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O romance Slan, de Alfred Elton van Vogt, capta o grande potencial

e os nossos maiores receios associados ao poder da telepatia.

Jommy Cross, o protagonista do romance, é um «slan», uma raça d


e telepatas super inteligentes em vias de extinção.

Os pais foram brutalmente assassinados por grupos de humanos en


raivecidos que
temem e desprezam todos os telepatas, devido ao enorme poder da
queles que conseguem intrometer-
se nos pensamentos mais privados e íntimos das pessoas. Os huma
nos perseguem os slans sem piedade, como se fossem animais. Co
m as gavinhas
típicas que lhes saem da cabeça, os slans são fáceis de identificar.
No decorrer da
história, Jommy tenta contactar outros slans que possam ter fugido
para o espaço na
tentativa de escapar à caça às bruxas dos humanos, determinados
a exterminá-los.

Título original: Slan

© 1946 A. E. Van Vogt

À minha esposa E. Mayne Hul .

Quando a mãe agarrou a mão do seu filho sentiu-a fria.

Enquanto avançavam apressadamente pela rua seu temor se manif


estava em forma de pulsação que transmitia à mente do seu filho. C
em pensamentos mais chegavam ao cérebro dele, procedentes da
multidão que desfilava ao seu lado e do interior
das casas diante das quais passavam. Mas somente os pensament
os da sua mãe
chegavam até ele de uma forma clara, coerente... e atemorizados.

“Estão nos seguindo, Jommy - telegrafava seu cérebro. - Não estão


certos, mas
suspeitam. Nós temos nos arriscado com muita frequência vindo à c
apital, se bem
que desta vez eu tinha esperanças de lhe ensinar a forma slan de e
ntrar nas catacumbas onde está oculto o segredo do seu pai. Jomm
y, se acontecer alguma coisa,
você já sabe o que fazer. Nós temos praticado com bastante frequên
cia. E não tenha
medo, Jommy, não se inquiete. Você pode não ter mais que nove an
os, mas é tão inteligente como um ser humano normal de quinze.”.
“Não tenha medo”. Fácil de aconselhar, pensava Jommy, ocultando-
lhe seu pensamento. Se sua mão soubesse que ocultava-
lhe algo, que havia um segredo entre
eles, não teria gostado, mas havia coisas que tinha que ocultar, ela
não devia saber que ele tinha medo também.

Tudo aquilo era novo e emocionante. Era uma emoção que experim
entava a cada
vez que saíam do tranquilo subúrbio de onde viviam para vir ao cora
ção de Centró-

polis. Os vastos parques, as milhas e milhas de arranha-


céus, o tumulto da multidão,
sempre lhe pareciam mais maravilhosos do que sua imaginação hav
ia figurado. Ali
estava a sede do Governo. Ali vivia, por assim dizer, Kier Gray, ditad
or absoluto de
todo o planeta. Fazia muito tempo, centenas de anos, que os slans
haviam dominado
Centrópolis durante seu breve período de ascendência.

“Jommy, não está sentindo sua hostilidade? Ainda não pode sentir a
s coisas à distância?”

Jommy estremeceu. Aquela espécie de vaga sensação que emanav


a da multidão
que passava ao seu lado se convertia em um torvelinho de medo m
ental. Sem saber de onde, chegava até ele o pensamento:

“Dizem que apesar de todas as precauções ainda há slans na cidad


e, e a ordem é matá-los à primeira vista”.

“Mas não é perigoso?” - disse um segundo pensamente, sem dúvida


uma pergunta
formulada em voz alta, se bem que Jommy só captou a ideia mental.
- Uma pessoa perfeitamente inocente pode ser morta por um erro”.
“Por isto raramente os matam à primeira vista. Tentam capturá-
los e os examinam.

Seus órgãos internos são diferentes dos nosso, já sabe, e na cabeç


a há... “

“Jommy, não está sentindo? Estão a uma quadra atrás de nós, em u


m grande carro. Esperam reforços para cercar-
nos. Trabalham depressa. Não capta seus pensamentos, Jommy?

Não podia! Por mui intensamente que tentasse concentrar-


se, só conseguia suar.

Nisto, as maduras faculdades da sua mãe sobrepassavam seus pre


coces instintos. Ela
podia suprimir distâncias e converter tênues vibrações em imagens
coerentes.

Queria voltar-
se, mas não se atrevia. Tinha que fazer um esforço com suas peque
nas embora já longas pernas, para seguir o passo da sua mãe. Era t
errível ser pequeno, inexperiente e jovem, quando sua vida requeria
a força da maturidade, a vigilância de um slan adulto. Os pensament
os da sua mãe penetravam através das suas reflexões.

“Há alguns adiante de nós e outros que estão cruzando a rua, Jomm
y. Você tem
que seguir adiante, querido, não esqueça do que eu lhe disse. Não v
iva mais que
para uma coisa: para fazer possível aos slans levar uma vida normal
. Creio que terá
que matar nosso grande amigo Kier Gray, embora isso represente te
r que entrar no
grande palácio à sua procura. Lembre que haverá muito barulho, grit
os e confusão, mas conserve sua cabeça fria. Boa sorte, Jommy”.

Até que sua mãe tivesse soltado sua mão depois de dar um aperto,
Jommy não tinha se dado conta que o temor dos seus pensamentos
havia mudado. O medo havia
desaparecido. Uma apaziguadora tranquilidade invadia seu cérebro,
acalmando seus
excitados nervos, atenuando as batidas dos seus dois corações.

Enquanto Jommy se metia por trás do amparo oferecido por um ho


mem e uma
mulher que passavam ao seu lado, teve tempo de ver uns homens q
ue se lançavam
sobre a alta figura da sua mãe, apesar do seu aspecto completamen
te normal e humano, com sua calça e blusa vermelha, e o cabelo pr
eso em um lenço amarrado. Os
homens, vestidos à paisana, cruzavam a rua com a sombria express
ão da desagradá-

vel tarefa que tinham que levar a cabo. O odioso de tudo aquilo, do
dever que tinham que cumprir, coagulou-
se em um ideia que saltou no cérebro de Jommy no
mesmo momento em que todos seus pensamentos se concentrava
m em sua fuga.

“Por que ele tinha que morrer? Ele, e sua mãe, tão maravilhosa, sen
sível e inteligente?” Tudo aquilo era um erro terrível.

Um carro reluzente como uma bela joia sob o sol passou rápido próx
imo à borda
da calçada. Jommy ouviu a voz rouca de um homem gritar, dirigindo
-se a ele:

- Pare! Ali está o garoto! Que ele não escape! Peguem-no!

O povo parava para olhar. Ele sentia o torvelinhos dos seus pensam
entos, mas já
tinha dado a volta à esquina e corria velozmente por Capital Avenue.
Viu um carro que saía do meio-
fio e que acelerou sua velocidade. Seus dedos anormais agarram-
se ao para-choques traseiro e instalou-
se enquanto o carro ia ganhando velocidade
por entre o barulho do trânsito. De alguma fonte desconhecida cheg
ou a ele o pensamento: “Boa sorte, Jommy!”

Durante nove anos sua mãe o havia educado para este momento, m
as formou-se
um nó em sua garganta ao responder: “Boa sorte, mãe!”

O carro ia depressa demais, as milhas se sucediam velozmente. As


pessoas se de-
tinham para olhar aquele garoto naquela situação perigosa, agarrad
o ao para-
choques traseiro do automóvel. Jommy sentia a intensidade dos seu
s olhares, uns pensamentos brotavam em seus cérebros e transform
avam-se em gritos agudos. Gritos
dirigidos ao motorista, que não os ouvia. Via em sua mente os trans
euntes entrarem
nas cabines telefônicas públicas e telefonar para a polícia dizendo q
ue havia um garoto agarrado ao para-
choques de um carro. Jommy esperava ver de um momento
para outro uma patrulha avançar ao lado do automóvel e mandar pa
rar. Assustado,
concentrou seus pensamentos somente nos ocupantes do carro.

Conseguiu captar as vibrações mentais e ao captá-


las estremeceu e esteve a pondo de deixar-
se cair no pavimento. Olhou e voltou a aferrar-se ao para-
choques, assustado. O pavimento era uma coisa terrível e borrada,
deformado pela velocidade.

Sem querer, seu cérebro se pôs em contato com os ocupantes do c


arro. A mente do
chofer estava concentrada na manobra do automóvel. Uma vez ele
pensou, como em
um flash, na pistola que levava na coldre sob o ombro. Chamava-
se Sam Enders e
era o motorista e guarda costas do que estava sentado ao seu lado,
John Petty, Chefe da Polícia Secreta do todo poderoso Kier Gray.
A identidade do Chefe de Polícia penetrou no cérebro de Jommy co
mo um choque
elétrico. O notório perseguidor de slans estava esparramado em seu
assento, indiferente à velocidade do carro, a mente absorvida em u
ma pacífica meditação.

Que mente extraordinária! Impossível ler nela outra coisa mais que
umas leves
pulsações superficiais. Jommy se disse, atônito, que não era como s
e John Petty dis-
simulasse conscientemente seus pensamentos, mas sem dúvida alg
uma havia em
sua mente uma reserva tão secreta e segura com em qualquer slan.
E não obstante
era diferente. Seus pensamentos revelavam claramente um caráter i
mplacável, uma
mente brilhante, fortemente educada. Subitamente Jommy captou o
final de um pensamento que alterou a calma de John Petty, trazido à
superfície como um arranque
de uma paixão. “Tenho que matar essa mulher slan, Kathleen Layto
n... É a única forma de minar o terreno para Kier Gray...”

Jommy fez um esforço frenético para seguir o pensamento, mas ele


já estava fora
do seu alcance, nas sombras. Mas tinha um indício. Uma mulher ch
amada Kathleen
Layton tinha que ser morta a fim de minar o terreno para Kier Gray.

“Chefe - disse o pensamento de Sam Enders, - pode desligar esse i


nterruptor? A luz vermelha está no alerta geral”

“Que alertem o quanto quiserem - pensou a mente de John Petty, in


diferente. -

Isto é bom para os cordeiros”

“Talvez fosse melhor ver do que se trata” - insistiu Sam Enders


O carro moderou ligeiramente a velocidade e Jommy, que havia che
gado a uma extremidade do para-
choques, esperava ansioso o momento de poder saltar. Seus
olhos assomando entre o carro e o para-
lamas só viram a linha cinza do pavimento,
duro e ameaçador. Saltar para o chão era sofrer uma séria batida co
ntra o asfalto.

Naquele instante um jorro de pensamentos de Enders chegou ao se


u cérebro enquanto o chofer recebia esta mensagem de alarme gera
l:

“A todos os carros da Capital Avenue e arredores, detenham um gar


oto,
supostamente slan, chamado Jommy Cross, filho de Patricio Cross!”

“Cross foi morta há dez minutos na esquina da Main com a Capital.


O garoto agarrou-se ao para-
choques de um carro que partiu a toda velocidade.

Comuniquem qualquer notícia”.

“Escute isto, chefe - disse Sam Enders - Estamos na Capital Avenue


. Seria melhor
pararmos e ajudar a procurar. Há dez mil de recompensa por cada sl
an”.

Os freios chiaram. O carro freou com uma violência que esmagou Jo


mmy contra a
parte traseira da carroceria e no momento em que o carro parou ele
saltou para o chão. Saiu correndo, esquivando-
se de uma mulher velha que tentava agarrá-lo. Encontrou-
se em um terreno vazio além do qual elevava-
se uma série de altos edifícios
de cimento que faziam parte de uma imensa fábrica. Um pensament
o malvado brotou do carro e chegou à sua mente.

“Enders, você se dá conta de que faz dez minutos que saímos da Av


enue com a Main Street? Esse garoto... lá vai ele! Atire, atire, idiota!
A sensação do gesto de Enders sacando o revólver chegou tão viva
à mente de
Jommy que ele sentiu o roçar do metal contra o couro em seu céreb
ro. Pareceu-lhe

inclusive vê-
lo apontar cuidadosamente, tão clara foi a impressão mental que cru
zou os cinquenta metros que os separavam.

Jommy deu um saldo de lado e o revolver disparou com um “plop” a


bafado. Teve a
leve sensação de um golpe e, saltando uns tantos degraus, encontr
ou-se no interior
de um vasto armazém iluminado. De longe chegavam vagos pensa
mentos.

“Não se preocupe, chefe, já o cansaremos...”

“Não diga besteiras, não há um ser humano capaz de cansar um sla


n. - aparentemente começou a dar ordens pelo radio: - Temos que c
ontornar o distrito pela rua
57... Concentrem toda a polícia e soldados disponíveis para...”

Como tudo estava ficando confuso! Jommy cambaleava por um mun


do sombrio, unicamente dando-
se conta de que, apesar dos seus músculos estarem fatigados,
ainda era capaz de correr duas vezes mais depressa que qualquer h
omem normal. O

vasto armazém era um mundo de luz suave, cheio de reluzentes obj


etos em forma
de caixas e de caminhos que se perdiam na remota semi-
obscuridade. Os pacíficos
pensamentos de uns homens que removiam as caixas, à sua esquer
da, chegaram
duas vezes ao seu cérebro. Mas nenhum deles se dava conta da su
a presença nem
do tumulto na rua. Longe, à sua direita, viu uma abertura iluminada,
uma porta, e dirigiu-
se para ela. Chegou à porta surpreso por seu cansaço. Tinha os mú
sculos extenuados e parecia que alguma coisa pegajosa tivesse ade
rido ao seu lado. Sua mente também está esgotada. Deteve-
se e assomou à porta.

Viu uma rua muito diferente da Capital Avenue. Era um beco sujo de
pavimento
quebrado e umas casas com paredes caiadas, construídas talvez há
cem anos. O material era praticamente indestrutível, suas cores imp
erecíveis, ainda brilhantes como
no dia da sua construção, mostravam entretanto os estragos do tem
po. O pó e a sujeira haviam-
se aderido como sanguessugas à superfície brilhante das paredes.
O

gramado estava mal cuidado e via-


se em todo lugar montes de trastes velhos e lixo.

A rua parecia deserta. Vindo dos sórdidos alojamentos, chegou até


ele um vago murmúrio de pensamentos, mas estava muito cansado
para certificar-se de que provi-nham unicamente dali.

Jommy inclinou-
se sobre a borda da plataforma do armazém e saltou para a rua. A
angústia que o dominava tornou doloroso um salto que em outras cir
cunstâncias lhe
seria tão fácil, e o golpe o fez estremecer até os ossos.

Começou a correr por aquele mundo mais sombrio da rua. Tentou cl


arear seus
pensamentos, mas foi inútil. Suas pernas pareciam de chumbo e nã
o viu a mulher
que o olhava da varanda até que ela lhe jogasse um esfregão que el
e pôde evitar agachando-se ao ver sua sombra a tempo.

- Dez mil dólares! - gritava a mulher, correndo atras dele. - O radio fa


lou dez mil
dólares! Ele é meu, estão ouvindo? Que ninguém o toque! É meu! E
u o vi primeiro!

Jommy se deu conta de que ela estava gritando para outras mulhere
s que começavam a sair de casa. Graças a Deus os homens estava
m ocupados em seus trabalhos.

O horror daquelas mentalidades de ave de rapina se apoderava dele


enquanto corria
por entre as fileiras de casas; estremeceu ante o som mais horrível
do mundo, o estridente clamor de vozes de um povo desesperadam
ente pobre arrancado da sua le-
targia pela visão de uma riqueza superior a qualquer sonho de cobiç
a imaginável.

Apoderou-
se dele o medo de ser atingido pelas vassouras, atiçadores e demai
s bu-gigangas caseiras, de ver-
se feito em pedaços, destroçado, seus ossos esmagados,
suas carnes dilaceradas. Dando a volta, dirigiu-
se para a parte posterior da casa
sempre seguido pela horda enfurecida. Jommy sentia seu nervosism
o e os pensamentos de medo que zumbiam em suas mentes. Havia
m ouvido contar histórias que
talvez importassem mais que seu desejo de possuir dez mil dólares.
Mas a presença

da multidão dava ânimo aos indivíduos. A multidão continuava avanç


ando.

Saiu em um pequeno pátio no qual em um dos lados havia um mont


e de caixas
que formavam uma massa escura, mais alta que ele, meio indistinta,
apesar da luz
do sol. Sob o impulso de uma ideia que acudiu à sua mente perturba
da, um instante depois trepava pelo monte de caixas.
A dor do esforço foi como se uns dentes o mordessem nas costelas.
Procurou febrilmente entre as caixas e meio se agachou meio caiu
em um espaço aberto entre
as velhas cestas que chegava até o solo. No meio daquela quase tot
al escuridão
pôde ver um espaço mais escuro ainda na parede do edifício. Aproxi
mou as mãos e
achou a borda de um orifício feito no muro. Um momento depois hav
ia escorrido por
ele e jazia extenuado sobre o solo úmido do interior. Algumas pedra
s se cravavam
em seu corpo, mas no momento estava muito extenuado para dar-
se conta de mais
nada, quase sem respirar, enquanto a multidão continuava uivando
na rua, procurando-o freneticamente.

A escuridão era uma sensação tão calmante como as palavras da s


ua mãe pouco antes de dizer-
lhe que a deixasse. Alguem subiu por uma escada e lhe disse onde
se
encontrava; em um pequeno espaço subterrâneo atrás da escada p
osterior do edifí-

cio. Perguntou-se como foi feito aquele buraco na parede.

Encolhido ali, com o frio do medo, recordou-


se da sua mãe... já morta, o rádio havia dito. Morta! Ela não devia te
r tido medo, claro. Lembrava muito bem que sempre
havia aspirado pelo dia em que se reuniria ao seu defunto marido na
paz da tumba.

“Mas tenho que lhe criar primeiro, Jommy. Seria tão fácil, tão delicio
so renunciar à
vida! Mas tenho que viver até que você tenha saído da infância. Seu
pai e eu não vi-
vemos mais que para esta invenção, e todo trabalho teria sido perdi
do se você não estivesse aqui para levá-lo adiante”.
Afastou esses pensamentos porque sentia uma dor na garganta ao
pensar nelas.

Sua mente já não estava tão confusa. O curto descanso deve tê-
lo feito sentir-se
bem. Mas isto tornava as pedras mais doloridas e difíceis de suporta
r. Tentou mover o corpo mas o espaço era muito estreito.

Sua mão moveu-


se automaticamente e ele fez uma descoberta. O que o atormen-
tava não eram pedaços de pedras e sim a cal do reboco que havia c
aído da parede
quando fizeram o buraco por onde ele havia entrado. Era curioso pe
nsar naquele buraco e dar-
se conta de que alguem mais - alguem de fora dali - estava pensand
o no
mesmo buraco. A impressão daquele pensamento do munto externo
foi como se uma chama viva o queimasse.

Surpreso, tentou isolar o pensamento e a a mente que o tinha. Mas


havia mentes
em demasia ao seu redor e muito excitação. Soldados e policiais en
chiam a rua, exa-
minavam cada casa e cada edifício Uma vez, acima da confusão de
pensamentos, captou a clara e fria reflexão de John Petty:

“Disse que ele foi visto aqui na última vez?”

“Ele dobrou a esquina - disse uma mulher - e desapareceu.

Com os dedos trêmulos, Jommy começou a despedaçar o entulho d


o solo úmido e,
fazendo um esforço para acalmar seus nervos, começou a encher n
ovamente o buraco usando o gesso úmido com cimento. O trabalho,
dava-se conta com angustia, não
resistiria a um exame minucioso Enquanto trabalhava sentia com to
da clareza o pensamento da outra pessoa que estava perto dele, lá f
ora, misturado com todos os outros pensamentos que galopavam po
r seu cérebro, mas nem uma só vez o pensamento daquela pessoa
se fixou no buraco. Jommy não podia dizer se era homem ou
mulher. Mas estava ali, como uma malvada vibração de um cérebro
torturado.

O pensamento continuava ali, perto dele, quando a multidão começo


u a retirar as

caixas aproximando-
se por entre elas, e depois, lentamente, os gritos foram enfra-
quecendo e o pesadelo dos pensamentos foi distanciando-
se. Os perseguidores procuravam em outra parte. Jommy pôde ouvi
-
los durante um longo tempo, até que finalmente a vida foi se tranquil
izando e soube que a noite se aproximava.

