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O CONSTRUTOR DE UNIVERSOS

Coleção Argonauta 161

PHILIP JOSE FARMER

TRADUÇÃO DE EURICO FONSRCA

Título da edição original:

THE MAKER OF UNIVERSES

CAPA DE LIMA DE FREITAS

Copyright © 1965 by Ace Books, Inc.

CAPÍTULO I

UMA trombeta fantástica gemeu do outro lado das portas. As sete notas pareceram
longínquas e etéreas como o ectoplasma de um espectro prateado, se o som pudesse
ser a matéria de que as sombras são formadas.

Robert Wolff sabia que não podia haver nenhuma trombeta e nenhum homem do outro
lado da parede e do próprio mundo. Estava só e por isso não tinha ninguém com quem
comprovar a realidade do que ele sabia não ser real. O compartimento em que se
encontrava era um lugar em que um fenómeno daqueles nada tinha de provável. Mas não
era improvável que ele o notasse. Nos últimos tempos tinham-lhe surgido sonhos
estranhos. Durante o dia, pensamentos igualmente estranhos e relâmpagos de imagens
passavam através do seu espírito, fugidios mas vivos e sempre surpreendentes. Eram
indesejáveis, inesperados e irreprimíveis.

Mas ele sentia-se preocupado. Não estava certo que nas vésperas da reforma
estivesse prestes a sofrer um colapso mental. No entanto, isso podia acontecer a
qualquer pessoa e o melhor que tinha a fazer era consultar o médico. Pena era que
não conseguisse arranjar coragem para proceder assim. Continuava a esperar e não
ousava dizer nada a ninguém, e muito menos à mulher.

Agora encontrava-se na sala de recreio de uma casa nova no bairro de Hohokam Homes
e fitava as portas do roupeiro. Se a trombeta soasse de novo, abriria essas portas
e revistaria tudo. Depois, e ainda que soubesse que as notas só existiam no seu
espírito doente, arranjaria maneira de não comprar a casa. Ignoraria os protestos
histéricos da mulher e procuraria primeiro um médico de clínica geral e depois um
psiquiatra.

A mulher gritou:

— Robert! Não achas que estás aí há demasiado tempo? Sobe. Eu e Mr. Brisson
queremos falar contigo!

— Só um momento, querida! — disse ele.

Ela gritou de novo, tão perto que dessa vez ele voltou-se, surpreendido. Brenda
Wolff estava no cimo das escadas que desciam até à sala de recreio. Ela tinha a
idade dele: sessenta e seis anos. Toda a beleza que possuíra estava agora sepultada
sob a gordura, as rugas pesadamente cobertas de rouge e pó, os óculos espessos e o
cabelo azul-aço. Ele pestanejou ao vê-la, como fazia sempre que se olhava ao
espelho e via o seu crânio calvo, as profundas rugas do nariz até à boca e as
estrelas abertas na pele, irradiando dos seus olhos avermelhados. Seria ele incapaz
de se adaptar ao que acontecia a todos os homens, gostassem ou não disso? Ou seria
que ele odiava em si e na mulher não a deterioração física, mas sim o conhecimento
de que nem ele nem Brenda tinham realizado os seus sonhos da juventude? Não havia
maneira de evitarem os estragos do tempo na carne, mas o tempo tinha sido magnânimo
ao deixá-lo viver tanto tempo. O mundo não podia ser culpado por aquilo que ele
era. O responsável era ele, e mais ninguém. Pelo menos era suficientemente forte
para encarar isso. Não podia atribuir as culpas ao universo ou àquela parte dele
que era sua mulher. Não gritava, não rugia, não uivava, como Brenda fazia.

Em certas ocasiões teria sido fácil uivar ou chorar. Quantos homens não eram
capazes de se recordarem fosse do que fosse antes da idade de vinte anos? Pensava
que fossem vinte porque os Wolffs, que o tinham adotado, tinham dito que ele
parecia ter essa idade. Fora encontrado a vaguear nas montanhas do Kentucky, perto
da fronteira de Indiana, pelo velho Wolff. Não sabia quem era nem de onde viera.
Não sabia o que fosse o Kentucky, ou mesmo os Estados Unidos da América, e a língua
inglesa não tinha qualquer significado para ele.

Os Wolffs tinham-no recolhido e haviam informado as autoridades. As investigações


feitas por elas não tinham conseguido a sua identificação. Noutra ocasião a sua
história podia ter atraído as atenções de toda a nação, mas nessa época os Estados
Unidos estavam em guerra com o Kaiser e havia coisas mais importantes em que
pensar. Robert, que recebera esse nome em memória do falecido filho dos Wolffs,
ajudara-os a trabalhar na sua quinta. Frequentara também a escola, porque perdera a
memória de toda a educação.

Pior que a falta de conhecimentos, fora a total ignorância da maneira como se


comportar. Em muitas ocasiões embaraçara uns e ofendera outros. Sofrera o desprezo
e mesmo as reações selvagens da gente das montanhas, mas aprendera depressa — e a
sua vontade de trabalhar, mais a força com que se defendia, tinham-no tornado
respeitado.

Num tempo extraordinariamente rápido, como se estivesse apenas a relembrar-se,


fizera os cursos primário e secundário. Ainda que lhe faltassem muitos anos do
tempo exigido para os cursos completos, fizera os exames de admissão à universidade
sem qualquer problema. Então nascera o seu amor de toda a vida pelas línguas
clássicas. Acima de tudo amava o grego: fazia ressoar qualquer coisa dentro de si.

Depois de se ter doutorado na Universidade de Chicago, ensinara em várias


universidades do Leste e do Médio Oeste. Casara com Brenda, uma bela rapariga com
uma alma adorável. Ou pelos menos assim parecera. Mais tarde sentira-se desiludido,
mas mesmo assim considerava-se mais ou menos feliz.

No entanto, o mistério, da sua amnésia e da sua origem tinham-no sempre preocupado.


Durante muito tempo não se sentira perturbado, mas quando chegara a altura da
reforma...

— Robert — disse Brenda em voz alta—, Mr. Bresson está à tua espera e tem mais que
fazer.

— Por certo que ele tem muitos clientes que gostam de ver tudo com muita atenção —
respondeu ele. — Ou será que resolveste não ficar com a casa?

Brenda fitou-o, furiosa, e depois afastou-se, indignada. Ele suspirou porque sabia
que mais tarde ela o acusaria de a ter humilhado propositadamente perante o agente
de vendas.
Voltou-se de novo para o roupeiro. Conseguiu dominar a sua relutância e correu a
porta para o lado. O rumor dos rolos dominaram o som da trombeta quando a porta se
moveu.

O fundo do armário desaparecera. No seu lugar surgira uma paisagem que ele nunca
teria podido imaginar, muito embora devesse ter nascido no seu espírito.

O sol iluminou a abertura, que era suficientemente grande para que ele pudesse
passar, desde que se curvasse. Viu vegetação parecida com árvores — ainda que não
fossem as da Terra. Através dos ramos e das copas distinguia-se um céu verde.
Baixou os olhos para ver o que se passava em baixo, para além das árvores. Seis ou
sete criaturas de pesadelo estavam reunidas em torno de um penedo enorme, vermelho,
impregnado de quartzo. Os seres tinham, quase todos eles, os seus corpos informes e
peludos virados na direção oposta, mas um mostrava-se de perfil. A cabeça era
brutal, sub-humana, e a expressão era malévola. No corpo viam-se nódulos e no rosto
e na cabeça havia montes de carne que lhes davam um aspeto meio formado, como se o
seu Criador se tivesse esquecido de os alisar. As duas pernas curtas pareciam de um
cão. Estendia os seus longos braços para um jovem que se encontrava sentado sobre o
topo plano do penedo.

O rapaz vestia apenas umas calças de couro e calçava uns mocassins. Era alto,
musculoso, de ombros largos; a sua pele era bronzeada, o cabelo comprido e
abundante tinha uma cor avermelhada, o rosto forte e duro com o lábio superior
longo. Tinha nas mãos o instrumento que devia ter emitido as notas que Wolff
ouvira.

O rapaz deu um pontapé numa das criaturas disformes ao descer do penedo e dirigiu-
se para ele. Levou de novo aos lábios a trombeta de prata e depois viu Wolff em
frente da abertura. Teve um sorriso largo e mostrou os dentes brancos. Disse:

— Até que enfim que veio!

Wolff não se moveu nem respondeu. Somente pensou: Devo estar doido! Já não se trata
somente de alucinações auditórios, mas também visuais! Cala-te, Brenda! Vou já!

Recuou. A abertura começou a fechar-se, as paredes brancas principiaram a voltar à


sua solidez.

— Apanha! — disse o jovem.

Atirou a trombeta. Ela rodopiou através das folhas, refletindo a luz do Sol,
trambolhando em direção à abertura. No momento exato em que as paredes iam fechar-
se, a trombeta passou por elas e bateu nos joelhos de Wolff.

Ele gritou de dor, porque não havia nada de fantástico no duro impacto. Através da
estreita abertura pôde ver o homem de cabelos avermelhados a levantar um braço, com
o polegar e o indicador a formarem um O. O jovem sorriu-se e gritou:

— Boa sorte! Espero vê-lo depressa! Sou Kickaha!

Como um olho que se fechasse lentamente de sono, a abertura na parede contraiu-se.


A luz extinguiu-se e os objetos começaram a apagar-se. Mas ele ainda pôde dar um
relance final e foi então que a rapariga espreitou por trás de uma árvore..

Tinha olhos enormes, de modo algum humanos, tão grandes em relação à cabeça como os
de um gato. Os lábios eram cheios e vermelhos, a pele castanho-dourada. O cabelo,
abundante e ondulado caído solto sobre uma face, era listrado como um tigre.
Depois as paredes tomaram-se brancas como os olhos revirados de um cadáver. Tudo
ficou como antes, exceto a dor nos joelhos e a dureza da trombeta contra os
tornozelos.

Apanhou-a e olhou-a à luz da sala de recreio. Ainda que estupefacto, já não supunha
estar doido. Olhara para outro universo e alguma coisa dele lhe fora entregue — não
sabia porquê ou como.

A trombeta tinha menos de setenta e cinco centímetros de comprimento e pesava menos


de duzentos e cinquenta gramas. Parecia uma corneta africana, de búfalo, exceto a
boca que era muito aberta. Não tinha válvulas, mas ao rodá-la viu sete pequenos
botões em fila. A pouco mais de um centímetro para o interior da boca havia uma
rede de fios prateados. Quando formava um ângulo com a luz das lâmpadas, a rede
parecia penetrar mais, no interior da trombeta.

Foi então que a luz bateu no corpo da trombeta e ele viu o que não notara
inicialmente — um hieróglifo inscrito a metade do seu comprimento. Não se parecia
com coisa alguma que ele tivesse visto anteriormente e ele era um perito em todos
os tipos de alfabetos, ideógrafos e pictógrafos.

— Robert!—gritou a mulher.

— Vou imediatamente, querida! — Colocou a trombeta na gaveta do canto direito do


armário e fechou a porta. Subiu os degraus a correr, até à grande sala de estar.
Brenda continuava furiosa, de olhos muito abertos. Bresson era um homem gorducho,
de óculos, com cerca de trinta e cinco anos, e parecia pouco à vontade, ainda que
estivesse a sorrir-se.

— Bem, gosta? — perguntou ele.

— Muito — respondeu Wolff. — Lembra-me o tipo da casa onde vivia.

— Eu também gosto dela — disse Bresson. — Também sou do Médio Oeste. Compreendo que
não queira viver numa casa do tipo «rancho.

Wolff dirigiu-se à janela e espreitou. O Sol do meio daquela tarde de Maio brilhava
nos céus azuis do Arizona.

— Quase todas as casas são térreas — disse o homem. — O terreno, aqui, é muito duro
e as escavações são dispendiosas, mas as casas não o são.

Wolff pensou: Se o terreno não tivesse sido escavado para abrir espaço para a sala
de recreio, como poderia o homem do outro lado ter visto a abertura? Veria apenas
terra e assim não se teria libertado da trombeta.

— Deve saber o motivo por que demorámos tanto tempo a pôr à venda as casas deste
bairro — acrescentou Bresson. — Enquanto escavávamos descobrimos uma povoação
antiga dos Hohokam.

— Hohokam? — perguntou Mrs. Wolff. — Quem eram?

— Há muita gente que nunca ouviu falar neles. Mas não se pode viver na região de
Phoenix sem encontrar recordações deles. Eram os índios que viveram no Vale do Sol,
há uns mil e duzentos anos. Abriram canais de irrigação, construíram povoações e
tinham uma civilização razoável. Mas aconteceu-lhes qualquer coisa, ninguém sabe o
quê. Desapareceram, muito simplesmente. Alguns arqueólogos dizem que os índios
Papago e Pirna são descendentes deles.

Mrs. Wolff fungou e disse:


— Já os vi e não me pareceu que fossem capazes de fazer alguma coisa além daqueles
casebres de adobe, na reserva.

Wolff voltou-se e observou, quase num tom selvagem:

— Os modernos Maias não têm a aparência de ter construído os seus templos ou de ter
inventado o conceito do zero. Mas fizeram-no.

Calou-se e suspirou, antecipando a reação de Brenda. Depois disse:

— Fico com a casa. Assinarei imediatamente os papéis.

— Robert! — guinchou Mrs. Wolff. — Nem sequer perguntaste a minha opinião!

— Desculpa, querida, mas já resolvi.

— Pois bem, eu não!

— Bem... não há necessidade de pressas — disse Bresson, com um sorriso desesperado.


— Mesmo que alguém compre esta casa, há outras iguais...

— Eu quero esta casa.

— Robert, estás doido? — uivou Brenda. — Nunca procedeste assim.

— Tenho-te dado a iniciativa de quase tudo. Queria que fosses feliz. Mas agora tens
de ceder quanto a isto. Não te peço muito. Além disso, disseste esta manhã que
querias uma casa deste género e estas são as únicas que podemos comprar.

— Não assinarei os papéis, Robert.

— Que tal se discutissem isso em casa e depois me comunicassem a decisão— disse


Bresson.

— Basta a minha assinatura? — perguntou Wolff.

— Lamento muito, mas também é necessária a de Mrs. Wolff.

Brenda sorriu triunfante.

— Prometa que a reserva até amanhã. Se tem receio de prejudicar a venda indemnizá-
lo-ei.

— Oh, não é necessário—respondeu Bresson, ao mesmo tempo que se dirigia para a


porta, com uma pressa que traía a sua vontade de se libertar daquela situação
desagradável.

Ao voltarem para os seus quartos no Sands Motel, em Tempe, nenhum deles disse uma
palavra. Brenda manteve-se rígida, a olhar em frente, através do para-brisas. Wolff
olhou-a e notou que o nariz dela parecia cada vez mais fino e adunco e os lábios
mais delgados; a continuar assim, não tardaria a parecer exatamente um papagaio
gordo.

E quando ela começasse a falar, ainda mais pareceria um papagaio gordo. Acabaria
por recordar os anos de infelicidade, ou de suposta infelicidade que passara junto
dele e depois choraria violenta e amargamente.
Porque a teria ele suportado durante tanto tempo? Não sabia. Exceto que a amara
muito quando jovem e também porque as acusações dela não eram totalmente falsas.
Mais: o pensamento da separação parecia-lhe doloroso, ainda mais doloroso que o de
se manter junto dela.

Tal como ele esperava, a língua dela tornou-se ativa depois do jantar. Ouviu-a,
tentou demonstrar-lhe calmamente a sua falta de lógica e a Injustiça das suas
recriminações. Como sempre, não serviu de nada. Ela acabou em lágrimas, ameaçando-o
de o deixar ou de se matar.

Mas dessa vez ele não cedeu.

— Quero essa casa e quero gozar a vida como pensei — disse ele com firmeza. — É
tudo.

Vestiu o casaco e dirigiu-se para a porta.

— Até depois. Talvez...

Ela gritou e atirou-lhe um cinzeiro. Ele desviou-se e o cinzeiro bateu na porta,


arrancando um pedaço de madeira. Por sorte ela não o seguiu, para provocar
escândalo lá fora, como já acontecera noutras ocasiões.

A Lua ainda não nascera e as únicas luzes visíveis eram as do motel e as dos faróis
dos carros que corriam pelo Apache Boulevard. Entrou no carro e dentro em pouco se
encontrava na estrada para Hohokam Homes.

O bairro estava brilhantemente iluminado e ouvia-se música através de altifalantes,


enquanto crianças brincavam nas ruas sob os olhares dos pais.

Continuou o caminho, atravessou Mesa, voltou a Tempe e seguiu para Van Buren e para
o centro de Phoenix. Virou para norte, depois para leste e por fim para Scottsdale.
Ali parou e ficou durante hora e meia numa pequena taberna. Depois de se ter dado
ao luxo de beber quatro uísques, desistiu. Não queria mais — ou antes, temia beber
mais, porque desejava estar bem senhor de si quando começasse a fazer aquilo que
tinha pensado.

Quando voltou a Hohokam Homes as luzes tinham-se apagado e o silêncio voltara ao


deserto. Estacionou o carro atrás da casa em que estivera naquela tarde. Com a mão
direita, enluvada, partiu o vidro da janela que dava acesso à sala de recreio.

As trevas, na sala, eram tão densas que ele teve de procurar às apalpadelas o
caminho para o roupeiro. Encontrou as portas corrediças e abriu a da esquerda, com
muito cuidado para evitar qualquer ruído.

Então recuou alguns passos. Levou a trombeta aos lábios e tocou-a. O som foi tão
forte que ele se assustou e deixou-a cair. Abaixou-se e por fim encontrou-a num
canto.

Da segunda vez soprou com mais força, mas o som foi semelhante ao primeiro. Havia
qualquer coisa dentro da trombeta, talvez a rede prateada, que regulava a
intensidade do som. Durante alguns minutos manteve a trombeta erguida, perto da
boca. Tentava recordar-se da sequência exata das sete notas que ouvira. Era
evidente que os sete pequenos botões determinavam as várias harmónicas. Mas
primeiro tinha de as experimentar. E isso significava que outras pessoas o
ouviriam.

Encolheu os ombros e murmurou:


— O diabo que os carregue!

Soprou mais uma vez, mas carregou nos botões. Soaram sete notas. Eram aquelas de
que ele se recordava, mas não na ordem em que as ouvira.

Quando acabou, ouviu-se um grito ao longe. Wolff quase se deixou dominar pelo
pânico. Praguejou, levou de novo a corneta aos lábios e carregou nos botões pela
ordem que, segundo ele esperava, corresponderia ao «Abre-te, Sésamo!».

Nesse mesmo momento um feixe luminoso, de uma lanterna elétrica, passou pela janela
quebrada e seguiu em frente. Wolff soprou de novo. A luz voltou a incidir sobre a
janela quebrada. Uma voz grossa resmungou:

— Sai daí! Ou sais ou começo a disparar!

Ao mesmo tempo uma luz verde apareceu na parede e abriu nela um buraco, pelo qual
entrou o luar. As árvores e o penedo eram simples sombras contra uma luz verde-
prata vinda de um grande globo do qual só a periferia era visível.

Não esperou. Podia ter hesitado se não o tivessem descoberto, mas sabia que tinha
de se apressar. No outro mundo esperavam-no a incerteza e o perigo, mas naquele
havia uma definida e inelutável ignomínia. No mesmo momento em que o guarda-noturno
repetia os seus avisos, Wolff deixou-o e ao seu mundo. Teve dificuldade em passar
através do orifício, que já estava a contrair-se. Quando se encontrou do outro lado
e olhou para trás, viu que a abertura tomara já o tamanho da vigia de um navio. E,
passados poucos segundos, desapareceu.

CAPÍTULO II

WOLFF sentou-se na relva para repousar. Pensou em quanto seria irónico que o seu
coração velho de sessenta e seis anos não aguentasse toda aquela excitação. Teriam
de o sepultar e colocar na sua campa uma lápide: O TERRESTRE DESCONHECIDO.

Por fim sentiu-se calmo. Olhou em volta. A temperatura era confortável e no ar


haviam odores agradáveis, de fruta. Pássaros trinavam. Ao longe ouvia-se uma
espécie de rugido, mas ele não se assustou. Tinha quase a certeza, ainda que de uma
maneira irracional, que se tratava do ruído das ondas, a desfazerem-se numa praia.
A Lua estava cheia e era enorme. Duas vezes e meia maior que a da Terra.

O céu já não era verde, mas sim tão negro como o do mundo que deixara. Uma multidão
de grandes estrelas se moviam com velocidades e direções que o entonteciam e
tornavam medroso e confuso. Uma das estrelas pareceu cair sobre ele. Aumentou de
tamanho, mais e cada vez mais, e por fim passou a poucos metros sobre a cabeça
dele. Através do clarão amarelo-alaranjado vindo da sua retaguarda, pôde ver quatro
grandes asas elipsoides, umas pernas finas, penduradas sem graça, e, num relance,
os contornos de uma cabeça com antenas.

Era um pirilampo. Com três metros de envergadura, pelo menos.

Qualquer coisa com pulmões muito fortes rosnou perto dele. Deitou-se sobre a relva,
à sombra die uma espessa moita, e tentou respirar lentamente. Ouviu uma restolhada.
Um ramo estalou. Ergueu a cabeça e viu ao luar uma criatura enorme, ereta, bípede,
escura e cabeluda.

A criatura parou de repente e o coração de Wolff parou também, por um momento. Era
um ser semelhante a um gorila — mas não um gorila terrestre. O pêlo não era
inteiramente negro. Parecia o de uma zebra, com faixas alternadas, umas negras e
largas, outras brancas e estreitas. Os braços eram mais pequenos que os dos seus
semelhantes terrenos e as pernas mais direitas e compridas. Principalmente a testa,
ainda que com uma arcada espessa sobre os olhos, era alta.

O gorila murmurou qualquer coisa. Não um grito ou um gemido de animal, mas sim
algumas sílabas claramente moduladas. Não estava só. A Lua esverdeada iluminou um
pedaço de pele nua do lado oposto a Wolff. Pertencia a uma mulher que caminhava ao
lado do animal e cujos ombros estavam escondidos pelo seu enorme braço direito.

Wolff não podia ver o rosto dela, mas distinguia as pernas longas e elegantes, as
nádegas curvas, um braço formoso, e uma cabeleira longa e negra. Perguntou a si
próprio se ela seria igualmente bela, vista de frente.

A rapariga falou ao gorila numa voz que parecia o som de campainhas de prata. O
gorila respondeu-lhe. Depois afastaram-se e desapareceram nas trevas da selva.

Quando Wolff conseguiu levantar-se, começou a caminhar através do mato, que não era
tão denso como o da Terra. As moitas estavam muito separadas umas das outras. Dera
apenas alguns passos quando outro animal rosnou e correu na frente dele. Viu de
relance uns chifres avermelhados, um nariz esbranquiçado, olhos enormes e claros e
um corpo sarapintado. Mais além encontrou de novo o animal que avançou para ele a
medo e enfiou as ventas molhadas na sua mão estendida. Depois ronronou e tentou
esfregar os flancos nele. Como pesava uns bons duzentos e cinquenta quilos, acabara
por o empurrar.

Wolff coçou-lhe as orelhas e o nariz, e depois também as costelas, ao de leve. O


animal lambeu-o com uma língua muito grande, rugosa como a de um leão. Por fim
fatigou-se das carícias e fugiu num salto.

O rugido das ondas tomara-se mais forte. Passados dez minutos estava junto da
praia. Sentou-se junto de uma árvore frondosa e enorme e observou a cena iluminada
pelo luar. A praia era branca e, como as suas mãos verificaram, as areias eram
muito finas. Estendia-se por ambos os lados, tão longe quanto podia ver, e a
largura, da floresta ao mar, andava por duzentos metros. De ambos os lados, ao
longe, havia fogueiras à luz das quais se viam as sombras de homens e mulheres. Os
seus gritos e gargalhadas, ainda que amortecidos pela distância, reforçavam a
impressão de que deviam ser humanos.

Então olhou de novo para a praia, perto do lugar onde se encontrava. A uns
trezentos metros e junto à água, havia dois seres. A visão deles fez-lhe suspender
a respiração.

Não era o que estavam a fazer que o chocou, mas sim a forma dos seus corpos. Da
cintura para cima, ambos eram tão humanos como ele, mas, no ponto onde as suas
pernas deviam começar, os corpos do homem e da mulher afunilavam-se e tornavam-se
em caudas de peixe.

Não pôde conter a sua curiosidade. Escondeu a trombeta entre a relva e aproximou-se
das criaturas. Quando chegou a cerca de vinte metros, parou e examinou-as de novo.
Se eram sereias, por certo que não eram meio peixes. As barbatanas caudais
encontravam-se num plano horizontal, ao contrário das dos peixes, que eram
verticais. E as caudas não pareciam ter escamas. Uma pele lisa e castanha cobria os
seus corpos híbridos de cima a baixo.

Tossiu. As criaturas olharam para ele. O macho berrou e a fêmea gritou. Num
movimento tão rápido que ele não pôde compreender, puseram-se de pé sobre as caudas
e lançaram-se nas águas.
Durante algum tempo, Wolff deixou-se envolver pelos pensamentos. A fala das duas
sereias parecera-lhe algo familiar, tal como a da rapariga e do zebrila (a palavra
que lhe apareceu para designar aquela espécie de gorila às riscas). Não reconhecera
quaisquer palavras isoladas, mas os sons e a entoação tinham despertado qualquer
coisa na sua memória. O que seria? Por certo que não se tratava de qualquer língua
que ele já tivesse ouvido.

Uma mão fechou-se sobre o seu ombro, ergueu-o e fê-lo rodar no ar. O focinho e os
olhos cavernosos de um zebrila lançaram-se sobre o seu rosto e um bafo alcoólico
ofendeu as suas narinas. A criatura falou e uma mulher saiu das moitas. Avançou
para ele lentamente e em qualquer outro momento ele teria suspendido a respiração
ao ver aquele corpo magnífico e aquele rosto tão belo.

A mulher disse qualquer coisa e o zebrila respondeu. Foi então que Wolff
compreendeu algumas palavras. A linguagem deles era semelhante ao grego pré-
homérico, ao miceniano.

Não tentou imediatamente afirmar-lhes que era inofensivo e que as suas intenções
eram boas. Em primeiro lugar estava demasiado perturbado para poder pensar de uma
maneira clara. Além disso, o seu conhecimento da língua grega, falada naquele
período, era necessariamente limitado.

Por fim conseguiu murmurar algumas frases pouco apropriadas, mas preocupou-se menos
com o sentido delas do que com a necessidade de esclarecer que não queria fazer mal
a ninguém. Ao ouvi-lo, o zebrila resmungou, disse qualquer coisa à rapariga e
colocou-o de novo sobre a areia. Wolff suspirou, mas fez uma careta ao sentir a dor
no ombro. A mão enorme do monstro era terrivelmente forte. Além de ser muito grande
e peluda, era muito humana.

A mulher puxou-lhe pela camisa. No rosto dela surgiu uma leve expressão de
desagrado; só mais tarde ele soube que ela sentira repulsa ao vê-lo. Nunca vira um
homem velho e gordo. Além disso, as suas roupas tinham-na surpreendido. Continuem a
puxar pela camisa dele. E ele, antes que ela pedisse ao zebrila para que a
arrancasse, despiu-a. A mulher examinou-a, cheirou-a e disse:

— Uff!

Wolff continuou a despir-se e esperou por mais ordens. A mulher riu-se; o zebrila
como que ladrou e bateu na coxa com a mão enorme, fazendo um som como o de um
machado cortando madeira. Abraçaram-se um ao outro e, rindo de uma maneira
histérica, dirigiram-se para a praia.

Furioso, humilhado, envergonhado, mas também satisfeito por ter escapado ileso,
Wolff voltou a vestir as calças. Agarrou nas roupas de baixo, nas peúgas e nos
sapatos e voltou à selva. Depois de ter retirado a trombeta do seu esconderijo,
sentou-se durante largo tempo, perguntando a si próprio o que deveria fazer. Por
fim adormeceu.

Acordou no dia seguinte, com o corpo dorido, esfomeado e sedento.

A praia fervilhava. Além das sereias que vira na noite anterior, focas enormes, com
casacões cor de laranja, corriam pela areia em perseguição de bolas amarelas
lançadas pelas sereias, e um homem com chifres de carneiro, pernas peludas e uma
cauda de bode corria atrás de uma mulher que parecia a que ele vira na noite
anterior com o zebrila. No entanto ela era loura. Correu até que o homem com
chifres a apanhou e atirou ao chão, a rir-se. O que aconteceu depois mostrou-lhe
que aqueles seres eram tão inocentes do pecado e de inibições como Adão e Eva
deviam ter sido.
Era mais do que interessante, mas a visão de uma sereia a comer suscitou-lhe um
interesse mais imediato. A mulher-peixe tinha numa das mãos um grande fruto
amarelo, oval, e na outra um hemisfério que parecia metade de um coco. A
companheira do homem com chifres ajoelhou-se junto de uma fogueira, apenas a poucos
metros dele, e assou um peixe na ponta de uma vara. O odor fez com que a sua boca
se enchesse de água e o ventre rugisse.

Primeiro tinha que beber. Como a única água à vista era a do oceano, dirigiu-se
para a praia e para as ondas.

Tal como esperava, foi recebido com surpresa e algum receio. Todos pararam com o
que estavam a fazer, fosse o que fosse, e fitaram-no. Alguns dos machos mantiveram-
se impassíveis, mas pareciam prestes a fugir se ele dissesse uma palavra. No
entanto, até os mais pequenos tinham músculos que poderiam dominar com a maior
facilidade o seu velho e fatigado corpo.

Entrou na água até à cintura e saboreou-a. Vira outros bebê-la e esperava que ela
fosse aceitável. Era pura e fresca e tinha um sabor como ele nunca experimentara.
Depois de a beber sentiu como se tivesse recebido uma transfusão de sangue novo.
Saiu do oceano e voltou a atravessar a praia, em direção à selva. Os outros tinham
voltado a comer e a divertir-se, e ainda que o observassem, nada disseram ou
fizeram. Ele sorriu-Ihes, mas isso pareceu surpreende-los. Uma vez na selva,
procurou e encontrou os frutos que a mulher-peixe comera. O fruto amarelo sabia a
pudim de pêssego e o miolo do pseudococo parecia bife misturado com pedaços de
nozes.

Depois sentiu-se muito satisfeito. Somente lhe faltava uma coisa: o cachimbo. Mas o
tabaco parecia não existir naquele paraíso.

Nos dias seguintes explorou a selva e passou algum tempo na praia, dentro de água
ou perto dela. As criaturas da praia habituaram-se a ele e começaram até a rir-se
quando ele aparecia de manhã. Um dia, alguns dos homens e das mulheres saltaram
sobre ele e, às gargalhadas, despiram-no. Correu atrás da mulher que lhe levara as
cuecas, mas ela fugiu para a selva. Quando voltou tinha as mãos vazias. Então já
sabia falar o suficiente para ser compreendido quando pronunciava as palavras
vagarosamente.

— Porque fez isso? — perguntou ele à bela ninfa de olhos negros.

— Queria ver o que você escondia por baixo desses panos. Você é feio quando nu, mas
essas coisas que trazia ainda o faziam mais feio.

Encolheu os ombros e pensou: Quando em Roma... Mas aquilo era mais como o Jardim do
Éden. A temperatura era agradável de dia e de noite e não variava mais de quatro
graus. Não havia qualquer problema em variar a comida, ninguém trabalhava, não
havia impostos, política, tensões (exceto a sexual — e essa podia ser facilmente
aliviada), nem animosidades nacionais ou raciais. Nem contas a pagar. Ou haveria?
Na Terra, o princípio básico do universo era o de que tudo tinha o seu preço. Seria
o mesmo ali?

À noite, dormia num monte de relva ou num grande buraco de uma árvore. Era apenas
um buraco entre milhares, ainda que só um certo tipo de árvore oferecesse essa
acomodação natural. Noite sim, noite não, chovia muito, durante uma hora. Wolff
acordava então, em geral, porque o ar se tornava um pouco mais frio. Enfiava-se nas
folhas, tremia e tentava adormecer de novo.

Cada noite sentia maior dificuldade em fazer isso. Pensava no seu mundo, nos seus
amigos, no trabalho e nas alegrias que tivera ali — e na mulher. Que faria Brenda?
Sem dúvida que estaria preocupada com ele. Ainda que fosse amarga, maldosa e
rabugenta, amava-o. No entanto não ficaria desamparada. Insistia sempre em ter mais
apólices de seguros do que as que ele podia pagar; isso fora por mais de uma vez
motivo de discussão entre eles. Depois recordou-se que ela durante muito tempo não
receberia um centavo dos seguros, por falta da prova da morte dele. Teria de viver
da assistência social. Isso representaria um drástico abaixamento do seu nível de
vida, mas não morreria de fome.

A verdade é que ele não tinha qualquer intenção de voltar. Estava a regressar à
juventude. Ainda que comesse bem, perdia peso e os músculos tomavam-se mais fortes
e duros. Sentia uma nova elasticidade nas pernas e um sentido de alegria que
perdera aos vinte e poucos anos. Na sétima manhã passara a mão pela calva e
verificara que ela estava a cobrir-se de pequenos pêlos. Na décima manhã acordou
com dores nas gengivas. Esfregou a carne inchada e perguntou a si próprio se não
estaria doente.

As gengivas continuaram a incomodá-lo durante uma semana, e depois disso ele


começou a beber o licor fermentado, natural, da «noz-de-vinho», que crescia em
grandes cachos no alto de uma árvore esguia com ramos curtos, frágeis. Quando a sua
casca coriácea era aberta com uma pedra afiada, exsudava um odor semelhante ao de
vinho com fruta. Sabia a gim com um pouco de xerez e ardia como tequila. Fazia bem
à dor que ele sentia nas gengivas e também à irritação que a dor lhe gerara.

Nove dias depois de ter sentido a inflamação nas gengivas, dez dentes, pequenos,
brancos e duros começaram a furar-lhe a pele. Além disso, as coroas de ouro, nos
outros, começaram a ser empurradas pelo regresso do material natural. E uma penugem
negra e espessa cobriu a sua calva.

Não era tudo. A natação, as corridas e as escaladas tinham-lhe derretido a gordura.


As veias salientes tinham-se confundido com a carne firme e suave. Podia correr
longo tempo sem perder o fôlego ou sentir-se como se o coração estivesse prestes a
rebentar. Tudo isso o deliciava, mas não sem que perguntasse a si mesmo porquê e
como aquilo acontecera.

Perguntou várias vezes à gente da praia o que se passava com a juventude que todos
pareciam ter. A resposta foi sempre a mesma:

— É a vontade do Senhor.

A princípio pensou que falavam do Criador, o que lhe pareceu estranho. Tanto quanto
ele desse conta, não possuíam religião alguma.

— Quem é o Senhor?—perguntou ele.

Ipsewas, o zebrila, que era o mais inteligente de todos quantos ele até aí
encontrara, respondeu:

— Ele mora no cimo do mundo, atrás do Okeanos. — Apontou para cima e para além do
mar, para uma cadeia de montanhas do outro lado. — O Senhor vive num belo e
inexpugnável palácio no cimo do mundo. Foi ele que fez este mundo e nos fez a nós.
Costumava vir aqui muitas vezes divertir-se connosco. Fazíamos o que o Senhor dizia
e brincávamos com ele. Mas tínhamos sempre medo. Se ele se encolerizasse ou se
desgostasse, era capaz de nos matar. Ou de fazer coisas piores.

Wolff sorriu. Ipsewas e os outros não conheciam uma explicação mais racional das
suas origens ou da natureza do seu mundo que a gente da Terra. Mas a gente da praia
tinha uma coisa mais: a uniformidade da opinião. Todos diziam o mesmo que o
zebrila.

— É a vontade do Senhor. Ele fez o mundo e fez-nos também.


— Como sabem? — perguntou Wolff. Esperava que lhe respondessem como era hábito na
Terra. Mas ficou surpreendido.

— Oh — disse uma Sereia, Paiawa —, foi o Senhor que nos disse. Além disso, a minha
mãe também mo disse. Ela sabe-o bem. Foi o Senhor que fez o corpo dela. Ela
recorda-se disso, ainda que tivesse sido há muito e muito tempo.

— Sim? — perguntou Wolff, pensando que ela talvez estivesse a divertir-se à custa
dele. — E onde está a sua mãe? Gostaria de falar com ela.

Paiawa apontou para oeste.

— Está para ali.

«Ali» podia ser a milhares de quilómetros de distância, pois que ele não fazia
ideia da extensão da praia.

— Já não a vejo há muito tempo—acrescentou Paiawa.

— Há quanto? — perguntou Wolff.

