Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1
JOÃO ESCOTO ERIÚGENA
A DIALÉCTICA
A disciplina da dialéctica está dividida em duas partes: a e a A possui
o poder da divisão, divide, de cima para baixo, a unidade dos géneros superiores até chegar às espécies
individuais, que põem termo a essa divisão. Encontradas as divisões das partes, a , pelo
contrário, começando pelos indivíduos que recolhe e unifica, ascende pelos mesmos patamares que a
desceu, reconduzindo tudo à unidade dos géneros mais superiores. Por isso, diz-se redutiva ou
restitutiva. JOÃO ESCOTO ERIÚGENA, Expositiones in Ierarchiam Coelestem, 184c-185a.
Segue-se que não devemos entender Deus e a criatura como duas realidades distintas uma da outra, mas
como uma e a mesma. Pois, a criatura subsiste em Deus e Deus cria-se na criatura de um modo maravilhoso
e inefável, manifestando-se a si próprio; o Deus invisível torna-se, então, visível e o Deus incompreensível
torna-se compreensível, o abscôndito revelado, o incognoscível cognoscível, o desprovido de forma e de
espécie torna-se formoso e especioso, o supra-essencial essencial, o sobrenatural natural, o simples
composto, o desprovido de acidentes torna-se sujeito de acidentes e no próprio acidente, o infinito finito, o
incircunscrito circunscrito, o supra-temporal temporal, o Deus que subsiste para lá do lugar torna-se local,
o Deus criador de todas as coisas torna-se criado em todas as coisas, e o Deus que faz todas as coisas torna-
se feito em todas as coisas, e o eterno começa a existir, e o imóvel começa a mover-se e todas as coisas, e
Deus torna-se tudo em tudo. JOÃO ESCOTO ERIÚGENA, De divisione naturae III, 678c.
2
JOÃO ESCOTO ERIÚGENA
Os cinco modos de ser e não-ser
3
JOÃO ESCOTO ERIÚGENA
O círculo neoplatónico da processão-retorno
4
5
INTRODUÇÃO
João Escoto Eriúgena nasceu na Irlanda (Eire, daí Erígena ou Eriúgena), entre 800
e 810. Em 846-7 entra para a corte, itinerante, de Carlos o Calvo, onde tem
funções de mestre de artes liberais na escola palatina.
Tradutor de padres gregos, entre 862 e 866: corpus completo de Dionísio pseudo-
Areopagita, Ambigua eQuestiones ad Thalassium de Máximo o Confessor, De
hominis opificio de Gergório de Nissa.
6
COMENTÁRIO DE TEXTO
IDEALISMO
A divisão entre ser e não ser funda-se apenas nas capacidades da mente
[animus] humana:
7
SER E NÃO SER
Pensando muitas vezes e estudando com a maior diligência que posso a primeira e
suprema divisão de todas as coisas que, ou estão ao alcance de nossa mente, ou
a superam – as coisas que são e as que não são […].
M – Que assim seja. Antes, porém, creio que devemos dizer umas palavras a
respeito desta que chamamos a divisão suprema e principal de todas, a saber, a
divisão entre as coisas que são e as que não são. […]
Eriúgena não só acolhe o não ser como alvo do seu pensamento, transbordando
assim os limites da ontologia,
… como torna a distinção entre ser e não ser relativa de diversas perspectivas.
M – Pois bem, esta diferença fundamental que separa todas as coisas [as que são
das que nãos são ] requer cinco modos de interpretação [interpretationis modos].
Eriúgena oferece várias vias de ler a distinção entre o ser e o não ser, às quais
chama modi, modo de ser e não ser.
