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O dom de Sabedoria

o dom encarregado de levar a sua última per- feição a virtude da caridade é o de sabedoria. sen-
do a caridade a mais perfeita e excelente de todas as virtudes, já se compreende que o dom de sabe-
doria será, por sua vez, o mais perfeito e excelen- te de todos os dons. vamos estudá-lo com toda a
atenção que merece.398

1. natureza
o dom de sabedoria é um hábito sobrenatural, inse- parável da caridade, pelo qual julgamos
retamente de deus e das coisas divinas por suas últimas e altíssimas causas sob o instinto especial do
espírito santo, que nos faz saboreá-las por certa conaturalidade e simpatia.

398. cf. nossa Teología de la perfección cristiana (bac, madrid 5


. 368-373.

expliquemos detalhadamente a definição para nos darmos conta exata da verdadeira natureza
deste grande dom.

é um hábito sobrenatural, ou seja, infundi- do por deus na alma juntamente com a graça e as
virtudes infusas, como todos os demais dons.

inseparável da caridade.- é precisamente a virtude que vem a aperfeiçoar, dando-lhe uma


modalidade divina, da qual carece submetida ao regime da razão humana, mesmo quando ilumi-
nada pela fé. por sua conexão com a caridade, possuem o dom de sabedoria (enquanto hábito)
todas as almas em estado de graça e é incompa- tível com o pecado mortal. o mesmo ocorre com
os demais dons.

pelo qual julgamos retamente. – nisto, en- tre outras coisas, se distingue do dom de entendi-
mento. o próprio deste último – como já vimos – é uma penetrante e profunda intuição das
verdades da fé no plano da simples apreensão, sem emitir juízo sobre elas. o juízo é emitido por
outros dons intelectivos na seguinte forma: acerca das coisas criadas, o dom de ciência; e
enquanto à aplicação concreta a nossas ações, o dom de conselho.

enquanto que supõe um juízo, o dom de sa- bedoria reside no entendimento como em
seu sujeito próprio; mas como o juízo, por conaturalidade com as coisas divinas, supõe
necessaria- mente a caridade, o dom de sabedoria tem sua raiz causal na caridade, que reside
na vontade. e não se trata de uma sabedoria puramente especulativa, senão também
prática, já que ao dom de sabedoria pertence, em primeiro lugar, a contemplação do divino,
que é como a visão dos princípios; e em segundo lugar, dirigir os atos humanos segundo
razões divinas. em virtude desta suprema direção da sabedoria por razões divinas, a
amargura dos atos humanos se con- verte em doçura, e o trabalho em descanso.399

de deus. – esta diferença é própria do dom de sabedoria. os demais dons percebem, julgam ou
atuam sobre coisas distintas de deus. o dom de sabedoria, por sua vez, recai primária e principal-
mente sobre o próprio deus, do qual nos dá conhe- cimento saboroso e experimental, que enche a alma
de indizível suavidade e doçura. precisamente em virtude desta inefável experiência de Deus, a alma
julga todas as demais coisas que a ele pertencem pelas razões mais altas e supremas, ou seja, por
razões divinas; porque, como explica são Tomás, quem conhece e saboreia a causa altíssima por
excelência, que é o próprio deus, está capacitado para julgar todas as coisas por suas próprias razões
divinas.400 voltaremos sobre isso ao assinalar os efeitos que produz na alma este dom.

399. cf. II-II q.45 a.2; a.3c e ad 3.


400. cf. II-II q. 45 a.1.
e das coisas divinas. – propriamente sobre as coisas divinas recai o dom de sabedoria, mas
isto não é obstáculo para que seu juízo se esten- da também às coisas criadas, descobrindo nelas
suas últimas causas e razões que as entroncam e relacionam com deus no conjunto maravilhoso
da criação. é como uma visão desde a eternidade que abarca tudo o que é criado com uma visão
estruturadora, relacionando-o com deus em sua mais alta e profunda significação por suas razões
divinas. mesmo as coisas criadas são contempla- das pelo dom de sabedoria divinamente.

por aqui parece claro que o objeto formal ou primário do dom de sabedoria contém o objeto
formal ou primário e material da fé; porque a fé visa primariamente a deus e secundariamente
às outras verdades reveladas. mas se diferencia dela no que a fé se limita a crer, enquanto
que o dom de sabedoria experimenta e saboreia o que a fé crê.401

por suas últimas e altíssimas causas. – Isto é próprio e característico de toda verdadeira sa-
bedoria. Há várias classes de sabedoria, às quais êconvêm recordar aqui.

401. santa Teresa fala, nas Sétimas moradas, da sublime experiência trinitária da alma que chega aos
cumes da união mística com deus – efeito da atuação intensíssima do dom de sabedoria -, escreve:
“oh! valha-me deus! quão diferente coisa é ouvir estas palavras e crer nelas, ou entender por este
modo quão verdadeiras são!”(Moradas séptimas, 1,7).