Paiawa enrugou a sua testa adorável e estendeu os lábios. Lábios que mereciam ser
beijados, pensou Wolff. E aquele corpo! O regresso da mocidade estava a trazer-lhe
uma forte consciência do sexo.

Paiawa sorriu-se para ele e disse:

— Estás interessado em mim, não estás?

Ele corou e teve vontade de se afastar, mas queria obter uma resposta à pergunta
que fizera.

— Há quantos anos não a vês? — perguntou de novo.

Paiawa não soube responder. No seu vocabulário não existia a palavra «ano».

Wolff encolheu os ombros e afastou-se rapidamente, em direção à folhagem. Ela


chamou-o, primeiro carinhosamente, depois furiosa, quando viu que ele não voltava.
Fez algumas comparações pouco lisonjeiras entre ele e os outros machos. Ele não lhe
respondeu — seria uma coisa abaixo da sua dignidade e, além disso, o que ela dizia
era verdadeiro. Ainda que o seu corpo estivesse a readquirir rapidamente a
juventude e a força, ainda não tinha comparação possível com os espécimes quase
perfeitos que o rodeavam.

Pôs esses pensamentos de parte e tentou analisar a história de Paiawa. Se pudesse


encontrar a mãe dela ou uma das contemporâneas da mãe, poderia saber mais coisas
sobre o Senhor. Não duvidava da história da sereia, que teria sido inacreditável na
Terra. Aquela gente não mentia. Tinha uma imaginação limitada e pouco humor ou
espírito. Riam-se muito, mas a propósito de coisas muito óbvias e de pouca
importância.

Amaldiçoou-se a si mesmo porque sentia dificuldade em manter os seus pensamentos no


curso desejado. A dificuldade de se concentrar parecia maior de dia para dia. Ah,
sim, a mãe de Paiawa. Como poderia identificá-la se todos os adultos pareciam ter a
mesma idade? Vira muito poucos jovens — talvez três, entre centenas de pessoas que
até então encontrara. Além disso, entre as muitas centenas de animais que vira,
somente uma meia dúzia não eram adultos.
Por outro lado, vira apenas três animais mortos, todos por acidentes. A carne
desses animais não chegava a apodrecer e a cheirar mal. Criaturas que pareciam
estar presentes em toda a parte e que pareciam raposas bípedes, com narizes
brancos, orelhas pendentes e mãos de macaco, devoravam os cadáveres em menos de uma
hora. As raposas limpavam tudo. Gostavam do que fosse podre. Preferiam os frutos
meio apodrecidos aos intactos. Mas não eram notas destoantes naquela sinfonia de
beleza e vida. Mesmo no Jardim do Éden era necessário quem tratasse do lixo.

Por vezes Wolff olhava através do Okeanos azul, salpicado de branco, para a cadeia
de montanhas, chamada Thayaphayawoed. Talvez o Senhor vivesse ali. Talvez valesse a
pena atravessar o mar e subir os formidáveis degraus em busca da oportunidade de
esclarecer um pouco do mistério daquele mundo. Mas quanto mais ele procurava
calcular a altura de Thayaphayawoed, menos pensava em tal coisa. Nenhum homem
poderia viver numa montanha tão alta, pois que no cimo não haveria ar para ele
respirar.

CAPÍTULO III

UM dia, Robert Wolff retirou a trombeta de prata do seu esconderijo numa árvore
oca. Atravessou a floresta em direção ao penedo do qual o homem que se chamara a si
próprio Kickaha lhe atirara a trombeta. Kickaha e as criaturas nodosas tinham
desaparecido como se nunca houvessem existido e ninguém com quem ele tivesse falado
os vira ou sabia alguma coisa deles. Voltaria ao seu planeta nativo e procuraria
outra oportunidade. Se as vantagens dele fossem superiores às do planeta-jardim,
continuaria nele. Ou talvez pudesse viajar entre os dois e aproveitar o melhor de
cada um.

Pelo caminho parou por um momento para aceitar um convite de Elikopis para beber e
conversar um pouco. Elikopis, cujo nome significava «olhos brilhantes», era uma
bela e magnificamente arredondada dríade. Era mais próxima do «normal» que qualquer
outra que tivesse até então visto. Se o seu cabelo não fosse de um púrpura muito
escuro, ela, devidamente vestida, não teria atraído mais atenção na Terra que a
usualmente concedida a uma mulher de inultrapassável beleza.

Além disso, era uma das poucas que podia conversar de uma maneira aceitável. Wolff
sentia-se desgostoso e deprimido por verificar que a maior parte da gente da praia
eram monologadores, por muito interesse que parecessem ter em falar, ou por muito
gregários que fossem.

Elikopis era diferente, talvez por não fazer parte da mesma «multidão» ou de outra
qualquer, ainda que o inverso fosse o mais provável. Além disso, tinha um senso do
humor tão brilhante como os seus olhos, e também alguma sensibilidade. Naquele dia
ela tinha consigo uma atracão suplementar: um espelho de vidro colocado numa
moldura circular, dourada e incrustada com diamantes. Era um dos poucos artefactos
que ele vira.

— Onde foi que arranjaste isso? — perguntou ele.

— Oh, foi o Senhor que mo deu — respondeu Elikopis. — Há muito tempo, eu era uma
das suas favoritas. Sempre que ele descia do alto do mundo para me visitar passava
muito tempo comigo. Chryseis e eu éramos aquelas de quem ele mais gostava. Queres
acreditar que as outras ainda nos odeiam por esse motivo? Ê por isso que sou tão
solitária.

— E qual é o aspeto do Senhor?

Ela riu-se e disse:


— Do pescoço para baixo parece-se com qualquer homem alto, bem constituído. Como
tu...

Elikopis pôs-lhe um braço em volta do pescoço e começou a beijá-lo na face, os


lábios a escorregarem lentamente para a orelha.

— O rosto dele? — perguntou Wolff.

— Não sei. Podia senti-lo, mas não podia vê-lo. Irradiava luz de tal maneira que me
cegava. Quando ele se aproximava de mim eu tinha de fechar os olhos, por causa do
brilho.

Ela tapou-lhe a boca com beijos e ele acabou por esquecer as suas perguntas. Mas
depois, quando ela estava deitada, meio adormecida sobre a relva macia, ao lado
dele, ele agarrou no espelho e olhou-se nele. O seu coração abriu-se, deliciado.
Parecia que tinha vinte e cinco anos. Já o sabia, mas não o compreendera por
completo senão naquele momento.

— E se voltar à Terra envelhecerei tão rapidamente como recuperei a juventude?

Levantou-se e pensou durante algum tempo. Depois disse a si próprio:

— Mas porque é que eu penso em tal coisa? Não voltarei para trás.

— Se vais deixar-me—disse Elikopis, sonolenta—, olha por Chryseis. Aconteceu-lhe


qualquer coisa: foge sempre que alguém se aproxima dela. Nem sequer eu, que sou a
sua maior amiga, consigo chegar junto dela. Com certeza que lhe aconteceu qualquer
coisa — qualquer coisa de que ela não quer falar. Gostarás dela. Não é como as
outras, é como eu.

— Muito bem — respondeu Wolff, distraído. — Tratarei disso.

Afastou-se. Ainda que não quisesse usar a passagem pela qual viera, queria
experimentar a trombeta. Talvez houvessem outras passagens.

A árvore debaixo da qual parou era uma das numerosas cornucópias. Tinha sessenta
metros de altura, nove de espessura, uma casca suave, quase oleosa, e ramos tão
espessos como a sua coxa e com quase dezoito metros de comprimento. No extremo de
cada ramo havia uma flor dura, com dois metros e meio de comprimento e a forma
exata de uma cornucópia.

Das cornucópias caía intermitentemente uma matéria achocolatada, que sabia a mel
com um ligeiro toque de tabaco — uma mistura curiosa, mas agradável. Todas as
criaturas da floresta a comiam.

Tocou a trombeta debaixo da árvore. Não viu abrir-se qualquer <passagem». Tentou a
cem metros do primeiro lugar e nada conseguiu. Concluiu que a trombeta só
trabalhava em certas áreas, talvez somente no lugar do penedo.

Depois viu de relance a cabeça da rapariga que surgira detrás da árvore da primeira
vez que a passagem se abrira. Tinha o mesmo rosto em forma de coração, olhos
enormes, lábios muito vermelhos e longas faixas de cabelo negro e louro.

Saudou-a mas ela fugiu. O corpo dela era belo; as pernas eram as mais longas, em
relação ao corpo, que ele jamais vira numa mulher. Além disso, era mais esbelta que
as mulheres demasiado cheias de curvas e fortes de seios que abundavam naquele
mundo.
Wolff correu atrás dela. A rapariga olhou por cima do ombro, soltou um grito de
desespero e continuou a correr. Ele quase parou logo, porque nunca observara tal
reação em qualquer dos nativos. A rapariga correu até não poder mais. Soluçando,
sufocada, deixou-se cair sobre um penedo coberto de musgo, perto de uma pequena
catarata. Flores amarelas que lhe chegavam ao tornozelo e que tinham a forma de
pontos de interrogação rodeavam-na.

Wolff aproximou-se devagar e sorridente:

— Não tenhas medo de mim. Não te faço mal. Apenas quero falar contigo.

A rapariga apontou com um dedo trémulo para a trombeta. Numa voz hesitante, disse:

— Onde arranjaste isso?

— Deu-ma um homem chamado Kickaha. Vi-te com ele. Conhece-lo?

Os olhos enormes da rapariga eram verdes — talvez os mais bonitos que ele jamais
vira. Isso apesar das pupilas de gato. Ou talvez por causa delas.

Ela abanou a cabeça.

— Não, não o conheço. Vi-o pela primeira vez quando aquelas coisas... — a rapariga
engoliu em seco, tornou-se pálida e pareceu prestes a vomitar—...aquelas coisas o
levaram para o penedo. E vi-as tirá-lo do penedo e levarem-no com elas.

— Então ele não acabou? — Não disse morto ou assassinado porque eram palavras
proibidas.

— Não. Mas esses monstros não quereriam fazer-lhe alguma coisa pior que... acabar?

— Porque foi que fugiste de mim? — perguntou Wolff. — Eu não sou um desses
monstros.

— Eu... Não posso falar nisso.

Aquela gente tinha tão poucos fenómenos repelentes ou perigosos nas suas vidas, que
não podiam enfrentar aqueles que lhes surgiam.

— Não me importo se queres falar ou não sobre eles — disse Wolff. — Tens de o
fazer. Ê muito importante.

Ela voltou a cara.

— Não.

— Para onde foram eles?

— Quem?

— Esses monstros. E Kickaha.

— Ouvi ele chamar-lhes gworl — disse ela. — Nunca tinha ouvido falar em tal coisa.
Eles... os gworl... devem ter vindo de outro lado. — Apontou para o mar e para
cima. — Devem ter vindo da montanha. Lá em cima.

De repente ela voltou-se e aproximou-se dele. Os seus olhos enormes ergueram-se


para os dele e mesmo nesse momento ele não pôde deixar de pensar quanto eram
invulgares as suas feições e como era suave e branca a sua pele.
— Vamo-nos daqui! — gritou ela — Para multo longe! Essas coisas ainda cá estão.
Algumas delas levaram Kickaha, mas nem todas se foram embora! VI um par delas há
alguns dias. Estavam escondidas numa árvore oca. Os olhos delas brilhavam como os
dos animais e tinham um odor terrível, como de fruta podre!

Ela pôs a mão sobre a trombeta.

— Penso que querem isto!

— E eu que a toquei! — disse Wolff. — Se eles estiverem perto devem tê-la ouvido!

Olhou em volta por entre as árvores. Qualquer coisa brilhou numa moita, a poucas
centenas de metros.

Agarrou no braço da rapariga e disse:

— Vamos. Mas anda como se não tivéssemos visto nada. Disfarça...

Falou demasiado tarde, porque ela virou a cabeça de repente, abriu a boca e
agarrou-se a ele:

— São eles... São eles!

Olhou na direção que ela apontara e viu duas figuras escuras, atarracadas, surgir
detrás da moita. Cada uma delas tinha na mão uma lâmina de aço, comprida, larga e
curva. Brandiram as facas e gritaram qualquer coisa, numa voz rude e rouca. Não
usavam roupas sobre os corpos peludos e negros, mas um largo cinturão, em tomo da
cintura, suportava bainhas de que sobressaíam cabos de facas.

Wolff disse:

— Não tenhas receio. Não creio que eles possam correr muito com aquelas pernas
tortas e curtas. Há algum lugar para onde possamos ir, sem que eles nos sigam?

— Do outro lado do mar — disse ela, numa voz trémula.— Não creio que eles nos
apanhem se obtivermos grande avanço. Poderemos ir num histoikhthys.

Ela referia-se a um dos grandes moluscos que abundavam no mar. Tinham corpos
cobertos por conchas com a forma do casco de um iate de corrida. Uma haste de
cartilagem, esguia mas forte, projetava-se verticalmente das costas, com uma vela
triangular de carne, tão fina que era transparente. O ângulo da vela era regulado
pelo movimento muscular e a força do vento na vela, mais a expulsão de um jato de
água, permitiam que a criatura se movesse depressa, ao vento ou em calmaria. O povo
do mar e a gente da praia passeavam muitas vezes sobre essas criaturas, dirigindo-
as pela pressão sobre centros nervosos.

— Pensas que os gworl terão de usar um barco? — perguntou ele. — Se assim for,
terão pouca sorte. Nunca vi barco algum aqui.

Wolff e a rapariga chegaram a um ribeiro que tinha cerca de vinte metros de largura
e que, na sua parte mais profunda, lhes dava pela cintura. A água era fria, mas não
demasiadamente. Quando chegaram ao outro lado esconderam-se atrás de uma árvore-
cornucópia. A rapariga insistiu para que ele continuasse a fugir, mas Wolff disse:

— Eles ficarão em desvantagem quando chegarem ao meio do ribeiro.

— Que quer dizer?—perguntou ela.


Ele não respondeu. Depois de esconder a trombeta atrás da árvore, olhou em volta e
encontrou uma pedra. Tinha metade do tamanho da cabeça dele e era redonda. Depois
agarrou numa das cornucópias caídas. Ainda que enorme, era oca e não pesava mais de
nove ou dez quilos. Foi então que descobriu a fraqueza das horríveis criaturas.
Caminharam para cima e para baixo, ao longo da margem, brandindo as suas facas,
furiosas, e grunhindo tão alto que ele as ouvia do seu esconderijo. Por fim, uma
delas meteu um dos enormes pés na água. Retirou-o quase imediatamente, abanando-a
como um gato a uma pata molhada e disse qualquer coisa ao outro gworl. Esse recuou
e depois gritou-lhe.

O gworl que tinha o pé molhado gritou também, em resposta, mas avançou e entrou na
água, contrafeito. Wolff notou que o outro estava disposto a permanecer em terra
até que o seu companheiro atravessasse o ribeiro. Wolff esperou até que a criatura
passasse o meio da corrente; depois agarrou na cornucópia com uma das mãos e na
pedra com a outra e correu para o ribeiro. Atrás dele a rapariga gritou. Wolff
praguejou porque o gworl deu conta da sua aproximação.

A criatura parou, com água até à cintura, gritou para Wolff e brandiu a faca. O seu
companheiro hesitou, mas depois meteu-se também à água. Era o que Wolff pretendia.
Quando o gworl mais próximo brandiu a faca, Wolff colocou a cornucópia à sua
frente. A faca cravou-se na casca fina mas dura com uma força tremenda. A criatura
começou a tirar outra faca do cinto. Wolff não parou para arrancar a primeira da
cornucópia. Continuou a avançar. Quando o gworl tentou cravar a segunda faca,
largou a pedra e enfiou-lhe a cornucópia pela cabeça.

Ouviu-se um uivo abafado, dentro da casca. A cornucópia tombou e com ela o gworl, e
ambos começaram a flutuar, rio abaixo. Wolff continuou a correr através da água,
apanhou a pedra e agarrou o gworl por um dos pés. Olhou de relance para o outro e
viu que ele se preparava para lançar a faca. Agarrou na lâmina que ainda se
encontrava cravada na casca, arrancou-a e depois escondeu-se atrás da cornucópia.
Teve de largar o pé peludo do gworl, mas esquivou-se da faca que voou rente ã casca
e se enfiou até ao punho no lodo da margem.

Ao mesmo tempo o primeiro gworl conseguiu libertar-se da cornucópia. Wolff


esfaqueou-o num flanco, mas a lâmina ressaltou numa cartilagem. A criatura gritou e
voltou-se para ele. Wolff ergueu-se e cravou a faca com toda a força no ventre
dela. A lâmina entrou até ao punho. A criatura caiu na água. A cornucópia afastou-
se e Wolff ficou exposto, sem a faca e somente armado com a pedra. O outro gworl
avançou para ele, de punhal na mão.

Enquanto o gworl se aproximava, Wolff pôde observar que ele tinha uma testa muito
baixa; uma dupla crista óssea sobre os olhos; sobrancelhas espessas, musgosas;
olhos muito próximos um do outro, cor de limão; um nariz chato, com uma só narina;
beiços negros, de animal; um queixo curvo, fugidio, que dava à boca a aparência da
de uma rã, e os dentes agudos e separados de um carnívoro. A cabeça, o rosto e o
corpo estavam cobertos por pêlo comprido, espesso e negro. O pescoço era muito
grosso e os ombros pendentes. O pêlo molhado cheirava a fruta podre e bolorenta.

Quando o gworl chegou a cerca de dois metros de distância, Wolff ergueu-se.


Levantou a pedra, e a criatura, ao compreender as suas intenções, preparou-se para
atirar a faca. Mas a pedra voou direita ao alvo e bateu com grande estrondo na sua
testa. A criatura cambaleou, largou a faca e caiu na água. Wolff abaixou-se,
procurou a pedra, apanhou-a e levantou-se a tempo de enfrentar o gworl. Ainda que
mostrasse uma expressão confusa e tivesse os olhos tortos, a criatura não
abandonara a luta e empunhara outra faca.

Wolff levantou a pedra tão alto quanto pôde e bateu-lhe com ela no alto do crânio.
Ouviu-se um forte estalo. O gworl caiu para trás outra vez e desapareceu na água,
para surgir alguns metros adiante a flutuar de cabeça para baixo.
Wolff sentiu-se dominado pela reação. Tremia todo e estava agoniado. Mas lembrou-se
da faca enterrada no lodo e recuperou-a.

A rapariga ainda estava atrás da árvore. Parecia demasiado aterrorizada para poder
falar. Por fim explodiu num longo gemido e começou a chorar. Ele aguardou até que
todo o terror parecesse ter desaparecido e disse-lhe:

— Nem sequer sei o teu nome.

Os olhos enormes da rapariga estavam vermelhos e o rosto dela parecia mais velho.
Mesmo assim, pensou ele, não havia mulher alguma na Terra que se lhe pudesse
comparar.

— Chamo-me Chryseis — disse ela. — Sou a única mulher que pode usar esse nome. O
Senhor proibiu as outras de o usarem.

Ele resmungou.

— O Senhor, sempre o Senhor! Afinal, quem é ele?

— Não sabes? — perguntou ela, num tom incrédulo.

— Não, não sei. — Ele calou-se por um momento, como que para saborear o nome dela.
— Chryseis, hem? Eis um nome que não é desconhecido na Terra, ainda que me pareça
que a Universidade onde eu era professor deva estar cheia de alunos que nunca
ouviram falar nele. Tudo quanto sabem é que Homero escreveu a Ilíada.

«Chryseis, a filha de Chryses, um sacerdote de Apolo. Foi capturada pelos Gregos


durante o cerco de Troia e oferecida a Agamenão. Mas Agamenão foi obrigado a
devolvê-la ao pai por causa da peste enviada por Apoio.»

Chryseis franziu a testa e disse:

— Isso foi há tanto tempo que mal me lembro.

— De que é que estás a falar?

— De mim. De meu pai. Agamenão. A guerra. Sou Chryseis. Aquela de que falaste.
Parece que vieste mesmo agora da Terra. Ê verdade?

Ele suspirou. Aquela gente não mentia, mas ele tinha ouvido multas coisas incríveis
que mostravam que estavam não só mal informados mas também sempre prontos a
reconstituir o passado conforme lhes convinha. E faziam-no com toda a sinceridade.

— Não quero estragar o teu pequeno mundo de sonho — disse ele. — Mas essa Chryseis,
se de facto existiu, morreu há 3000 anos. Além disso, é um ser humano. Não tem
cabelo de tigre e olhos de gato.

— Também eu... então. Foi o Senhor que me raptou, que me trouxe para este universo
e mudou o meu corpo. Tal como raptou os outros, transformou-os ou implantou os seus
cérebros nos corpos que criou.

A rapariga fez um gesto na direção do mar e do céu.

— Ele vive ali agora e não o vemos muitas vezes. Alguns dizem que ele desapareceu
há muito tempo e que um novo Senhor ocupou o seu lugar.

— Vamo-nos embora — disse ele. — Falaremos mais tarde nisso.


Tinham andado uns quatrocentos metros quando Chryseis lhe fez sinal para que se
escondesse. Espreitou por entre as folhas douradas de uma moita e viu o que a
perturbara. A alguns metros estava um homem de pernas peludas e com grandes chifres
de carneiro na testa. Pousado num ramo, ao nível dos olhos do homem, encontrava-se
um corvo gigantesco. Era tão grande como uma águia dourada e tinha uma testa alta.
O crânio podia alojar um cérebro do tamanho do de um cão.

Wolff ficou estupefacto ao ver que o corvo e o homem estavam a conversar.

— O Olho do Senhor — murmurou Chryseis, ao mesmo tempo que apontava para o corvo. —
É um dos espiões do Senhor. Voam sobre o mundo e veem o que acontece nele, para
informarem de tudo o Senhor.

Wolff pensou na alusão aparentemente inocente de Chryseis à transferência de


cérebros para os corpos feitos pelo Senhor. Teria acontecido o mesmo com o corvo?
Ou o seu cérebro teria sido criado tendo um humano por modelo?

Infelizmente, por mais que procurassem só conseguiram ouvir poucas palavras, aqui e
ali. Passaram-se alguns minutos. O corvo despediu-se e voou. Um momento depois
desapareceu entre a folhagem das árvores. Um pouco mais tarde, Wolff voltou a vê-lo
de relance. O gigantesco pássaro estava a subir lentamente e afastava-se em direção
da montanha do outro lado do mar.

Wolff notou que Chryseis tremia. Perguntou-lhe:

— Porque é que te sentes tão assustada?

— Não é por mim, mas sim por ti. Se o Senhor te descobrir aqui, poderá matar-te.
Não gosta de intrusos no seu mundo.

Ela colocou a mão sobre a trombeta e estremeceu de novo.

— Sei que foi Kickaha quem te deu isto e que não tens culpa alguma do que
aconteceu. Mas o Senhor pode não saber disso. Ou, se souber, pode não atender a
tal. Faria coisas terríveis a ti; seria melhor que te acabasses a ti próprio
imediatamente do que deixares que o Senhor te apanhe.

— Kickaha roubou a trombeta? Sabes alguma coisa a esse respeito?

— Roubou-a, sim. É do Senhor. Kickaha roubou-a, certamente, porque o Senhor nunca a


confiou a ninguém.

— Os gworl fizeram alguma coisa a Kickaha?

A rapariga abanou a cabeça.

— Não. Mas fizeram a... a...

— Se não podes dizer o que se passou, mostra-me ao menos o que houve.

— Não posso. Foi... demasiado horrível.

— Mostra-me.

— Levar-te-ei ao pé. Mas não me peças para... para olhar para ela outra vez.

Começou a andar e Wolff seguiu-a. Pararam junto a uma moita de arbustos com folhas
verdes de grandes veios vermelhos, em cujas pontas se viam flores-de-lis.
— Ela está aí — disse Chryseis. — Vi o gworl... apanhá-la e levá-la para a moita.
Segui-os... e...— Não foi capaz de dizer mais uma palavra.

De faca na mão, Wolff empurrou os ramos dos arbustos. Deparou com uma clareira
natural. No meio, sobre a relva rasteira, estavam espalhados os ossos de uma
mulher. Eram cinzentos e estavam descarnados. Viam-se neles pequenas marcas de
dentes, pelas quais concluiu que os ferozes bípedes a tinham devorado.

Não se sentiu horrorizado, mas imaginou como Chryseis se devia ter sentido. A
rapariga devia ter visto parte do que acontecera — talvez uma violação, seguida de
um assassínio cometido da maneira mais horrível. E naquele mundo o assassínio era
uma coisa tão inconcebível que a palavra que o designava desaparecera da linguagem
havia muito tempo. Ali só havia lugar para os pensamentos e actos agradáveis.

Voltou para junto de Chryseis, que o fitava com os seus enormes olhos, e disse:

— Agora só restam dela os ossos. Já não sofre.

— Os gworl pagarão isto ! — disse ela num tom selvagem. — O Senhor não permite que
as suas criaturas sofram! O Jardim é seu e os intrusos são punidos!

A rapariga começou a chorar e ele abraçou-a. Ergueu o rosto dela e beijou-a. Ela
retribuiu-lhe o beijo com imensa paixão, mas as lágrimas não pararam.

Depois Chryseis explicou:

— Corri para a praia para dizer à minha gente o que se passara. Mas não me quiseram
escutar. Voltaram-me as costas e fingiram que não me ouviam. Insisti, mas
Owisandros— o homem com chifres que falava com o corvo — deu-me um soco e disse-me
para que me afastasse. Depois disso ninguém quis falar mais comigo. E eu...
precisava de amigos e amor.

— Não se ganham amigos e amor dizendo às pessoas aquilo que elas não gostam de
ouvir. Aqui ou na Terra.

Mas tens-me a mim e eu tenho-te a ti. Creio que começo a enamorar-me de ti, ainda
que possa ser uma simples consequência da solidão e do facto de possuíres a mais
estranha beleza que jamais vi. E também da minha nova mocidade.

Mudou subitamente de assunto:

— Se os gworl são intrusos, de onde vieram eles? E quem é Kickaha?

— Penso que é um Terreno.

— Que queres dizer com isso? Que ele veio da Terra?

— Que é um recém-chegado. Não sei porquê. Ê apenas um pressentimento.

Wolff ergueu-se e levantou-a nos braços.

— Vamos tentar descobrir para onde o levaram.

Chryseis pareceu sufocar. Afastou-se dele, colocou uma mão sobre o seio e disse:

— Não!

Ele retirou-lhe a mão do seio e beijou-a.


— Ê tempo de deixares este Paraíso que não o é. Não podes permanecer eternamente
aqui. Não podes ser sempre uma criatura.

A rapariga abanou a cabeça.

— Não poderei ser-te útil. Seria um obstáculo para ti. Além disso... se sair
daqui... acabarei.

— Terás de aprender um novo vocabulário — disse ele. — A morte será apenas uma das
novas palavras que terás de dizer sem um segundo pensamento ou um estremecimento.
Recusar dizer uma coisa não é o mesmo que evitar que ela aconteça. Os ossos da tua
amiga estão ali, queiras ou não falar deles.

— Isso é horrível!

— A verdade também o é, por vezes.

Afastou-se dela e dirigiu-se para a praia. Depois de ter andado uns cem metros
parou e olhou para trás. Viu que a rapariga começara a correr atrás dele. Esperou
por ela, abraçou-a, beijou-a e disse:

— Pode ser que encontres muitas dificuldades, Chryseis, mas não te sentirás
aborrecida, nem terás de beber para esqueceres a vida.

— Assim espero — disse ela, em voz baixa. — Mas tenho medo.

— Também eu, mas vamos andando...

CAPÍTULO IV

AGARROU na mão dela enquanto caminhavam lado a lado na direção das ondas. Tinham
percorrido cerca de cem metros quando viram o primeiro gworl. A criatura saiu
detrás de uma árvore e pareceu ter ficado tão surpreendida como Wolff. Gritou,
agarrou na faca e recomeçou a gritar. Em poucos segundos juntou-se um grupo de sete
gworl, todos eles com longas faças curvas.

Wolff e Chryseis tinham um avanço de cerca de cinquenta metros. Sempre de mãos


dadas com a rapariga e a trombeta na outra mão, Robert Wolff correu tanto quanto
pôde.

De vez em quando olhavam para trás. O mato era espesso e escondia os gworl.

— O penedo! — disse ele. — Está mesmo na nossa frente. Fujamos por aqui!

De repente deu conta de que não queria voltar ao seu mundo, mesmo que ele
representasse uma maneira de fugir e de se esconder durante algum tempo. A ideia de
ficar lá aprisionado e não poder voltar àquele Paraíso era tão assustadora que
quase resolveu não tocar a trombeta. Mas tinha de o fazer. Para que outro lugar
poderia ir?

Tudo ficou resolvido poucos segundos depois. Quando corria para o penedo, com
Chryseis, viu algumas figuras negras acocoradas na sua base. Levantaram-se e
tornaram-se em gworl, brandindo facas que relampejavam.

Wolff e a rapariga desviaram-se, enquanto as três criaturas que estavam junto do


penedo corriam atrás deles. Estavam mais próximos que os outros, Apenas a vinte
metros...

— Talvez eles queiram apenas a trombeta — disse a rapariga.

— Entregá-la-ei, se for necessário — respondeu ele. — Mas só em último recurso.

Chegaram ao cimo de uma colina. O terreno parecia findar de repente. Chryseis


deteve-o. Avançou à frente dele até à beira, parou, olhou e chamou-o. Quando chegou
junto dela, Wolff olhou também. Pareceu-lhe que apanhara um soco no estômago.

Junto aos seus pés havia uma ravina de rocha negra, brilhante, com quilómetros de
altura. E depois nada...

Nada senão o céu verde.

— Portanto isto é... o fim do mundo! — disse ele.

Chryseis não lhe respondeu. Correu ao longo da beira e disse:

— Mais uns sessenta metros. Atrás dessas árvores...

No mesmo momento um gworl saiu dos arbustos, no sopé da colina. Começou a gritar,
certamente para informar os seus companheiros de que encontrara a presa. E depois
atacou sem esperar por eles.

Wolff correu para a criatura. Quando a viu erguer a faca, lançou sobre ela a
trombeta. O gworl surpreendeu-se, agarrou na trombeta e soltou um grito de delícia.
Wolff aproveitou-se desse momento de distração. Lançou-se sobre ele e tentou
cravar-lhe a faca no ventre. Mas o gworl defendeu-se com a sua arma. Wolff errou o
golpe.

Compreendendo que Wolff estava em má situação, a criatura riu-se. Os seus caninos


superiores brilharam, longos, húmidos, amarelos e afiados. Quem tinha uns dentes
como aqueles não precisava de facas.

Uma coisa dourada, com cabelo comprido, negro e ouro, saltou como um relâmpago. A
ponta de um ramo, comprido e sem folhas, cravou-se no peito do gworl. Na outra
ponta estava Chryseis. Correra com o ramo como um atleta a saltar à vara e batera
na criatura com tal força que a fizera cair. O gworl deixou cair a trombeta, mas
conservou a faca na outra mão.

Wolff saltou e cravou a lâmina entre duas bossas cartilaginosas, no espesso pescoço
do gworl. Os músculos eram espessos e duros, mas não o bastante para deter a faca.
Só parou quando cortou a garganta. Depois deu a faca a Chryseis.

A rapariga aceitou-a, mas parecia encontrar-se em estado de choque. Wolff


esbofeteou-a de uma maneira selvagem até ela despertar.

— Portaste-te muito bem!—disse ele.

Retirou o cinturão do corpo do gworl e apertou-o em torno de si próprio. Agora


tinha três facas. Começou de novo a correr. Chryseis seguia à frente. De repente a
rapariga saltou para um carreiro na face da ravina, com uma inclinação de quarenta
e cinco graus. Ouviu-se um rugido vindo de cima. Wolff olhou e viu um gworl a
saltar também para o carreiro. Depois olhou para a frente e a surpresa quase o fez
cair. Chryseis tinha desaparecido.

Lentamente, virou a cabeça e olhou para baixo. Esperava vê-la a cair para o abismo
verde, mas ouviu-a chamar:
— Wolff!—A cabeça da rapariga saía da própria escarpa. — Há uma caverna aqui.
Depressa!

O cimo da caverna era muito mais alto que a cabeça dele. Quando abria os braços
quase podia tocar as paredes de ambos os lados; o interior escondia-se em trevas.

— É muito comprida?

— Não muito. Mas há um poço natural que desce até ao fundo do mundo. Não há nada
lá, além de ar e céu.

— Não pode ser — disse ele. — Mas é. Um universo fundamentado em princípios físicos
completamente diferentes dos do meu. Um planeta plano, com bordos. Não consigo
compreender como a gravidade funciona aqui. Onde é o centro?

A rapariga encolheu os ombros e disse:

— O Senhor deve-me ter dito isso há muito tempo. Mas eu esqueci-me. Esqueci até que
ele me disse que a Terra era redonda.

Wolff tirou o cinturão de couro, libertou-o das bainhas das facas e agarrou numa
pedra negra, oval, que pesava perto de cinco quilos. Fez passar a correia pela
fivela e depois colocou a pedra dentro do laço. Depois apertou-o. Era uma arma que
permitia manter o inimigo a distância.

— Agora põe-te atrás de mim e um pouco ao lado — disse ele. — Se algum escapar,
empurra-o enquanto ele estiver a tentar equilibrar-se. Mas não caias também. Falai
do mau...

Dedos negros, peludos e contorcidos surgiram no rebordo da entrada da caverna. Ele


lançou o cinto com tanta força que a pedra presa nele esmagou a mão. Ouviu-se um
berro de surpresa e dor, e depois um longo grito ululante quando o gworl caiu.
Wolff aproximou-se da beira, tanto quanto pôde, e fez girar de novo o cinto com a
pedra, sobre a esquina. Bateu em qualquer coisa mole. Ouviu-se outro grito que
também se extinguiu no nada do céu verde.

— Ainda faltam sete! Se não aparecerem outros...

— A trombeta? — perguntou Chryseis.

— Eles não nos largarão agora, mesmo que eu lhes dê a trombeta. E, além disso, não
estou disposto a tal coisa. Seria mais fácil que a lançasse para o céu.

Um gworl surgiu subitamente na boca da caverna, como se tivesse caído de cima. Caiu
sobre os pés, cambaleou um pouco e lançou-se em frente, tornado numa bola de pêlos.
Wolff ficou tão surpreendido que não reagiu imediatamente. Não esperava que as
criaturas surgissem de cima, porque a rocha, aí, era lisa. De qualquer modo, um
gworl tinha-o conseguido e estava agora ali, de pé e de faca na mão.

Wolff atirou sobre ele o cinto com a pedra. A criatura saltou, ao mesmo tempo que
lançava a faca pelo ar. A pedra passou por cima da cabeça peluda, a faca tocou ao
de leve o ombro de Wolff. Outro vulto escuro caiu na caverna, vindo de cima, e um
terceiro surgiu de lado.

Qualquer coisa bateu-lhe na cabeça. Começou a perder a vista, os sentidos tom aram-
se-lhe confusos, os joelhos vergaram.

Quando acordou, com uma dor no lado da cabeça, teve uma sensação terrível. Parecia
estar de cabeça para baixo, flutuando sobre um enorme disco polido. Havia uma corda
em torno do seu pescoço e tinha as mãos atadas atrás das costas. Estava suspenso
com os pés para o ar, ainda que houvesse apenas uma ligeira tensão da corda em tomo
do pescoço.

Virou a cabeça para trás e viu que a corda se prolongava até um poço no disco e de
que do outro lado do poço havia uma luz pálida.

Não estava suspenso de cabeça para baixo, contra todas as leis da gravidade. Estava
pendurado por uma corda do fundo do planeta. O verde por baixo dele era o céu.

Pensou: Já devia estar estrangulado. Aqui não há gravidade a puxar-me para baixo.

Esperneou e a reação fê-lo subir. A boca do poço aproximou-se. A cabeça entrou


nela, mas sentiu uma resistência. O movimento tornou-se mais lento e parou. Como se
tivesse batido contra uma mola invisível, começou a voltar para trás e só parou
quando a corda ficou de novo tensa.

Não tinha maneira de sair dali. Acabaria por morrer de fome. E o seu corpo ficaria
a balouçar nos ventos do espaço até que a corda apodrecesse. E depois não cairia;
ficaria a flutuar, à deriva, na sombra do disco. Os gworl que ele fizera cair do
rebordo tinham continuado em frente, mas devido à aceleração inicial.

Ainda que numa situação desesperada, não pôde deixar de especular sobre a
configuração gravitacional do planeta plano. O centro devia estar exatamente no
fundo, de modo que toda a atração se fazia para cima, através da massa do disco.
Daquele lado não havia nenhuma.

