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Buscando e encontrando o Deus verdadeiro de Deus verdadeiro:

O Doctor Communis e a Doutrina sobre Deus

Thomas Joseph White, OP, Angelicum

I. A ordem medieval voltada à transcendência

Numa importante obra de 2012, Jan Aersten, o holandês especialista em estudos

medievais, caracterizou o modo de pensar filosófico da Baixa Idade Média como “Pensamento

Transcendental”. Aersten repara que os termos transcendentalis e transcendens no discurso

medieval do séc. XIV pode ser entendido em dois sentidos. Primeiramente, e mais comumente,

tais termos signigicam aspectos do ser que transcendem qualquer gênero ou espécie particulares

de ente, características da existência que inerem a tudo que é, enquanto é. A lista clássica inclui:

ente, uno, verdadeiro e bom. Em segundo lugar, “transcendental” denota aquilo que é mais

derradeiro e nobre, aquilo que transcende todas as realidades finitas e dependentes, a saber, o

mistério desconhecido que chamamos Deus, o Criador.

Ambos estes sentidos de “transcendental” estão relacionados: o estudo das características

transcendentais comuns a todos os entes chamam nossa atenção para seu caráter criatural, na

medida em que todos eles participam em perfeições comuns do ser de uma maneira finita. Cada

um deles é uma concreção derivada e limitada de existência, tendo uma unidade, verdade e

bondade dadas. Nada do que experimentamos é a causa de sua própria existência, mas, ao

contrário, todas as coisas que conhecemos participam imediatamente no ser e derivam sua

existência de outras. Elas são, portanto, indícios de um pano de fundo ou horizonte comum de

entes, uma composição global em que cada ente desempenha um papel limitado e é sempre

apenas uma manifestação limitada daquilo de que podemos predicar a existência, a unidade, a

verdade e a bondade. Mas uma multiplicidade de realidades derivadas nos aponta para um

fundamento e causa latentes de tudo que participa na existência, da qual todas as coisas recebem
seu ser. Apontam, portanto, na direção de um exemplar desconhecido, mas transcendente, do ser:

o mistério de Deus, que é dissemelhante de todas as coisas que vêm d’Ele.

Antes da grande cisão entre o mundo externo das leis empíricas e o mundo interno das

leis racionais, desde Descartes, Hume, e Kant, os doutores comuns do período medieval

buscavam reconduzir as vias externas metafísicas na direção da explicação última, e as vias

epistêmicas interiores de um modo diferente daquele que encontramos nesses influentes

pensadores modernos. Esses doutores admitiam “ascender” em direção a Deus pela razão natural

por um “caminho externo”, mas esse caminho externo era refletido por um “caminho interno” da

alma que descobria sua própria aptidão para Deus. Por ‘caminho externo’, refiro-me à rota

percorrida por um raciocínio metafísico, a partir da natureza e existência das realidades que

percebemos externamente, em direção à afirmação da necessidade de alguma origem primeira,

exemplar e final transcendente de todas as coisas, a qual chamamos Deus. Por ‘caminho interno’,

refiro-me ao trajeto percorrido por meio do raciocínio antropológico ou epistemológico a partir

das condições desiderativas, volitivas ou racionais humanas, em direção à condição

transcendente de possiblidade dessas atividades interiores. Filósofos da Baixa Idade Média

diferiam notavelmente entre si em seu modo de aplicar essas duas abordagens e correlacioná-las,

mas normalmente estavam de acordo em relação a um ponto mais geral, já que tentavam

mantê-las juntas como sendo duas rotas distintas, mas relacionadas, para o transcendente. É

possível até dizer, com um anacronismo proposital, que para os grandes doutores medievais, o

sujeito transcendental interior desenvolve suas próprias inclinações naturais para Deus

exatamente na medida que empreende uma subida metafísica rumo a Deus pela via do estudo

exterior das características transcendentais da realidade.