Mas a excitação do dia ainda estava na atmosfera. Um murmúrio de


pensamentos
saía das casas, as pessoas pensavam, discutiam o ocorrido. Afinal a
treveu-se a não
esperar por mais tempo. A mente que sabia que ele estava naquele
buraco, e não
havia dito nada, estava ali em algum lugar. Era uma mente malvada
que o enchia de sinistra premonição e fazia-
o ver a urgência de distanciar-
se dali. Com os dedos ainda trêmulos mas rápidos, começou a tirar
os pedaços de entulho. Depois, ainda dor-
mente pela longa imobilidade, saiu cautelosamente do seu esconder
ijo. O corpo lhe
doía por inteiro e a fraqueza turvava sua mente, mas não se atreveu
a retroceder.

Trepou lentamente até o alto das caixas e, deslizando por elas, suas
pernas iam se
aproximando do chão quando ouviu passos rápidos e a primeira sen
sação da pessoa
que tinha estado esperando penetrou nele. Uma mão frágil agarrou
seu cotovelo e a voz de uma mulher velha disse triunfante:
- Está tudo bem, venha com Granny. Granny se ocupará de você, Gr
anny é boa. Eu
sempre soube que você tinha que estar neste buraco; mas os outros
nem ao menos
suspeitaram. Oh, sim, Granny é boa! Granny foi embora mas voltou,
porque sabe
que os slans podem ler o pensamento e tratou de não pensar nisto,
pensando somente na cozinha. Eu o enganei não é verdade? Eu já
sabia. Granny se ocupará de você. Granny odeia a Policia também.

Com uma onda de desfalecimento Jommy reconheceu a velha pred


adora que o havia agarrado quando ele fugia no carro de John Petty.
Aquela rápida e única olhada
deixou impressa em sua mente a imagem da bruxa. E agora era tal
o terror que dela
emanava, tão malvadas suas intenções, que lançou um grito e deu-
lhe um chute.

O grosso pau que a velha tinha não mão livre caiu sobre ele antes q
ue tivesse se
dado conta de que ela tinha tal arma. A pancada foi formidável. Seus
músculos tremeram freneticamente. Seu corpo caiu no chão. Sentiu
que lhe atavam as mãos e
que o arrastavam. Finalmente foi erguido para uma velha carroça e
o cobriram com
algumas roupas que cheiravam a suor de cavalos, óleo e latas de lix
o.

O veículo avançou pelo tosco pavimento da ruazinha e entre o chiad


o das rodas Jommy pôde captar o riso de mofa da velha.

- Que tola teria sido Granny se deixasse que os outros o pegassem.


Dez mil de recompensa! Eu nunca teria tocado num centavo! Grann
y conhece o mundo. Em outros tempos fui uma atriz famosa, agora
sou uma velha esfarrapada. Jamais teriam
dado cem dólares, e menos ainda duzentos, a uma velha esfarrapad
a que recolhe ossos pelo chão! Mas agora levará o prêmio todo! Gra
nny lhes ensinará o que é possí-
vel fazer com um jovem slan! Granny lhes tirará uma pequena fortun
a com esse dia-binho …

II

Ali estava ali novamente aquele repugnante garoto.

Kathleen Layton ficou rígida, na defensiva. Não havia maneira de fu


gir dele àquela
altura, a mais de cem metros no alto do palácio. Mas depois daquele
s longos anos de
vida, sendo a única garota slan entre tantos seres hostis, era capaz
de enfrentar
qualquer um, inclusive Davy Dinsmore, que tinha onze anos como el
a.

Não se voltaria. Não lhe daria a menor indicação de que sabia que e
le se aproximava dela por aquele largo corredor de cristais. Rígida,
distanciou seu pensamento
dele, mantendo o contato mínimo necessário para evitar que ele se
aproximasse dela
de surpresa. Tinha que continuar contemplando a cidade, como se n
ão estivesse ali.

A cidade estendia-
se diante dos seus olhos com seu grande número de casas e
edifícios, mudando lentamente de cor sob a luz fraca do crepúsculo.
Mais além, aparecia a grande planície verde escura, e naquele mun
do, quase sem sol, a água normalmente azulada do rio que circunda
va a cidade parecia negra, sem brilho. Até as
montanhas do horizonte remoto haviam adquirido um tom sombrio q
ue se harmoni-zava com a melancolia que invadia sua alma.

- Ah, ah! Você faz bem em gravar tudo isto! É a última vez!

A voz discordante atacou seus nervos como um ruído sem significad


o. Tão forte foi
a sensação de sons totalmente ininteligíveis que por um momento o
sentido das palavras não penetrou em sua consciência. Então, quas
e a despeito de si mesma, vi-rou-se para encará-lo.

- A última vez? O que você está querendo dizer?

No ato ela arrependeu-


se do que havia feito. Davy Dinsmore estava a menos de
dois metros dela. Vestia longas calças de seda verde e uma camisa
amarela com o
peito aberto. Seu rosto infantil, com sua expressão de “eu sou um ca
ra durão”, e os
lábios retorcidos em um gesto de desdém, diziam claramente que o
novo fato de haver-
se dado conta da sua presença era uma vitória para ele. Entretanto,
o que poderia tê-
lo induzido a dizer uma coisa como aquela? Era difícil de acreditar q
ue tivesse
inventado. Kathleen sentiu o veemente impulso de perguntar, mas e
ncolhendo os
ombros, desistiu. Penetrar em seu cérebro, no estado em que ele se
encontrava, lhe causaria um mal-estar que teria durado um mês.

Fazia tempo, meses e meses, que se havia isolado de todo contato


com a corrente
dos pensamentos humanos, ódios e esperanças que convertiam aq
uele palácio em
um inferno. Era melhor mais uma vez desprezar aquele garoto como
sempre havia feito. Voltou-
lhe as costas sem prestar a mínima atenção, mas ouviu sua voz ana
sala-da e desagradável que repetia:

- Sim, sim, a última vez! isto foi o que eu disse e o que penso! Aman
hã você completa onze anos, não é?

Kathleen não respondeu, fingindo não tê-


lo ouvido. Mas uma sensação catastrófica apoderou-
se dela. Havia maldade demais naquela voz, certeza demais. Era po
ssível
que durante os meses que conservou sua mente isolada dos pensa
mentos dos de-

mais tivessem sito tramados aqueles horríveis planos? Era possível


que tivesse cometido um erro ao isolar-se, encerrando-
se em um mundo próprio, e que agora o mundo real chegasse até el
a através da sua armadura protetora?

- Você se julgava inteligente, não é? Pois não se parecerá tanto ama


nhã, quando a
matarem. Talvez você não saiba, mas mamãe diz que no palácio cor
re um boato de
que quando a trouxeram para cá o Sr. Kier Gray teve que prometer
ao Conselho que
a mataria no dia que completasse onze anos. E nem pense que não
vão fazer isto.

Alem do mais, outro dia mataram uma mulher slan na rua, está vend
o agora?

- Você está... louco!

As palavras saíram sozinhas dos seus lábios. Não de seu conta de t


ê-
las pronunciado, porque não eram o que pensava. Estava convencid
a de que ele dizia a verdade,
porque se amoldavam ao ódio que todos tinham dela. Era tão lógico
que lhe pareceu sempre ter sabido disto.

Era curioso, o que mais perturbava a mente de Kathleen era que tiv
esse sido a
mãe de Davy que tivesse dito aquilo. Lembrava aquele dia, três ano
s antes, em que
o garoto a havia agredido diante dos tolerantes olhos da sua mãe. Q
uantos gritos,
quantos chutes e golpes quando ela o botou na linha, até que a ultra
jada mão avan-
çou sobre ela gritando e ameaçando-
a com “o que ia fazer a uma suja e viperina slan”.

E então, subitamente, a aparição de Kier Gray, forte, alto, autoritário,


e a Sra.

Dinsmore curvando-se diante dele...

- Seu fosse você não poria a mão em cima desta garota. Kathleen L
ayton é propri-
edade do Estado, que em seu devido tempo disporá dela. Quanto a
o seu filho, ele levou tudo que um sem-
vergonha merece e espero que a lição lhe tenha servido.

Como tinha se emocionado com aquela defesa! E desde então havi


a classificado
Kier Gray em outra categoria diferente dos demais seres, apesar da
s terríveis histó-

rias que corriam sobre ele. Mas agora sabia a verdade e compreend
ia o que tinha
querido dizer com suas palavras: “... e o Estado disporá dela”.

Saiu da sua amarga concentração com um sobressalto e observou q


ue na cidade
havia se produzido uma mudança. A grande massa urbana havia ac
endido seus mi-
lhões de luzes, alcançando seu pleno esplendor noturno. Diante del
a se estendia agora a cidade maravilhosa, perdendo-
se na distância como uma imagem sonhada
de refulgente magnificência. Quanto suspirara por ir algum dia àquel
a cidade e poder
julgar por si mesma todas as delícias que sua imaginação lhe havia
atribuído! Agora,
é claro, não as veria nunca mais. Aquele mundo de deleites, de mar
avilhas, perma-neceria para ela eternamente ignorado...
- Ah, ah! - repetia a voz discordante de Davy. - Olhe bem de perto! É
a última vez.

Kathleen estremeceu. Era-


lhe impossível tolerar por um segundo a mais a presença
daquele garoto asqueroso; sem dizer uma palavra, deu meia volta e
refugiou-se na
solidão do seu quarto. O sonho havia desaparecido e a cidade já dor
mia, à exceção dos que estavam de guarda ou em alguma festa.

Era curioso que não pudesse dormir. E não obstante sentia-


se mais tranquila, agora que sabia a verdade. A vida cotidiana havia
sido horrível; o ódio dos servos e da
maioria dos seres humanos era uma coisa intolerável. Devia ter final
mente adormecido, porque a forte impressão que recebeu do exterio
r deformou o sonho irreal que estava tendo. Agitou-
se nervosa na cama. Seus tentáculos de slan, tênues pedúnculos qu
ase dourados que brotavam entre o cabelo escuro que emoldurava
seu infantil e delicado rosto, erguiam-se agitando-
se suavemente como sob o impulso de uma
brisa suave. Suavemente, mas com insistência.

De repente, o ameaçador pensamento que aqueles sensíveis pedún


culos captavam

da noite que envolvia o palácio de Kier Gray penetrou em Kathleen


e ela despertou trêmula. O pensamento fixou-
se em sua mente por um instante, cruel, claro, mortal,
afogando o sono como uma ducha de água fria. E no mesmo mome
nto desapareceu,
tão completamente como se nunca tivesse existido. Só restava uma
vaga confusão de imagens mentais que foram apagando-
se, perdendo-se na interminável série de quartos do vasto palácio.

Kathleen permanecia imóvel e na parte mais profunda da sua mente


viu o que
aquilo significava. Havia alguem que não queria esperar até amanhã
. Alguem que
duvidava que a execução tivesse lugar e queria apresentar-
se ante o Conselho com
um fato consumado. Só existia uma pessoa poderosa o suficiente p
ara enfrentar a
responsabilidade: John Petty, o Chefe da Polícia Secreta, o fanático
anti-slan; John
Petty, que a odiava com uma tal violência que mesmo naquele antro
de anti-slanismo
a fazia desfalecer. O assassino devia ser um dos seus esbirros.

Fazendo um esforço. tentou acalmar seus nervos e ativar sua mente


ao limite do possível. Passaram-
se os segundos e ela continuava ali, procurando em vão o cérebro c
ujos pensamentos haviam ameaçado sua vida durante um breve inst
ante. O

sussurro dos pensamentos exteriores converteram-


se em um rugido em seu cérebro.

Fazia meses que não tinha explorado aquele mundo de cérebros de


scontrolados. Tinha acreditado que a recordação dos seus horrores
não havia empalidecido, não obstante a realidade era pior que a lem
brança. Com uma insistência quase digna da maturidade, submergiu
-se naquela tempestade de vibrações mentais, fazendo um esfor-

ço para isolar cada um daqueles indivíduos. Chegou a ela uma frase


:

“Oh, meu Deus! Queira Deus que não descubram que ele anda roub
ando! Hoje foram legumes!”

Devia ser a esposa do cozinheiro, pobre mulher temerosa a Deus, q


ue vivia no terror mortal do dia em que seriam descobertos os peque
nos roubos do seu marido. Kathleen sentia compaixão por aquela po
bre mulher que jazia desperta na escuridão,
isolada do marido. Mas não muita compaixão, porque uma vez, obe
decendo a um
mero instinto de maldade, ao cruzar por ela em um corredor a havia
esbofeteado sem dar-lhe ao menos um pré-aviso mental.

A mente de Kathleen trabalhava ativamente agora, impulsionada pel


a sensação da premência; os pensamentos iam-
se sucedendo como um caleidoscópio, descartando-
os à medida que iam aparecendo quando não estavam relacionados
com a ameaça
que a havia despertado. Era todo aquele mundo do palácio, com su
as intrigas, suas
incontáveis tragédias, suas ambições cobiçosas. Os que se agitava
m em seus sonhos tinham pesadelos com significado psicológico.

Subitamente ela o sentiu! Um sussurro do firme propósito de matá-


la! Desapareceu no ato, como uma mariposa fugaz, mas não da me
sma forma. Sua firme determinação era um aguilhão que a desesper
ava. Porque aquele breve segundo de pensamento ameaçador havi
a sido potente demais para não ser algo real, próximo, perigoso. Era
curioso ver quão difícil era voltar a encontrá-
lo. Seu cérebro doía, todo seu
corpo sentia alternadamente calor e frio; e finalmente viu com clarez
a uma imagem..

já o tinha! Agora compreendia porque sua mente o havia escondido


durante tanto
tempo. Seus pensamentos se haviam esfumado em mil diferentes te
mas, sem fixar-
se em nenhum, captando somente os conceitos superficiais de um f
undo de pensamentos.

Não se tratava de John Petty nem de Kier Gray, pois ela podia segui
r ambas as linhas de raciocínio uma vez captadas. Seu suposto agr
essor, apesar de toda sua inteligência, havia-
se delatado. E quando entrasse no quarto dela...

O pensamento foi cortado. Sua mente caminhava para a desintegra


ção sob o efei-
to da verdade que havia aparecido diante dela. O homem havia entr
ado no quarto e
naquele mesmo instante estava avançando de rastros para a cama.
Kathleen teve a
sensação de que o tempo parou nascido das trevas e da forma com
suas mantas a
prendiam, cobrindo inclusive os braços. Sabia que o menor movime
nto produziria um
ruído de lençóis engomados e o assassino se arrojaria sobre ela ant
es que pudesse
se mover; ele a sujeitaria sob as mantas e a teria à sua mercê.

Não podia se mover. Não podia ver. Só conseguia perceber a excita


ção que ia aumentando no cérebro do seu assassino. Seus pensam
entos eram rápidos e ele se es-quecia de disseminá-
los. A chama do seu propósito assassino ardia em seu interior
com tanta força e ferocidade que Kathleen tinha que afastála sua m
ente porque produzia uma dor quase física. E naquela total revelaçã
o dos seus pensamentos, Kathleen leu toda a história da agressão.

Aquele homem era o guarda que haviam posto na porta do seu quar
to. Mas não
era o guarda de costume. Era curioso que ela não tivesse notado a
mudança. Devem
ter feito enquanto dormia ou quando estava muito preocupada com
seus próprios pensamentos para dar-
se conta disto. Enquanto o homem se punha de pé sobre o
tapete e se aproximava do leito, captou seu plano de ação. Pela pri
meira vez seus
olhos notaram o brilho do punhal que naquele momento ele tinha na
mão.

Só havia uma coisa a fazer. Só podia fazer uma coisa! Com um gest
o rápido que desconcertou o próprio agressor, jogou-
lhe as mantas sobre a cabeça e os ombros e atirou-
se da cama, escondendo-
se entre as sombras na escuridão do quarto. O homem lutava para li
vrar-
se da manta que estava presa pelos delgados mas extraordinariame
nte fortes braços da garota, e no gemido abafado que lançou havia t
odo um terror do que significaria ser descoberto.

A garota captava os pensamentos e ouvia os gestos do homem enq


uanto este andava às apalpadelas procurando-
a na escuridão. Talvez não devesse ter se movido da
cama, pensou. Se de qualquer forma tinha que me alcançar pela ma
nhã, por que atrasá-
la? Mas soube da resposta no ato; soube que uma ânsia de viver ha
via se
apoderado dela e, pela segunda vez naquela noite, que aquele visita
nte noturno era
a prova de que havia alguem que temia que a execução não fosse l
evada a cabo.

Lançou um profundo suspiro. Sua excitação desapareceu nas primei


ras palavras de
desprezo que pronunciou diante dos vãos esforços do seu assassin
o.

- Estúpido! - disse, com desdém em sua voz infantil e entretanto tota


lmente priva-
da do infantilismo em sua lógica esmagadora. - Então acha que pod
e chegar perto de um slan na escuridão?

O homem lançou-
se para o lugar de onde vinha a voz, golpeando nas trevas de
uma forma lastimável. Lastimável ou horrível, porque seus pensame
ntos agora estavam tomados pelo terror. Um terror que levava em si
algo repulsivo e que fez Kathleen estremecer enquanto permanecia
de pé, descalça, no canto oposto do quarto.

Novamente falou, com foz vibrante, infantil:

- Faria melhor em sair daqui antes que alguem se dê conta do que e


stá fazendo.
Se você se for agora não o delatarei ao Sr. Gray.

Notou que o homem não acreditava nela. Tinha muito medo, muitas
suspeitas e subitamente parou de procurar nas trevas e lançou-
se desesperadamente para a porta, onde estava o interruptor de luz.
Kathleen sentiu que ele sacava um revólver do
bolso enquanto tentava acender. Deu-
se conta de que o homem preferia correr o risco de ser detido pelos
guardas que viriam precipitadamente ao ouvir a detonação,
que se apresentar diante de um superior confessando seu fracasso.

- Estúpido! - gritou Kathleen.

Sabia o que tinha que fazer, apesar de que nunca tinha feito antes.
Deslizou silen-

ciosamente ao longo da parede, tateando com os dedos. Abriu uma


porta, saiu por ela, fechou-
a com chave e saiu correndo por um longo corredor fracamente ilum
inado até a porta do final. Abriu-a e encontrou-
se em um vasto gabinete luxuosamente mobiliado.

Presa de um súbito terror pela ousadia da sua ação, permaneceu no


umbral contemplando um homem de aspecto vigoroso que estava s
entado escrevendo à luz de
um abajur. Kier Gray não levantou a vista imediatamente. Ela sabia
que havia se
dado conta da sua presença e seu silêncio lhe deu coragem para ob
servá-lo.

Naquele homem, governante de homens, havia algo magnífico que


causava admiração, apesar de que o medo que lhe inspirava pesav
a gravemente sobre ela. As duras feições do seu rosto davam-
lhe um ar de nobreza e permanecia inclinado sobre a
carta que estava escrevendo. Kathleen podia ler superficialmente se
us pensamentos,
mas nada mais. Fazia tempo que havia descoberto que Kier Gray co
mpartilhava com
o mais odioso dos homens, John Petty, a faculdade de pensar em s
ua presença sem
o menor desvio, de uma forma que fazia a leitura dos seus pensame
ntos praticamente impossível Só conseguia entender seus pensame
ntos superficiais, as palavras que
estava escrevendo. E sua impaciência pôde mais que seu interesse
pela carta.

- No meu quarto há um homem que tentou me assassinar! - explodiu


a garota.

Kier Gray levantou a vista. Seu rosto ostentava agora, claramente, u


ma expressão dura. As nobres qualidades do seu perfil perdiam-
se na expressão de força e autoridade da sua mandíbula. Kier Gray,
dono dos homens, olhava-a friamente. Sua voz e
sua mente estavam tão intimamente coordenadas quando falou, que
Kathleen duvidava até que ele tivesse pronunciado as palavras que
estava ouvindo.

- Um assassinato, hein? Continue!

O relato de tudo quanto havia acontecido desde que Davy Dinsmore


havia zomba-
do dela no terraço saiu paulatinamente dos seus lábios trêmulos.

- Então você crê que John Petty está por trás disso tudo? - pergunto
u.

