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1.

5 O CONHECIMENTO SEGUNDO ALGUNS FILÓSOFOS

1.5.1 TOMÁS DE AQUINO (1225-1274)

Sua obra consistiu na interpretação e assimilação do aristotelismo ao pensamento


cristão, transparecendo uma profunda confiança no caráter racional e ordenado do ser e do
mundo, ainda que consciente da insuficiência do espírito humano diante dos mistérios
impenetráveis da criação divina.

Para esse pensador medieval, a fim de obter o conhecimento, o intelecto precisa


voltar-se para as coisas sensíveis e delas extrair os universais (inteligíveis) que nelas se contêm.
Já que somente as coisas sensíveis são acessíveis ao ser humano, os conceitos fundamentais
são derivados da experiência. Não é dado ao ser humano conhecer de forma imediata as
realidades espirituais, como Deus ou os anjos, o que impede que o homem possa ter um
conhecimento de natureza puramente espiritual. Até mesmo para conhecer sua alma, o ser
humano vale-se do conhecimento das coisas sensíveis, pois, ao conhecer os objetos, pode-se
refletir sobre nossa faculdade de conhecer e, a seguir, sobre si mesmo.

Os universais são aquilo que fazem com que alguma coisa seja o que é, enquanto os
acidentes apenas a qualificam ou modificam, mas não definem sua natureza. Os acidentes são
conhecidos através dos sentidos. Por exemplo: os sentidos me informam que um cão é grande
ou pequeno, bravo ou dócil, mas a natureza canina, presente em todos os cães, somente é
acessível pela inteligência.

“São as coisas da natureza, das quais a nossa inteligência haure o seu conhecimento,
que constituem a medida do nosso intelecto (...) Estas, porém, derivam a sua medida da
inteligência de Deus, no qual tudo está encerrado (...) Assim, pois, a inteligência de Deus
constitui a medida de tudo, não podendo, porém, ser medida ou mensurada. ”

“A verdade consiste na conformidade da coisa com o intelecto. ”

“A inteligência não julga sobre a verdade, mas segundo a verdade. “

“A verdade é para o intelecto o critério à luz do qual deve julgar tudo, visto que a
inteligência não pode tomar-se como critério para julgar acerca das coisas. Logo, a verdade só
pode ser o próprio Deus. “ (Questões discutidas sobre a Verdade).

1.5.2 RENÉ DESCARTES (1596-1650)

Esse pensador francês acredita que o bom senso é a coisa mais bem partilhada do
mundo, estando presente em todos os seres humanos. As divergências nascem por que as
pessoas não se valem de um método, que Descartes se encarregou de nos oferecer. Após ser
educado segundo o conhecimento tradicional, viu-se envolvido em dúvidas, e procurou na
Matemática a inspiração para um método adequado à busca e à obtenção do conhecimento.
Viveu no momento em que o pensamento científico se desenvolveu, e procurou conciliar as
verdades metafísicas tradicionais do Cristianismo, nas quais foi educado, com a visão
matematizante da realidade, inaugurada por Galileu e tomada como fundamento do método
científico.
Os passos recomendados para ele na busca do conhecimento são: nada acolher que
não seja evidente, que não se apresente de forma clara e distinta; dividir cada um das
dificuldades em tantas parcelas quantas possíveis e necessárias para melhor resolvê-las;
organizar o pensamento e iniciar pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, e,
gradativamente, como que através de degraus, alcançar os objetos mais complexos;
finalmente, fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais que permitam que
nada seja omitido. Assim, seguindo uma metodologia oriunda do raciocínio matemático,
podemos alcançar a verdade.

As coisas que podemos conceber como claras e distintas são verdadeiras, porque tudo
o que existe em nós, de forma clara e distinta, vem de Deus; assim, se nossas ideias são claras
e distintas, são verdadeiras porque provém de Deus, e Deus não nos poderia enganar.
(Discurso do Método).

Descartes retoma o argumento platônico, segundo o qual o fundamento do ser e do


conhecer é um Bem, e por isso o conhecimento verdadeiro corresponde ao ser. Deus existe,
como garantia do conhecimento e da ciência, e não poderia jamais induzir o intelecto humano
ao erro; Ele é a garantia da objetividade do conhecimento.