II. O exemplo de Boaventura


O exemplo de Boaventura é instrutivo, neste particular, como marco de comparação e

contraste com S. Tomás. Por um lado, Boaventura afirma que Deus, em seu ser, perfeição e

bondade infinitos, é a primeira coisa conhecida pelo intelecto humano, como se o olhar nebuloso,

imperfeito da mente para a natureza de Deus, por meio de uma concepção da perfeição divina,

fosse a condição de possibilidade de qualquer outro pensamento. Deus é conhecido primeiro, e

tudo mais é conhecido na luz de Deus. Não causa espanto, então, que, ao seguir as pegadas de

Anselmo, Boaventura também abrace o argumento que parte da própria idéia de Deus como ser

perfeito em direção à conclusão de que tal ser deve existir, dado que a idéia de perfeição

necessariamente inclui a idéia da existência real. Se somos capazes de conceber aquilo que é

mais perfeito, isto só pode ocorrer porque Deus realmente existe em sua perfeição infinita e

misteriosa que transcende nossa compreensão, mas é o fundamento de possiblidade de qualquer

pensamento que tenhamos seja acerca de Deus ou de suas criaturas finitas que têm seu ser,

perfeição e bondade limitadas hauridas d’Ele.

Ao mesmo tempo, Boaventura está também preocupado em elaborar trilhas

argumentativas externas para a existência de Deus, a partir das realidades conhecidas pelos

sentidos, compreendidos precisamente em suas características transcendentais. Ele também

elabora argumentos para a afirmação demonstrativa da existência de Deus a partir da

consideração da perfeição e bondade reais, mas limitadas, das formas de ser que encontramos por

meio das experiência e conhecemos intelectualmente por meio de análise metafísica. A

existência, ordem e bondade do mundo externo carrega o traço de seu Criador, donde podemos

derivar denominações metafísicas para Deus como bondade, transcendente e uno não-originado.

É interessante notar que, no pensamento de Boaventura o círculo epistêmico de

movimentos rotatórios do centrípeto ao centrífugo, do conhecimento interior de Deus na alma à


confirmação do conhecimento exterior de Deus nas coisas externas, e depois em sentido inverso,

numa espiral ascendente rumo a Deus. De certo modo, isto é o contrário do que faz Tomás, que

começa partindo das coisas exteriores, para alcançar o conhecimento metafísico das realidades

criadas e, a partir daí, ascende ao conhecimento da origem e fim transcendente dessas mesmas

realidades. Este conhecimento obtido mediante os sentidos é correlativo a um impulso interior

em direção tanto ao conhecimento contemplativo e científico perfeito, quanto à felicidade ou

beatitude, como veremos. Contudo, apesar de sua orientação Agostinista Platônica, ou, até certo

ponto, por causa dela, o itinerário de Boaventura segue sendo uma forma vigorosa de

pensamento católico que apresenta as características necessárias para qualquer ponto de vista

filosófico que aspire à uma importância perene e universal, ou a ocupar um lugar comum, de

referência, na vida intelectual da Igreja Católica, num sentido mais amplo. É possível salientar

quatro dessas características:

Primeira, a filosofia de Boaventura apresenta avenidas para a consideração dos modos

como os seres humanos podem alcançar um conhecimento natural do Deus uno, transcendente e

criador de todas as coisas.

Segunda, isto é feito por meio da reflexão metafísica, de modo que tudo que existe e tem

outras propriedades transcendentais como a unidade, a verdade e a bondade, pode ser

compreendido à luz do mistério de Deus, e de um jeito que também todas as disciplinas podem

ser coordenadas entre si e compreendidas à luz do mistério de Deus e da ciência teológica, que é,

por sua vez, informada por uma reflexão ou registro metafísico.