- É o único que poderia fazê-


lo. A Polícia Secreta controla os homens que me vi-giam.

Gray assentiu lentamente e ela sentiu a leve tensão da sua mente.


Mas, não obstante, ele continuava pensando com calma, lentamente
.

- Então ele já chegou a... - disse com voz pausada. - John Petty aspi
ra ao poder
supremo e eu quase sinto pena dele, tão cego está das suas deficiê
ncias. Jamais um
Chefe de Polícia gozou da confiança do povo. Eu sou adorado e tem
ido, e ele é somente temido. E acredita que isto é o mais importante.

Os olhos castanhos de Gray fixaram-


se gravemente nos de Kathleen.

- Queriam matá-
la antes do dia fixado pelo Conselho, porque eu não poderia fazer
nada uma vez você morta. E minha incapacidade de lutar contra ele
rebaixaria, con-
forme pensava, meu prestígio junto ao Conselho. - sua voz havia bai
xado de tom e
dava a sensação de ter esquecido a presença de Kathleen e estar fa
lando consigo
mesmo. - E tinha razão. O Conselho ficaria contrariado se eu tentas
se um processo
pela morte de um slan. E, não obstante, não tomaria minha atitude c
omo uma prova
de que tinha medo. E significaria o começo do fim. A desintegração,
a formação de grupos que iriam-
se fazendo paulatinamente mais hostis uns contra os outros, enquan
to que os chamados realistas se apoderariam da situação e escolher
iam o provável vencedor, ou iniciariam aquelo jogo pouco agradável
de colocar as extremidades contra o meio. Como pode ver, Kathleen
- prosseguiu, depois de um breve silêncio, - é uma situação muito s
util e perigosa, porque John Petty, a fim de me desacre-
ditar, fez correr o boato de que tenho a intenção de conservar sua vi
da. Por conseguinte, e este é o ponto que poderia interessá-
la - e pela primeira vez um sorriso

apareceu nas feições suaves do rosto de Kier Gray, - minha vida e


minha posição dependem agora da possibilidade de conservar sua v
ida apesar de John Petty. Bem -

acrescentou, com um novo sorriso. - Que lhe parece nossa situação


política?
As aletas do nariz de Kathleen se dilataram em um gesto de despre
zo.

- Me parece que ele está louco em ir contra você, isto é o que eu pe


nso.

O rosto de Kier Gray apresentou uma expressão sorridente que aten


uou a dureza das suas feições.

- Nós os seres humanos às vezes devemos parecer muito estranhos


para vocês os
slans, Kathleen. Por exemplo, a forma como lhe tratamos. Sabe o m
otivo, não é verdade?

- Não - disse Kathleen movendo a cabeça. - Já li muitos pensament


os sobre nós e
ninguém parece saber porque nos odeiam. Parece que houve uma g
uerra entre os
slans e os seres humanos há muito tempo, mas já tinha havido outra
s guerras antes,
e as pessoas não se odiavam uma vez terminadas. Além disso corre
m horríveis histó-

rias que são absurdas demais para serem mais que espantosas me
ntiras.

- Já ouviu falar do que fazem os slans com os garotinhos humanos?


- perguntou ele.

- Esta é uma das mentiras - respondeu Kathleen desdenhosamente.


- Uma das asquerosas mentiras.

- Vejo que já ouviu falar - respondeu rindo. - Estas coisas acontecem


com os garotinhos. Que sabe você da mente de um slan adulto, cuj
a inteligência é de duzentos a
trezentos porcento a de um ser humano normal? A única coisa que s
abe é que eles
seriam incapazes de fazer essas coisas, mas você é somente uma g
arotinha. De
qualquer forma deixemos isto por ora. Você e eu agora estamos luta
ndo por nossas
vidas. O assassino provavelmente já escapou do seu quarto, mas vo
cê não tem mais
a fazer que analisar seu pensamento para identificá-lo. Vamos fazer-
lhe nossa exibi-

ção agora chamando Petty e o Conselho. Ficarão aborrecidos em se


rem arrancados
dos seus belos sonhos, mas que se aborreçam. Você fica aqui. Quer
o que leia seus
cérebros e me diga depois o que pensaram durante a investigação.

Apertou um botão em cima da mesa e voltando-


se para uma tela, disse:

- Diga ao capitão da minha guarda pessoal que venha ao meu gabin


ete.

III

Não era fácil ficar ali sentada sob as brilhantes luzes que haviam sid
o acesas. Os
homens a olhavam com excessiva frequência, com uma mescla de i
mpaciência e rigor na mente, e jamais uma centelha de piedade em
parte alguma. Com isso, o ódio
deles pesava sobre seu espírito e esmaecia a vida que palpitava por
seus nervos.

Odiavam-
na. Desejavam sua morte. Impressionada, Kathleen fechava os olho
s e procurava distrair sua mente como se por uma intensa força de v
ontade pudesse conseguir fazer seu corpo ficar invisível.

Mas havia tantas coisas em jogo que não se atrevia a perder um só


pensamento
ou imagem. Seus olhos e seu pensamento estavam completamente
alertas e não
perdia de vista nada daquilo tudo, a sala, os homens, todo o signific
ado da situação.

John Petty levantou-se de repente e disse:

- Me oponho à presença dessa slan entre nós, já que seu aspecto in


fantil e inocente poderia inspirar compaixão em alguns de nós.

Kathleen ficou olhando para ele. O Chefe da Polícia Secreta era um


homem corpu-
lento, com um rosto mais de corvo que de águia e muito carnudo, no
qual não se lia
o menor rastro de bondade. ”Ele pensa isto realmente?” se pergunto
u Kathleen. “Nenhum desses homens é capaz de sentir a menor pie
dade!”

Kathleen tentou ler através das palavras, mas sua mente estava apa
gada e no seu
duro rosto não havia a menor expressão. Achou ter captado um ligei
ro tom de ironia
e se deu conta de que John Petty compreendia perfeitamente a situ
ação. Era a luta
pelo poder e seu corpo e seu cérebro dependiam da mortal importân
cia do que estava em jogo.

Kier Gray sorriu e Kathleen captou no ato a onda da personalidade


magnética daquele homem. Havia nele uma certa qualidade do tigre
, algo imensamente fascinante, como uma auréola que lha dava um
a vida que ninguém mais naquela sala possu-

ía.

- Não creio que exista o perigo de que nossos... bondosos sentimen


tos predomi-nem sobre nosso senso comum.

- Exato! - interveio Mardue, Ministro dos Transportes. - O Juiz tem q


ue estar na presença do acusado... - calou-
se depois dessas palavras mas terminou a frase mentalmente - ...es
pecialmente quando sabe que a sentença é de morte.

- Eu quero que ela saia, além disto - prosseguiu John Petty, - porque
é uma slan e,
por Deus, não quero estar na mesma sala que uma slan.

O tumulto de vozes e a emoção coletiva que se seguiu a esta cham


ada popular foi
para Kathleen como um golpe físico. Por toda parte se gritava:

- Ele tem muita razão!

- Tirem-na daqui!

- Gray, você foi de uma ousadia sem limites ao despertar-


nos no meio de uma noite como esta...!

- O Conselho deliberou sobre o caso há onze anos. E eu só me intei


rei recente-

mente.

- A sentença foi de morte, não foi?

O tumulto de vozes atraiu uma gesto de contrariedade aos lábios de


Petty, que olhou para Kier Gray.

Os olhares dos homens se cruzaram como espadas no assalto preli


minar de um
duelo de morte. Para Kathleen foi fácil entender que Petty estava te
ntando criar a
confusão sobre o resultado. Mas se o próprio Chefe se sentia perdid
o, nada disto de-
latou em seu impassível rosto; nem o menor sinal de vacilação vibro
u em seu cérebro.

- Senhores, parece que não estamos nos entendendo. Kathleen, a sl


an, não está
aqui para ser julgada. Está aqui para declarar contra John Petty e po
rtanto compre-endo seu desejo de vê-la sair desta sala.

Kathleen analisou que o assombro de John Petty foi um pouco fingid


o. Sua mente
permaneceu muito calma, muito fria, e sua voz converteu-
se em um bramido de tou-ro.

- Isso é de uma ousadia inaudita! Levantou-


nos todos da cama às duas da manhã para dar-
nos a surpresa de uma acusação indigna, baseada no testemunho d
e uma
slan? Eu lhe digo que sua ousadia não conhece limites, Gray! E de
uma vez para
sempre, creio que deveríamos deixar bem assente o problema jurídi
co de se a palavra de um slan pode ou não ser considerada como pr
ova em julgamento.

Novamente a chamada aos ódios básicos. Kathleen estremeceu sob


as vibrações
das respostas que captou nos cérebros dos demais. Não havia espe
rança alguma
para ela, nem a menor oportunidade, somente a morte certa.

A voz de Gray era grave ao responder:

- Petty, creio que você deveria se dar conta de que não está falando
agora diante
de um punhado de camponeses sublevados pela propaganda. Seus
auditores são
gente realista e apesar de todos seus esforços para impor o resultad
o, dão-se conta
de que sua vida política, e por acaso também a física, estão em jogo
neste momento crítico que você, e não eu, nos impôs.

Seu rosto endureceu-


se e os músculos aumentaram sua tensão. Sua voz enrou-queceu.
- Espero que todos vocês despertem do seu sono, por profundo que
seja, e se da-rão conta de que John Petty só pretende destituir-
me e de que, qualquer um de nós
dois que ganhe, alguns de vocês estarão mortos antes que amanhe
ça.

Ninguém já estava mais olhava para Kathleen. Naquela sala subita


mente silenciosa, ela a tinha a sensação de estar presente mas já n
ão visível. Parecia como se lhes
tirassem um peso de cima e pela primeira vez podia ver, sentir e pen
sar com uma
clareza normal. O silêncio que reinava naquela sala era tanto mental
como fonético.

Durante alguns instantes os pensamentos dos presentes foram perd


endo a intensidade. Era como se tivesse sido levantada uma barreir
a entre seu cérebro e os dos demais, porque os pensamentos de to
dos estavam concentrados na análise da situa-

ção, compreendendo subitamente o perigo mortal que os ameaçava.

No meio da confusão de ideias Kathleen sentiu brotar uma ordem m


ental clara, imperativa:

“Sente-se na cadeira do canto onde não possam vê-


la sem voltarem a cabeça! Rá-

pido!”

Kathleen deu uma olhada em Kier Gray e em seus olhos viu que bril
hava uma chama, tal era a intensidade com que a olhava. E no ato a
fastou-se da sua cadeira sem fazer ruídos, obedecendo-lhe.

Ninguém notou sua falta, não se deram conta do seu ato. E Kathlee
n sentiu uma

onda de júbilo ao ver que mesmo naquele momento de forte tensão,


Kier Gray estava jogando suas cartas sem perda de ativos.
Claro - disse, - não há absoluta necessidade de executar ninguém, c
ontanto que
John Petty tire da cabeça, de uma vez por todas, o louco desejo de
me substituir.

Para Kathleen, era absolutamente impossível ler os pensamentos d


e alguem enquanto permanecia com a vista fixa em Kier Gray. Todos
estavam tão intensamente
concentrados quanto John Petty e Kier Gray, para saber o que diria
m e o que fariam.

Com um leve tom apaixonado de voz, Kier Gray prosseguiu.

- Digo louco porque, embora à primeira vista possa parecer uma me


ra rivalidade
pelo poder, há algo mais nisto. O homem que ostenta o supremo po
der representa a
estabilidade e a ordem. O homem que aspira a ele pode, no moment
o que o alcança, querer manter-
se em seu posto e isto significa execuções, desterros, confiscos, cár
ceres e torturas... tudo,naturalmente, aplicado àqueles que se havia
m opostos a ele
ou de quem desconfia. O antigo Chefe não pode passar a ocupar u
m posto subordinado; seu prestígio jamais desaparece - como atest
am Napoleão e Stalin - e, por
conseguinte, continuam sendo um perigo. Mas um provável candidat
o pode ser disci-
plinado e mantido em seu posto. Este era o meu plano para John Pe
tty.

Kathleen se deu conta de que aquilo era um apelo aos cautelosos in


stintos de todos eles, aos seus temores que a mudança poderia com
portar.

John Petty pôs-


se subitamente de pé. Por um momento abandonou sua guarda,
mas tão grande era sua raiva que para Kathleen foi impossível ler se
us pensamentos.
- Não creio ter ouvido jamais - explodiu - uma declaração tão extraor
dinária da
boca de um homem presumivelmente são. Me acusou de impor as d
ecisões. Senhores, observaram que até agora eu não tomei decisão
alguma, e que ele não mostrou
prova alguma? Só temos suas afirmações, e este dramático process
o que nos impôs à meia-
noite, quando a maioria de nós estávamos dormindo profundamente
. Devo
confessar que ainda não estou totalmente acordado, mas estou o su
ficiente para me
dar conta de que Kier Gray sucumbiu ao complexo que devora os dit
adores de todos
os tempos: a mania de perseguição. Para mim não cabe a menor dú
vida que há algum tempo via em todas nossas ações e palavras um
a ameaça contra sua posição.

Me seria difícil ocultar-


lhes meu desconsolo ante o que isto significa. Com a desesperada s
ituação criada pelos slans, como pode sequer insinuar que algum de
nós procura a desunião? Eu lhes digo, senhores, que nas atuais cir
cunstâncias não podemos
nem mesmo insinuar uma divisão. O público está ao corrente da mo
nstruosa atividade mundial dos slans contas as crianças humanas.
Sua tentativa de uniformizar a
raça humana é o mais grave problema ante o qual se encontra noss
o Governo.

Voltou-
se para Kier Gray e Kathleen sentiu um calafrio ao ver sua aparente
sinceridade na sua atuação perfeita.

- Kier, quisera poder esquecer o que você fez. Primeiro esta reunião,
depois a
ameaça de que antes do amanhecer alguns de nós podemos estar
mortos. Nestas circunstâncias só posso aconselhá-
lo que apresente sua demissão. Em todo caso, já
não goza da minha confiança.

- Como veem, senhores - disse Gray com um leve sorriso, - agora c


hegamos ao cerne do problema. Querem minha demissão.

Um rapaz alto e magro e com rosto anguloso levantou-


se e tomou a palavra:

- Estou de acordo com Petty. Seus atos, Gray, demonstraram que já


não é um homem responsável. Demita-se!

- Demita-se! gritou outra voz.

No ato, os gritos brotaram de todos os lados:

- Demita-se! Demita-se! Demita-se!

Os gritos e os ferozes pensamentos que os acompanhavam parecia


m a Kathleen,
que havia estado seguindo as palavras de John Petty com atenção c
oncentrada, o
princípio do fim. Transcorreu um longo momento antes que se desse
conta que dos
dez homens sentados somente quatro haviam armado a algazarra.

O cérebro de Kathleen fazia um doloroso esforço. Gritando várias ve


zes “Demita-
se”, eles haviam esperado afastar o perigo e no momento fracassav
am. A mente e os olhos de Kathleen fixavam-
se em Kier Gray, cuja presença de espírito havia evitado
que os demais gritassem também, presas do pânico. Só em vê-
lo sua coragem foi
devolvida, porque ele permanecia erguido em sua cadeira, alto, forte
, enérgico; e em seu rosto se esboçava um sorriso de ironia.

- É por acaso de se estranhar - perguntou pausadamente - que os q


uatro concor-
rentes jovens tenham ficado ao lado do Sr. Petty? Espero que os se
nhores presentes,
de mais idade, vejam claramente que se trata de uma organização p
reparada de antemão e que antes da manhã os pelotões de execuç
ão estarão funcionando, porque
esses jovens incendiários têm pressa em nos ver desaparecer, já qu
e, embora minha
idade seja semelhante às suas, eles me consideram um ancião. Tê
m ânsia de sacudir
a moderação que lhes impusemos e estão, claro, convencidos que f
uzilando os velhos não farão nada mais que acelerar em alguns ano
s o que a natureza teria, em
todo caso, realizado com o transcurso do tempo.

- Fuzile-os! - gritou Mardue, o mais velho dos presentes.

- Abaixo os jovens! - saltou Harlihan, Ministro do Ar.

Entre os anciãos circulou um murmúrio que Kathleen teria querido o


uvir se não tivesse estado tão concentrada nos impulsos, mais que
nas palavras. Reinava o ódio, o
medo, a dúvida, a arrogância, a decisão, tudo isto envolto em uma c
onfusão mental.

Levemente pálido, John Petty estava à frente do motim. Mas Kier Gr


ay levantou-se
lançando chamas pelos olhos, com um punho ameaçador.

- Senta-
te, louco delirante! Como te atreves a precipitar esta crise quando te
mos
que mudar toda nossa política para com os slans? Nós estamos per
dendo, sabia?

Não temos tido nem um só cientista que se medisse com a superiori


dade dos slans.
Quanto eu daria para ter um deles do nosso lado! Ter, por exemplo,
um slan como
Peter Cross, estupidamente assassinado há três anos porque a Polí
cia se deixou con-
tagiar pela mentalidade da plebe... Sim, eu disse “plebe”. Isto é o qu
e é o povo dos
nossos dias. Uma plebe, uma besta a quem temos ajudado com nos
sa propaganda.

Têm medo, um medo mortal por suas criancinhas, e não temos nen
hum cientista
que possa estudar objetivamente o problema. Na realidade não tem
os nenhum cientista digno deste nome. Que incentivo pode ser para
um ser humano passar toda sua
vida consagrado às pesquisas quando sabe com certeza que todas
as descobertas
que pode chegar a conseguir foram aperfeiçoadas pelos slans há m
uito tempo? Que
estão refugiados em suas cavernas secretas, ou escrevendo seus s
egredos em um
papel, preparados para o dia em que os slans façam sua nova tentat
iva de apoderar-
se do mundo? Nossa ciência é uma piada, nossa educação é um m
onte de mentiras.

E ano após ano as ruínas das aspirações humanas ao nosso redor.

A cada ano há mais miséria, mais desordem, mais desorientação. S


ó nos restou o
ódio, e o ódio não é suficiente para este mundo. Temos que acabar
com os slans ou
chegar a um acordo com eles e terminar esta loucura.

O rosto de Kier Gray estava congestionado pelo calor que havia pos
to em suas palavras. E Kathleen viu que enquanto as pronunciava, p
ermanecia perfeitamente tranquilo, cauteloso.
Mestre na demagogia, diretor de homens, quando falou novamente
sua voz lhe pareceu frouxa em comparação, seu timbre de barítono
soou claro e pausado.

- John Petty me acusou de querer conservar a vida desta garotinha.


Queria que
pensassem um pouco nos últimos meses transcorridos. Ou Petty os
fez observar constantemente, rindo-
se talvez, que eu queria conservar esta garotinha com vida?

Sei que sim, porque chegou aos meus ouvidos. Mas viram o que ele
fez, derramar
sutilmente o veneno. Suas mentalidades políticas lhes dirão o motiv
o que me obrigou a adotar esta posição; matando-
a, parece que me submeti e portanto perderei prestígio. Tenho porta
nto o propósito de ditar uma ordem dizendo que Kathleen Layton
não será executada. Tendo em vista nossa carência de c
onhecimentos sobre os
slans, ela será mantida viva como objeto de estudo. Eu, pessoalmen
te, estou decidido a tirar o melhor partido da sua presença, observan
do o desenvolvimento de um
slan durante o seu amadurecimento. Já tenho muitas notas com est
e objetivo.

- Não tente gritar comigo! - gritou John Petty que ainda estava de pé
. - Você já foi
muito longe. Quando menos esperarmos entregará aos slans um co
ntinente onde possam desenvolver suas assim chamadas super-
invenções das quais tanto ouvimos
falar, mas que nunca vimos. E quanto a Kathleen Layton, por Deus!
só a conservarão
viva por cima do meu cadáver. As mulheres slans são as mais perig
osas de todas.

São as que reproduzem a espécie, e conhecem seu ofício, por minh


a fé.
As palavras chegavam confusas para Kathleen. Pela segunda vez a
pareceu no seu cérebro a insistente pergunta mental de Kier Gray:

“Quantos dos presentes estão incondicionalmente ao meu lado? Us


e os dedos para responder”.