As ideias claras e distintas são principalmente aquelas obtidas de modo matemático.


Enquanto a filosofia e as humanidades apresentam argumentos frágeis e conflitantes, o
conhecimento matemático é sempre seguro e confiável; suas demonstrações são
incontestáveis e as verdades matemáticas são perenes e seguras. Por outro lado, o
conhecimento sensível é inseguro e duvidoso.

1.5.3 DAVID HUME (1685-1753)

De acordo com esse filósofo escocês, o pensamento humano nada mais faz do que
combinar, transpor, aumentar ou diminuir os materiais fornecidos pelos sentidos e pela
experiência. Mesmo as relações de causa e efeito são descobertas apenas pela experiência;
por mais inteligente que fosse, um homem não descobriria que o fogo queima pela simples
contemplação da chama, mas a partir do momento que a toca. Um cego, por exemplo, não
pode imaginar as cores, nem um surdo conhecer os sons. Espera-se, de causas semelhantes,
efeitos semelhantes, mas essa expectativa se assenta numa crença psicológica, no costume e
no hábito, que nos faz esperar que determinadas situações já conhecidas venham a se repetir.
Pela crença, saltamos do presente, conhecido, para o futuro ignorado, que imaginamos venha
a ser semelhante ao presente. Também a ciência se funda nesse processo, supondo que
existem leis naturais que sejam necessárias, quando, na verdade, essas leis são produto da
imaginação, que supõe necessária uma situação, pelo fato de que a mesma seja repetitiva até
então. Assim, o que entendemos como leis naturais são ficções que a inteligência humana
produz, com base no mecanismo psicológico do hábito. Se Deus existe ou não, é algo que a
inteligência humana, sempre dependente da experiência, é incapaz de resolver. Logo, o
critério da verdade não pode se apoiar na ordem da mente divina, à qual não temos acesso. O
máximo que se pode esperar é que, de situações semelhantes, tenhamos efeitos semelhantes,
de forma provável, mas não de forma necessária.
O conhecimento nasce de impressões fornecidas pelos sentidos; as ideias são as
impressões organizadas pela memória e pela imaginação, e não traduzem uma possível
realidade última do mundo, mas, antes, revelam a forma de ser do espírito humano. Assim,
não é possível um conhecimento metafísico, porque objetos ou realidades metafisicas não nos
são dados de forma sensível; a metafísica, para ele, não passa de um grandioso jogo de
palavras.

As relações matemáticas são necessárias e seguras, mas não se aplicam ao mundo. São
construções da mente, enquanto o mundo, sempre contingente e mutável, não pode ser dito
fundamentado nessas relações de ordem e necessidade. Os fatos sempre podem ser
diferentes do que são; um objeto vermelho poderia ser de outra cor, sem que isso viole uma
pretensa ordem universal. Assim, o conhecimento e a ciência são uma forma que o ser
humano encontra para organizar os fenômenos do mundo, de modo a facilitar a sua
existência. Hume não nega a utilidade do conhecimento, mas o insere numa dimensão
humana, não mais o justificando a partir de Deus. Mesmo a moral não é, para ele, a apreensão
do Bem universal, mas um conjunto de qualidades aprovadas pela maioria das pessoas, por
sua utilidade e conveniência, tanto para as demais pessoas quanto para si mesmo.

De tudo isso resulta que devemos evitar conclusões apressadas, e não fazer
especulações que escapem ao domínio da experiência. A própria natureza, que nos ensinou o
uso de nossos membros sem nos dar o conhecimento dos músculos e nervos que os acionam,
também nos permite dispor de um instinto que faz avançar o nosso pensamento segundo uma
ordem semelhante à que existe entre os objetos, ainda que não saibamos de que forma isso
acontece. Nos animais também encontramos esse instinto, que nos permite associar
impressões sensíveis; alguns homens se diferenciam por que são mais atentos, mais capazes
de encadear ideias, de refletir longamente e de forma menos apaixonada. Mas, nos homens e
nos animais o processo do conhecimento é o mesmo, ainda que nos seres humanos seja mais
bem elaborado. (Investigação sobre o Entendimento Humano).