Terceira, a noção boaventuriana de predicação dos nomes de Deus permite-lhe

desenvolver, dentro da teologia cristã como tal, uma teoria acerca da vida interior da Trindade,
mediante uma consideração das processões eternas do Verbo e do Espírito, de modo que toda a

realide pode ser considerada sob uma luz trinitária.

Quarta, Boaventura apresenta razões de conveniência para a encarnação do Verbo, como

uma atividade re-criativa de Deus Trindade Santa, atraindo as mentes de todos os seres humanos

de volta a sua fonte não reconhecida, retornando o olhar da mente humana para a mais

primordial e não-originada das realidades: o Pai, que é a origem do Verbo e do Espírito, de quem

todas as coisas emanam no ser, incluindo o ser humano, feito à imagem da Trindade, pelas

tríplices faculdades da memória pessoal, do intelecto e do amor volitivo.

III. O exemplo do Aquinate

Tomás, é claro, brinda-nos com uma visão diferente, e vale a pena pensar por que ele é

digno de ser considerado um doutor comum da doutrina de Deus, não apenas para as épocas

imediatamente posteriores ao século XIII, mas também para a nossa. Para este fim, consideremos

brevemente, em primeiro lugar, seu caminho externo para Deus; em seguida, seu caminho

interior e as respectivas noções de uma epifania revelatória de verdades que permanecem

racionalmente desconhecidas, comunicadas adequadamente por meio da encarnação do Verbo e

na reveleção distintamente Trinitária do ser humano como imago Dei. Isso nos permitirá voltar à

questão acerca das aspirações teológicas católicas modernas.

Tomás apresenta mais do que cinco argumentos para a existência de Deus, incluindo seus

vários argumentos a partir da consideração da distinção real de essência e ser nas criaturas,

consideração do tempo e da eternidade, da potência e do ato, da ordem e da Providência divinas,

da hierarquia das perfeições, e dos apelos ao primeiro motor das operações imateriais da alma

humana. Eles estão desenvolvidos ao longo da sua obra. É, de fato, difícil enumerar quantos

argumentos para a existência de Deus podem ser encontrados na obra do Aquinate, e ainda
carecemos de uma análise acadêmica séria sobre este assunto. No entanto, é possível perguntar

quais pressupostos comuns informam aquelas de suas reflexões que passam por aquilo que tenho

denominado caminho externo, a partir da consideração filosófica das realidades criadas,

derivadas, ontologicamente dependentes e compostas, em direção a sua causa invisível e também

não-originada, e que permanece misteriosa, imperfeitamente conhecida e naturalmente

inacessível a nós, ao menos quando se trata de qualquer experiência imediata da essência ou

natureza interiores de Deus.

Foram feitas tentativas de caracterizar os pressupostos metafísicos subjacentes a todos os

argumentos teistas de Tomás. É notória a alegação de Gilson na 6ª edição de Le Thomisme de

que a distinção real entre essência e existência é o pano de fundo de todos os argumentos, ou,

pelo menos, das Cinco Vias da q. 2 da Ia parte da Suma Teológica. Lawrence Dewan

argumentou, de modo mais plausível, que as Cinco Vias correspondem mais ou menos às causas

aristotélicas: material, eficiente, formal, exemplar, e final, cada uma delas ampliada até o mais

elevado e último horizonte da explicação causal, levando a Deus. Garrigou-Lagrange,

entrementes, argumenta que todo esse tipo de argumentação repousa na consideração dos vários

tipos de composição de ato e potência encontrados nas criaturas, de modo a concluir a partir

destes pela consideração consciente de Deus como ato puro e causa primeira, que é a única causa

absolutamente necessária na ordem da existência. Outras teorias poderiam ser mencionadas, mas

meu objetivo aqui não é resolver essas interessantes disputas teóricas. Mais útil, em minha

opinião, é dar um passo atrás e reconhecer um aspecto mais fundamental ou mais logicamente

genérico sobre os vários argumentos de Tomás que é oportuna a nossas considerações. Para