Kathleen endereçou-
lhe um olhar de perplexidade e depois submergiu-se no rede-
moinho de emoções e pensamentos que brotavam de todos os hom
ens. A coisa era
difícil, porque eram muitos e havia muitas interferências Por outro la
do, à medida que via a verdade, seu cérebro começava a debilitar-
se.

Tinha achado que até certo ponto os anciões estavam do lado do ch


efe, mas não
era assim. Em seus cérebros havia o temor, a crescente convicção d
e que Kier Gray
estava com os dias contados e que era conveniente para eles ficare
m do lado dos mais jovens, dos mais fortes.

Finalmente, desvanecida, levantou três dedos. Três sobre dez a fav


or, quatro definitivamente contra e com Petty, e três que vacilavam.

Não podia dar-


lhe essas últimas cifras porque sua mente só lhe havia pedido os
seus partidários. A atenção dele estava fixa naqueles três dedos, co
m os olhos abertos pelo temor. Por um breve instante Kathleen senti
u-o presa do pânico, mas sua
impassibilidade se impôs sobre sua atitude. Permaneceu sentado co
mo uma estátua de pedra, frio, com uma rigidez mortal.

Kathleen não conseguia afastar os olhos do chefe. Tinha a convicçã


o de que ele
era um homem encurralado, pronto, que espremia seu cérebro em b
usca de uma
técnica que lhe permitisse converter em vitória a derrota iminente. El
a lutava para
penetrar em seu cérebro, mas o férreo domínio dos seus pensament
os levantava uma barreira intransponível entre eles.

Mas naqueles pensamentos superficiais ela lia suas dúvidas, uma c


uriosa incerteza
sobre o que devia fazer, do que podia fazer, naquele momento. Tudo
aquilo parecia
indicar que não havia previsto uma crise daquelas proporções, uma
oposição organi-
zada, um ódio concentrado que esperava o momento de desencade
ar-se contra ele e derrubá-
lo. Os pensamentos de Kathleen cessaram quando ouviu John Petty
dizer:

- Creio que seria melhor passarmos à votação.

Kier Gray começou a rir com um sorriso forte, prolongado, que termi
nou com uma espécie de expressão de bom humor.

- Então quer passar à votação, um ponto que há pouco acabas de di


zer que eu

não havia sequer demonstrado que existisse? Me oponho, naturalm


ente, a apelar por
mais tempo à razão dos presentes. O tempo da razão já passou qua
ndo os ouvidos
se fazem de surdos, mas uma demanda de votação neste momento
é um reconhecimento implícito de culpabilidade, um ato visivelmente
arrogante, o resultado, sem
dúvida, da segurança dada por cinco, pelo menos, possivelmente m
ais, dos membros
do Conselho. Mas deixe que eu ponha minhas cartas na mesa. Já fa
z algum tempo
que estou ao corrente desta rebelião e estava preparado para fazer-
lhe frente.

- Bah! - exclamou Petty - Você está se gabando! Eu observei todos s


eus movimentos. Quando organizamos este Conselho tememos a e
ventualidade de que alguns dos
seus membros quisessem prescindir dos demais e as salvaguardas
que então preparamos ainda estão em vigor. Cada um de nós tem u
m Exército particular. Meus guardas estão agora patrulhando por est
e corredor, assim como as de todos os membros
do Conselho, dispostos a lançar-
se às gargantas dos demais quando receberem a ordem. Todos esta
mos dispostos a dar a ordem, e a perecer se for preciso lutar.

- Ah! disse Gray suavemente. - Finalmente estamos nos expondo.

Produziu-
se um rumor de pés que se agitavam e um torvelinho de pensament
os, e Kathleen sentiu-
se desfalecer ao ouvir Mardue, um dos três membros que acreditara
ser mais fiel a Gray, limpar a garganta para falar. Um só instante ant
es de falar, ela captou seus pensamentos.

- Realmente, Kier, creio que você cometeu um equívoco ao consider


ar-se como um
ditador. Você foi meramente eleito pelo Conselho e temos o perfeito
direito de eleger
outro em seu lugar. Outro, talvez, cuja organização para o extermíni
o dos slans seja mais efetiva.

Aquilo era uma vergonha. Os ratos estavam abandonando o navio q


ue devia nau-
fragar e tentando desesperadamente convencer os novos p
oderosos de que seu
apoio era importante. Também no cérebro de Harlihan o vento das id
eias sopravam
naquela direção: “Sim, sim. Sua ideia de chegar a um acordo com o
s slans é uma
traição, uma pura traição. Este é um tema intocável até ali onde afet
a a multi... as
pessoas. Devemos fazer o quanto seja possível pelo extermínio dos
slans e talvez
uma política mais agressiva por parte de um homem mais enérgico..
.”

Kier Gray sorria tristemente, e sempre a mesma questão ocupava s


eu cérebro... o
que fazer? o que fazer? Kathleen captava uma vaga sugestão de te
ntar algo mais,
mas nada tangível, nada claro chegava ao seu cérebro.

- De forma que - prosseguiu Kier Gray, sempre com voz pausada, -


vão entregar a
presidência deste Conselho a um homem que há poucos dias permit
iu que Jommy
Cross, garoto de nove anos, provavelmente o slan mais perigoso hoj
e em dia, escapasse no seu próprio carro.

- Pelo menos - disse John Petty, - haverá um slan que não escapará
. - Olhou com uma expressão de maldade para Kathleen e voltou-
se triunfante para os outros. - O

que devemos fazer é o seguinte: executá-


la amanhã, ou hoje mesmo, e ditar uma
providência dizendo que Kier Gray foi destituído porque havia chega
do a um acordo
secreto com os slans; como o fato de ter negado a execução de Kat
hleen demonstrava.

Era a sensação mais estranha que se podia imaginar: estar ali senta
da e ouvindo
discutir sua sentença de morte e, entretanto, não experimentava a m
enor emoção,
como se tratasse de uma pessoa totalmente alheia a ela. Sua mente
parecia distante, ausente, e o rumos de concordância que brotou de
todos os presentes também lhe pareceu deformado pela distância.

O sorriso desapareceu do rosto de Kier Gray.


- Kathleen - disse em voz alta e seca, - deixemos já deste jogo. Qua
ntos ficaram

contra mim?

A garota viu sua imagem borrada e, com lágrimas nos olhos, respon
deu quase sem se dar conta.

- Todos estão contra você. Sempre o odiaram porque é muito mais i


nteligente que eles, e porque acreditam que queria esmagá-
los para dominar e diminuir sua importância.

- De forma que a está utilizando para espionar-


nos! - exclamou John Petty com raiva, mas ao mesmo tempo com a
cento de triunfo. - Bem, em todo caso sempre é
agradável que pelo menos em um ponto estamos todos de acordo: q
ue Kier Gray está acabado!

- Nada disto - respondeu Gray suavemente - Estou tão em desacord


o com vocês
que dentro de dez minutos estarão todos em frente ao pelotão de ex
ecução. Duvidava em tomar tal medida radical, mas agora não exist
e outro caminho, nem é possível
voltar atrás, porque acabo de cometer uma ação irrevogável. Apertei
um botão avi-
sando aos oficiais de guarda, da vossa guarda pessoa, vossos mais
fieis conselheiros, e vossos herdeiros, que a hora é chegada.

Todos os presentes ficaram olhando-


o estupidamente, enquanto ele prosseguia:

- Compreendam, vocês não souberam ver que a natureza humana t


em um ponto
fraco. A ânsia de poder dos subalternos é tão forte como a de vocês.
A saída de uma
situação como a que se apresentou hoje se me ofereceu há algum t
empo, no dia em que o assessor do Sr. Petty veio encontrar-
me dizendo que sempre estaria encantado em substituí-
lo. Adotei portando a política de aprofundar mais o assunto e obtive r
esultados muito satisfatórios, dispondo que todos eles se encontrass
em no lugar da
cena no dia do 11º aniversário de Kathleen... Ah, aqui estão os novo
s conselheiros!

A porta abriu-
se violentamente e dez homens com revólveres na mão irromperam
na sala.

John lançou um grito agudo:

- Peguem seus revólveres!

- Eu não trouxe! - respondeu um lamento angustiado de outro dos pr


esentes.

E o eco dos disparos ressoou na sala como um trovão.

Os homens retorciam-se no chão, afogando-


se em seu próprio sangue. Kathleen
viu vagamente um dos conselheiros ainda de pé e com o revólver fu
megante na mão
e reconheceu John Petty. Ele havia disparado primeiro e o homem q
ue havia pensado em substituí-
lo jazia no chão, imóvel. O Chefe da Polícia Secreta levantou seu re
vólver, apontou para Kier Gray e disse:

- Eu o matarei antes que acabe comigo, a menos que façamos um tr


ato. Estou disposto a colaborar, naturalmente, uma vez que você ma
nobrou as coisas tão eficaz-mente.

O chefe dos insurgentes olhou interrogativamente para Kier Gray.

- Acabamos com ele, chefe? - perguntou.

Era um homem alto e magro, com nariz aquilino e voz de barítono. K


athleen tinha-o visto algumas rondando pelo palácio. Chamava-
se Jem Lorry. Nunca tentou ler seus
pensamentos, mas agora se dava conta de que ele tinha um control
e férreo das suas
ideias e desafiava qualquer invasão. Entretanto, o que se podia inter
pretar superficialmente do seu cérebro era suficiente para julgá-
lo tal como era: um homem duro, calculista e ambicioso.

- Não - respondeu Kier Gray pensativo - John Petty pode nos ser útil
. Terá que reconhecer que os demais foram executados como result
ado de uma investigação da
sua polícia, que descobriu acordos secretos com os slans. Esta será
a explicação que
daremos; sempre surte efeito sobre as massas ignorantes. Devemo
s esta ideia ao

próprio Petty, mas creio que nós mesmos teríamos sido capazes de
tê-
la. Sua influência até será útil para valorizar a ocorrência. Creio inclu
sive - acrescentou cinicamente

- que o melhor seria atribuir a Petty o mérito das execuções. Ou seja


, ele ficou tão
horrorizado ao ver aquela perfídia que trabalhou por sua própria inici
ativa e depois
me procurou para receber agradecimentos, e que eu, à vista das es
magadoras provas concedi-lhe no ato. Que lhe parece?

Jem Lorry avançou um passo.

- Bom trabalho. E agora há um ponto que eu queria deixar claro, e fa


lo em nome
dos demais conselheiros. Precisamos do seu cérebro, da sua terríve
l reputação e estamos dispostos a colaborar consigo em pró do bem
estar do povo. Em poucas palavras, ajudá-
lo a consolidar sua posição e torná-
la inatacável, mas não ache que pode
entrar em acordo com nossos oficiais para nos matar. Nisto você nã
o se sairia bem outra vez.
Considero supérfluo você me dizer uma coisa tão obvia - disse Gray
friamente. -

Tire toda essa sujeira daqui e venha, que temos que fazer alguns pl
anos. Você, Kathleen, vá para a cama. Já está a bom caminho...

Tremendo de emoção, Kathleen se perguntava: A caminho? Só quer


ia dizer apenas... Ou não?... Depois de todos os assassinatos de qu
e havia sito testemunha, não
estava segura dele, de nada. Demorou muito, muito, para poder con
ciliar o sono.

IV

Jommy Cross passava por longos momentos de escuridão e vazio


mental, dos
quais emergia finalmente uma luz fria de aço em que seus vagos pe
nsamentos te-
ciam uma tênue rede de realidade. Abriu os olhos, sentindo-
se profundamente fraco.

Estava em um pequeno quarto, contemplando o teto sujo do qual ha


viam se desprendido alguns pedaços de estuque. As paredes eram
de um cinza sujo, manchado
pelo tempo. O vidro da única janela estava rachado e descolorido e
a luz que penetrava por ela, caía, passando pelos pés da cama, em
um pequena bacia, onde ficava
imóvel como se esgotada pelo esforço. Os lençóis que cobriam a ca
ma eram os tra-
pos do que um dia foram cobertores cinzas. A palha saía pela extre
midade do velho
colchão e tudo despendia um cheiro a mofo e a quarto não arejado.
Apesar do esgotamento que sentia, Jommy afastou os lençóis e salt
ou da cama, e no ato ouviu um
tétrico ruído de cadeias e sentiu uma forte dor no tornozelo. Voltou a
deitar-
se aturdido, mancando pelo esforço. Estava acorrentado àquele leito
repugnante.
Uns passos fortes o despertaram do torpor em que havia caído. Abri
u os olhos e
viu uma mulher alta, com uma roupa cinza disforme, de pé no umbra
l, olhando-o com olhos agudos e muito penetrantes.

- Ah, o novo hóspede de Granny já saiu da sua febre e agora podem


os travar amizade! - disse - Bom! Bom! - esfregava as mãos produzi
ndo um ruído seco. - Vamos entender-
nos muito bem, não é verdade? Mas você tem que ganhar seu suste
nto.

Nada de aproveitadores com Granny. Não senhor! Teremos uma lon


ga conversa so-gre isto... É isso - acrescentou, olhando-
o de soslaio por cima das suas mãos juntas,

- uma longa conversa...

Jommy olhou para aquela mulher com uma espécie de fascinação r


epulsiva. Quando sua figura encurvada inclinou-
se sobre os pés da cama, Jommy encolheu os pés o
tanto que lhe permitiu a corrente, afastando-
se dela tudo quanto pôde. Ocorreu-lhe
pensar que jamais havia visto um rosto que expressasse exatament
e toda a maldade
do ser que se ocultava por trás daquela máscara de carne envelheci
da. Cada uma
das rugas daquele rosto repulsivo tinha sua contrapartida no cérebro
torturado. Todo
um mundo de vilania morava entre os confins daquela mente astuta.
Sem dúvida, as
sensações de Jommy se refletiram em seu rosto, porque a bruxa, co
m um súbito acento de selvageria, disse:

- Sim, sim, ao ver Granny agora, ninguém diria que em tempos atrás
foi uma famosa beldade. Jamais suspeitaria que os homens adorav
am a brancura da sua linda
cútis. Mas não esqueça que a velha bruxa salvou sua vida. Não se e
squeça, ou Granny pode entregar à polícia seu traseiro ingrato. E co
mo eles gostariam em tê-lo em
suas mãos! Mas Granny também quer ter o que eles querem e faz o
que pensa.

Granny! Podia-se por acaso prostituir-


se mais vilmente um nome afetuoso, que
chamando Granny àquela velha bruxa? Procurou em seu cérebro, te
ntando ler nele
seu verdadeiro nome. Mas só havia uma amálgama borrada de ima
gens de uma garota de teatro, estúpida, pródiga em seus encantos,
degradando-se até cair na sarje-

ta, aviltada e degenerada pela adversidade. Sua identidade estava p


erdida no pântano de todo o mal que havia feito e pensado. Havia u
ma interminável série de roubos.

Até o sombrio caleidoscópio dos crimes mais repugnantes. Havia ta


mbém um assassinato...

Tremendo, inconcebivelmente cansado agora daquele primeiro estí


mulo que a presença da velha havia despertado nele, Jommy retirou
-se do abominável ambiente
que representava a mente de Granny. A velha ruína inclinava-
se sobre ele, olhando-o
com olhos parecidos a brocas que penetravam os seus.

- É verdade - perguntou ela - que os slans podem ler os pensamento


s?

- Sim - respondeu Jommy. - E por isto vejo o que está pensando. Ma


s é inútil.

- Neste caso não está lendo o que há na mente de Granny - disse a


velha, rindo silenciosamente. - Granny não é boba. Granny é intelige
nte e sabe muito bem que não
pode obrigar um slan a trabalhar para ela. Para que faça o que ela q
uer tem que ser
livre. Sendo slan, verá que o lugar mais seguro para ele, até que ten
ha crescido, é este. E então, Granny não é inteligente?

Jommy suspirou, sonolento.

- Eu vejo o que há na sua mente mas não posso falar agora. Quand
o nós os slans
nos sentimos doentes, e isto não nos acontece frequentemente, só
podemos fazer
uma coisa: dormir, dormir... Me acordar da forma como você me aco
rdou significa que meu subconsciente me despertou advertindo-
me de que estava em perigo. Temos muitas proteções deste gênero.
Mas agora tenho que voltar a dormir e sentir-me bem.

Os frio olhos negros da mulher se arregalaram. Sua mente ganancio


sa agachou-se
aceitando a derrota em seu principal propósito de tirar proveito da su
a presa imediatamente. A cobiça converteu-
se momentaneamente em curiosidade, mas não tinha a
menor intenção de deixá-lo dormir.

- É verdade que os slans transformam os seres humanos em monstr


os?

A fúria apoderou-
se de Jommy. Seu cansaço desapareceu e ele sentou-
se na cama, presa da raiva.

- É mentira! Isto é uma dessas horríveis mentiras que os humanos di


zem de nós
para nos fazer passar por desumanos, para fazer com que todo mun
do nos odeie, nos mate! É...

Caiu novamente, extenuado, a sua ira desaparecendo.

- Meu pai e minha mãe eram as melhores pessoas deste mundo, e f


oram terrivelmente desgraçados. Encontraram-
se um dia na rua e leram em seus cérebros que os
dois eram slans. Até então tinham vivido na mais profunda solidão, s
em causar dano
a ninguém. São os seres humanos os criminosos. Meu pai não lutou
tanto como poderia ter feito quando o encurralaram para matá-
lo pelas costas. Teria podido lutar.

Devia ter lutado! Porque ele possuía a arma mais terrível que o mun
do jamais viu...

tão terrível que nunca a carregava por medo de fazer uso dela. Eu,
quando tiver quinze anos, tenho que...

Deteve-
se, assustado da sua indiscrição. Durante alguns momentos sentiu-
se esgotado, tão fraco que sua mente se negava a suportar o ritmo
dos seus pensamentos. Sabia que acabara de revelar o grande segr
edo da história slan e se aquela bruxa inquisitiva o entregasse à polí
cia em seu estado atual de debilidade física, tudo estava perdido.

Aos poucos foi respirando melhor. Viu que a mente da mulher não h
avia captado o
enorme significado da sua revelação. Compreendeu que ela não ha
via ouvido no momento em que mencionou a arma, porque sua men
talidade gananciosa estava muito
distanciada do seu principal propósito. E agora, como um abutre, lan
çava-se nova-

mente sobre sua presa que sabia estar exausta.

- Granny gosta de saber que Jommy é um garoto tão bom. A pobre e


velha Granny precisa de um jovem slan para fazê-
lo ganhar dinheiro para os dois. Não se importará de trabalhar para
a pobre Granny, não é verdade? Nós mendigos não temos esco-
lha... compreende? - acrescentou com voz dura.

Saber que seu segredo continuava guardado, trabalhou nele como u


ma droga.
Suas pálpebras se fecharam.

- Não posso falar com você agora - disse. - Preciso dormir.

Mas viu que não conseguiria. A velha já havia compreendido os pen


samentos que
o agitavam. Falou com voz vibrante, não porque se sentisse interess
ada, mas para não deixá-lo dormir.

- O que é um slan? Qual é a diferença entre nós? De onde veem os


slans, antes de tudo? Foram feitos... com máquinas, não?

Foi curioso ver a onda de raiva que despertou nele quando compree
ndeu qual era seu propósito. Deu-
se conta, vagamente, de que sua debilidade corporal cobrava for-

ças normais da sua mente. Com um aceno de ódio refreado, disse:

- Esta é outra das mentiras que se dizem! Eu nasci como qualquer o


utro ser. E

meus pais o mesmo. Fora isto, não sei de nada.

- Seus pais deviam saber.

- Não - respondeu Jommy balançando a cabeça e fechando os olho


s. - Minha mãe
disse que meu pai estava sempre muito ocupado para fazer averigu
ações. E agora
me deixe, sei o que você quer e o que está tentando fazer, mas não
é coisa honrada e eu não farei.

- Você é um estúpido! - uivou a mulher, indo diretamente ao tema. -


Não é honrado roubar as pessoas que vivem do roubo e do engano
? Granny e tu vão comer bicos
de pão quando o mundo é tão rico que os tesouros estão repletos d
e ouro, o trigo
não cabe nos silos e o mel corre pelas ruas? Ao inferno sua honra! I
sto é o que Granny diz. Como pode um slan, perseguido como um r
ato, falar de ser honrado?

