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A noite pá, a noite.

Abrir a janela e meter a cabeça de fora quando estão 2 graus


centigrados. Meu, é absolutamente perfeita pá. Embora solitária... A única coisa viva é o bafo
que se evapora da minha boca quando respiro, dissipando-se pela noite dentro e esperando
que uma criatura alada o encontre e ao chocar com ele venha a saber as palavras que existiam
dentro de mim e me abalaram na forma de um angustiante suspiro. Olhar para o campo
lavrado nas traseiras e ver a luz de veludo do luar iluminar-lhe os caminhos paralelos de terra
que desaguam num vinhedo cujas uvas são da cor do metal gelado. As casas imóveis que
recordam os sons dos que já não estão, as casas de pedra fria que me olham tão indiferentes á
minha necessidade de aconchego num lugar quente e de luz mansa e amarela torrada. O
vespertino e vadio som do vento que me assola num momento e me estremece no outro. A
rua serena e mágica, com uma promessa duma aventura mística que me levará a uma terra
distante ou mesmo a uma história local. Ao longe negras, recortadas contra o carvão do céu, as
cordilheiras sombrias e distantes que me levam a imaginar-me num outro lugar, num sitio
selvagem, inspirado e corajoso a vencer obstáculos e a admirar os meus passos soturnos e
sonhadores que me guiam numa marcha triunfante sob uma vida plena de emoção. Já lá estive
nelas várias vezes e quando lá estou não sinto nada do que imaginava sentir. Embora
entusiasmado com a caminhada pela tarde magnifica em tons de laranjais ao sol, o meu
coração vais esvaziando cada gota de esperança que algo venha do outro lado do caminho
ou... que os meus passos não sejam retornados de onde vieram.

Fecho a janela e o meu último bafo reflete-se no vidro e embacia-o. Percorro com os
olhos a mancha suave á minha frente e tal e qual uma folha ela pede-me que a marque. Por
muito que me digam que os vidros se sujam quando fazemos inscrições nos lugares
embaciados, a vontade de deixar-mos uma marca - que não raras vezes é uma interpretação
da nossa emoção mais atual - é tão importante e esclarecedora que quando não surge
espontaneamente ficamos tão vazios por fora como já estaríamos por dentro. A força
desnaturada de enganar a candura da natureza leva-me momentaneamente a hesitar. Tento
ter forças para romper essa barreira de conceitos estéticos e vaidades pessoais. Agarro-me á fé
que me diz que lá dentro é tão puro como um vidro que se embacia pelo bafo quente na noite
fria. De súbito largo o mundo e entrego-me nu á expressão mais básica que se poder conceber.
A de comunicar.

Quando termino a figura que os meus dedos desenharam no vidro, olho-a por
momentos e penso no que ela significará. Voltam a cercar-me estéticas e vaidades e depois de
livrar-me delas, fico em silencio no pensamento, deixando apenas um dos sentidos trabalhar
em mim. A visão. Olho-a e perscruto-a e não a julgo nem a construo. Ela está simplesmente ali.

Sento-me á mesa e olho para o papel... A brancura assusta-me. Respiro fundo e tento
imaginar a noite lá fora, naquele exato segundo em que eu já não estou a olhá-la. Imagino-a,
desde as ruas, aos campos lavrados, ás cordilheiras e... ao bafo quente que me sai da boca.
Quando olho para a figura no vidro, rio-me.

Caramba pá, não pode ser muito diferente.

E aí vamos nós!

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