Sábio, em geral, é aquele que conhece as coi- sas por suas últimas e mais altas causas. antes
de chegar a essas alturas há diversos graus de co- nhecimento, tanto na ordem natural quanto na
ordem sobrenatural. e assim:

a) o que contempla uma coisa qualquer sem conhe- cer suas causas, tem dela um conhecimento
vul- gar ou superficial (p. ex., o aldeão que contempla um eclipse sem saber a que se deve
aquilo).
b) o que a contempla conhecendo e apontando suas causas próximas, tem um conhecimento
científico (p.ex., o astrônomo ante o eclipse).
c) o que pode reduzir seus conhecimentos aos últimos princípios do ser natural, possui a
sa- bedoria filosófica, ou meramente natural, que recebe o nome de metafísica.
d) o que, guiado pelas luzes da fé, esquadrinha com sua razão natural os dados revelados
para lhes arrancar suas virtualidades intrínsecas e deduzir novas conclusões, possui a
máxima sabedoria natural que se pode alcançar nesta vida (a teologia), entroncada, já,
radicalmente, com a ordem sobrenatural.402

402. é sabido que o hábito da teologia é entitativamente natural, porque procede do discurso
natural da razão examinando os dados da fé e extraindo-lhes duas virtualidades intrínsecas, que
são as con- clusões teológicas. mas radicalmente – ou seja, em sua raiz – é ou se pode chamá-la
sobrenatural, enquanto que parte dos princípios da fé e recebe sua influência iluminadora ao
longo do discurso ou raciocí- nio teológico (cf. I q.1 a.6c e ad 3).

e) e o que, pressuposta a fé e a graça, julga por instinto divino as coisas divinas e humanas
por suas últimas e altíssimas causas – ou seja, por suas razões divinas –, possui a autêntica
sabe- doria sobrenatural, que é, precisamente, a que proporciona à alma o dom de sabedoria
em ple- na atuação. por cima deste conhecimento não há nenhum outro nesta vida. só lhe
superam a visão beatífica e a sabedoria incriada de deus, que é o verbo divino.
fica claro que o conhecimento que proporciona à alma a atuação intensa do dom de sabedoria é
incomparavelmente superior ao de todas as ciên- cias, incluindo a própria sagrada teologia, que tem
já algo de divina. por isso se dá, por vezes, o caso de uma alma simplória e ignorante, que carece
em absoluto de conhecimentos teológicos adqui- ridos pelo estudo, e que, no entanto, possui, pelo
dom de sabedoria, um conhecimento profundíssi- mo das coisas divinas que pasma e maravilha aos
mais eminentes teólogos, como ocorreu com san- ta Teresa e outras muitas almas que não tinham
“letras”, ou seja, estudo científico nenhum.
sob o instinto especial do espírito santo. – é próprio e característico dos dons do próprio di-
vino espírito, que adquire seu expoente máximo no dom de sabedoria pelas alturas de seu objeto:
o próprio deus e as coisas divinas. o homem, sob a ação dos dons, não procede pelo lento discurso

e raciocínio, senão de uma maneira rápida e in- tuitiva, por um instinto especial, que procede do
espírito santo mesmo. não lhes perguntemos aos místicos experimentais as razões que tiveram para
agir assim ou para pensar ou dizer tal ou qual coi- sa, pois não o sabem. Sentiram-no assim com uma
clarividência e segurança infinitamente superiores a todos os discursos e raciocínios humanos.
que nos faz saboreá-las por certa co-na- turalidade e simpatia. – é outra nota típica dos dons,
que alcança sua máxima perfeição no dom de sabedoria, que é em si mesmo um conheci- mento
saboroso e experimental de deus e das coisas divinas. aqui a palavra sabedoria significa, ao
mesmo tempo, saber e sabor. as almas que a experimentam compreendem muito bem o sen- tido
daquelas palavras do salmo: “provai e vede o quão suave é o senhor”(sl 33,9). experimentam
deleites divinos que as empurram ao êxtase e lhes fazem pressentir um pouco os gozos inefáveis
da eternidade bem-aventurada.

