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JOÃO ESCOTO ERIÚGENA

Os cinco modos de ser e não-ser e a natureza comum


«Mestre – Pensando muitas vezes e estudando com a maior diligência que posso a primeira e suprema
divisão de todas as coisas que, ou estão ao alcance de nossa mente, ou a superam – as coisas que são e as
que não são –, veio-me à mente, como termo geral para designá-las, o grego physis e o latim natura. […]
M – Ficamos então de acordo que o nome de natureza é o nome geral tanto para as coisas que são como
para as que não são?
D – Sim, pois nada pode apresentar-se ao nosso pensamento a que não possa aplicar-se este nome.
M– Já que estamos de acordo que este termo é geral, diz-me, te rogo, como se faz a divisão em espécies e
por diferenças: ou, se preferes, procurarei eu fazer tal divisão e tu darás depois tua opinião a respeito. […]
M – Penso que a divisão da natureza se faz por quatro diferenças em quatro espécies: a primeira é a divisão
em natureza que cria e não é criada; a segunda, na que é criada e cria; a terceira, na que é criada e não cria;
a quarta, na que não cria e não é criada. Mas nestas quatro há dois pares de opostos: a terceira se opõe à
primeira, e a quarta à segunda; porém, a quarta fica relegada ao mundo dos impossíveis, visto que é de sua
essência o não poder ser [sed quarta inter impossibilia ponitur, cuius esse est non posse esse]. […]
D – Percebo-as claramente. Porém, deixa-me muito perplexo a quarta espécie que introduziste. Das outras
três não me atreveria a apresentar qualquer dúvida, já que na primeira está designada, se não me engano, a
causa de tudo quanto existe e de que não existe; na segunda, as causas primordiais; na terceira, aquelas
coisas que se manifestam através de geração no tempo e no espaço. Por isso, penso que é necessário partir
para uma discussão mais detalhada de cada espécie. […]
M – Que assim seja. Antes, porém, creio que devemos dizer umas palavras a respeito desta que chamamos
a divisão suprema e principal de todas, a saber, a divisão entre as coisas que são e as que não são. […]
M – Pois bem, esta diferença fundamental que separa todas as coisas requer cinco modos de interpretação.
O primeiro parece ser aquele pelo qual a razão nos persuade de que todas as coisas que caem sob a percepção
dos sentidos corporais ou da inteligência se dizem com verdade e racionalmente que são e, ao contrário, as
que pela excelência de sua natureza escapam à percepção não só de todo o sentido, mas de todo
entendimento e razão, parecem com razão que não são, o que não tem recta interpretação senão só em Deus
e nas razões e essências de todas as coisas por ele criadas. E com razão, pois, como diz Dionísio Areopagita,
aquele, que é o único que verdadeiramente é, é a essência de todas as coisas, “pois – diz ele – o ser de todas
as coisas é a divindade que está sobre o ser”.[…]
Seja o segundo modo de ser e não-ser o que se percebe nas ordens e diferenças das naturezas criadas. Por
um maravilhoso modo de entender as coisas, cada ordem, incluindo a que ocupa o grau ínfimo – que é o
dos corpos, no qual chega a seu termo toda a divisão – pode-se dizer que é e que não é. Com efeito a
afirmação do inferior é a negação do superior e, do mesmo modo, a negação do inferior é a afirmação do
superior e vice-versa, a afirmação do superior é a negação do inferior, e a negação do superior é a afirmação
do inferior. E assim a afirmação do homem, ainda mortal, é a negação do anjo, e a negação do homem é a
afirmação do anjo, e vice-versa. […]
O terceiro modo pode justamente ser visto nas coisas que constituem a plenitude deste mundo visível, e nas
causas que as precedem no seio [sinibus] mais secreto da natureza. Com efeito, a tudo o que se conhece
como procedendo destas causas por via de geração na matéria e na forma, no tempo e no lugar, chama-se
“ser”, em virtude de uma convenção da linguagem humana. Em contrapartida, a tudo o que está ainda
pré-contido nesse seio da natureza e que não aparece, nem na forma ou matéria, nem no lugar ou tempo,
nem em nenhum dos outros acidentes, chama-se, em virtude da mesma convenção de linguagem humana,
“não ser”. […]
O quarto modo é o que, com grande verossimilhança no pensar dos filósofos, declara que tão somente são,
no sentido verdadeiro, as coisas que são compreendidas só pelo entendimento, enquanto que aquelas que
sofrem mudanças na geração, se unem e se separam através das expansões e contrações da matéria e dos
intervalos de espaço e tempo, diz-se que não são em sentido verdadeiro, como é o caso de todos os corpos
que estão sujeitos ao nascer e ao perecer.
O quinto modo é o que a razão contempla somente na natureza humana, a qual, ao abandonar pelo pecado
a dignidade da imagem divina em que com toda propriedade subsistiu, merecidamente perdei o ser, e por
isso se diz que não é; enquanto que, uma vez restaurada pela graça do unigénito de Deus, foi reconduzida
ao estado primitivo de sua substância, na qual foi criada à imagem de Deus, começou a ser e inicia a vida
no referido estado […].» JOÃO ESCOTO ERIÚGENA, De divisione naturae I, 441a-445c (adaptação
nossa da tradução de DE BONI, Luis Alberto, “A Divisão da Natureza”, Filosofia Medieval – Textos, Porto
Alegre Edipucrs, 2000, p. 75-83, pp. 72-76).

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JOÃO ESCOTO ERIÚGENA
A DIALÉCTICA
A disciplina da dialéctica está dividida em duas partes: a e a  A possui
o poder da divisão, divide, de cima para baixo, a unidade dos géneros superiores até chegar às espécies
individuais, que põem termo a essa divisão. Encontradas as divisões das partes, a , pelo
contrário, começando pelos indivíduos que recolhe e unifica, ascende pelos mesmos patamares que a
desceu, reconduzindo tudo à unidade dos géneros mais superiores. Por isso, diz-se redutiva ou
restitutiva. JOÃO ESCOTO ERIÚGENA, Expositiones in Ierarchiam Coelestem, 184c-185a.

JOÃO ESCOTO ERIÚGENA


A UNIDADE DA 1ª E DA 4ª NATUREZA
«Mestre: Estabelecemos já a divisão quadriforme da natureza universal, que compreende Deus e a criatura.
A primeira espécie [species] da natureza universal é aquela que considera e distingue a natureza criadora e
não criada, a segunda é aquela que considera e distingue a natureza criada e criadora, a terceira é aquela
que considera e distingue a natureza criada e não criadora, e a quarta é aquela que considera e distingue a
natureza que nem é criada nem criadora. A primeira e a quarta formas podem apenas ser predicadas de
Deus; não que a sua natureza possa ser dividida, visto que é simples e mais do que simples; mas pode ser
entendida segundo dois modos de contemplação. Pois, quando considero que esta mesma natureza divina
é o princípio e a causa de todas as coisas, a verdadeira razão convence-me de que a essência ou a substância
divina, a bondade, a virtude, a sabedoria e as outras coisas que se podem predicar de Deus não foram criadas
por ninguém, porque nada de superior precede a natureza divina; mas, todas as coisas – aquelas que são e
aquelas que não são – foram criadas a partir dela, por ela, nela e para ela. Quando, no entanto, considero
essa mesma natureza como fim e término intransponível de todas as coisas, pela qual todas as coisas têm
apetite [appetunt] e na qual todas as coisas encontram o limite do seu movimento natural, percebo que essa
natureza divina, nem é criada, nem criadora. Com efeito, esta natureza, que é de si própria [a seipsa], não
pode ser criada por ninguém, nem cria coisa alguma. Na verdade, quando todas as coisas que procederam
[processerunt] da natureza divina por geração inteligível ou sensível, regressarem a ela por uma
regeneração miraculosa e inefável, e todas as coisas tenham encontrado repouso nela, então, nada de ulterior
fluirá a partir [profluet] dela por geração, diz-se então que nada criará. Com efeito, que criará a natureza
divina, quando a própria natureza divina for tudo em todas as coisas e em nenhuma das coisas aparecer
senão ela própria.» JOÃO ESCOTO ERIÚGENA, De divisione naturae V, 1019a-1019c.