Jommy permaneceu calado, não somente porque o sono o dominav


a, como também porque havia tido pensamentos semelhantes.

A velha prosseguiu:

- Para onde irá? Que fará? Quer viver na rua? E o inverno? Em que
lugar do mundo pode se refugiar um garoto slan? Sua pobre, sua qu
erida mãe - continuou, suavi-
zando o tom da voz em um intento de compaixão - teria querido que
você fizesse o
que estou lhe propondo. Ela não sentia amor algum pelos seres hu
manos. Eu conser-vei o papel para mostrar-
lhe como a mataram como a um cachorro quando tentou
escapar. Quer ver?

- Não! - exclamou Jommy, mas sua mente revolvia-se.

- Não quer fazer tudo o que puder contra um mundo tão cruel? - insi
stia a dura voz - Fazê-los lamentar o que fizeram? Não tem medo...?

Jommy permanecia silencioso.

A voz da velha converteu-se em um soluço.

- A vida é muito dura para a velha Granny... muito dura. Se não quis
er ajudar
Granny ela terá que continuar fazendo outras coisas. E você lê isto
em sua mente.

Mas prometo não fazer nunca mais se quiser ajudá-


la. Pense bem! Nunca mais haverá as coisas más que eu tive que fa
zer para viver neste mundo frio e malvado.

Jommy sentia-se derrotado e disse pausadamente:

- Você é uma miserável mulher asquerosa e algum dia eu a matarei.


- Então vai ter que ficar aqui até este “algum dia”! - exclamou Grann
y triunfante.

Retorceu os dedos ressecados que pareciam serpentes escamosas


se enroscando. -

Você fará o que lhe disse ou eu o entregarei à polícia, mas por enqu
anto.... Bem vindo a esta casa, Jommy, bem vindo! Se sentirá melho
r quando acordar, Granny assim o espera...

- Sim - respondeu fracamente Jommy. - Estarei melhor.

Três dias depois Jommy seguia a mulher atravessando a cozinha, at


é a porta traseira A cozinha era um lugar desnudo e Jommy procuro
u afastar da sua mente a sujeira e a desordem. A velha tinha razão,
pensou. Por horrível que a vida prometesse
ser, aquele antro perdido na sujeira e no esquecimento era o refúgio
ideal para um
garoto slan que tinha que esperar pelo menos seis anos antes de vis
itar o local oculto do segredos do seu pai; onde tinha que crescer an
tes de poder esperar levar a
cabo as grandes coisas que tinha que realizar. Seus pensamentos s
e desvaneceram
quando a porta se abriu e viu o que havia por trás dela. Parou em se
co, atônito pelo
espetáculo que se oferecia ante seus olhos. Jamais em sua vida hav
ia esperado ver uma coisa como aquela.

Primeiro havia um pátio, cheio de todo tipo de desperdícios, lixo e ve


lhos pedaços
de metal. Um pátio sem grama nem árvores, sem beleza alguma, u
ma extensão discordante e repulsiva de esterilidade, fechada por u
ma cerca de madeira quebrada e
arame. Na extremidade oposto ao pátio erguia-
se uma construção em ruínas da qual
chegou até ele a visão mental de um cavalo, vagamente visível atra
vés da porta fechada.
Mas o olhar de Jommy ia além do pátio. Seu olhar captava merame
nte os desagradáveis detalhes ao passar, mas nada mais. Sua imagi
nação, seus olhos, fixavam-se
agora em algo que havia além da destroçada cerca e da construção
em ruínas feita
de pranchas de madeira. Mais além havia árvores e grama; um belo
campo verde
que descia suavemente para um largo rio que reluzia melancólico, a
gora que o sol não o tocava com seus ardentes raios de fogo.

Mas mesmo o campo, que fazia parte de um campo de golfe, como


observou distraidamente, só reteve seu olhar por um instante. Uma t
erra de sonhos estendia-se
partindo da ribeira oposta do rio, um verdadeiro paraíso de vegetaçã
o. Devido a algumas árvores que impediam a visão, só podia ver um
a parte daquele Éden com
suas fontes cintilantes e seus quilômetros e quilômetros de flores, te
rraços e belezas.

Mas naquela estreita área visível havia um caminho branco.

Uma insuportável emoção apoderou-


se da garganta de Jommy ao ver aquele caminho que corria, forman
do uma linha geometricamente reta diante dos seus olhos.

Perdia-
se na nebulosa distância como uma fita brilhante que se perdesse n
o infinito.

E ali, ao fundo, muito além do horizonte normal, ele viu o Palácio.

Somente uma parte da base daquele imenso, daquele incrível edifíci


o sobressaía na linha do céu. Elevava-
se a uns trezentos metros, transformando-se em uma torre
que penetrava outros cento e cinquenta metros no céu. Torres formi
dáveis! Mais de
quatrocentos metros de uma joia de renda que parecia quase frágil,
reluzindo com todas as cores do arco-
iris, construção brilhante, translúcida, fantástica, construída
no estilo dos tempos passados, não meramente ornamental; em sua
própria concep-

ção, em sua delicada magnificência, era por si mesma um ornament


o.

Ali, naquela glória de triunfo arquitetônico, os slans havia


m criado sua obra prima... só para vê-
la cair nas mãos dos vencedores depois de uma guerra desastrosa.

Era lindo. Os pensamentos que evocava feria seus olhos, sua mente
. E pensar que
havia vivido durante nove anos tão perto daquela cidadela e jamais
havia visto o glo-
rioso triunfo da sua raça! Agora que tinha a realidade diante dos olh
os parecia-lhe

que as razões que teve sua mãe para não mostrá-


la eram errôneas: “Seria muito
amargo para você, Jommy, saber que o palácio dos slans pertence
agora a Kier Gray
e sua odiada raça. Além disto, nesta parte da cidade todos tomam pr
ecauções especiais contra nós. Você se dará conta disto muito brev
e”.

Mas não breve o bastante. A sensação de ter perdido algo lhe produ
zia um ardor
doloroso. Saber da existência daquele nobre monumento lhe teria d
ado coragem durante os momentos mais sombrios. Sua mãe havia l
he dito:

“Os seres humanos nunca saberão de todos os segredos deste edifí


cio. Existem
nele mistérios, corredores e locais esquecidos, maravilhas ocultas q
ue nem mesmo
os slans se lembram, embora de uma forma vaga. Kier Gray não se
dá conta disto,
mas todas as armas e máquinas, que tão desesperadamente os hu
manos têm procurado, estão enterradas naquele edifício”.

Uma voz estridente ressoou em seus ouvidos. Jommy afastou reluta


ntemente o
olhar daquela grandeza e se deu conta de que Granny estava ao se
u lado. Viu que
ela havia atrelado o velho cavalo ao maltratado carro de lixo.

- Não sonhe, desperte e tire essas estranhas ideias da cabeça - ord


enou-lhe. - O

palácio e seus campos não são para os slans. E agora entre debaix
o desta manta e
fique imóvel. No final da rua há um policial zeloso e não convém que
ele o ache ainda. Temos que nos apressar.

Os olhos de Jommy dirigiram ao palácio um último e prolongado olh


ar. Então o pa-
lácio não era para os slans! Sentiu uma estranha emoção. Algum dia
tinha que ir lá e
ver Kier Gray. E quando este dia chegasse.... Seu pensamento se d
eteve. Tremia de
ódio e furor contra o homem que havia assassinado seu pai e sua m
ãe.

O veículo arruinado estava entrando na cidade baixa. Rangia e bam


boleava pelas
mal pavimentadas ruas até que Jommy, meio levantado meio agach
ado no fundo,
teve a sensação de que lhe tiravam as roupas. Por duas vezes tento
u levantar-se, mas nas duas vezes a velha o golpeou com o chicote.

- Deite-
se! Granny não que que ninguém veja essas belas roupas que está
usando.
Cubra-se com esta manta.

A manta pertencia a Bil , o cavalo. O fedor que exalava por um mom


ento lhe deu náuseas. Finalmente o carro parou.

- Desça - ordenou-
lhe a velha - e entre neste armazém. Vi que sua jaqueta tem
grandes bolsos, então encha-
os de forma que não fiquem abaulados.

Aturdido, Jommy entrou no edifício. Andou por ali vacilante, esperan


do que uma
reação rápida das suas forças acabasse com aquela fraqueza anor
mal.

- Dentro de meia hora eu voltarei - disse finalmente.

O rosto de concupiscência da velha voltou-


se para ele. Seus negros olhos brilhavam.

- E cuidado para que não ser pego, tenha cuidado com o que pega.

- Não se preocupe - respondeu Jommy confiante. - Antes de pegar a


lguma coisa
verei no meu cérebro se alguem está olhando, é simples.

- Bom! - exclamou Granny, tentando sorrir. - E não se preocupe se G


ranny não estiver aqui quando você voltar. Ela vai à loja de bebidas
buscar um remédio. Pode-se
permitir beber, agora que tem um jovem slan às suas ordens... Oh, n
ão precisa muito, só um pouquinho para esquentar seus velhos osso
s! Sim, Granny tem que fazer uma boa provisão de remédios.

Um terror alheio a ele o invadiu enquanto ia se misturando à multidã


o que entrava e saía daquele armazém do arranha-
céu; um terror anormal, exagerado. Parecia que
a excitação, o desfalecimento e a incerteza o arrastavam ao mesmo
tempo que aquela corrente humana. Fazendo um esforço reagiu.
Mas durante aquela imersão havia captado a razão do terror das ma
ssas. As execuções no palácio! John Petty, o Chefe da Polícia Secre
ta, havia descoberto que dez
conselheiros estavam em conivência com os slans e os havia execut
ado! O povo não
conseguia acreditar. Tinham medo de John Petty, desconfiavam dele
. Graças a Deus
que Kier Gray estava ali, forte como uma rocha, para protegê-
los do slans... e contra o sinistro John Petty.

No armazém a situação piorara. Havia mais gente. Enquanto Jomm


y seguia abrindo passagem entre a multidão e avançando sob o bril
ho dos tetos iluminados, as
ideias iam penetrando seu pensamento Um maravilhoso mundo de
mercadorias em
enorme quantidade o rodeava, e pegar o que queria era mais fácil d
o que acreditou
a princípio. Passou por uma seção de joalharia e apoderou-
se de uma joia marcada
com cinquenta e cinco dólares. Sentiu o impulso de entrar na joalhar
ia mas captou o
pensamento da vendedora e se absteve. A moça manifestava hostili
dade à ideia de

que um garotinho entrasse na joalharia. Os garotinhos não eram be


m vistos naquele mundo de pedrarias e metais preciosos.

Jommy afastou-
se, passando ao lado de um homem alto, de boa aparência, o qual
nem sequer lhe dirigiu um olhar. Jommy continuou avançando algun
s passos mas se
deteve. Uma impressão como jamais havia experimentado penetrou
nele como um
punhal. Foi como se uma faca lhe cortasse o cérebro, doloroso, e nã
o obstante não
era desagradável. O assombro, o júbilo, a emoção, ardiam nele enq
uanto se voltava e olhava para aquele homem que se afastava.
Aquele alto e distinto estrangeiro era um slan! A descoberta era tão i
mportante
que depois da primeira impressão seu cérebro se acalmou. A calma
básica da sua pa-
cífica mente de slan não estava alterada, mas sentia uma ânsia, um
ímpeto jamais igualado até então. Pôs-
se a andar apressadamente atrás do homem. Projetou seu
pensamente tentando estabelecer contato com o cérebro do descon
hecido, mas não
conseguiu e então franziu o cenho. Via claramente que ele era um sl
an, mas não
conseguia penetrar senão superficialmente na mente do forasteiro.
E esta superfície
não revelava que ele se houvera dado conta de Jommy, nem o men
or indício de que captasse pensamentos alheios.

Havia ali um mistério. Há pouco dias foi-


lhe impossível ler além da superfície da
mente de John Petty e não obstante jamais havia pensado que John
Petty fosse outra coisa mais que um ser humano normal. Era-
lhe impossível explicar a diferença.

Exceto quando sua mãe conservava seus pensamentos a salvo de i


ntrusões, sempre havia sido capaz de fazê-
la captar suas vibrações diretas.

A conclusão era impressionante. Significava que ali havia um slan in


capaz de ler
mentes e que entretanto preservava seu cérebro de ser lido. Preserv
ava de quem?

Dos outros slans? E que tipo de slan era ele que não podia ler os pe
nsamentos?

Já estavam na rua e ter-lhe-ia sido fácil correr e reunir-


se com aquele slan em
pouco tempo. Quem daquela multidão egoísta e abstraída se daria c
onta de que havia um garotinho correndo? Mas ao invés de encurtar
a distância que o separava do
desconhecido, deixou que aumentasse. Todas as raízes lógicas da s
ua existência estavam ameaçadas pela situação criada por aquele sl
an. Toda a educação hipnótica
que seu pai havia empregado em sua mente se rebelava e prevenia
qualquer ação precipitada.

A uma certa distância do armazém o desconhecido entrou em uma l


arga rua lateral; estranhando, Jommy o seguiu. Estranhando, porqu
e sabia que aquela era uma
rua sem saída, uma rua não residencial. Avançaram por uma, duas,
três quadras. O

slan dirigia-
se para a Controle Aéreo, que com seus edifícios, fábricas e campos
de aterrizagem encontrava-
se naquela parte da cidade. Aquilo era impossível. Era proibido sequ
er aproximar-
se do Controle Aéreo sem tirar o chapéu para provar que não
existia sinais de tentáculos de um slan.

Mas o slan dirigia-


se diretamente para a resplandecente placa onde havia escrito

“Controle Aéreo”, e entrou sem vacilar pela porta giratória.

Jommy se deteve. O Controle Aéreo, que dominava toda a indústria


aérea da face
do globo! Era possível que os slans trabalhassem ali? Era possível q
ue no próprio
centro daquele mundo humano que os odiava com uma ferocidade i
nimaginável os
slans controlassem o sistema de transportes mais importantes do m
undo inteiro?

Entrou deliberadamente pela porta e acessou inúmeras outras que o


levaram a um
corredor de mármore. No momento não havia ninguém à vista, mas
captava leves
pensamentos que iam aumentando seu crescente assombro e estra
nheza.

Aquele lugar estava lotado de slans! Devia haver dezenas, centenas


deles!

Abriu-
se uma porta e por ela saíram dois homens com a cabeça descobert
a que di-

rigiram-
se para ela. Conversavam tranquilamente e inicialmente não se dera
m conta
da sua presença. Jommy teve tempo de captar seus pensamentos s
uperficiais e viu
que experimentavam uma confiança plena, não sentiam o menor te
mor. Dois slans,
em pleno início da sua maturidade e sem nada na cabeça!

Sim, nada na cabeça. Foi isto principalmente que penetrou no céreb


ro de Jommy,
acima de tudo. Sem nada na cabeça... e sem tentáculos!

No momento lhe pareceu que seus olhos deviam estar brincando. S


eu olhar bus-
cou em vão pelas pequenas gavinhas douradas que deveriam estar
ali. Slans sem gavinhas! Então era isto! Aquilo explicava porque não
podiam ler seus pensamentos. Os
dois homens estavam somente a poucos passos deles quando se d
eram conta da sua presença e se detiveram.

- Rapaz, você tem que sair daqui. Não é permitido a entrada de cria
nças. Vá logo.

Jommy inspirou profundamente. A reclamação suave era tranquiliza


dora, especialmente agora que o mistério estava explicado. Era mar
avilhoso ver que com a simples
supressão dos tentáculos delatores eles pudessem viver e trabalhar
em total segurança no próprio centro dos seus inimigos. Com um ge
sto exagerado, quase melo-dramático, tirou o gorro.

- Perdoem - disse. - Sou...

As palavras apagaram-
se nos seus lábios. Olhou para os dois homens com olhos
arregalados pelo medo. Porque depois de um momento de assombr
o descontrolado, suas cortinas mentais fecharam-
se hermeticamente. Mas seus sorrisos eram amistosos.

- Então! Mas isto é uma surpresa! - disse um deles.

- Uma surpresa francamente agradável! - repetiu o outro. - Bem vind


o, garoto!

Mas Jommy já não ouvia. Sua mente estremecia sob a impressão d


os pensamentos que haviam brotado dos cérebros dos dois homens
durante o breve período em
que viram os reluzentes tentáculos dourados em seu cabelo.

“Meu Deus - pensou o primeiro, - é uma víbora!”

E o outro teve um pensamento totalmente frio, implacável.

“Temos que matá-lo!”

VI

A partir do momento em que captou os pensamentos dos dois home


ns, para Jommy não se tratava da questão do que tinha que fazer e
sim de que se teria tempo de
fazer. Nem a estupefaciente surpresa da sua inimizade assassina af
etou basicamente suas ações nem seu cérebro.

Sabia, sem sequer precisar pensar, que tentar superar os cem metro
s de corredores de mármore era um suicídio. Suas pernas de garoti
nho de nove anos não poderiam jamais competir com as dos slans e
m pleno vigor da juventude. Só havia uma
coisa a fazer e ele a fez. Com sua agilidade de garoto, deu um salto
de lado e lan-

çou-se para uma das cem portas que havia no corredor.

Por sorte as portas não estavam fechadas e diante do seu furioso im


pulso uma porta abriu-
se com surpreendente facilidade, mas tal foi a precisão da sua ação,
que a porta abriu-se apenas o estritamente necessário para dar-
lhe passagem. Viu um
segundo corredor iluminado, carente de vida, e voltou a fechar a por
ta procurando
pela fechadura com dedos incertos. A trava do ferrolho fechou-
se com um ruído seco que ressoou pelo corredor.

No mesmo instante, dois corpos se lançaram violentamente contra a


porta, mas
esta nem sequer estremeceu. Jommy se deu conta da realidade. A p
orta era de metal maciço, capaz de resistir aos ataques de um ariete
, mas tão perfeitamente equili-
brada que pareceu sem peso sob seus dedos. No momento ele esta
va a salvo.

Sua mente abandonou a concentração e tentou estabelecer contato


com os dois
slans. A princípio lhe pareceu que a cortina mental era muito sólida,
mas depois sua
força exploradora captou uma sensação de medo e ansiedade tão te
rrível que era
como uma faca que furasse a superfície dos seus pensamentos.

“Deus todo poderoso! - exclamava um deles - Toque a campainha d


o alarme, logo!

Se essas víboras descobrirem que controlamos as vias aéreas...!”


Jommy não perdeu nem um segundo a mais. O ápice menor de curi
osidade o in-
duzia a ficar, a averiguar a causa daquele ódio encarniçado dos slan
s sem tentáculos
contra os verdadeiros slans, mas ante a ordem do senso comum, a
curiosidade cedeu. Deitou-
se a correr com tanta rapidez quanto lhe foi possível, consciente de
que tinha que fazê-lo.

Logicamente, sabia que não podia considerar-


se seguro naquele labirinto de corredores. De um momento para out
ro podia abrir-
se uma porta, e algumas ligeiras vibrações o advertiam da presença
de alguem dobrando uma esquina. Com um rápida
decisão, deteve sua corrida e tentou abrir algumas portas. A quarta c
edeu ao seu
empurrão e Jommy cruzou o umbral com uma exclamação de triunfo
. Na parede logo à frente, no quarto, havia uma alta e larga janela.

Abriu-a imediatamente e aproximou-


se do parapeito. Agachando-se o quanto pôde, aproximou-
se. Sob o resplendor da luz que saía das demais janelas do edifício
ele viu um espécie de caminho estreito entre os altos muros de ladril
ho. Vacilou por
um instante e depois, como uma mosca humana, começou a subir p
elo muro. Subir

era relativamente fácil; seus ágeis e fortes dedos procuravam, com


ágil certeza, os
pontos salientes da superfície. A escuridão que ia aumentando à me
dida que subia
aumentava também sua confiança. Acima havia quilômetros e telhad
os e, se bem recordava, os edifícios do aeródromo conectavam-
se uns aos outros. Que poderiam fazer o slans incapazes de ler pen
samentos contra um que podia evitar todas suas armadilhas?