________
O primeiro parece ser aquele pelo qual a razão nos persuade de que todas as
coisas que caem sob a percepção dos sentidos corporais ou da inteligência se
dizem com verdade e racionalmente que são e, ao contrário, as que pela excelência
de sua natureza escapam à percepção não só de todo o sentido, mas de todo
entendimento e razão, parecem com razão que não são, o que não tem recta
interpretação senão só em Deus e nas razões e essências de todas as coisas por ele
criadas. E com razão, pois, como diz Dionísio Areopagita, aquele, que é o único
que verdadeiramente é, é a essência de todas as coisas, “pois – diz ele – o ser de
todas as coisas é a divindade que está sobre o ser”.[…]
Primeiro modo. Este modo distingue ser e não ser, como as coisas que são
compreensíveis para os sentidos e para o intelecto, e as coisas que estão para lá de
todo o entendimento humano.
Ser - aquilo que é percebido pelos sentidos corpóreos ou pela inteligência: como
tudo quanto é criado.
8
As próprias essências das coisas são não ser porque escapam à razão. Escapam
à razão porque são o próprio Divino: Deus é a essência de todas as coisas.
(Pseudo-Dionísio).
Não ser não significa aqui privação de ser mas superioridade (ou excelência)
relativamente ao ser ou às capacidades cognitivas humanas: aquilo que “pela
excelência de sua natureza escapam à percepção”.
Esta distinção assenta uma vez mais na razão: “a própria mente persuade que
algo é e que algo não é” .
________
Seja o segundo modo de ser e não-ser o que se percebe nas ordens e diferenças
das naturezas criadas. Por um maravilhoso modo de entender as coisas, cada
ordem, incluindo a que ocupa o grau ínfimo – que é o dos corpos, no qual chega
a seu termo toda a divisão – pode-se dizer que é e que não é. Com efeito a
afirmação do inferior é a negação do superior e, do mesmo modo, a negação do
inferior é a afirmação do superior e vice-versa, a afirmação do superior é a negação
do inferior, e a negação do superior é a afirmação do inferior. E assim a afirmação
do homem, ainda mortal, é a negação do anjo, e a negação do homem é a afirmação
do anjo, e vice-versa. […] Esta é, pois, outra razão, pela qual toda a ordem racional
ou intelectual se diz que é e que não é: é, enquanto é conhecida pelas ordens
superiores ou por si mesma: não é, enquanto não se deixa compreender pelas
inferiores.
O segundo modo de ser e não ser deixa-se ver “nas ordens e diferenças das
naturezas criadas”.
9
O cosmos neoplatónico organiza-se segundo graus ontológicos (do corpo ao
anjo).
Se de um dos graus ontológicos se diz que é, dos superiores e dos inferiores diz-
se que não são.
Este modo de divisão aplica-se apenas ao ser criado. Ser e não ser aplica-se no
âmbito das ordens hierárquicas do cosmos criado.
O universo criado comporta assim ser e não ser. Tudo é e não é. Tudo é aquilo
que é e não é aquilo que não é.
Esta tese traz consigo a relatividade (ou perspectivismo) do ser. Uma coisa é e
não é dependendo do ponto de vista ou perspectiva dentro da escala ontológica que
se adopta: ou seja, cada ordem do ser é e não é, dependendo do grau ontológico a
partir do qual se perspectiva.
E neste sentido o totalmente nada (omnino nihil) ou Deus pode dizer-se para além
do ser e do não ser.
________
O terceiro modo pode justamente ser visto nas coisas que constituem a plenitude
deste mundo visível, e nas causas que as precedem no seio [sinibus] mais secreto
da natureza. Com efeito, a tudo o que se conhece como procedendo destas causas
por via de geração na matéria e na forma, no tempo e no lugar, chama-se “ser”,
10
em virtude de uma convenção da linguagem humana. Em contrapartida, a tudo o
que está ainda pré-contido nesse seio da natureza e que não aparece, nem na
forma ou matéria, nem no lugar ou tempo, nem em nenhum dos outros acidentes,
chama-se, em virtude da mesma convenção de linguagem humana, “não ser”. […]
Ser – coisas em acto, as coisas que existem são, a natureza visível, o que aparece;
Não ser – coisas em potência, as coisas que ainda não existem não são, as causas
da natureza, o que está ainda escondido na sua causa, o que ainda não aparece.