1.5.4 IMMANUEL KANT (1724-1804)

Kant é um ponto de convergência do pensamento filosófico que o antecede, sendo


influenciado, ao mesmo tempo, pelo racionalismo cartesiano, e pelo empirismo de David
Hume, que o despertou de seu “sono dogmático”, conforme suas palavras. Uma de suas
principais contribuições foi a respeito do conhecimento, suas possibilidades, seus limites e
suas esferas de aplicação.

Para ele, o conhecimento científico só é possível porque a razão se antecipa à


experiência, e somente compreende o que ela mesma produz segundo o seu projeto, através
do qual obriga a natureza a responder suas perguntas; observações feitas ao acaso ou
experimentos aleatórios, de nada valem. O conhecimento parte do sujeito, é o sujeito que
regula e organiza os objetos. Mas a razão não consegue nada conhecer sem o concurso da
experiência; não podemos conhecer nenhum objeto como coisa em si mesma, mas somente
enquanto fenômeno, isto é, da maneira que aparece para nós.
O papel crítico da Filosofia (ou da Teoria do Conhecimento) consiste em definir em que
limites a razão pode operar de forma segura. O conhecimento começa com a experiência, mas
não se origina somente dela; é um composto daquilo que recebemos por impressões e daquilo
que nossa própria faculdade de conhecer fornece de si mesma. Dogmatismo é utilizar-se da
razão sem uma prévia crítica de sua própria capacidade, incorrendo em ilusões.

O sujeito humano, ao conhecer a realidade, parte de estruturas prévias. Por exemplo:


o conhecimento se inicia a partir da sensibilidade, mas as concepções de tempo e espaço não
advém da experiência, mas são princípios “a priori”, independentes da experiência sensível,
que a organizam. Também temos os elementos apriorísticos do entendimento, que são as
tradicionais categorias aristotélicas; na visão aristotélica, as categorias eram apreendidas pelo
intelecto a partir da realidade, enquanto que, para Kant, são imanentes ao sujeito e
antecedem qualquer experiência. Ora, assim sendo, as realidades metafísicas não são dadas ao
nosso conhecimento, porque, ainda que se possa pensar a respeito delas, não as podemos
conhecer, porque não temos dados sensíveis que as comuniquem a nós. A metafísica excede o
poder da inteligência humana, não sendo possível à razão aventurar-se nos seus domínios.
Toda discussão a respeito de Deus ou da alma resulta infrutífera, porque argumentos
contrários podem ser aceitos, sem que a experiência nos indique qual é o verdadeiro e o falso
entre eles.

No racionalismo clássico, se supõe existir uma correspondência entre o sujeito e o


objeto, garantida por um fundamento divino. Para Kant, trata-se de substituir essa harmonia
prévia pela ideia de que o objeto se submete ao sujeito. Mas, por isso, todo saber é relativo à
estrutura cognitiva do homem. Pensar não é participar do intelecto divino, nem apreender as
ideais de Deus, mas organizar o real segundo categorias humanas, que Kant supunha serem
universais. (Crítica da Razão Pura). Essa reviravolta na questão do conhecimento, que coloca o
sujeito como “organizador” da realidade, é denominada Revolução Copernicana.

1.5.5 FRIEDRICH NIETZSCHE (1844-1900)

Segundo esse filósofo alemão, que combina as ideias kantianas com a biologia então
nascente, o conhecimento é uma atividade específica do animal humano, ligado às suas
necessidades de conservação e expansão vital. Instrumento antropomórfico, que humaniza o
mundo assimilando-o à nossa perspectiva e à nossa necessidade de sobrevivência.