JOÃO ESCOTO ERIÚGENA


A UNIDADE DA NATUREZA CRIADORA E CRIADA
Ora, se Deus e a criatura são dois, eles devem proceder necessariamente de um. Mas, se Deus não procede
de nenhum princípio, enquanto que a criatura procede de Deus, um provirá de outro, e eles não serão iguais
entre si. Pois, uma unidade não pode gerar outra unidade igual a si. Mas, se a criatura procede de Deus,
Deus será então a causa e a criatura será o efeito. Se, no entanto, o efeito não é senão a sua causa criada,
podemos, então, deduzir que Deus se cria nos seus efeitos. Ora, nada do que procede da causa nos seus
efeitos pode ser estranho a esta causa, tal como no calor e na luz nada mais irrompe do que a própria força
ígnea. JOÃO ESCOTO ERIÚGENA, De divisione naturae III, 687c.

Segue-se que não devemos entender Deus e a criatura como duas realidades distintas uma da outra, mas
como uma e a mesma. Pois, a criatura subsiste em Deus e Deus cria-se na criatura de um modo maravilhoso
e inefável, manifestando-se a si próprio; o Deus invisível torna-se, então, visível e o Deus incompreensível
torna-se compreensível, o abscôndito revelado, o incognoscível cognoscível, o desprovido de forma e de
espécie torna-se formoso e especioso, o supra-essencial essencial, o sobrenatural natural, o simples
composto, o desprovido de acidentes torna-se sujeito de acidentes e no próprio acidente, o infinito finito, o
incircunscrito circunscrito, o supra-temporal temporal, o Deus que subsiste para lá do lugar torna-se local,
o Deus criador de todas as coisas torna-se criado em todas as coisas, e o Deus que faz todas as coisas torna-
se feito em todas as coisas, e o eterno começa a existir, e o imóvel começa a mover-se e todas as coisas, e
Deus torna-se tudo em tudo. JOÃO ESCOTO ERIÚGENA, De divisione naturae III, 678c.

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JOÃO ESCOTO ERIÚGENA
Os cinco modos de ser e não-ser

Modos ser não-ser


1º O inteligível e o sensível O que escapa à inteligência e aos
sentidos
2º O próprio A alteridade
3º Acto Potência
4º Inteligível Sensível
5º Natureza humana perfeita Imperfeição da natureza humana

JOÃO ESCOTO ERIÚGENA


As divisões da natureza

NÃO CRIADA CRIADA

1. Natureza que cria e 2. Natureza que cria e é


não é criada. criada.
CRIADORA
DEUS CAUSAS
(CAUSA EFICIENTE) PRIMORDIAIS

4. Natureza que não cria


3. Natureza que não cria e
e não é criada
NÃO CRIADORA é criada.
DEUS
CRIAÇÃO
(CAUSA FINAL)

3
JOÃO ESCOTO ERIÚGENA
O círculo neoplatónico da processão-retorno

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INTRODUÇÃO

João Escoto Eriúgena nasceu na Irlanda (Eire, daí Erígena ou Eriúgena), entre 800
e 810. Em 846-7 entra para a corte, itinerante, de Carlos o Calvo, onde tem
funções de mestre de artes liberais na escola palatina.

Tradutor de padres gregos, entre 862 e 866: corpus completo de Dionísio pseudo-
Areopagita, Ambigua eQuestiones ad Thalassium de Máximo o Confessor, De
hominis opificio de Gergório de Nissa.

Compõe o Periphyseon (também conhecido como De divisione naturae) entre 864


e 866. Trata-se de um vasto tratado em cinco livros de diálogo entre um Mestre
(Nutritor) e o seu discípulo (Alumnus). A obra é considerada o primeiro grande
sistema metafísico escrito na Idade Média latina.

Schopenhauer e Hegel haverão de demonstrar profundo entusiasmo pela filosofia


de Eriúgena. A edição em 1838 na Alemanha de De divisione naturae conduz a
uma forte disseminação do seu pensamento.

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COMENTÁRIO DE TEXTO

IDEALISMO

«Mestre – Pensando muitas vezes e estudando com a maior diligência que


posso a primeira e suprema divisão de todas as coisas que, ou estão ao alcance de
nossa mente, ou a superam – as coisas que são e as que não são –, veio-me à
mente, como termo geral para designá-las, o grego physis e o latim natura. […]

Eriúgena parece aqui subordinar o ser ao pensamento.

A divisão entre ser e não ser funda-se apenas nas capacidades da mente
[animus] humana:

- ser: o que a mente alcança;


- não ser: o que a mente não alcança.

Para Eriúgena, o a dialéctica do ser e não ser é compreendida nos termos da


dialéctica do conhecimento e da ignorância.

A cosmologia eriugeniana vê-se assim confinada à perspectiva humana: tese


profundamente inovadora e ousada para o seu tempo.

A sua metafísica acolhe assim um carácter idealista que preconiza o pensamento


hegeliano.

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SER E NÃO SER

Pensando muitas vezes e estudando com a maior diligência que posso a primeira e
suprema divisão de todas as coisas que, ou estão ao alcance de nossa mente, ou
a superam – as coisas que são e as que não são […].
M – Que assim seja. Antes, porém, creio que devemos dizer umas palavras a
respeito desta que chamamos a divisão suprema e principal de todas, a saber, a
divisão entre as coisas que são e as que não são. […]

Eriúgena ocupa-se não apenas de uma ontologia (ciência do ente: particípio


presente do verbo ser), mas de uma ontologia a par de uma meontologia (me: não
em grego).

Eriúgena não só acolhe o não ser como alvo do seu pensamento, transbordando
assim os limites da ontologia,
… como torna a distinção entre ser e não ser relativa de diversas perspectivas.

O ser não é por conseguinte o fundamento (ou o elemento base) da sua


metafísica.

M – Pois bem, esta diferença fundamental que separa todas as coisas [as que são
das que nãos são ] requer cinco modos de interpretação [interpretationis modos].

Eriúgena oferece várias vias de ler a distinção entre o ser e o não ser, às quais
chama modi, modo de ser e não ser.
________

O primeiro parece ser aquele pelo qual a razão nos persuade de que todas as
coisas que caem sob a percepção dos sentidos corporais ou da inteligência se
dizem com verdade e racionalmente que são e, ao contrário, as que pela excelência
de sua natureza escapam à percepção não só de todo o sentido, mas de todo
entendimento e razão, parecem com razão que não são, o que não tem recta
interpretação senão só em Deus e nas razões e essências de todas as coisas por ele
criadas. E com razão, pois, como diz Dionísio Areopagita, aquele, que é o único
que verdadeiramente é, é a essência de todas as coisas, “pois – diz ele – o ser de
todas as coisas é a divindade que está sobre o ser”.[…]

Primeiro modo. Este modo distingue ser e não ser, como as coisas que são
compreensíveis para os sentidos e para o intelecto, e as coisas que estão para lá de
todo o entendimento humano.

Ser - aquilo que é percebido pelos sentidos corpóreos ou pela inteligência: como
tudo quanto é criado.

Não ser – aquilo que está para lá de todos os sentidos, ou inteligência


(entendimento e razão): como Deus e as essências.

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As próprias essências das coisas são não ser porque escapam à razão. Escapam
à razão porque são o próprio Divino: Deus é a essência de todas as coisas.
(Pseudo-Dionísio).

Não ser não significa aqui privação de ser mas superioridade (ou excelência)
relativamente ao ser ou às capacidades cognitivas humanas: aquilo que “pela
excelência de sua natureza escapam à percepção”.

Esta distinção assenta uma vez mais na razão: “a própria mente persuade que
algo é e que algo não é” .

Denota-se aqui uma primazia do que é percebido pela percepção humana:


Ser: o que a razão humana percebe.
Não ser: o que a razão humana não alcança.

O ser é portanto determinado por um critério epistemológico.

Este modo de distinção alinha-se com o espírito do neoplatonismo:


- Aquilo que é é alcançável pelo pensamento.
- Deus não é alcançável pelo pensamento e portanto não é.

“O mesmo é ser e pensar” O fr. 3 de Parménides é apropriado por Plotino e legado


a toda a linhagem do Neoplatonismo.