2. importância e necessidade
o dom de sabedoria é absolutamente necessá- rio para que a virtude da caridade possa se desen-
volver em toda sua plenitude e perfeição. preci- samente por ser a virtude mais excelente, a mais
perfeita e divina de todas, está reclamando e exi- gindo, por sua própria natureza, a regulação divi- na
do dom de sabedoria. abandonada a si mesma,

ou seja, manejada pelo homem no estado ascético, tem que se submeter à regulação humana, ao po-
bre modo humano que forçosamente lhe imprimi- rá o homem. pois bem, esta atmosfera humana lhe
torna um pouco menos que irrespirável; a afoga e asfixia, impedindo-lhe de voar às alturas. é uma
virtude divina que tem asas para voar até o céu, e a obriga a se mover rasteira ao solo: por razões
humanas, até certo ponto, sem se comprometer muito, com grandíssima prudência, com mesqui-
nhez raquítica, etc. unicamente quando começa a receber a influência do dom de sabedoria, que lhe
proporciona a atmosfera e modalidade divina que ela necessita por sua própria natureza de virtude
teologal perfeitíssima, começa a caridade, por as- sim dizer, a respirar livremente. e, por uma con-
sequência natural e inevitável, começa a crescer e se desenvolver rapidamente, levando consigo
a alma, como que voando, pelas regiões da vida mística até o cume da perfeição, que jamais po-
deria alcançar submetida à atmosfera e regulação humana no estado ascético.
desta sublime doutrina se deduzem como co- rolários inevitáveis duas coisas importantíssimas.
primeira: que o estado místico (ou seja, o regime habitual ou predominante dos dons do espírito
santo) não só não é algo anormal e extraordiná- rio no desenvolvimento da vida cristã, senão que é,
precisamente, a atmosfera normal que exige e reclama a graça (forma divina em si mesma) para

que possa desenvolver todas suas virtualidades divinas através de seus princípios operativos (vir-
tudes e dons) , principalmente as virtudes teolo- gais (fé, esperança e caridade), que são absoluta-
mente divinas em si mesmas. o místico deveria ser precisamente o normal em todo cristão, e o é,
de fato, em todo cristão perfeito. e segunda: que uma atuação dos dons do espírito santo ao modo
humano, ademais de impossível e absurda, seria completamente inútil para aperfeiçoar as virtudes
infusas, sobretudo as teologais; porque, sendo es- tas últimas superiores aos próprios dons por sua
própria natureza,403 a única perfeição que podem receber deles é a modalidade divina (própria e ex-
clusiva dos dons), jamais uma modalidade huma- na, que já tem as virtudes teologais abandonadas a
si mesmas no estado ascético, ou seja, submeti- das à regulação humana, que já tem as virtudes
teologais abandonadas em si mesmas no estado ascético, ou seja, submetidas à regulação humana
da pobre alma imperfeitamente iluminada pela luz obscura da fé.

403. cf. I-II q.68 a.8. as virtudes teologais têm por objeto direto e imediato ao próprio Deus
(crido, esperado ou amado), enquanto que os dons recaem diretamente sobre as virtudes infusas (ou
seja, algo muito distinto de deus), para aperfeiçoá-las. logo, é evidente que as virtudes teologais
são, por sua própria natureza, superiores aos próprios dons. mas, em contrapartida, estes são
superiores a todas as virtudes infusas – incluindo as teologais – por sua modalidade divina (enquanto
instrumentos diretos e imediatos do espírito santo, não da alma em graça, como as virtudes). mais
brevemente: as virtudes teologais são superiores aos dons por sua própria natureza teologal, mas os
dons superam a eles por sua modalidade divina.

3. efeitos
por sua própria elevação e grandeza e pelo su- blime da virtude que deve aperfeiçoar diretamen-
te, os efeitos que produz na alma a atuação do dom de sabedoria são verdadeiramente admirá-
veis. eis aqui alguns dos mais importantes:

1. dá aos santos o senso do divino, de eternidade, com que julgam todas as coisas. – é
o mais impressionante dos efeitos do dom de sabedoria que aparecem no exterior. poderia se
dizer que os santos perderam por completo o instinto do humano e que foi substituído pelo
instinto do divino, com que vêem e julgam to- das as coisas. vêem tudo das alturas, desde
o ponto de vista de deus: os pequenos episódios de sua vida diária da mesma maneira como
os grandes acontecimentos internacionais. em to- das as coisas vêem de forma claríssima a
mão de deus, que dispõe ou permite certas coisas para sacar bens maiores. nunca se
concentram nas causas segundas imediatas; passam por elas, sem se deter um só
instante, até a cau- sa primeira, que rege e governa tudo desde o alto. Teriam que fazer a
si mesmos grande vio- lência para descender aos pontos de vista com que a mesquinhez
humana julga as coisas. um insulto, uma bofetada, uma calunia que se lan- ce contra eles..., e
no ato se remontam a deus, que o quer e o permite para lhes exercitar na paciência e
aumentar sua glória. não se detêm

um só instante na causa segunda (a maldade dos homens); se remontam em seguida a deus