Que teriam feito os gworl a Chryseis? Tê-la-iam morto, como à sua amiga?

Apesar de se encontrar na sombra do disco negro, podia ver a marcha do Sol. Ainda
que ele fosse invisível, devido à interposição do disco, a sua luz surgia na
periferia da imensa curva e caminhava lentamente ao longo dela. Havia outra luz
pálida — a da Lua seguindo o Sol. O resto eram trevas.

Deve ser meia-noite, pensou ele. Se os gworl a levarem a qualquer parte, devem
estar a alguma distância, no mar. Se a estão a torturar, é provável que esteja
morta. Se a maltrataram, é melhor que tenha morrido.

De repente sentiu um esticão na corda. O nó apertou-se, ainda que não o suficiente


para o sufocar, e começaram a puxá-lo para o poço. Depois a cabeça dele quebrou a
tensão da gravidade — uma tensão que lhe lembrou a da superfície dos líquidos—e foi
içado do abismo. Grandes mãos e braços agarraram-no contra um peito duro, quente e
peludo.

— Ipsewas? — perguntou Wolff.

O zebrila respondeu:

— Sim. Cala-te. Não posso desperdiçar o meu fôlego, isto vai ser difícil.

Wolff obedeceu, ainda que tivesse dificuldade em não perguntar o que acontecera a
Chryseis. Quando chegaram ao cimo do poço, Ipsewas retirou a corda do pescoço dele
e colocou-o no chão da caverna.

Por fim ele atreveu-se a dizer:

— Onde está Chryseis?


Ipsewas virou Wolff e começou a desamarrar-lhe os pulsos. Arquejava violentamente,
mas disse:

— Os gworl levaram-na para o mar e começaram a atravessá-lo na direção da montanha.


Ela gritou-me e pediu-me que a ajudasse. Depois um deles bateu-lhe e deixou-a
inconsciente. Eu estava bêbado como o Senhor, meio inconsciente com sumo de noz, a
passar um bom bocado com Autonoe — conheces, a akowile da boca grande.

«Antes de Chryseis perder os sentidos gritou qualquer coisa sobre te terem suspenso
do Poço do Fundo do Mundo. Pensei em socorrê-la. Mas o gworl mostraram-me aquelas
facas compridas e disseram que me matavam. Corri atrás deles e eles lançaram o
barco ao mar, com Chryseis a bordo. Procurei um histoikhthys. Uma vez na água tê-
los-ia nas mãos, com facas ou sem facas. Não creio que saibam nadar.

— Também eu — disse Wolff.

— Mas não havia qualquer histoikhthys ã vista. E o vento estava a levar o barco
para longe. Voltei a Autonoe e voltei a beber. Podia ter-te esquecido, tal como
estava a tentar esquecer o que tinha acontecido a Chryseis. Mas Autonoe, apesar do
seu pobre cérebro conservado em álcool, recordou-me o que Chryseis dissera a teu
respeito.

— Se não tivesses vindo eu teria ficado ali até morrer de sede. Agora Chryseis tem
uma possibilidade de escapar, se eu a descobrir. Vou procurá-la. Queres vir?

Wolff esperava que Ipsewas lhe dissesse que sim, mas não que o zebrila mantivesse a
mesma decisão ao chegar junto das águas. Com sua surpresa, ele começou a nadar,
agarrou-se a uma saliência da casca quando um hoistoikhthys passou perto e saltou
para o lombo da criatura. Guiou-o para a praia premindo os grandes pontos nervosos,
manchas escuras visíveis na pele logo atrás da casca cónica que formava a proa da
criatura.

Cumprindo as instruções de Ipsewas, Wolff manteve a pressão num ponto para manter o
peixe-vela (era a tradução literal de histoikhthys) junto à praia. O zebrila reuniu
algumas braçadas de frutos e nozes, entre elas muitas de vinho.

— Temos de comer e beber, e especialmente de beber — murmurou Ipsewas. — Do Okeanos


à montanha deve ser uma longa caminhada.

Pouco depois o vento começou a impelir a vela de cartilagem e o grande molusco


engoliu água que ejetou pela traseira, através de uma válvula de carne.

— Os gworl levam-nos avanço — disse Ipsewas. — Mas não têm uma velocidade
comparável à nossa. — Abriu uma noz-de-vinho e deu o líquido a beber a Wolff, que o
aceitou. Estava exausto mas nervoso. Precisava de qualquer coisa que o atordoasse e
o deixasse dormir.

Quando Wolff acordou, viu que o Sol estava a surgir por detrás da montanha. A lua-
cheia (era sempre cheia porque a sombra do planeta nunca incidia sobre ela)
começava a desaparecer do outro lado.

Sentiu-se esfomeado e comeu alguma fruta. Depois deitou-se de novo, junto de


Ipsewas. Disse-lhe:

— O peixe-vela é útil. Parece quase bom de mais.

— O Senhor concebeu-os para o prazer dele e nosso — respondeu Ipsewas.

— O Senhor fez este universo? — disse Wolff, já não muito certo de que a história
fosse um mito.

— É melhor que acredites nisso — respondeu Ipsewas e bebeu de novo. — Porque, se


assim não for, o Senhor acabará contigo. De qualquer maneira, duvido que ele te
deixe continuar aqui. Não gosta de intrusos. — Ergueu a noz-de-vinho e acrescentou:
— Estás a escapar ao seu aviso!

Largou a noz e atirou-se sobre Wolff, que foi apanhado de surpresa de tal modo que
não teve tempo de se defender. Caiu no fundo da concha com o corpo de Ipsewas por
cima.

— Quieto! — disse o zebrila. — Mantém-te aí enquanto eu não te disser para saíres.


Anda aí um Olho do Senhor!

A enorme ave sobrevoou a concha e começou a planar, para descer na popa do peixe-
vela.

— Maldição! Ê impossível que ele não me veja — murmurou Wolff.

— Não percas a cabeça — disse Ipsewas.— Ahhh!

Ouviu-se um estrondo e um grito que fizeram Wolff saltar e bater com a cabeça, com
força, na concha por cima dele. Através de relâmpagos de luz e trevas viu o corvo
suspenso, inerte, em duas grandes garras. Se o corvo tinha o tamanho de uma águia,
aquele que o matara caíra como um relâmpago do céu verde e parecia tão grande como
uma roca. Quando a visão de Wolff se tornou mais clara, ele viu uma águia com um
corpo verde-claro, uma cabeça vermelha e um bico amarelo. Os olhos dela pareciam
espelhos negros, refletindo as chamas da morte.

A águia afastou-se. Ipsewas disse com um sorriso:

— Tens razão para tremeres. Isto era um dos bichinhos de Podarge. Ela odeia o
Senhor e atacá-lo-ia em pessoa, mesmo se soubesse que isso representaria o fim
dela. Do que não poderia haver dúvidas. Sabe que não pode alcançá-lo, mas diz aos
seus animaizinhos favoritos para devorarem os Olhos do Senhor. Como aconteceu
agora.

— Quem é Podarge? - perguntou Wolff saindo do seu abrigo.

— Tal como eu, é um dos monstros do Senhor. Também viveu em tempos nas praias do
Egeu. Era uma bela rapariga, dos tempos do grande rei Priamos e dos semideuses
Akhilleus e Odysseus. Conheci-os a todos; eles cairiam das nuvens se vissem agora o
cretense Ipsewas, o marinheiro valoroso e combatente de espada. Mas eu falava de
Podarge. O Senhor trouxe-a para este mundo, fez um corpo monstruoso e colocou nele
o cérebro dela.

«Vive em qualquer parte, numa caverna na própria montanha. Odeia o Senhor e todos
os seres humanos. Ê capaz de te comer, se os seus bichinhos não te apanharem
primeiro. Mas, acima de tudo, ela odeia o Senhor.»

Parecia ser tudo quanto Ipsewas sabia dela, além de Podarge não ter sido o nome
dela antes de o Senhor a ter trazido para ali. Wolff estava interessado em saber o
que Ipsewas lhe podia dizer sobre Agamenão, Aquiles e Odisseu. Teriam de facto
existido?

— Evidentemente — respondeu o zebrila. — Suponho que tens curiosidade de saber como


eram esses dias. Mas não te posso dizer muita coisa. Foi há demasiado tempo. E
entretanto bebi demasiado álcool.
Por fim ouviram o ruído das ondas a bater na praia e uma linha branca, fina, de
espuma, surgiu na base de Thayaphayawoed. A montanha, tão lisa à distância,
aparecia agora cortada por fendas e agulhas, escarpas e fontes de pedra.

Wolff sacudiu Ipsewas até ele acordar. O zebrila tinha os olhos avermelhados.
Coçou-se, tossiu, bebeu mais uma vez e por fim dirigiu o peixe-vela de modo a
tornar o seu rumo paralelo à base da montanha.

— Conhecia bem esta região — disse ele. — Uma vez pensei em subir a montanha,
procurar o Senhor e...— Fez uma pausa, coçou a cabeça, pestanejou e disse: — Matá-
lo! Isso! Já não me recordava da palavra! Mas não importa! Não teria coragem de o
fazer sozinho.

— Agora estás comigo — observou Wolff.

Ipsewas apontou para uma espécie de degraus grosseiros.

— Vai por aí. Senti-me cansado e assustado e por isso voltei ao Jardim. Pensei que
nunca mais viria aqui. E agora sinto o mesmo. Desejo que tenhas sorte.

— Obrigado por tudo quanto fizeste — disse Wolff. — Se não fosses tu, ainda estaria
a balouçar na corda. Talvez te veja de novo... com Chryseis.

— O Senhor é demasiado poderoso — respondeu Ipsewas. — Pensas que és capaz de


vencer alguém apto a criar o seu próprio universo?

— Tenho uma possibilidade — disse Wolff. — Enquanto lutar, usar a minha cabeça e
tiver alguma sorte.

Saltou da concha e quase escorregou na rocha molhada. Ipsewas gritou:

— Mau agouro, meu amigo!

Wolff voltou-se, sorriu e gritou:

— Não creio em agouros, meu supersticioso amigo! Até à vista!

CAPÍTULO V

COMEÇOU a subir a montanha e só olhou para baixo uma hora depois. O grande peixe-
vela era um ponto branco e distante. Ainda que Wolff soubesse que Ipsewas não o
podia ver, acenou-lhe e continuou a subir.

Passou-se outra hora e viu-se sobre uma larga plataforma na face da escarpa. Tinha
as mãos e os joelhos em sangue e a ascensão fatigara-o. Pensou em passar a noite
ali, mas mudou de ideias. Tinha de aproveitar a luz enquanto ela durasse.

Perguntou a si próprio se Ipsewas não se enganara quando dissera que os gworl


tinham tomado aquele caminho. Não encontrara quaisquer vestígios da sua passagem.
Mas passados alguns minutos, encontrou uma das árvores que nasciam da própria
rocha. Por baixo dos seus ramos cinzentos, contorcidos, e das folhas castanhas e
verdes estavam nozes quebradas e os restos de outros frutos. Alguém passara por
ali, não havia muito. Isso deu-lhe novas forças. E nas cascas das nozes ainda havia
polpa suficiente para satisfazer o seu estômago.

Seis dias subiu e seis noites descansou. Havia vida na escarpa; pequenas árvores e
grandes arbustos, aves de todas as espécies e muitos animais pequenos. Wolff matou
pássaros com pedras e comeu a sua carne crua. Com um pedaço de pedra rija fez uma
faca grosseira mas cortante. Com outra semelhante a um ramo fez uma lança curta.
Emagreceu e encheu as mãos e os Joelhos de espessos calos. A barba cresceu-lhe.

Na manhã do sétimo dia olhou para baixo e calculou que já devia estar a cerca de
três mil e quinhentos metros acima do nível do mar. No entanto o ar não era menos
denso e mais frio que quando ele começara a subir. O mar, que devia ter pelo menos
trezentos quilómetros de largura, parecia um grande rio. Para além dele estava a
beira do mundo, o Jardim de onde ele partira em busca de Chryseis e dos gworl.

A meio do oitavo dia encontrou uma cobra que comia um gworl morto. Tinha doze
metros de comprimento e estava coberta de losangos negros e signos-saimão
escarlates. Possuía pés que eram estranhamente humanos e saíam do corpo sem a
interposição de pernas. Nas mandíbulas viam-se três filas de dentes semelhantes aos
de um tubarão.

Wolff atacou-a sem hesitar, porque viu que do seu flanco saía uma faca e escorria
sangue fresco. A cobra sibilou, desenrolou-se e começou a recuar. Wolff cravou a
lança num dos olhos verde-escuros. O animal sibilou com mais força e agitou
loucamente os pés. Wolff retirou a lança e cravou-a de novo, profundamente, numa
mancha branca atrás do maxilar da cobra. A criatura agitou-se com tal força que lhe
arrancou a lança das mãos. Caiu para o lado, arquejando violentamente, e morreu.

Ouviu-se um grito vindo de cima. Wolff já o ouvira, quando chegara no peixe-vela.


Viu uma sombra e lançou-se ao chão. Rolou até encontrar uma fenda. Uma águia
enorme, de corpo verde e cabeça vermelha, descera sobre a cobra e estava a devorá-
la.

A ave comeu durante todo o dia e não abandonou a presa durante a noite. A meio do
dia seguinte ainda não mostrava quaisquer intenções de partir. Wolff tinha fome e
sede. Quando a noite chegou, Wolff sentiu-se desesperado. Por certo que a ave não
sairia daqui enquanto tivesse alguma coisa que comer.

Saiu da fenda e apanhou a lança, que se libertara da cobra quando a águia começara
a devorá-la. A águia fitou-o e soltou um grito. Wolff saltou sobre a ave, que se
assustou e recuou. Aparentemente apenas queria defender a comida que encontrara.

Wolff continuou a subir. A meio da manhã seguinte deparou com outro gworl. Tinha
uma perna esmagada e tentava defender-se de uma dúzia de animais semelhantes a
porcos bravos que o cercavam ameaçadoramente. Wolff subiu para um penedo e começou
a atirar pedras aos animais. Teria sido melhor que o não fizesse. Os porcos
lançaram-se sobre ele. Não teve tempo de apanhar a lança, que largara para agarrar
as pedras, mas levantou uma pedra duas vezes maior que a sua cabeça e deixou-a cair
sobre um dos animais, que foi imediatamente devorado pelos outros, dando-lhe tempo
para agarrar a lança e fugir pela traseira do penedo.

O gworl não se mostrou reconhecido. Rosnou e ergueu a faca, disposto a cravá-la em


Wolff, que se manteve à distância. Via-se um osso quebrado, a sair da carne
esmagada abaixo do joelho. Wolff teve uma reação inesperada. Voltou-se para a
criatura e perguntou-lhe:

— Quer que a ajude?

O gworl respondeu com rugidos roucos e ergueu a faca ainda com maior fúria. Atirou-
se sobre Wolff, que se desviou e a apanhou, depois do que repetiu a pergunta, ao
mesmo tempo que avançava sobre a criatura. O gworl voltou a rugir, mas com menos
força. Quando Wolff se inclinou para fazer mais uma vez a pergunta, foi atingido no
rosto por uma massa de saliva.
Isso despertou a sua cólera e o seu ódio. Cravou a faca no espesso pescoço do
monstro, que esperneou violentamente e morreu. Wolff encontrou uma bolsa de couro
presa ao cinto do gworl. Continha carne seca, fruta também seca e pão muito duro,
assim como um cantil com um líquido muito ardente. Ainda que não soubesse que carne
era aquela, e ainda que o pão fosse quase tão rijo como pedra, a fome era muita
para que rejeitasse uma coisa ou outra.

Continuou a subir. Os dias e as noites passaram-se sem que visse mais sinais dos
gworl. O ar era denso e quente como ao nível do mar, ainda que, pelos seus
cálculos, devesse estar pelo menos a uma altitude de nove mil metros. Nessa noite
acordou com a sensação de que dúzias de pequenas mãos peludas tocavam o seu corpo.
Lutou contra elas, apenas para verificar que eram demasiado fortes. Ataram-no de
mãos e pés com uma corda que parecia feita de fibras verdes e levaram-no para a
plataforma de pedra em frente da caverna em que ele se abrigara. Ao luar pôde ver
que eram dúzias de bípedes com uns setenta e cinco centímetros de altura, cobertos
de pêlo cinzento mas com uma espécie de colar branco. Os focinhos eram negros e
pareciam de morcego. As orelhas eram enormes e pontiagudas.

Em silêncio, levaram-no da plataforma para outra fenda, que comunicava com uma
grande câmara de cerca de nove metros de largura e seis de altura. Cheirava a carne
podre e o luar que entrava por um orifício no teto mostrou de facto uma pilha de
ossos. Não tardou que todos se lançassem sobre o corpo de Wolff e começassem a
tentar devorá-lo com os seus dentes pequenos mas afiados.

Wolff tentou lutar, mas dir-se-ia que os dentes, ao morderem, injetavam qualquer
anestésico. A dor desapareceu rapidamente. Sentiu-se sonolento e estava quase a
adormecer quando uma luz surgiu na caverna. As criaturas fugiram para o fundo da
caverna. Atrás da luz apareceu o rosto de um velho, com um nariz adunco e
sobrancelhas espessas, em arcadas muito salientes. O corpo magro estava coberto por
um manto branco, sujo. Na mão cortada por veias salientes tinha uma vara em cuja
ponta se via uma safira, tão grande como o punho de Wolff, talhada na imagem de uma
harpia.

O velho fez um gesto com a vara e algumas das criaturas correram para junto de
Wolff e libertaram-no rapidamente. Wolff conseguiu pôr-se de pé, mas a cambalear de
tal modo que o velho teve de o amparar e ajudar a sair da caverna.

O velho disse em grego:

— Não tardará a sentir-se melhor. O veneno não dura muito tempo.

— Quem é você? Aonde me vai levar?

— Para longe deste perigo — respondeu o velho. Levou Wolff para outra caverna e daí
para uma sucessão de câmaras que subiam. Depois de terem percorrido uns três
quilómetros, o velho parou perante uma câmara com uma grande porta de ferro.
Entregou o archote a Wolff, abriu a porta e fez-lhe sinal para que entrasse. A
porta fechou-se atrás dele, com estrondo.

A primeira coisa que o surpreendeu foi o odor sufocante. A seguir, as duas águias
de cabeça vermelha que se aproximaram dele. Uma falou numa língua que parecia de um
papagaio gigante e ordenou-lhe que marchasse em frente. Notou, ao mesmo tempo, que
as criaturas de focinho de morcego lhe tinham tirado a faca. Mas ela não lhe teria
sido muito útil. A caverna estava cheia de águias.

Encostadas a uma parede viam-se duas jaulas. Numa havia um grupo de seis gworl. Na
outra estava um rapaz alto, de boa figura, com uns calções de pele de gamo.

Sorriu-se para Wolff e disse:


— Então você conseguiu! Como mudou!

Só então ele reconheceu o rosto bronzeado e alegre. Era o homem que lhe atirara a
trombeta e se chamava Kickaha.

CAPÍTULO VI

WOLFF não teve tempo de responder porque a porta da jaula foi aberta por uma das
águias que usava as patas com tanta habilidade como se fossem mãos. Empurrou-o com
o bico para a jaula e fechou a porta.

— Então cá está você!—disse Kickaha.— A questão agora é saber o que vamos fazer. A
nossa estada aqui pode ser curta e desagradável.

Wolff olhou em volta, através das grades, e viu uma mulher. Ou melhor: uma meia-
mulher, porque tinha asas em vez de braços e a metade inferior do seu corpo era a
de uma ave. Mas da cintura para cima era uma mulher como poucos homens tinham tido
o privilégio de ver. A pele era branca como leite, os seios soberbos, a garganta
uma coluna de beleza. O cabelo era comprido, negro e escorredio. Caía sobre um
rosto que era ainda mais belo que o de Chryseis — uma confissão que ele nunca
pensara poder vir a fazer.

No entanto havia qualquer coisa horrível nessa beleza — a loucura. Os olhos eram
tão ardentes como os de um falcão enjaulado.

Wolff perguntou a Kickaha:

— Onde está Chryseis?

— Quem?

Descreveu em poucas palavras quem era a rapariga e o que lhe acontecera.

Kickaha abanou a cabeça.

— Nunca a vi.

— Mas os gworl...

— Deve haver dois bandos. Os outros levaram Chryseis e a trombeta. Não se importe
com eles. Se não conseguirmos sair disto estaremos acabados. E de uma maneira
horrível.

Wolff perguntou quem era o velho. Kickaha respondeu que fora um amante de Podarge.
A harpia reservava-o agora para os trabalhos humildes, que exigiam mãos humanas.

Podarge agitou-se no seu trono e abriu as asas com um ruído que parecia o de um
trovão distante.

— Vocês dois!—gritou ela. — Calem-se! Kickaha, que mais queres que te diga antes de
lançar sobre ti os meus animaizinhos?

— Queres que eu repita o que te disse? — gritou Kickaha. — Odeio tanto o Senhor
como tu. E ele odeia-me e quer matar-me! Sabe que eu roubei a sua trombeta e que
sou um perigo para ele. Os seus Olhos esquadrinham os quatro níveis do mundo em
minha busca...
— Onde está, a trombeta que dizes ter roubado ao Senhor? Estás a mentir para salvar
essa ignóbil carcaça!

— Disse-te que abri a passagem para o mundo próximo e a atirei a um homem que me
apareceu. Aqui está ele!

Podarge voltou a cabeça como se fosse a de uma águia.

— Não vejo qualquer trombeta — disse ela.

— Ele diz que outro bando de gworl a roubou. Perseguia-os quando os cara-de-morcego
o apanharam. Liberta-nos, bela e grandiosa Podarge e nós te traremos a trombeta.
Com ela poderás lutar contra o Senhor!

Podarge ergueu-se, fechou as asas e disse numa voz mais baixa mas igualmente forte:

— Gostaria de crer em vocês! Se isso fosse possível! Esperei anos e anos, séculos e
milénios, tanto tempo que o meu coração dói ao recordar-se dele! Se as armas
necessárias para a minha vingança surgissem nas minhas mãos...

Fitou-os, abriu as asas e disse:

— Vejam! As minhas mãos são estas! Onde estão as que eu tinha? Onde está o meu
corpo? — Explodiu numa fúria que fez recuar Wolff. Uma fúria que se aproximava da
divindade ou da inconsciência e que o gelava.

— Se pudermos vencer o Senhor — e creio que o poderemos fazer — terá de novo o seu
corpo de mulher — disse Kickaha quando ela se calou.

Ela fitou-os com um olhar assassino. Wolff pensou que tido estava perdido, mas as
palavras seguintes mostraram-lhe que o olhar não lhes era dirigido:

— O Senhor desapareceu há muito, ao que dizem. Mandei um dos meus animais


investigar essa história e ele voltou com uma história ainda mais estranha. Disse
que havia lá um novo Senhor, mas não sabia se era o mesmo num novo corpo. Mandei-a
ir lá de novo e falar com o Senhor, que recusou devolver-me ao meu corpo
verdadeiro. Portanto, pouco me importa que seja ou não o Senhor verdadeiro. Tem de
morrer! Depois saberei se ele tinha ou não um corpo novo. E se o antigo Senhor
tiver deixado este universo, persegui-lo-ei através dos mundos, até o encontrar!

— Não poderá fazê-lo sem a trombeta — disse Kickaha.

— Que tenho eu a perder? — disse Podarge. — Se vocês me enganarem ou me traírem,


acabarei por os apanhar e a caçada será divertida.

Falou à águia que se encontrava ao seu lado e ela abriu a jaula. Kickaha e Wolff
seguiram a harpia através da caverna até uma grande mesa com cadeiras à volta. Só
então Wolff notou que a caverna estava cheia de tesouros: grandes malas cheias de
belas joias, colares de pérolas, taças de ouro e prata. Estatuetas de marfim e de
madeira negra e rija. Quadros magníficos. Armaduras e armas de todas as espécies —
mas não de fogo — estavam empilhadas aqui e ali.

Das sombras saiu um jovem louro.

— Um dos seus amantes — murmurou Wolff. — Foi trazido pelas águias de um nível
chamado da Teutónia.

— Coitado! Sempre é melhor que ser devorado vivo...


Beberam vinho por copos de cristal cinzelado, com a forma de um peixe saltando
sobre as ondas.

— A morte e maldição do Senhor! E portanto ao vosso sucesso!—gritou Podarge,


levando o seu copo à boca, entre as pontas das asas.

Acordou subitamente. A luz do Sol, vinda de outra caverna iluminava o copo vazio e
a mesa junto da qual ele adormecera. Kickaha já estava de pé e sorria.

— Vamos — disse ele. — Podarge quer que saiamos cedo. Está sedenta de vingança. E é
melhor que saiamos antes que ela mude de ideias. Somos os primeiros prisioneiros
que ela põe em liberdade.

Wolff sentia-se tonto. Mas já tinha passado por coisas piores. Perguntou:

— Que fez você depois de eu adormecer?

Kickaha riu-se.

— Paguei o último preço. Mas não foi nada mau... Um pouco estranho a princípio, mas
eu sou um tipo adaptável...

Saíram da caverna para outra e daí para a grande plataforma de pedra que sobressaía
da escarpa.

— Vamos — disse Kickaha.—Podarge e os seus animais de estimação estão esfomeados.


Pedi-lhe para poupar os gworl, mas eles cuspiram-lhe.

Wolff deu um salto ao ouvir um grito desgarrador vindo da boca da caverna.

— Podia sermos nós — disse Kickaha. — Se não tivéssemos encontrado qualquer coisa
para trocar pelas nossas vidas.

Começaram a subir e quando chegou a noite já tinham trepado mil metros. Kickaha
tirou a mochila das costas abriu-a. Agarrou numa caixa de fósforos e acendeu uma
fogueira. Havia também carne, pão e vinho. Era um presente de Podarge.

— Temos de subir durante quatro dias para chegarmos ao nível seguinte. Ao fabuloso
mundo da Ameríndia.

Wolff começou a fazer perguntas e Kickaha respondeu-lhe pacientemente. A fogueira


começou a extinguir-se. Onde estaria Chryseis? E a trombeta? Era necessário que a
encontrassem. Senão estariam perdidos.

Quatro dias depois, quando o Sol estava a meio do seu curso em volta do planeta,
encontraram-se repentinamente numa planície que se estendia pelo menos por uns
duzentos e cinquenta quilómetros. Dos lados, talvez a uma distância de cento e
cinquenta quilómetros, havia cadeias de montanhas, muito grandes, mesmo em
comparação como os Himalaias. No entanto, eram minúsculas perante o Abharhploonta —
o monólito que dominava aquela parte do planeta dos níveis múltiplos. Segundo dizia
Kickaha, o monólito estava a dois mil e quinhentos quilómetros do local onde se
encontravam, ainda que parecesse estar apenas a oitenta. Era tão altaneiro como a
montanha que acabavam de subir.

— Agora já deve ter compreendido tudo — disse Kickaha. — Este mundo não tem a forma
de uma pera. É uma espécie de Torre de Babel. Uma série de colunas formando
andares, cada um deles mais pequeno que o de baixo. No cirno desta torre está o
palácio do Senhor. E, como pode ver, temos ainda muito que andar para lá chegar.
«A primeira coisa que temos a fazer é arranjar roupas para si — acrescentou
Kickaha. — Lá em baixo toda a gente andava nua, mas aqui não! Pelo menos temos de
ter uma tanga e uma pena no cabelo. Senão será a escravatura ou a morte.»

Começou a caminhar e Wolff acompanhou-o.

— Veja corno a erva é alta. Suficientemente alta para esconder os carnívoros que
devoram os animais que a comem. Cuidado! O puma das planícies, o lobo, o cão
malhado e a doninha gigante fazem disto o seu terreiro de caça! E também o Felis
Atrox — o leão atroz. Vagueou em tempos pelo sudoeste da América do Norte e
extinguiu-se há cerca de dez mil anos. Mas aqui continua a existir. É cerca de um
terço maior que o leão africano e duas vezes mais feroz.

— Mamutes! — gritou Wolff.

— Há muitos por cá e por vezes seria melhor que não houvessem. Atenção à erva. Se
ela se mover em direção contrária à do vento avise-me!

Caminharam uns três quilómetros, apressadamente. Encontraram um bando de cavalos


selvagens, que fugiram.

— Por aqui não há póneis índios — disse Kickaha. — Creio que o Senhor só importou o
que havia de melhor!

Por fim o jovem parou junto de um monte de pedras.

— A minha marca — explicou ele. Caminhou em frente até uma árvore alta. Trepou por
ela e tirou do tronco oco um grande saco. Dentro do saco estavam dois arcos, duas
aljavas cheias de setas, uns calções de pele de gamo e um cinto com uma bainha de
couro na qual se via uma longa faca de aço.

Wolff vestiu os calções, apertou o cinto e agarrou num arco e numa aljava.

— Sabe como usar isso? — perguntou Kickaha.

— Pratiquei toda a vida, por desporto.

— Muito bem. Terá mais de uma oportunidade de pôr à prova a sua perícia. E agora
temos muito que andar.

Avançaram à maneira dos lobos: correndo cem passos, andando outros cem. Kickaha
apontou para a cadeia de montanhas à direita.

— Ali vive a minha tribo, os Hrowakas. O Povo do Urso. A cerca de 130 quilómetros.
Quando lá chegarmos poderemos repousar um pouco e prepararmo-nos para a grande
viagem que temos perante nós.

— Você não parece um índio.

— E você, meu amigo, não parece ter sessenta e seis anos. Isto é a América do Norte
muito antes da chegada do homem branco. Fresca, espaçosa e com uma multidão de
animais e algumas tribos por aqui e por ali.

Um bando de cem patos levantou voo. Do céu verde desceu um falcão e o bando ficou
mais pequeno.

— Os Felizes Terrenos de Caça!—gritou Kickaha.— Infelizmente nem sempre são


felizes...
Algumas horas antes de o Sol se esconder atrás da montanha, pararam junto de um
pequeno lago. Kickaha encontrou a árvore sobre a qual construíra uma plataforma.

— Dormiremos aqui esta noite e vigiaremos por turnos. Praticamente, o único animal
capaz de nos atacar na árvore é a doninha gigante, mas isso basta para que
estejamos atentos. Além disso — e o que é pior —, podem surgir guerreiros!

Kickaha apanhou um coelho bravo. Assaram-no e comeram-no. Enquanto comiam, Kickaha


explicou a topografia do lugar.

— Diga-se o que se disser do Senhor, não se pode negar que ele fez um bom trabalho
ao conceber este mundo. Veja este nível: Ameríndia. Na verdade, não é plano. Tem
uma série de curvas ligeiras, cada uma delas com cerca de duzentos e cinquenta
quilómetros de comprimento. Desse modo a água pode correr, formando ribeiros, rios
e lagos. Não há neve no planeta, uma vez que não há estações e o clima é muito
uniforme. Mas chove todos os dias.

Wolff fez o primeiro quarto de sentinela. Kickaha não dormiu. Falou e continuou a
falar:

— No princípio, havia muito tempo — mais de vinte mil anos—, os Senhores viviam num
universo paralelo à Terra. Os Senhores não sabiam disso então. Não eram muitos
nesse tempo, porque eram os sobreviventes de uma luta de milénios com outras
espécies. Eram talvez dez mil ao todo.

«Mas o que lhes faltava em quantidade sobejava-lhes em qualidade. Tinham uma


ciência e uma tecnologia que torna a nossa — a da Terra — na sabedoria dos
aborígenes da Tasmânia. Eram capazes de construir universos. E fizeram-no.

«Ao princípio, cada universo era uma espécie de parque de recreio, um clube
microcósmico. Mas, como era inevitável, uma vez que essa gente era humana ainda que
os seus poderes fossem semelhantes aos dos deuses, questionaram entre si. O
sentimento de propriedade era e é tão forte neles como em nós. Houve uma luta.
Suponho que também houve algumas mortes por acidente ou suicídio. Além disso, o
isolamento dos Senhores tomou-os em megalómanos, o que é natural quando se pensa
que cada um deles era como um deus e acreditava em que o era.

«Para encurtar uma história de muitos e muitos milhares de anos, o Senhor que fez
este mundo encontrou-se por fim só. Chamava-se Jadawin e nem sequer tinha uma
companheira da sua espécie. Não queria nenhuma. Porque devia ele compartilhar o seu
mundo com alguém igual a ele, quando podia ser um Zeus com um milhão de Europas,
com as mais adoráveis das Ledas?

«Populara o seu mundo com seres trazidos de outros universos — principalmente da


Terra — ou criados nos laboratórios do palácio no cimo do nível mais alto. Criara
belezas divinas e monstros exóticos, conforme lhe apetecera.

«O único problema era que os Senhores não se contentavam em reinar sobre um


universo. Começaram a cobiçar os mundos dos outros. E a luta continuou. Erigiram
defesas quase inexpugnáveis e meios ofensivos quase irresistíveis. A batalha
tornou-se num jogo mortal.»

— E como foi que você apareceu no meio disto tudo? — perguntou Wolff.

— Na Terra chamava-me Paul Janus Finnegan. Como sabe, o meu primeiro apelido, que
era o de minha mãe, é o nome do deus latino das portas, do velho e do novo ano, o
deus de duas faces, uma olhando em frente e outra para trás.
Kickaha riu-se e prosseguiu:

— Um nome muito apropriado, não é verdade? Sou um homem de dois mundos e vim pela
porta que há entre eles. Mas não voltei à Terra nem quero voltar. Tenho tido aqui
aventuras e ganhei uma posição que nunca poderia ter tido nesse triste e velho
globo. Não me chamo somente Kickaha e sou o chefe aqui e alguma coisa nos outros
níveis — como verá.

Wolff começava a suspeitar que ele tinha outra identidade, da qual não queria
falar.

— Sei o que está a pensar, mas não creia nisso — disse Kickaha. — Sou um patife,
mas estou a ser leal para si. Já agora, sabe o que significa o meu nome para o Povo
do Urso? Na língua deles, um Kickaha é um patife legendário, semidivino. Qualquer
coisa como o Velho Homem-Coiote dos índios das Planícies. Um dia contar-lhe-ei como
ganhei esse nome e como me tornei num conselheiro dos Hrowakas. Mas agora tenho
coisas mais importantes para lhe dizer.

CAPÍTULO VII

EM 1941, aos vinte e três anos de idade, Paul Finnegan oferecera-se como voluntário
para a Cavalaria dos Estados Unidos porque gostava de cavalos. Pouco tempo depois
encontrou-se a conduzir um carro de combate. Estava no Oitavo Exército e como tal
acabou por atravessar o Reno. Um dia, depois de ter ajudado a tomar uma pequena
vila, descobriu um objeto extraordinário nas ruínas do museu local. Era um
crescente de um metal prateado, tão duro que as pancadas de martelo não lhe faziam
mossas e os maçaricos de acetilene não eram capazes de o derreter.

— Fiz perguntas aos habitantes sobre ele. Todos sabiam que estava no museu havia
multo tempo. Um professor de química, depois de fazer alguns ensaios, tentara
interessar nele a Universidade de Munique, mas não o conseguira.

«Levei-o para casa comigo, depois da guerra, juntamente com outras recordações.
Voltei para a Universidade de Indiana. Meu pai deixara-me dinheiro suficiente para
viver sem dificuldades durante algum tempo, de modo que possuía um pequeno
apartamento, um carro de desporto e outras coisas...

«Um amigo meu era jornalista. Falei-lhe no crescente, nas suas propriedades
peculiares e na sua composição desconhecida. Ele escreveu sobre isso umas coisas
que foram publicadas em Bloomington, mas uma agência pensou que eram interessantes
e distribuiu-as por toda a parte. No entanto os cientistas não se interessaram
muito pelo assunto — pode dizer-se até que não quiseram nada com ele.

«Três dias depois, um homem que disse chamar-se Vannax apareceu no meu apartamento.
Pensei que fosse holandês por causa do nome e do sotaque. Queria ver o crescente.
Fiz-lhe a vontade. Ficou muito excitado, ainda que quisesse mostrar-se calmo. Disse
que gostaria de mo comprar. Perguntei-lhe quanto queria pagar e ele respondeu-me
que daria dez mil dólares, mas não mais.

«“—Por certo que poderá ir mais além”, disse-lhe eu — prosseguiu Kickaha.

«“—Vinte mil?”, perguntou Vannax.

«“—Mais, bastante mais.”

«“—Trinta mil?”
«“—Cem mil!” Vannax tornou-se ainda mais vermelho, mas respondeu que entregaria o
dinheiro dentro de vinte e quatro horas.