Tomás, a complexidade da composição e da dependência causal que encontramos em todas as

realidades com as quais nos envolvemos, quando consideradas lógica e metafisicamente,


orientam-no para cima, para uma fonte mais profunda da realidade. Qualquer estudo das noções

transcendentais do ser acaba por chegar a uma consideração desse tipo, uma vez que se trata de

noções comuns aplicáveis a tudo que é, tudo que deriva de Deus, e suas perfeições à semelhança

de Deus é também de tal modo que podemos até nomear Deus a partir delas, por via de

predicação analógica. Falar de ser, unidade, verdade e bondade na ordem das coisas deste mundo

significa pensar em um ser complexo e composto que é em cada grau, de algum modo,

ontologicamente causado ou sujeito a outros e interdependente, em coexistência com outros.

Aquilo para o qual isso orienta nossa atenção é algo não-derivado, que deve ter as características

de perfeição pertinentes às estruturas transcendentais da realidade (o primeiro sentido medieval

de ‘transcendental’), de um modo que é eminentemente transcendente (no segundo sentido

medieval indicado), isto é, como referente ao mistério de Deus em si, em sua nobreza

incompreensível e em sua beleza recôndita.

O motivo pelo qual chamo a atenção para esta estrutura transcendental do pensamento no

Aquinate, na forma dupla indicada no início desta apresentação, é que esta forma de penetração

intelectual, tal como vista por ele, também afeta de maneira profundíssima a vida interior e as

aspirações tendenciais da mente e do coração. Toca, portanto, diretamente ao caminho interno

para Deus e a semelhança entre o Aquinate e aqueles pensadores modernos que buscam delinear

a estrutura do sujeito transcendente sempre já ordenado a Deus, ainda que implícita ou

vagamente, em cada aspiração noética à verdade. Permitam-me desenvolver esse ponto

brevemente em três etapas.

Em primeiro lugar, está claro que Tomás começa o estudo da metafísica pelo estudo dos

princípios do ser, não pela consideração das condições epistêmicas do entendimento. Contudo,

ele é bastante claro em relação ao fato de que a busca da mente por compreender a estrutura
causal do campo do ser, a mente entra em contato com a verdade do ser como inteligível e com a

bondade do bem como apetecível. Quando uma pessoa busca a verdade sobre o ser, está na

verdade buscando o bem nato, por antonomásia, da mente humana, e ao buscar a posse da

bondade do ser, está a procurar o bem por antonomásia do coração humano.

Em segundo lugar, encontramos aqui, em Tomás, uma dupla motivação para a busca

dinâmica da verdade e da bondade do ser, conduzindo, mesmo por meio das criaturas, ao desejo

refletido pelo próprio Deus em si mesmo. A pessoa humana, argumenta o Aquinate, é motivada

pela busca por explicações causais das coisas, de tal modo que quando uma explicação causal

nos habilita a alcançar o conhecimento de uma causa por seus efeitos, mas não o conhecimento

da essência daquela causa, em si, nós inevitavelmente desejamos conhecer a causa em si, ver a

essência da causa. Tomás emprega essa argumentação na S.T. Ia, q. 12, a. 1 para argumentar

filosoficamente em defesa do desejo natural de ver a Deus, uma orientação da razão natural

correlata, mas não simplesmente proporcional à esperança cristã na visão beatífica da Trindade

Santa como fim último da existência humana. Noutras palavras, o desejo natural pela verdade

conduz-nos para o alto, mesmo através da nossa consideração de todas as criaturas externamente,

na direção de uma compreensão interior da verdade sobre nós mesmos como entes que

naturalmente desejam ver a Deus, e que são, de maneira inata, configurados pela busca pela

verdade de maneira tal que desejam ver, de maneira indiferenciada, a verdade primeira e

fundamental de toda verdade pertinente à realidade. Isto é exatamente o tipo de realidade que

estamos buscando, de fato, a cada vez que conhecemos ou desejamos conhecer, de modo que