________

Seja o segundo modo de ser e não-ser o que se percebe nas ordens e diferenças
das naturezas criadas. Por um maravilhoso modo de entender as coisas, cada
ordem, incluindo a que ocupa o grau ínfimo – que é o dos corpos, no qual chega
a seu termo toda a divisão – pode-se dizer que é e que não é. Com efeito a
afirmação do inferior é a negação do superior e, do mesmo modo, a negação do
inferior é a afirmação do superior e vice-versa, a afirmação do superior é a negação
do inferior, e a negação do superior é a afirmação do inferior. E assim a afirmação
do homem, ainda mortal, é a negação do anjo, e a negação do homem é a afirmação
do anjo, e vice-versa. […] Esta é, pois, outra razão, pela qual toda a ordem racional
ou intelectual se diz que é e que não é: é, enquanto é conhecida pelas ordens
superiores ou por si mesma: não é, enquanto não se deixa compreender pelas
inferiores.

O segundo modo de ser e não ser deixa-se ver “nas ordens e diferenças das
naturezas criadas”.

Este modo de divisão, supõe uma visão hierarquizada do cosmos (compartilhada


com o neoplatonismo).

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O cosmos neoplatónico organiza-se segundo graus ontológicos (do corpo ao
anjo).

Se de um dos graus ontológicos se diz que é, dos superiores e dos inferiores diz-
se que não são.

Este modo de divisão aplica-se apenas ao ser criado. Ser e não ser aplica-se no
âmbito das ordens hierárquicas do cosmos criado.

O universo criado comporta assim ser e não ser. Tudo é e não é. Tudo é aquilo
que é e não é aquilo que não é.

Esta tese traz consigo a relatividade (ou perspectivismo) do ser. Uma coisa é e
não é dependendo do ponto de vista ou perspectiva dentro da escala ontológica que
se adopta: ou seja, cada ordem do ser é e não é, dependendo do grau ontológico a
partir do qual se perspectiva.

E neste sentido o totalmente nada (omnino nihil) ou Deus pode dizer-se para além
do ser e do não ser.

Este modo de divisão é tipicamente neoplatónico: pois parte de uma concepção


hierarquizada dos cosmos, ordenada do mais elevado ao mais ínfimo grau.

No entanto, a hierarquia eriugeniana distancia-se da hierarquia neoplatónica


onde cada grau contém e produz o grau imediatamente inferior. Neste caso, o
grau superior é sempre mais real do que o inferior (e o grau inferior não negaria o
grau superior mas afirmá-lo-ia). Ora, neste contexto específico da filosofia
eriugeniana, o grau inferior (quando afirmado) nega o superior. O que Eriúgena
faz é estender o procedimento da teologia negativa a todo o cosmos (não
apenas a Deus).

A hierarquia eriugeniana em vez de sublinhar o encadeamento de todos os


seres (à maneira neoplatónica) parece aqui sublinhar a diferença radical de um
por oposição a todos os outros, desenvolvendo-se assim numa dinâmica
dialéctica de ser e não-ser.

Uma vez mais, o ser é relativo do ser conhecido: a ontologia torna-se


dependente do enquadramento epistemológico daquele que assume a
perspectiva.

________

O terceiro modo pode justamente ser visto nas coisas que constituem a plenitude
deste mundo visível, e nas causas que as precedem no seio [sinibus] mais secreto
da natureza. Com efeito, a tudo o que se conhece como procedendo destas causas
por via de geração na matéria e na forma, no tempo e no lugar, chama-se “ser”,

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em virtude de uma convenção da linguagem humana. Em contrapartida, a tudo o
que está ainda pré-contido nesse seio da natureza e que não aparece, nem na
forma ou matéria, nem no lugar ou tempo, nem em nenhum dos outros acidentes,
chama-se, em virtude da mesma convenção de linguagem humana, “não ser”. […]

O terceiro modo de divisão do ser e do não ser fundamenta-se na distinção entre


acto (ou coisa em acto) e potência (coisa em potência).

Ser – coisas em acto, as coisas que existem são, a natureza visível, o que aparece;
Não ser – coisas em potência, as coisas que ainda não existem não são, as causas
da natureza, o que está ainda escondido na sua causa, o que ainda não aparece.

Esta divisão assenta numa convenção humana (humana consuetudine)

Sinus (in secretis sinibus naturae). Sinus (sinuosidade): a dobra a partir da qual
se desdobra o ser. (o seio – sinuosidade, curva – ventre, coração, o lugar
recôndito, mas fecundo de onde emerge tudo quanto é).

O que está nesse seio, não é (potência).

O efeito que a causa não produziu, está em potência na causa (no seio da causa)
e ainda não é.

As causas, neste contexto, parecem não existir. Apenas o que procede no tempo
e no espaço, na forma e na matéria, existe: logo, apenas a natureza sensível
existe.

A natureza humana, se não se materializar no tempo e no espaço, não existe.

Existir é manifestar-se (aparecer).

A causa que não procede no tempo e no espaço não existe.

________

O quarto modo é o que, com grande verossimilhança no pensar dos filósofos,


declara que tão somente são, no sentido verdadeiro, as coisas que são
compreendidas só pelo entendimento, enquanto que aquelas que sofrem
mudanças na geração, se unem e se separam através das expansões e contrações
da matéria e dos intervalos de espaço e tempo, diz-se que não são em sentido
verdadeiro, como é o caso de todos os corpos que estão sujeitos ao nascer e ao
perecer.

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O quarto modo de divisão entre ser e não ser é profundamente platónico. De facto
Eriúgena associa-o ao “pensamento dos filósofos”.

Ser – apenas as coisas compreendidas pelo entendimento (portanto, as coisas


inteligíveis), coisas imutáveis.
Não ser – as coisas que envolvem mudança (ou talvez aquelas que seja apenas
acessíveis através dos sentidos), aquelas que são, por conseguinte, temporais.

Nesta cisão entre o mundo temporal e o mundo eterno, denota-se um pendor


agostiniano.

Este modo inverte o primeiro modo: Deus é, o mundo não é.

Denota-se aqui o idealismo eriugeniano: o ser é chamado ideias, ou o que é


contemplado pelo entendimento.

Segundo este modo, pois, o ser das coisas é ser conhecido pelo entendimento.

________

O quinto modo é o que a razão contempla somente na natureza humana, a qual,


ao abandonar pelo pecado a dignidade da imagem divina em que com toda
propriedade subsistiu, merecidamente perde o ser, e por isso se diz que não é;
enquanto que, uma vez restaurada pela graça do unigénito de Deus, foi
reconduzida ao estado primitivo de sua substância, na qual foi criada à imagem de
Deus, começou a ser e inicia a vida no referido estado […].»

O quinto modo de divisão entre o ser e o não ser parece obedecer mais a um
critério moral ou teológico do que propriamente a um critério ontológico.

Este modo encontra um enquadramento agostiniano: apenas o bem-estar ou o


ser em estado de graça (ser é ser imagem de Deus, conforme a Deus) pode dizer-
se que é, enquanto a natureza caída ou entes machados pelo pecado não são:

Ser – o que está em estado de graça.


Não ser – o que está em pecado.

Esta divisão aplica-se apenas aos seres humanos (e anjos).

Ser – natureza perfeita, graça


Não ser – natureza presente, natureza imperfeita.A imperfeição não é um
atributo que se adiciona ao ser, mas uma deficiência de ser: tese neoplatónica por
excelência do mal: a negatividade do mal.

A imperfeição do homem não é, é uma ausência de ser. Resposta ao


maniqueísmo.

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________

OUTROS MODOS POSSÍVEIS DE DIVISÃO ENTRE SER E NÃO-SER

- Deus que possui todos os seres (ser) e as criaturas (como mero nada)
- Substância (ser) acidentes (não ser). Cunho aristotélico.

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IDEALISMO ERIUGENIANO

Eriúgena parece aqui subordinar o ser ao pensamento.

A divisão entre ser e não ser funda-se apenas nas capacidades da mente [animus]
humana:

- ser: o que a mente alcança;


- não ser: o que a mente não alcança.

Para Eriúgena, o a dialéctica do ser e não ser é compreendida nos termos da dialéctica
do conhecimento e da ignorância.