«Compreendi então que tinha em meu poder qualquer coisa de muito valor. Mas que
seria? Qual o motivo por que aquele Vannax desejava aquilo tão desesperadamente?
Que espécie de doido era ele? Ninguém no seu juízo perfeito engoliria tão depressa
uma isca. Usaria por certo um pouco mais de habilidade.»

— Qual era o aspeto de Vannax? — perguntou Wolff.

— Oh, era um tipo grande, com uns sessenta e cinco anos bem conservados. Tinha
nariz de águia e olhos também de águia. Estava multo bem vestido. Tinha
personalidade muito forte, mas tentava reprimi-la, para ser agradável. No entanto
parecia um homem que não estava habituado a ver discutidas as suas ordens.

«Disse-lhe: "—Arranje trezentos mil dólares e será seu.” Nunca pensei que ele
respondesse que sim. Esperei que perdesse a cabeça e me voltasse as costas. Porque
não estava disposto a vender o crescente, mesmo que ele me desse um milhão de
dólares.

«Mas o homem, ainda que furioso, respondeu que me daria o dinheiro, embora
precisasse de mais vinte e quatro horas.

«Respondi-lhe que primeiro teria de me dizer para que queria o crescente.

«Disse-me que eu nada tinha a ver com isso e insultou-me. Mandei-o sair, antes que
eu chamasse a Polícia.

«Vannax começou a gritar numa língua estrangeira. Fui ao meu quarto e voltei com
uma automática de calibre 45. O homem não sabia que ela estava descarregada. Saiu,
embora continuasse a praguejar e a falar consigo próprio durante todo o caminho até
ao seu Rolls-Royce.

«Nessa noite senti dificuldade em dormir. Senti um ruído no quarto da frente, saí
da cama e avancei silenciosamente, com a 45 na mão, já carregada. Agarrei na
lanterna elétrica e encontrei Vannax na sala de estar, com o crescente na mão.

«Foi então que vi o segundo crescente no chão. Vannax trouxera-o consigo. Apanhara-
o no instante exato em que ia unir os dois, de modo a formar um círculo completo.
Disse-lhe para pôr as mãos no ar. Fê-lo, mas levantou um pé para avançar para o
círculo. Ordenei-lhe que não se movesse, senão faria fogo, mas mesmo assim ele
avançou. Disparei por cima da cabeça dele. Queria apenas assustá-lo e consegui: ele
deu um salto para trás e correu para a porta. Balbuciava como um maníaco, tão
depressa ameaçando-me como oferecendo-me meio milhão de dólares. Pensei em
encurralá-lo junto à porta e fazê-lo falar, com a 45 encostada à barriga.

«Mas quando avancei para ele passei pelo círculo limitado pelos dois crescentes.
Ele viu o que eu ia fazer e gritou. Era demasiado tarde. Ele e o apartamento
desapareceram e encontrei-me ainda no círculo — mas já não era bem o mesmo e
situava-se neste mundo. No palácio do Senhor, no cimo de tudo.»

Kickaha não perdera a cabeça. Lera muitos livros de fantasia e de ficção científica
depois de sair da escola primária. A ideia dos universos paralelos e dos
dispositivos de transição não lhe era estranha. Ainda que assustado, sentira-se ao
mesmo tempo excitado e curioso.

— Compreendi a razão por que Vannax não me seguira. Os dois crescentes, reunidos,
formavam um «circuito». Mas não funcionavam enquanto um ser vivo não surgisse no
«campo» que eles geravam. Então um semicírculo permanecia na Terra enquanto o outro
era transportado para este universo, onde se unia a um terceiro semicírculo que
esperava por ele. Por outras palavras: eram precisos três crescentes para formar um
circuito. Vannax devia ter chegado à Terra através deles. E não o poderia ter feito
se não existisse já um crescente nela. É de crer que ele tivesse perdido o outro
ali. Nunca saberemos como. De qualquer maneira, o que interessa é que ele, quando
viu a notícia nos jornais, soube onde o semicírculo se encontrava. E fez o possível
— e o impossível — para se apoderar dele.

«Vagueei pelo palácio durante longo tempo. Era imenso, tremendamente belo e
exótico, cheio de tesouros, joias e obras de arte. Havia também nele laboratórios.
Talvez fosse melhor chamar-lhes câmaras bioprocessadoras, porque vi nelas estranhas
criaturas que se formavam em gigantescos cilindros transparentes. Havia muitas
consolas, com inúmeros dispositivos de comando. Mas os símbolos neles marcados não
me eram familiares.

«Tive sorte. O palácio estava cheio de armadilhas, destinadas a prender ou matar os


intrusos. Mas não estavam preparadas, pela simples razão de que o palácio se
encontrava desabitado. Saí e vi-me num magnífico jardim. Atravessei-o e cheguei à
beira de um monólito sobre o qual o palácio e o jardim estavam assentes. O monólito
tinha pelo menos nove mil metros de altura. Em baixo estava aquilo a que o Senhor
deu o nome de Atlântida. Não sei se o mito terreno da Atlântida está ligado a ela,
ou se o Senhor tomou o nome do mito.

«Por baixo da Atlântida está o nível chamado Drachelãndia— a Terra dos Dragões. E
depois a Ameríndia. Vi tudo como se olhasse de um foguete. Apenas grandes nuvens,
lagos, mares e contornos de continentes. Mas compreendi que este mundo tinha uma
estrutura como a da Torre de Babel. E compreendi também que estava numa situação
desesperada. Não tinha meio algum de deixar o cimo deste mundo, exceto se tentasse
voltar à Terra através dos crescentes. Mas Vannax devia estar lá à minha espera. E,
ao contrário dos outros monólitos, a face daquele sobre o qual me encontrava era
tão lisa como a das esferas de um rolamento.»

«Foi então que surgiram os gworl. Suponho — ou melhor: sei — que vieram de outro
universo através de uma passagem semelhante àquela que eu usara. Compreendi depois
que eram agentes de outro Senhor, o qual os enviara para que roubassem a trombeta.
Vira-a enquanto passeara pelo palácio e até a soprara. Mas não sabia como premir os
botões de modo a fazê-la funcionar. Na verdade, nem sequer sabia para que servia.

«Os gworl eram uns cem. Por sorte vi-os primeiro e escondi-me. Tentaram matar os
Olhos do Senhor, que não me tinham incomodado por pensarem que eu era um hóspede.
(quando se atiraram à garganta de um corvo, os corvos lançaram-se sobre eles. Houve
sangue, penas e pedaços de carne nodosa e peluda por toda a parte. Durante a luta
notei que um gworl fugira com a trombeta. Segui-o e encontrei-me numa sala em que
havia um modelo do planeta, enorme e dourado, com pedras preciosas em cada um dos
níveis, correspondendo a outros tantos pontos de ressonância.»

— Pontos de ressonância?

— Sim. Os símbolos indicavam as combinações de notas necessárias para abrir


passagens em certos lugares. Algumas das passagens conduzem a outros universos, mas
outras ligam apenas os níveis deste mundo. Através delas o Senhor podia passar
instantaneamente de um nível a outro. E junto dos símbolos havia modelos das
características principais dos pontos de ressonância.

«O gworl que roubara a trombeta devia ter sido ensinado a ler os símbolos. Tentou
verificar se a trombeta era a verdadeira. Tocou sete notas na direção de uma
piscina que estava no centro da sala e as águas abriram-se, mostrando uma faixa de
terra seca, com árvores vermelhas à volta e um céu verde, mais além.
«Não sabia o que era aquilo. Não fazia ideia alguma de que aquela era a maneira que
o Senhor usava para alcançar a Atlântida. Mas vi que era o único processo que tinha
de sair do palácio. Apanhei o gworl pelas costas, tirei-lhe a trombeta das mãos e
lancei-me para a passagem. Mas ela começara a estreitar-se: esfolei os joelhos e vi
o buraco fechar-se atrás de mim, no mesmo momento em que uma dúzia de gworl entrava
na sala, com facas compridas e sangrentas nas mãos.»

Wolff perguntou:

— O Senhor que enviou os gworl era o Senhor actual, não era? Como se chama ele?

— Arwoor. O Senhor que desapareceu chamava-se Jadawin. Devia ter sido o homem que
se chamava a si mesmo Vannax. Arwoor ocupou o seu lugar e desde então tem procurado
encontrar-me e à trombeta.

«Durante os vinte anos ou mais (pelo tempo da Terra) que vivi aqui, num nível ou
noutro, procurei sempre disfarçar-me. As raposas e os corvos, que agora obedecem ao
novo Senhor Arwoor, nunca deixaram de me procurar. Mas deixaram-me em paz durante
longos períodos, por vezes de dois e três anos.»

— Um momento — disse Wolff. — Se as passagens entre os níveis estavam fechadas,


como foi que os gworl desceram o monólito para o procurarem?

Kickaha também não o conseguira saber, de momento.

Só depois de ter sido capturado pelas criaturas, no Jardim, conseguira averiguar


que haviam descido por meio de cordas.

— Nove mil metros?

— Porque não? O palácio é um verdadeiro armazém, com mil e um compartimentos. Se


tivesse tido tempo para procurá-las, também as teria encontrado. De qualquer
maneira, os gworl disseram-me que tinham recebido ordens do Senhor Arwoor para não
me matarem. Ele quer submeter-me a torturas muito especiais. Segundo me
confidenciaram, está a trabalhar em técnicas novas e muito subtis, além de refinar
alguns dos seus velhos e fiéis métodos. Pode imaginar quanto eu suei durante a
viagem de regresso.

Depois de ter sido recapturado no Jardim, Kickaha fora levado através do mar até à
base do monólito. Enquanto o subiam, um Olho do Senhor detivera-os e ordenara aos
gworl que se dividissem em dois bandos. Um continuaria a subir, com Kickaha. O
outro voltaria ao Jardim, para capturar o homem que ficara com a trombeta.

Kickaha acrescentou:

— Não compreendo o motivo por que os gworl capturaram Chryseis. Talvez queiram
servir-se dela como uma oferenda de paz ao Senhor. Sabem que ele está indisposto
por eles terem demorado tanto tempo a sua caçada. Pensam que poderão aplacar a sua
cólera com a mais bela obra-prima do antigo Senhor.

Wolff perguntou:

— Então o Senhor actual não pode viajar entre os níveis através dos pontos de
ressonância?

— Sem a trombeta não o pode fazer. E aposto em como está mais do que aflito por
causa disso. Não há nada que impeça os gworl de usarem a trombeta para se
deslocarem para outro universo e oferecerem-na a outro Senhor. Nada senão o seu
desconhecimento dos pontos de ressonância. Mas se encontrarem um por acaso...
— Se os Senhores são possuidores de uma ciência superior, porque é que Arwoor não
recorre a um avião?

Kickaha riu-se durante longo tempo.

— Isso é que tem graça! Os Senhores são os herdeiros de uma ciência e de um poder
que ultrapassa de longe tudo quanto a Terra possui. Mas os seus cientistas e
técnicos morreram. Os que vivem agora, sabem como fazer funcionar os dispositivos
que eles conceberam, mas são incapazes de explicar os princípios segundo os quais
trabalham, ou de os reparar.

«A luta milenária pelo poder matou quase todos. Os poucos que sobreviveram, apesar
dos seus vastos poderes, são uns ignorantes. São sibaritas, megalómanos,
paranoicos, tudo quanto se quiser chamar-lhes. Tudo menos cientistas.

« É possível que Arwoor seja um Senhor expulso dos seus domínios. Teve de fugir e
só o facto de Jadawin ter desaparecido permitiu que ele se apossasse deste mundo.
Chegou de mãos vazias e não tem acesso a quaisquer poderes, exceto os do palácio, e
mesmo assim há muito que ele não sabe como usar. Está no alto deste universo, mas é
um incapaz.»

Kickaha adormeceu. Wolff fitou as trevas, pois que lhe competia o primeiro quarto
de guarda. A história não lhe parecia inacreditável, mas sentia que havia nela
coisas inexplicadas. Kickaha não dissera tudo. Pensou num rosto dolorosamente belo,
com grandes olhos de gato. Onde estaria Chryseis? Que lhe teria acontecido?
Voltaria a vê-la?

CAPÍTULO VIII

DURANTE o segundo quarto de guarda de Wolff, qualquer coisa negra, comprida e ágil
passou pelo luar entre dois arbustos. Wolff disparou uma seta contra a criatura e
ouviu-a soltar um uivo penetrante e viu-a erguer-se sobre as patas traseiras, duas
vezes mais alta que um cavalo. Colocou outra seta no arco e lançou-a sobre o ventre
branco. Mesmo assim o animal não morreu. Afastou-se a uivar, esmagando as moitas.

Kickaha já estava então junto dele, de faca em punho.

— Você teve muita sorte — disse ele. — Nem sempre é possível vê-los, e quando
saltam é logo à garganta.

— Do que eu precisava era de uma espingarda para caçar elefantes — respondeu Wolff.
— E mesmo assim não sei se o teria morto. Já agora, porque é que os gworl — ou os
índios de que me falou — não usam armas de fogo?

— São absolutamente proibidas pelo Senhor. Compreende, ele não gosta de certas
coisas. Quer manter o seu povo a um certo nível populacional e tecnológico, e
portanto adentro de certas estruturas sociais. Por exemplo: gosta da limpeza. Deve
ter notado que a gente do mar é preguiçosa e despreocupada. Mas limpam sempre o
lixo que fazem. O mesmo acontece aqui e em toda a parte. O Senhor assim o quer e a
desobediência é punida com a morte.

— Como é que ele impõe as suas regras?

— De uma maneira geral, implantou-as nos costumes dos habitantes. Usando a religião
— e apresentando-se a si mesmo como um deus — determinou a sua maneira de ser.
Gostava da limpeza e da arrumação, odiava as armas de fogo e todas as formas de
tecnologia avançada. Talvez fosse um romântico. Não sei. Mas as várias sociedades
deste mundo são conformistas e estáticas.

— Então não há progresso?

— Para quê? Pessoalmente, creio que detesto a arrogância do Senhor, a sua


crueldade, a sua falta de humanidade. Mas concordo com algumas das coisas que ele
fez. Com algumas exceções, gosto muito mais deste mundo que da Terra.

— Então você também é um romântico!

— Talvez. Este mundo é suficientemente real e trágico, como bem sabe. Mas está
livre de lama, de doenças, de moscas e mosquitos. A juventude dura toda a vida. Não
é um mau lugar para viver. Pelo menos para mim.

Wolff estava no seu último quarto de guarda quando o Sol surgiu do outro lado do
mundo. O céu tornou-se verde. Os dois homens espreguiçaram-se e desceram da
plataforma para caçarem qualquer coisa para comer. Uma vez cheios de coelho assado
e bagas suculentas, continuaram a sua viagem.

Na tarde do terceiro dia, quando o Sol estava prestes a desaparecer atrás do


monólito, encontraram-se na planície. Na frente deles estava uma alta colina, atrás
da qual, segundo Kickaha, havia um pequeno bosque. Abrigar-se-iam numa das árvores
mais altas.

De repente um grupo de cerca de quarenta homens surgiu detrás da colina. Tinham a


pele escura e usavam o cabelo enrolado em duas longas tranças. Os rostos estavam
pintados de branco com riscos vermelhos e empunhavam lanças ou arcos. Alguns usavam
cabeças de urso corno gorros, outros tinham penas presas a chapéus, ou traziam
bonés emplumados.

Ao verem os dois homens a pé, gritaram e lançaram os cavalos a galope.

— Mantenha-se firme!—disse Kickaha. Sorriu-se.— São os Hrowakas, o Povo do Urso. A


minha gente.

Ao reconhecerem-no, eles gritaram:

— AngKungawas TreKickaha! — Passaram a galope por ele com as lanças a roçarem-no,


os cacetes e os machados a assobiarem junto do seu rosto ou por cima da sua cabeça
e as setas a cravarem-se em volta dos pés ou mesmo entre eles.

Wolff recebeu o mesmo tratamento, sem sequer piscar os olhos, e com um sorriso,
ainda que não se sentisse muito à vontade. Kickaha saltou de repente e obrigou um
jovem a desmontar. A rirem-se e a arquejarem, rolaram pelo chão até que Kickaha
dominou o Hrowakas. Então Kickaha ergueu-se e apresentou o vencido a Wolff:

— NgashuTangis, um dos meus cunhados.

Dois ameríndios desmontaram e falaram excitadamente a Kickaha. Depois de um


discurso de quinze minutos, interrompido aqui e ali por uma breve pergunta, ele
voltou-se para Wolff, com um sorriso:

— Estamos com sorte. Eles vão atacar os Tsenakwa, que vivem perto das Arvores das
Muitas Sombras. Disse-lhes que seguíamos o rasto de Chryseis e dos gworl e que você
era um amigo meu. Também sabem que Podarge nos está a ajudar. Têm um grande
respeito por ela e pelas suas águias e gostariam de lhe prestar um favor se
tivessem essa possibilidade.
«Têm muitos cavalos de reserva, de modo que poderá escolher um à vontade. Só tenho
pena que não visite o acampamento do Povo do Urso e veja as minhas duas mulheres,
Giushowei e Angwanat. Mas não se pode ter tudo.»

Os guerreiros cavalgaram durante todo esse dia e o seguinte, mudando de cavalos de


meia em meia hora. Wolff sentia-se fatigado, mas na manhã do terceiro dia da viagem
Já estava tão à vontade como qualquer dos membros do Povo do Urso.

No quarto dia o grupo foi detido durante oito horas por uma manada de gigantescos
bisontes. Atrás deles vinham cem caçadores Shanikotsa. Os Hrowakas quiseram matá-
los a todos e só um discurso inflamado de Kickaha os deteve.

Continuaram a cavalgar, mas NgashuTangis, que atuava como batedor, deteve-os.


Kickaha interrogou-o e depois disse a Wolff:

— Uma das águias de Podarge está a uns três quilómetros daqui. Pousou numa árvore e
ordenou a Ngashu-Tangis que me levasse até ele. Não pode vir aqui. Foi ferida por
um bando de corvos e está mal. Vamos depressa!

Encontraram a águia pousada no ramo mais baixo de uma árvore solitária, as penas
cobertas por sangue seco. Tinham-lhe arrancado um dos olhos. Fitou-os com o outro
olho e falou em grego:

— Chamo-me Aglaia. Conheço-te há muito, Kickaha — o homem das artimanhas. E vi-te,


ó Wolff, quando eras hóspede da minha irmã a rainha, a Podarge das grandes asas.
Ela mandou muitas de nós em busca da dríade Chryseis, dos gworl e da trombeta do
Senhor. Mas só eu a vi entrar nas Arvores das Muitas Sombras, do outro lado da
planície.

«Voei baixo sobre eles, esperando surpreendê-los e apanhar a trombeta. Mas eles
viram-me e formaram uma muralha de facas contra mim. Tive de voltar para trás e
voar tão alto que não me vissem, ainda que eu os visse.»

A águia bebeu água oferecida por Kickaha e continuou:

— Quando a noite caiu, acamparam junto de umas árvores. Pousei na árvore sob a qual
a dríade dormia, coberta por uma pele de gamo, manchada de sangue, creio que de um
homem que os gworl tinham morto. Estavam a desmembrá-lo, para o cozinharem nas suas
fogueiras.

«Saltei para o chão do lado oposto da árvore. Queria falar à dríade, talvez mesmo
ajudá-la a fugir. Mas um gworl ouviu-me esvoaçar. Olhou em volta da árvore e fez
mal, porque lhe arranquei os olhos com as garras. Disse à dríade para fugir, mas
ela ergueu-se e a pele de gamo caiu. Vi então que ela tinha as mãos e as pernas
amarradas.

«Voei para o meio dos arbustos e daí para os bosques e para a planície, em direção
ao ninho do Povo do Urso para falar convosco, ó Kickaha e ó Wolff, bem-amados da
dríade. Voei toda a noite e todo o dia.

«Mas um bando de Olhos do Senhor viu-me. Surgiram de cima e por trás de mim,
cobertos pelo sol. Apanharam-me de surpresa e fizeram-me cair com o choque e pelo
seu peso, a sangrar de mil golpes dos seus bicos afiados.

«Então, eu, Aglaia, irmã de Podarge, ergui-me de novo e arranquei as cabeças, as


asas, as pernas de uma dúzia de corvos. Mas outros vieram e morreram, causando ao
mesmo tempo a minha morte porque eram muitos.»

Fez-se silêncio. A águia fitou-os com o único olho que lhes restava e de repente
falou numa voz fraca mas ainda arrogante e dura:

— Digam a Podarge que ela não deve envergonhar-se de mim. E promete-me, ó Kickaha —
sem artifícios—, que dirás isso a Podarge.

— Prometo-te, ó Aglaia — respondeu Kickaha.

A cabeça da águia pendeu para a frente e ela tombou. Mas as garras de aço não
largaram o ramo e ela ficou pendente dele, a oscilar, enquanto as asas pendiam e
roçavam a erva que cobria o chão.

Kickaha explodiu em ordens. Dois homens correram em busca de águias para lhes
transmitirem o relatório de Aglaia e comunicarem a sua morte. Içaram o corpo da
águia para outro ramo e ataram-no a ele com correias, de modo a mantê-lo bem de pé.

— Nenhuma criatura se aproximará dela enquanto parecer viva — disse Kickaha. —


Todos temem as águias de Podarge.

Na tarde do sexto dia depois do encontro com Aglaia, o grupo parou durante longo
tempo num poço. Kickaha disse:

— Só com muita sorte os gworl conseguiram atravessar a planície sem serem feitos em
pedaços. Especialmente a pé... Entre este lugar e as Arvores de Muitas Sombras
estão os Tsenaltwa e outras tribos. E os Khing- Gatawrit.

— Os Meio-Cavalos? — perguntou Wolff. Durante os poucos dias que permanecera em


companhia dos Hrowakas aprendera muitas palavras e começava até a ter uma ideia da
sua complicada sintaxe.

— Os Meio-Cavalos. Hoy Kentauroi. Centauros. O Senhor fizera-os, tal como aos


outros monstros daquele mundo. Há muitas tribos deles nas planícies ameríndias.

O grupo dos guerreiros chegou ao Grande Caminho dos Mercadores. Distinguia-se do


resto da planície apenas por postes cravados na terra a intervalos de quilómetro e
meio e encimados por imagens do deus do comércio, Ishquettlammu. Kickaha ordenou
que o grupo galopasse e não parou senão quando o Caminho ficou para trás.

— Se o Grande Caminho se dirigisse à floresta, em vez de ser paralelo a ela — disse


ele a Wolff —, teríamos atingido o nosso objetivo. Enquanto nos mantivéssemos nele
ninguém nos perturbaria. O Caminho é sacrossanto; até os Meio-Cavalos o respeitam.
Fugi dele porque se os Hrowakas encontrassem uma caravana passariam dias inteiros a
comerciar.

Passaram-se mais seis dias sem sinal das tribos inimigas, exceto as tendas
vermelhas e brancas dos Irennussoik, a distância. No dia seguinte a planície
começou a mudar de aspeto, a erva verde e alta foi substituída por uma relva
azulada, rasteira.

— A terra dos Meio-Cavalos — disse Kickaha.— Não se deixe apanhar vivo. Uma tribo
humana pode resolver adotar-nos, se tivermos coragem para cantarmos alegremente e
cuspirmos na cara deles enquanto nos assam a fogo lento. Mas os Meio-Cavalos nem
sequer têm escravos humanos. Mantêm-nos vivos e fazem-nos gritar durante semanas.

No quarto dia depois do aviso de Kickaha chegaram ao alto de uma colina e viram uma
cinta negra em frente.

— Arvores ao longo do rio Winnkaknaw— disse Kickaha.— Estamos quase a meio caminho
das Arvores das Muitas Sombras. Tenho a impressão de que a nossa sorte está prestes
a chegar ao fim.
Poucos segundos depois uma massa negra apareceu atrás de um batedor, vinda da
encosta oculta da colina.

— Os Meio-Cavalos! — gritou Kickaha. — Vamos! Para o rio! Se o alcançarmos


poderemos estabelecer uma posição defensiva entre as árvores!

CAPÍTULO IX

O grupo dos guerreiros lançou-se a galope. A menos de quatrocentos metros atrás


deles, e a ganhar terreno, vinha a horda dos Meio-Cavalos. Eram uns cento e
cinquenta ou talvez mais.

Kickaha, que cavalgava ao lado de Wolff, disse:

— Quando eles nos apanharem, se o conseguirem, mantenha-se a meu lado! Estou a


organizar uma coluna de dois: uma manobra clássica, bem experimentada! Dessa
maneira, cada homem pode guardar o flanco do outro.

Recuou para dar ordens aos outros. Por fim os quarenta formaram uma linha não muito
ordenada. Kickaha voltou para junto de Wolff e gritou-lhe acima do bater dos cascos
e do silvo do vento:

— São tão estúpidos como porcos-espinhos! Queriam voltar para trás e carregar sobre
os centauros! Mas consegui fazê-los mudar de ideias.

Os Meio-Cavalos diminuíam, a cada momento, a distância que os separava, correndo a


uma velocidade que nenhum animal sobrecarregado com um cavaleiro podia igualar.
Eram de facto centauros, ainda que não muito semelhantes aos que os pintores da
Terra tinham representado. Não admirava. O Senhor, ao criá-los nos seus
biolaboratórios, tinha tido de fazer certas concessões à realidade. O principal
ajustamento fora determinado pela necessidade de oxigénio. A grande parte animal do
centauro também tinha de respirar, facto ignorado pelas representações clássicas
terrestres. O ar tinha de ser fornecido não só ao tórax superior, humano, mas
também ao corpo inferior. Além disso, o ventre humano teria detido o fornecimento
de alimentos ao corpo do animal. E, se isso não acontecesse, os dentes humanos
pouco tempo resistiriam ao mastigar das ervas.

Portanto os seres híbridos que se aproximavam rapidamente não correspondiam às


míticas criaturas que lhes tinham servido de modelos. As bocas e os pescoços eram
proporcionalmente grandes, para deixarem entrar uma quantidade suficiente de
oxigénio. No lugar dos pulmões humanos havia um órgão semelhante a um fole que
fazia passar o ar através de uma abertura semelhante a uma garganta e daí aos
grandes pulmões do corpo de cavalo. O espaço para os pulmões fora conseguido pela
substituição dos órgãos digestivos dos herbívoros por um estômago de carnívoro,
maís pequeno. Os Centauros comiam carne, incluindo a das suas vítimas ameríndias.

A parte de cavalo tinha o tamanho de um pónei dos Índios da Terra. As peles eram
vermelhas, negras, rosadas, douradas e malhadas. E o pêlo cobria tudo menos o rosto
— um rosto duas vezes maior que o de um homem, largo, ossudo e com um grande nariz.
As feições eram, numa escala maior, as de um índio da Terra e estavam cobertas por
pinturas de guerra. Nas cabeças viam-se penas ou gorros de pele de búfalo, com os
respetivos chifres.

As armas eram as mesmas dos Hrowakas, exceto uma: a boleadeira — duas pedras
redondas nos extremos de uma correia. Enquanto Wolff pensava no que havia da fazer
para se defender de tal coisa, a luta começou. Um dos índios — Urso Bêbado —
voltou-se e disparou uma seta que se foi cravar no fole do peito de um Meio-Cavalo.
O centauro caiu, rodopiou sobre o chão e por fim imobilizou-se, com o tórax dobrado
de tal maneira que era evidente ter partido a espinha.

Urso Bêbado gritou e brandiu o seu arco. Tinha muito para contar, durante anos e
anos, na Casa do Conselho dos Hrowakas. Se alguém ficar vivo, pensou Wolff.

Um certo número de bolas surgiu então no ar, quase invisíveis, rodando como hélices
de avião que se tivessem soltado dos seus veios. A pedra no extremo de uma apanhou
Urso Bêbado pelo pescoço, arrancou-o da sela e cortou a meio o seu canto de
vitória. Outra bola enrolou-se em tomo de uma pata traseira do cavalo e fê-lo cair.

Wolff disparou uma seta, ao mesmo tempo que alguns dos Hrowakas. Não soube se
atingira o alvo. Mas quatro não erraram e outros tantos Meio-Cavalos rolaram pelo
chão.

O batedor, que corria à retaguarda do grupo, foi alcançado pelos centauros. Os


Meio-Cavalos, em vez de o matarem, envolveram-no. O índio compreendeu que o queriam
apanhar vivo, para o torturarem. Cravou a sua longa faca no corpo do Meio-Cavalo
que se encontrava mais próximo. O centauro caiu, as patas por cima da cabeça. O
índio tirou outra faca da aljava e, no mesmo momento em que uma lança foi cravada
no seu cavalo, lançou-se sobre o centauro que a empunhava.

Wolff viu tudo de relance. O índio caiu sobre as costas do centauro, que quase se
abateu sob o choque, e mergulhou a lâmina nas costas da criatura. O Meio-Cavalo
caiu, a escoucear, e Wolff pensou que tudo acabara. Mas de repente viu o índio,
miraculosamente, de pé e logo a seguir cavalgando outro centauro. Dessa vez tinha o
gume da lâmina encostado à garganta do seu inimigo. Segundo parecia, ameaçava
cortar a veia jugular do seu adversário se ele não o levasse para longe dos outros.

Mas uma lança, atirada por trás, cravou-se nas costas do índio. Não sem que ele
cumprisse a sua ameaça e cortasse a garganta do centauro que cavalgava.

— Vi tudo! — gritou Kickaha. — Que grande guerreiro! Depois do que ele fez, nem
mesmo esses selvagens se atreverão a mutilar o seu corpo. Honram os inimigos que se
mostram valorosos no combate, ainda que nem por isso deixem de os comer.

Um Meio-Cavalo, preto com manchas brancas, usando uma pena na cabeça e uma fita em
tomo do crânio, separou-se do grupo da esquerda e, fazendo rodopiar uma bola com a
mão direita, lançou-se sobre Kickaha. As pedras soltaram-se da sua mão e voaram
para baixo, em direção às patas do cavalo.

Kickaha inclinou-se e moveu a lança com tal precisão que ela apanhou a correia a
meio. As pedras continuaram a girar e enrolaram a correia em torno da lança.
Kickaha sacudiu-a e as pedras caíram no chão.

O Meio-Cavalo que lançara a bola fez um gesto de fúria e dispôs-se a carregar sobre
Kickaha. Ouviu-se um clamor de admiração e aclamação vindo das duas colunas de
centauros. O chefe correu e admoestou o que combatia contra Kickaha.

— Calculem!—disse Kickaha em inglês. — Pensa que sou digno da atenção dele!

O chefe dos Meio-Cavalos correu para Kickaha com a lança em riste. Kickaha aparou o
primeiro golpe com a sua própria lança e um segundo com um pequeno escudo de pele
de mamute. Depois atirou o escudo pelo ar como se fosse um disco. O centauro foi
apanhado por ele numa das patas da frente, tropeçou e caiu. Quando tentou voltar a
pôr-se de pé verificou que tinha a pata partida. Das fileiras dos Meio-Cavalos
surgiu um clamor: uma dúzia de chefes, de penas nas cabeças, correram com as lanças
sobre o centauro caído, o qual aguardou a morte de braços cruzados, como era de uso
para os Meio-Cavalos derrotados e aleijados.
— Diga aos outros para não correrem tanto! — gritou Kickaha. — Os cavalos não
poderão aguentar esta marcha durante muito tempo; já estão a espumar. Talvez
possamos poupá-los e ganhar algum tempo enquanto os Meio-Cavalos procuram dar uma
oportunidade aos seus jovens guerreiros. Se o não fizerem, a diferença também será
pequena...

— Isto tem sido divertido — respondeu Wolff. — Se não nos salvarmos poderemos pelo
menos dizer que não tivemos tempo para nos aborrecermos.

Kickaha aproximou-se o suficiente para dar uma palmada no ombro de Wolff.

— Você parece meu irmão! Foi uma felicidade conhecê-lo! Oh, oh! Aí vem um dos
jovens guerreiros! Quer apanhar Pata de Lobo!

Pata de Lobo, um dos sogros de Kickaha, seguia à cabeça da coluna dos Hrowakas,
mesmo em frente de Wolff. O índio atirou a lança sobre o centauro, que fazia
rodopiar a bola. A lança cravou-se no ombro do Meio-Cavalo, obrigando-o a largar as
pedras que, girando sobre si próprias, se enrolaram em volta de Pata de Lobo,
lançando-o ao chão, inconsciente. Os cavalos de Wolff e Kickaha saltaram sobre o
corpo. Kickaha inclinou-se e cravou a sua lança no corpo do índio.

— Não terão o prazer de te torturar, Pata de Lobo. E fizeste-os pagar uma vida com
outra vida.

Seguiu-se um período de combate individual. De vez em quando um jovem guerreiro


saía do grupo dos centauros para desafiar um dos humanos. Por vezes era o homem que
ganhava, outras vezes era o centauro. Ao fim de trinta minutos de pesadelo, os
quarenta Hrowakas estavam reduzidos a vinte e oito. Wolff viu-se atacado por um
grande guerreiro armado com uma maça com pontas de aço. Tinha também um pequeno
escudo redondo, com o qual tentou reproduzir o estratagema de Kickaha. Não o
conseguiu, porque Wolff desviou o disco com a ponta da sua lança. No entanto, para
conseguir isso, abriu a sua guarda por um momento. O centauro aproximou-se e ergueu
a maça. O sol refletiu-se nas pontas afiadas dos cravos. O rosto enorme e pintado
rasgou-se num sorriso de triunfo. Wolff não tinha tempo de se desviar nem podia
agarrar a maça, pois ficaria com a mão em farrapos. Sem pensar, fez uma coisa que
surpreendeu o centauro e ele próprio. Atirou-se ao chão, desviou-se da maça e
agarrou o Meio-Cavalo pelo pescoço. O seu inimigo guinchou, aflito. Depois caíram
ambos com uma força que os deixou abalados.

Wolff pôs-se de pé num salto, fazendo votos para que Kickaha tivesse agarrado o seu
cavalo. Assim acontecera, de facto, mas Kickaha não fazia o mais pequeno movimento
para trazer até ele o animal. Tanto os Hrowakas como os Meio-Cavalos tinham parado.

— Regras da guerra! — gritou Kickaha. — Quem apanhar primeiro a maça é o vencedor!

Wolff e o centauro, também já de pé, correram ambos para a maça, que estava a menos
de dez metros deles. O centauro era mais rápido e alcançou-a com três metros de
vantagem. Depois rodou tão depressa que as patas traseiras escorregaram.

Wolff não parara de correr. Saltou sobre o centauro quando ele escorregou. O Meio-
Cavalo tentou atingi-lo com um coice, mas não conseguiu. Apanhado fora de
equilíbrio, caiu de novo no chão, arrastando Wolff.

Apesar da queda. Wolff manteve o braço direito em tomo do pescoço do centauro, que
largara a maça e tentava apenas libertar-se do seu abraço estrangulador. Sabia que
pesava pelo menos mais trezentos quilos que o humano e que o seu tórax e os seus
braços eram muito mais fortes. Mas Wolff apertou-lhe ainda mais a garganta e de
repente o Meio-Cavalo não pôde respirar. Tentou tirar a faca da bainha. Wolff
agarrou-lhe o punho com a outra mão e torceu-o. O centauro gritou de dor e largou a
faca.

Os Meio-Cavalos que observavam a luta rugiram de surpresa. Nunca tinham visto tanta
força num simples homem.

Wolff esforçou-se e obrigou o guerreiro a dobrar as patas da frente. Bateu com o


punho esquerdo no fole entre as costelas e viu-o afundar-se. O Meio-Cavalo soltou
um tremendo sopro. Wolff largou o pescoço do centauro, meio inconsciente, saltou da
garupa e deu-lhe um forte soco nos queixos. A cabeça dobrou-se para trás e o
centauro caiu. Antes que pudesse recuperar a consciência, o seu crânio foi esmagado
pela sua própria maça.

Wolff voltou a montar e as três colunas continuaram a marcha. Durante algum tempo
os Meio-Cavalos nada fizeram contra os seus inimigos. Os seus chefes pareciam
discutir qualquer coisa. Mas, fosse o que fosse que pensassem fazer, perderam a
oportunidade de o realizar um momento depois.

Os cavaleiros e os centauros desciam uma encosta em direção a um pequeno vale. Esse


vale era no entanto suficientemente fundo para esconder deles o orgulho dos leões
que ali se encontravam. Quando os intrusos surgiram de repente entre eles, saltaram
como grandes gatos. A sua fúria era aumentada pelo desejo de protegerem os
filhotes.

Wolff e Kickaha tiveram sorte. Ainda que vissem vultos enormes a saltarem por toda
a parte, nenhum pulou sobre eles. Mas Wolff pôde ver que eram quase tão grandes
como um cavalo e, ainda que não tivessem a juba dos leões africanos, não lhes
faltava majestade e ferocidade.

