth, 302 (November, 1988), p.5-6. Também em Reformation & Revival 2/1 (1993), p. 109-110.
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entretenimento ao povo, com vistas a ganhá-lo... Em nenhum lugar


nas Escrituras é dito que prover divertimento para as pessoas é fun-
ção da Igreja. Se isso fosse função da Igreja, por que Cristo não falou
sobre isso?... ‘Ele concedeu uns para apóstolos, outros para profetas,
outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres’ para a
obra do ministério. Onde se incluem os que entretêm pessoas?... Se
Cristo houvesse introduzido mais elementos festivos e agradáveis à
sua missão, Ele teria sido mais popular, quando as pessoas se afasta-
vam dEle por causa da natureza perscrutadora e penetrante do seu
ensino. Mas eu não o ouço dizendo: ‘Corre atrás destas pessoas, Pe-
dro, e diz a elas que teremos um estilo de culto diferente amanhã,
algo mais breve e atrativo, com pouca pregação...’ Jesus se compa-
decia dos pecadores, preocupava-se e chorava por eles, mas nunca
procurou diverti-los.

Princípio bíblico
Embora em perfeita harmonia com as doutrinas reformadas fundamentais a res-
peito das Escrituras, do homem e dos atributos de Deus, a tradição reformada sustenta
o princípio regulador do culto por uma razão maior: porque entende que o próprio Deus
revela esse princípio na sua Palavra. Para os reformados, as próprias Escrituras, tanto
no Antigo como no Novo Testamento, condenam invenções humanas relacionadas ao
culto, proíbem adições ou diminuições ao culto divinamente prescrito, e consideram vãs
quaisquer formas de adoração provenientes de mera tradição humana.
Uma das passagens bíblicas frequentemente citadas pelos reformados em defe-
sa do princípio regulador do culto é Deuteronômio 4.1-2: “agora pois, ó Israel, ouve os
estatutos e os juízos que eu vos ensino, para os cumprirdes, para que vivais, e entreis
e possuais a terra que o Senhor, Deus de vossos pais, vos deu. Nada acrescentareis à
palavra que vos mando, nem diminuireis dela, para que guardeis os mandamentos do
Senhor vosso Deus, que eu vos mando”. Não se trata de uma referência especificamente
relacionada ao culto, mas, evidentemente, ela também inclui o culto público. A passa-
gem bíblica clássica na defesa reformada do princípio regulador se encontra um pouco
adiante, em Deuteronômio 12.32, “tudo o que eu te ordeno, observarás; nada lhe acres-
centarás nem diminuirás”. Esse texto diz respeito exatamente ao culto. É a conclusão de
um capítulo que trata especificamente do culto público, e proíbe claramente quaisquer
invenções humanas na adoração a Deus.
Entre as passagens do Novo Testamento mais citadas em defesa do princípio re-
gulador estão Marcos 7.6-13 e Colossenses 2.16-23. Na primeira passagem, Jesus
considera vã (μάτην, despropositada, inútil) a adoração fundamentada no ensino e nas
tradições humanas:
384 A glória da graça de Deus: Ensaios em honra a J. Richard Denham Jr.

Bem profetizou Isaías, a respeito de vós, hipócritas, como está


escrito: Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está
longe de mim. E em vão me adoram, ensinando doutrinas que são pre-
ceitos de homens. Negligenciando o mandamento de Deus, guardais
a tradição dos homens. E disse-lhes ainda: Jeitosamente rejeitais o
preceito de Deus para guardardes a vossa própria tradição (Mc 7.6-9).

Na segunda passagem, o apóstolo Paulo, após alertar a igreja de Colossos a não


se deixar julgar pela não observância de práticas litúrgicas típicas da antiga dispensa-
ção, sombras (σκιὰ) do culto neotestamentário, condena, entre outras coisas, o culto de
si mesmo (ἐν ἐθελοθρησκίᾳ), isto é, o culto proveniente da vontade, as formas de culto
inventadas pelo homem, para agradar a sua própria vontade,24 como segue:

Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de


festa, ou lua nova, ou sábados, porque tudo isso tem sido sombra das
coisas que haviam de vir... Se morrestes com Cristo para os rudimen-
tos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitais a
ordenanças: Não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aqui-
lo outro, segundo os preceitos e doutrinas dos homens? Pois todas
estas cousas, com o uso, se destroem. Tais coisas, com efeito, têm
aparência de sabedoria, como culto de si mesmo (ἐθελοθρησκίᾳ), e fal-
sa humildade, e rigor ascético; todavia, não têm valor algum contra a
sensualidade (Cl 2.16-17, 20-23).