Sinus (in secretis sinibus naturae). Sinus (sinuosidade): a dobra a partir da qual
se desdobra o ser. (o seio – sinuosidade, curva – ventre, coração, o lugar
recôndito, mas fecundo de onde emerge tudo quanto é).
O efeito que a causa não produziu, está em potência na causa (no seio da causa)
e ainda não é.
As causas, neste contexto, parecem não existir. Apenas o que procede no tempo
e no espaço, na forma e na matéria, existe: logo, apenas a natureza sensível
existe.
________
11
O quarto modo de divisão entre ser e não ser é profundamente platónico. De facto
Eriúgena associa-o ao “pensamento dos filósofos”.
Segundo este modo, pois, o ser das coisas é ser conhecido pelo entendimento.
________
O quinto modo de divisão entre o ser e o não ser parece obedecer mais a um
critério moral ou teológico do que propriamente a um critério ontológico.
12
________
- Deus que possui todos os seres (ser) e as criaturas (como mero nada)
- Substância (ser) acidentes (não ser). Cunho aristotélico.
13
IDEALISMO ERIUGENIANO
A divisão entre ser e não ser funda-se apenas nas capacidades da mente [animus]
humana:
Para Eriúgena, o a dialéctica do ser e não ser é compreendida nos termos da dialéctica
do conhecimento e da ignorância.
«Mestre – Pensando muitas vezes e estudando com a maior diligência que posso a
primeira e suprema divisão de todas as coisas que, ou estão ao alcance de nossa
mente, ou a superam – as coisas que são e as que não são –, veio-me à mente,
como termo geral para designá-las, o grego physis e o latim natura. […]
M – Ficamos então de acordo que o nome de natureza é o nome geral tanto para
as coisas que são como para as que não são?
D – Sim, pois nada pode apresentar-se ao nosso pensamento a que não possa
aplicar-se este nome.
1
“Saepe mihi cogitanti, diligentiusque quantum vires suppetunt inquerenti, rerum omnium, quae vel animo
percipi possunt, vel intentionem ejus superant, primam summamque divisione esse in ea quae sunt, et ine
ea quae non sunt, horum omnium generale vocabulum occurrit, quod graece φύσις´, latinevero natura
vocicatur.” (Periphyseon, 441a)
14
se deixa configurar antes como uma physiologia (ou ciência da natureza),
cativando, na sua esfera de perscrutação, o próprio não-ser, a par do ser2.
ONTOLOGIA E MEONTOLOGIA
Eriúgena ocupa-se não apenas de uma ontologia (ciência do ente: particípio
presente do verbo ser), mas de uma ontologia a par de uma meontologia (me: não
em grego).
Eriúgena acolhe também o não ser como alvo do seu pensamento, transbordando
assim os limites da ontologia.
PERSPECTIVISMO DO SER
Eriúgena torna a distinção entre ser e não ser relativa de diversas perspectivas.
Esta relatividade do ser impede Eriúgena de tomar o ser como o objecto da sua
indagação.
2
Periphyseon IV, 741c.
15
AS DIVISÕES DA NATUREZA
IMPOSSIBILIDADE DA DEFINIÇÃO
Perante a extensão absoluta do conceito de natureza, a fisiologia não encontra na
definição o seu método de abordagem.
O QUE É A DEFINIÇÃO
Isto porque a definição necessariamente pergunta pelo género maior no qual a
natureza se pode subsumir (atendendo ao que Aristóteles determina como o
procedimento próprio da definição3), ou pelo lugar que o circunscreve o conceito
de natureza (atendendo ao que Eriúgena concebe como o procedimento próprio da
definição a partir da análise que faz da categoria aristotélica de lugar)4.
