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O princípio
regulador
no culto
Paulo R. B. Anglada
E
ste capítulo investiga o conceito reformado acerca do culto público, focalizando,
especialmente o modo como Deus deve ser adorado. Não se trata de um estudo
exegético, mas de um ensaio sobre teologia prática histórica. O objetivo deste
ensaio não é interpretar e sistematizar a revelação bíblica referente ao assunto, mas sim-
plesmente descrever a concepção reformada do culto público a Deus e do princípio que
deve regulá-lo. Também não se discutirá aqui a aplicação do princípio regulador do culto
às diversas práticas litúrgicas envolvidas na adoração pública reformada. Entretanto,
a descaracterização litúrgica de considerável parcela do evangelicalismo moderno, in-
clusive no Brasil, exige que a questão do culto cristão seja considerada e justifica uma
exposição da posição reformada histórica quanto ao tema.
8 Uma extensa bibliografia relacionada à questão das cerimônias católicas e anglicanas pode ser encontrada em Christopher Col-
dwell, “Bibliographical Index for Dispute Against the English Popish Ceremonies”, em Premise 2/5 (1995), p. 6.
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Evidências históricas
John Knox, o grande reformador escocês, lutou tenazmente para reformar o culto
de todas as superstições católicas. O Primeiro Livro de Disciplina da Igreja da Escócia,
escrito por John Knox e outros reformadores escoceses, em 1560, condena como “dou-
trinas contrárias”:
Qualquer coisa que homens, por leis, concílios ou constituições
têm imposto sobre as consciências dos homens, sem mandamento
expresso da palavra de Deus: tais como votos de castidade... im-
posição a homens e mulheres do uso de diversas vestes especiais,
observância supersticiosa de dias de jejuns, abstinência de alimentos
por motivo de consciência, oração pelos mortos, e a guarda de dias
santos instituídos por homens, tais como todos aqueles que os papis-
tas têm inventado, como as festas aos Apóstolos, Mártires, Virgens,
Natal, Circuncisão, Epifania, Purificação e outras festas... Coisas es-
tas que, não tendo nem mandamento nem garantia nas Escrituras de
Deus, julgamos devam ser completamente abolidas do nosso Reino.9
9 Em William Dickinnson (ed.), John Knox’s History of the Reformation in Scotland. vol. 2 (New York: Philosophical Library, 1950), p. 281.
380 A glória da graça de Deus: Ensaios em honra a J. Richard Denham Jr.
16 George Gillespie, Dispute Against the English Popish Ceremonies Obtruded on the Church of Scotland (Edinburgh: Robert Ogle and
Oliver & Boyd, 1844), p.133.
17 John Owen, “A Discourse Concerning Liturgies and Their Impositions”, em The Works of John Owen. vol. 15 (Edinburgh: Banner
of Truth Trust, 1965).
18 Ibid., p. 33-34.
19 Ibid., p. 42.
20 Jeremiah Burroughs, Gospel Worship (Pittsburgh, Pennsylvania: Soli Deo Gloria, 1990), p. 3, 8.
21 Capítulo XXI.1.
382 A glória da graça de Deus: Ensaios em honra a J. Richard Denham Jr.
Princípio calvinista
O princípio regulador do culto reformado está em harmonia com as doutrinas re-
formadas da autoridade e da suficiência das Escrituras. Na realidade, esse princípio não
é nada mais do que a aplicação dessas doutrinas bibliológicas ao culto. A fé reformada
sustenta que as Escrituras são plenamente suficientes em matéria de fé e prática. Isso
significa que tudo o que o homem precisa conhecer, crer e fazer para ser salvo e viver de
modo agradável a Deus é revelado na sua Palavra: “Toda Escritura é inspirada por Deus
e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim
de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra”
(2Tm 3.16-17).
Trata-se também de um princípio coerente com a concepção calvinista a respeito
da natureza pervertida do homem, inclinada para o erro e para o pecado, e acerca de um
Deus soberano que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade para o louvor
da sua glória. Por causa da natureza pecaminosa do homem, sempre inclinada para o
erro e para o pecado, não lhe compete inventar e instituir como prática de culto nada que
não seja ensinado nas Escrituras. Essa é uma prerrogativa divina, e a atitude e o modo
pelos quais Deus quer ser adorado são suficientemente prescritos por Ele mesmo nas
Escrituras. O culto, portanto, na concepção reformada, não tem como propósito agradar
aos adoradores, e sim a Deus.