Outras passagens bíblicas importantes do Antigo e do Novo Testamento ge-


ralmente mencionadas com relação ao princípio regulador do culto reformado serão
consideradas adiante.

O culto da vontade
Os reformadores reconheciam que as adições humanas ao culto têm aparência de
sabedoria e tendem a ser mais agradáveis à natureza humana pervertida do que o culto
divinamente prescrito nas Escrituras. Calvino escreveu:

Eu não ignoro o quão difícil é persuadir o mundo de que Deus re-


jeita e mesmo abomina toda invenção da razão humana relacionada
ao culto. A ilusão, com relação a esta questão tem diversas causas:
‘Cada um acha que está certo’, como expressa o antigo provérbio.

24 O termo ἐθελοθρησκεία é composto do verbo θέλω (quero, desejo, gosto, tenho prazer) e do substantivo θρησκεία (culto). Designa,
portanto, segundo Joseph Herny Thayer, A Greek-English Lexicon of the New Testament (Grand Rapids: Zondervan, 1979), um “culto
arbitrário”, um “culto que alguém imagina e prescreve para si mesmo.” Segundo William F. Arndt and F. Wilbur Gingrich, A Greek-English
Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature (Chicago and London: The University of Chicago Press, 1979), um culto
ou “religião autofabricada”.
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Assim, os filhos da nossa própria mente nos deleitam; e além disso,


como Paulo admite, o culto fictício frequentemente apresenta algu-
ma aparência de sabedoria [Cl 2.23]. Como na maioria dos casos, o
culto fictício tem um esplendor externo que agrada aos olhos, ele é
mais agradável à nossa natureza carnal, do que apenas aquilo que
Deus requer e aprova, e que tem menos ostentação...25

Contudo, eles consideravam qualquer invenção humana no culto como will-worship


(culto da vontade), “o culto de si mesmo”, condenado em Colossenses 2.23. Calvino ar-
gumenta como segue:

Eu sei o quão difícil é persuadir o mundo de que Deus desapro-


va todas as práticas de culto não sancionadas expressamente na sua
Palavra. A opinião contrária, à qual se apegam, e que está arraigada
até aos ossos e medula, é que, qualquer prática para a qual encon-
trem alguma razão em si mesma é legítima, desde que exiba algum
tipo de aparência de zelo pela honra de Deus. Entretanto, visto que
Deus não apenas considera frívola, mas também claramente abomi-
na o que quer que pratiquemos por zelo ao seu culto, se não estiver
de acordo com o seu mandamento, o que pode nos aproveitar tomar
atitude oposta? As palavras de Deus são claras e distintas: ‘obedecer
é melhor do que sacrificar’. ‘Em vão me adoram, ensinando doutrinas
e mandamentos de homens’ (1Sm 15.22; Mt 15.9). Toda adição à sua
palavra, especialmente neste assunto, é uma mentira. Mero ‘culto da
vontade’ (ἐθελοθρησκεία) é vaidade [Cl 2.23].26

Como exemplos bíblicos da reação divina ao culto da vontade (will-worship), os re-