e julgam o feito desde aquelas alturas divinas. não chama desgraça ao que os homens costu-
mam chamar (enfermidades, perseguição, mor- te), mas unicamente ao que o é em realidade,
por sê-lo diante de deus (o pecado, a tibieza, a infidelidade à graça). não compreendem que
o mundo possa considerar como riquezas e jóias a uns quantos cristaizinhos que brilham
um pouco mais do que os demais (santa Teresa). vêem de maneira claríssima que não há
outro tesouro verdadeiro além de deus ou as coisas que nos levam a ele. “de que me vale
isto para a eternidade, para glorificar a deus?”, costuma- va se perguntar são luis gonzaga;
eis aqui o único critério diferencial dos santos para julgar o valor das coisas.
dentre outros muitos santos, este dom de sabedoria brilhou em grau eminente em são
Tomás de aquino. é admirável o instinto sobre- natural com que descobre em todas as coisas
o aspecto divino que as relaciona e une com deus. um acerto tão grande, tão rotundo, tão
universal em tudo quanto toca, não pode ser explicado suficientemente por uma sabedoria
humana, por mais elevada que se suponha que ela seja; é preciso pensar no instinto divino do
dom de sabedoria.404

404. cf. p. gardeil, o.p., Los dones del Espíritu Santo en los santos
em nossos dias é admirável o caso de santa elisabete da Trindade. segundo o p. philipon
– que estudou tão a fundo as coisas da céle- bre carmelita de dijon -, o dom de sabedoria
é o mais característico de sua doutrina místi- ca e de sua vida.405 arrebatada sua alma
por uma sublime vocação contemplativa até o seio mesmo da Trindade beatíssima, nela
estabele- ceu sua morada permanente, e desde aquelas divinas alturas contemplava e julgava
todas as coisas e acontecimentos humanos. as maiores provas, sofrimentos e contrariedades
não acer- tavam em perturbar um só momento a paz ine- fável de sua alma: tudo resvalava
sobre ela, dei- xando-a “imóvel e tranquila, como se sua alma estivesse já na eternidade”...
2. faz viver de um modo inteiramente di- vino os mistérios de nossa santa fé. – escu-

temos ao padre philipon explicando admiravel- mente estas coisas:406


“o dom de sabedoria é o dom real, o que faz entrar mais profundamente às almas na parti-
cipação do modo deiforme da ciência divina. é impossível elevar-se mais alto fora da
visão beatífica, que segue sendo sua regra superior. é a visão do “verbo espirado ao amor”
comu-

dominicos (vergara 1907) c.8.


405. cf. p. philipon, La doctrina espiritual de sor Isabel de la Trini- dad c.8 n.8.
406. p. philipon, ibid.

nicada a uma alma que julga todas as coisas por suas causas mais altas, mais divinas,
pelas razões supremas, ‘à maneira de deus’.
Introduzida pela caridade na intimidade das pessoas divinas, sob o impulso do espírito
de amor, contempla todas as coisas desde esse centro, ponto indivisível de onde se
apresen- tam a ela como ao próprio deus: os atributos divinos, a criação, a redenção, a
glória, a ordem hipostática, os mais pequenos acontecimentos do mundo. na medida em que é
possível a uma simples criatura, sua visão tende a se identifi- car com o ângulo de visão que
deus tem de si mesmo e de todo o universo. é a contemplação ao modo deiforme, à luz da
experiência da dei- dade, da qual a alma experimenta em si mesma a inefável doçura: per
quandam experientiam dulcedinis.407
para compreender isto é preciso recordar que deus não pode ver as coisas mais do que
em si mesmo: em sua causalidade. não conhece as criaturas diretamente em si mesmas, nem no
movimento da causas contingentes e temporais que regulam sua atividade. ele as contempla
em seu verbo, sob um modo eterno, apreciando todos os acontecimentos de sua providência à
luz de sua essência e de sua glória.
a alma, feita participante pelo dom de sabe- doria deste modo divino de conhecer,
penetra

407. I-II q.112 a.5.

com visão escrutinadora nas profundezas in- sondáveis da divindade, através das quais con-
templa todas as coisas coloridas pelo divino. poderia se dizer que são paulo pensava nestas
almas quando escreveu aquelas assombrosas palavras: ‘porque o espírito penetra tudo, mes-
mo as profundezas de deus’”.408
3. faz viver em sociedade com as três di- vinas pessoas, mediante uma participação
inefável de sua vida trinitária. – “enquan- to que o dom de ciência – escreve ainda o p.
philipon409- toma um movimento ascendente para elevar à alma desde as criaturas até
deus, e o de entendimento, por uma simples mirada de amor, penetra todos os mistérios
de deus por fora e por dentro, o dom de sabedoria, por assim dizer, não sai jamais do
coração mes- mo da Trindade. Tudo se apresenta a ela neste centro indivisível. a alma
assim deiforme não pode ver as coisas mais do que por suas razões mais altas e divinas.
Todo o movimento do universo, até os menores átomos, cai sob sua visão à puríssima
luz da Trindade e dos atri- butos divinos, mas ordenadamente, segundo o ritmo em que
as coisas procedem de deus. criação, redenção, ordem hipostática, tudo se lhe apresenta,
mesmo o próprio mal, ordena- do à maior gloria da Trindade. elevando-se,

408. 1cor 2,10.