Foi um caos de leões a rugirem, de cavalos a relincharem, e de homens e centauros.


Cada um lutava por si, ninguém pensava mais no combate que tinham travado.

Bastaram trinta segundos para que Wolff, Kickaha e os Hrowakas que tinham tido a
sorte de não serem atacados pudessem sair do vale. Não precisaram de esporear os
seus cavalos, mas tiveram de os refrear, para que não corressem até à morte.

Atrás deles, mas agora a distância, os centauros que tinham conseguido fugir aos
leões saíram também do vale. Em vez de perseguirem os índios, mantiveram-se a uma
boa distância das feras e depois pararam para avaliar as suas perdas. Não tinham
tido mais de doze baixas, mas estavam seriamente abalados.

— É uma oportunidade! — gritou Kickaha. — No entanto, se não chegarmos às árvores


antes de eles nos alcançarem, nada nos poderá salvar! Não procurarão mais combates
individuais. Farão uma carga em massa!

Os Meio-Cavalos lançaram-se a galope e começaram a aproximar-se, mais uma vez. Não


tardaram a ficar ao alcance das setas, mas os centauros disparavam com muito má
pontaria. Subitamente, Kickaha soltou um grito de alegria:

— Continuem a correr! Que o Espírito de Akjak-Dimls nos proteja a todos!

Wolff não o compreendeu senão quando seguiu com o olhar o dedo estendido de
Kickaha. Na frente deles, meio ocultos pelas ervas altas, estavam milhares de
pequenos montículos de terra. E perante eles encontravam-se criaturas que pareciam
cães da pradaria, com o pêlo às riscas.

No momento seguinte os Hrowakas entraram na colónia com os Meio-Cavalos logo atrás


deles. Ouviram-se gritos e relinchos quando os cavalos e os centauros, tropeçando
nas covas, começaram a cair, esperneando, com as patas partidas. Os centauros que
vinham atrás da primeira vaga contiveram-se, mas os que vinham na retaguarda
chocaram contra eles. Num momento formou-se uma pilha de corpos com quatro patas
que escouceavam e gritavam. Os Meio-Cavalos que tiveram a sorte de escapar
avançaram a trote, olhando com muito cuidado o chão que pisavam. Cortaram as
gargantas dos que tinham patas e braços partidos.

Os Hrowakas, ainda que tivessem consciência do que se passava atrás deles, não
pararam para olhar para trás. Continuaram em frente, mas mais devagar. Tinham agora
dez cavalos e doze homens. Kickaha abanou a cabeça. Teria de ordenar a dois dos
índios que seguissem a pé. De outro modo, tanto eles como os que os haviam
recolhido seriam apanhados pelos centauros. Mas Kickaha não teve coragem para os
sacrificar.

— Que demónio! Não os abandonarei!—gritou ele.— Se formos apanhados, correremos


todos a mesma sorte. Mas você não necessita de ficar. Não é indispensável que se
sacrifique por nós e perca Chryseis e a trombeta.

— Ficarei — respondeu Wolff.

Kickaha deu-lhe uma palmada no ombro.

— Pensei que poderíamos alcançar as árvores, mas não o conseguiremos. Falharemos


por pouco. Quando chegarmos a essa grande colina, a mil metros daqui, seremos
apanhados. Ê pena. As árvores estão a menos de outro quilómetro.

Os centauros já tinham atravessado a colónia dos cães da pradaria e avançavam a


galope. Os índios subiram a colina e quando chegaram ao cimo pararam e formaram um
círculo. Wolff apontou para baixo, em direção a um pequeno rio. Havia árvores lá,
mas não tinham sido elas que haviam despertado a sua admiração. Junto ao rio, meio
escondido pelas árvores, viam-se tendas brancas.

Kickaha olhou-as longamente, antes de dizer:

— Os Tsenakwa. Os inimigos mortais do Povo do Urso!

— Aí vêm eles!—disse Wolff. — As sentinelas devem tê-los avisado.

Um corpo de cavaleiros, desorganizado, com o sol a refletir-se nos cavalos brancos


e nos escudos e penas brancas, saiu da floresta. Um dos Hrowakas, ao vê-los,
começou a cantar uma espécie de lamento ululante. Kickaha mandou-o calar e disse:

— Ia dar ordem para combatermos aqui até à morte. Mas já não o farei. Correremos em
direção aos Tsenakwa e depois afastar-nos-emos deles e seguiremos para os bosques
ao longo do rio. Esperemos que os nossos dois inimigos resolvam combater um contra
o outro. Se um se recusar a isso, o outro apanhar-nos-á... Vamos!

Lançaram-se a galope sobre os Tsenakwa. Wolff olhou para trás, por cima do ombro, e
viu os Meio-Cavalos a descerem a colina atrás deles. Kickaha gritou:

— Muitas mulheres chorarão hoje nas suas tendas, mas não serão só as do Povo do
Urso!

Os Tsenakwa apontaram as suas lanças e soltaram o seu grito de guerra, imitando o


falcão. Kickaha, que seguia à frente, ergueu a mão, manteve-a assim por um momento
e depois fê-la descer num golpe. O seu cavalo rodou para a esquerda e desviou-se,
com a fila do Povo do Urso a segui-lo.

O momento fora bem escolhido. Os Meio-Cavalos e os Tsenakwa viram-se subitamente em


frente uns dos outros e misturaram-se numa confusão tremenda, enquanto os Hrowakas
se afastavam e alcançavam as árvores. Alguns deles mostraram desejos de atravessar
o rio e assaltar as tendas dos Tsenakwa enquanto os seus guerreiros estavam
ocupados com os centauros.

— Creio que têm razão — disse Wolff. — Pelo menos precisamos de alguns cavalos.

Kickaha encolheu os ombros e autorizou o assalto. Cinco minutos depois os Hrowakas


estavam de volta. Tinham aparecido entre as tendas, aos gritos, e as mulheres e as
crianças haviam-se refugiado entre as árvores. Kickaha dissera que mataria o
primeiro homem que encontrasse a roubar alguma coisa que não fossem arcos e
flechas. Mas desceu do seu cavalo para dar um longo beijo a uma rapariga tão bonita
quanto relutante.

— Diz aos teus homens que eu podia ter-te levado para a cama e fazer-te desgostar
para sempre dos pobres diabos da tua tribo!—disse-lhe ele. — Mas tenho coisas mais
importantes para fazer!—A rir-se largou a rapariga, que fugiu. Parou apenas o tempo
suficiente para urinar no grande caldeirão que se encontrava no meio do acampamento
— um insulto mortal.

CAPÍTULO X

CAVALGARAM durante mais duas semanas, até que alcançaram as Árvores das Muitas
Sombras. Aí Kickaha despediu-se dos Hrowakas. Um a um, eles acercaram-se de Wolff e
colocaram as mãos sobre os ombros dele, significando que passara também a fazer
parte do Povo do Urso. Quando voltasse, poderia ter uma casa e uma mulher e lutar e
caçar com eles. Era o KwashingDa, o Forte, o homem que lutara corpo a corpo com um
Meio-Cavalo e o vencera.

Muitos dias depois deixaram para trás as Árvores das Muitas Sombras. Ambos tinham
perdido os cavalos, levados por qualquer coisa que deixava pegadas de quatro dedos,
dez vezes maiores que as de um homem. Wolff queria vingar-se, mas Kickaha
dissuadiu-o.

— Podes considerar-te feliz por também não teres sido apanhado. O WaGanassit está
coberto por escamas de silício. As tuas setas fariam ricochete nelas. Esquece os
cavalos.

Construíram uma canoa e desceram um largo rio que passava através de muitos lagos
grandes e pequenos. Era uma região montanhosa, com encostas muito inclinadas.

— Bela terra — disse Kickaha. — Mas os Chacopewachi e os Enwaddit vivem aqui.

Treze dias mais tarde — e depois de terem passado muito tempo a remar furiosamente
para escapar de guerreiros que os perseguiam — abandonaram a canoa. Atravessaram
uma cadeia de montanhas e chegaram a um grande lago. Aí construíram outra canoa e
continuaram a remar durante mais cinco dias, até que atingiram a base do monólito,
Abharhploonta. Começaram a subi-lo, vagarosamente, enfrentando tantos perigos como
acontecera durante a escalada do primeiro. Quando chegaram ao cimo já não dispunham
de setas e tinham o corpo coberto de feridas.

— Compreendes porque as ligações entre os vários níveis são raras? — perguntou


Kickaha. — Além do mais, o Senhor proibiu-as. No entanto, isso não impede que os
irreverentes e os aventureiros as tentem.

«Entre a periferia e a Drachenlândia há milhares de quilómetros de selva com


grandes planaltos aqui e ali. O rio Guzirit está apenas a uns cento e cinquenta
quilómetros daqui. Veremos se arranjamos passagem num barco.
Fabricaram setas com varas e pedras afiadas. Wolff matou um pequeno animal, cuja
carne era um pouco rançosa, mas que lhes encheu as barrigas. Kickaha olhou para o
céu e disse:

— Tinha esperanças de que uma das águias de Podarge nos encontrasse e desse
informações. No fim de tudo, não sabemos que direção os gworl tomaram. Devem-se ter
dirigido para a montanha, mas podiam seguir dois caminhos. Podiam ter continuado
pela selva, ainda que isso não fosse nada seguro. Ou tomar um barco para descer o
Guzirit, o que também seria perigoso para criaturas como os gworl. Além disso,
Chryseis teria um bom valor no mercado das escravas.

— Não podemos esperar eternamente — disse Wolff.

— Nem é necessário — respondeu Kickaha. Apontou para o céu e Wolff viu um relâmpago
amarelo que desapareceu para surgir de novo pouco depois. A águia desceu, com as
asas fechadas, e depois abriu-as e pairou.

Disse que se chamava Phthie e trazia boas notícias. Vira os gworl e a mulher apenas
a seiscentos quilómetros dali. Tinham obtido passagem num navio mercante e desciam
o Guzirit em direção à Terra dos Homens Couraçados.

— Viste a trombeta? — perguntou Kickaha.

— Não. Mas por certo que a têm escondida num dos sacos de pele que transportam.
Arranquei um deles a um gworl, mas por pouca sorte minha estava cheio de coisas
velhas e quase recebi uma seta numa asa.

— Os gworl têm arcos?

— Não. Os homens do rio é que dispararam sobre mim.

Wolff perguntou o que havia sobre os corvos e soube que eram muitos. Aparentemente
o Senhor encarregara-os de vigiar os gworl.

— É mau — comentou Kickaha. — Se nos virem estaremos em maus lençóis.

— Eles não sabem qual é o vosso aspeto — disse Phthie. — Escutei o que eles diziam.
Sabem apenas aquilo que os gworl lhes disseram e procuram dois homens que caminham
juntos, ambos altos, um de cabelo preto e outro de cabelo de bronze. Há muitos e
muitos homens que correspondem a essa descrição. No entanto, eles estarão atentos
àqueles que seguirem o rasto dos gworl.

—Tingirei a minha barba e vestirei roupas de Khamshem.

Phthie despediu-se. Depois de a gigantesca ave ter erguido voo da periferia do


monólito, os dois homens penetraram na selva.

— Caminha devagar e fala baixo — disse Kickaha.— Aqui há tigres. A selva está cheia
deles. E também do grande bico-de-machado. Ê um pássaro sem asas, tão grande e
feroz que até as águias de Podarge fogem dele.

Apesar dos avisos de Kickaha viram muito poucos seres vivos, exceto aves
multicolores, macacos e escaravelhos do tamanho de ratos. Antes de seguir o caminho
desejado, Kickaha procurou uma planta, o ghubharash. Encontraram um grupo delas ao
fim de meio dia de busca. Bateram as suas fibras e cozeram-nas. Extraíram delas um
líquido negro com o qual ele tingiu o cabelo, a barba e a pele da cabeça aos pés.

— Direi que herdei os meus olhos verdes da minha mãe, que seria uma escrava de
Teutónia — disse Kickaha. — Usa também um pouco disto. Será bom que pareças mais
escuro.

Chegaram a uma cidade meio arruinada, de pedra, com ídolos acocorados. Os


habitantes eram baixos, magros e escuros. Vestiam capas castanhas e tangas negras.
Tanto os homens como as mulheres usavam os cabelos compridos, cheios de manteiga
extraída do leite de cabras que saltavam por entre as pedras. Aquela gente — os
Kaidushang — tinham cobras guardadas em pequenas caixas e tiravam-nas delas de vez
em quando para as acariciarem. Mastigavam dhiz, uma planta que enegrecia os seus
dentes e dava aos seus olhos uma aparência mortiça e aos seus movimentos uma
lentidão excessiva.

Usando o H’vaizhum, a língua franca do rio, Kickaha falou com os chefes. Trocou a
perna de um animal semelhante a um hipopótamo, que ele e Wolff tinham morto, por
roupas dos Khamshem. Viram-se com turbantes verdes e vermelhos adornados com penas
de kiglibash, camisas brancas sem mangas, calças largas, purpúreas, cordões
dourados que lhes davam muitas voltas à cintura e sapatos negros, de pontas curvas.

Apesar do seu olhar mortiço, os chefes eram negociantes ardilosos. Só depois de


Kickaha se ter desfeito de uma pequena safira — uma das joias que Podarge lhe dera
— se convenceram a entregar os punhais e as cimitarras com pérolas incrustadas, que
haviam escondido.

— Espero que não tarde a surgir um navio — disse Kickaha. — Agora que sabem que
temos pedras preciosas, procurarão arranjar maneira de nos cortarem o pescoço.
Teremos de manter vigia durante a noite. E eles podem encarregar as suas cobras de
fazerem o trabalho.

Nesse mesmo dia surgiu um navio mercante. Ao ver os dois de pé no cais apodrecido,
acenando com compridos lenços brancos, o capitão ordenou que o navio fundeasse.

Wolff e Kickaha entraram no bote que tinham arriado para os levarem e dirigiram-se
ao Khillquz. Tinha uns doze metros de comprimento, baixo a meia nau e com altos
castelos à proa e à popa. Os marinheiros pertenciam ao ramo dos Shibacub e falavam
uma língua que Kickaha já explicara a Wolff e parecia uma forma arcaica semítica.

O capitão, Arkhyurel, recebeu-os no castelo da popa. Estava sentado, de pernas


cruzadas, sobre uma pilha de almofadas e ricos tapetes, sorvendo uma pequena xícara
de vinho espesso.

Kickaha disse que se chamava Ishnaqrubel e que procurava a cidade perdida de


Ziquooant, juntamente com o seu companheiro— um homem que jurara não falar enquanto
não voltasse para junto da mulher, na longínqua terra de Shiashtu.

As horas passaram enquanto a caravela descia o rio. Um marinheiro, vestindo apenas


uma tanga vermelha, tocava uma flauta no convés da proa. Trouxeram-lhes comida em
pratos de ouro e prata; macaco assado, aves recheadas, um pedaço de pão negro e
duro e geleia. A carne era demasiado picante, mas comeram-na.

Quando o Sol começou a desaparecer atrás da montanha, o capitão levantou-se. Levou-


os a um pequeno nicho atrás da roda do leme. Havia ali um ídolo de jade verde,
Tartartar. O capitão entoou uma prece ao Senhor. Depois ajoelhou-se perante o deus
da sua nação e um marinheiro queimou um pouco de incenso na chama que ardia no colo
de Tartartar. Quando os fumos se espalharam pelo navio, os companheiros de fé do
capitão oraram também. Mais tarde os marinheiros que adoravam outros deuses fizeram
também as suas devoções.

Nessa noite os dois dormiram no meio do convés, numa pilha de peles que o capitão
mandou preparar.
— Não sei o que fará este Arkhyurel — disse Kickaha.

— Disse-lhes que não tínhamos descoberto a cidade perdida, mas que havíamos
encontrado um pequeno tesouro e que lhe daríamos um rubi pela passagem. Esta gente
leva o seu tempo a fazer os negócios. Mas a sua cobiça pode ser maior que o seu
senso de hospitalidade e talvez nos queiram cortar o pescoço para ficarem com as
pedras todas. De qualquer maneira, se ele pensar numa coisa dessas, fá-la-á nos
próximos mil e quinhentos quilómetros. É um trecho solitário do rio; depois dele as
cidades e as vilas tomam-se mais numerosas.

Na tarde seguinte, Kickaha ofereceu ao capitão o rubi, enorme e bem talhado. Com
ele poderia ter comprado o barco e a tripulação, Fez votos para que Arkhyurel
ficasse satisfeito. Depois fez o que pretendia evitar, mas não podia deixar de
fazer: mostrou-lhe o resto das joias

— diamantes, rubis, turmalinas, topázios, etc. O capitão sorriu, lambeu os lábios e


acariciou as pedras durante três horas. Por fim devolveu-as.

Nessa noite, enquanto estavam deitados, Kickaha mostrou um pergaminho que o capitão
lhe dera. Representava uma grande curva do rio na qual estava marcado um círculo
com os símbolos contorcidos da escrita dos Khamshem.

— A cidade de Khotsiqsh. Abandonada pela gente que a construiu e habitada por uma
tribo meio selvagem, os Weezwart. Sairemos durante a noite, quando o navio fundear,
e atravessaremos a estreita língua de terra até ao outro braço do rio. Devemos
ganhar o tempo suficiente para alcançarmos o barco que leva os gworl. Se não o
conseguirmos, poderemos alcançar outro navio muito à frente deste. Se não
encontrarmos nenhum, alugaremos uma canoa dos Weezwart, com os respetivos
tripulantes.

Doze dias depois o navio fundeou junto de um cais enorme, mas cheio de fendas.
Enquanto o capitão negociava com os Weezwart, Kickaha e Wolff passearam entre as
ciclópicas muralhas da cidade. De repente, Wolff disse:

— Tens as pedras contigo. Porque não arranjamos um guia e partimos?

— Gosto da tua maneira de ser — respondeu Kickaha.

— Muito bem. Vamos.

Encontraram um homem alto e magro, chamado Wiwhin, que aceitou imediatamente a


oferta quando Kickaha lhe mostrou um topázio. Conhecia bem os caminhos e, tal como
prometera, levou-os em dois dias à cidade de Qirruqshak. Uma vez ali, pediu outra
pedra preciosa, afirmando que em contrapartida não falaria deles a ninguém.

— Não te prometi mais nada — disse Kickaha. — Mas, como gosto do teu espírito de
iniciativa, aqui tens mais uma pedra. Porém, se tentares apanhar uma terceira,
mato-te.

Wiwhin sorriu-se, fez uma vénia, agarrou no segundo topázio e desapareceu na selva.
Kickaha ficou a olhar para ele e disse:

— Talvez devesse tê-lo morto. Os Weezwart nem sequer têm a palavra honra no seu
vocabulário.

Atravessaram as ruínas. Depois de terem subido e descido montes de escombros e de


terra durante uma boa meia hora, encontraram-se do lado do rio. Era ali que viviam
os Dholinz, um povo cuja língua era a mesma dos Weezwart. Mas os homens usavam
longos bigodes pendentes e as mulheres pintavam de negro os lábios superiores e
tinham argolas no nariz. Com eles estavam um grupo de mercadores da terra de
Khamshem. Kickaha, ao vê-los, voltou para trás e tentou esconder-se nas ruínas. Mas
era tarde porque os Khamshem tinham-no visto e chamavam por ele.

— Cuidado! Se me apanharem foge tão depressa quanto possas — disse ele a Wolff. —
Estes passarões são mercadores de escravos.

Eram cerca de trinta, bem armados com cimitarras e punhais. Acompanhavam-nos uns
cinquenta soldados, altos e de ombros largos, de pele mais clara e com tatuagens em
espiral no rosto. Kickaha disse que eram mercenários Sholkin.

— Não deixes que eles te apanhem vivo — recomendou Kickaha antes de sorrir e
cumprimentar o chefe dos Khamshem. Era um homem muito alto e forte chamado Abiru.
Respondeu cortesmente a Kickaha, mas os seus olhos negros fitaram-nos como se
fossem um monte de carne à venda.

Kickaha contou-lhe a mesma história de que falara a Arkhyurel, mas nada disse sobre
as pedras. Disse que aguardavam um navio mercante que os levasse de volta a
Shiastu. E que fazia o grande Abiru?

O chefe dos mercadores respondeu que, graças ao Senhor e a Tartartar, o negócio


corria bem. Alem dos escravos usuais, capturara um grupo de criaturas muito
estranhas e também uma mulher de beleza inultrapassável, como nunca alguém vira.
Pelo menos ali.

O coração de Wolff começou a bater com força. Seria possível?

Abiru perguntou se não se importavam de ver os prisioneiros.

Kickaha lançou um olhar de aviso para Wolff, mas respondeu que gostariam muito de
ver tanto os seres estranhos como a mulher fabulosamente bela. Conversando
amigavelmente sobre as atracões da capital de Khamshem, o chefe dos mercadores
levou-os através de uma rua coberta de ervas altas, até um grande edifício com
escadarias ladeadas por estátuas partidas Parou em frente de uma entrada, junto da
qual se encontravam dez soldados. Mesmo antes de entrarem, Wolff teve a certeza de
que os gworl estavam ali. Sobre o cheiro dos corpos humanos não lavados havia o
odor a fruta podre característico daqueles seres.

A câmara era enorme, fria e escura. Junto à parede oposta, sentados na terra
acumulada sobre o chão de pedra, havia uma fila de cem homens e mulheres e trinta
gworl. Estavam presos uns aos outros por correntes compridas ligadas a golilhas.

Wolff procurou Chryseis com os olhos. Não estava ali.

Abiru respondeu à pergunta que ele não fizera:

— A mulher de olhos de gato não está aqui. Tem uma criada e uma guarda especial.
Damos-lhe toda a atenção e cuidado que uma joia de alto preço merece.

Wolff não se pôde conter. Disse:

— Gostaria de vê-la.

Abiru fitou-o e disse:

— Você fala de uma maneira estranha. O seu companheiro não disse que era também de
Shiastu?

Fez um gesto e os soldados avançaram, de lanças em riste.


— Não importa. Se virem essa mulher será com uma corrente ao pescoço.

Kickaha exclamou, indignado:

— Somos súbditos do rei de Khamshem e homens livres! Não podem fazer-nos isto!
Cortar-vos-ão a cabeça, depois de certas torturas legais, evidentemente!

Abiru sorriu.

— Não vos vou levar a Khamshem. Vamos para Teutónia, onde me pagarão bem, ainda que
você seja muito falador. Mas podemos resolver isso cortando-lhe a língua.

Tiraram-lhe as cimitarras e o saco das joias. Levaram-nos para o extremo das


correntes, logo atrás dos gworl, e puseram-lhes os colares de ferro em torno do
pescoço. Abiru despejou o saco no chão e praguejou ao ver as pedras preciosas.

— Então sempre encontraram as cidades perdidas! Grande sorte a nossa! Quase estou
tentado a pôr-vos em liberdade por me terem enriquecido!

— Que estúpido! — murmurou Kickaha em inglês.— Se tivesse oportunidade disso,


cortava-lhe mais alguma coisa que a língua.

Abiru saiu. Wolff examinou a corrente. Era formada por pequenos elos. Poderia
quebrá-la se o aço não fosse de muito boa qualidade. Mas só poderia tentá-lo de
noite.

Atrás dele, Kickaha murmurou:

— Os gworl não nos reconheceram, de modo que manteremos este disfarce.

— E a trombeta?

Kickaha, falando o alto alemão da Teutónia, tentou conversar com os gworl. Nada
conseguiu, além de quase ser cuspido. Mas recebeu informações suficientes dos
soldados e de alguns dos escravos. Os gworl tinham sido passageiros de um navio
assaltado pelos mercadores de escravos, na noite anterior à entrada de Wolff na
cidade. O navio tinha sido enviado rio abaixo, em direção a um pirata de que Abiru
ouvira falar.

Quanto à trombeta, ninguém sabia nada dela. E os soldados nada diziam. Kickaha
observou a Wolff que era provável que Abiru se tivesse calado, pois que toda a
gente ouvira falar da trombeta do Senhor. Fazia parte da religião universal e
vários livros sagrados mencionavam-na.

Chegou a noite. Os soldados trouxeram archotes e comida para os escravos. Ficaram


somente dois dentro da câmara e um número desconhecido junto da entrada. Kickaha
observou que os gworl não bebiam água. Deviam ter um processo de oxidar a sua
gordura, transformando-a em hidrogénio.

Os escravos deitaram-se, ou encostaram-se à parede, e adormeceram. Quando a lua ia


alta, Wolff disse:

— Vou tentar quebrar as correntes. Se não tiver tempo para quebrar as tuas, teremos
de atuar como irmãos siameses.

— Vamos — respondeu Kickaha.

Depois de terem esticado a corrente, Wolff agarrou-a com as duas mãos. Puxou por
ela mas os elos resistiram. Deu-lhe um esticão e a corrente quebrou-se com um
estalido.

Os dois soldados, que falavam em voz alta, tentando manter-se ambos acordados,
calaram-se. Aparentemente, não lhes ocorreu que a origem do som estivesse na quebra
da corrente. Ergueram os archotes durante algum tempo e olharam para o teto. Um
disse qualquer coisa, o outro riu-se e continuaram a conversar.

— Experimentamos outra vez? — disse Kickaha.

— Não gosto disso, mas estaremos em desvantagem se o não fizermos — respondeu


Wolff.

— Quando eu quebrar a corrente não entres imediatamente em ação — acrescentou ele.


— Tenho uma ideia para atrair os guardas sem alarmar os que estão lá fora.

— Espero que eles não se lembrem de render os guardas no mesmo momento em que
atuarmos — respondeu Kickaha.

Wolff deu um esticão, com todas as suas forças, e os elos quebraram-se. Dessa vez
os guardas pararam de falar e um gworl acordou de repente. Wolff mordeu-lhe um dedo
do pé. A criatura não gritou; resmungou apenas e levantou-se. Um dos guardas
ordenou-lhe que continuasse sentado. O gworl não compreendeu, mas percebeu o que
queriam, pelo tom da voz e pela maneira como a lança era apontada para ele. Ergueu
o pé e começou a esfregá-lo, praguejando contra Wolff.

Wolff e Kickaha saltaram simultaneamente sobre os soldados. Wolff agarrou a lança


de um deles e bateu-lhe com a haste no queixo no mesmo momento em que ele ia
gritar. Kickaha não teve tanta sorte. O soldado sobre o qual ele se havia atirado
recuou e preparou-se para atirar a lança. Kickaha apanhou-o pelas pernas, mas o
homem, antes de cair, largou a lança, que bateu contra a parede.

O silêncio acabou-se. Um guarda começou a gritar. O gworl apanhou a arma e


atravessou com ela o pescoço do guarda. Kickaha conseguiu apanhar a lança, tirou a
faca do morto e o primeiro soldado que entrou na câmara recebeu-a no ventre até ao
punho. Ao vê-lo cair, os outros recuaram. Wolff tirou a faca ao outro guarda,
enquanto Kickaha recuperava a sua e a limpava aos cabelos do morto.

— Por essa porta não podemos sair — disse Kickaha. — São muitos.

Wolff apontou para uma porta do lado oposto e correram para ela. No caminho
apanharam os archotes que os guardas tinham largado. A porta estava meio soterrada
e tiveram de passar por ela de rastos. A Lua surgiu através de uma abertura no
teto.

— Eles devem saber disto — disse Wolff. — Não são tão descuidados como isso. Ê
melhor continuarmos.

Mal tinham passado do ponto em que havia a abertura do teto quando surgiram luzes
de archotes em cima. Um segundo depois uma lança cravou-se na terra, falhando por
pouco a perna de Wolff.

Continuaram por corredores e corredores, procurando sempre aqueles que pareciam dar
acesso à retaguarda. De repente o chão faltou-lhes debaixo dos pés e Kickaha caiu
num buraco do qual não vinha qualquer luz. Wolff acercou-se do rebordo e viu que a
cova tinha pelo menos uns três metros de largo e quinze de profundidade. No fundo
havia um monte de terra, mas nenhum sinal de Kickaha, nem mesmo uma cova que
indicasse o lugar onde ele caíra.
Wolff chamou o companheiro, ao mesmo tempo que os soldados gritavam pelos
corredores, em sua perseguição.

Não recebeu resposta alguma. Estendeu o corpo tanto quando pôde e examinou o poço
com maior cuidado. Pareceu-lhe que havia buracos do outro lado. Talvez Kickaha
tivesse saído por um deles.

O som das vozes aproximou-se e viu a luz hesitante de um archote. Nada podia fazer
além de saltar o poço. Lançou-se horizontalmente, com todas as suas forças, bateu
na beira, que era de terra macia, e deslizou por ela. Agarrou no archote, que
tivera o cuidado de lançar primeiro, e avançou. No fundo do corredor estava uma
bifurcação. Um dos túneis encontrava-se obstruído por terra. O outro estava
parcialmente cortado por uma laje que fazia um ângulo de quarenta e cinco graus com
a horizontal. Conseguiu passar entre a pedra e a terra, não sem custo. Para além
havia uma câmara enorme, maior até que aquela onde os escravos estavam guardados.

No chão havia uma espécie de degraus, formados por terra solta, e que levavam ao
canto do teto e da parede. O luar que entrava por ele significava que a liberdade
estava perto. Saiu pelo pequeno buraco e viu-se no alto do monte de terra que
cobria as traseiras do edifício. Por baixo havia archotes. Abiru gritava aos
soldados, agitando os punhos.

Wolff olhou para a terra que tinha debaixo dos pés e fez uma ideia da altura da
qual Kickaha tinha caído no poço. Ergueu a sua lança e murmurou:

— Ave atque vale, Kickaha!

Gostaria de fazer pagar a vida do amigo com a de algumas mais— em especial a de


Abiru. Mas tinha de ser prático. Tinha de pensar em Chryseis e na trombeta. Ainda
que se sentisse vazio e fraco e que uma parte da sua alma tivesse desaparecido
dele.

CAPÍTULO XI

NAQUELA noite escondeu-se nos ramos de uma árvore alta, a alguma distância da
cidade. Pensava em seguir os mercadores de escravos e apoderar-se de Chryseis e da
trombeta na primeira ocasião. Os mercadores passariam pelo caminho junto do qual
ele se encontrava; aquele que levava a Teutónia. De manhã sentiu-se esfomeado e
sedento. Ao meio-dia estava desesperado. A tarde decidiu-se a beber um pouco de
água. Quando voltou para junto do caminho já era noite. Ninguém apareceu.
Aproximou-se do edifício do qual fugira e não encontrou ninguém. Por fim deparou
com um homem, quase inconsciente de dhiz. Acordou-o à bofetada e interrogou-o com a
faca contra a garganta. Apesar do seu conhecimento limitado da língua local,
conseguiu compreender que Abiru e o seu grupo tinham partido essa manhã em três
grandes canoas de guerra.

Deu um soco no homem que caiu inconsciente, e dirigiu-se para o cais. Também estava
deserto. Escolheu um barco estreito e leve, com uma vela, e começou a descer o rio.

Três mil quilómetros mais além, encontrou-se nas fronteiras da Teutónia e do


Khamshem civilizado. Ainda que tivesse avistado os mercadores por três vezes,
perdera-os outras tantas, detido pelos tigres e pelos bicos-de-machado.

A pouco e pouco a terra subiu. De repente surgiu um planalto na selva. Encontrou-se


noutro país. Ainda que o ar não fosse mais fresco, havia nele carvalhos, nogueiras
e outras árvores conhecidas. No entanto os animais eram invulgares. Não tinha
caminhado mais de três quilómetros na floresta quando foi forçado a esconder-se.
Um dragão passou por ele, fitou-o, soprou e afastou-se. Parecia ter um aspeto
clássico, com cerca de doze metros de comprimento, três de altura, e estava coberto
por grandes placas ósseas. Não expirava fogo. Na verdade, parou a uns trinta metros
de Wolff e começou a comer erva, pacificamente.

Com mais cuidado do que antes, Wolff continuou a avançar por entre as grandes
árvores e as cataratas verdes que pendiam dos seus ramos. Na manhã do dia seguinte
encontrou-se no limiar da floresta. A sua frente o chão baixava com uma inclinação
suave. Podia ver tudo numa extensão de muitos quilómetros. À direita, no fundo de
um vale, estava um rio. Do lado oposto, sobre uma agulha rochosa, havia um pequeno
castelo. No sopé da coluna de pedra via-se uma pequena aldeia. Que saudade tinha
ele de verdadeiros seres humanos, de beber um pouco de café com os amigos e de
dormir numa cama macia.

Sentiu que algumas lágrimas lhe corriam pelo rosto. Limpou-as e continuou o
caminho. Uma hora depois encontrou uma estrada estreita e poeirenta, e caminhava
por ela quando um cavaleiro surgiu numa curva, acompanhado por dois homens de
armas. O cavalo era enorme e negro e estava couraçado em parte. O cavaleiro vestia
uma armadura negra, de aço e malha, que se assemelhava às usadas pelos Alemães no
século XIII. Tinha a viseira levantada, mostrando olhos azuis num rosto de falcão.

Esporeou o cavalo e gritou a Wolff em alto alemão — uma língua que ele conhecia bem
através de Kickaha e também pelos estudos que fizera na Terra. Variara entretanto
um pouco e estava cheia de palavras dos Khamshem. Mas Wolff compreendeu o que o
cavaleiro pretendia.

— Para, miserável! — gritava ele. — Que fazes aqui com um arco?

— Que eu possa ser útil à vossa augusta pessoa — respondeu Wolff com sarcasmo. —
Sou um caçador e por isso tenho licença do rei para usar um arco.

— És um mentiroso. Conheço todos os caçadores por quilómetros em redor - Pareces-me


um Sarraceno ou coisa pior, por seres tão escuro. Larga o teu arco e rende-te ou
matar-te-ei como um porco que és!

— Avança e experimenta — disse Wolff, furioso.

O cavaleiro baixou a lança e avançou a galope.

Wolff fez o possível por se conter e não se desviar. No último momento lançou-se
para a frente. A lança mergulhou para se cravar nele, passou a centímetros das suas
costas e cravou-se no chão. O cavaleiro pulou da sela como um saltador à vara e,
sempre agarrado à lança, descreveu um arco. O Seu capacete foi a primeira coisa que
bateu contra o chão no fim desse arco, partindo-lhe por certo o pescoço ou a
espinha, porque não se moveu mais.

Wolff não perdeu tempo. Tirou a espada do cavaleiro e colocou-a à cinta. Montou o
seu cavalo e afastou-se.

A Teutónia derivara o seu nome do facto de ter sido conquistada pela Ordem
Teutónica, ou pelos Cavaleiros Teutónicos do Hospital de Santa Maria em Jerusalém.
Essa ordem nascera durante a Terceira Cruzada, mas desviara-se dos seus objetivos
originais. Em 1229, der Deutsch Orden começara a conquistar a Prússia para
converter os Bálticos pagãos e prepará-los para a colonização pelos Alemães. Um
grupo entrara no planeta do Senhor, naquele nível, ou por acidente ou porque o
Senhor abrira uma passagem para esse fim.

Fosse como fosse, os Cavaleiros Teutónicos tinham conquistado os aborígenes e


estabelecido uma sociedade semelhante à que tinham deixado na Terra. Mas o reino
original degenerara numa porção de pequenos estados independentes, que por sua vez
se haviam dividido numa porção de feudos dirigidos por uma hoste de barões que não
conheciam leis nem respeitavam a propriedade alheia.

No planalto também havia o estado de Ydshe. Os seus fundadores tinham passado para
o planeta ao mesmo tempo que os Cavaleiros Teutónicos. Eram alemães que falavam
Yddisch e tinham-se estabelecido no extremo oriental do planalto. Ainda que
originalmente fossem mercadores, tinham-se tomado nos senhores da população nativa.
Além disso, tinham adotado os costumes feudais dos Cavaleiros — por certo para
poderem sobreviver.

Wolff sorriu-se. Teria sido por acidente que os Alemães se encontravam no planeta
com os Judeus que desprezavam e com os Khamshem, que eram semitas arcaicos? Pensou
que podia ver o rosto do Senhor, com um sorriso de ironia...

Na realidade, não havia cristãos nem judeus na Drachelândia — na Terra dos Dragões.
Ainda que as duas fés persistissem no nome, estavam muito pervertidas. O Senhor
tomara o lugar de Jeová e de Deus, mas davam-lhe esses nomes. As cerimónias, os
rituais, os sacramentos e os livros sagrados tinham sido subtilmente alterados.

Wolff encaminhou-se para von Elgers. Não o pôde fazer tão depressa quanto queria
porque tinha de evitar as estradas e aldeias. Depois de ter morto o cavaleiro, nem
sequer se atreveu a atravessar os domínios de von Laurentius, como primeiro
pensara. Toda a gente devia andar à procura dele.