formadores frequentemente mencionam o culto de Caim, o fogo estranho de Nadab e
Abiú, o culto de Saul em Gilgal27 e o transporte da arca da aliança para Jerusalém. Por
que Deus não se agradou da oferta não cruenta de Caim, e agradou-se da oferta cruen-
ta de Abel (Gn 4.1-6; cf. Hb 11.4)? Por que Nadab e Abiú foram mortos por colocarem
fogo estranho no oferecimento de incenso (Lv 4.17-20)? Por que o sacrifício de Saul foi
condenado por Deus? Por que deu tudo errado quando Davi tentou levar a arca para Je-
rusalém num carro e não pelas argolas (1Cr 13)? Por que Uzá foi morto ao segurar a arca
da aliança quando os bois tropeçaram em Quidom? Resposta reformada: porque todos
contrariaram a lei do culto, o princípio bíblico regulador do culto, que reserva a Deus o
direito de prescrever a maneira pela qual Ele deseja ser adorado.
25 Calvino, The Necessity of Reforming the Church.
26 Ibid.
27 “Tem porventura o Senhor tanto prazer em holocaustos e sacrifícios quanto em que se obedeça à sua palavra? Eis que o obedecer
é melhor do que o sacrificar, e o atender melhor do que a gordura de carneiros. Porque a rebelião é como o pecado da feitiçaria,
e a obstinação é como a idolatria e culto a ídolos do lar” (1Sm 15.22-23).
386 A glória da graça de Deus: Ensaios em honra a J. Richard Denham Jr.

Em resposta à alegação de boa intenção, os reformadores retrucavam como John


Knox:28

Desobediência à voz de Deus não ocorre apenas quando o homem


age impiamente, contrariando os preceitos de Deus, mas também
quando por zelo genuíno ou boa intenção (como normalmente fala-
mos), o homem faz qualquer coisa a título de honra ou serviço a Deus
não ordenado expressamente pela Palavra de Deus...29

Nem a preeminência da pessoa que concebe ou estabelece qual-


quer prática religiosa, sem mandamento expresso de Deus, nem a
intenção que o induziu a tais práticas são aceitáveis diante de Deus.
Porque Ele (Deus) não admitirá nada em sua religião, sem que se fun-
damente na sua própria palavra; mas tudo o que lhe for acrescentado
Ele abomina, e pune os inventores e praticantes destas coisas, como
aconteceu com Nadab e Abiú (Lv 10.1-3).30

Idolatria e superstição
A desobediência ao princípio regulador do culto era considerada pelos reforma-
dores como idolatria e superstição. Eles não entendiam idolatria no sentido restrito de
adoração a outros deuses (proibida no primeiro mandamento), mas também na adora-
ção ao Deus verdadeiro da forma errada (proibida no segundo mandamento).
Melanchton,31 por exemplo, considerava inadmissíveis as tradições católicas adicio-
nadas ao culto. Segundo ele, os que assim procedem demonstram preferir a sua própria
sabedoria à de Deus. E, pior ainda, no seu entendimento: “isto tem sido, e é a fonte de
culto a ídolos”. Daí o seu alerta: “nós, na igreja, deveríamos considerar estas coisas, a fim
de que, tendo sido advertidos, possamos nos submeter à Palavra de Deus, e não estar
dispostos a sermos regidos pelas nossas próprias opiniões...”
Em 1550, John Knox escreveu um pequeno tratado condenando a missa católica
como idolatria. Seu principal argumento, em forma de silogismo, tem o princípio regula-
dor do culto como premissa: “A missa é idolatria. Todo culto, honra ou serviço inventado
pelo cérebro humano no que diz respeito à religião de Deus, que não se fundamente em
seu próprio expresso mandamento, é idolatria. A missa é invenção do cérebro humano,
que não se fundamenta em nenhum mandamento de Deus; portanto é idolatria”.32

28 No tratado True & False Worship: A Vindication of the Doctrine that the Sacrifice of the Mass is Idolatry (Dallas: Presbyterian Herita-
ge Publications, 1994).
29 Ibid., p. 26.
30 Ibid., p. 27.
31 Citado por John Flavel, Antipharmacum Saluberrimum; A Serious and Seasonable Caveat to all the Saints in this Hour of Temptation,
vol. 4, em The Works of John Flavel (London, Banner of Truth Trust, 1968), p.526.
32 John Knox, True & False Worship: A Vindication of the Doctrine that the Sacrifice of the Mass is Idolatry, p. 23.
O p ri n c í p i o reg u l ad o r n o C u l t o 387

John Flavel (1630?-1691), um dos mais conhecidos reformadores ingleses, em um


dos seus escritos, definiu idolatria como:

Um culto religioso prestado a outro que não o verdadeiro Deus,


ou [prestado] ao verdadeiro Deus, mas de maneira que Ele não pres-
creveu em sua palavra. Disso vemos com clareza que um culto pode
ser idólatra de duas maneiras: (1) com relação ao objeto... ou, (2) Com
relação à maneira, quando cultuamos o verdadeiro Deus, mas de um
modo e maneira que Ele não prescreveu em sua palavra, mas houver
sido inventado ou concebido por nós mesmos; e isto é condenado
como idolatria no segundo mandamento; Não farás para ti, isto é,
da tua própria mente ou da tua própria cabeça, nenhuma imagem de
escultura; linguagem que proíbe todas as invenções humanas, corrup-
ções do culto puro e simples a Deus, como idólatras...33

O mesmo sustentam alguns dos principais símbolos de fé reformados. O Catecis-


mo de Heidelberg, por exemplo, oferece a seguinte resposta à pergunta de número 96:
“O que é que Deus requer no segundo mandamento?” “Que não o representemos ou
adoremos de nenhuma outra maneira que Ele não tenha ordenado em sua Palavra.”34
O Catecismo Maior, em resposta à pergunta 109: “Quais são os pecados proibidos no
segundo mandamento?”, declara:

Os pecados proibidos no segundo mandamento são: o esta-


belecer, aconselhar, mandar, usar e aprovar de qualquer maneira
qualquer culto religioso não instituído por Deus mesmo; o fazer
qualquer representação de Deus...; todas as invenções supersticiosas,
corrompendo o culto de Deus, acrescentando ou tirando desse culto,
quer sejam inventadas e adotadas por nós, quer recebidas por tra-
dição de outros, embora sob título de antiguidade, de costume, de
devoção, de boa intenção, ou de qualquer outro pretexto; a simonia,35
o sacrilégio, toda negligência, desprezo, impedimento e oposição ao
culto e ordenanças que Deus instituiu.

Acréscimos litúrgicos envolvendo cerimônias, ritos, gestos, etc. eram considera-


dos superstições pelos reformadores. Todas as práticas litúrgicas inventadas pelo homem
eram vistas por eles da mesma forma como vemos as práticas supersticiosas dos amule-
tos (pés de coelho, ferraduras e trevos), a distinção de dias especiais (sexta-feira 13), e

33 Flavel, “Antipharmacum Saluberrimum”, p. 522.


34 “O Catecismo de Heidelberg,” em O Livro de Confissões (São Paulo: Missão Presbiteriana do Brasil Central, 1969), 4.096.
35 O comércio dos dons de Deus. Atitude de Simão, o mágico, que tencionou comprar de Pedro o dom de conferir o Espírito Santo
(At 8.18-20).
388 A glória da graça de Deus: Ensaios em honra a J. Richard Denham Jr.

evitar passar por baixo de escadas, perto de gatos pretos, etc.


Algumas das citações mencionadas já fizeram referências a essas práticas litúrgicas
como supersticiosas. Por essa razão, menciono apenas mais uma. Comentando Jeremias
7.31, “o que nunca ordenei, nem me passou pela mente”, Calvino argumenta:

Deus, aqui, elimina qualquer oportunidade de evasivas humanas,


visto que Ele condena, pela sua própria frase, ‘o que nunca ordenei’, o
que quer que os judeus imaginassem. Não, há, portanto, nenhum ou-
tro argumento necessário para condenar superstições do que o fato
de não terem sido ordenadas por Deus: porque, quando os homens
se permitem cultuar a Deus de acordo com suas próprias fantasias
e não observam os seus mandamentos, pervertem a verdadeira re-
ligião. E se este princípio fosse adotado pelos papistas, todos esses
modos fictícios de culto, nos quais eles absurdamente se exercitam,
cairiam por terra.36

Princípio libertador
Na concepção reformado-puritana, o princípio regulador puritano não tolhe, limita
ou restringe a liberdade cristã. Pelo contrário, ele a preserva da imposição do cerimonia-
lismo do qual Cristo nos libertou e de imposições litúrgicas indevidas à nossa liberdade
de consciência.