Duae quippe partes sunt dialecticae disciplinae, A disciplina da dialéctica está dividida em duas
quarum una , altera partes: a e a
nuncupatur. Etquidem A possui o poder da divisão, divide,
diuisionis uim possidet; diuidit namque de cima para baixo, a unidade dos géneros
maximorum generum unitatem a summo usque superiores até chegar às espécies individuais, que
deorsum, donec ad individuas species perueniat, põem termo a essa divisão. Encontradas as
inque iis diuisionis terminum ponat; divisões das partes, a , pelo contrário,
vero ex aduerso sibi positae partis diuisiones ab começando pelos indivíduos que recolhe e unifica,
indiuiduis sursum uersus incipiens, perque eosdem ascende pelos mesmos patamares que a
gradus, quibus illa descendit, ascendens, cumuoluit desceu, reconduzindo tudo à unidade
et colligit, easdemque in unitatem maximorum dos géneros mais superiores. Por isso, redutiva
generum reducit; ideoque reductiua dicitur seu pode também dizer-se restitutiva.
reditiua.
3
DEFINIÇÃO EM ARISTÓTELES.
4
CITAÇÃO SOBRE O LUGAR COMO DEFINIÇÃO. Sobre o problema da definição da natureza em João
Escoto Eriúgena, cf. OTTEN, Willemien, The Anthropology of Johannes Scottus Eriugena, pp. 13-16.
16
NATUREZA E CRIAÇÃO
Natura: será a tradução latina de physis – o particípio futuro do verbo nascor, ter
nascido: natura: o que há-de nascer: ura imprime na palavra a ideia de
movimento (como escritura).
17
Pellicer (Natura: Etude sémantique et historique du mot latin) desvela vários
sentidos de natureza :
- O princípio material ou vital de uma coisa, o seu carácter inato e as suas
qualidades: o seu ser;
- a lei natural, universal ou moral, o poder ou força criadora, a ordem das
coisas, ou o universo entendido como totalidade.
- Como Boécio (Contra Eutychen et Nestorium I, 25-26), pode também significar
o princípio de crescimento ou nutrição (aquilo que age ou pode sofre a acção de
outro)
Marciano Capella (De nuptiis): natureza é a mãe da geração de todas as coisas
(generationem omnium mater)
Máximo o Confessor descreve a natureza como saída ou processão (proodos) a
partir da substância (ousia), através de estágios, e a reconversão (epistrophé) de
todos os entes individuais na ousia principial. Eriúgena manter-se-á fiel a esta
definição.
________
Eriúgena pretende que esta divisão apareça como lógico, sistemática e exaustiva.
Nesse sentido aplica-lhe o quadrado da oposição aristotélico.
As quatro divisões:
18
4. Natureza que não cria 3. Natureza que é criada e
NÃO CRIADORA e não é criada não cria.
DEUS (CAUSA FINAL) (CRIAÇÃO)
________
O QUADRADO DAS NATUREZAS
M: Penso que a divisão da natureza se faz por quatro diferenças em quatro espécies:
a primeira é a divisão em natureza que cria e não é criada; a segunda, na que é criada
e cria; a terceira, na que é criada e não cria; a quarta, na que não cria e não é criada.
Mas nestas quatro há dois pares de opostos: a terceira se opõe à primeira, e a quarta
à segunda; porém, a quarta fica relegada ao mundo dos impossíveis, visto que é de
sua essência o não poder ser. […]
19
A quatro divisões da natureza existem apenas enquanto percebidas pelo
entendimento e traduzem como actos do entendimento.
Eriúgena está interessado nestas divisões da natureza porque elas oferecem uma
estrutura ou um paradigma pelo qual o entendimento entende o jogo anárquico
da natureza infinita nas suas múltiplas manifestações, que continuam
eternamente e, de facto, constituem o sentido da vida eterna.
Portanto, a hierarquia não significa apenas uma série de graus ontológicos, mas
uma ciência mental.