Dois dias depois encontrou um ponto através do qual podia descer sem entrar nas
propriedades de von Laurentius. Quando descia uma colina viu um grande prado
cortado por um regato. Havia dois acampamentos, cada qual de seu lado. Os homens
estavam também divididos em dois grupos, cada um deles olhando o seu campeão e o
seu antagonista, que carregavam um sobre o outro com lanças em riste. Nesse momento
encontraram-se no meio do campo, com tremendo estrondo. Um cavaleiro caiu, com a
lança do outro encravada no escudo. Mas o outro perdeu também o equilíbrio e caiu
alguns segundos depois.

Não era um torneio normal. Não se viam os camponeses e aldeões que deviam ladear os
palanques. E esses estavam também vazios. Tratava-se apenas de um campo junto à
estrada, em que os campeões costumavam desafiar os viajantes de categoria.

Wolff continuou o caminho, certo de que ninguém o incomodaria. O estandarte no


pavilhão à sua esquerda era amarelo e via-se nele o signo de Salomão. Portanto,
devia tratar-se de um campeão Ydshe. Por baixo do estandarte nacional via-se uma
bandeira verde com um peixe e um falcão de prata. Sobre o outro pavilhão havia
muitas bandeiras e galhardetes. Uma fez com que Wolff gritasse de surpresa. Num
campo branco via-se uma cabeça de burro com uma mão tendo os dedos todos fechados
menos o do meio. Kickaha dissera-lhe uma vez que tinha um brasão assim, e Wolff
rira-se muito com a ideia.

A alegria de Wolff durou pouco. O homem que arvorara a bandeira devia ser aquele
que ficara encarregado de administrar o território de Kickaha durante a ausência
dele. O seu amigo — ou antes: o seu cadáver — devia estar a apodrecer debaixo de um
monte de terra, no fundo de um poço numa cidade arruinada na selva.

Sem que ninguém o detivesse, dirigiu-se ao campo.

Os homens-de-armas e os servos olharam para ele e voltaram a cara. Alguém murmurou:


— Cão Yidshe!— mas ninguém fez qualquer outro comentário. Passou por uma fila de
cavalos, em direção ao cavaleiro que procurava. Vestia uma armadura vermelha, tinha
a viseira caída e mantinha a lança na vertical, com firmeza, enquanto aguardava a
sua vez. A lança tinha na ponta um galhardete com a cabeça de burro e a mão humana.

Wolff aproximou-se do cavalo inquieto, tornando-o ainda mais nervoso. Gritou em


alemão:

— Barão von Horstmann?

Ouviu-se uma exclamação abafada, uma pausa e o cavaleiro ergueu a viseira. Wolff
quase chorou de alegria. Dentro do capacete estava o rosto alegre de Finnegan —
Kickaha— von Horstmann.

— Não digas nada — recomendou Kickaha. — Não sei como foi que me encontraste, mas
sem dúvida que estou contente por isso. Já falo contigo. Isto é, se não morrer.
Este Daksfalk é muito duro.

CAPÍTULO XII

OUVIRAM-SE trombetas. Kickaha dirigiu-se para o lugar que os juízes lhe indicaram.
Um padre de cabeça rapada abençoou-o enquanto do outro lado do campo um rabino
dizia qualquer coisa ao Barão Funem Laksfalk. O campeão Yldsche era um homem
grande, com uma armadura prateada cujo capacete parecia uma cabeça de peixe.

As trombetas tocaram de novo e o toque foi seguido pelo estrondo dos cascos das
montadas dos cavaleiros e pelos gritos de incitamento dos assistentes. Os
adversários encontraram-se exatamente no meio do campo, e a lança de cada um deles
embateu também no meio do escudo do outro. Ambos caíram com um barulho metálico que
assustou os pássaros, fazendo-os fugir mais uma vez das árvores vizinhas. Os
cavalos rolaram pelo chão.

Os homens de cada cavaleiro correram para o campo para levantarem o seu chefe e
afastarem os cavalos, que tinham ambos quebrado o pescoço. Durante um momento,
Wolff pensou que o Yidshe e Kickaha também tinham morrido, porque nenhum deles se
movia. Mas depois de ser transportado para a tenda pelos seus homens, Kickaha
moveu-se e sorriu levemente, dizendo:

— Deviam ver o outro...

— Ele está bem — respondeu Wolff, olhando para o outro campo.

— Que pena. Esperava que ele não nos importunasse mais. Está a ocupar-me muito
tempo.

Kickaha ordenou que todos menos Wolff abandonassem a tenda, e quando os homens
saíram, não muito satisfeitos, disse:

— Vinha do meu castelo para o de von Elgers quando passei pelo pavilhão de
Daksfalk. Se estivesse só, teria ignorado o desafio e continuaria o meu caminho.
Mas havia Teutões aqui e também tinha de pensar nos meus homens: não podia ficar
com uma reputação de cobardia. Quis combater imediatamente com ele, mas os juízes
não me permitiram. Tive de combater com três outros cavaleiros, noutras tantas
eliminatórias. E este é o meu segundo encontro com Daksfaltk. Da primeira vez
também nos desmontámos um ao outro. Mesmo assim, já fiz mais do que alguém fez até
agora. Ele derrotou todos os Teutões que o enfrentaram. Matou dois e deixou outro
aleijado para a vida inteira.

Enquanto ouvia Kickaha, Wolff ia-lhe despindo a armadura. Kickaha ergueu-se de


repente, gemendo e piscando os olhos. Perguntou:

— Como foi que chegaste aqui?


— Andando. Pensei que tinhas morrido.

— Pouco faltou para isso. Caí sobre uma plataforma a meio caminho, que depois
abateu e me cobriu de terra quando me arrastou para o fundo. Mas não estive durante
muito tempo com os sentidos perdidos e a terra só me cobria levemente o rosto, de
modo que não morri asfixiado. Fiquei quieto para que os soldados não me vissem Eles
atiraram uma lança para o fundo do poço. Não me tocou por um cabelo.

Ao fim de um par de horas libertei-me da terra. Tive dificuldade em sair do poço.


Escorregava constantemente Devo ter demorado umas dez horas, mas tive bastante
sorte. Agora diz-me como foi que tu chegaste aqui?

Wolff contou-lhe tudo. Kickaha franziu a testa e disse:

— Portanto, bem me parecia que Abiru viria ter com von Elgers. Temos de sair daqui
bem depressa. Queres brincar um pouco com o Yid?

Wolff protestou, dizendo que nada sabia de justas, mas Kickaha respondeu-lhe:

— Se quisesses terçar lanças com ele terias razão. Mas desafiá-lo-emos com uma luta
com espadas, sem escudos. Não é o mesmo que um duelo com um florete ou sabre; é uma
questão de força e é o que tu tens!

— Não sou um cavaleiro. Os outros viram-me entrar como um viajante comum.

— Disparate! Não sabes que esses cavaleiros andam muitas vezes disfarçados? Dir-
lhes-ei que és um Sarraceno, um Khamshem pagão, mas no entanto um verdadeiro amigo
meu. Isso mesmo: o Lobo Sarraceno — há um cavaleiro famoso com esse nome. Estou
demasiado cansado e magoado para lutar de novo contra esse Laksfalk. Direi que em
tempos te salvei a vida e que me procuraste, disfarçado, para me retribuir esse
favor. E não é mentira.

Wolff perguntou que desculpa daria para não usar a lança.

— Contar-lhes-ei uma história. Direi que um cavaleiro te roubou a lança e que


juraste nunca mais usar uma enquanto não recuperares a tua. Eles aceitarão isso.
Andam sempre a fazer juramentos, à maneira dos cavaleiros da Távola Redonda.

A armadura de Kickaha não era suficientemente grande para Wolff, de modo que lhe
vestiram a do cavaleiro Yidshe que Kickaha matara na véspera. Os servos ajudaram-no
a montar. Wolff pensara que com tanto peso seria necessária uma espécie de
guindaste para isso. Kickaha disse-lhe que em tempos talvez tivesse sido assim, mas
os cavaleiros havia muito que tinham voltado a usar chapas mais leves e mais cota
de malha.

O mensageiro Yidsche anunciou que o Barão Funem Laksfalk aceitava o desafio, apesar
de o Lobo Sarraceno não possuir credenciais. Se o valente e excelente ladrão Barão
Horst von Hortsmann era fiador do Lobo, então ele era digno do Barão Funem
Laksfalk. Era uma formalidade. O campeão Yidsche nunca teria pensado em não aceitar
o desafio.

As trombetas tocaram de novo. Os cavalos lançaram-se a galope. Passaram um pelo


outro a toda a velocidade e durante esse breve momento os homens cruzaram as armas.
As espadas bateram uma na outra com um estrondo metálico. Wolff sentiu na mão e no
braço um choque paralisador. No entanto, quando se voltou, viu que a espada do seu
antagonista estava no chão. O Yidsche estava a desmontar rapidamente para alcançar
a espada antes de Wolff. Apressou-se tanto que escorregou e caiu de cabeça no chão.
Wolff afastou o cavalo e demorou a desmontar o tempo suficiente para que o outro se
levantasse. Perante esse acto cavalheiresco, ambos os campos romperam em
aclamações. Segundo as regras, Wolff podia ter continuado a cavalo e cortado em
pedaços o seu adversário enquanto ele tentava recuperar a sua arma.

Uma vez em terra, ficaram frente a frente. O cavaleiro Yidshe ergueu a viseira,
mostrando um rosto simpático. Tinha um bigode espesso e olhos azuis, muito claros.
Disse:

— Faço preces para que me deixes ver o teu rosto, nobre adversário. És um
verdadeiro cavaleiro, pois não me quiseste matar quando eu estava indefeso.

Wolff levantou a sua viseira por um momento. Ambos avançaram e terçaram armas. O
golpe de Wolff foi de novo o mais forte, de tal modo que voltou a arrancar a espada
das mãos do adversário.

Funem Daksfalk ergueu a viseira, dessa vez com a mão esquerda, e disse:

— Não posso usar o meu braço direito. Permites-me que use o esquerdo?

Wolff saudou-o e recuou. O seu adversário agarrou de novo a espada e, depois de se


aproximar, brandiu-a com todas as suas forças. Mais uma vez a força do golpe de
Wolff desarmou o Yidshe.

Funem Daksfalk levantou a viseira pela terceira vez.

— És um campeão como nunca conheci outro. Amaldiçoo-me por confessá-lo, mas


venceste-me. E isso é uma coisa que nunca pensei sequer dizer. Tens a força do
Senhor!

— Podes conservar a tua vida, a tua honra, a tua armadura e o teu cavalo —
respondeu Wolff. — Quero apenas partir com o meu amigo von Horstmann sem mais
desafios. Temos um encontro marcado.

O Yidshe respondeu que assim seria. Wolff voltou ao seu campo, alegremente
aclamado, mesmo por aqueles que pensavam que ele era um cão Khamshem.

Kickaha ordenou que partissem. Wolff despiu a armadura. Não iam muito longe quando
ouviram um cavalo em corrida. Pela estrada fora vinha o Barão Funem Laksfalk,
também sem a armadura. Pararam e esperaram por ele.

— Nobres cavaleiros — disse ele, a sorrir. — Sei que têm uma missão a cumprir.
Seria demasiado que eu pedisse para me juntar a vocês? Sentir-me-ia honrado. E
penso também que me unindo a vocês redimiria a minha derrota.

Kickaha olhou para Wolff e disse:

— É contigo. Mas gosto do estilo dele.

— Juras que nos ajudarás em tudo quanto fizermos? Em tudo quanto não for desonroso,
evidentemente. Poderás libertar-te do teu juramento quando quiseres, mas deves
fazer um juramento sagrado em como nunca ajudarás os nossos inimigos.

— Pelo sangue de Deus e pelas barbas de Moisés. Juro-o!

Essa noite, quando acamparam junto de um ribeiro, Kickaha disse:

— Há um problema que Laksfalk tornou mais complicado. Temos de limpar a tua pele e
tens de cortar essa barba. Se assim não for, e se encontrarmos Abiru, ele
reconhecer-te-á.

— Uma mentira conduz sempre a outra — disse Wolff. — Bem, diz-lhe que sou o filho
mais novo de um barão que me expulsou porque o meu ciumento irmão me acusou
falsamente. Desde então tenho viajado, disfarçado de Sarraceno. Mas quero voltar ao
castelo de meu pai — que entretanto morreu — para desafiar o meu irmão.

— Fabuloso! Tens tanta imaginação como eu! E quando ele souber de Chryseis e da
trombeta?

— Inventaremos qualquer coisa. Talvez lhe digamos a verdade.

Na manhã seguinte cavalgaram até à aldeia de Etzelbrand. Ali, Kickaha comprou


alguns produtos químicos ao bruxo-branco e preparou uma mistura capaz de dissolver
a tinta. Saíram da aldeia e pararam de novo junto do ribeiro, Daksfalk observou-os
com interesse, depois com surpresa e por fim com suspeita, quando a barba
desapareceu, seguida pela cor da pele.

— Pelos olhos do Senhor! Você era um Khamshem, mas agora pode ser um Yidshe.

Kickaha aproveitou o ensejo para contar durante três horas uma história muito
pormenorizada, segundo a qual Wolff era filho bastardo de uma dama Yidshe e de um
cavaleiro Teutónico — um tal Robert von Wolfram, que fora morto antes de pagar a
sua dívida. E agora o filho — que adotara o mesmo nome — pretendia conquistar o
castelo de que o seu tio, um velho de mau carácter, se apoderara.

Quando a história chegou ao fim, Laksfalk tinha lágrimas nos olhos. Disse:

— Acompanhar-te-ei, Robert, e auxiliar-te-ei contra o teu maldito tio. Assim


redimirei a minha derrota.

Mais tarde, Wolff repreendeu Kickaha por contar uma história tão fantástica. Além
do que não gostara de enganar um homem como o cavaleiro Yidshe.

— Que disparate! — respondeu Kickaha. — Como poderíamos contar-lhe a verdade? E eu


sou Kickaha — o ardiloso, o construtor de fantasias e realidades. Sou o homem que
nenhuma fronteira pode conter. Fujo de uma para a outra. Desapareço quando me
querem deter e apareço onde ninguém me espera. Sou o moscardo do Senhor; ele não
pode dormir de noite porque eu escapo sempre aos seus Olhos, os corvos, e aos seus
caçadores, os gworl!

Kickaha deteve-se e começou a rir às gargalhadas. Wolff teve de se rir também.


Kickaha ria-se de si mesmo. No entanto, não havia exagero no que ele dissera. E
esse pensamento abriu caminho a uma série de especulações que fez franzir a testa a
Wolff. Seria possível que Kickaha fosse o próprio Senhor, disfarçado? Podia
divertir-se desempenhando simultaneamente o papel de lebre e cão de caça. Que
melhor entretenimento podia haver para um Senhor, um homem que tinha a maior
dificuldade em fugir ao tédio? Havia muitas coisas por explicar em relação a ele.

Ao olhar para o rosto de Kickaha, procurando qualquer indício que pudesse ajudar a
esclarecer o mistério, sentiu as suas dúvidas evaporarem-se. Por certo que aquele
rosto alegre não podia ser a máscara de um ser terrivelmente frio que brincava com
vidas. Mas a ideia persistiu no espírito de Wolff durante toda a tarde. À noite,
depois do jantar, enquanto esvaziavam canecas de excelente cerveja preta, pôde
contar a Daksfalk uma história um pouco resumida sobre a busca de Chryseis — um
nobre propósito, segundo todos concordaram. E foram deitar-se, a cambalear um
pouco.

Na manhã seguinte, quando seguiam por um atalho através das colinas, que lhes
pouparia três dias de caminho, Wolff avistou um corvo e avisou Kickaha.

— Sim, bem sei, mas não te assustes — respondeu aquele. — Há corvos por toda a
parte. Duvido que ele saiba quem somos. E sinceramente espero que não o saiba.

A meio do dia seguinte entraram no território do Komtur de Tragyln. Chegaram à


vista do castelo vinte e quatro horas depois. Era ali que residia o Barão von
Elgers — no maior castelo que Wolff vira até então, construído de pedra negra sobre
um monte muito alto a cerca de quilómetro e melo da vila de Treglyn.

Aproximaram-se do fosso com as armaduras vestidas e as lanças na vertical, com


flâmulas nos topos. Um guarda saiu de uma pequena guarita para perguntar, muito
cortesmente, o que desejavam.

— Diz ao teu nobre Senhor que três cavaleiros de boa fama serão seus hóspedes —
respondeu Kickaha — Os Barões von Horstmann e von Wolfram e o muito famoso Barão
Yidshe, Funem Daksfalk. Procuramos um nobre que necessite dos nossos serviços em
combate ou nos confie uma missão.

Poucos minutos depois um dos filhos de von Elgers um jovem magnificamente vestido,
veio recebê-los. Uma vez dentro do enorme pátio, Wolff viu uma coisa que não lhe
agradou. Alguns Khamshen e Sholkin passeavam ou jogavam aos dados.

— Não nos reconhecerão — disse Kickaha. — E temos motivo para nos alegrarmos. Se
eles estão aqui, é porqe Chryseis e a trombeta também estão.

Tomaram banho e vestiram roupas garridas que o Barão von Elgers lhes enviara. Wolff
notou que diferiam pouco das usadas no século XIII. Quando entraram na grande sala
de jantar, a refeição estava já a ser servida no meio de um ruído ensurdecedor.
Metade dos convidados cambaleava, e outra metade não o fazia porque já tinham
passado por esse estado. Von Elgers conseguiu levantar-se para cumprimentar os
recém-vindos. Apresentou desculpas por ser encontrado naquele estado a uma hora tão
matinal.

— Os nossos hóspedes de Khamshem estão aqui h; alguns dias. Trouxeram-nos uma


riqueza inesperada e por isso temos despendido um pouco dela em sinal de regozijo.

Voltou-se e apresentou-lhes Abiru, tão rapidamente que quase caiu. Abiru fitou-os
com os seus olhos negro que pareciam uma lâmina. Sorriu-se com largueza, ma
mecanicamente. Ao contrário dos outros, não parecia estar embriagado. Sentaram-se
todos junto uns dos outro porque os ocupantes anteriores dos bancos tinham rolado
para debaixo da mesa. Abiru parecia ansioso por falar.

— Se estão a procurar alguém que necessite dos vossos serviços, encontraram esse
homem. Paguei ao barão para que nos conduza ao interior, mas posso fazer uso de
mais cavaleiros. O caminho do meu destino é longo, duro e cheio de perigos.

— E qual é esse destino? — perguntou Kickaha, com aparente desinteresse, enquanto


olhava para a beleza loura que se encontrava do lado oposto da mesa.

— Não é segredo — respondeu Abiru. — Dizem que o senhor de Kranzelkracht é um homem


muito estranho, mas também dizem que ainda é mais rico que o Grande Marechal da
Teutónia.

— Ê verdade — confirmou Kickaha. — Já estive com ele e vi os seus tesouros. Muitos


anos atrás, segundo se diz, ele atreveu-se a desobedecer ao Senhor e subiu a grande
montanha até ao nível de Atlantis. Roubou os tesouros do próprio Rhadamanthus e
fugiu com um saco de pedras preciosas. Desde então aumentou os seus domínios
conquistando os estados em tomo do seu. Diz-se que o Grande Marechal está
preocupado por isso e pensa fazer uma Cruzada contra ele. O Marechal afirma que o
homem é um herege. Mas se o fosse, não o teria o Senhor destruído há muito com o
fogo do céu?

Abiru inclinou a cabeça e tocou a testa com a ponta dos dedos.

— O Senhor age de maneiras misteriosas. Além disso, quem, senão ele, conhece a
verdade? De qualquer maneira, vou levar os meus escravos e certas coisas a
Kranzelkracht. Espero ganhar uma tremenda fortuna e os cavaleiros suficientemente
audaciosos para me acompanharem ganharão muito ouro, para não falar em fama.

Abiru calou-se para beber um pouco de vinho. Kickaha disse de parte a Wolff:

— Este homem é tão mentiroso como eu. Quer que o levemos a Krankelkracht porque
fica junto ao sopé do monólito. Depois levará Chryseis e a trombeta para cima, para
Atlantis, onde receberá em sua troca uma casa cheia de ouro e pedras preciosas. A
menos que o seu jogo seja ainda mais profundo.

Kickaha ergueu a caneca e esvaziou-a. Depois acrescentou:

— Maldito seja eu se não há qualquer coisa familiar neste Abiru! Tive uma impressão
estranha da primeira vez que o vi, mas estava muito preocupado para poder pensar
nisso. Agora tenho a certeza de que já o tinha visto.

Abiru ergueu-se e retirou-se, dizendo que era a hora das preces ao Senhor e a
Tartartar. Voltaria depois. Von Elgers fez sinal a dois homens-de-armas e ordenou-
lhes que o acompanhassem aos seus aposentos e o protegessem. Wolff compreendeu que
a cortesia do Barão escondia a sua falta de confiança no Khamshem.

— Tens razão — disse Kickaha. — Ele não chegou a este ponto voltando as costas aos
seus inimigos. E faz o possível para esconder a tua impaciência. Temos muito que
esperar. Finge que estás bêbado, brinca um pouco com as damas — se o não fizeres
pensarão que não gostas de mulheres. Mas não vás com nenhuma delas. Temos de estar
sempre diante das vistas um do outro para que possamos fugir quando for necessário.

CAPÍTULO XIII

WOLFF bebeu o suficiente para se desprender dos arames que pareciam ter sido atados
à sua volta. Até começou a falar com a Dama Alison, esposa do Barão da Marca de
Wenzelbrichq. Era uma mulher de cabelos escuros e olhos azuis, com um corpo
escultural, mal oculto por um vestido branco que lhe moldava as formas. O decote
era tão grande que só por si bastaria para fazer perder a respiração a muitos
homens, mas ela passava o tempo a deixar cair o leque e a apanhá-lo. Noutra ocasião
qualquer, Wolff teria ficado feliz por interromper com ela o seu fastio de
mulheres. Era evidente que não haveria qualquer problema por isso. Mas ele só
pensava em Chryseis, que devia estar em qualquer parte do castelo.

Por fim, e no momento mais oportuno — porque ele já não podia ignorar os propósitos
audaciosos da Dama Alison sem a ofender —, Kickaha surgiu a seu lado. Trouxera
consigo o marido de Alison para dar a Wolff uma razão de se retirar. Mais tarde,
Kickaha explicou que dissera ao Barão que a mulher o chamara. O que, com o auxílio
da cerveja, devia dar origem a uma belíssima confusão.

Os três cavaleiros juntaram-se e saíram. Atravessaram rapidamente um corredor e


subiram quatro lances de escadas. Estavam apenas armados com os punhais, porque
seria um insulto usar as armaduras ou espadas durante a refeição. No entanto, Wolff
conseguira retirar uma grande corda dos cortinados do seu quarto. Enrolara-a à
cintura, por baixo da camisa.

O cavaleiro Yidshe explicou:

— Ouvi Abiru falar com o seu ajudante, Rhamnish. Abiru perguntou se ele já
descobrira o lugar para onde von Elgers levara Chryseis. Rhamnish disse que
despendera algum ouro e tempo a falar aos servos e aos guardas. Tudo quanto
descobrira era que ela se encontrava no lado leste do castelo. Os gworl estavam nas
masmorras.

— Porque é que von Elgers tem Chryseis em seu poder? — perguntou Wolff. — Ela não
pertence a Abiru?

— Talvez o Barão tenha algumas intenções muito pessoais — disse Kickaha. — Se eia é
tão extraordinariamente bela como dizes...

— Tenho de encontrá-la!

— Não percas a cabeça. Olha: há um guarda no fim do corredor. Continuemos


calmamente.

O guarda ergueu a lança quando eles se aproximaram. Numa voz cortês mas firme,
disse-lhes que não podiam avançar. O Barão proibira fosse quem fosse de avançar,
sob pena de morte.

— Está bem — respondeu Wolff. Fingiu que voltava para trás, mas de repente deu um
salto e agarrou a lança. Antes que a pobre sentinela pudesse gritar, viu-se atirada
contra a parede enquanto a haste da lança era encostada à sua garganta, com força.
Wolff carregou mais. Os olhos da sentinela começaram a sair das órbitas e o rosto
tornou-se primeiro vermelho e depois azul. Um momento depois caiu para a frente,
morto.

O Yidshe arrastou o corpo através do corredor, até outra sala. Quando voltou disse
que escondera o corpo atrás de uma grande arca. Mas não encontrara nele qualquer
chave.

— Provavelmente von Elgers tem a única que existe — disse Kickaha. — Muito bem,
continuemos.

Entraram noutra sala, no fim do corredor e dirigiram-se à janela. Em baixo havia


uma série de cornijas e carrancas. Não era muito fácil subir por elas, mas também
não era impossível. A quinze metros, em baixo, via-se a superfície do fosso, mal
iluminada pela luz dos archotes na ponte levadiça. Felizmente, nuvens negras e
espessas cobriam a Lua.

Começaram a subir, primeiro Kickaha, depois Wolff e por fim o cavaleiro Yidshe, até
uma Janela gradeada. Wolff parou e olhou para o interior. Passou a mão pelas grades
e encontrou uma vela. Tirou um fósforo de um pequeno saco que tinha à cintura. De
cima, Kickaha perguntou:

— Que estás a fazer?

Wolff disse-lhe e Kickaha respondeu:

— Chamei Chryseis pelo nome um par de vezes. Não está lá ninguém. Não percas tempo.

— Quero ter a certeza.

Wolff acendeu o fósforo e viu que de facto não havia ninguém no quarto.
— Estás satisfeito? Resta-nos uma possibilidade... Oh!

Wolff sentir-se-ia, depois grato por ter tido tanta relutância em convencer-se de
que Chryseis não estava naquele quarto. Imediatamente depois da exclamação de
Kickaha, um corpo caiu sobre ele. Quase sentiu o braço arrancado do ombro. Kickaha
permaneceu agarrado a ele durante alguns segundos e depois voltou a subir. Nenhum
deles disse uma palavra sobre o que acontecera, mas sabiam ambos que se não fora a
teimosia de Wolff, a queda de Kickaha tê-lo-ia arrastado e ambos cairiam sobre
Laksfalk.

Ouviram um tremendo clamor dentro do castelo, seguido por outro menos forte. Wolff
olhou para a ponte levadiça, supondo que tinham sido avistados. Mas viu apenas
gente a correr, alguma com archotes, em direção às árvores e arbustos que ladeavam
o castelo.

Pensou que tinham dado conta da sua ausência e haviam encontrado o corpo do guarda.
Era necessário que fugissem. Mas antes disso tinham de encontrar Chryseis.

Kickaha disse de cima:

— Vem cá! — Havia tanta excitação na sua voz que era evidente que ele tinha
encontrado Chryseis. Wolff subiu apressadamente, até uma pequena fresta aberta na
parede da torre. Espreitou, de cabeça para baixo, e viu Chryseis, a sorrir e a
chorar.

Nunca mais pôde recordar-se exatamente do que disseram um ao outro. Sentiu apenas
que podia ficar ali a falar eternamente e estendeu a mão para tocar a dela. Mas,
por mais que ela se esforçasse, não pôde realizar esse desejo.

— Não importa — disse ele. — Sabes que estamos aqui.

Não partiremos sem ti, juro-te.

— Pergunta-lhe onde está a trombeta!—disse Kickaha.

Ao ouvi-lo, Chryseis respondeu:

— Não sei, mas penso que von Elgers a tem em seu poder.

— Ele tem-te importunado?—perguntou Wolff, furioso.

— Não muito, mas não sei quanto tempo se passará até que ele queira possuir-me —
respondeu ela. — Só se tem contido porque não deseja baixar o preço que pode obter
por mim. Diz que nunca viu uma mulher como eu.

— Deixem-se de conversas—ordenou Kickaha.—Teremos muito tempo para isso quando


sairmos daqui.

— Sei uma coisa que o Barão não sabe — disse ela. — Ele pensa que Abiru me vai
levar a von Kranzelkracht, mas eu sei que ele vai subir o Doozvillnavava até
Atlantis. Então ele vender-me-á a Rhadamanthus.

— Não te venderá a ninguém porque o matarei — disse Wolff. — Tenho de me ir embora,


Chryseis, mas não tardarei a voltar. Lembra-te de que te amo!

Chryseis chorou.

— Há mil anos que não ouvia um homem dizer-me isso! O Robert Wolff, amo-te! Mas
tenho medo...

— Nada tens de que ter medo.

— O Yidshe já começou a descer — disse Kickaha.— Mandei-o à frente para averiguar a


causa do tumulto e ver se podemos voltar pelo mesmo caminho.

A descida foi mais longa e mais perigosa que a subida, mas fizeram-na sem problemas
de maior. Laksfalk esperava-os na janela pela qual tinham saído.

— Encontraram o guarda que mataste — disse ele. — Mas não pensam que tenhamos
alguma coisa a ver com isso. Os gworl libertaram-se das masmorras e mataram alguns
homens. Apoderaram-se também das suas armas. Alguns fugiram, mas não todos.

Saíram da sala e misturaram-se com os homens que procediam à busca. Não tiveram
possibilidade alguma de subir as escadas até ao quarto onde Chryseis estava
encerrada. Além disso, por certo que von Elgers mandara reforçar a guarda.

Vaguearam pelo castelo durante algumas horas, fazendo o possível para se habituarem
à sua topografia. Notaram que, apesar do choque da fuga dos gworl, os Teutões ainda
estavam muito bêbados. Wolff sugeriu que recolhessem ao seu quarto e ali
discutissem a possibilidade de libertar Chryseis.

No mesmo momento em que Wolff entrou no quarto compreendeu que não estavam
sozinhos. O odor a fruta podre encheu-lhe as narinas. Puxou os companheiros para
fora e fechou a porta. Agarrou no punhal e Kickaha fez o mesmo. Daksfalk não
compreendeu nada, além de que havia ali um cheiro estranho.

Wolff falou-lhe ao ouvido. O cavaleiro dirigiu-se à parede, ao armeiro onde se


encontravam as três espadas e parou. Tinham desaparecido.

Em silêncio e devagar, Wolff dirigiu-se ao outro quarto. Kickaha seguiu-o com um


archote. A chama bruxuleante desenhou formas corcovadas que por certo eram dos
gworl.

A luz avançou e as formas desapareceram.

Estão aqui — disse Wolff em voz baixa. — Ou foram-se embora. Para onde?

Kickaha apontou os altos cortinados que tapavam a janela. Wolff arrancou-os. Não
havia nenhum gworl.

— Entraram pela janela — disse o Yidshe. — Mas porquê?

Wolff levantou os olhos nesse momento e praguejou. Recuou para avisar os amigos,
mas eles também já tinham olhado para cima. Pendurados pelos joelhos, no grosso
varão dos cortinados, estavam dois gworl. Ambos tinham longas e sangrentas facas
nas mãos. Além disso, um estava agarrado à trombeta de prata.

As duas criaturas saltaram ao mesmo tempo. Uma delas golpeou o braço de Kickaha. A
outra lançou-se com a faca sobre Laksfalk. O choque da lâmina sobre o ventre do
cavaleiro fê-lo dobrar-se e cambalear. Mas a faca não entrou na carne. Um rasgão na
camisa mostrou por baixo o brilho do aço de uma cota de malha.

Entretanto, o que tinha a trombeta de prata fugiu pela janela. O outro protegeu-lhe
a fuga. Lançou Wolff ao chão, com um soco. Atirou-se a Kickaha e fê-lo recuar. O
Yidshe saltou sobre ele, de faca na mão, mas a criatura agarrou-lhe o pulso e
torceu-o, fazendo-o largar a lâmina.
Kickaha, caído no chão, levantou uma perna e bateu com o calcanhar no tornozelo do
gworl. A criatura caiu, mas não chegou a bater no chão porque Wolff agarrou-a.
Abraçaram-se e rodaram em torno do quarto, batendo contra as paredes. O gworl
sofreu mais, porque aguentou o choque sobre a nuca.

Por um momento ficou estonteado. Isso deu a Wolff o tempo suficiente para agarrar o
monstro de modo a tentar quebrar-lhe a espinha. Os outros dois homens aproveitaram
a oportunidade para lhe cravarem as facas por várias vezes e teriam continuado por
tempo indefinido a procurar um ponto fraco na espessa couraça se Wolff não lhes
tivesse dito para pararem.

Wolff recuou e largou a criatura, que caiu no chão a sangrar e de olhos vítreos.
Correu para a janela e olhou em volta. Só se viam as águas negras do fosso, em
baixo.

Kickaha estava debruçado sobre o gworl. Olhou para Wolff e disse:

— O nome dele é Diskibibol. O outro chama-se Smeel.

— Deve ter-se afogado — respondeu Wolff. — Mesmo que pudesse nadar, os dragões-de-
água tê-lo-iam apanhado. Aparentemente ninguém o viu cair. A trombeta deve estar no
fundo.

O gworl falou num alemão rouco e imperfeito:

— Vocês morrerão O Senhor vencerá! Arwoor é o nosso Senhor; não pode ser derrotado
por gente imunda. Mas antes de morrerem sofrerão as maiores... as maiores...

Tossiu, cuspiu sangue e continuou assim até morrer.

— Será melhor livrarmo-nos do corpo — disse Wolff.

— Será difícil explicarmos o que ele estava a fazer aqui. E von Elgers pode pensar
que havia qualquer ligação entre essa presença e o desaparecimento da trombeta.

Agarraram no pesado corpo da criatura e lançaram-no da janela. Depois do ferimento


de Kickaha ter sido pensado, Wolff e Yidshe apagaram todos os vestígios da luta.

O Barão funem Laksfalk só se resolveu a falar depois de acabarem. A sua expressão


era grave, o rosto pálido.

— Era a trombeta do Senhor. Insisto em que me contem tudo... e a vossa parte nesta
aparente blasfémia.

— Chegou o momento de contar toda a verdade — disse Kickaha. — Diz-lhe tudo. Neste
momento não me sinto em condições de conversar muito.

Kickaha também estava pálido, mas por causa do sangue que perdera e continuava a
perder através das espessas ligaduras. O cavaleiro ouviu tudo quanto Wolff lhe
disse e no fim comentou:

— Por Deus, essa história de outro mundo levar-me-ia a chamar-vos mentirosos se os


rabinos não me tivessem dito já que os meus antepassados e os dos Teutões haviam
vindo de um lugar como esse. E há o Livro do Segundo Êxodo que diz a mesma coisa e
também afirma que o Senhor veio de um mundo diferente.

«Mesmo assim, pensei sempre que se tratava de uma daquelas histórias que contam os
profetas quando um bocadinho malucos. Ora eu sei que tenho na frente os mais
formidáveis cavaleiros que tive a fortuna de conhecer. Sei que não mentem. E a
vossa história parece-me tão verdadeira como a armadura do grande matador de
dragões, fum Zilberbergl!

«No entanto, não sei o que fazer. Tentar entrar na própria cidadela do Senhor!
Assaltar o Senhor! Tenho medo. Pela primeira vez na vida, eu, Leyb funem Laksfalk,
confesso que tenho medo.»

Wolff disse:

— Você prestou-nos juramento. Libertamo-lo dele, mas pedimos-lhe para proceder como
jurou. Isto é: que não diga nada a ninguém sobre a nossa missão.

Furioso, o Yidshe respondeu:

— Não disse que vos abandonaria! Pelo menos por enquanto. O Senhor é omnipotente,
mas a sua trombeta sagrada esteve nas vossas mãos e na dos gworl e o Senhor nada
fez. Talvez...

Wolff respondeu que não podiam esperar pela decisão dele. Tinham de recuperar
imediatamente a trombeta. E Chryseis tinha de ser libertada quanto antes.
Procuraram três espadas, para substituir as que os gworl tinham feito desaparecer.
Poucos minutos depois estavam fora do castelo, fingindo procurar os gworl no meio
das árvores.

A maior parte dos Teutões já regressara então ao castelo. Quando viram o último dos
homens de von Elgers atravessar a ponte levadiça, Wolff e os seus amigos acenderam
os archotes. As sentinelas estavam empenhadas numa discussão muito animada e
olhavam para as trevas da floresta.

— A trombeta deve estar aqui, mesmo por baixo da janela — disse Wolff.

— Os dragões-de-água devem ter levado os corpos de Smeel e Diskibibol para os seus


covis — disse Kickaha. — No entanto, talvez haja por aí outros. Não me importaria
de me lançar à água, mas a minha ferida atrai-los-ia imediatamente.

— Era exatamente o que eu estava a dizer a mim próprio — respondeu Wolff, ao mesmo
tempo que começava a despir-se. — Qual é a profundidade do fosso?