Com relação às cerimônias [escreveu Calvino], as quais preten-


dem ser um sério atestado de culto a Deus, não passam de zombaria
a Deus. Um novo judaísmo, em substituição àquele que Deus clara-
mente ab-rogou, foi novamente instituído através de numerosas e
pueris extravagâncias, coletadas de diversos lugares, às quais foram
misturados ritos ímpios, parcialmente emprestados dos pagãos, e
mais adaptados a alguns shows teatrais do que à dignidade da nossa
religião.37

No capítulo que trata de questões de ordem e disciplina eclesiásticas, a Confissão


Belga rejeita “todas as invenções humanas, e todas as leis que os homens queiram in-
troduzir no culto a Deus, pelas quais obriguem e constranjam a consciência humana de
qualquer forma possível”.38 No capítulo que trata da liberdade cristã e da liberdade de
consciência, a Confissão de Fé de Westminster afirma:

Só Deus é Senhor da consciência, e a deixou livre das doutrinas

36 João Calvino, Commentary on Jeremiah, 7.31.


37 Calvino, The Necessity of Reforming the Church.
38 § 32.
O p ri n c í p i o reg u l ad o r n o C u l t o 389

e mandamentos humanos que, em qualquer coisa, sejam contrários


à sua Palavra, ou que, em matéria de fé ou de culto, estejam fora dela.
Assim, crer em tais doutrinas ou obedecer a tais mandamentos, por
motivo de consciência, é trair a verdadeira liberdade de consciência;
e, requerer para eles fé implícita e obediência cega e absoluta, é des-
truir a liberdade de consciência e a própria razão.39

Essa concepção reformada do princípio regulador como um princípio libertador se


fundamenta em passagens bíblicas do Novo Testamento, tais como Colossenses 2.16-17:
“Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa, ou lua nova,
ou sábados, porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam de vir...”; e Gálatas
4.9-11, onde o apóstolo argumenta que a insistência em observar dias e festas signifi-
cava uma escravidão voluntária a formas rudimentares e fracas (em comparação com a
nova dispensação), e poderia até indicar coisa muito séria: “Mas agora que conheceis a
Deus... como estais voltando outra vez aos rudimentos fracos e pobres, aos quais quereis
ainda escravizar-vos? Guardais dias, e meses, e tempos, e anos. Receio de vós tenha eu
trabalhado em vão para conosco”. A seriedade do assunto é demonstrada pelo apóstolo
Paulo no verso primeiro do capítulo cinco desta mesma carta, onde ele adverte: “Para a
liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois firmes e não vos submetais de
novo a jugo de escravidão. Eu, Paulo, vos digo que, se vos deixardes circuncidar, Cristo
de nada vos aproveitará”.
É com base em passagens bíblicas como as citadas acima que a fé reformada não
admite, na nova dispensação, a observância de dias, meses, tempos e anos especiais
prescritos na lei cerimonial judaica. Muito menos admite a instituição humana de novos
dias, festas e cerimônias religiosas.40 Quando, portanto, a tradição reformada enfatiza a
necessidade de base bíblica para qualquer elemento de culto, na realidade não está enfa-
tizando o caráter formal do culto da nova dispensação, e, sim, a sua natureza espiritual,
essencialmente livre das formas litúrgicas típicas do culto na antiga dispensação ou de
novas formas litúrgicas inventadas pelo homem.

Elementos e circunstâncias de culto


Uma última, mas importante consideração que precisa ser feita com relação à

39 Capítulo XX.2. Ver também Fé para Hoje: Confissão de Fé Batista de 1689 (São José dos Campos, SP: Fiel, 1991), 21.2.
40 Uma passagem interessante com relação à observância de dias e a abstinência de comidas é encontrada em Romanos 14.5-6. A
passagem pode parecer indicar que comer ou observar dias é algo completamente indiferente. Entretanto, os textos já mencio-
nados não permitem essa conclusão. O contexto indica que se trata de concessões, por amor, aos débeis na fé. Estes (certamente
judeus), ainda não haviam absorvido as características peculiares da nova dispensação (não foi fácil nem para Pedro), e ainda
julgavam relevante alguma observância de dias e abstinência de alimentos (quais especificamente, não sabemos). Deve-se ter em
mente, aqui, as circunstâncias históricas especiais (de transição) entre o judaísmo e o cristianismo. De qualquer modo, trata-se
de escrúpulos pessoais (o que não provém de fé é pecado), e não para ser imposto na igreja.
390 A glória da graça de Deus: Ensaios em honra a J. Richard Denham Jr.