A cosmologia eriugeniana vê-se assim confinada à perspectiva humana: tese


profundamente inovadora e ousada para o seu tempo.

A sua metafísica acolhe assim um carácter idealista que preconiza o pensamento


hegeliano.

FILOSOFIA COMO PHYSIOLOGIA: A NATUREZA PARA LÁ DO SER

«Mestre – Pensando muitas vezes e estudando com a maior diligência que posso a
primeira e suprema divisão de todas as coisas que, ou estão ao alcance de nossa
mente, ou a superam – as coisas que são e as que não são –, veio-me à mente,
como termo geral para designá-las, o grego physis e o latim natura. […]
M – Ficamos então de acordo que o nome de natureza é o nome geral tanto para
as coisas que são como para as que não são?
D – Sim, pois nada pode apresentar-se ao nosso pensamento a que não possa
aplicar-se este nome.

O SER E O NÃO SER


Nas linhas inaugurais do Periphyseon, João Escoto Eriúgena lavra, no seio do
conceito de natureza, uma primeira cisão que precede ainda a famosa divisão em
quatro espécies. Essa distinção primeira, principal e suprema na voz de Eriúgena,
assentaria no par ser/não-ser1*.

FILOSOFIA MAXIMAMENTE INCLUSIVA


Em nome de uma filosofia maximamente inclusiva, que não exclui portanto
nenhuma coisa do seu âmbito de investigação, o pensamento eriugeniano
assentará, não sobre o conceito de ser (excedido pelo conceito de não-ser), mas
sobre o conceito de natureza que inclui ser e não ser, distinguidos a partir da
fronteira da mente. É por isso que a ontologia (ou ciência do ser) do autor irlandês

1
“Saepe mihi cogitanti, diligentiusque quantum vires suppetunt inquerenti, rerum omnium, quae vel animo
percipi possunt, vel intentionem ejus superant, primam summamque divisione esse in ea quae sunt, et ine
ea quae non sunt, horum omnium generale vocabulum occurrit, quod graece φύσις´, latinevero natura
vocicatur.” (Periphyseon, 441a)

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se deixa configurar antes como uma physiologia (ou ciência da natureza),
cativando, na sua esfera de perscrutação, o próprio não-ser, a par do ser2.

ONTOLOGIA E MEONTOLOGIA
Eriúgena ocupa-se não apenas de uma ontologia (ciência do ente: particípio
presente do verbo ser), mas de uma ontologia a par de uma meontologia (me: não
em grego).

Eriúgena acolhe também o não ser como alvo do seu pensamento, transbordando
assim os limites da ontologia.

NÃO ONTOLOGIA MAS FISIOLOGIA


O ser não é por conseguinte o fundamento (ou o elemento base) da sua metafísica.

PERSPECTIVISMO DO SER
Eriúgena torna a distinção entre ser e não ser relativa de diversas perspectivas.
Esta relatividade do ser impede Eriúgena de tomar o ser como o objecto da sua
indagação.

A mente determina a natureza que se dá ou se apresenta, em rigor, no seu interior:


“veio-me à mente, como termo geral para designá-las, o grego physis e o latim
natura”.

2
Periphyseon IV, 741c.

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AS DIVISÕES DA NATUREZA

A ARTE DA DIALÉCTICA VS A ARTE DA DEFINIÇÃO

IMPOSSIBILIDADE DA DEFINIÇÃO
Perante a extensão absoluta do conceito de natureza, a fisiologia não encontra na
definição o seu método de abordagem.

O QUE É A DEFINIÇÃO
Isto porque a definição necessariamente pergunta pelo género maior no qual a
natureza se pode subsumir (atendendo ao que Aristóteles determina como o
procedimento próprio da definição3), ou pelo lugar que o circunscreve o conceito
de natureza (atendendo ao que Eriúgena concebe como o procedimento próprio da
definição a partir da análise que faz da categoria aristotélica de lugar)4.

DIALÉCTICA EM VEZ DE DEFINIÇÃO


Esquivando-se, pois, ao exercício filosófico da definição, o conceito de natureza
não poderá deixar-se sondar senão pelo exercício dialéctico da divisão e análise.

Duae quippe partes sunt dialecticae disciplinae, A disciplina da dialéctica está dividida em duas
quarum una , altera partes: a e a 
nuncupatur. Etquidem A possui o poder da divisão, divide,
diuisionis uim possidet; diuidit namque de cima para baixo, a unidade dos géneros
maximorum generum unitatem a summo usque superiores até chegar às espécies individuais, que
deorsum, donec ad individuas species perueniat, põem termo a essa divisão. Encontradas as
inque iis diuisionis terminum ponat;  divisões das partes, a , pelo contrário,
vero ex aduerso sibi positae partis diuisiones ab começando pelos indivíduos que recolhe e unifica,
indiuiduis sursum uersus incipiens, perque eosdem ascende pelos mesmos patamares que a
gradus, quibus illa descendit, ascendens, cumuoluit desceu, reconduzindo tudo à unidade
et colligit, easdemque in unitatem maximorum dos géneros mais superiores. Por isso, redutiva
generum reducit; ideoque reductiua dicitur seu pode também dizer-se restitutiva.
reditiua. 

JOÃO ESCOTO ERIÚGENA, Expositiones in Ierarchiam Coelestem, 184c-185a.

3
DEFINIÇÃO EM ARISTÓTELES.
4
CITAÇÃO SOBRE O LUGAR COMO DEFINIÇÃO. Sobre o problema da definição da natureza em João
Escoto Eriúgena, cf. OTTEN, Willemien, The Anthropology of Johannes Scottus Eriugena, pp. 13-16.

16
NATUREZA E CRIAÇÃO

M – Penso que a divisão da natureza se faz por quatro diferenças em quatro


espécies: a primeira é a divisão em natureza que cria e não é criada; a segunda, na
que é criada e cria; a terceira, na que é criada e não cria; a quarta, na que não cria
e não é criada. Mas nestas quatro há dois pares de opostos: a terceira se opõe à
primeira, e a quarta à segunda; porém, a quarta fica relegada ao mundo dos
impossíveis, visto que é de sua essência o não poder ser. […]
D – Percebo-as claramente. Porém, deixa-me muito perplexo a quarta espécie que
introduziste. Das outras três não me atreveria a apresentar qualquer dúvida, já que
na primeira está designada, se não me engano, a causa de tudo quanto existe e de
que não existe; na segunda, as causas primordiais; na terceira, aquelas coisas que
se manifestam através de geração no tempo e no espaço. Por isso, penso que é
necessário partir para uma discussão mais detalhada de cada espécie. […]

A categoria da criação parece presidir ao processo de divisão da natureza.

Com efeito, Eriúgena entende o termo physis de um modo extremamente fecundo,


diferenciado da concepção reificante da metafísica latina que a distingue da
operação divina e a coloca como o resultado da operação divina.

O conceito de natureza eriugeniano herda a concepção de natureza do


Neoplatonismo grego cristão, que preserva, por seu turno, o significado de
natureza encontrado na filosofia grega antiga, tal como Heidegger a expôs
(Introdução à metafísica): natureza não significava aí a ideia limitada de
substância ou essência.

Physis significa antes o processo de esconder e aparecer, oculto e manifesto. A


natureza tem assim o mesmo sentido de verdade enquanto aletheia
(desvelamento). Por natureza, os gregos entenderam o manifesto e o oculto. A
natureza é o vir-á-luz. Physis é "o que emerge espontaneamente (p.ex., o emergir
de uma rosa), o desdobramento que abre a si mesmo, brotando na aparência em
tal desdobramento, e persistindo e permanecendo na aparência, em suma,
emergente-subsistente na prevalência [das aufgehend-verweilende Walten]"
(Introdução à Metafísica, 11/1 ls. Cf. GXXIX, 38ss).

Natura: será a tradução latina de physis – o particípio futuro do verbo nascor, ter
nascido: natura: o que há-de nascer: ura imprime na palavra a ideia de
movimento (como escritura).

Também Eriúgena entende physis como a estrutura da revelação e do


ocultamento, do abscôndito e do manifesto.