Charles Spurgeon, o conhecido pregador batista calvinista do século XIX, alertou
seus leitores contra o perigo incipiente, na época, de buscar agradar os ouvintes no culto
público, desviando-o do seu propósito. Em um pequeno artigo, intitulado Feeding Sheep
or Amusing Goats (Alimentando Ovelhas ou Entretendo Bodes),23 Spurgeon adverte:
22 Fé para Hoje: Confissão de Fé Batista de 1689 (São José dos Campos, SP: Fiel, 1991), 22.1.
23 Em The Banner of Truth, 302 (November, 1988), p.5-6. Também em Reformation & Revival 2/1 (1993), p. 109-110.
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Princípio bíblico
Embora em perfeita harmonia com as doutrinas reformadas fundamentais a res-
peito das Escrituras, do homem e dos atributos de Deus, a tradição reformada sustenta
o princípio regulador do culto por uma razão maior: porque entende que o próprio Deus
revela esse princípio na sua Palavra. Para os reformados, as próprias Escrituras, tanto
no Antigo como no Novo Testamento, condenam invenções humanas relacionadas ao
culto, proíbem adições ou diminuições ao culto divinamente prescrito, e consideram vãs
quaisquer formas de adoração provenientes de mera tradição humana.
Uma das passagens bíblicas frequentemente citadas pelos reformados em defe-
sa do princípio regulador do culto é Deuteronômio 4.1-2: “agora pois, ó Israel, ouve os
estatutos e os juízos que eu vos ensino, para os cumprirdes, para que vivais, e entreis
e possuais a terra que o Senhor, Deus de vossos pais, vos deu. Nada acrescentareis à
palavra que vos mando, nem diminuireis dela, para que guardeis os mandamentos do
Senhor vosso Deus, que eu vos mando”. Não se trata de uma referência especificamente
relacionada ao culto, mas, evidentemente, ela também inclui o culto público. A passa-
gem bíblica clássica na defesa reformada do princípio regulador se encontra um pouco
adiante, em Deuteronômio 12.32, “tudo o que eu te ordeno, observarás; nada lhe acres-
centarás nem diminuirás”. Esse texto diz respeito exatamente ao culto. É a conclusão de
um capítulo que trata especificamente do culto público, e proíbe claramente quaisquer
invenções humanas na adoração a Deus.
Entre as passagens do Novo Testamento mais citadas em defesa do princípio re-
gulador estão Marcos 7.6-13 e Colossenses 2.16-23. Na primeira passagem, Jesus
considera vã (μάτην, despropositada, inútil) a adoração fundamentada no ensino e nas
tradições humanas:
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O culto da vontade
Os reformadores reconheciam que as adições humanas ao culto têm aparência de
sabedoria e tendem a ser mais agradáveis à natureza humana pervertida do que o culto
divinamente prescrito nas Escrituras. Calvino escreveu:
24 O termo ἐθελοθρησκεία é composto do verbo θέλω (quero, desejo, gosto, tenho prazer) e do substantivo θρησκεία (culto). Designa,
portanto, segundo Joseph Herny Thayer, A Greek-English Lexicon of the New Testament (Grand Rapids: Zondervan, 1979), um “culto
arbitrário”, um “culto que alguém imagina e prescreve para si mesmo.” Segundo William F. Arndt and F. Wilbur Gingrich, A Greek-English
Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature (Chicago and London: The University of Chicago Press, 1979), um culto
ou “religião autofabricada”.
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Idolatria e superstição
A desobediência ao princípio regulador do culto era considerada pelos reforma-
dores como idolatria e superstição. Eles não entendiam idolatria no sentido restrito de
adoração a outros deuses (proibida no primeiro mandamento), mas também na adora-
ção ao Deus verdadeiro da forma errada (proibida no segundo mandamento).