— Virás a sabê-lo.

Wolff viu qualquer coisa com um brilho avermelhado, à luz distante dos archotes da
ponte. Os olhos de um animal, por certo. Mas nesse momento ele e os outros foram
apanhados por qualquer coisa pegajosa e rija. Fosse o que fosse, cobriu-lhe os
olhos e cegou-os.

Lutou furiosamente, mas em silêncio. Ainda que não soubesse quem eram os seus
assaltantes, não queria alarmar a gente do castelo. Quanto mais se debatia, mais a
matéria pegajosa o apertava. Por fim ficou imobilizado. Só então uma voz falou,
rouca e baixa. Uma faca cortou a espécie de rede que o cobria, deixando-lhe o rosto
a descoberto. A luz mortiça dos archotes distantes via dois outros vultos envoltos
no mesmo material e uma dúzia de formas corcovadas. O cheiro a fruta podre era
terrível.

— Eu sou Ghaghrill, o Zdrrikh’agh de Abbkmung. Vocês são Robert Wolff e o nosso


grande inimigo Kickaha. O terceiro não conheço.

— O Barão funem Laksfalk!— disse o Yidshe. — Liberte-me e saberá o homem que eu


sou, seu porco fedorento!
— Cale-se! Sabemos que fizeram desaparecer dois dos nossos melhores matadores,
Smeel e Diskibibol. Vimos um ser lançado da janela e outro saltar com a trombeta.
Você, Wolff, irá mergulhar nas águas para a recuperar. Se o conseguir, juro pela
honra do Senhor que libertarei os três. O Senhor quer Kickaha, mas não tanto como a
trombeta, e disse que não quer que o matemos nem que ele se mate. Obedecemos ao
Senhor porque é o maior matador entre todos.

— E se eu recusar? — disse Wolff. — Com os dragões-de-água é morte quase certa


mergulhar nas águas do fosso.

— Será morte certa se o não fizeres.

Wolff pensou. Uma coisa era certa. Nenhum gworl se aventuraria naquelas águas se
ele fizesse outra coisa qualquer.

— Está bem — disse ele. — Liberte-me e procurarei a trombeta. Mas ao menos dê-me
uma faca para me defender dos dragões.

— Não! — disse Ghaghrill.

Wolff encolheu os ombros. Depois de liberto da rede pegajosa, tirou todas as roupas
exceto a camisa que cobria a corda enrolada à cintura.

— Não faças isso — disse Kickaha. — Não se pode confiar num gworl, mesmo que se
trate do chefe. Depois de apanharem a trombeta, farão connosco o que entenderem. E
rir-se-ão de nós por fazermos aquilo que eles quiseram que fizéssemos.

— Cala-te, Kickaha! — disse Ghaghrill. — Senão cortar-te-ei a língua. O Senhor não


proibiu isso.

CAPÍTULO XIV

WOLFF olhou para cima, para a janela, na qual se via brilhar um archote. Entrou na
água, que estava fria mas não gelada. O fosso tinha pelo menos uns duzentos metros
de largura naquele ponto. Parou a meio para olhar para a margem. Não conseguiu ver
o grupo àquela distância.

Isso significava que eles também não o podiam ver. E Ghaghrill não lhe marcara
qualquer prazo para regressar. No entanto, ele sabia que se não voltasse antes da
alvorada não os encontraria.

Mergulhou num ponto logo abaixo da luz que vinha da janela. A água esfriou quase a
cada braçada. Começou a sentir os ouvidos a doerem. Expirou algum ar para compensar
a pressão, mas pouco alívio conseguiu. Quando parecia que não poderia mergulhar
mais sem que os ouvidos estoirassem, as suas mãos tocaram no lodo macio. Procurou
até lhe faltar o fôlego, mas só encontrou lodo e, a certa altura, um osso.

Subiu duas vezes à superfície e voltou a mergulhar. Nada podia ver naquelas águas
negras e portanto nada o impedia de passar a um dedo da trombeta sem o saber. Além
disso, podia acontecer que um dragão-de-água, ao devorar o cadáver de Smeel,
tivesse engolido a trombeta.

Da terceira vez nadou um pouco mais à direita. Mergulhou tanto quanto possível na
vertical. A sua mão enterrou-se no lodo e os seus dedos fecharam-se sobre metal
frio. Fê-la deslizar sobre o objeto e encontrou sete pequenos botões.

Quando chegou à superfície vomitou água e quase não pôde respirar. Tinha de voltar
para trás. Oxalá os dragões-de-água continuassem indiferentes. Mas esqueceu tudo
porque não podia ver nada. O archote apagara-se, o luar desaparecera e a luz vinda
da janela também. Não sabia em que lado ficava a margem e em que lado estava o
castelo. Deu algumas braçadas e encontrou uma parede de pedra. Nadou ao longo dela
e notou que ela se curvava. Seguiu a curva e chegou por fim onde desejava. Era um
lanço de escadas que saía da água.

Subiu-o, de mão em frente em busca de um obstáculo imprevisto. Fazia escorregar os


pés sobre os degraus, pronto a parar se algum estivesse solto. Depois de ter subido
vinte degraus chegou ao fim da escada. Entrou num corredor aberto na pedra.

Von Elgers, ou quem construíra o castelo, pensara naquela passagem como um meio de
entrar ou sair secretamente dele. Wolff tinha agora a trombeta e um meio de entrar
no castelo sem que ninguém o soubesse. Mas não sabia o que fazer. Devia primeiro
entregar a trombeta aos gworl? Depois, ele e os companheiros poderiam voltar por
aquele caminho e libertar Chryseis. Mas ele tinha dúvidas de que os gworl
cumprissem a sua palavra. E quando atravessassem o fosso, a ferida de Kickaha
atrairia os sáurios e os três morreriam. Também não podiam deixar Kickaha no
bosque. Seria descoberto logo que outro grupo saísse do castelo para procurar os
gworl no bosque. E isso aconteceria bem depressa. Assim que dessem conta do
desaparecimento dos três cavaleiros.

Continuaria pelo corredor. Esconderia primeiro a trombeta. Se fosse capturado, o


seu conhecimento do esconderijo poderia ajudá-lo. Voltou a descer os degraus,
mergulhou e enterrou a trombeta no lodo.

Uma vez de novo no corredor, percorreu-o até encontrar outra escada. Era comprida e
em espiral. Subiu pelo menos uns cinco andares, mas não encontrou qualquer porta.
No que devia ser o sétimo andar, viu um pequeno raio de luz vindo de uma fenda na
pedra. Espreitou por ela. Do outro lado da sala, sentado a uma mesa com uma garrafa
de vinho na sua frente, estava o Barão von Elgers. Discutia com Abiru.

O rosto do barão estava vermelho e não apenas de bebida. Rugia para Abiru:

— Ê tudo quanto tenho a dizer-te, Khamshem! Ou apanhas a trombeta ao gworl ou


ficarás sem a cabeça! Mas primeiro meter-te-ei nas masmorras! Tenho ali uns
aparelhos de ferro que gostarás de conhecer!

Abiru ergueu-se. O seu rosto estava tão pálido, sob a pele escura, quanto o do
barão estava vermelho.

— Acredite, senhor ,que se a trombeta foi levada pelos gworl será recuperada. Eles
não podem ter ido muito longe com ela. O seu rasto será facilmente descoberto Não
podem passar por seres humanos. E, além disso, são estúpidos.

O barão rugiu mais uma vez e esmagou o punho contra o tampo da mesa.

— Estúpidos! Foram suficientemente espertos para fugirem das minhas masmorras e eu


teria sido capaz de jurar em como ninguém seria capaz disso! Além do que
descobriram o meu quarto e levaram a trombeta! E chamas-lhes estúpidos!

— Pelo menos não roubaram também a rapariga. Valha-nos isso. Ela deve alcançar um
preço fabuloso.

— Não alcançará nada! É minha!

Abiru fitou-o e disse:

— É propriedade minha. Consegui-a com grande perigo e trouxe-a de muito longe com
grande despesa. Tenho direito a ela. Você é um homem honrado ou um ladrão?

Von Elgers bateu-lhe e lançou-o ao chão. Abiru pôs-se de pé imediatamente,


esfregando o queixo. Com uma voz dura, fitando o barão com firmeza, perguntou:

— E as minhas joias?

— Estão no meu castelo! E tudo quanto está neste castelo é de von Elgers! —O barão
gritou pelos guardas, que surgiram por uma porta que Wolff não pôde ver e levaram
Abiru.

— Tens muita sorte em não te matar!—explodiu o barão. — Devias agradecer-me isso de


joelhos, cão miserável! E agora sai imediatamente do castelo. Se não fugires
imediatamente para outro estado, mando-te pendurar pelo pescoço na árvore mais
próxima!

Abiru não respondeu. A porta fechou-se. O barão passeou pela sala durante algum
tempo e depois dirigiu-se para a parede pela qual Wolff espreitava. Wolff escondeu-
se. Durante um segundo a luz desapareceu. Uma parte da parede girou. O archote
empunhado por von Elgers iluminou a escada. O barão começou a subir os degraus.
Wolff seguiu-o.

No entanto, não podia manter os olhos sempre fitos no barão porque era forçado a
esconder-se quando os degraus mudavam de direção. Assim não pôde ver quando von
Elgers deixou a escada, e só se apercebeu disso ao desaparecer a luz.

Encontrou um buraco na parede e enfiou nele um dedo. Ouviu-se um estalido e uma


porta abriu-se. Wolff entrou e viu-se nos aposentos do barão. Tirou um punhal de um
armeiro na parede e voltou às escadas. Depois de fechar a porta continuou a subir.

Dessa vez não viu qualquer raio de luz a sair da parede. Nem sequer sabia se a
porta que encontrara fora aquela por onde o barão saíra. Fez um cálculo da
distância que os separava aquando do desaparecimento. Passou os dedos pela parede,
procurando qualquer orifício. De repente encontrou uma superfície de madeira. Mas
nenhum ferrolho ou puxador.

Sentia-se desesperado. Tinha a certeza de que von Elgers fora ao quarto de Chryseis
e não apenas para conversar. Desceu de novo os degraus. Nada.

Explorou de novo a área em torno da porta, sem sucesso. Empurrou-a e ela não se
moveu. Por um momento pensou em bater nela, para atrair von Elgers. Mas o barão era
demasiado esperto para cair em semelhante armadilha. Num último recurso, quase
louco, empurrou o lado oposto da porta e viu-a rodar. Não estava fechada...

Resmungou baixinho e entrou. Encontrou-se num quartinho escuro, formado de tijolos.


No fundo havia outra porta com uma haste de metal saliente. Wolff encostou o ouvido
a ela. Ouviu vozes, tão abafadas que não pôde reconhecê-las.

Puxou a alavanca de metal e viu-se numa grande sala, no centro da qual estava um
leito enorme, com quatro pilares esculpidos em madeira brilhante e negra, com um
dossel cor-de-rosa. Ao fundo estava a janela estreita, em forma de cruz, através da
qual ele espreitara na noite anterior.

Von Elgers tinha as costas voltadas para ele. O barão tinha Chryseis nos braços e
levava-a à força para a cama. Os olhos dela estavam fechados e a rapariga virara o
rosto para evitar os beijos de von Elgers. Ambos estavam vestidos.

Wolff deu um salto através da sala, apanhou o barão pelo ombro e puxou-o para trás.
O barão largou Ohryseis para tirar o punhal da bainha, mas depois lembrou-se de que
estava desarmado. O seu rosto tornou-se cinzento. Abriu a boca para chamar os
guardas.

Wolff não lhe deu ocasião para isso. Bateu no queixo de von Elgers com o cabo do
punhal e o barão caiu, inconsciente. Arrancou duas faixas de pano dos lençóis,
meteu a mais pequena na boca do barão e amordaçou-o com a outra. Atou-o com a corda
que trouxera em volta da cintura, colocou o corpo sobre o ombro e só depois disse a
Chryseis:

— Vem comigo. Falaremos mais tarde.

Desceram as escadas. Quando chegaram à água, Wolff disse-lhe o que tinham a fazer
para poderem fugir. Em seguida recuperou a trombeta. E, logo que a teve de novo em
seu poder, encheu de água as palmas das mãos e lançou-a sobre o rosto do barão.
Quando o viu de olhos abertos disse-lhe o que queria que ele fizesse.

Von Elgers abanou a cabeça. Wolff insistiu:

— Ou vai connosco como refém e enfrenta os dragões-de-água ou mato-o imediatamente.


Que escolhe?

O barão concordou com um gesto. Wolff libertou-o, mas amarrou-lhe a corda a um


tornozelo. Os três lançaram-se à água. Quando saíram da muralha, Wolff viu que as
nuvens já não eram tão densas e a Lua não tardaria a brilhar.

O barão e Chryseis nadaram à frente. Wolff seguiu-os, segurando a ponta da corda.


Com todo o peso que suportava não podia nadar muito depressa. Dentro de quinze
minutos a Lua esconder-se-ia atrás do monólito e o Sol não tardaria a surgir do
outro lado. Não tinha muito tempo para executar o seu plano, mas era impossível
proceder de outro modo.

Deviam atingir a margem a uns cem metros do ponto onde os gworl e os seus
prisioneiros aguardavam Wolff. Quando estavam a uns vinte metros do seu objetivo,
Wolff sentiu, mais do que viu, a água agitar-se. Encolheu as pernas e deu
instintivamente um pontapé para trás. Os pés bateram em qualquer coisa sólida e
lançaram-no em frente. Com o choque deixou cair a corda. A coisa contra a qual
chocara passou entre ele e Chryseis, bateu contra von Elgers e desapareceu.

Nadaram tão depressa quanto podiam. Só pararam quando chegaram a terra e alcançaram
o alto de uma árvore.

Wolff não esperou até ter recuperado todo o alento. Dentro de poucos minutos o Sol
apareceria do outro lado de Doozvillnavava. Disse a Chryseis para esperar por ele.
Se não voltasse dentro em pouco, também não voltaria tão depressa — e talvez nunca
mais voltasse. Então seria melhor que ela saísse dali e se escondesse no bosque.

Chryseis disse-lhe que não partisse, pois que ela não poderia sobreviver, se
ficasse sozinha.

— Tenho de partir — disse ele, dando-lhe outro punhal que prendera a um nó feito
com a fralda da camisa.

— Se te matarem, matar-me-ei com ele — respondei a rapariga. — Mas mata-me


primeiro. Não poderei suportar a tua falta.

Ele beijou-a e disse-lhe:

— Podes, sim. Agora és mais forte do que eras e sempre foste mais forte do que
pensavas ser. Já sabes dizer matar e morrer sem pestanejares sequer.
Deixou-a e dirigiu-se para o lugar onde tinha estado com os amigos e os gworl.
Quando chegou a uns vinte metros dele, parou e escutou. Não ouviu nada, além do
piar de uma ave noturna e de um grito abafado vinde do castelo. Avançou de rastos,
o punhal nos dentes. Não encontrou ninguém. Apenas os restos cinzentos das redes
pegajosas lembravam que os gworl tinham estado ali.

Voltou para junto de Chryseis. Ela abraçou-o e chorou um pouco.

— Vês? Afinal voltei — disse ele. — Mas temos de sair daqui imediatamente.

Afastaram-se do castelo, em direção ao monólito. Não tardariam a dar conta da


ausência do barão. Por quilómetros em redor não haveria qualquer lugar que se
pudesse considerar seguro. E os gworl, sabendo isso deviam também correr para
Doozvillnavava. Por muito que desejassem a trombeta, não poderiam continuar ali
Além disso, deviam pensar que Wolff tinha morrido afogado ou devorado por um
dragão.

Wolff apressou-se o mais que pôde. Exceto algum breves períodos de repouso, não
pararam enquanto não chegaram à espessa floresta de Rauhwald. Ali rastejaram por
baixo dos espinheiros e através das moitas de arbustos até os joelhos sangrarem.
Chryseis desmaiou de fadiga. Dormiram toda a noite e na manhã seguinte continuaram
a avançar de rastos, alimentando-se de bagas silvestres. Quando chegaram ao outro
lado da floresta estavam cobertos de arranhões e golpes. Não havia ninguém a
aguardá-los, como tinham receado.

Isso e outra coisa deram algumas esperanças a Wolff. Encontrara provas de que os
gworl também tinham seguido aquele caminho. Havia farrapos do seu pêlo nos espinhos
e também pedaços de pano, por certo deixados por Kickaha para assinalar a sua
passagem.

CAPÍTULO XV

UM mês depois, chegaram finalmente ao sopé do monólito. Sabiam que tinham seguido o
bom caminho porque tinham ouvido falar dos gworl e haviam até encontrado pessoas
que os tinham visto ao longe.

— Talvez tenham intenções de se refugiarem em qualquer caverna na montanha e depois


regressar aqui, para levar a trombeta, quando tudo estiver mais calmo — disse
Wolff.

— Ou talvez tenham ordens do Senhor para lhe entregarem Kickaha em primeiro lugar —
observou Chryseis. — Talvez ele queira certificar-se de que Kickaha não surgirá no
seu caminho quando mandar buscar a trombeta.

Wolff concordou. Era até possível que o Senhor tivesse resolvido descer do palácio
usando as mesmas cordas de que se tinham servido os gworl. Mas isso não parecia
muito provável. Até que ponto o Senhor poderia confiar em que os gworl o fariam
subir de novo?

Wolff olhou para a espantosa altura da torre de Doozvillnavava, grande como um


continente. Segundo Kickaha, era duas vezes mais alta que a de Abharhploonta, que
suportava a Terra dos Dragões. Subia a 18 000 metros ou mais, e as criaturas que
viviam nas plataformas e recantos e nas cavernas eram tão temíveis e vorazes como
as dos outros monólitos. Chryseis, ao examinar aquelas escarpas selvagens e a sua
incrível altura, estremeceu. Mas não disse nada: deixara de expressar os seus
receios havia muito tempo.
Já não se preocupava consigo própria, mas sim com a vida que tinha dentro de si.
Estava certa de se encontrar grávida. Wolff colocou o braço sobre os ombros dela,
beijou-a e disse:

— Gostaria que partíssemos imediatamente, mas temos de fazer preparativos para


muitos dias de viagem. Não podemos iniciar o ataque a esse monstro sem repousarmos
um pouco e sem levarmos comida suficiente.

Três dias depois, vestidos com roupas de coiro e transportando cordas, armas,
picaretas e cravos, sacos com comida e cantis, começaram a escalada. A trombeta
seguia num saco de pele, às costas de Wolff.

Noventa e um dia depois, tinham chegado a meio caminho. Cada passo fora uma batalha
contra a rocha traiçoeira e vertical e também contra as feras — entre elas a
serpente multípede que ele encontrara em Thayaphayawoed, lobos com grandes patas
que se agarravam à rocha, o macaco dos penedos, bicos-de-machado do tamanho de
avestruzes e o pequeno mas mortífero lança-pedras.

Quando os dois chegaram ao cimo do Doozvillnavava, já tinham 186 dias de viagem.


Nenhum era o mesmo que fora à partida, tanto sob o aspeto físico como mental. Wolff
pesava muito menos, mas tinha uma resistência e uma elasticidade muito maiores. No
seu corpo e no seu rosto viam-se as cicatrizes feitas pelos animais contra os quais
lutara. Odiava ainda mais o Senhor, porque Chryseis abortara antes de terem
atingido 3000 metros de altitude. Era de esperar, mas ele não se podia esquecer de
que se não fosse o Senhor não teriam tido necessidade de fazer a escalada.

Chryseis também se fortalecera em corpo e espírito. Agora assemelhava-se muito à


mulher que fora arrancada à vida selvagem e exigente do antigo Egeu. Era apenas
muito mais experiente.

Wolff deteve-se alguns dias a descansar e a fazer novas setas. Procurou avistar uma
águia. Não encontrara nenhuma desde que falara com Phthie na cidade arruinada junto
ao rio Guzlrit. Por fim, contrafeito, resolveu-se a entrar na selva que, numa
profundidade de mil e quinhentos quilómetros— tal como na Terra dos Dragões —
rodeava Atlantis.

Wolff olhou para o pilar que se encontrava ao centro e no cimo do qual estava o
palácio do Senhor. Viu apenas um vasto e negro continente de nuvens, rasgado por
relâmpagos. Uma semana depois as nuvens tempestuosas ainda continuavam a ocultar a
coluna de pedra — Idaquizzoorhus. Isso preocupou-o porque, durante os três anos e
meio que passara já naquele mundo, nunca vira uma tempestade assim.

Ao décimo sexto dia encontraram no caminho um corpo degolado. A um metro de


distância, entre os arbustos, estava a cabeça de um Khamshem, com o respetivo
turbante.

— Abiru também deve vir em perseguição dos gworl — disse Wolff. — Talvez eles
tivessem levado consigo as pedras preciosas. Ou, mais provavelmente, ele pensa que
eles têm a trombeta.

Passados dois quilómetros e meio encontraram outro Khamshem, com o estômago aberto
e as entranhas arrancadas. Ainda vivia. Wolff tentou obter dele qualquer
informação, mas o homem estava inconsciente. Deu-lhe um golpe de misericórdia,
tirou-lhe a cimitarra e empunhou-a, deixando a faca à cinta.

Meia hora depois ouviu gritos no fundo do caminho. Escondeu-se com Chryseis entre a
folhagem. Abiru e dois Khamshem lutavam contra três negroides atarracados, com os
rostos pintados e longas barbas tintas de vermelho. Um deles atirou uma lança que
se foi cravar nas costas de um Khamshem. O homem caiu no chão sem soltar um som. Os
outros dois voltaram-se para vender cara a vida.

Wolff foi obrigado a admirar a habilidade e a coragem de Abiru. Ainda que o seu
companheiro tivesse caído com uma lança cravada no ventre, Abiru continuou a
brandir a cimitarra. Por fim, dois dos selvagens morreram e o terceiro fugiu. Então
Wolff aproximou-se silenciosamente do mercador de escravos, bateu com a quina da
mão no braço do homem e fê-lo largar a cimitarra.

Abiru ficou tão surpreendido que não pôde falar. Ao ver Chryseis sair da folhagem
ainda ficou mais admirado. Wolff perguntou-lhe o que se passara. Depois de ter
hesitado algum tempo, Abiru começou a falar. Tal como Wolff pensara, perseguira os
gworl com os seus homens durante algum tempo. Apanhara-os a poucos quilómetros
dali. Ou melhor: fora apanhado por eles. A emboscada tivera algum sucesso, porque
cerca de um terço dos Khamshem tinham sido mortos ou feridos gravemente. E os gworl
não haviam tido perda alguma, pois que tinham lançado facas ao abrigo das árvores e
das moitas.

Os Khamshem tinham fugido, para caírem nas mãos dos selvagens negros. E o mesmo
acontecera aos gworl, que os perseguiam.

— Que aconteceu a Kickaha e a Laksfalk?

— Nada sei quanto a Kickaha. Não estava com os gworl. Mas vi o cavaleiro Yidshe.

Durante um momento, Wolff pensou em matar Abiru.

No entanto repugnava-lhe fazer isso a sangue-frio e queria fazer-lhe mais


perguntas. Empurrou-o com a ponta da cimitarra e continuou em frente, pela vereda.
Abiru protestou, dizendo que não tardariam a ser mortos. Wolff mandou-o calar-se.
Não tardaram a ouvir gritos de homens em luta. Atravessaram um pequeno regato e
encontraram-se no sopé de uma colina alta, íngreme e pedregosa.

Via-se uma fila de corpos através da encosta — gworl, mortos e feridos, Khamshem,
Sholkins e selvagens. Perto do cimo, as costas encostadas contra uma parede de
pedra, sob dois grandes penedos, um gworl, um Khamshem e o barão Yidshe lutavam
contra os negros. No mesmo momento em que começaram a subir a colina, o Khamshem
caiu, varado por diversas lanças. Wolff disse a Chryseis para recuar. Em resposta,
ela colocou uma seta no seu arco e disparou. Um selvagem caiu, com a haste da seta
a sair-lhe das costas.

Wolff sorriu-se e imitou-a. Juntamente com Chryseis, começara a atirar unicamente


sobre os selvagens que se encontravam na retaguarda. Abateram doze sem que os da
frente o notassem. Os negros começaram imediatamente a correr pela colina abaixo em
direção aos dois, deixando outro grupo a lutar contra o gworl e o cavaleiro. Antes
de alcançarem o sopé da colina, caíram outros quatro.

Seguiram-se-lhe três, quase instantaneamente. Os restantes seis pararam, receosos,


e atiraram as lanças, a distância tão grande que não foi difícil evitá-las. Wolff e
Chryseis, atuando fria e habilmente, abateram mais quatro. Os dois sobreviventes
voltaram para trás, aos gritos, e quiseram subir a encosta. Não o conseguiram,
ainda que um apenas tivesse sido ferido numa perna.

Entretanto, o gworl também tombara. O Barão funem Laksfalk lutava sozinho contra
quarenta adversários.

Tinha a vantagem de só poder ser assaltado por dois de cada vez: os penedos e os
corpos caídos impediam os outros de se lançarem sobre ele.
Wolff e Chryseis continuaram a atacar. Mataram mais cinco, mas ficaram com as
aljavas vazias. Wolff disse à rapariga:

— Arranca algumas setas dos corpos e volta a dispará-las. Vou socorre-lo.

Agarrou numa lança e subiu a encosta. Viu dois selvagens sobre um penedo, prontos a
saltarem sobre o cavaleiro pelas costas, esperando que ele se afastasse do seu
abrigo. Atirou a lança e apanhou um no fundo das costas. O negro soltou um grito e
caiu da rocha, aparenrentemente sobre os seus companheiros. O outro lançou-se sobre
Wolff, que lhe cravou a faca no ventre. Caiu também para trás.

Wolff pegou então numa grande pedra e levou-a até à laje que servia de abrigo ao
cavaleiro. Atirou-a para o grupo dos assaltantes. A pedra esmagou três, pelo menos,
e rolou pela encosta. Os sobreviventes fugiram. Julgaram estar a ser atacados por
muitos homens. Wolff saltou para o chão, agarrou de novo na pedra e atirou-a sobre
os fugitivos, enquanto Chryseis abatia mais dois com as setas.

Voltou-se para o barão e viu-o caído, o rosto cinzento, o sangue a jorrar de uma
ferida no peito.

— Você!—disse ele, numa voz fraca. — O homem do outro mundo! Viu como eu combati?

Wolff baixou-se para ver melhor a ferida.

— Vi, sim. Bateu-se como um dos guerreiros de Josué, meu amigo. Como nunca vi
ninguém bater-se. Matou vinte, pelo menos.

Laksfalk conseguiu esboçar um sorriso.

— Vinte e cinco. Contei-os.

— Sabe o que aconteceu a Kickaha?

— Ah, essa raposa velha! Fugiu das suas cadeias uma noite. Quis libertar-me mas não
conseguiu. Depois desapareceu, mas prometeu-me que voltaria para me libertar.
Tentá-lo-á, por certo, mas chegará demasiado tarde.

Wolff olhou para baixo. Chryseis subia a encosta com algumas setas que retirara dos
cadáveres. Os negros, agrupados no fundo, discutiam animadamente. Da selva surgiam
outros, que se juntavam a eles. Chefiava-os um homem coberto de penas, com uma
horrível máscara de madeira.

Os lábios do barão calaram-se e tornaram-se azuis. Wolff levantou-se e olhou de


novo para baixo. Os selvagens começavam a cercá-los. Depois, a um grito do homem da
máscara de madeira, subiram tão depressa quanto possível. Os dois defensores não
fizeram um gesto enquanto as lanças não bateram contra os penedos. Wolff disparou
duas vezes o seu arco. Chryseis fê-lo três vezes. Nenhuma seta errou o alvo.

Wolff disparou a sua última seta. Atingiu a máscara do chefe e fê-lo cair pela
encosta. Um momento depois, o homem lançou fora a máscara. Ainda que pelo seu rosto
corresse sangue, comandou o segundo assalto.

Ouviram-se estranhos gritos na selva. Os selvagens detiveram-se, rodaram sobre os


calcanhares e tornaram-se silenciosos, ao mesmo tempo que fitavam a vegetação que
rodeava a colina. Mais uma vez ouviram-se os gritos, vindos do meio das árvores.

De repente, um homem de cabelos de bronze, vestido apenas com uma pele de leopardo,
surgiu da selva. Tinha uma lança numa das mãos e uma comprida faca na outra. Sobre
os ombros estava uma aljava e um arco. Atrás dele vinha uma massa de macacos
enormes, com braços, peitos e presas desmesuradamente grandes.

Ao vê-los, os selvagens gritaram como loucos e tentaram fugir. Outros macacos


apareceram pela retaguarda. As duas colunas fecharam-se sobre os negros.

Houve um breve combate. Só doze dos selvagens conseguiram fugir. Wolff, sorrindo,
perguntou ao homem vestido com a pele de leopardo:

— Qual é o teu nome aqui?

Kickaha riu-se também:

— Vê se adivinhas...

O sorriso de Kickaha desapareceu quando ele viu o barão.

— Maldição! Demorei tanto tempo a procurar os macacos e depois a encontrar-vos! Era


um bom homem, o Yidshe. De qualquer maneira, prometi que quando ele morresse
levaria os seus ossos para o seu castelo. Cumprirei a promessa. Mas não
imediatamente. Temos muito que fazer, neste momento.

Kickaha chamou alguns dos macacos.

— Repara que eles são mais parecidos com o teu amigo Ipsewas do que com os
verdadeiros macacos. E, como ele, têm cérebros de homem. Odeiam o Senhor por causa
do que ele lhes fez; não querem somente vingar-se, querem também voltar a ter
corpos de homem.

Só então Wolff se recordou de Abiru. Não o viu. Aparentemente, fugira quando Wolff
acorrera em auxílio de Laksfalk.

Nessa noite, enquanto devoravam um gamo assado numa fogueira, Wolff e Chryseis
souberam do cataclismo havido em Atlantis. Começara com o novo templo que o
Rhadamanthus de Atlantis resolvera erigir. A torre era dedicada à maior glória do
Senhor. Devia ser maior que qualquer outro edifício do planeta. O Rhadamanthus
recrutara toda a gente do seu estado para trabalhar no templo.

Os homens tinham começado a perguntar a si próprios quando acabariam o trabalho,


pois que o edifício parecia querer chegar aos céus. Não se atreviam a falar, porque
os soldados matá-los-iam. Era evidente que o Rhadamanthus pretendia mais alguma
coisa do que erigir um templo. Queria obter um meio de assaltar o palácio do
Senhor.

— Um edifício com nove mil metros de altura? — perguntou Wolff.

— Sim. É possível, mas não com a tecnologia existente em Atlantis. No entanto, como
o Rhadamanthus está louco, pensa que pode consegui-lo. Talvez tenha sido encorajado
pelo facto de o Senhor não aparecer há tantos anos.

Kickaha acrescentou que os fenómenos que estavam agora a devastar Atlantis provavam
que o Senhor procurava vingar-se dos propósitos de Rhadamanthus.

— O Senhor que desapareceu deve ter tomado precauções contra qualquer intruso.
Aquele que o substituiu deve pelo menos ter conseguido aprender a manejar os
comandos dos geradores de tempestades. Há furacões, tornados, chuvas contínuas.
Dir-se-á que ele pretende acabar com toda a vida neste nível.

Antes de alcançarem o limite da selva, encontraram a vaga dos refugiados. Falavam


de casas e grandes edifícios que tinham desaparecido, de homens arrastados pelos
ventos, de inundações que até levavam as colinas.

O grupo de Kickaha tinha de avançar inclinado, contra o vento e sob as chuvas e os


relâmpagos que surgiam por todos os lados. Mas havia períodos de calma. As energias
libertadas por Arwoor esgotavam-se e era necessário regenerá-las. Nesses pequenos
intervalos, o grupo conseguia progredir através de rios engrossados, cujas águas
levavam casas, árvores, móveis e cadáveres de homens e animais. As florestas
estavam desenraizadas ou despedaçadas por descargas elétricas. Os vales estavam
inundados. E um fedor sufocante enchia o ar.

A meio da viagem as nuvens começaram a tornar-se menos densas. O Sol surgiu sobre
uma terra onde a morte fizera o silêncio. A última nuvem desapareceu. A montanha
branca de Idaquizzoorhruz brilhou na frente deles, a quinhentos quilómetros de
distância, na planície sem horizonte. A cidade de Atlantis — ou o que restava dela
— estava a cento e cinquenta quilómetros. Foram precisos vinte dias para que a
alcançassem.

— O Senhor poderá ver-nos? — perguntou Wolff.

Kickaha respondeu:

— Suponho que o pode fazer com qualquer espécie de telescópio. Ainda bem que o
perguntaste, porque será melhor que comecemos a viajar de noite. Mesmo assim, podem
descobrir-nos. — Apontou para um corvo que voava sobre eles.

Passaram pelas ruínas da capital e aproximaram-se do jardim zoológico imperial do


Rhadamanthus. Ainda havia ali algumas jaulas de pé e dentro de uma estava uma
águia. No chão, lodoso, viam-se ossos, penas e bicos. As águias enjauladas tinham
fugido à fome devorando-se umas às outras. A única sobrevivente, emagrecida, fraca
e miserável, mal se sustinha no poleiro.

Wolff abriu a jaula e, juntamente com Kickaha, falou com a águia, que se chamava
Armonide. Ao princípio ela pensou somente em atacá-los, ainda que estivesse muito
fraca, mas alguns pedaços de carne acalmaram-na. Wolff explicou-lhe que tinha um
plano para se vingar do Senhor. Os olhos da águia iluminaram-se. A ideia de
assaltar o Senhor era para ela um alimento maior que a própria carne. Ficou com
eles durante três dias, comendo e recuperando forças e decorando a mensagem que
devia levar a Podarge.

— Ainda verás a morte do Senhor. E terás um corpo de mulher, jovem e adorável —


disse Wolff. — Tu e as tuas companheiras. Mas somente se Podarge fizer aquilo que
lhe peço.

Armonide bateu as asas e desapareceu no céu verde. Wolff e os seus companheiros


mantiveram-se escondidos entre as árvores caídas até que a noite chegou. Sem saber
como, Wolff vira-se de repente no comando, sucedendo a Kickaha. Viajavam somente de
noite. Era raro verem um corvo. Aparentemente, o Senhor não necessitava deles ali,
visto que podia inspecionar ele próprio toda a região. Além disso, quem seria capaz
de se atrever, depois da sua cólera ter sido demonstrada de uma maneira tão
catastrófica?

Chegaram à massa ciclópica dos destroços da torre do Rhadamanthus e refugiaram-se


entre as ruínas. Havia metal mais do que suficiente para o plano de Wolff. Os
únicos problemas que tinham a enfrentar era a obtenção de comida e a ocultação do
ruído das serras e dos martelos e do brilho das forjas. O primeiro foi resolvido
quando descobriram um armazém de carne seca e trigo. O segundo foi solucionado pela
utilização das galerias subterrâneas. Demoraram cinco dias nos preparativos, o que
pouco preocupou Wolff, uma vez que seria também necessário algum tempo até que
Armonides alcançasse Podarge — Se ela conseguisse chegar ao seu destino.
— E se ela não o conseguir? — perguntou Chryseis.

— Teremos de pensar em qualquer outra coisa — respondeu Wolff. Acariciou a trombeta


e carregou nos seus sete botões. — Kickaha conhece a passagem que utilizou quando
saiu do palácio. Podemos voltar por ela. Mas seria uma loucura. O Senhor actual não
seria tão estúpido que a não tivesse bem guardada.

Passaram-se três semanas. A comida começou a escassear e tiveram de recorrer à caça


— um expediente perigoso, uma vez que não havia maneira de saber quando andava um
corvo perto. No fim da quarta semana, Wolff teve de renunciar à esperança de
qualquer apoio, por parte de Podarge. Ou Armonide não chegara a transmitir-lhe a
mensagem ou Podarge a ignorara.

Nessa mesma noite, quando se encontrava abrigado sob uma enorme chapa de aço e
olhava para a Lua, ouviu o bater de asas. Espreitou para as trevas e de repente o
luar mostrou-lhe a figura de Podarge. Atrás dela havia muitas criaturas aladas, com
bicos amarelos e olhos vermelhos brilhantes.

Wolff conduziu-a através dos túneis, até uma grande câmara. À luz das fogueiras
olhou para o rosto tràgicamente belo da harpia e viu que, agora que ela podia
vingar-se do Senhor, parecia verdadeiramente feliz. Wolff explicou-lhe o seu plano.
Quando estavam a discutir os pormenores, um guarda trouxe um homem que apanhara a
espiar, entre as ruínas. Era Abiru, o Khamshem.