assim como cada ente finito em sua veracidade inteligível é uma participação onológica na

verdade desconhecida transcendente primordial de Deus, assim também cada ato de

conhecimento humano é uma participação noética da forma intelectual criada na vida incriada de
Deus como Verbo ou atualidade pura eterna intelectual. De igual modo, a busca da pessoa

humana pela felicidade, argumenta o Aquinate, é objetivamente dirigida à perfeita posse de um

bem que pode unicamente satisfazer as aspirações racionais da pessoa humana à perfeição

noética, e tal bem deve ser infinito e ilimitado em soberana bondade. Esta realidade é o criador

transcendente inacessível, cuja bondade, nesta vida, nós naturalmente somente possuímos

indiretamente nos bens participados deste mundo, que indicam, de maneira oblíqua, o

fundamento oculto e incriado do nosso ser. E é graças a essa aspiração inevitável da pessoa

humana à felicidade perfeita que a pessoa humana nunca deixa objetivamente de buscar Deus

interiormente, ao menos na medida em que busca a felicidade, mesmo que tal fato possa passar

completamente despercebido à maior parte das pessoas. Tampouco é possível que qualquer bem

finito realmente preencha e satisfaça a pessoa humana. Longe de serem garantia da posse de

Deus, esses impulsos da pessoa humana para o conhecimento contemplativo perfeito de Deus, e

para a pefeita posse do bem são inerentemente desestabilizadores, na ausência da graça e da

Revelação, já que sem estes eles podem logo se desorientar e degringolar em tendências

delirantes. A pessoa humana sem a Revelação tende não somente a não ser um verdadeiro

metafísico, mas além disso, fica facilmente ameaçado de maneira radical por um niilismo ético e

metafísico, precisamente por conta do tipo inerente de nobreza que a pessoa humana possuir

como uma pessoa espiritual dinamicamente orientada. Na falta de Deus, é natural esperar que o

animal metafísico tenda a uma variedade de tipos de niilismo, ao longo de um espectro que

abarca desde as mais políticas até as mais estéticas.

Chegamos à terceira: os hábitos de contemplação e amor ao bem devem ser

aperfeiçoados nos seres humanos pelos hábitos do conhecimento e do amor que proporcionam

estabilidade aos esforços éticos e filosóficos dos seres humanos. Há aqui uma analogia entre a
noção tomasiana de vida espiritual e a virada moderna para o sujeito transcendental, uma vez que

ele entende que o sujeito interior se desenvolve, em e através do trabalho habitual da

contemplação metafísica, tanto quanto numa atividade virtuosa estável, entendida por ele, em

termos agostinianos, como a profunda e obediente prática do amor de Deus e do próximo, na

caridade como forma das virtudes.

Dito tudo isto, é crucial destacar que, para Tomás, nosso caminho externo para deus é

sujeito a limitações genuínas e significativas, uma vez que somente conhecemos Deus por seus

efeitos criados ou por meio deles, de modo que podemos realmente denominá-lo e falar do que

ele é em si, mas não podemos conhecer a realidade que Ele é, a essência incompreensível de

Deus, em si mesma, a partir de Seus efeitos. Tampouco podemos, igualmente, alcançar

internamente aquilo que unicamente fará de nós perfeitamente felizes por meio da visão

contemplativa da essência de Deus e através da plena e imediata posse da bondade transcendente

não-participada de Deus, que é desconhecida por nós e que é a causa de toda bondade criada, a

qual permanece, em ampla medida, insatisfatória para nós.

Neste contexto, é possível um proveitoso recurso à doutrina da conveniência da

encarnação do Verbo, e à sua noção da revelação do caráter trinitário da Imago Dei nas pessoas

humanas. Tomás apresenta muitos argumentos para a sabedoria ou conveniência da encarnação

de Deus numa natureza individual humana, e estes aparecem em particular na S.T. III, q. 1 e 2.