A verdade aparece, inicialmente, como uma necessidade para o convívio social mais
civilizado. Para instaurar a paz, evitar a guerra e tornar possível a convivência entre os seres
humanos, a inteligência humana designa de maneira uniforme aquilo que lhe parece estável,
organizando a realidade de acordo com as regras da linguagem. Através da linguagem, a
verdade se torna uma função operativa, que consiste em atribuir a cada coisa o nome que a
convenção lhe destinou. O conhecimento se apoia nessa ficção, que supõe a regularidade da
natureza, o que torna possível a calculabilidade e a instrumentalização do mundo, que tornam
possível o exercício do poder e da dominação sobre as coisas e sobre os demais humanos.
Essa tese nietzschiana se opõe a duas posições:

- critica um certo tipo de racionalismo, que considera que conhecer é a apreensão


incondicionada de uma ordem preexistente no mundo, que, em última análise, se origina em
Deus;

- também critica um tipo de empirismo, que trata o conhecimento como se a mente


humana fosse um espelho, onde se refletem os dados, os fatos e os fenômenos.

Assim, o conhecimento é um processo criativo e antropomorfizador, por meio do qual


o ser humano atribui ao mundo uma organização e um sentido, que não deriva dele, mas que
deriva da interpretação humana.

Essa perspectiva considera o ser humano como um acontecimento contingente no


Planeta Terra, que também é temporário e destinado a desaparecer. O ser humano não está
no centro do Universo, o intelecto não conhece as coisas em sua essência. A crença em Deus
legitima o conhecimento na sua pretensão orgulhosa de traduzir o real. A verdade é uma obra
humana, necessária à nossa sobrevivência, pela qual damos ao mundo uma ordenação
arbitrária e funcional. (BRUM, José Thomas. Nietzsche, as Artes do Intelecto).

O conhecimento é um instrumento da vida. Para sua expansão, os seres vivos


interpretam o mundo e o codificam, conforme já havia sido apresentado por Kant. Mas
Nietzsche vincula esse processo à sobrevivência humana; o desejo de Verdade paralisa esse
processo, que é uma afirmação da Vontade de Potência. Assim, o conhecimento deve ser uma
criação constante, e o filósofo um nômade, que inventa nova formas de representar o mundo.

1.5.6 KARL POPPER (1902-1994)

De acordo com esse filósofo austro-britânico, que assimila profundamente o


darwinismo ao quadro teórico da filosofia, o conhecimento consiste em disposições prévias de
organismos. Qualquer organismo só pode sobreviver se encontrar-se adaptado ao seu
ambiente, e essa adaptação é em grande parte inata, resultando de conhecimentos
acumulados e transmitidos geneticamente. Todo crescimento do conhecimento consiste no
aprimoramento do conhecimento já existente; os sentidos já recortam seletivamente a
realidade, interpretando-a segundo as necessidades de cada ser vivo. Assim, o conhecimento
não parte de observações, ou de dados, nem é uma mera acumulação de informações
advindas do meio ambiente. Cada animal, de acordo com suas estratégias de sobrevivência,
capta aspectos da realidade que são fundamentais para sua sobrevivência, segurança e
reprodução.

Todos os organismos, principalmente o ser humano, procuram regularidades, que


traduzam aspectos do funcionamento do mundo. Ao assimilarmos os dados oriundos dos
sentidos (sendo sempre necessário lembrar que não captamos dados da realidade, mas a
recortamos de forma seletiva e interpretativa), a eles damos uma determinada conformação,
derivada de nosso intelecto, que tudo ajusta ao seu quadro de referências. Perceber objetos
como unos, permanentes ou semelhantes já é uma obra arquitetônica de nossa mente, que
traduz mais as nossas necessidades do que as supostas regularidades do mundo. Os
organismos estão continuamente enfrentando problemas, e a solução desses desafios se dá
por ensaio e erro, antecipações conjecturais e eliminação de soluções equivocadas. Cada ser
vivo é uma experiência biológica que investiga novos nichos ambientais, escolhendo e
modificando seu sistema de viva, ampliando, mantendo ou perdendo sua vida.