Melanchton,31 por exemplo, considerava inadmissíveis as tradições católicas adicio-
nadas ao culto. Segundo ele, os que assim procedem demonstram preferir a sua própria
sabedoria à de Deus. E, pior ainda, no seu entendimento: “isto tem sido, e é a fonte de
culto a ídolos”. Daí o seu alerta: “nós, na igreja, deveríamos considerar estas coisas, a fim
de que, tendo sido advertidos, possamos nos submeter à Palavra de Deus, e não estar
dispostos a sermos regidos pelas nossas próprias opiniões...”
Em 1550, John Knox escreveu um pequeno tratado condenando a missa católica
como idolatria. Seu principal argumento, em forma de silogismo, tem o princípio regula-
dor do culto como premissa: “A missa é idolatria. Todo culto, honra ou serviço inventado
pelo cérebro humano no que diz respeito à religião de Deus, que não se fundamente em
seu próprio expresso mandamento, é idolatria. A missa é invenção do cérebro humano,
que não se fundamenta em nenhum mandamento de Deus; portanto é idolatria”.32
28 No tratado True & False Worship: A Vindication of the Doctrine that the Sacrifice of the Mass is Idolatry (Dallas: Presbyterian Herita-
ge Publications, 1994).
29 Ibid., p. 26.
30 Ibid., p. 27.
31 Citado por John Flavel, Antipharmacum Saluberrimum; A Serious and Seasonable Caveat to all the Saints in this Hour of Temptation,
vol. 4, em The Works of John Flavel (London, Banner of Truth Trust, 1968), p.526.
32 John Knox, True & False Worship: A Vindication of the Doctrine that the Sacrifice of the Mass is Idolatry, p. 23.
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Princípio libertador
Na concepção reformado-puritana, o princípio regulador puritano não tolhe, limita
ou restringe a liberdade cristã. Pelo contrário, ele a preserva da imposição do cerimonia-
lismo do qual Cristo nos libertou e de imposições litúrgicas indevidas à nossa liberdade
de consciência.
39 Capítulo XX.2. Ver também Fé para Hoje: Confissão de Fé Batista de 1689 (São José dos Campos, SP: Fiel, 1991), 21.2.
40 Uma passagem interessante com relação à observância de dias e a abstinência de comidas é encontrada em Romanos 14.5-6. A
passagem pode parecer indicar que comer ou observar dias é algo completamente indiferente. Entretanto, os textos já mencio-
nados não permitem essa conclusão. O contexto indica que se trata de concessões, por amor, aos débeis na fé. Estes (certamente
judeus), ainda não haviam absorvido as características peculiares da nova dispensação (não foi fácil nem para Pedro), e ainda
julgavam relevante alguma observância de dias e abstinência de alimentos (quais especificamente, não sabemos). Deve-se ter em
mente, aqui, as circunstâncias históricas especiais (de transição) entre o judaísmo e o cristianismo. De qualquer modo, trata-se
de escrúpulos pessoais (o que não provém de fé é pecado), e não para ser imposto na igreja.
390 A glória da graça de Deus: Ensaios em honra a J. Richard Denham Jr.
tradição reformada e o culto cristão diz respeito à distinção entre elementos ou ordenan-
ças de culto e circunstâncias de culto.41
Elementos de culto são práticas específicas, prescritas diretamente ou necessaria-
mente inferidas das Escrituras e válidas para toda a nova dispensação, em qualquer
lugar ou circunstância. Alguns desses elementos são ordinários, isto é, fazem parte
regularmente do culto. A Confissão de Fé reflete a posição reformada, admitindo ape-
nas os seguintes elementos ordinários de culto: a leitura bíblica, a pregação da Palavra, a
reverente atenção a ela, a oração, o louvor, e a ministração e recepção dos sacramentos
do batismo e da ceia do Senhor. Outros elementos ocasionais (não regulares) de cul-
to são: os “juramentos religiosos, votos, jejuns solenes e ações de graças em ocasiões
especiais”.42
Circunstâncias de culto são todas as demais coisas, de caráter não religioso, mas ne-
cessárias à realização do culto. Estas coisas não são fixas, não fazem parte do culto em si,
não sendo, portanto, especificamente prescritas nas Escrituras. Ainda assim, elas devem
ser ordenadas à luz da revelação geral, do bom senso cristão, de conformidade com os
princípios gerais das Escrituras. A Confissão de Fé de Westminster trata do assunto nos
seguintes termos:
Conclusão