— Que azar o seu e que má fortuna para mim — disse Wolff. — Não posso amarrá-lo e
deixá-lo aqui. Se você escapasse e falasse a um corvo, o Senhor ficaria avisado.
Portanto terá de morrer. A menos que possa convencer-me a fazer outra coisa.

Abiru olhou em volta e não viu nada além da morte.

— Muito bem — disse ele. — Não queria falar, e muito menos perante alguém. Mas
falarei, se o fizermos apenas os dois, a sós. Creia que não é só a minha vida que
está em jogo, mas também a sua.

— Você não pode dizer nada que não possa ser ouvido por todos — respondeu Wolff. —
Fale!

Kickaha aproximou-se de Wolff e disse-lhe ao ouvido:

— Faz o que ele diz.

Wolff ficou estupefacto. Voltou a sentir as velhas dúvidas sobre a verdadeira


identidade de Kickaha.

— Se ninguém se opõe, ouvi-lo-ei sozinho — disse ele.

Podarge franziu a testa e abriu a boca, mas antes de poder faiar foi interrompida
por Kickaha:

— O Grande! Chegou o momento de confiares em nós. Tens de confiar em nós, de crer


em nós. Queres perder a tua oportunidade de te vingares e voltares a ter o teu
corpo humano? Tens de permanecer a nosso lado. Se o não fizeres, tudo estará
perdido.

Podarge respondeu:

— Não sei o que é isto tudo e penso que estou a ser traída. Mas farei o que dizes,
Kickaha, porque te conheço e sei que és um terrível inimigo do Senhor. Mas não
desafies demasiado a minha paciência.

Então Kickaha murmurou uma coisa ainda mais estranha a Wolff:

— Acabo de reconhecer Abiru. Essa barba e a cor com que tingiu a pele enganaram-me,
tanto mais que não ouvia a sua voz há vinte anos.

O coração de Wolff bateu ainda mais depressa. Agarrou na cimitarra e levou Abiru,
com as mãos atadas atrás das costas, para um pequeno quarto. E ali escutou-o.

CAPÍTULO XVI

UMA hora depois, Wolff voltou para junto dos outros. Parecia muito abalado.

— Abiru irá connosco — disse ele. — Pode ser muito valioso. Precisamos de toda a
gente que pudermos arranjar e todos os homens que souberem alguma coisa.

— Importas-te de me explicar o que há?—perguntou Podarge. Tinha os olhos


semicerrados, numa máscara de loucura.

— Não. Não o farei porque não posso — respondeu ele. — Mas creio agora, mais do que
nunca, que temos uma possibilidade de vencer. Podarge: as águias estão preparadas?

Podarge respondeu afirmativamente, e que não estava disposta a tolerar mais


demoras. Wolff deu as suas ordens, que foram transmitidas por Kickaha aos macacos,
visto que eles não reconheciam outro chefe. Levaram as grandes barras de aço e as
cordas para fora e os outros seguiram-nos.

A luz da Lua, levantaram as barras de aço, finas mas fortes. Os homens e os


cinquenta macacos colocaram-se então na rede sob as barras e prenderam-se com
correias. As águias ligaram-se as cordas atadas aos extremos das barras, enquanto
outra agarrava a que estava atada ao centro. Wolff deu o sinal. Ainda que não
tivessem tido oportunidade de as ensinarem, as aves saltaram simultaneamente para o
céu, batendo as asas, e começaram a subir lentamente. As cordas tinham quinze
metros de comprimento e permitiram que as águias ganhassem altitude antes das
barras e da sua carga poderem ser levantadas.

Wolff sentiu um esticão Podarge deu uma ordem. Poucos segundos depois as barras
estavam devidamente niveladas. Subiram e continuaram a subir. As águias eram muito
maiores que as da Terra e tinham músculos de acordo com o seu tamanho. Os lados do
monólito, a cerca de quilómetro e meio de distância, refletiam o luar. Wolff olhou
para os outros. Chryseis e Kickaha acenaram-lhe. Abiru estava imóvel. Os escombros
da torre do Rhadamanthus tornaram-se mais pequenos. Não encontraram nenhum corvo.
As águias que não os puxavam para cima tinham-se espalhado em volta, para evitar
essa possibilidade. Havia um verdadeiro exército delas no ar. O bater das suas asas
ecoava nos ouvidos de Wolff de tal modo que ele não compreendia como não era
escutado a muitos quilómetros de distância.

O Sol e a Lua eram visíveis agora por causa da relativa estreiteza do monólito. No
entanto, as águias e a sua carga continuavam nas trevas, à sombra de Idaquiz
zoorhruz. Isso não devia durar muito tempo. Não tardaria que aquele lado ficasse
inteiramente iluminado. Os corvo poderiam vê-los a quilómetros de distância. O
grupo aproximara-se entretanto o mais possível do monólito, de modo que seria
necessário que alguém estivesse próximo da beira para que o avistasse.

Por fim, passadas quatro horas, exatamente quando o sol os iluminou, chegaram ao
alto. Ao lado deles estava o jardim do Senhor, um lugar de uma ardente beleza Mais
além viam-se as torres e minaretes e as arquiteturas etéreas do palácio do Senhor.
Tinha mais de sessenta metros de altura e cobria mais de cento e cinquenta
hectares, disse Podarge.

Não tiveram tempo para admirar tal maravilha porque os corvos, no jardim, começaram
a gritar. As águias de Podarge, às centenas, caíram sobre eles e começaram a matá-
los. Outras voavam para as inúmeras janelas, em busca do Senhor.

Wolff viu um bom número delas entrar antes que as armadilhas pudessem entrar em
ação. As que se lhe seguiam desapareceram com um estrondo e um relâmpago. Queimadas
até aos ossos, caíram das varandas, dos telhados e das cornijas.

Os homens e os macacos desceram junto de uma porta em forma de losango, de pedra


rósea cravejada de rubi. As águias largaram as cordas e juntaram-se em torno de
Podarge, aguardando ordens.

Wolff soltou as cordas das argolas no extremo de barras de aço. Depois levantou as
barras acima da sua cabeça. Depois de ter corrido para um ponto a poucos metros da
porta em forma de losango, atirou contra ela a cruz de aço. Uma barra entrou pela
porta; a que formava com ela um ângulo reto ficou encravada contra os lados.

Chamas explodiram e voltaram a explodir. Trovões ensurdeceram-no. Línguas de fogo


azul saltaram sobre ele. De repente começou a sair fumo do palácio e os relâmpagos
cessaram. Ou o dispositivo se queimara devido à sobrecarga ou estava descarregado
momentaneamente.

Wolff olhou em redor. Outras entradas estavam também em chamas, ou tinham as suas
defesas já queimadas. As águias tinham levado consigo muitas das barras de aço,
lançando-as em ângulo sobre as janelas. Saltou sobre a sua barra, levada ao rubro
branco e quase a liquefazer-se. Chryseis e Kickaha entraram por outra porta.
Kickaha foi seguido pela horda dos macacos gigantes, todos eles armados com uma
espada ou um machado de guerra.

Wolff perguntou:

— Onde está Abiru?

— Podarge e um par de macacos vigiam-no. Pode ser que ele tente alguma coisa em
benefício dos seus fins.

Chefiados por Wolff, percorreram um corredor cujas paredes estavam pintadas com
murais que teriam deliciado e surpreendido o mais crítico dos críticos terrenos. No
fundo havia uma porta baixa, gradeada, com um desenho delicado e complicado, feita
de um metal azulado e brilhante. Avançavam para ela quando um corvo, fugindo a uma
águia, passou sobre a grade. Ao fazê-lo encontrou uma barreira invisível. De
repente transformou-se numa porção de fatias muito finas de carne, osso e penas. A
águia que o perseguia gritou e tentou deter-se, mas era tarde. Também foi cortada
em fatias.

Wolff puxou a parte esquerda da porta para ele, em vez de a empurrar como seria
natural. Disse:

— Agora tudo correrá bem. Mas estou satisfeito por o corvo ter acionado a barreira.
Não me recordava dela.

Mesmo assim, estendeu em frente a espada, para um ensaio. Lembrou-se então de que a
barreira só atuava contra a matéria viva. Não havia nada a fazer senão confiar nas
suas memórias. Avançou sem sentir nada além do ar. E os outros seguiram-no.
— O Senhor deve estar escondido no centro do palácio, na sala de comando das
defesas — disse ele. — Algumas são automáticas, mas outras podem ser dirigidas por
ele. Isto no caso de ele ter descoberto a maneira de as fazer funcionar.

Avançaram através de quilómetro e meio de corredores e salas que poderiam ter


detido durante dias alguém com um senso de beleza. De vez em quando, um grito ou um
estrondo anunciavam que uma armadilha tinha funcionado em qualquer parte do
palácio.

Wolff deteve-os uma dúzia de vezes. Franzia a testa durante algum tempo e depois
sorria-se. Então movia um quadro ou tocava um ponto nos murais: o olho de um homem,
o chifre de um búfalo numa cena das planícies ameríndias, o punho da espada de um
cavaleiro, num quadro teutónico. E depois continuava em frente.

Por fim disse a uma águia:

— Vai chamar Podarge e as outras — disse ele. — Não é necessário que se sacrifiquem
mais. Abrir-lhes-ei o caminho.

Disse a Kickaha:

— A sensação de já ter aqui estado é cada vez mais forte. Mas não me recordo de
tudo. Apenas de certos pormenores.

— Desde que sejam os pormenores essenciais, é o que de momento importa — disse


Kickaha com um largo sorriso, o rosto iluminado pela delícia da luta. — Agora deves
compreender a razão por que não tentei voltar. Não me faltava a coragem, mas sim o
saber.

Chryseis disse:

— Não compreendo.

Wolff puxou por ela e apertou-a contra si.

— Saberás depressa. Isto é, se chegarmos ao fim. Tenho muito que te contar e tens
muito que me perdoar.

Na frente deles abriu-se uma porta na parede e um homem com uma armadura avançou,
com um ruído metálico. Tinha na mão um machado enorme que brandia como se fosse uma
pena.

— Não é um homem — disse Wolff.—É um dos caçadores do Senhor.

— Um autómato! disse Kickaha.

Wolff pensou: Não no sentido em que Kickaha pensa. Não era todo feito de aço,
plástico e fios elétricos. Metade era proteína, formada nos biotanques do Senhor.
Tinha uma vontade de sobreviver que nenhuma máquina feita de partes inanimadas
podia reproduzir. Era a sua força e também a sua fraqueza.

Falou a Kickaha que ordenou que os macacos obedecessem a Wolff. Uma dúzia deles
avançou, lado a lado. Brandiram simultaneamente os seus machados. A criatura
evitou-os, mas não a todos. Foi atingida com uma força e uma precisão que o teriam
cortado de alto a baixo se não estivesse protegido pela armadura. Caiu para trás e
rolou pelo chão, mas depois levantou-se. Enquanto estava no chão, Wolff correu para
ele. Bateu com a sua cimitarra na junta entre os ombros e o pescoço. A lâmina
quebrou-se sem cortar o metal. No entanto a força da pancada atirou-o de novo ao
chão.
Wolff largou as suas armas, agarrou o caçador do Senhor pela cintura e levantou-o.
Silenciosamente, porque não tinha cordas vocais, a criatura blindada pontapeou e
tentou agarrar-se a Wolff, mas foi lançada pelo ar contra a parede e caiu mais uma
vez no chão. Quando ia a levantar-se, Wolff agarrou no punhal e cravou-o numa das
fendas da viseira. Ouviu-se um estalido quando o plástico que protegia o olho se
quebrou. A ponta do punhal partiu-se e Wolff foi lançado para trás por um soco do
punho protegido por malha metálica. Pôs-se de pé imediatamente, agarrou no punho
ainda estendido, puxou por ele e fez a criatura saltar por cima das suas costas.
Antes que ela pudesse levantar-se, agarrou nela em peso e atirou-a de cabeça pela
janela.

A criatura rolou sobre si própria e esmagou-se contra o chão, quatro andares


abaixo. Durante um momento pareceu ficar inerte, quebrada, mas depois começou mais
uma vez a erguer-se. Wolff gritou qualquer coisa às águias que se encontravam no
exterior. Duas mergulharam e agarraram os braços do caçador. Levantaram-no mas
acharam-no muito pesado e tiveram de descer. Mesmo assim, puderam mantê-lo a poucas
centímetros do chão. Voando entre colunas curiosamente esculpidas, levaram-no em
direção à beira do monólito, de onde o largariam. Nenhuma armadura poderia resistir
a uma queda de nove mil metros.

Onde quer que o Senhor estivesse escondido, devia ter visto a sorte do único
caçador que pusera em ação. Outro painel deslizou na parede e vinte caçadores
saíram por ele, empunhando machados de guerra. Wolff falou aos macacos, que
lançaram de novo os seus machados, derrubando muitas das criaturas. Os antropoides,
grandes como gorilas, atacaram os caçadores. Ainda que a força mecânica de cada
androide fosse superior à de um macaco, não podiam enfrentar dois ao mesmo tempo.
Assim, enquanto um macaco lutava com um caçador, o outro agarrava o capacete-cabeça
e torcia-o. O metal rangia sob o esforço; de repente os mecanismos do pescoço
quebravam-se. Os capacetes começaram a rolar pelo chão, enquanto um líquido
humoroso escorria deles. Outros androides eram levantados e passados de mão em mão
até serem atirados da janela. As águias levavam-nos depois até à beira do monólito.

Mesmo assim, sete macacos morreram, retalhados pelos machados ou com as suas
próprias cabeças torcidas. Os cérebros proteínicos dos semiautómatos aprendiam
rapidamente e imitavam as acções dos seus antagonistas, se isso lhes trazia
vantagem.

Um pouco mais adiante, no corredor, espessas chapas de metal desceram à frente e


atrás deles, impedindo-lhes o avanço ou a retirada. Wolff esquecera isso até um
segundo exato antes de o dispositivo atuar. As chapas desceram rapidamente, mas não
tanto que ele não tivesse tempo de fazer tombar uma estátua de mármore, a qual caiu
sob a chapa e impediu que ela se fechasse por completo. As forças que impeliam a
chapa eram contudo tão grandes que ela começou a abrir caminho através da pedra. O
grupo passou pela fenda, cada vez mais estreita. Ao mesmo tempo, a água inundava o
espaço que deixavam. Se não fora a estátua teriam morrido afogados.

Com água até aos tornozelos, continuaram pelo corredor até outro lanço de escadas.
Wolff parou junto de uma janela, através da qual lançou um machado. Não houve
quaisquer relâmpagos ou trovões, de modo que se debruçou nela e chamou Podarge e as
suas águias.

— Estamos perto do centro do palácio, da sala onde deve encontrar-se o Senhor —


disse ele. — Daqui em diante os corredores têm dúzias de projetores de laser. Os
feixes formam uma rede através da qual nenhum ser vivo pode penetrar.

«O Senhor pode permanecer eternamente onde está. A energia para os seus projetores
não se esgotará e tem comidas e bebidas suficientes para suportar qualquer cerco.
Mas há um velho axioma militar segundo o qual qualquer defesa, por muito formidável
que seja, pode ser quebrada se for encontrada a ofensiva adequada.»

Disse a Kickaha:

— Quando passaste para o nível de Atlantis deixaste o crescente aqui. Lembras-te


onde?

Kickaha sorriu-se e respondeu:

— Sim! Escondi-o atrás de uma estátua, numa sala junto da piscina. Mas se os gworl
o encontraram...

— Então teremos de pensar noutra coisa qualquer. Vejamos se conseguimos encontrar o


crescente.

— Para quê? — perguntou Kickaha em voz baixa.

Wolff explicou que Arwoor devia ter uma maneira de fugir da sala de comando. Tanto
quanto se recordava, havia um crescente colocado no chão e alguns de reserva. Cada
um destes, quando posto em contacto com o crescente imóvel, abria uma passagem para
o universo com o qual o outro estava em ressonância. Nenhum deles dava acesso aos
outros níveis do planeta naquele universo. Só a trombeta podia permitir a passagem
entre os níveis.

— Sem dúvida — disse Kickaha. — Mas para que nos servirá o crescente, mesmo que o
encontremos? Tem de ser acoplado a outro, e onde está ele? De qualquer modo, se o
usássemos iríamos parar à Terra.

Wolff apontou para as costas, indicando o longo saco de couro preso por uma
correia.

— Tenho a trombeta.

Avançaram por um corredor. Podarge seguiu-os.

— Que vão fazer? — perguntou ela, num tom de cólera.

Wolff respondeu que estavam a procurar meios de alcançar a sala de comando. Podarge
devia ficar para trás, para tratar de qualquer emergência. Ela recusou, dizendo que
queria conservá-los debaixo da sua vista, agora que estavam tão perto do Senhor.
Recordou a Wolff a promessa que fizera de lhe entregar o Senhor, para que ela
fizesse com ele o que quisesse. Wolff encolheu os ombros e continuou.

Encontraram a sala em que estava a estátua atrás da qual Kickaha escondera o


crescente. Mas ela fora tombada na luta entre os macacos e os gworl. Havia corpos
espalhados pela sala, por toda a parte. Wolff parou, surpreendido. Não vira
qualquer gworl desde que entrara no palácio e concluíra que todos eles tinham
morrido durante a luta contra os selvagens. Afinal, o Senhor não enviara todos em
busca de Kickaha.

— O crescente desapareceu! — gritou Kickaha.

— Ou foi encontrado há bastante tempo ou alguém o descobriu quando a estátua foi


tombada — disse Wolff. — Calculo quem o terá apanhado. Viram Abiru?

Ninguém o vira. A harpia, que se encarregara de o vigiar, acabara por se esquecer


dele.

Wolff correu para os laboratórios com Kickaha e Podarge. Foi uma corrida de mil
metros que o deixou sem fôlego. Ao chegar à porta parou, a arquejar.

— Vannax pode já ter entrado e alcançado a sala de comando — disse ele. — Mas se
ainda estiver aqui, a trabalhar no crescente, será melhor entrarmos em silêncio
para o apanharmos de surpresa.

— Vannax? — perguntou Podarge.

Wolff praguejou mentalmente. Ele e Kickaha não queriam revelar a identidade de


Abiru tão depressa. Podarge odiava todos os Senhores, de modo que o teria morto
imediatamente. Wolff queria-o vivo porque Vannax, se não tentasse traí-los, podia
ser útil na tomada do palácio. Prometera a Vannax que o ajudaria a alcançar outro
mundo se ele o auxiliasse contra Arwoor. E Vannax explicara-lhe como conseguira
voltar àquele universo. Depois de Kickaha ter chegado acidentalmente ali, levando
consigo um crescente, Vannax continuara a procurar outro. Encontrara-o no local
mais inesperado: uma loja de penhores no Illinois. Nunca seria possível saber qual
o Senhor que o levara para ali e quando. Sem dúvida que havia outros crescentes em
lugares obscuros da Terra. Aquele que encontrara fizera-o passar para o nível da
Ameríndia. Subira o Thayaphayawoed até Khamshem e tivera a sorte de capturar ali os
gworl, Chryseis e a trombeta. Depois encaminhara-se para o palácio, com a intenção
de penetrar nele.

— Repito! — disse Podarge. — Quem é Vannax?

Wolff sentiu-se aliviado por ela não conhecer o nome. Respondeu que Abiru também
usava esse nome, como disfarce. Sentindo que o tempo era vital, entrou no
laboratório. Era uma sala suficientemente grande e alta para abrigar doze aviões
comerciais, de jato. No entanto, os armários e painéis de comando, assim como uma
multidão de aparelhos, davam a impressão de que ele estava demasiado cheio. A uns
cem metros, Vannax estava inclinado sobre uma enorme consola, trabalhando com
botões e alavancas.

Em silêncio, os três avançaram para ele. Estavam suficientemente perto para verem
os dois crescentes colocados sobre a consola. No grande visor acima de Vannax
estava a imagem fantasmagórica de um terceiro semicírculo. Linhas luminosas,
onduladas, passavam sobre ele.

Vannax soltou de repente uma exclamação de prazer quando outro crescente surgiu no
visor. Manipulou vários botões para que as duas imagens se aproximassem uma da
outra e se confundissem numa só.

Wolff sabia que a máquina estava a funcionar como analisadora de frequências e


encontrara o crescente colocado no chão da sala de comando. A seguir Vannax
submeteria os crescentes colocados sobre a consola a um tratamento que alteraria a
sua ressonância de modo a corresponder à dos da sala de comando. Wolff não
compreendeu a princípio onde Vannax arranjara o segundo crescente, mas depois
lembrou-se de que ele o trouxera consigo quando passara da Terra para o nível da
Ameríndia.

Vannax levantou a cabeça e viu os três. Olhou rapidamente para o visor e arrancou
os dois crescentes dos suportes que o prendiam à consola. Correram na sua direção
enquanto ele colocava um crescente no chão e logo outro. Vannax riu-se, fez um
gesto obsceno e entrou no círculo, com um punhal na mão.

Wolff soltou um grito de desespero, porque estavam demasiado longe para o deterem.
Mas parou de repente e colocou a mão sobre os olhos — demasiado tarde para não
ficar cego por um relâmpago. Ouviu Kickaha e Podarge, também cegos, gritarem. Ouviu
ainda um grito de Vannax e sentiu o cheiro da carne e das roupas queimadas.
Sem ver, avançou até que os seus pés encontraram o corpo ainda ardente.

— Que demónio aconteceu? — perguntou Kickaha.— Por Deus, espero não ficar cego para
sempre!

— Vannax pensava que passaria para a sala de comando de Arwoor — explicou Wolff. —
Mas Arwoor instalara uma armadilha. Podia ter ficado satisfeito se destruísse o
sintonizador, mas deve ter pensado que era mais divertido matar o homem que tentou
utilizá-lo.

Esperou, sabendo que o tempo estava a tomar-se escasso. Mas nada mais podia fazer
do que ter paciência com a sua cegueira. Ao fim de um tempo que pareceu
intolerável, a vista começou a voltar-lhe.

Vannax estava de costas no chão, carbonizado e irreconhecível. Os dois crescentes


ainda se encontravam no chão, intactos. Foram separados um momento depois por
Wolff.

— Era um traidor — disse Wolff em voz baixa a Kickaha. — Mas prestou-nos um


serviço. Eu queria fazer o mesmo que ele fez. Apenas usaria a corneta para ativar o
crescente que escondeste, depois de ter alterado a sua ressonância.

Fingindo procurar armadilhas noutras consolas, conseguiu falar com Kickaha sem que
Podarge os ouvisse:

— Não queria fazer isto — disse ele. — Mas não há outra solução. Tenho de usar a
trombeta para fazer sair Arwoor da sala de comando ou alcançá-lo antes que ele use
os seus crescentes para fugir.

— Não te compreendo — disse Kickaha.

— Quando mandei construir o palácio, incluí termite no revestimento plástico da


sala de comando. Pode ser incendiada por uma certa sequência de notas da trombeta,
juntamente com outro estratagema. Não quero fazer isso porque a sala de comando
ficaria inutilizada. E então não poderíamos defender este mundo contra os outros
Senhores.

— Será melhor que o faças — disse Kickaha. — Só uma coisa mais: o que é que impede
Arwoor de fugir através dos crescentes?

Wolff sorriu e apontou para a consola.

— Arwoor devia tê-la destruído em vez de satisfazer a sua imaginação sádica. Como
todas as armas, tem dois gumes.

Acionou os comandos e uma imagem do crescente surgiu de novo no visor. As linhas


curvas luminosas correram de novo sobre a placa. Wolff dirigiu-se a outra consola e
abriu uma pequena porta no cimo, a qual mostrou um painel com comandos sem marcas.
Depois de mover duas alavancas, carregou num botão. O visor apagou-se.

— A ressonância do crescente de Arwoor foi alterada — disse Wolff. — Quando ele o


quiser usar com qualquer dos outros que tem, apanhará um bom choque. Não do género
que Vannax apanhou. Acontecerá apenas que não terá uma passagem por onde possa
fugir.

— Vocês, os Senhores, são ardilosos como o Demónio — disse Kickaha.— Mas gosto da
vossa maneira de ser.

Saiu da sala. Um momento depois gritava através do corredor. Podarge dirigiu-se


para a saída, mas depois parou e olhou suspeitosa para Wolff, que começou a correr.
A harpia, satisfeita, correu também, à frente dele. Wolff parou e tirou a trombeta
do saco. Meteu um dedo na boca do instrumento — na única abertura da rede que era
suficientemente grande para ele entrar. Puxou a rede para fora. Montou-a ao
contrário, com a frente para o interior da trombeta. Colocou o instrumento no saco
e correu atrás da harpia,

Podarge estava junto de Kickaha, que dizia ter visto um gworl. Wolff disse que era
melhor que se juntassem aos companheiros. Não explicou que era indispensável que a
trombeta estivesse a certa distância das paredes da sala de comando. Quando
voltaram ao corredor que conduzia à sala de comando, Wolff abriu o saco. Kickaha
colocou-se atrás de Podarge, pronto a abatê-la se ela causasse qualquer
perturbação. Depois pensariam nas águias.

Podarge soltou uma exclamação quando viu a trombeta, mas não fez qualquer movimento
hostil. Wolff levou a trombeta aos lábios e fez votos para que não se tivesse
esquecido da sequência das notas. Muita coisa lhe viera à ideia depois de ter
falado com Vannax, mas ainda havia mais coisas de que não se recordava.

Levara a trombeta aos lábios quando ouviram uma voz que parecia vir do teto, das
paredes e do chão — de toda a parte. Falava na linguagem dos Senhores e Wolff deu
graças por isso. Podarge não a conhecia.

— Jadawin! Só te reconheci ao ver-te com a trombeta! Pensei que te parecias com


alguém conhecido — com alguém que eu devia conhecer. Foi há tanto tempo! Há quanto?

— Há muitos séculos, ou milénios — segundo a escala do tempo. Eis que nós, os


velhos inimigos, nos encontramos de novo frente a frente. Mas agora não podes
fugir. Morrerás como Vannax morreu!

— Como? — rugiu a voz de Arwoor.

— Farei com que as paredes da tua aparentemente inexpugnável fortaleza se derretam.


Ou ficas aí e morres assado ou sais e morres de outra maneira. Não creio que
queiras ficar.

De repente teve um sentimento de injustiça. Se Podarge matasse Arwoor, não mataria


o homem que era responsável pelo seu presente estado. Pouco importava saber que
Arwoor teria feito a mesma coisa, se fosse Senhor daquele mundo nessa ocasião.

Por outro lado, ele, Wolff, também não tinha culpa alguma do que acontecera. Não
era o Senhor Jadawin que construíra aquele universo e o governara de maneira tão
torpe para muitas das suas criaturas e dos terrenos que raptara. O ataque de
amnésia fora completo: apagara inteiramente a personalidade de Jadawin. Da página
em branco que ficara nascera um novo homem — Wolff — incapaz de atuar como Jadawin
ou qualquer dos outros Senhores.

E continuava a ser Wolff, exceto pelo que se recordava de ter sido. O pensamento
tomou-o pesaroso e contrito — ardente pela oportunidade de emendar todo o mal que
fizera. Seria a melhor maneira de começar, fazendo Arwoor morrer de maneira
horrível por causa de um crime que ele não cometera?

— Jadawin! — gritou Arwoor. — Podes pensar que ganhaste esta partida! Mas eu venci-
te mais uma vez! Tenho mais uma moeda para pôr na mesa e o seu valor é muito maior
que o de que a tua trombeta me pode fazer!

— Que é? — perguntou Wolff. Tinha a negra impressão de que Arwoor não mentia.

— Coloquei sob o palácio uma das bombas que trouxe comigo quando me expulsaram de
Chiffaenir. Quando quiser explodirá e fará ir pelos ares todo o cimo do monólito. Ê
verdade que morrerei também, mas levarei comigo o meu velho inimigo. E a tua mulher
e os teus amigos morrerão também! Pensa neles!

Wolff estava a pensar neles. Numa agonia.

— Que queres? — perguntou ele. — Sei que não queres morrer. És tão miserável que
devias querer morrer, mas há dez mil anos que estás agarrado à tua vida indigna.

— Basta de insultos! Queres ou não queres? O meu dedo está a um centímetro do


botão. Mesmo que estivesse a fingir — o que não estou — não poderias correr tal
risco.

Wolff falou aos outros, que não compreendiam o que se passava, mas sabiam que se
tratava de qualquer coisa decisiva. Explicou tudo, tanto quanto podia, sem falar da
sua ligação com os Senhores.

Podarge, com uma expressão de loucura e desespero, disse:

— Pergunte-lhe quais são as condições dele. — E acrescentou:— Quando isto acabar,


terás muito que explicar-me, ó Wolff.

Arwoor respondeu:

— Deves dar-me a trombeta de prata, o precioso e único trabalho do meu mestre,


Ilmarkolkin. Usá-la-ei para abrir a passagem da piscina e descer ao nível de
Atlantis. Ê tudo quanto quero, além da promessa de que ninguém me perseguirá
enquanto a passagem não se fechar.

Wolff pensou durante alguns segundos. Depois disse:

— Muito bem. Podes sair. Juro-te pela minha honra como Wolff e pela Mão de Detiuw
que te darei a trombeta e não enviarei ninguém atrás de ti enquanto a passagem não
se fechar.

Arwoor riu-se e disse:

— Vou sair.

Wolff esperou até que a porta no extremo oposto do corredor se começou a abrir.
Sabendo que não podia ser ouvido nesse momento por Arwoor, disse a Podarge:

— Ele pensa que nos tem nas mãos e que pode dar-se ao luxo de ser confiante.
Aparecerá através de uma passagem a sessenta quilómetros daqui, perto de Ikwelkwa,
um arrabalde da cidade de Atlantis. Estaria ainda à mercê de si e das suas águias
se não houvesse outro ponto de ressonância apenas a quinze quilómetros dali. Esse
ponto permitirá a sua passagem para outro universo quando tocar a trombeta.
Mostrar-lhe-ei onde fica depois de Arwoor passar pela piscina.

Arwoor avançou, confiante. Era um homem alto, de ombros largos, com aparência
agradável, de cabelos louros e olhos azuis. Tirou a trombeta a Wolff, sorriu-se com
ironia e atravessou o corredor. Podarge olhou-o com tanta cólera que Wolff receou
que ela se lançasse sobre ele. Mas conseguiu detê-la, recordando-lhe as promessas
feitas.

Arwoor passou por entre as filas silenciosas e ameaçadoras como se fossem


constituídas por estátuas de mármore. Wolff não esperou que ele alcançasse a
piscina. Dirigiu-se imediatamente para a sala de comando. Verificou que Arwoor
deixara um dispositivo automático para fazer explodir a bomba. Sem dúvida que ele
dera a si próprio tempo mais do que suficiente para se afastar. No entanto, Wolff
não descansou enquanto não desmontou o dispositivo. Entretanto Kickaha voltou.

— Ele já se foi — disse Kickaha. — Mas não foi tão simples quanto pensava. A saída
de emergência estava debaixo de água, por causa da inundação que ele próprio
provocara. Teve de se lançar à água e nadar. Ainda nadava quando a passagem se
fechou.

Wolff levou Podarge a uma grande sala de mapas e indicou-lhe a vila perto da qual
estava a passagem. Depois, na sala de visualização, mostrou-lhe a passagem a curta
distância. Podarge estudou o mapa e o visor por um momento. Depois ordenou às
águias que a seguissem. Até os macacos tiveram receio do brilho mortal dos seus
olhos.

Arwoor estava a sessenta quilómetros do monólito, mas tinha de caminhar outros


quinze. Além disso, Podarge e as suas águias desciam de um ponto a nove mil metros
de altura, segundo um ângulo que as levaria a ganhar grande velocidade. Haveria uma
corrida emocionante entre Podarge e a sua presa.

Enquanto aguardava em frente do visor, Wolff teve muito tempo para pensar. Tinha de
dizer a Chryseis quem era e como se tornara em Wolff. Ela saberia que ele fora a
outro universo, visitar um dos raros Senhores seus amigos. Os Vaemirn tinham-se
tornado solitários, apesar dos seus grandes poderes, e gostavam de passar algum
tempo, de vez em quando, com os seus pares. Ao regressar àquele universo, caíra
numa armadilha preparada por Vannax, outro Senhor expulso dos seus domínios.
Jadawin fora lançado no universo da Terra, mas levara o surpreso Vannax consigo.
Vannax escapara com um crescente depois de uma luta selvagem. Wolff não sabia o que
acontecera ao outro crescente, mas por certo que Vannax também não conseguira sabê-
lo.

A amnésia surgira então e Jadawin perdera por completo a memória — tornara-se num
verdadeiro recém-nascido, numa tabula rasa. Depois os Wolffs tinham-no adotado e
educado como um homem da Terra.

Wolff não conhecia as causas da amnésia. Talvez tivesse sido causada por uma
pancada na cabeça durante a luta com Vannax. Ou talvez houvesse resultado do horror
de se ver perdido para sempre num planeta estranho. Os Senhores dependiam tanto e
havia tanto tempo da ciência que tinham herdado que, uma vez sem ela, tornavam-se
em menos que homens.

Ou talvez a perda de memória resultasse da sua longa luta com a consciência.


Durante anos, antes de ser imprevistamente lançado noutro mundo, sentira-se
insatisfeito consigo próprio, desgostoso com os seus hábitos e entristecido pela
sua solidão e insegurança. Nenhum ser era mais poderoso que um Senhor, e nenhum era
mais solitário e mais consciente do que qualquer minuto podia ser o último. Os
outros Senhores conspiravam contra ele; tinha de estar em guarda a todo o momento.

Fosse qual fosse a razão, ele tornara-se em Wolff. Mas, como Kickaha observara,
havia uma afinidade entre ele, a trombeta e os pontos de ressonância. Não fora por
acidente que ele estivera na cave daquela casa no Arizona no mesmo momento em que
Kickaha soprara a trombeta. Kickaha suspeitara sempre que Wolff era um Senhor
expulso dos seus domínios e privado da sua memória.

Wolff sabia agora porque aprendera tão rapidamente as linguagens daquele mundo.
Recordava-se delas. E compreendia também a sua subida e poderosa atração por
Chryseis, uma vez que ela fora a favorita entre todas as mulheres do seu domínio.
Pensara até em levá-la para aquele palácio e fazer dela a sua Senhora.

Ela não soubera quem ele era ao conhecê-lo como Wolff porque nunca vira o seu
rosto. Aquele estratagema infantil da radiação perturbadora escondera as suas
feições. Quanto à voz, ele usara um dispositivo que a amplificava e deformava, para
impressionar ainda mais os seus adoradores. Também a sua grande força não era
natural, pois que ele utilizara os sistemas de bioprocessamento para se equipar com
músculos superiores.

Estava disposto a corrigir tanto quanto pudesse os efeitos da crueldade e


arrogância de Jadawin, um ser que era agora uma tão pequena parte dele. Criaria
novos corpos humanos nos biocilindros e inseriria neles os cérebros de Podarge e
das suas companheiras, dos macacos de Kickaha, Ipsewas e todos quantos o
desejassem. Ajudaria o povo de Atlantis a reconstruir o seu mundo e não seria um
tirano. Não interferiria nas questões daquele universo de níveis senão quando fosse
absolutamente necessário.

Kickaha chamou-o para junto do visor. Arwoor conseguira encontrar um cavalo na


terra dos mortos e esporeava-o furiosamente.

— Tem uma sorte do Demónio! — disse Kickaha num lamento.

— Pois eu penso que o Demónio é que o persegue — disse Wolff. Arwoor olhava para
cima e para trás e começara a bater no cavalo com uma chibata.

— Vai salvar-se! — gritou Kickaha.—Há um Templo do Senhor a uns oitocentos metros!

Wolff olhou para o grande edifício de pedra branca que estava no cimo de uma alta
colina. Dentro estava a câmara secreta que ele próprio utilizara quando fora
Jadawin.

Abanou a cabeça e disse:

— Não!

Podarge surgiu como uma seta no seu campo de visão. Descera a enorme velocidade, as
asas a baterem, o rosto lançado para a frente, branca sobre o céu verde. Atrás dela
vinham as águias.

Arwoor levou o cavalo pela colina acima até onde pôde. Então as patas do animal
cederam e ele caiu. Arwoor caiu também, levantou-se logo e correu. Podarge
mergulhou sobre ele. Arwoor esquivou-se como um coelho fugindo de um falcão. A
harpia seguiu-o nos seus zigue-zagues e caiu sobre ele. As suas garras apanharam-no
pelas costas. Ele estendeu os braços e abriu as mãos. A sua boca tornou-se num O,
através do qual saiu um grito, mudo para aqueles que olhavam a cena por meio do
visor.

Arwoor caiu no chão, com Podarge sobre, ele. As outras águias pousaram em redor, a
ver a cena.

FIM

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