Aqui, encontramos várias referências sobre as vantagens epistêmicas de encontrar Deus

encarnado. A encarnação divina manifesta sua bondade à raça humana. Seu ensino divino

manifestado em palavras, gestos e exemplos humanos torna mais claro e fácil de entender quem

Ele é pela fé. Sua paixão e ressurreição em corpo humano indicam os fundamentos da esperança

e nos torna mais profundamente cientes que Ele nos amou divina e intensamente desde toda a
eternidade. A presença de Deus em nossa natureza humana torna possível a amizade com Deus

de maneira humana, o que é notável, e a Eucaristia é um prolongamento dessa presença ao longo

do tempo, para sustento e fruição da Igreja. De fato, o animal humano é mais bem sustentado em

sua vida espiritual e religiosa por sacramentos e, assim, o Verbo feito carne convenientemente

deixou-nos maneiras sacramentais de encontrar Deus sobrenaturalmente, de modo a podermos

ser elevados ao conhecimento da Trindade e à Sua amizade. Sobretudo: o Filho e Verbo de Deus

veio ao mundo para revelar o Pai e restaurar a humanidade por graça e natureza, à luz do Verbo

eterno, por quem a todas as coisas foi dado o ser. Assim, a marca trinitária em todas as coisas, e

especificamente no ser humano como criatura espiritual, é manifestada aos seres humanos

iluminados por Cristo de um modo que anteriormente era inacessível à compreensão humana.

Este último ponto tem certa importância. Tomás argumenta que a Palavra de Deus

tornada carne carrega consigo, por assim dizer, a presença real das processões eternas incriadas:

o Filho tornado homem não é apenas enviado pelo Pai ao mundo, mas procede eternamente do

Pai, mesmo estando no mundo em forma humana, e o Espírito mandado pelo Pai pelo filho é o

Espirito do Pai e do Filho, que procede eternamente deles dois. Em suma, podemos chegar a

conhecer, a partir do envio da Palavra tornada carne, quem Deus é em si em sua vida

processional eterna, ainda que o conheçamos obliquamente pela fé e por meio da Revelação na

palavra de Deus. Ademais, também podemos chegar a aprender que os seres humanos são

realmente à imagem da Trindade precisamente nesse tipo de vida espiritual interior que, já

notamos, caracteriza nosso movimento dinâmico interiorizados e ascensional de volta à origem

do nosso ser. A autonomia substancial da pessoa humana como um agente que busca o

conhecimento e o amor é uma imagem do Pai eterno, que comunica o ser espiritual e a vida

autônoma à pessoa humana criada à sua imagem. A vida intelectual de busca da verdade e
contemplação é em nós uma imagem do Verbo e Filho, que haure do Pai tudo o que é, como

Sabedoria subsistente, mediante quem todas as coisas são feitas, ao passo que a vida volitiva de

amor e união e felicidade em nós é uma imagem do Espírito Santo, a expiração incriada de amor

comum ao Pai e ao Filho, o dom incriado de amor mutuo partilhado por eles desde toda a

eternidade.

Essas observações são pertinentes porque insinuam que, para Tomás, dada a Revelação

da Trindade proporcionada na encarnação, podemos entendeer a causa última do mundo em

termos trinitários e podemos também compreender nossas motivações e nossos ‘eus’ mais

profundos nessa mesma luz. Notei acima que há pelo menos quatro requisitos fundamentais para

qualquer teologia que aspire a ser universalmente útil à Igreja ou sua doutrina comum a respeito

da natureza de Deus: primeiro, um registro metafísico capaz de pensar Deus filosoficamente;

segundo, uma capacidade de pensar universalmente todas as coisas à luz de Deus e unir todas as

disciplinas de ensino; terceiro, uma capacidade de conceber a vida interior das processões em