O trigésimo e último andar! Com um suspiro de satisfação Jommy fic


ou de pé e co-
meçou a andar pelo telhado. Já era quase de noite, mas ainda podia
ver a distância
que separava o teto em que se encontrava do edifício antigo. Adema
is um salto de
dois metros era uma coisa fácil! Os pesados sinos do relógio de um
a torre vizinha co-
meçaram a dar a hora. Uma, duas... cinco... dez! E ao ouvir a última
badalada um
ruído estridente chegou aos ouvidos de Jommy e subitamente, no e
scuro centro da
superfície do telhado viu uma larga abertura. Surpreso, deitou-
se no solo prendendo a respiração.

E daquela abertura negra saiu velozmente um tipo de torpedo que la


nçou-se para
o firmamento estrelado. Sua velocidade foi aumentando paulatiname
nte e, ao alcan-

çar o extremo limite da visão, da sua parte posterior brotou um dimin


uto ponto luminoso brilhante. Brilhou durante um momento e desapa
receu, como uma estrela tra-gada pela distância.

Jommy permanecia absolutamente imóvel, tentando seguir com os o


lhos a estranha nave aérea. Uma nave espacial. Uma nave espacial,
valha-me o Céu! Aqueles
slans sem tentáculos haviam conseguido o sonho de todos os temp
os... voar até os
planetas? Se era assim como haviam conseguido ocultar o segredo
dos seres humanos? E que estavam fazendo os verdadeiros slans?

O ruído metálico chegou novamente aos seus ouvidos. Aproximou-


se da borda da
abertura e olhou. Mas só pôde ver que a abertura negra diminuía de
tamanho e
duas grandes folhas metálicas que se aproximavam uma da outra e
que ao fechar-se
deixaram novamente o teto intacto. Esperou por um tempo e depois,
usando seus
músculos, saltou. Somente um propósito ocupava agora a sua ment
e: ir novamente
ao encontro de Granny pelos becos escuros, porque a facilidade co
m que havia fugido dos slans podia parecer suspeita. A menos, claro
, que eles não se atrevessem a
por em jogo suas precauções por medo de trair um segredo ante os
seres humanos.

Qualquer que fosse a razão, era obvio que naquele momento tinha u
ma necessidade imperativa de encontrar o sórdido refugio da casa d
e Granny. Não sentia o desejo
de resolver um problema tão complicado que tinha se tornado o triân
gulo: slan-humano-
sem tentáculos. Pelo menos não antes que tivesse crescido e fosse
capaz de
se equiparar com os potentes cérebros que estavam combatendo na
quela incessante e mortífera batalha.

Sim, voltar para Granny pelo caminho do armazém, a fim de pegar a


lgum atributo
de paz que pudesse oferecer à velha bruxa, agora que sabia que ch
egaria tarde. E tinha que se apressar, pois o armazém devia fechar
às onze horas.

Já no armazém, Jommy não se aproximou da seção de joalharia por


que a empregada que não deixava os garotos entrarem ainda estav
a lá. Havia também outras se-

ções de luxo e subutilizou la creme dos seus melhores artigos. No


entanto, tomou
nota mentalmente de que se tivesse que voltar àquele armazém no f
uturo, tinha que
estar nele antes das cinco horas, que era quando o pessoal trocava
de turno, do contrário aquela moça poderia criar-
lhe algum contratempo.

Já repleto de mercadorias roubadas, dirigiu-


se cautelosamente para a saída mais
próxima e se deteve para deixar passar um homem robusto e barrig
udo que cruzou por seu caminho. O homem era o caixa-
chefe do armazém e estava pensando nos

quatrocentos mil dólares que naquela noite teria no fluxo de caixa. N


a sua mente havia também a combinação do cofre forte.

Jommy se apressou, mas estava desgostoso pela sua falta de previ


são. Que idioti-
ce ter roubado objetos que teriam que ser vendidos com todos os ris
cos imagináveis, quando tão fácil teria sido apoderar-
se de todo dinheiro que quisesse!

Granny ainda estava onde a havia deixado, mas na sua mente havia
um tal rede-
moinho de pensamentos que Jommy teve que esperar que ela falas
se para saber o que desejava.

- Pronto! - disse ela. - Meta-


se em baixo da manta! Havia um policial que estava
vigiando o que Granny fazia.

Deviam ter percorrido pelo menos uma milha antes que a velha leva
ntasse a manta lançando um ronco.

- Ouve, patife desgraçado! - disse. - Onde você tinha se metido?

Jommy não perdeu tempo respondendo. Seu desprezo era muito gr


ande para falar
mais que o necessário. Estremeceu ao ver a cobiça com que ela co
ntemplou o tesouro que verteu em seu regaço. Ela avaliou cada obje
to rapidamente e ocultou tudo no fundo falso que tinha no carro.

- Pelo menos duzentos dólares para a velha Granny - disse alegrem


ente. - O velho
Finn lhe dará pelo menos isto. Ah, Granny foi inteligente pescando o
jovem slan! Ganhará não dez mil, mas vinte mil por ano... E pensar
que só ofereciam dez mil dólares de recompensa! Deveria ter sido u
m milhão!

- Posso até fazer melhor que isto - disse voluntariamente Jommy. Lh


e pareceu que
podia fazer o mesmo no cofre forte e que não havia necessidade alg
uma de cometer
mais furtos no armazém - No cofre há pelo menos quatrocentos mil -
explicou - Posso pegá-
los esta noite. Subindo pela parte de trás do edifício, quando for de
noite,
até uma das janelas, posso fazer um buraco no vidro... tem alguma
coisa para cortar vidros pelo menos?

- Granny procurará um! - exclamou a velha em êxtase, balançando p


ara a frente e
para trás, impulsionada pelo júbilo. - Oh, oh, como Granny está cont
ente! Mas Granny vê agora porque os humanos matam os slans. Sã
o muito perigosos. Podem roubar todo mundo...! Aliás, tentaram, sab
e, no começo...

- Não sei muita coisa sobre isso... - balbuciou Jommy lentamente. S


entia o desesperado desejo de que Granny soubesse tudo, mas via
que não era assim. Em sua
mente só havia o vago conhecimento daquele remoto período em qu
e os slans, ou
pelos menos assim acusavam os humanos, tentaram conquistar o m
undo. Mas ela
não sabia mais que ele, nem que toda aquela vasta massa ignorant
e do povo.

Qual era a verdade? Havia existido alguma vez uma guerra entre os
Slans e os seres humanos? Ou tratava-
se meramente da mesma propaganda que acusava os slans
de fazerem coisas horríveis com os garotinhos? Jommy viu que Gra
nny tinha voltado a pensar no dinheiro do armazém
- Somente quatrocentos mil dólares? - perguntou com voz rouca. - M
as eles ga-nham centenas de milhares todos os dias... milhões!

- Não guardavam tudo no armazém - mentiu Jommy, e viu com alívi


o que a velha aceitava sua explicação.

Enquanto o carro continuava avançando, Jommy pensou em sua me


ntira. Ele a havia dito quase que automaticamente. Agora via ser nec
essário se proteger. Se fizesse
a velha muito rica, ela não tardaria em pensar em delatá-
lo. Era absolutamente im-
prescindível que durante aqueles seis anos pudesse viver no antro
de Granny. A
questão que se apresentava portanto era: com quanto ela se conten
taria? Tinha que
achar um termo médio entre sua insaciável cobiça e suas próprias n
ecessidades.

Mas pensar naquilo aumentava os perigos. Naquela velha havia um


incrível egoís-
mo com um lado de covardia que poderia engendrar uma corrente d
e pânico que a induziria a aniquilá-
lo antes que ele pudesse se dar conta da ameaça. Disto não restava
dúvida. Entre os imponderáveis perigos conhecidos que ameaçava
m aqueles
preciosos seis anos que o separavam da poderosa ciência do seu p
ai, aquela repugnante pilantra aparecia como o mais perigoso e ince
rto fator.

VII

A aquisição de dinheiro corrompeu Granny. Às vezes ela desapareci


a por dias inteiros e quando voltava Jommy verificava, pela sua conv
ersa incoerente, que ele finalmente estava frequentando os lugares
de prazer pelos quais tanto tempo suspirara.

Quando estava em casa, a garrafa era sua companheira inseparável


. Precisando dela, Jommy cozinhava para mantê-
la viva apesar dos seus excessos. Quando ficava sem
dinheiro, Jommy se via obrigado a roubar de vez em quando, mas o
resto do tempo afastava-se constantemente do seu caminho.

Dedicava uma grande parte do tempo livre aperfeiçoando sua educa


ção, o que não
era uma coisa fácil. A zona onde ele vivia era miserável e a maioria
dos habitantes
era gente sem educação, muitos deles analfabetos, mas havia algun
s com uma mentalidade aberta. Jommy procurou saber quem eram,
o que faziam e o que sabiam, in-formando-
se sobre eles. Para todo mundo ele era o neto de Granny. Uma vez
este fato aceito, muitas dificuldades se resolveram.

Havia gente, claro, que receava um parente da velha mendiga, consi


derando-o in-
digno de confiança. Alguns indivíduos que haviam sentido o aguilhã
o da língua aguda de Granny eram-
lhe visivelmente hostis, mas suas reações se limitavam a ignorá-lo.

Outros estavam ocupados demais para se lembrarem de Granny ou


dele.

Sem agir de uma forma manifesta, Jommy conseguiu, entretanto, ch


amar a aten-

ção de alguns. Um jovem estudante de engenharia, que o chamava


de “canalha maldito”, ensinou-
lhe entretanto a ciência da engenharia. Jommy leu em sua mente qu
e
ele tinha a sensação de ir aperfeiçoando seus conhecimentos e com
preendendo seu
discípulo, inclusive algumas vezes se jactava de ter conhecimentos t
ão profundos de
engenharia que era capaz de ensinar a um garoto de dez anos. Jam
ais adivinhou o motivo da precocidade do rapaz.
Uma mulher que havia viajado muito antes de se casar e que agora
se encontrava
em más circunstâncias, vivia a meio quarteirão da sua casa e algum
as vezes lhe dava
de comer enquanto explicava com apaixonado ardor, o mundo e as
pessoas tal como
ela os havia visto. Jommy se via obrigado a aceitar o suborno porqu
e do contrário a
mulher poderia suspeitar. Mas jamais existiu no mundo uma fofoquei
ra com um ouvido mais atento ao que se falava que a Sra. Hardy. A
Sra. Hardy era uma mulher de
rosto afilado, amarga, cujo marido a havia arruinado no jogo, perden
do tudo quanto
possuía, e que havia viajado pela Europa e pela Asia, e que conserv
ava por trás dos
seus penetrantes olhos uma grande quantidade de detalhes. Conhe
cia também, vagamente, o passado desses povos.

Tempos atrás - pelo menos assim tinha ouvido falar - a China havia
sido densamente povoada. A história referia que guerras sangrentas
tinham, há muito tempo,
dizimado as zonas mais povoadas. Essas guerras, ao que parece, n
ão eram de origem slan. Somente a partir dos últimos cem anos foi
que os slans haviam fixado sua
atenção nos garotinhos chineses e de outros povos orientais, desper
tando assim a
inimizade dos povos que até então os haviam tolerado. Tal como ex
plicava a Sra.

Hardy, aquela pareceu uma ação mais insensata dos slans. Jommy
escutava e grava-
va na memória o fato, convencido de que a explicação não podia ser
tal como a apresentavam, perguntando-
se de onde viria a verdade e decidido a expor todos esses fatos à lu
z algum dia.
O estudante de engenharia, a Sra. Hardy, um farmacêutico que havi
a sido piloto
de foguete e mecânico de rádio e TV, e o velho Darrett, foram as pe
ssoas que o edu-
caram, sem se dar conta disto, durante os dois primeiros anos que p
assou na casa
de Granny. De todo esse grupo, o velho Darrett era o preferido de Jo
mmy. Era um
homem alto, solitário e cínico, de setenta e tantos anos, que havia si
do professor de
história, mas este era meramente um dos muitíssimos assuntos sobr
e os quais ele era uma inesgotável fonte de conhecimentos.

Era obvio que cedo ou tarde o homem teria que por sobre a mesa o
tema da guerra com os slans. Tão obvio que Jommy se permitiu não
fazer caso da primeira alusão
a elas, como se o tema não o interessasse. Mas em uma tarde no in
ício do inverno
falou delas novamente, como Jommy havia esperado, e desta vez di
sse:

- Você está falando sobre guerras. Não podem ter sido guerras, pois
essas pessoas não são nada mais que uns foras-da-
lei. Não se pode fazer guerra com os foras-da-lei e sim exterminá-
los.

Darrett enrijeceu-se.

- Foras-da-
lei?! - disse. - Garoto, aqueles foram grandes tempos. Pois eu lhe di
go
que cem slans praticamente se apoderaram do mundo. Tudo tinha si
do maravilhosamente planejado e executado com a maior ousadia.
Você tem que levar em conta
que o homem como, como massa, nunca faz o seu próprio jogo e si
m o de alguem.
Ele se vê preso em uma armadilha da qual não pode escapar. Perte
nce a um grupo;
é membro de uma organização; é leal às ideias, aos indivíduos e a c
ertas zonas geo-gráficas. Se você consegue tornar-
se dono das instituições que eles apoiam... terá
conseguido o método.

- E os slans o fizeram? - perguntou Jommy, com uma intensidade qu


e surpreendeu
a ele mesmo, talvez demasiadamente reveladora dos seus sentimen
tos. Mudando de tom, apressou-
se a acrescentar: - Tudo isto é somente uma história. É mera propa-
gando para nos assustar, como você disse frequentemente de outra
s coisas.

- Propaganda?! - explodiu Darrett, mas permaneceu silencioso. Seu


s grandes olhos
negros e expressivos estavam quase ocultos sob seus longos cílios.
Finalmente falou
em voz pausada: - Quero que você entenda isto, Jommy. No mundo
reinava a confusão e o terror. Por todas as partes as crianças huma
nas eram submetidas à tremenda
campanha dos slans para fazer mais slans. A civilização começou a
impor-se. Havia
uma enorme quantidade de dementes, de suicídios, assassinatos, cr
imes; o gráfico
do caos alcançou alturas incomensuráveis. E em uma manhã, sem s
aber como a coisa tinha acontecido, a raça humana despertou para
dar-se conta de que durante a
noite e até de manhã o inimigo havia se apoderado do controle do m
undo. Trabalhando de dentro, os slans haviam conseguido se apode
rar da chave de inúmeras organizações. Quando você conseguir ent
ender a rigidez da estrutura institucional da
nossa sociedade, se dará conta de quão desamparados estavam os
seres humanos a
princípio. Minha própria opinião pessoal é que os slans teriam conse
guido seu objetivo se não fosse por uma razão.
Jommy escutava em silêncio. Tinha uma triste premonição do que s
e aproximava.

O velho Darrett prosseguiu:

- Eles continuaram tentando implacavelmente criar slans com as cria


nças humanas. Vendo em retrospecto parece um pouco estúpido.

Darrett e os outros foram somente o começo da sua instrução. Segu


iu homens
doutos pelas ruas, captando superficialmente seus pensamentos. As
sistia telepatica-
mente a conferências, dispunha de muitos livros, mas livros não era
m suficientes. Tinham que ser interpretados, explicados. Eram livros
de matemática, de física, de quí-

mica, de astronomia, de todas as ciências. Sua vontade não tinha li


mites. Nos seis
anos que se passaram entre o seu novo e seu décimo quinto aniver
sário, aprendeu o
que seu pai lhe havia prescrito, como instrução básica de um slan a
dulto.

Durante aqueles anos observou cautelosamente os slans sem tentá


culos, à distância. Toda noite, às dez horas, suas naves especiais su
biam para o céu; era um ritual
seguido com uma exatidão matemática. Toda noite, às duas e trinta,
outro monstro
em forma de tubarão descia do céu, desaparecendo como um fanta
sma no teto do alto edifício.

Somente duas vezes durante todos aqueles anos o tráfego foi suspe
nso, e cada
vez durante um mês, e era quando Marte, seguindo em sua órbita e
xcêntrica, achava-se na parte mais distante do sol.

Manteve-
se distante do Controle Aéreo, porque a cada dia crescia mais seu r
espeito pelo poderio dos slans sem tentáculos. E cada vez via com
maior clareza que somente um milagre o salvou no dia em que se re
velou para os dois adultos. Um milagre devido à surpresa.

Quanto aos mistérios básicos dos slans não soube nada. Para pass
ar o tempo en-tregava-
se a orgias de atividades físicas. Antes de tudo precisava de um ca
minho secreto para escapar, somente para o caso... Um caminho, s
ecreto desconhecido não
somente por Granny como também pelo o mundo inteiro; e em segu
ndo lugar, lhe
era impossível continuar vivendo naquela pocilga. Necessitou de me
ses inteiros para
construir centenas de metros de túneis, outros meses para adornar
o interior da casa
com belas paredes, brilhantes tetos e chão de plástico. Granny trazi
a o que havia
roubado à noite, passava pelo monte de lixo do patio e a casa contin
uava exteriormente sem pintura. Mas para aquilo tudo foi preciso qu
ase um ano... por causa de Granny e da sua garrafa.

Quinze anos... Às duas da tarde Jommy soltou o livro que estava len
do, tirou os
chinelos e calçou os sapatos. A hora decisiva havia chegado. Hoje ti
nha que ir às catacumbas e tomar posse do segredo do seu pai. Nã
o conhecendo os corredores secretos dos slans, teria que correr o ri
sco de entrar pela porta pública.

Não dedicou ao possível perigo mais que um pensamento superficia


l. Este era o
dia há tanto tempo fixado e hipnoticamente transmitido por seu pai.
Parecia importante, entretanto, poder escapar da casa sem que a ve
lha soubesse.

Fez um ligeiro contato mental com ela e sem a menor sensação de


desagrado exa-
minou a corrente dos seus pensamentos. Ela estava completamente
acordada, arru-
mando sua cama, e do seu cérebro emanava livremente e com fúria
o jorro de surpreendentes e maus pensamentos.

Jommy Cross franziu o cenho. No meio do inferno de recordações d


aquela velha
(que vivia quase que exclusivamente no passado quando estava bê
bada) havia aparecido uma rápida e astuta decisão:

“Livre-
se desse slan... é perigoso para Granny agora que já tem dinheiro.
Não deve deixá-lo suspeitar... tem que afastá-
lo da mente a fim de que...”.

Jommy Cross sorriu, melancólico. Não era a primeira vez que capta
va um pensamento de traição em seu cérebro. Com súbita decisão
acabou de amarrar o cordão do sapato, levantou-
se e foi ao quarto dela.

Granny jazia como uma massa inerte sob a manta manchada de ru


m. Seus olhos

negros, profundamente afundados, olhavam do fundo do seu rosto a


pergaminhado.

Ao vê-
la, Jommy teve um impulso de piedade. Por mais malvada e pervers
a que tivesse sido a velha Granny, ela a preferia àquela bêbada que
jazia deitada como uma
bruxa medieval milagrosamente transportada ao leito azul e prata do
futuro. Seus olhos pareceram vê-
lo claramente pela primeira vez e uma série de maldições saiu da
sua boca.

- O que você quer?... - conseguiu balbuciar. - Granny quer ficar sozi


nha.

A compaixão desapareceu nele, que a olhou friamente.


- Quero somente fazer-
lhe uma pequena advertência. Vou sair daqui em breve, de
forma que não perca mais seu tempo pensando em uma maneira de
me atraiçoar.

Não há nenhum meio que seja seguro. Sua velha pele, que tanto ap
recia, não valeria nem um centavo se me pegassem.

Os olhos negros fixaram-se nele atemorizados.

- Você acha que está pronto, hein? - murmurou. A palavra parecia d


espertar uma
nova corrente de ideias que Jommy não conseguia seguir
mentalmente -

Inteligente... - repetiu, meio rindo, - a coisa mais inteligente que Gra


nny fez foi pegar um jovem slan... Mas agora ele é perigoso... tem q
ue livrar-se dele...

- Velha louca - respondeu Jommy Cross friamente. - Não esqueça q


ue a pessoa
que esconde um slan está automaticamente condenada à morte. Vo
cê conservou
essa pele velha que tem no pescoço bem lubrificada de forma que n
ão gritará quando estiver pendurada, mas dará boas pernadas no ar
com suas pernas asquerosas.