(A grande diferença é que, enquanto os gregos pensaram a natureza sob o domínio


do peras (limite), Eriúgena entende-a como infinita (apeiron) e intemporal).

17
Pellicer (Natura: Etude sémantique et historique du mot latin) desvela vários
sentidos de natureza :
- O princípio material ou vital de uma coisa, o seu carácter inato e as suas
qualidades: o seu ser;
- a lei natural, universal ou moral, o poder ou força criadora, a ordem das
coisas, ou o universo entendido como totalidade.
- Como Boécio (Contra Eutychen et Nestorium I, 25-26), pode também significar
o princípio de crescimento ou nutrição (aquilo que age ou pode sofre a acção de
outro)
Marciano Capella (De nuptiis): natureza é a mãe da geração de todas as coisas
(generationem omnium mater)
Máximo o Confessor descreve a natureza como saída ou processão (proodos) a
partir da substância (ousia), através de estágios, e a reconversão (epistrophé) de
todos os entes individuais na ousia principial. Eriúgena manter-se-á fiel a esta
definição.

Eriúgena adopta o sentido grego de natureza como processo dinâmico que


emerge das trevas da infinitude divina para a multiplicidade de criaturas e formas,
e que regressa a essas trevas depois de um período na dimensão da espácio-
temporalidade.

________

Criação significa para Eriúgena, auto-manifestação, auto- exteriorização, auto-


revelação.

Esta ideia dinâmica subjaz à divisão quadriforme da natureza.

Eriúgena associa a divisão da natureza ao acto de criação.

Eriúgena pretende que esta divisão apareça como lógico, sistemática e exaustiva.
Nesse sentido aplica-lhe o quadrado da oposição aristotélico.

Portanto, as quatro divisões da natureza constituem uma articulação lógica da


relação entre criar e ser criado.

As quatro divisões:

NÃO CRIADA CRIADA

1. Natureza que cria e 2. Natureza que é criada e


não é criada. cria.
CRIADORA
DEUS (CAUSA CAUSAS
EFICIENTE) PRIMORDIAIS

18
4. Natureza que não cria 3. Natureza que é criada e
NÃO CRIADORA e não é criada não cria.
DEUS (CAUSA FINAL) (CRIAÇÃO)

A divisão tem ressonâncias da teoria pitagórica dos números de Fílon de


Alexandria: De Opificio Mundi, 99-100: Alguns números geram sem terem sido
gerados, outros geram e são gerados, outros são gerados e não geram, outros nem
geram, nem são gerados.

________
O QUADRADO DAS NATUREZAS

O QUADRADO ARISTOTÉLICO DA OPOSIÇÃO


Tal como Dermot Moran assinala, as quatro espécies de natureza que nestes
termos se distinguem parecem distribuir-se de forma lógica sobre um quadrado
aristotélico de oposição que confere a esta estrutura quadrífida um carácter
sistemático e exaustivo.

Recurso indirecto à Física Aristóteles


Move e não é movido
Move e é movido
Não move e é movido

Não move e não é movido

M: Penso que a divisão da natureza se faz por quatro diferenças em quatro espécies:
a primeira é a divisão em natureza que cria e não é criada; a segunda, na que é criada
e cria; a terceira, na que é criada e não cria; a quarta, na que não cria e não é criada.
Mas nestas quatro há dois pares de opostos: a terceira se opõe à primeira, e a quarta
à segunda; porém, a quarta fica relegada ao mundo dos impossíveis, visto que é de
sua essência o não poder ser. […]

DA ESTRUTURA LÓGICA A UMA SIMPLES PROJECÇÃO LÓGICA

Afinal, a divisão quadripartida da natureza parece conjugar-se, não com uma


descrição factual da natureza ela própria, mas com uma aplicação subjectiva das
estruturas próprias da inteligibilidade à natureza.

Idealismo na divisão da natureza: “Penso que a divisão da natureza se faz por


quatro diferenças em quatro espécies”
A divisão da natureza não é para ser entendida como um conjunto fixo de níveis
metafísicos ou graus de realidade, mas antes como conjunto de theoriae, ou
actos mentais de contemplação intelectual, que autoriza a subjectividade
humana a entrar na infinitude do subjectividade divina e no nada divino.

19
A quatro divisões da natureza existem apenas enquanto percebidas pelo
entendimento e traduzem como actos do entendimento.

Eriúgena está interessado nestas divisões da natureza porque elas oferecem uma
estrutura ou um paradigma pelo qual o entendimento entende o jogo anárquico
da natureza infinita nas suas múltiplas manifestações, que continuam
eternamente e, de facto, constituem o sentido da vida eterna.

Assim sendo, a natureza pode apenas ser compreendida através do conceito de


entendimento.

Portanto, a hierarquia não significa apenas uma série de graus ontológicos, mas
uma ciência mental.

IDENTIFICAÇÃO DAS NATUREZAS

1ª) a natureza criadora não criada (ou seja, Deus como a causa de todas as coisas);
2ª) a natureza criadora criada (ou seja, as causas primordiais, ou protótipos criados
em Deus por Deus, como ideias divinas, as quais, por sua vez, criam em si
próprias o mundo);
3ª) a natureza não criadora criada (isto é, a criação ou os efeitos sensíveis e
inteligíveis das causas primordiais);
4ª) a natureza não criadora nem criada (sed quarta inter impossibilia ponitur, cuius
esse est non posse esse. Deus como causa final)5.

1ª NATUREZA: NATUREZA QUE CRIA E NÃO É CRIADA

A natureza que cria e não é criada identifica-se com Deus, a causa incausada que
cria todas as coisas.

1ª natureza como anarchos

Deus transcende todas as criaturas para as criar

A essência de Deus é incognoscível em si, mas o homem obtém algum


conhecimento de Deus através de uma tripla teologia:

5
Múltiplos são os lugares de Periphyseon, nos quais a divisão quadripartida da natureza desponta. Na sua
primeira ocorrência, contudo, não está ainda consumada a clarificação da 4ª natureza enquanto Deus na sua
dimensão de causa final. Cf. 441b-442b. Cf. ainda sobre a divisão quadriforme da natureza: 523d-528c;
1019a-10-20b. Devemos esta explicitação à sistematização de Erismann: ERISMANN, Cristophe,
L’homme commum. La genèse du réalisme ontologique durant le haut Moyen Âge, Paris, Vrin, 2011, p.
204.

20
- Teologia negativa: Deus é descrito negativamente negando dele todas as coisas
que são.

- teologia afirmativa: Deus é descrito positivamente afirmando dele todas as coisas


que são

- Teologia superlativa, dizendo que os atributos que se lhe aplicam existem nele
de uma forma superior.

2ª NATUREZA: NATUREZA QUE CRIA E É CRIADA

De Deus, que não é criado mas cria, procede a natureza que é criada e cria.

Esta espécie da natureza identifica a natureza com as causas, Ideias, predestinações


ou protótipos.

As causas primordiais são as causas exemplares de todas as coisas.

Foram criadas por Deus em Deus (pelo Pai no Filho).

Como em Deus não há tempo, as causas primordiais são coeternas com Deus.

3ª NATUREZA: NATUREZA QUE NÃO CRIA E É CRIADA

Das causas primordiais procede a natureza que é criada mas não cria.

Este é o mundo dos anjos, dos homens e dos corpos.

Para descrever a criação do mundo, Eriúgena usa uma variedade de metáforas,


todas as analogias para a emanação. Exemplo, o mundo deriva de Deus como a
água da fonte.

A criação é a auto-manifestação ou revelação de Deus (teofania).


Portanto, ao fazer o mundo, Deus cria-se a si próprio.

4ª NATUREZA: NATUREZA QUE NÃO CRIA E NÃO É CRIADA

A quarta divisão da natureza (a natureza que não cria e não é criada) refere novamente
Deus.
Mas enquanto que a primeira divisão se referia a Deus como a fonte de todas as coisas,
Deus é agora entendido como o fim último ao qual todas as coisas regressam.

Descrito como deficação, este retorno não comporta a obliteração da distinção de todas
as distinções entre Deus e as criaturas.

21
Ainda que a matéria mutável desapareça, nem o homem nem Deus se tornam idênticos a
Deus.

O DINAMISMO DA NATUREZA

A divisão quadripartida da natureza é uma representação estática de um universo que


mais propriamente deve ser descrito dinamicamente, em termos de interrelações do
que em termos de partes.