tradição reformada e o culto cristão diz respeito à distinção entre elementos ou ordenan-
ças de culto e circunstâncias de culto.41
Elementos de culto são práticas específicas, prescritas diretamente ou necessaria-
mente inferidas das Escrituras e válidas para toda a nova dispensação, em qualquer
lugar ou circunstância. Alguns desses elementos são ordinários, isto é, fazem parte
regularmente do culto. A Confissão de Fé reflete a posição reformada, admitindo ape-
nas os seguintes elementos ordinários de culto: a leitura bíblica, a pregação da Palavra, a
reverente atenção a ela, a oração, o louvor, e a ministração e recepção dos sacramentos
do batismo e da ceia do Senhor. Outros elementos ocasionais (não regulares) de cul-
to são: os “juramen­tos religiosos, votos, jejuns solenes e ações de graças em ocasiões
especiais”.42
Circunstâncias de culto são todas as demais coisas, de caráter não religioso, mas ne-
cessárias à realização do culto. Estas coisas não são fixas, não fazem parte do culto em si,
não sendo, portanto, especificamente prescritas nas Escrituras. Ainda assim, elas devem
ser ordenadas à luz da revelação geral, do bom senso cristão, de conformidade com os
princípios gerais das Escrituras. A Confissão de Fé de Westminster trata do assunto nos
seguintes termos:

Há algumas circunstâncias, quanto ao culto de Deus e o governo


da Igreja, comuns às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser
ordenadas pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as
regras da Palavra, que sempre devem ser observadas.43

Como exemplo de circunstâncias de culto na dispensação do evangelho pode-se


mencionar o lugar (casa, templo, ao ar livre), horário (dias da semana, horário), duração
e ordem do culto, móveis (púlpito, bancos ou cadeiras, mesa para a comunhão), ilumina-
ção (velas, lamparinas, candeeiros ou luz elétrica), aquecimento ou ventilação, som, etc.
Estas questões todas são circunstanciais na dispensação do Evangelho; o que significa
que não se pode atribuir a elas conotação religiosa, tornando-as obrigatórias, e devem
ser decididas com a prudência cristã e à luz dos princípios gerais das Escrituras, tais
como simplicidade, ordem e decência, reverência, etc.
Há alguns cuidados gerais necessários com relação a essas questões circunstanciais:
Primeiro: não atribuir a essas coisas, que em si mesmas são indiferentes, conotação
religiosa, atrelando-as ao evangelho, confundindo-as com elementos de culto, tornando-
as obrigatórias. Não se pode sacralizar um lugar (um templo), um horário (sete ou oito

41 Ver Burroughs, Gospel Worship, p. 9.


42 Capítulo XX.3-4
43 Capítulo I.6.
O p ri n c í p i o reg u l ad o r n o C u l t o 391

horas da noite), um dia da semana (quarta-feira), um móvel (bancada de madeira), uma


roupa (o paletó ou batina), um sistema de ventilação, uma ordem de culto, etc. Tem sido
grande o perigo de superstição com relação a essas coisas.
Segundo: fazer tudo à luz da prudência cristã. Deve-se- perguntar: é este o melhor
horário, o melhor dia, o lugar mais apropriado (com relação à tranquilidade, residência e
poder aquisitivo dos membros) para a realização do culto? Os móveis são apropriados, a
roupa, a iluminação, a ventilação, etc.?
Terceiro: deixar que os princípios gerais das Escrituras regulem as nossas decisões
com relação a todas essas coisas, de modo que não venham a contrariá-la. Nós não somos
naturalmente prudentes. É à luz das Escrituras que devemos determinar o que é ou não
prudente, mesmo com relação às coisas ordinárias da vida. “Vede prudentemente como
andais, não como néscios, e, sim, como sábios, remindo o tempo, porque os dias são
maus...” (Ef 5.15-16).