Pronunciadas estas palavras brutais, deu meia volta e saiu do quart


o e da casa. Já no ônibus pensou:

“Tenho que vigiá-la e deixá-


la o quanto antes. Levando em contas as probabilida-
des, não existe ninguém capaz de confiar-lhe nada de valor”.

Mesmo na cidade baixa as ruas estavam desertas. Tomou o ônibus,


surpreso de
ver aquela calma em um lugar onde geralmente costumava reinar o
rebuliço. A cidade estava tranquila demais; era como uma verdadeir
a ausência de vida e movimento.

Permaneceu imóvel na calçada sem se lembrar nem remotamente d


e Granny. Concentrou sua mente e a princípio só percebeu um leve
rumor da mente distraída do
motorista do único ônibus que havia à vista e que não demorou em
desaparecer. O

sol brilhava sobre o pavimento. As poucas pessoas que passavam ti


nham no pensamento um vago terror, tão contínuo e invariável que
era impossível a Jommy penetrar para além dele.

À medida que aumentava o silêncio, crescia a inquietação de Jomm


y Cross. Explo-
rou os imóveis vizinhos mas lhe foi impossível detectar o mínimo cla
mor mental.

Nada em parte alguma. De uma rua lateral chegou a ele o ruído de


um motor. Dois
quarteirões adiante saiu um trator arrastando um enorme
canhão que apontava
ameaçadoramente para o céu. O trator se deteve com um estrondo
no centro da rua
por onde tinha vindo. Alguns homens se aproximaram do canhão pa
ra prepará-lo; depois olharam para o céu, esperando nervosamente.

Jommy Cross tinha vontade de aproximar-


se deles e ler seus pensamentos, mas
não se atrevia. A sensação de achar-
se em um momento perigoso ia sendo confirmada. De um momento
para outro poderia aparecer um militar ou um policial e perguntar-
lhe o que estava fazendo na rua. Podia ser detido ou obrigado a tirar
o gorro,
mostrando o cabelo e os as gavinhas que eram seus tentáculos.

Decididamente ali estava acontecendo alguma coisa grave e o lugar


mais seguro
para ele eram as catacumbas, onde estaria fora das vistas, se bem
que em um perigo de outro tipo. Dirigiu-
se pois, apressadamente, para a entrada das catacumbas

que eram sua meta desde que saiu da casa. Já se dispunha a conto
rnar a esquina para entrar em uma rua lateral quanto um alto-
falante devolveu-o à realidade.

A voz de um homem gritava:

Último aviso! Saiam da rua! Afastem-


se da vista! A misteriosa nave dos
slans está se aproximando da cidade a uma velocidade aterradora.
Achamos
que a nave está se dirigindo para o palácio. Interferências foram cria
das em
todas as ondas de radio para evitar que sejam irradiada alguma frau
de por parte dos slans. Saiam das ruas. Aí vem a nave!.

Jommy ficou gelado. Surgiu uma centelha prateada no céu e uma es


pécie de torpedo alado de metal reluzente passou a uma vertiginosa
velocidade sobre sua cabe-

ça. Ouviu o rítmico disparar do canhão seguido por outras detonaçõ


es e a nave se
transformou em um distante ponto brilhante que se dirigia para o pal
ácio.

Coisa estranha: o brilho do sol lhe produzia agora uma sensação dol
orosa nos
olhos. Estava um pouco confuso. Uma nave com asas! Noites e mai
s noites, durante
aqueles últimos seis anos havia observado as naves entrar e sair do
edifício dos slans sem tentáculos, no Controle Aéreo. Naves-
foguetes sem asas mas com algo mais.

Algo que fazia aquelas máquinas metálicas mais rápidas que o ar. A
parte do foguete
era usada, ao que parece, somente para o impulso. A carência de p
eso, a forma
como eram lançados, como se fosse por força centrífuga, devia ser
a antigravidade.

E ali vinha uma nave alada com tudo que isto implica: motores a co
mbustão, estrito
confinamento à atmosfera terrestre, vulgaridade. Se isto era o melho
r que sabiam fazer os verdadeiros slans...

Profundamente decepcionado, deu meia volta e começou a descer a


s escadas que
levavam a um banheiro público. O lugar estava tão deserto e silenci
oso como a rua.

E foi para ele - que tantas portas fechadas havia franqueado em sua
vida - um brinquedo encontrar o segredo da fechadura daquela port
a de barrotes de aço que dava acesso às catacumbas.

Ao olhar entre as barras da porta sentiu a intensa tensão da sua me


nte. Atrás dela
havia um fundo de cimento e mais além uma fraca escuridão que sig
nificava mais escadas. Os músculos da sua garganta ficaram tensos
e sua respiração mais ofegante.

Inclinou o corpo para diante, como o corredor que se di


spõe a partir com um

“sprint”, abriu a porta, entrou e começou a descer a toda velocidade


ao longo da se-

ção das escadas.

A certa distância dele começou a soar ritmicamente uma campainha


elétrica, acionada sem dúvida pela barreira de células fotoelétricas
que havia feito funcionar ao
acessar a porta, proteção instalada há alguns anos como precaução
contra os slans e outros intrusos.
O alarme já estava a uma curta distância e não obstante ele não det
ectava a vibra-

ção de nenhuma mente no corredor que se abria diante dos seus ol


hos. Ao que parece nenhum dos homens encarregados da vigilância
das catacumbas estava ao alcance do som. Viu a campainha, uma
caixinha reluzente de metal que vibrava furiosa-
mente. A parede era lisa como vidro, impossível de se escalada, e a
campainha estava a mais de quatro metros do chão e continuava vib
rando, mas não havia o menor
indício que alguma mente se acercasse nem a menor sombra de pe
nsamento.

“Não há prova alguma de que não venham - pensou Jommy inquieto


- Estas paredes disseminam rapidamente as ondas mentais”.

Lançou-
se correndo para a parede e deu um salto, fazendo um esforço dese
sperado. Levantou o braço, arranhou a parede de mármore, mas nã
o conseguiu alcançar a

campainha. Retrocedeu, consciente do seu fracasso. O som continu


ava quando ele contornou uma esquina do corredor. Ouviu-
o diminuir de intensidade e desaparecendo na distância. Mas uma v
ez cessado o barulho, parecia-lhe ainda ouvi-lo em seu
cérebro como uma insistente advertência de perigo.

Teve a estranha sensação de que o som em lugar de desaparecer c


om a distância parecia aumentar, até tê-
lo novamente junto a si; afinal se deu conta de que estava
em baixo de outra campainha tão potente como a primeira. Aquilo si
gnificava, disse
para si, desanimado, que devia haver uma vasta rede distribuída por
aquele labirinto
de corredores, e homens que deveriam estar pondo-
se de guarda e olhando uns para
os outros, abrindo os olhos alarmados.
Jommy Cross apertou o passo. Não tinha a menor ideia do caminho
que devia seguir. Só sabia que seu pai havia impresso uma imagem
hipnótica em sua mente e
que tinha que seguir suas instruções. Subitamente recebeu uma ord
em mental. “À

direita”.

Seguiu para o lado direito de uma bifurcação e finalmente chegou a


o local onde
estava escondido o que procurava. Tudo foi muito fácil; uma laje na
parede de mármore cedeu à pressão dos seus dedos deixando a de
scoberto um buraco escuro. Meteu a mão no buraco e tocou em um
a caixa de metal e puxou-
a. Todo seu corpo tremia. Durante alguns instantes permaneceu imó
vel tentando imaginar seu pai diante
daquele buraco, escondendo os segredos para que seu filho os enc
ontrasse em um
momento de perigo, caso seus planos pessoais fracassassem.

Parecia a Jommy que aquele momento podia ser transcendental na


história cósmi-
ca dos slans. Aquele momento em que a obra do seu falecido pai pa
ssava às mãos
do garoto de quinze anos que havia esperado tantos dias e tantas h
oras que chegasse aquele instante. A nostalgia desapareceu da sua
mente ao chegar à sua mente
uma vaga insinuação procedente do exterior.

“Maldita seja essa campainha” - pensava a mente. - “Deve ser algue


m que se refugiou aqui para escapar das bombas quando a nave do
s slans chegou”.

“Sim, mas não conte com isto” - disse uma segunda voz. - “Você sab
e quão estritas são estas catacumbas, e que a pessoa que fez funci
onar a campainha ainda está
no interior. Será melhor darmos o alarme à polícia”.
“Talvez ele tenha se perdido” - disse uma terceira vibração.

“Ele nos dará as explicações” - disse o primeiro. - “Vamos até a prim


eira campainha, e com as armas preparadas. Nunca se sabe o que
vai acontecer. Com os slans
rondando pelo céu nestes dias, pode ser que um deles tenha se met
ido aqui”.

Jommy examinava freneticamente a caixa de metal procurando uma


forma de abri-
la. Suas ordens hipnóticas eram tirar o conteúdo da caixa e voltar e
deixá-
la no buraco. Ante esta ordem, a ideia de pegar a caixa e sair corren
do com ela nunca acudiu à sua mente.

Não encontrava uma fechadura ou um trinco. Contudo devia haver a


lguma coisa
que fechava a caixa... Pronto, pronto! Dentro de poucos minutos os
homens podiam passar por ali!

A penumbra que reinava no longo corredor, o cheiro da umidade, a c


onsciência da
existência dos grossos cabos elétricos que distribuíam milhões de v
olts para a cidade
acima, todo aquele mundo de catacumbas que o rodeava, e até as r
ecordações do
seu passado... estes eram os pensamentos que se atropelavam no
cérebro de Jommy enquanto ele contemplava a caixa de metal. Rec
ordava Granny bêbada e o misté-

rio dos slans, e tudo isto se misturava aos passos dos homens que
estavam se aproximando. Ele ouvia claramente que já se dirigiam p
ara ele.

Silenciosamente, tirou a tampa da caixa fazendo um último esforço


e esta levan-
tou-
se tão facilmente que esteve a ponto de perder o equilíbrio. Achou-
se frente a
uma espécie de barra grossa de metal, colocada sobre um monte de
papéis. Não ex-
perimentou a menor surpresa, pelo contrário, sentiu um certo alívio
ao encontrar intacto algo que sabia que estava ali. Era sem dúvida a
lguma obra do hipnotismo do seu pai.

A barra de metal tinha uns cinco centímetros de diâmetro no centro,


e ia afinando
na direção das duas pontas. Uma delas delas era áspera, sem dúvid
a para facilitar
ser presa na mão. Na parte mais grossa havia um pequeno botão qu
e o polegar podia facilmente apertar. O instrumento parecia emitir u
ma tênue luz própria. Este brilho e a luz difusa do corredor lhe permi
tiram ler no papel contido na caixa estas palavras:

Esta é a arma. Use-a somente em caso de absoluta necessidade.

Durante um instante Jommy ficou tão absorvido em sua contemplaç


ão que não se
deu conta de que os homens estavam à sua frente. Brilhou uma cen
telha.

- Que diabos!... - rugiu um dos homens - Mãos para cima!

Era o primeiro perigo pessoal e autêntico em que se encontrava dur


ante seis anos
e lhe parecia irreal. Lentamente lhe acudiu a ideia de que os human
os não eram
muito rápidos em seus reflexos. Pegou a arma na caixa e, sem sequ
er se dar conta do que fazia, apertou o botão.

Se algum dos homens fez fogo, a detonação se perdeu no rugido da


chama branca
que brotou com uma inimaginável violência da boca do tubo. Um ins
tante depois,
aqueles três homens violentos, ameaçadores, alertas, haviam desap
arecido, elimina-dos pela explosão daquele fogo terrível.

Jommy olhou para sua mão que tremia. E então sentiu uma espécie
de dor ao
pensar que havia privado três vidas da existência. A visão apagada f
oi clareando e
seus olhos perderam sua expressão de assombro. E ao olhar para o
fim do corredor
viu que este estava vazio. Nem um osso, nem um fragmento de carn
e ou pedaço de
roupa restavam para provar que ali tinha havido, a alguns instantes
atrás, três seres
vivos. Na parte do solo onde tinha chegado a abrasadora incandesc
ência, havia uma
leve concavidade, tão leve que provavelmente nunca seria notada.

Tratou de fazer com que seus dedos deixassem de tremer; lentamen


te sua sensa-

ção de mal-
estar foi desaparecendo. Não havia motivo para inquietar-
se. Matar era
uma ação violenta, mas aqueles três homens não teriam vacilado u
m instante em matá-
lo, como a tantos outros slans que haviam perecido por causa das m
entiras que toda essa gente contava, aniquilando-
os sem a menor resistência. Malditos sejam todos eles!

Por um momento sentiu uma emoção violenta. Era possível - se per


guntava - que
os slans ficassem cruéis ao envelhecer e que não sentissem o meno
r remorso ao matar, como tampouco sentiam os humanos ao matare
m os slans? Seu olhar caiu sobre
a folha de papel que seu pai havia escrito:

… a arma. Use-a somente em caso de absoluta necessidade.


Mais de mil exemplos da nobre qualidade dos seus pais acudiram à
sua mente.

Ainda lembrava perfeitamente da noite em que seu pai lhe disse:

“Lembre-
se disto: por muito fortes que os slans cheguem a ser, o problema d
o que
fazer com os humanos continuará sendo uma barreira à ocupação d
o munto. Até
que o problema tenha sido resolvido com justiça e com uma psicolo
gia sadia, o em-

prego da força será um negro crime.”

Jommy não pensava assim. Ali estava a prova. Seu pai não havia le
vado consigo a arma que poderia tê-
lo salvo. Havia aceito a morte antes de fazer uso dela.

Franziu o cenho. A nobreza era muito bom, e talvez tivesse vivido po


r muito tempo entre os humanos para sentir-
se um verdadeiro slan, mas não podia afastar a convic-

ção de que lutar era melhor que morrer.

O pensamento foi substituído pelo medo. Não havia tempo a perder,


tinha que sair
dali e logo. Colocou a arma e os papeis nos bolsos e depois, voltand
o a colocar a caixa vazia no buraco, fechou-
o com a laje de mármore. Percorreu os corredores velozmente, subi
u a escada e parou no banheiro que um momento antes estava vazi
o e silencioso e que agora estava lotado de homens. Deteve-
se, indeciso esperando que seu número diminuísse

Mas uns entravam e outros saíam, sem que diminuísse seu número
nem o barulho
que reinava no recinto. A excitação, o medo, as preocupações; pouc
os eram os homens cujas mentes se dessem conta de que estavam
acontecendo grandes coisas. E

o eco desta realidade chegou à mente de Jommy através das barras


de aço da porta.

Enquanto isso ele esperava na penumbra. À distância, a campainha


continuava to-cando insistentemente o alarme e ditava-
lhe finalmente o que devia fazer. Agarrando
a arma com uma mão, sem tirá-
la do bolso, abriu a porta e voltou a fechá-
la suavemente, atento ao menor sinal de perigo.

Mas o compacto grupo de homens não prestou a menor atenção qu


ando ele abriu
passagem e saiu para a rua... O pavimento estava cheio de gente e
a multidão avan-

çava pelas calçadas. Ouviam-


se as sirenes da polícia, rugiam os alto-falantes, mas
nada conseguia dominar a anarqua da multidão. Todo o t
rânsito havia cessado.

Suando e lançando maldições, os motoristas dos veículos desciam


para se mistura-rem com a multidão diante dos alto-
falantes das ruas defendidas pelas metralhadoras.

- Não se sabe nada certo. Ninguém sabe exatamente se a nave slan


aterrizou no palácio ou se deixou cair uma mensagem antes de des
aparecer.

Ninguém a viu aterrizar, ninguém a viu desaparecer. É possível que


a tenham derrubado, mas também é possível que neste momento o
s slans estejam conferenciando com Kier Gray. Já está correndo ess
e boato, apesar da
ambígua declaração de uns minutos atrás do próprio Kier Gray. Para
atuali-
zação dos que não a tenham ouvido, eu a repetirei. Senhoras e cav
alheiros, a declaração de Kier Gray diz assim:

“Não se assustem nem fiquem alarmados. A extraordinária aparição


da
nave slan não alterou de forma alguma as respectivas posições dos
slans e
dos humanos. Eles não podem fazer mais do que vêm fazendo até a
gora, e
ainda assim dentro das mais rígidas limitações. O número dos seres
humanos é, provavelmente, de muitos milhões para cada slan, e so
b estas condi-

ções eles não ousarão jamais travar uma luta franca e aberta contra
nós.

Portanto acalmem seus corações...”.

- Esta, senhoras e cavalheiros, foi a declaração feita por Kier Gray, d


epois do sensacional acontecimento do dia. Eu repito, não se sabe n
ada mais
com certeza. Não se sabe se a nave slan aterrizou, mas ninguém a
viu desaparecer. Somente as autoridades sabem a verdade sobre o
ocorrido, e já
conhecem a declaração feita sobre isto pelo próprio Kier Gray. Se a
nave dos slans foi derrubada ou....

A conversa continuava e continuava... Uma e outra vez era repetida


a declaração

feita por Kier Gray, os mesmos boatos a acompanhavam. Tudo aquil


o se transformava em uma espécie de zumbido na mente de Jommy
, um rugir sem significado dos alto-
falantes, uma monotonia de ruídos. Mas ele permanecia ali, esperan
do alguma
informação adicional, ardendo de desejo refreado de quinze anos de
saber algo mais sobre os slans.
A chama da sua emoção foi extinguindo-
se lentamente. Não foi dito nada de novo
e finalmente ele tomou um ônibus para voltar para sua casa, A escur
idão ia se fechando sobre o caloroso dia de primavera. O relógio de
uma torre marcava sete horas e dezessete minutos.

Aproximou-
se do pátio cheio de lixo com sua habitual precaução. Sua mente pe
netrou no edifício desalinhado e pôs-
se em contato com a de Granny. Suspirou: Bêbada
outra vez! Como diabos aquela caricatura de corpo podia suportar a
quele estado?

Tanta bebida já devia ter desidratado seu organismo. Empurrou a po


rta, voltou a fe-chá-la atrás e se deteve, imóvel.

Sua mente, em um contato casual com a de Granny, acabara de rec


eber um choque. A velha havia ouvido a porta ser aberta e fechada
e aquilo havia dado uma breve atividade ao seu cérebro.

“Ele não deve saber que telefonei para a Polícia... Tenho que afastá-
lo do meu
pensamento... não posso ter um slan ao meu lado... é perigoso, ter
um slan... a Polí-

cia fechará as ruas...”

VIII

Kathleen Layton fechou os punhos com raiva. Seu frágil e jovem cor
po estremeceu
de repulsa ao conhecer os pensamentos que chegavam dos corredo
res. Davy Dinsmore, com seus dezessete anos, a estava procurand
o e dirigia-se para a varanda de
mármore onde ela estava contemplando a cidade já envolta em um
manto úmido e tênue daquela quente tarde de primavera.
O nevoeiro estava constantemente mudando de imagem. Umas vez
era como tê-

nues flocos de lã que ocultavam os edifícios e outras como um leve


véu que estendia sua fina trama sobre o céu azul.

Era curioso, a vista feria seus olhos mas sem ser desagradável. A fri
eza do palácio
parecia chegar a ela pelos corredores e pelas portas abertas, rechaç
ando o calor do sol, mas o brilho persistia.

O murmúrio dos pensamentos de Davy Dinsmore ia aumentando, ap


roximando-se.

Via claramente que ele tentaria persuadi-


la novamente a ser sua amiga... Com um
estremecimento final, a garota rechaçou aquelas ideias e esperou q
ue que ele aparecesse. Havia sido um erro mostrar-
se amável com ele, se bem que durante alguns anos havia-
lhe evitado muitos aborrecimentos pondo-
se ao seu lado contra os demais. Agora preferia sua inimizado aos p
ensamentos amorosos que se filtravam da sua mente.

- Oh! - disse Davy Dinsmore saindo pela porta - Aqui está você!

Ela olhou para ele sem sorrir. Aos dezessete anos, Davy era um gar
oto desajeitado,
com as longas mandíbulas da sua mãe e que parecia estar sempre
zombando dos demais, mesmo quando sorria. Aproximou-
se dela com um ar agressivo que refletia
os sentimentos ambivalentes que chegavam até ela; por um lado, o
desejo de conquistá-
la fisicamente e por outro, o desejo autêntico de feri-
la de alguma forma.