O conhecimento principia a partir de problemas, que são situações que conflitam com
expectativas prévias. Se tudo funciona bem, não há conhecimento. Portanto, sem ERROS não
há conhecimento; o intelecto trabalha pelo método de conjecturas e ensaios, por meio das
quais tenta encontrar alguma forma de ordem ou regularidade no mundo; as teorias são como
que órgãos exossomáticos; assim como as teorias os órgãos e suas funções são adaptações
experimentais ao mundo em que vivemos. Animais altamente adaptados não experimentam
problemas e, quando experimentam, desaparecem; animais flexíveis e menos programados
instintivamente, como os humanos, podem aprender com seus erros. Assim, conhecer é
eliminar teorias e conjecturas inadequadas, em um processo darwiniano de expansão.
Conforme ensinou Nietzsche, convicções são prisões, que dificultam ou até impedem a
expansão do conhecimento.

Assim como a seleção natural funciona a partir de mutações aleatórias, a inteligência


humana, principalmente através da intersubjetividade e do diálogo crítico, pode testar teorias
e ideias, submetendo-as a tentativas de falseamento.

O critério do conhecimento é a possibilidade de testagem empírica ou experimental.


Enquanto os animais se submetem a esse processo de forma natural, os seres humanos podem
desenvolver uma seleção racional de hipóteses, sempre provisórias. O conhecimento não é um
sistema de enunciados certos e definitivos, mas um conjunto de conjecturas resistentes à
crítica. A cultura humana e principalmente a ciência construiu mecanismos intersubjetivos de
validação e refutação de ideias; o pluralismo de ideias e experiências de vida é necessário para
que possamos experimentar mais amplamente novas formas de viver e de pensar. A verdade
dogmatizada impede o crescimento do conhecimento; mesmo nossas convicções mais sólidas
devem sempre estar submetidas à crítica. (O Conhecimento Objetivo).

Podemos encontrar, na teoria do conhecimento de Karl Popper, a influência kantiana,


no que se refere ao papel do sujeito no conhecimento; mas Popper enxerga esse papel de
forma dinâmica e histórica, e também à luz da biologia evolucionista de Darwin; também é
muito influenciado pelo pensamento de Hume, para quem o critério final de testabilidade do
conhecimento é a experiência. Ainda encontramos, no pensamento popperiano, elementos
céticos, pois que o conhecimento, para ele, é sempre a construção de ficções testáveis, que
nunca podem ser consideradas verdadeiras. Aceitamos as teorias mais bem testadas e que
sobreviverem ao darwinismo epistemológico, mas elas são como construções no pântano: não
tem alicerces na rocha da verdade, mas repousam sobre uma base instável, sempre duvidosa.

1.5.7 O CETICISMO EM OSWALDO PORCHAT (1933-2017)

Para esse filósofo cético brasileiro, o dogmatismo religioso, ou também filosófico, ao


pretender apoiar-se na razão, leva o ser humano a abismos sem saída. Com a perda da fé, em
Deus ou na onipotência da razão, para aqueles que não praticam o “suicídio filosófico” (termo
cunhado por Albert Camus, que consiste na atitude de abraçar o incompreensível como
expressão de Deus), acontece a descoberta da solidão, do silêncio do universo e da
possibilidade da morte enquanto evento pessoal e existencial.

Em busca de uma resposta segura, pode-se consultar a Filosofia. Mas a Filosofia só nos
oferece uma multiplicidade de sistemas, concepções e atitudes, que se anatematizam e se
combatem umas às outras. Cada sistema filosófico cria seu próprio universo, que se instaura
negando todos os demais; ao buscar critérios válidos e objetivos para resolver esse
interminável conflito, descobre-se que cada filosofia propõe seus próprios critérios de
validade, solidários com sua própria estruturação. Todas as respostas são respondidas pelas
diferentes filosofias, embora estas respostas não sejam conciliáveis. Toda crítica pode ser
respondida, desde que se aceitem as premissas de uma escola filosófica determinada. Mas
nenhuma se fundamenta de forma absoluta, sendo possível concluir que o discurso filosófico
em geral é não-demonstrativo. Ainda que do ponto de vista lógico possam produzir
argumentos válidos, esses argumentos só vigoram no mundo da lógica, sendo problemática
sua aplicação ao mundo cotidiano. Portanto, Oswaldo Porchat considera que a pretensão dos
grandes sistemas filosóficos a uma fundamentação definitiva testemunha sua religiosidade
essencial e profunda, disfarçada sob uma linguagem laicizada. Como ele escreveu, os filósofos
se pretendem sacerdotes leigos de Zeus, intérpretes do verbo divino, que desprezam as
opiniões banais dos leigos mortais. No período socrático, o sofista Protágoras já ensinava que
os homens se deixam persuadir com frequência pelos discursos, e que, a cada discurso, se
pode opor um discurso contrário, igualmente convincente. Ou seja, se pode provar tudo o que
se quer, todas as teses são demonstráveis, desde que se domine a técnica da retórica.