O movimento da natureza universal que está suposto na filosofia de Eriúgena é descrito


pela tríade Neoplatónica da mone, proodos, epistrophe (permanência, processão e
retorno).

O Periphyseon está organizado por este padrão.

PERMANÊNCIA A permanência de Deus é descrita na natureza que não é


criada e cria, mostrando que nenhuma das categorias aristotélicas se aplicam com
propriedade a Deus. Deus está portando para lá do entendimento e no entanto
Eriúgena aventura-se na sua criação para o entender.

PROCESSÃO Fiel à tradição Platónica transmitida por Agostinho e os Cristãos


Gregos, Eriúgena vê a processão das coisas criadas desde a permanência de Deus
em Dois estádios: a criação de um mundo inteligível (a 2ª natureza), e depois a
criação das coisas perceptíveis sensivelmente ( a 3ª natureza)

RETORNO O terceiro termo da tríade neoplatónica (conversão) é representado


estaticamente pela quarta divisão da natureza, visto que Deus enquanto causa
final, aquilo para o qual todas as coisas regressam, é aquilo que não cria nem é
criado.

A estrutura do universo que Escoto Eriúgena descreve de acordo com este esquema é
baseado na especulação neoplatónica.

DO QUADRADO DAS OPOSIÇÕES AO CÍRCULO DA PROCESSÃO-RETORNO

DO QUADRADO AO CÍRCULO (PONTO DE VISTA METAFÍSICO)


Agora, se observarmos de perto as quatro espécies de natureza que a anterior divisão
salientou, não sob o ponto de vista lógico, mas sob o ponto de vista metafísico,
vemos que elas se deixam representar, menos pela figura do quadrado, do que pela
figura do círculo*.

COINCIDÊNCIA DE PRINCÍPIO E FIM

22
Com a real coincidência de princípio e fim, a relacionalidade entre as quarto
divisões forma uma circularidade dinâmica. de tipo neoplatónico: processão e
retorno (proódos e epistrophé).

PROCESSÃO E CONVERSÃO
As primeiras três formas representam Deus desdobrando-se na criação, enquanto a
quarta conclui o movimento de retorno da natureza.

TOTALIDADE E DESENVOLVIMENTO
A natureza não representa apenas um todo cosmológico, mas também uma linha
de desenvolvimento.

O FIM NÃO É O INÍCIO


Ao distinguir, mentalmente, o fim do princípio eriúgena recusa, porém, uma ideia
de movimento cíclico (ou de eterno retorno): o fim é não criador: é unidade
diferenciada da unidade principial por via do próprio processo da difusão e da
integração do múltiplo.

CÍRCULO DA PROCESSÃO/RETORNO
A estrutura quadrífida implica, em rigor, um compasso quaternário recondutível
ao círculo da processão/retorno, onde a processão se deixa retratar pelo
dinamismo que atravessa as três primeiras formas da natureza (de Deus às causas
primordiais e das causas primordiais à totalidade dos efeitos visíveis e inteligíveis),
e onde o retorno se deixa consagrar na quarta natureza ou na Divindade, para a
qual todas as criaturas tendem e na qual todas as criaturas encontram o seu
repouso6.

6
Cf. Periphyseon, 1019a-1019c.

23
CIRCULO DA PROCESSÃO-RETORNO E/OU CÍRCULO DA DIALÉCTICA

PROCESSÃO/RETORNO E DIVISÃO/ANÁLISE
Poderíamos, é certo, vislumbrar no coração do dinamismo processão/retorno a
simples tradução ou projecção na natureza do pensamento dialéctico, no seu
processo binário de divisão e análise.

DIALÉCTICA COMO MÉTODO E COMO QUADRO DE ACOMODAÇÃO


A dialéctica que caracteriza um específico método lógico do trabalho filosófico
parece, assim, fornecer não apenas a estratégia de inquirição da totalidade das
coisas que são e que não são, mas também o quadro mental a partir do qual esta
totalidade se organiza, isto é, segundo o movimento divisor de desdobramento
da unidade divina na multiplicidade criada (representado nas três primeiras
formas de natureza: criadoras e/ou criadas), e segundo o movimento analítico ou
resolutório da conversão da multiplicidade criada na unidade divina
(representado na quarta forma de natureza, aquela que não cria, nem é criada)7.
(É importante notar que, para Eriúgena, a dialéctica não designa apenas um método
de investigação filosófica (uma arte) que procede por divisão dos géneros em
espécies e resolução das espécies nos seus géneros…
… mas a estrutura da própria natureza da processão (divisão) e retorno
(resolução).

Há pois um paralelismo óbvio e necessário entre o método dialéctico da


investigação eriugeniana e a estrutura dialéctica da natureza. De tal modo que, a
estrutura dialéctica da natureza exige um pensamento dialéctico e o pensamento
dialéctico imprime no real uma estrutura dialéctica.

IDEALISMO DIALÉCTICO?

NATUREZA DIALECTICAMENTE PENSADA PORQUE DIALÉCTICA


Ainda que esta leitura permitisse alicerçar, em definitivo, o conceito de natureza
sobre a perspectiva exclusiva da mente que a indaga, Eriúgena adverte, no
entanto, que a razão pela qual a própria natureza se deixa pensar dialecticamente
deriva do facto de a própria estrutura da natureza ser, em si, dialéctica.

A PROVENIÊNCIA DIVINA DA DIALÉCTICA E CONFIGURAÇÃO


DIALÉCTICA DO DIVINO
Afinal, é de Deus que procede a arte da dialéctica e não o inverso, pese embora o
papel que a arte da dialéctica desempenha na perscrutação do Divino e na sua
configuração mental8.

ARTE MENTAL OBJECTIVADA NA NATUREZA


Neste ponto, a arte da dialéctica, que depreende da natureza o círculo da
processão/conversão, objectiva-se na lei que ritma a própria natureza.

A DIALÉCTICA TRANS-MENTAL E INTRA-MENTAL


7
INSERIR CITAÇÃO SOBRE A DIALÉCTICA COMO MÉTODO DE PESQUISA.
8
INSERIR CITAÇÃO SOBRE A ASCENDÊNCIA DIVINA DA DIALÉCTICA.

24
A dialéctica desvenda-se e alcança validade, para lá dos confins da mente
humana, como estrutura inerente à própria natureza.

DIALÉCTICA: MÉTODO DE PENSAMENTO E PADRÃO COSMOLÓGICO


proclama, pelo seu carácter dual (de método de pensamento e de padrão
cosmológico) a estreita afinidade entre ontologia e inteligibilidade, na qual a
filosofia eriugeniana se instala9.

IDEALISMO TEMPERADO

O REALISMO (Ñ SOLIPCISMO, Ñ CEPTICISMO)


Quer isto dizer que uma leitura que trate de enraizar a fisiologia do nosso autor no
solo de uma perspectiva humana, não pode desembocar, nem num solipsismo
estéril – unicamente capaz de aferir da própria existência –, nem num cepticismo
cego – que negue a realidade trans-mental. Apesar do reconhecimento do poder da
mente para, por si própria, conferir estrutura à infinitude do ser e do não ser,
certo é que a mente requer, por sua vez, que a natureza que investiga se lhe
manifeste. Manifestação esta, cujo sentido, no final, procuraremos aclarar,
retomando o ponto inicial da nossa apresentação.