1ª) a natureza criadora não criada (ou seja, Deus como a causa de todas as coisas);
2ª) a natureza criadora criada (ou seja, as causas primordiais, ou protótipos criados
em Deus por Deus, como ideias divinas, as quais, por sua vez, criam em si
próprias o mundo);
3ª) a natureza não criadora criada (isto é, a criação ou os efeitos sensíveis e
inteligíveis das causas primordiais);
4ª) a natureza não criadora nem criada (sed quarta inter impossibilia ponitur, cuius
esse est non posse esse. Deus como causa final)5.
A natureza que cria e não é criada identifica-se com Deus, a causa incausada que
cria todas as coisas.
5
Múltiplos são os lugares de Periphyseon, nos quais a divisão quadripartida da natureza desponta. Na sua
primeira ocorrência, contudo, não está ainda consumada a clarificação da 4ª natureza enquanto Deus na sua
dimensão de causa final. Cf. 441b-442b. Cf. ainda sobre a divisão quadriforme da natureza: 523d-528c;
1019a-10-20b. Devemos esta explicitação à sistematização de Erismann: ERISMANN, Cristophe,
L’homme commum. La genèse du réalisme ontologique durant le haut Moyen Âge, Paris, Vrin, 2011, p.
204.
20
- Teologia negativa: Deus é descrito negativamente negando dele todas as coisas
que são.
- Teologia superlativa, dizendo que os atributos que se lhe aplicam existem nele
de uma forma superior.
De Deus, que não é criado mas cria, procede a natureza que é criada e cria.
Como em Deus não há tempo, as causas primordiais são coeternas com Deus.
Das causas primordiais procede a natureza que é criada mas não cria.
A quarta divisão da natureza (a natureza que não cria e não é criada) refere novamente
Deus.
Mas enquanto que a primeira divisão se referia a Deus como a fonte de todas as coisas,
Deus é agora entendido como o fim último ao qual todas as coisas regressam.
Descrito como deficação, este retorno não comporta a obliteração da distinção de todas
as distinções entre Deus e as criaturas.
21
Ainda que a matéria mutável desapareça, nem o homem nem Deus se tornam idênticos a
Deus.
O DINAMISMO DA NATUREZA
A estrutura do universo que Escoto Eriúgena descreve de acordo com este esquema é
baseado na especulação neoplatónica.
22
Com a real coincidência de princípio e fim, a relacionalidade entre as quarto
divisões forma uma circularidade dinâmica. de tipo neoplatónico: processão e
retorno (proódos e epistrophé).
PROCESSÃO E CONVERSÃO
As primeiras três formas representam Deus desdobrando-se na criação, enquanto a
quarta conclui o movimento de retorno da natureza.
TOTALIDADE E DESENVOLVIMENTO
A natureza não representa apenas um todo cosmológico, mas também uma linha
de desenvolvimento.
CÍRCULO DA PROCESSÃO/RETORNO
A estrutura quadrífida implica, em rigor, um compasso quaternário recondutível
ao círculo da processão/retorno, onde a processão se deixa retratar pelo
dinamismo que atravessa as três primeiras formas da natureza (de Deus às causas
primordiais e das causas primordiais à totalidade dos efeitos visíveis e inteligíveis),
e onde o retorno se deixa consagrar na quarta natureza ou na Divindade, para a
qual todas as criaturas tendem e na qual todas as criaturas encontram o seu
repouso6.
6
Cf. Periphyseon, 1019a-1019c.
23
CIRCULO DA PROCESSÃO-RETORNO E/OU CÍRCULO DA DIALÉCTICA
PROCESSÃO/RETORNO E DIVISÃO/ANÁLISE
Poderíamos, é certo, vislumbrar no coração do dinamismo processão/retorno a
simples tradução ou projecção na natureza do pensamento dialéctico, no seu
processo binário de divisão e análise.
IDEALISMO DIALÉCTICO?
24
A dialéctica desvenda-se e alcança validade, para lá dos confins da mente
humana, como estrutura inerente à própria natureza.
IDEALISMO TEMPERADO
9
Sobre este assunto, cf. OTTEN, Willemien, The Anthropology of Johannes Scottus Eriugena, pp. 39-47.