409. Ibid.

enfim, em uma suprema mirada por cima da justiça, da misericórdia, da providência e de


todos os atributos divinos, descobre de pronto todas essas perfeições incriadas em sua fonte
eterna: nesta deidade, pai, filho e espírito san- to, que sobrepuja infinitamente todas nossas
concepções humanas, estreitas e mesquinhas, e deixa a deus incompreensível, inefável, inclu-
sive à vista dos bem-aventurados e mesmo à visão beatífica de cristo; este deus que é, ao
mesmo tempo, em sua simplicidade sobre-emi- nente, unidade e trindade, essência indivisível
e sociedade de três pessoas viventes, realmen- te distintas segundo uma ordem de processão
que não suprime de modo algum sua consubs- tancial unidade. o olho humano não poderia
jamais descobrir um tal mistério, nem o ouvido perceber tais harmonias, nem o coração suspei-
tar uma tal beatitude se por graça a divindade não houvesse se inclinado até nós em cristo
para nos fazer entrar nestas insondáveis pro- fundidades de deus sob a direção mesma do
espírito”.
a alma chegada a estas alturas já não sai nunca de deus. se os deveres de seu estado as-
sim o exigem, se entrega exteriormente a toda classe de trabalhos, mesmo os mais
absorven- tes, com uma atividade incrível; mas “no mais profundo centro de sua alma –
como diria são joão da cruz – sente permanentemente a divina companhia de ‘seus Três’ e
não lhes abandona

um só instante. se juntaram nela marta e maria de modo tão inefável, que a atividade prodigiosa
de marta em nada compromete o sossego e a paz de maria, que permanece dia e noite em si-
lenciosa em entranhável contemplação aos pés de seu divino mestre. sua vida aqui na terra é
já um começo da eternidade bem-aventurada”.
4. leva até o heroísmo a virtude da ca- ridade. – é precisamente a finalidade funda-
mental do dom de sabedoria. liberada de suas amarras humanas e recebendo a plenos pul-
mões o ar divino que o dom lhe proporciona, o fogo da caridade adquire rapidamente propor-
ções gigantescas. é incrível até onde chega o amor de deus nas almas trabalhadas pelo dom
de sabedoria. seu efeito mais impressionante é a morte total do próprio eu. amam a deus com
um amor puríssimo, somente por sua bondade, sem mistura de interesse ou de motivos huma-
nos. é verdade que não renunciam à esperança do céu, porém a desejam mais do que nunca;
mas é porque nele poderão amar a deus com maior intensidade ainda e sem descanso, nem
interrupção alguma. se, por um absurdo, pu- dessem amar e glorificar mais a deus no infer-
no do que no céu, prefeririam sem vacilar os tormentos eternos.410 é o triunfo definitivo
da

410. este sentimento foi experimentado pelos santos em grande nú- mero. veja-se, por exemplo,
com que simples e sublime delicadeza o expõe santa Teresinha do menino jesus: “uma noite, não
sabendo como testemunhar a jesus que lhe amava e quão vivos eram meus

graça, com a morte total do próprio egoísmo. então é quando começam a cumprir o primeiro
mandamento da lei de deus com toda a pleni- tude possível neste pobre desterro.
no aspecto que concerne ao próximo, a ca- ridade chega, paralelamente, a uma perfeição
sublime através do dom de sabedoria. acostu- mados a ver a deus em todas as coisas, mesmo
nos mais mínimos acontecimentos, o veem de uma maneira especialíssima no próximo. lhe
amam com uma ternura profunda, inteiramen- te sobrenatural e divina. servem-lhe com uma
abnegação heróica, plena, por outra parte, de naturalidade e simplicidade. veem a cristo nos
pobres, nos que sofrem, no coração de todos os irmãos..., e correm para lhe ajudar com a
alma cheia de amor. gozam privando-se das coisas mais necessárias ou úteis para oferecê-
las ao próximo, cujos interesses antepõem e preferem aos próprios, como anteporiam os do
próprio cristo, com quem lhe veem identificado. o ego- ísmo pessoal com relação ao próximo
morreu inteiramente. Às vezes, o amor de caridade que abrasa seu coração é tão grande que
eclode ao

desejos de que fosse servido e glorificado por toda parte, me sobre- veio o triste pensamento de
que nunca, jamais, desde o abismo do inferno, lhe chegaria um só ato de amor. então lhe disse
que com gosto consentiria em me ver abismada naquele lugar de tormentos e de blasfêmias para
que também ali fosse amado eternamente. não podia lhe glorificar assim, já que ele não deseja
senão nossa bem-aventu- rança: mas quando se ama, alguém se vê forçado a dizer mil loucu-
ras”(Historia de un alma c. 5 n.23; 3a ed., burgos 1950).