9
Sobre este assunto, cf. OTTEN, Willemien, The Anthropology of Johannes Scottus Eriugena, pp. 39-47.

25
A UNIDADE DAS NATUREZAS: NÃO CRIADA CRIADORA E NÃO CRIADA
NÃO CRIADORA

A primeira e a quarta formas podem apenas ser predicadas de Deus; não que a sua
natureza possa ser dividida, visto que é simples e mais do que simples; mas pode
ser entendida segundo dois modos de contemplação. Pois, quando considero que
esta mesma natureza divina é o princípio e a causa de todas as coisas, a verdadeira
razão convence-me de que a essência ou a substância divina, a bondade, a virtude,
a sabedoria e as outras coisas que se podem predicar de Deus não foram criadas por
ninguém, porque nada de superior precede a natureza divina; mas, todas as coisas
– aquelas que são e aquelas que não são – foram criadas a partir dela, por ela, nela
e para ela. Quando, no entanto, considero essa mesma natureza como fim e término
intransponível de todas as coisas, pela qual todas as coisas têm apetite [appetunt] e
na qual todas as coisas encontram o limite do seu movimento natural, percebo que
essa natureza divina, nem é criada, nem criadora. Com efeito, esta natureza, que é
de si própria [a seipsa], não pode ser criada por ninguém, nem cria coisa alguma.
Na verdade, quando todas as coisas que procederam [processerunt] da natureza
divina por geração inteligível ou sensível, regressarem a ela por uma regeneração
miraculosa e inefável, e todas as coisas tenham encontrado repouso nela, então,
nada de ulterior fluirá a partir [profluet] dela por geração, diz-se então que nada
criará. Com efeito, que criará a natureza divina, quando a própria natureza divina
for tudo em todas as coisas e em nenhuma das coisas aparecer senão ela própria?

A UNIDADE DAS NATUREZAS: CRIADORA E CRIADA

Deus cria, auto-manifestando-se nas coisas.

A auto-criação de Deus é a criação de todas as coisas.

Deus, em certo sentido, cria-se a si próprio.

Esta auto-criação permite o movimento de um não-ser (oculto) para o ser


manifesto.

A criação ex nihilo é criação ex Deo. O Nada que se manifesta.

26
O CARÁCTER IDEALISTA DAS 4 DIVISÕES DA NATUREZA

AS ETAPAS DO CÍRCULO COMO THEORIAE


O que, na teoria das quatro formas da natureza, vinca a dimensão idealista que lhe
subjaz10, é o facto de estas quatro formas ou etapas do círculo cósmico da
processão/retorno se deixarem entender e dizer, no seio de Periphyseon, como
theoriae ou contemplationes, ou ainda como considerationes. Deste modo,
preserva-se a essencial unidade da natureza, remetendo para a contemplação
daquele que a inquire a pluralidade que a sua divisão quadripartida faz emergir11.

O esquema hierárquico da natureza deve ser entendido não como um conjunto fixo
de graus metafísicos mas, antes, como um conjunto de theoriae, ou actos mentais
de contemplação intelectual, que permite à subjectividade humana entrar na
infinita subjectividade e nada divinos.

As quatro divisões da natureza existem apenas enquanto são vistas pela mente e
são resolvidas pela mente em actos do intelecto. Eriúgena está interessado nestas
divisões da natureza porque elas oferecem uma estrutura ou paradigma através do
qual a mente consegue entrar e atingir o jogo anárquico da natureza infinita nas suas
múltiplas manifestações.

O termo intentiones (intueor) é de difícil tradução. Pode traduzir-se por direcção


ou intencionalidade: termos que mantêm a raiz latina e comportam o sentido
fenomenológico de um direcionamento perpectivista para o objecto do acto da
consciência.

DEUS SIVE NATURA


Quando, então, Eriúgena traduz o real significado da quadríade, acima exposta,
por Deus, porém considerado, ora como princípio (natureza incriada criadora), ora
como meio (natureza criada criadora e natureza criada não criadora), ora como fim
(natureza incriada não criadora), não trata de multiplicar a própria essência
divina, reconduzindo antes à unidade divina uma tripla contemplação humana12.

Do mesmo modo que a pluralidade desvelada não implica uma real fragmentação
divina, o decurso de um deus que
1) se resguarda no seu segredo,
2) que de seguida se cria ou aparece na totalidade das coisas criadas,
3) para, por fim, se pôr como meta do movimento de todas as coisas aparentes,

NATUREZA IMUTÁVEL ENTREVISTA COMO PROCESSO


não pode gravar, sobre a própria Divindade, uma real mutação; pelo que também
deste decurso se deve fazer sujeito a mente que, considerando a imutável
natureza, a vislumbra como processo; processo este que é afinal o seu.

10
Pelo menos, à luz da interpretação de Stephen Gersh: 154.
11
Periphyseon II, 523d, 524d, 527b, 528a.
12
Periphyseon III, 527b, 688b.

27
A REINTERPRETAÇÃO DO CÍRCULO DA PROCESSÃO RETORNO

A intimidade do processo/retorno
A processão (ou criação) entende-se como a auto-manifestação do divino. A
criação é, em rigor, auto-criação do Divino. O Divino que não é dá entrada, por
via da criação, na esfera do ser.

A noção de retorno deve ser considerada em conexão íntima com a noção de


processão, porque se a processão é auto-manifestação, o retorno é a plenitude
da manifestação do Divino no ser.

O fim ou a consumação do universo criado é apresentado como a plenitude


teofânica.

No fim, Deus será omnia in omnibus (tudo em todas as coisas)


Perante a ideia de um Deus que é tudo em todos, qualquer possibilidade de uma
analogia entis colapsa numa indiferenciada identitas entis.

Como fim, como tudo em todas as coisas, o infinito divino não se posiciona como
o negativo da criatura (do fenómeno), transcendendo toda a criação, mas como
o efectivo (o já positivo) e operando em tudo...

O nosso autor pensa dialecticamente a identidade como um fieri onde a


exterioridade, a diferença e a oposição, não são reduzidas, mas positivamente
integradas.

É o aparecer universal e inequívoco de Deus através de todas as coisas, ou, dito


de outro modo, é a realização e a plenitude teofânica das coisas que constitui o
fim.

Poder-se-ia dizer que a consummatio mundi é a reparação completa e definitiva


da fractura e da separação entre ser e aparecer: de algum modo, Deus apropria-
se da ordem da presença, ele não denega as coisas, mas afirma-se nelas e habita-
as, reina sobre elas. A sua realidade infinita não procura mais a distância
preservadora, mas a imanência do compromisso (ligação).

Se no princípio estava marcado pela predominância do nihil, agora, no fim, é o


omnia.

O fenómeno, longe de ser desprezado, é a consumação do ser: é necessário


conquistar o fenómeno.

O bem não pode permanecer abscôndito, ele procura naturalmente o brilho da


manifestação.

28
O CARÁCTER IDEALISTA DA DIALÉCTICA DA NATUREZA

A distinção básica de Eriúgena entre transcendência e teofania implica um


contraste noético entre a incognoscibilidade da natureza divina subsistindo em si
própria e a sua cognoscibilidade nas suas manifestações expressivas.

O PROCESSO HUMANO DO NIHIL AO OMNIA IN OMNIBUS


Eriúgena diz-nos, de resto, que se no final do processo de retorno, Deus se torna
tudo em todas as coisas, ou, por outras palavras, Deus devém clara e
inequivocamente manifesto, isto não significa que no instante da criação Deus não
era já omnia in omnibus, mas apenas que só é como tal percebido pela mente
humana senão no final do seu movimento de retorno13.

HOMEM: CONVERSÃO
Todavia, a confirmação do homem, como protagonista da conversão última de
todas as coisas a Deus, não assegura ainda que a processão de todas as coisas, a
partir de Deus, possa também ela ser entrevista a partir de um puro ponto de vista
humano.

INVISÍVEL E VISÍVEL: E A IMUTABILIDADE DIVINA


Mas, a preservação dos atributos divinos de eternidade, simplicidade e
imutabilidade, obrigam a que Deus, desde sempre e para sempre, seja
simultaneamente invisível e visível, oculto e manifesto, compreensível e
incompreensível, treva e luz, nada e tudo, segredo e revelação.

CRIAÇÃO MEDEIA INVISÍVEL / VISÍVEL


Ora, são precisamente estes os pares que o movimento da criação vem mediar,
pondo na visibilidade o invisível, na aparição o oculto, na teofania o θεός, etc.

CRIAÇÃO NÃO REGISTA TRÂNSITO DO DIVINO, MAS DA


CONTEMPLAÇÃO
Mas, se a acção criadora não regista um trânsito efectivo no Divino, ela denota
concretamente um trânsito ou desenvolvimento na contemplação do Divino.

ESTÁGIOS DA CONTEMPLAÇÃO
É, pois, a própria contemplação que, em diferentes estágios da sua história circular,
ora depreende Deus para lá dos limites da sua compreensão (como não-ser), ora
surpreende Deus em todas as coisas que compreende (como tudo em todas as
coisas).