25
A UNIDADE DAS NATUREZAS: NÃO CRIADA CRIADORA E NÃO CRIADA
NÃO CRIADORA
A primeira e a quarta formas podem apenas ser predicadas de Deus; não que a sua
natureza possa ser dividida, visto que é simples e mais do que simples; mas pode
ser entendida segundo dois modos de contemplação. Pois, quando considero que
esta mesma natureza divina é o princípio e a causa de todas as coisas, a verdadeira
razão convence-me de que a essência ou a substância divina, a bondade, a virtude,
a sabedoria e as outras coisas que se podem predicar de Deus não foram criadas por
ninguém, porque nada de superior precede a natureza divina; mas, todas as coisas
– aquelas que são e aquelas que não são – foram criadas a partir dela, por ela, nela
e para ela. Quando, no entanto, considero essa mesma natureza como fim e término
intransponível de todas as coisas, pela qual todas as coisas têm apetite [appetunt] e
na qual todas as coisas encontram o limite do seu movimento natural, percebo que
essa natureza divina, nem é criada, nem criadora. Com efeito, esta natureza, que é
de si própria [a seipsa], não pode ser criada por ninguém, nem cria coisa alguma.
Na verdade, quando todas as coisas que procederam [processerunt] da natureza
divina por geração inteligível ou sensível, regressarem a ela por uma regeneração
miraculosa e inefável, e todas as coisas tenham encontrado repouso nela, então,
nada de ulterior fluirá a partir [profluet] dela por geração, diz-se então que nada
criará. Com efeito, que criará a natureza divina, quando a própria natureza divina
for tudo em todas as coisas e em nenhuma das coisas aparecer senão ela própria?
26
O CARÁCTER IDEALISTA DAS 4 DIVISÕES DA NATUREZA
O esquema hierárquico da natureza deve ser entendido não como um conjunto fixo
de graus metafísicos mas, antes, como um conjunto de theoriae, ou actos mentais
de contemplação intelectual, que permite à subjectividade humana entrar na
infinita subjectividade e nada divinos.
As quatro divisões da natureza existem apenas enquanto são vistas pela mente e
são resolvidas pela mente em actos do intelecto. Eriúgena está interessado nestas
divisões da natureza porque elas oferecem uma estrutura ou paradigma através do
qual a mente consegue entrar e atingir o jogo anárquico da natureza infinita nas suas
múltiplas manifestações.
Do mesmo modo que a pluralidade desvelada não implica uma real fragmentação
divina, o decurso de um deus que
1) se resguarda no seu segredo,
2) que de seguida se cria ou aparece na totalidade das coisas criadas,
3) para, por fim, se pôr como meta do movimento de todas as coisas aparentes,
10
Pelo menos, à luz da interpretação de Stephen Gersh: 154.
11
Periphyseon II, 523d, 524d, 527b, 528a.
12
Periphyseon III, 527b, 688b.
27
A REINTERPRETAÇÃO DO CÍRCULO DA PROCESSÃO RETORNO
A intimidade do processo/retorno
A processão (ou criação) entende-se como a auto-manifestação do divino. A
criação é, em rigor, auto-criação do Divino. O Divino que não é dá entrada, por
via da criação, na esfera do ser.
Como fim, como tudo em todas as coisas, o infinito divino não se posiciona como
o negativo da criatura (do fenómeno), transcendendo toda a criação, mas como
o efectivo (o já positivo) e operando em tudo...
28
O CARÁCTER IDEALISTA DA DIALÉCTICA DA NATUREZA
HOMEM: CONVERSÃO
Todavia, a confirmação do homem, como protagonista da conversão última de
todas as coisas a Deus, não assegura ainda que a processão de todas as coisas, a
partir de Deus, possa também ela ser entrevista a partir de um puro ponto de vista
humano.