Deus trindade, de modo a contemplar Deus nele mesmo efetivamente na fé usando a raazão

filosófica a serviço da teologia, e, quarto, uma capacidade de compreender adequadamente a

encarnação como a presença de Deus na natureza humana. S. Tomás, de uma maneira distinta da

de Boaventura, é bem sucedido em todos estes aspectos. Ele o faz, contudo, elaborando uma

explicação muito mais extensa e detalhada das fontes históricas para a doutrina sobre Deus

(escriturística, patrística e conciliar) e um estudo mais intenso das dimensões filosófica e

teológica da pessoa humana, em sua teoria aristotélica do conhecimento humano, em sua

compreensão hilemórfica da pessoa humana (como substância una que é composto de alma e

corpo), em seu estudo profundo das ações, virtudes e leis próprias ao florescimento da pessoa

humana, e em suas explicações ricas e minuciosas da filosofia da natureza e da metafísica, assim


como de sua teologia sacramental. Ao menos nestes aspectos, a amplitude e penetração

intelectual intensivos desta visão teológica e filosófica parecem exceder até mesmo a de

Boaventura.

IV. A questão da teologia de Tomás de Aquino na Era Moderna

Como podemos então retornar à questão da era moderna? Será que S. Tomás pode ainda

hoje ser um doutor comum na Igreja a respeito da natureza de Deus ? Para responder a essa

pergunta, procedamos em três passos. Primeiro, a ênfase posterior de Tomás no caminho

interior para Deus, visto à luz de sua ênfase anterior dos elementos metafísicos e transcendentais

do ser, é decididamente de importância moderna. Em uma era em que seres humanos amiúde

reorientar suas tendência inatas à verdade na explicação, à contemplação e à felicidade mediante

a posse do bem numa direção oposta ao desejo natural de conhecer e se unir a Deus, torna-se

importante disgnosticar e compreender os hábitos interiores de desorientação. Nem figuras

destacadas e influentes como Karl Rahner ou Reginald Garrigou-Lagrange dedicaram tanto

tempo à prioridade existencial do exercício do amor na formação dos hábitos da mente quanto

seria conveniente ou necessário numa época caracterizada por um secularismo e uma indiferença

ou alienação em relação às explicações religiosas acerca da existênciaa humana. Saiba o que uma

pessoa ama, e você saberá a que se volta seu olhar. Conserte e afine as cordas do coração e o

olhar da pessoa humana se elevará também. Neste sentido, considero que a antropologia de

Tomás traz consigo alguns recursos para explicar e analisar a banalidade viciosa da pessoa

moderna, confusa ou desinteressada, e, além disso, possibilita-nos articular uma declaração de

motivos para a busca religiosa que é desenvolvida de maneira insuficiente por esses nossos dois

interlocutores do séc. XX. A mesma idéia têm aplicações em teologia política, dado que a

inclinação objetiva da pessoa humana para Deus em S. Tomás aponta diretamente para a noção
de Garrigou-Lagrange do pensamento religioso católico como uma filosofia da razão pública, ao

passo que a noção tomasiana de orientação volitiva da razão rumo a Deus ou para longe d’Ele

baseada nos movimentos do coração fala para a preocupação de facto em trabalhar a parir das

liberdades humanas e neles, por mais feridas que estejam, a fim de convidar e informar os

amores mais íntimos das pessoas humanas e de suas sociedades na direção de uma conversão

real e perfeita. O Direito pode ser útil e até necessário para tal, assim como a argumentação

racional, mas são também sempre secundários face à ontologia mais profunda da conversão

pessoal, que é tanto individual como sócio-coletiva.