Conclusão

Reconheço que o princípio regulador reformado não dirime todas as questões


relacionadas ao culto. Mesmo a tradição reformada não é unânime, por exemplo, em al-
gumas questões concernentes ao cântico de hinos ou somente de salmos no culto público
e ao uso de orações litúrgicas (previamente compostas).44
A convicção da legitimidade do princípio regulador do culto reformado também
não implica necessariamente em um rompimento imediato e abrupto com toda e qual-
quer prática que, na nossa interpretação, não tenha fundamentação bíblica. A prudência
nos recomenda que em questões tão disputadas como estas, tenhamos o cuidado de ava-
liar extensamente as nossas interpretações – e a teologia e a prática reformadas são
excelentes referenciais para essa avaliação.
Além disso, mesmo que plenamente convencidos da ilegitimidade de práticas litúr-
gicas menos relevantes ou geralmente estabelecidas, convém uma palavra de prudência
e paciência, para não virmos a comprometer questões maiores. Calvino, por exemplo,
não concordava com a comemoração litúrgica do dia santo do natal. Entretanto, pre-
feriu tolerar essa prática em Genebra, para não impedir o curso da Reforma.45 John
Knox rejeitava a imposição anglicana do ato de ajoelhar-se para receber a comunhão,
mas aconselhou sua congregação em Berwick a tolerar a prática.46 E o puritano Thomas
44 Christopher J. L. Bennett, “Worship among the Puritans: the Regulative Principle”, em Spiritual Worship (London: The West-
minster Conference, 1985), p. 17-32.
45 Ver carta endereçada a John Haller, pastor de Berna, em Letters of John Calvin. vol. 2 (New York: Burt Franklin, 1972), p. 288-289.
46 Cf. Bennett, “Worship among the Puritans”, p. 30. Ver também excelente artigo de Martin Lloyd-Jones, já traduzido para o
português, sobre as características pessoais de John Knox, que fizeram dele, na opinião do autor, o fundador do puritanismo:
“John Knox: O Fundador do Puritanismo”, em Os Puritanos: Suas Origens e Seus Sucessores (São Paulo: PES, 1993), p. 268-88.
392 A glória da graça de Deus: Ensaios em honra a J. Richard Denham Jr.

Cartwright, embora se opusesse ao uso de vestes clericais, considerou melhor usá-las do


que ser obrigado a abandonar a sua vocação.47
Contudo, se rejeitarmos o princípio regulador do culto reformado, que estabelece
as Escrituras como regra suficiente e autoritativa de culto, que outro princípio adota-
remos? Como definir o que é ou não permitido no culto? Como preservaremos o culto
das tradições, invenções e superstições humanas? A história da igreja demonstra que o
princípio normativo anglicano, segundo o qual tudo o que não for proibido ou contrário
às Escrituras é permitido no culto, é insuficiente para regular o culto genuíno. Afinal, as
Escrituras não proíbem o sinal da cruz, a queima de incenso ou a cerimônia do lava-pés!
Elas também não proíbem a abstinência de carne na semana santa e outras práticas
litúrgicas católico-anglicanas!
Desejo, portanto, concluir sugerindo que, à luz da história da revelação bíblica, ên-
fases na pompa, em ritos, símbolos, gestos, e demais práticas litúrgicas inventadas pelo
homem não constituem um avanço, mas um retrocesso litúrgico. Elas significam um
retorno a formas de culto mais rudimentares, apropriadas apenas à antiga dispensação.
A glória e a beleza do culto na nova dispensação não estão no templo, na sua decoração,
nos ritos, nos símbolos, nos gestos, nas luzes, nos corais, na pompa, nas cerimônias, nos
instrumentos musicais ou em outras coisas do gênero.48 Estão, sim, na sua simplicidade,
na sua natureza espiritual, na santidade do adorador, na conformação do culto à verdade
revelada nas Escrituras, na realidade do acesso do crente à presença de Deus pela inter-
mediação de Cristo e pela operação do Espírito.

47 Cf. Bennett, “Worship among the Puritans”, p. 30.


48 Sobre a beleza do culto na nova dispensação, ver John Owen, “The Nature and Beauty of Gospel Worship”, em The Works of John
Owen, vol. 9 (Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1966), p. 53-84.

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