exterior em divinas loucuras que desconcer- tam a prudência e os cálculos humanos. são
francisco de assis se abraçou estreitamente a uma árvore – como criatura de deus –, queren- do
com isso estreitar em um abraço imenso a toda criação universal, saída das mão de deus...
5. proporciona a todas as virtudes o úl- timo rasgo de perfeição e acabamento. – é uma
consequência do efeito anterior. aperfei- çoada pelo dom de sabedoria, a caridade deixa de sentir
sua influência sobre todas as demais virtudes, da qual é verdadeira forma, embora extrínseca e
acidental, como ensina são Tomás. Todo o conjunto da vida cristã experimenta esta divina
influência. é esse não sei quê de perfeito e acabado que têm as virtudes dos santos e que em vão
buscaríamos nas almas menos adian- tadas. em virtude dessa influência do dom de sabedoria
através da caridade, todas as virtu- des cristãs se elevam de plano e adquirem uma modalidade
deiforme, que admite inumeráveis matizes (segundo o caráter pessoal e o gêne- ro de vida dos
santos), mas todos tão sublimes que não se poderia precisar qual deles é o mais delicado e
refinado. morto definitivamente o egoísmo, perfeita em toda classe de virtudes, a alma se instala
no cume da montanha da san- tidade, de onde se lê aquela inscrição sublime: “só mora neste
monte a honra e glória de deus” (são joão da cruz).

4. bem-aventuranças e frutos que dele derivam


são Tomás, seguindo santo agostinho, atribui ao dom de sabedoria a sétima bem-aventurança:
bem aventurados os pacíficos, porque serão cha- mados filhos de deus”.411 e prova que lhe convém
em seus dois aspectos: enquanto ao mérito e en- quanto ao prêmio. enquanto ao mérito (“os pací-
ficos”), porque a paz não é outra coisas senão “a tranquilidade da ordem”; e estabelecer a ordem
(para com deus, para com nós mesmos e para com o próximo) pertence precisamente à sabedoria. e
enquanto ao prêmio (“serão chamados filhos de deus”), porque precisamente somos filhos adoti-
vos de deus por nossa participação e semelhança com o filho unigênito do pai, que é a sabedoria
eterna.412
enquanto aos frutos do espírito santo, perten- cem ao dom de sabedoria, através da caridade,
principalmente estes três: a caridade, o gozo espi- ritual e a paz.413

5. vícios opostos
ao dom de sabedoria se opõe o vicio da estul- tícia ou necedade espiritual,414 que consiste
em

411. mt 5, 9.
412. cf. II-II q.45 a.6.
413. cf. I-II q. 70 a.3; II-II q. 28 a.1 e 4; q.29 a.4 ad 1.
414. cf. II-II q.46.

certo embotamento do juízo e do senso espiritual que nos impede de discernir ou julgar as coisas de
deus segundo o próprio deus pelo contato, gosto ou conaturalidade, que é o próprio do dom de sa-
bedoria. mais lamentável ainda é a fatuidade, que leva consigo a incapacidade total para julgar as
coisas divinas. logo, a estultícia se opõe ao dom de sabedoria como coisa contrária; a fatuidade,
como a pura negação.415

desta estupidez adoecemos sempre que apreciamos em algo as ninharias deste mundo
ou julgamos que vale algo qualquer coisa que não seja a possessão do sumo bem ou que a ela
conduz. portanto, se não somos santos, temos de reconhecer que somos verdadeiramente es-
túpidos, por muito que doa ao nosso amor pró- prio.416

quando esta estupidez é voluntária por ter o homem submergido nas coisas terrenas até per-
der de vista ou fazer-se inepto para contemplar as divinas, é um verdadeiro pecado, segundo aquilo
que diz são paulo: “o homem animal não com- preende as coisas do espírito de deus”.417 e como

415. cf. II-II q.46 a.1.