A NOITE E O DIA
A imagem que Escoto Eriúgena nos oferece da sucessão da noite e do dia torna
nítido o que aqui tentamos explicitar. De facto, ninguém negará que noite e dia,
treva e luz, correspondem a dois momentos bem diferenciados e cronologicamente
consecutivos no circuito de um só dia. Contudo, “[…] é apenas em referência aos
habitantes da terra, que sofrem a alternância dos dias e das noites, que as luminárias

13
Aqui, com efeito, Eriúgena declara que Deus é tudo em todas as coisas no instante preciso da criação:
Periphyseon INSERIR REFERÊNCIA.

29
celestes fazem intervir uma separação entre a luz e as trevas”14. As luminárias
celestes, essas, brilham, como Deus, sem intermitência, sem ocaso nem aurora. E a
sucessão do dia à noite, da luz à treva, implanta-se no ponto de vista do próprio
homem. Afinal, a treva que Deus é, nenhuma privação de luz conota e, nesse
sentido, nenhuma oposição real ela depõe contra a presença da luz. Pelo contrário,
a treva é, ela própria, luz, uma luz superluzente que excede, por ora, a visão humana.

A VISÃO MITOLÓGICA DA CRIAÇÃO


Não faltaria, certamente, quem, enredado numa visão mitológica do cosmos,
entrevisse, na alternância do dia e da noite, o nascimento e o crepúsculo reais do
astro luminoso15. De igual modo, não faltará quem, no movimento da difusão
cósmica (que dá conta do processo que origina a diversidade dos entes), entreveja
a real transformação da Divindade oculta na Divindade multiplamente manifesta
ou, pelo menos, a real sucessão das criaturas a Deus. Nestes moldes entendida, a
concepção de difusão, permanece, como Gustavo Piemonte aliás indicou,
submergida num plano mitológico16. Para que entendamos o sentido preciso que
João Escoto Eriúgena confere à noção de difusão, há que, no entanto, depurá-la da
sua ganga simbólica; porque o movimento, que a difusão implica, e a anterioridade
cronológica de Deus em relação à criação, que ela parece sugerir, não cabe na
imutabilidade e eternidade divinas.

CAUSA DO CONHECIMENTO DA CRIATURA EM VEZ DE CAUSA DO SER


Assim, e acompanhando de perto as palavras de Eriúgena (que acompanham de
perto, por sua vez, as de Máximo o Confessor), dir-se-ia que Deus não se move a si
próprio no movimento criador, senão que, nesse movimento, é o olhar das criaturas
que é movido para a percepção da luz que Deus, desde sempre, foi17.

A CRIAÇÃO DA CONTEMPLAÇÃO DA CRIATURA


O que Deus verdadeiramente causa, no acto da criação, é, pois, a difusão da própria
contemplação da criatura, razão pela qual, criar e aparecer (ou revelar-se) se
permutam, em perfeita sinonímia, no seio da escrita eriugeniana.

SEGREDO E REVELAÇÃO: SEM AFECÇÃO


Por essa razão também, quisemos nós aqui pensar o acto de criação nos termos de
um trajecto entre o segredo e a revelação. É que segredo e revelação em nada
afectam a verdade que nele se absconde e nela se expõe. Antes, se reportam à mente,
da qual a verdade se oculta e à qual a mesma verdade se manifesta.

LIMITES DO IDEALISMO ERIUGENIANO

14
“Terrenis itaque habitatoribus, quibus per vicissitudines dieis noctesque proveniunt, caelestia luminaria
lucem dividunt a tenebris” (Periphyseon III, 727c).
15
A língua portuguesa, como decerto muitas outras línguas modernas, continua aliás habitada por esta
mesma visão.
16
PIEMONTE, Gustavo, “Image et contenu intelligible”, Bregriff und Metapher. Sprachform des Denkens
bei Eriugena, Herausgegeben vib Werner Beierwaltes, Heidelberg, Carl Winter Universitätsverlag, 1990,
p. 93.
17
“Ubique enim in mundo este plena semper et integra, nullum locum deserens uel appetens praeter
portiunculam quandam inferioris huius aeris curca terram quam ad capuendam umbram telluris quae nox
dicitur reliquat. Omnium tamen animalium lumen sentire ualentium obtutus mouet et ad se ipsam attrahit
ut per eam aspiciant quantum aspicere possunt. Ideoque moveri putatur quia radios oculorum et ad se
moueantur permouet, hoc est oculorum motionis ad uidenum causa est.“ (Periphyseon I, 520d-521a).

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METAFÍSICA E/OU ANTROPOLOGIA
O intuito, em tudo isto, visado, não exige, porém, a diluição da metafísica
eriugeniana nos contornos antropológicos de uma ciência do conhecimento.
Procurámos, isso sim, sublinhar apenas a radicação da investigação filosófica
eriugeniana na perspectiva específica da criatura racional.

HOMEM COMO SUJEITO METAFÍSICO: ANTROPOCENTRISMO


Seria, certamente, necessário aguardar mais alguns séculos para que o homem se
sagrasse, em definitivo, como a medida de todas as coisas. Podemos, no entanto,
auscultar, no pensamento deste autor do século IX, a presença de um homem, que
não se quebranta perante a infinitude do seu campo de pesquisa, mas que confia
nas suas capacidades próprias para a ela se alçar.

CUIUS ESSE NON POSSO ESSE

Now, Eriugena’s conception of the fourth nature does resembles Aristotle’s


motionless prime mover, in some aspects. First, both are indisputably final causes. Both
are exempted of any remaining potentiality, and, thus, they are immutable and perfect. In
fact, in Periphyseon’s first presentation of the fourfold division of nature, the fourth
species of nature is being established not yet as God’s final causality rather it is settled as
impossibility: “quarta inter impossibilia ponitur cuius esse est non posse esse” [the fourth
is classed among the impossibles, for it is of its essence that it cannot be]. This particular
portrayal of the fourth is never again reinstated throughout Periphyseon, and it is often
dismissed by commentators while addressing the quaternary dialectics of nature. If one is
not willing to admit an evolutionist perspective within Periphyseon, on must coordinate
the labelling of the fourth nature as that whose being is non posse esse, with God as final
cause. Granted that the prefix “in-” in the word “impossible”, denies possibility, the term
impossible may then signify necessity. Necessity excludes possibility. Thus, that whose
being is non posse esse is actual being with no remaining potentiality: a portrayal which
would fit Aristotle’s prime mover, and, indeed, Eriugena’s concept of God as final cause
or end to which all creatures tend. In fact, the fourth nature is said not to create, in spite
of its identity with the uncreated creative nature. The uncreative character of the fourth
nature should point out to God’s and Man’s final perfection and immutability as pure act,
although the expression “pure act” or even “act” never really occurs throughout the fifth
book of Periphyseon where the fourth nature is addressed.
Instead, the final stage of the human soul is named endelecheia, which Eriugena
may have mixed up, either accidentally or voluntarily, with entelecheia. In fact, in his

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Annotations on Martianus Capella, while interpreting the name of Psyche’s mother,
Endelecheia, Eriugena renders it as Entelecheia, advancing its multiple meanings:
“perfect age”, according to Calcidius, “absolute perfection”, according to Aristotle,
“world’s soul”, according to Plato. At the same time, Eriugena recover endelecheia’s
etimology, endos lechia, as intimate age, in order to stress the spiritual, not corporeal
absolute perfection of entelecheia. This offers us a grasp of Eriugena’s distinction
between energeia and entelecheia, whether it remains faithful to Aristotle’s own concepts
or not, and helps us understand why the term energeia is removed from the explanation
of the fourth nature. Indeed, the fourth nature is repeatedly addressed to as plenitudo
aetatis, or perfecta aestas (plenitude of age or perfect age), which is tantamount with
Eriugena’s understanding of entelecheia. Energeia, on the other hand, is always
correlated to dunamis, and comprises a sense of motion, operation, of a work being done,
or of a potency being fulfilled, while entelecheia rejects any kind of motion, and
consequently, any kind of potentiality, designating the persisting being-at-an-end.

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