ESTÁGIOS DA CONTEMPLAÇÃO
É, pois, a própria contemplação que, em diferentes estágios da sua história circular,
ora depreende Deus para lá dos limites da sua compreensão (como não-ser), ora
surpreende Deus em todas as coisas que compreende (como tudo em todas as
coisas).
A NOITE E O DIA
A imagem que Escoto Eriúgena nos oferece da sucessão da noite e do dia torna
nítido o que aqui tentamos explicitar. De facto, ninguém negará que noite e dia,
treva e luz, correspondem a dois momentos bem diferenciados e cronologicamente
consecutivos no circuito de um só dia. Contudo, “[…] é apenas em referência aos
habitantes da terra, que sofrem a alternância dos dias e das noites, que as luminárias
13
Aqui, com efeito, Eriúgena declara que Deus é tudo em todas as coisas no instante preciso da criação:
Periphyseon INSERIR REFERÊNCIA.
29
celestes fazem intervir uma separação entre a luz e as trevas”14. As luminárias
celestes, essas, brilham, como Deus, sem intermitência, sem ocaso nem aurora. E a
sucessão do dia à noite, da luz à treva, implanta-se no ponto de vista do próprio
homem. Afinal, a treva que Deus é, nenhuma privação de luz conota e, nesse
sentido, nenhuma oposição real ela depõe contra a presença da luz. Pelo contrário,
a treva é, ela própria, luz, uma luz superluzente que excede, por ora, a visão humana.
14
“Terrenis itaque habitatoribus, quibus per vicissitudines dieis noctesque proveniunt, caelestia luminaria
lucem dividunt a tenebris” (Periphyseon III, 727c).
15
A língua portuguesa, como decerto muitas outras línguas modernas, continua aliás habitada por esta
mesma visão.
16
PIEMONTE, Gustavo, “Image et contenu intelligible”, Bregriff und Metapher. Sprachform des Denkens
bei Eriugena, Herausgegeben vib Werner Beierwaltes, Heidelberg, Carl Winter Universitätsverlag, 1990,
p. 93.
17
“Ubique enim in mundo este plena semper et integra, nullum locum deserens uel appetens praeter
portiunculam quandam inferioris huius aeris curca terram quam ad capuendam umbram telluris quae nox
dicitur reliquat. Omnium tamen animalium lumen sentire ualentium obtutus mouet et ad se ipsam attrahit
ut per eam aspiciant quantum aspicere possunt. Ideoque moveri putatur quia radios oculorum et ad se
moueantur permouet, hoc est oculorum motionis ad uidenum causa est.“ (Periphyseon I, 520d-521a).
30
METAFÍSICA E/OU ANTROPOLOGIA
O intuito, em tudo isto, visado, não exige, porém, a diluição da metafísica
eriugeniana nos contornos antropológicos de uma ciência do conhecimento.
Procurámos, isso sim, sublinhar apenas a radicação da investigação filosófica
eriugeniana na perspectiva específica da criatura racional.
31
Annotations on Martianus Capella, while interpreting the name of Psyche’s mother,
Endelecheia, Eriugena renders it as Entelecheia, advancing its multiple meanings:
“perfect age”, according to Calcidius, “absolute perfection”, according to Aristotle,
“world’s soul”, according to Plato. At the same time, Eriugena recover endelecheia’s
etimology, endos lechia, as intimate age, in order to stress the spiritual, not corporeal
absolute perfection of entelecheia. This offers us a grasp of Eriugena’s distinction
between energeia and entelecheia, whether it remains faithful to Aristotle’s own concepts
or not, and helps us understand why the term energeia is removed from the explanation
of the fourth nature. Indeed, the fourth nature is repeatedly addressed to as plenitudo
aetatis, or perfecta aestas (plenitude of age or perfect age), which is tantamount with
Eriugena’s understanding of entelecheia. Energeia, on the other hand, is always
correlated to dunamis, and comprises a sense of motion, operation, of a work being done,
or of a potency being fulfilled, while entelecheia rejects any kind of motion, and
consequently, any kind of potentiality, designating the persisting being-at-an-end.
32