416. p.I.g. menéndez-Reigada, Los dones del Espíritu Santo y la per- fección cristiana p. 595.
417. 1cor 3, 14.

não há coisa que embruteça e animalize mais ao homem, até afundar-lhe por completo no lodo da
terra, do que a luxúria, dela principalmente pro- vém a estultícia ou necedade espiritual; embora
também contribua para isso a ira, que ofusca a mente pela forte comoção corporal, impedindo-
lhe de julgar com retidão.418

6. meios de fomentar este dom


aparte dos meios gerais que já conhecemos (recolhimento, vida de oração, fidelidade à graça,
invocação frequente do espírito santo, profunda humildade, etc.), podemos nos dispor para a atua-
ção do dom de sabedoria com os seguintes meios, que estão perfeitamente a nosso alcance com aju- da
da graça ordinária:

a) nos esforçarmos em ver todas as coisas des- de o ponto de vista de deus. – quantas al-
mas piedosas e até mesmo consagradas a deus veem e ajuízam todas as coisas desde o
ponto de vista puramente natural e humano, quando não totalmente mundano! sua estreiteza
de vi- são e miopia espiritual é tão grande que nunca acertam em remontar sua visão acima
das cau- sas puramente humanas para ver os desígnios de deus em tudo quanto ocorre. se
lhes inco- modam – mesmo inadvertidamente –, se irri-

418. cf. II-II q.46. a.3c e ad.3.

tam e levam tudo por mal. se um superior lhes corrige algum defeito, em seguida lhe tacham
de exigente, tirano e cruel. se lhes manda algu- ma coisa que não encaixa com seus gostos, la-
mentam sua “incompreensão”, sua “distração”, sua completa “inaptidão para mandar”. se lhes
humilha, fazem um escarcéu. ao seu lado deve proceder com a mesma cautela e precaução
com a qual se trataria de uma pessoa mundana inteiramente desprovida de espírito sobrenatu-
ral. não é de estranhar que o mundo ande tão mal quando os que deveriam dar o exemplo
andam tantas vezes assim!
não é possível que em tais almas atue ja- mais o dom de sabedoria. esse espírito tão
im- perfeito e humano tem completamente asfixia- do o hábito dos dons. até que não se
esforcem um pouco em levantar suas vistas para o céu e, prescindindo das causas segundas,
não acertem a ver a mão de deus em todos os acontecimen- tos prósperos ou adversos que
lhes sucedam, seguirão sempre rastejando pelo solo com sua pobre e penosa vida espiritual.
para aprender a voar, deve-se bater muitas vezes as asas para o alto; pelo preço que for, custe
o que custar.
b) combater a sabedoria do mundo, que é es- tultícia e necedade ante deus. – a frase é
de são paulo.419 o mundo chama de sábios aos

419. 1cor 3, 19.

néscios ante deus.420 e como o mundo está cheio desta sorte de estultícia e necedade,

por isso nos diz a própria sagrada escritura que “é infinito o número de néscios ”.421
de fato – escreve o p. lallemant422 –, a maior parte dos homens têm o gosto depravado e
se lhes pode chamar, com justa razão, de loucos, posto que fazem todas suas ações pondo
seu fim último, ao menos praticamente, na criatura e não em deus. cada um tem algum objeto
ao qual se apega e refere todas as demais coisas, não tendo quase afeição ou paixão, senão
de- pendência desse objeto; e isso é ser verdadeira- mente louco.
queremos realmente conhecer se somos do número de sábios ou néscios? examinemos
nossos gostos e desgostos, seja ante deus e as coisas divinas, seja entre as criaturas e
coisas terrenas. de onde nascem nossas satisfações e dissabores? em que coisas nosso
coração en- contra seu repouso e contentamento?
esta sorte de exame é um excelente remédio para adquirir a pureza de coração. deveríamos
nos familiarizar com ele, examinando com fre- quência durante o dia nossos gostos e
desgostos, tratando pouco a pouco de referi-los a deus.
420. 1cor 1, 25.
421. ecle 1,15.
422. p. lallemant, oc.,princ.4 c.4 a.1.

Há três classes de sabedoria reprovadas nas sagradas escrituras,423 que são outras
tantas loucuras verdadeiras: a terrena, que não gosta mais do que das riquezas; a animal,
que não apetece mais do que os prazeres do corpo e a diabólica, que põe seu fim em sua
própria ex- celência.
e há uma loucura que é verdadeira sabedo- ria ante deus: amar a pobreza, o desprezo de si
mesmo, as cruzes, as perseguições, o ser louco segundo o mundo. e, no entanto, a
sabedoria, que é um dom do espírito santo, não é outra coisa senão esta loucura, que não
gosta senão do que nosso senhor e os santos gostaram. mas jesus cristo deixou em tudo
quanto tocou em sua vida mortal – como na pobreza, na abjeção, na cruz – um suave odor,
um sabor delicioso; mas são poucas as almas que têm os sentidos suficientemente finos para
perceber este odor e para degustar este sabor, que são de todo sobre- naturais. os santos
correram para o odor destes perfumes;424 como um santo Inácio, que regozi- java de se ver
menosprezado; um são francis- co, que amava tão apaixonadamente a abjeção, que fazia
coisas para cair no ridículo; um são domingos, que se sentia melhor em carcasona, onde era
extraordinariamente escarnecido, do que em Tolosa, onde todos lhe honravam”.