Em segundo lugar, Tomás é nitidamente útil para nós hoje precisamente porque ele

argumenta que a ordem real externa do mundo convida a mente a voltar seu olhar para cima, na

direção do horizonte transcendente, fonte e fim de todas as coisas, que é Deus. Embora isso

possa ter parecido uma fraqueza na época de Karl Rahner, em que a antropologia kantiana tinha

uma influência desproporcional na universidade moderna, é-nos possível afirmar, com confiança,

hoje, que, por um lado, os modos metafísicos de argumentação desfrutam hoje de um novo

apreço nas sociedades filosóficas internacionais, que são menos homegêneas metodologicamente

do que em qualquer época nos séculos recentes. Porém, ao mesmo tempo, a ascensão do ateísmo

na cultura acadêmica filosófica moderna é indubitável, de modo que a necessidade de justificar a

argumentação por parte de teólogos é indiscutível. O meio-termo agnóstico de Kant e o paradoxo

existencial de Rahner são mais difíceis de manter agora, sociologicamente, e tal situação nos

convida a abraçar a opção mais firme de simplesmente retornar às abordagens metafísicas

clássicas a Deus e, com Tomás, considerar novamente os caminhos externos, em diálogo com

pontos de vista filosóficos alternativos.


Em terceiro lugar, a doutrina tomasiana da Encarnação e da Trindade tem a tremenda

vantagem, em relação a uma sociedade pluralista, de ser altamente inteligível, cogente e

defensável, e dizer respeito a características que são inquestionavelmente definitivas da

identidade cristã e centrais a ela. É justamente pelo fato de ele ser capaz de entender algo do

mistério eterno da vida processional em Deus por meio das formas teológicas analógicas de

reflexão, que lhe permitem dizer de que maneira a vida Trinitária é eternamente imutável, Tomás

também compreende algo acerca de Deus que foi revelado na economia intratrinitária pelas

missões do Filho e do Espírito. Ele o faz sobre o pano de fundo de uma filosofia que aspira ao

conhecimento de Deus, mas que não é capaz de alcançar totalmente aquilo que deseja, de modo

que a luz mais elevada do conhecimento da Trindade eterna aparece como uma realização e uma

vantagem aindda maior da Revelação sobrenatural em relação àquilo que é derivado da razão

natural, mas perfectivo da razão natural em sua própria linha de raciocínio e desejo tendencial.

Igualmente, as doutrinas sobre a Trindade e de Jesus Cristo tais como compreendidas

pelo Aquinate permitem uma releitura, a partir do interior, de toda experiência humana, inclusive

a visão antropológica de homem acima referida, que é tão incisiva e específica da visão teológica

e filosófica de Tomás. Às vezes se diz que neste começo do terceiro milênio vivemos numa

época caracterizada não por uma controvérsia acerca da natureza de Deus, da Santíssima

Trindade, revelada em Cristo, como no caso dos séculos IV-VII, nem por uma controvérsia a

respeito da Igreja ou dos Sacramentos, como no século XVI, mas uma nova controvérisa, ainda

em curso, a respeito da natureza da pessoa como animal espiritual corporificado, caracterizado

por uma complementaridade bipolar macho/fêmea e capacidade reprodutiva para transmitir a

vida humana de maneira responsável, como entes feitos à imagem e semelhança de Deus. Esta

visão antropológica parece questionável e sujeita a uma nova plasticidade nesta era tecnológica,
caracterizada por novas formas de ceticismo filosófico e pela influência de um cálculo moral

comum que visa sobretudo à expansão permissiva de liberdades em nome da aceitação pública

da inclusão coletiva, da terapia subjetiva, e da ocasião para a construção de um consenso social.

Numa época como esta, como nós, em primeiro lugar, tratamos a questão da natureza humana e

da identidade pessoal filosoficamente e, em segundo, fazemos uma releitura delas à luz dos

grandes princípios trinitário e cristológico do cristianismo? Também para este proposito, a

doutrina de Tomás é comprovadamente utilíssima. Deste modo, mesmo no início do terceiro

milênio, ou talvez especialmente nesta encruzilhada da história e da cultura, seu pensamento

parece apto a desempenhar na Igreja um papel de doutor comum para a doutrina sobre Deus.

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