Ao abraçar o ceticismo grego, a princípio Oswaldo dedicou-se ao silêncio, pois tentar


justificar o ceticismo seria recomeçar novamente o interminável jogo em que as diferentes
filosofias tentam se legitimar e combater umas às outras. Assim, conforme ele escreveu, ao
adotar o ceticismo ele se tornou um homem comum, que saboreia a vida cotidiana com suas
alegrias e tristezas. Deu-se na sua vida a vitória do homem comum sobre os conceitos, da vida
comum sobre as sofisticações intelectuais. A sua visão de mundo foi admitida como
necessariamente incompleta, incapaz de justificar-se plenamente, sendo sempre passível de
reforma a partir da experiência cotidiana. Desde então, passou a desprezar o intelectualismo,
na medida em que ele confere um privilégio absurdo às especulações da razão desligada do
mundo; as complicações sutis da filosofia parecem a ele um desperdício de inteligência; seu
linguajar esdrúxulo, uma perversão da linguagem; sua divinização da razão, um mito infeliz.

Seu ceticismo consiste em assumir uma visão comum do mundo, reconhecendo a


primazia da realidade sobre o “Logos”. Consiste em reconhecer o real, sobre o qual é possível
um discurso precário e contingente, construído a partir de uma vida que procura conversar
com outras subjetividades. Buscando o diálogo, o filósofo falará com simplicidade, sem uma
terminologia abstrusa nem um jargão complicado; sua caminhada não é gratuita, porque foi
longamente preparada na crise das aporias filosóficas e no silêncio da não-filosofia.

O cético tem um critério de ação, que é o fenômeno, segundo o qual toma


determinadas atitudes e se abstém de outras. Vive a vida comum, deixa-se levar por suas
faculdades naturais, pela tradição das leis e costumes; seu discurso é mero instrumento de
ação e forma de vida. Em verdade, o ceticismo é uma espécie de terapêutica, um purgante que
pretende curar os homens de sua propensão ao dogmatismo.
Diante da equipolência entre argumentos dogmáticos contrários a respeito de coisas
não evidentes, o cético suspende seu juízo e obtém a ataraxia, que é um estado de
imperturbabilidade derivado da interrupção das atividades dogmáticas.

(Vida Comum e Ceticismo – Prefácio a uma Filosofia).

BIBLIOGRAFIA

AQUINO, Tomás. Questões discutidas sobre a Verdade. Tradução de Luiz João Baraúna.
São Paulo, Editora Abril Cultural, 1973.

BOEHNER, Philoteus e GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Tradução de


Raymundo Vier. 2. Edição. Petrópolis, Vozes, 1982.

BRUM, José Thomas. Nietzsche, as artes do intelecto. Porto Alegre, Editora L&PM,
1986.

DESCARTES, René. Discurso do Método. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado


Júnior. São Paulo, Abril Cultural, 1979.

HUME, David. Investigação sobre o Entendimento Humano. Tradução de Leonel


Vallandro. São Paulo, Abril Cultural, 1980.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur
Moosburger. São Paulo, Abril Cultural, 1983.

LESSA, Renato. Veneno Pirrônico, Ensaios sobre o Ceticismo. Rio de Janeiro, Francisco
Alves, 1997.

NIETZSCHE, Friedrich. Obras Incompletas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho.


São Paulo, Abril Cultural, 1978.

POPPER, Karl. O Conhecimento Objetivo. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte,


Editora Itatiaia-EDUSP, 1975.

PEREIRA, Oswaldo Porchat. Vida Comum e Ceticismo. São Paulo, Editora Brasiliense,
1993.

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