423. Tg 3, 15.
424. ct 1, 3.

c) não se afeiçoar em demasia às coisas deste mundo, mesmo que sejam boas e honestas. – a
ciência, a arte, a cultura humana, o progres- so material das nações, etc., são coisas em si
mesmas boas e honestas quando canalizadas e ordenadas retamente. mas, se nos entregamos
a essas coisas com demasiado ardor e afã, não deixarão de nos prejudicar seriamente.
acos- tumado nosso paladar ao gosto das criaturas, experimentará certa torpeza ou estultícia
para saborear as coisas de deus, tão superiores em tudo. o deixar-se absorver pelo apetite
desor- denado da ciência - mesmo a sagrada e teológi- ca-, paralisa em sua vida espiritual
uma multi- dão de almas, acarretando com isso uma perda irreparável; perdem o gosto pela
vida interior, abandonam e encurtam a oração, se deixam absorver pelo trabalho intelectual
e descuidam da coisa “única e necessária” de que nos fala o senhor no evangelho.425 é uma
grande lástima, pois lamentarão no outro mundo, quando não tiverem mais remédio!
“que diferentes – continua o p. lallemant426 – são os juízos de deus em relação ao
juízo dos homens! a sabedoria divina é uma loucura a juízo dos homens, e a sabedoria
humana é uma loucura a juízo de deus. a nós cabe ver com qual destes juízos queremos
conformar o

425. lc 10, 42.


426. Ibid.

nosso. é preciso tomar um e outro pela regra de nossos atos. se gostamos de louvores e de hon- ras,
somos loucos nesta matéria; e tanto tere- mos de loucura quanto tenhamos de gosto em ser
estimados e honrados. como, ao contrário, tanto teremos de sabedoria quanto tenhamos de amor à
humilhação e à cruz.
é monstruoso que mesmo nas ordens re- ligiosas se encontre pessoas que não gostam mais
do que aquilo que possa lhes fazer agra- dáveis aos olhos do mundo; que não fizeram nada
durante os vinte ou trinta anos de vida religiosa senão pra aproximar-se do fim que aspiram;
nunca tem alegria ou tristeza senão relacionada a isso, ou, ao menos, são mais sen- síveis a isso
do que a todas as demais coisas. Tudo o mais que concerne a deus e à perfeição lhes resulta
insípido, não encontram gosto al- gum nisso.
este estado é terrível e mereceria ser chora- do com lágrimas de sangue. pois, de que per-
feição são capazes esses religiosos? que fruto podem fazer em benefício do próximo? mas que
confusão experimentarão na hora da mor- te quando se lhes mostre que durante todo o curso de
sua vida não tenham buscado nem gostado mais do que o brilho da vaidade, como mundanos! se
estão tristes estas pobres almas, diga-lhes alguma palavra que lhes proporcione alguma esperança
de certo engrandecimento,

mesmo que falso, e as vereis no mesmo instan- te mudar de aspecto: seu coração se encherá
de gozo, como ante o anúncio de algum grande êxito ou acontecimento.
por outra parte, como não têm o gosto da devoção, não qualificam suas práticas mais do
que de bagatelas e de entretenimentos de espí- ritos débeis. e não somente se governam eles
mesmos por estes princípios errôneos da sabe- doria humana e diabólica, senão que comuni-
cam ademais seus sentimentos aos outros, en- sinando-lhes máximas totalmente contrárias
às de nosso senhor e do evangelho, do qual tratam de mitigar o rigor pelas interpretações
forçadas e conformes às inclinações da natu- reza corrompida, fundando-se em outras pas-
sagens da escritura mal entendidas, sobre as quais edificam sua ruína”.
d) não apegar-se aos consolos espirituais, mas passar a deus através deles. – até tal pon- to
querem deus unicamente para si, despren- didos de toda a criação, que querem que nos
desprendamos até dos próprios consolos espi- rituais que tão abundantemente, muitas vezes,
prodiga na oração. esses consolos são certa- mente importantíssimos para nosso
adianta- mento espiritual,427 mas unicamente como es- tímulo e alento para buscar a deus
com maior ardor. buscá-los para se deter neles e saboreá

427. cf. p. arintero, o. p., Cuestiones místicas (bac, madrid 1956)

-los como fim último de nossa oração seria fran- camente imoral; e mesmo considerados como um
fim intermediário, subordinado a deus, é algo muito imperfeito, do qual é mister purifi- car-se se
queremos passar à perfeita união com deus.428 deve-se estar pronto e disposto a ser- vir a deus na
obscuridade, assim como na luz, na secura assim como nos consolos, na aridez e nos deleites
espirituais. deve-se buscar dire- tamente a deus nos consolos e não os conso- los de deus. os
consolos são como o molho ou condimento, que serve unicamente para tornar

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