- Sim, e sozinha - disse Kathleen. - Esperava poder ficar a sós para


variar.
Sabia que a fibra de Davy Dinsmore tinha uma insensibilidade que o
tornava imune
a essas respostas. Os pensamentos que brotavam da sua mente pe
rmitiam que Kathleen soubesse perfeitamente o que ele estava pens
ando: “esta garota já está novamente com suas recusas, mas eu me
encarregarei de domá-la”.

Kathleen tentou fechar um pouco mais sua mente aos detalhes da le


mbrança que
surgia das complacentes profundezas da sua juventude.

- Não quero que você ande mais atrás de mim - disse com fria deter
minação. - Sua
mente é um esgoto. Me arrependo de ter lhe dirigido a palavra na pri
meira vez que
veio com agrados. Devia ter pensado melhor, e espero que você se
dê conta de que
eu digo isto com o exclusivo fim de que saiba o que eu penso. Pois
é isto... palavra
por palavra. Particularmente sobre o esgoto. E agora vá embora.

Davy era um rapaz de rosto pálido, mas a fúria o tingiu de vermelho


e Kathleen captou em sua mente o que se passava em seu interior.
Bloqueou imediatamente sua
imaginação tentando rechaçar os vitupérios que saiam da de Davy.
Deu-se conta,
com surpresa, de que só lhe dirigia a palavra quando podia humilhá-
lo com toda cer-

teza.

- Saia daqui! - gritou. - Carne de cachorro!

- Ah!... - gritou ele, saltando para ela. Durante um segundo, a surpre


sa de ver que
ele ousava enfrentar sua força superior a deixou aturdida. Depois, a
pertando os lá-
bios, agarrou-
o, evitando facilmente os seus braços estendidos e levantou-
o no ar.

Mas se deu conta muito tarde de que ele já havia contado com isto.
Seus dedos
bruscamente agarraram seu cabelo e as gavinhas douradas erguia
m seus delicados pedúnculos.

- OK - gritou ele. - Agora eu a tenho! Não me jogue no chão. Sei o q


ue você queria fazer. Derrubar-me, segurar meus punhos e torcê-
los até que eu lhe solte. Se me
baixar apenas mais uma polegada dou um puxão nos seus precioso
s tentáculos que
algum deles ficará na minha mão. Sei que pode me sustentar sem s
e cansar, então me aguente.

A decepção deixou Kathleen rígida. “Preciosos tentáculos”, ele havia


dito. Tão preciosos que pela primeira vez em sua vida afogou um gr
ito na garganta. Tão preciosos, que acreditava que ninguém jamais
se atreveria a tocá-los. Uma sensação de
impotência a envolveu como uma noite de tormenta aterradora.

- O que você quer? - perguntou.

- Assim é que se fala! - exclamou ele.

Mas Kathleen não precisava ouvir suas palavras, sua mente já estav
a em íntima comunicação com ela.

- Muito bem - disse fracamente. - Eu farei.

- E para ter certeza de que você fará isto lentamente - disse - quand
o meus lábios
tocarem os seus trate de fazer com que o beijo dure pelo menos um
minuto. Vou lhe ensinar o que é tratar-me como lixo!
Seus lábios aproximaram-se da garota, destacando-
se sobre o fundo do seu repulsivo rosto e dos seus ávidos olhos, qu
ando ouviu-se uma voz autoritária que, num
isto de raiva e surpresa, exclamou:

- Que significa isto?

- Oh!... - balbuciou Davy Dinsmore.

Kathleen sentiu que seus dedos soltavam seus cabelos e tentáculos


, e com um profundo suspiro deixou-o cair.

- Eu... eh... oh, perdoe-me, Sr. Lorry! Eh...!

- Fora daqui, cão miserável - gritou Kathleen.

- Sim, para longe daqui! - disse Lorry.

Kathleen o viu desaparecer cambaleando, aterrorizado por haver ofe


ndido um dos
mais poderosos homens do Governo. Mas quando ele desapareceu
ela não se voltou
para olhar para o recém chegado. Instintivamente, seus músculos fic
aram rígidos e
afastou seu rosto do olhar daquele homem, o mais poderoso dos co
nselheiros do Gabinete de Kier Gray.

- O que foi isso tudo? - disse a voz desagradável de Lorry. - Ao que


parece foi oportuno eu ter subido...

- Não sei - respondeu Kathleen friamente, em tom de profunda since


ridade. - Mas suas atenções me são igualmente repulsivas.

- Hein?... - ele se inclinou sobre a varandinha, ao seu lado, e ele pôd


e dar uma olhada furtiva em sua forte mandíbula.

- Na realidade não há diferença alguma entre vocês - insistiu ela. Os


dois querem a mesma coisa.
Lorry permaneceu em silêncio, mas seus pensamentos tinham a me
sma qualidade
evasiva dos de Kier Gray. Os anos o haviam ensinado a evitar a leit
ura dos seus pen-

samentos e quando finalmente falou, sua voz havia mudado e tinha


um tom mais duro.

- Não tenho a menor dúvida de que suas ideias sobre este ponto mu
darão quando for minha amante.

- Isto jamais acontecerá! - gritou Kathleen. - Nos gosto dos seres hu


manos... Não gosto de você.

- Suas objeções não têm importância - disse ele friamente. - O único


problema no momento e como possuí-
la sem ser acusado de estar secretamente aliado aos slans
Até que eu ache a solução pode ficar tranquila.

Sua segurança produziu um calafrio em Kathleen.

- Está completamente equivocado - respondeu com firmeza. - A razã


o pela qual
suas intenções fracassarão é muito simples. Kier Gray é meu protet
or e nem você ousará ficar contra ele.

- Seu protetor, sim - disse Lorry, após haver refletido por um moment
o. - Mas em
questão de virtude feminina ele não tem moral. Não creio que veja al
gum inconveniente em que você seja minha amante, mas acho que
é inventar um motivo para a
propaganda. Nestes últimos anos ele tem se tornado muito anti-
slan. E eu que achava que ele era pró. Mas agora é quase fanático
em não querer saber nada deles.

John Petty e ele agora estão mais de acordo do que nunca sobre es
te ponto. É curioso.
Ficou refletindo novamente e acrescentou:

- Não se preocupe. Eu encontrarei uma forma e...

Um rugido dos alto-falantes cortou as palavras de Lorry.

-
Alarme geral! Uma nave não identificada acaba de ser vista cruzand
o as
Montanhas Rochosa na direção leste. Os aparelhos lançados em su
a perseguição foram rapidamente deixados para trás e a nave parec
e dirigir-se
para Centrópolis. Ordenamos que todo mundo se refugie em suas c
asas, já
que a nave, que acreditamos ser de origem slan, estará aqui dentro
de uma
hora a partir das presentes indicações. As ruas são necessárias par
a objetivos militares. Todos para suas casas

O locutor desligou e Lorry voltou-


se para Kathleen com um sorriso nos lábios.

- Que isto não lhe dê nenhum esperança de salvação. Uma nave nã


o pode trans-
portar uma grande quantidade de armamento se não tiver uma gran
e fábrica dentro
dela. A antiga bomba atômica, por exemplo, não pode ser fabricada
em uma caverna, e além disso, para ser totalmente franco, os slans
não a utilizaram na guerra contra os humanos. O desastre deste séc
ulo, e o anterior ao ele, foi causado pelos slans,
mas não desta forma.

Ficou em silêncio por um minuto e prosseguiu:

- Todo mundo achou que aquelas bombas haviam resolvido o segre


do da energia
atômica... A mim me parece - acrescentou, após uma pausa - que es
te raid tem por
objetivo atemorizar os humanos de mentalidade simples, como uma
preliminar de uma tentativa de negociações.

Uma hora mais tarde Kathleen continuava ao lado de Jem Lorry enq
uanto a nave
prateada dos slans se dirigia para o palácio. Ia aproximando-
se a uma velocidade
vertiginosa. A mente de Kathleen levantou voo até ela tentando se c
onectar com os cérebros dos slans que pudessem haver a bordo.

A nave foi baixando, aproximando-


se, mas ela continuava sem receber resposta
dos ocupantes. Subitamente um objeto metálico caiu da nave, bateu
no caminho do

jardim a uma milha de distância e ficou no chão, reluzindo como um


a joia sob o sol da tarde.

Kathleen levantou a vista e viu que a nave havia desaparecido. Não,


ali estava ela.

Ainda via-
se um ponto brilhante à distância, em linha reta atrás do palácio. Por
um
momento piscou como uma estrela e desapareceu. Seus olhos desc
ansaram do violento esforço, afastou a vista do céu e viu Jem Lorry
ao seu lado.

- Além de tudo - exclamou este com entusiasmo, - é o que eu estava


esperando: a
oportunidade de oferecer uma explicação que me permitirá levá-
la esta mesma noite
para meu quarto. Suponho que o Conselho vai se reunir imediatame
nte.

Kathleen lançou um suspiro. Via claramente como o que ele havia pl


anejado e que
havia chegado o momento de lutar com todos os meios que tivesse
à sua disposição.

Jogando a cabeça para trás, com os olhos brilhantes, respondeu co


m altivez:

- Pedirei para estar presente na reunião do Conselho por ter estado


em comunica-

ção mental com o Capitão da nave. Posso esclarecer certas coisas


da mensagem que lançaram - acrescentou, terminando sua mentira.

Fazia um terrível esforço de imaginação. Havia captado mais o men


os o conteúdo
da mensagem e portanto podia inventar uma história semi-
verossímil do que o chefe
slan havia dito. Se descobrissem sua mentira isto poderia acarretar-
lhe perigosas
consequências, estando como estava, nas mãos desses inimigos do
s slans. Mas tinha que evitar que a entregassem a Lorry.

Ao entrar na sala do Conselho, Kathleen teve uma sensação de derr


ota. Havia somente sete homens presentes, incluindo Kier Gray. Olh
ou-os um a um tentando ler
neles o que pudesse e viu que não podia contar com nenhuma ajud
a.

Os quatro mais jovens eram amigos pessoais de Jem Lorry. O sexto


, John Petty, dirigiu-
lhe um olhar de fria hostilidade e afastou a vista com indiferença. O
olhar de Kathleen fixou-
se em Kier Gray. Um ligeiro temor de surpresa a invadiu ao ver que
ele a olhava com um lacônico olhar de indiferença e um leve gesto d
e desdém nos lábios. Ele notou seu olhar e rompeu o silêncio.

- Quer dizer que você entrou em comunicação mental com o chefe d


os slans, não
é verdade? Bem, por enquanto vamos acreditar - acrescentou, rindo
. Havia uma tal
incredulidade em sua vez e na sua expressão, e tanta hostilidade e
m sua atitude,
que Kathleen sentiu um certo alívio quando ele afastou os olhos del
a e dirigiu-se aos demais prosseguindo.

- É lamentável que cinco conselheiros estejam neste mom


ento rondando pelo
mundo. Pessoalmente, não estou de acordo que nos afast
emos muito do nosso
Quartel General; que sejam os subordinados que viagem. Entretanto
não podemos
adiar a discussão sobre um problema tão urgente como este. Se os
sete presentes
chegarem a um acordo, não precisaremos das presenças deles. Se
houver empate
será necessário fazer um amplo uso do radio. A síntese da mensage
m lançada pela
nave afirma que há um milhão de slans organizados por todo o mun
do...

- Me parece - interrompeu Jem Lorry sardonicamente - que nosso C


hefe da Polícia
Secreta se deixou enganar apesar do seu tão propalado ódio aos sl
ans.

Petty endireitou-se, dirigindo-lhe um olhar iracundo.

- Talvez você esteja disposto a trocar de cargo comigo durante um a


no e veríamos então o que pode fazer - gritou-
lhe. - Não me importaria em desempenhar o leve
cargo de Ministro de Estado por algum tempo.

O silêncio prolongado que se seguiu foi cortado pelas palavras glaci


ais de Kier Gray.

- Deixem-
me terminar. Continuam dizendo que não existe somente este milhã
o de

slans organizados, mas que existe também uma enorme quantidade


de slans não organizados, homens e mulheres, com um número est
imado de dez milhões. Que lhe parece isto, Petty?

- Sem dúvida alguma existem alguns slans não organizados - admiti


u cautelosamente o Chefe de Polícia. - Todo mês nós detemos apro
ximadamente uma centena
deles espalhados pelo mundo e, ao que parece, não pertencem a ne
nhuma organiza-

ção. Nas vastas zonas das regiões mais primitivas da Terra é impos
sível infundir nas
pessoas o ódio aos slans, e eles os aceitam como seres humanos.
E existem sem dú-

vida algumas vastas colônias em lugares remotos, particularmente n


a Ásia, na Améri-
ca do Sul e na Austrália. Faz muitos anos que tais colônias foram fu
ndadas, mas su-
pomos que elas continuam existindo e que, através dos anos, consti
tuíram sólidos
sistemas de defesa. Estou disposto, por conseguinte, a reconhecer
qualquer atividade por parte dessas fontes remotas. A civilização e a
ciência são organismos baseados principalmente na atividade física
e mental de centenas de milhares de seres.

Desde o momento que esses slans se refugiam nas regiões mais ret
iradas da Terra,
eles correm para sua derrota, porque estão separados dos livros e d
o contato com as
mentes civilizadas, que são a única base possível de um maior dese
nvolvimento. O

perigo não reside, nem nunca residiu, nesses remotos slans, e sim n
os que vivem
nas grandes cidades onde têm possibilidades de estabelecer contat
o com as grandes
mentes humanas e têm, apesar de todas nossas precauções, acess
o aos livros. É um
fato fora de toda dúvida que esta nave que vimos hoje foi construída
pelos slans que
vivem, e constituem um perigo, nos centros civilizados.

- Muito do que você supõe provavelmente é verdade - concordou Ki


er Gray, - mas
voltando à mensagem, esta continua dizendo que esses milhares de
slans só têm o
desejo de acabar com este tempo de violência que existe entre eles
e a raça humana. Denunciam a ambição de poder que dominou os p
rimeiros slans, explicando que
essa ambição foi devida a um falso conceito de superioridade, hoje
esclarecido porque a experiência lhes demonstrou que não são sup
eriores aos seres humanos, unicamente diferentes. Acusam também
Samuel Lann, o ser humano e biólogo cientista
que foi o primeiro a criar slans - e do qual tomara o nome S. Lann “sl
an”, - de haver
inculcado em suas criaturas a crença de que devem governar o mun
do. E que foi
esta crença, e não um inato desejo de dominação, a razão das desa
strosas ambições dos primitivos slans.

Fez uma breve pausa e prosseguiu:

- Desenvolvendo esta ideia, continua fazendo ver que as primeiras i


nvenções dos
slans eram simplesmente pequenos aperfeiçoamentos das ideias já
existentes. Na
realidade não houve, afirmam, obra criadora na ciência física, realiz
ada pelos slans
Declaram também que seus filósofos chegaram à conclusão de que
os slans não pos-
suem uma mentalidade científica, no verdadeiro sentido da palavra,
diferenciando-se,
sob este conceito, dos seres humanos de hoje em dia, tão vastamen
te como os gre-
gos e romanos da antiguidade, que jamais desenvolveram, como sa
bemos, ciência alguma.

Ele continuava falando, mas durante um momento Kathleen podia e


scutá-
lo somente com a metade do cérebro. Podia ser verdade? Os slans
sem mentalidade científica? Impossível! A ciência era meramente u
ma acumulação de fatos e a dedução
das conclusões desses fatos. Quem melhor que um slan adulto, em
pleno desenvolvimento, pode alcançar uma ordem divina de uma int
rincada realidade? Viu Kier Gray
pegar uma folha de papel sobre a mesa e concentrou sua mente no
vamente no que ele dizia.

- Vou ler-
lhes a última página - disse ele com uma voz sem entonação. - Não
seria

demais recomendar a importância deste ponto.

“Isto significa que nós, os slans, não podemos jamais atingir o poder
io
militar dos humanos. Quaisquer que fossem as melhorias e modifica
ções
que introduzíssemos nas armas e maquinaria já não poderiam afetar
o resultado de uma guerra, no caso em que esta desastrosa circuns
tância acontecesse”.

“Ao nosso modo de ver, não há nada mais fútil que o presente estad
o dos
slans, que, sem solucionar nada, só conseguem manter o mundo e
m um estado de intranquilidade, criando gradualmente um caos eco
nômico do qual
os seres humanos sofrem até um grau que aumenta incessantement
e”.
“Oferecemos a paz com honra, sendo a única base desta negociaçã
o que
o slans devem gozar daqui por diante de um direito legal à vida, à lib
erdade e à perseguição da felicidade”.

Kier Gray deixou o papel lentamente sobre a mesa, percorreu com a


vista os rostos
de todos os presentes e, com uma voz ao mesmo dura e incolor, dis
se:

- Sou totalmente contrário a todo compromisso. Fui de opinião de qu


e se podia fazer algo, mas já não sou mais. Todo slan que exista por
aí - fez um gesto amplo com
a mão, significando que abrangia todo o globo - deve ser exterminad
o.

Para Kathleen pareceu que uma tela que escurecia tudo se havia int
erposto entre
seus olhos e a fraca luz dos painéis da parede. No meio daquele silê
ncio, até a pulsa-

ção dos pensamentos dos homens produzia uma fraca vibração em


seu cérebro,
como o romper das ondas em uma praia dos tempos primitivos. Tod
o um mundo de
impressões separava sua mente da sensação produzida por aquele
s pensamentos; a
impressão de ver a mudança que se havia produzido em Kier Gray.

Mas... era mesmo uma mudança? Não seria o caso que aquele hom
em fosse tão
desprovido de remorsos como John Petty? A razão de mantê-
la com vida podia ser
exatamente a que havia dito: com propósito de estudos. E, claro, ho
uve também um
tempo em que ele havia acreditado, com ou sem razão, que seu futu
ro político estava ligado à continuação da existência de Kathleen.
Mas nada mais. Não experimentava sentimento algum de compaixã
o ou piedade,
não tinha interesse algum em proteger aquela débil criatura por inter
esse nela mesma. Nada, fora dos desígnios mais materiais da vida.
Aquele era o governante de homens que ela havia admirado, quase
venerado, durante anos inteiros. Este era o seu protetor!

Era verdade, claro, que os slans estavam mentindo. Mas, que outra
coisa poderiam
fazer se estavam tratando com um povo que só conhecia o ódio e a
mentira? Pelo
menos eles ofereciam a paz e não a guerra; e ali estava aquele hom
em, rechaçando
sem a menor consideração uma oferta que poria fim a mais de cem
anos de crimino-sa perseguição da sua raça.

Deu-
se conta com um sobressalto de que os olhos de Kier Gray estavam
fixos nela.

Seus lábios esboçavam um sorriso sarcástico ao dizer:

- E agora vamos ver em que consiste essa mensagem mental que v


ocê diz ter re-
cebido em sua... comunicação com o comandante slan.

Kathleen olhou-
o com uma expressão desesperada. Gray não acreditava em uma
palavra da sua pretensão e ela sabia que a única coisa que podia of
erecer ao cérebro
implacavelmente lógico daquele homem era uma declaração cuidad
osamente medita-da.

- Pois... - começou. - foi...

De repente se deu conta de que Jem Lorry havia se levantado, carra


ncudo, vingati-vo.
- Kier - disse ele, - considero uma prática intolerável declarar sua inq
ualificável
oposição a um assunto tão grave como este sem dar a oportunidade
ao Conselho
para deliberar sobre ele. Em vista da sua atitude, não me resta outra
alternativa que declarar-
me, com certas reservas, claro, a favor desta oferta de paz. Minha r
eserva
principal é esta: os slans têm que aceitar serem assimilados pela raç
a humana. E

para isto os slans não poderão se casar entre si, e sim casarem-
se com seres humanos.

- E o que o faz acreditar que a união humano-


slan pode dar fruto? - perguntou Kier Gray sem hostilidade.

- É isto que eu vou averiguar - respondeu Lorry, com um sorriso tão i


ndiferente
que somente Kathleen captou a intensidade que nele havia. Inclinou
-se para a frente
prendendo a respiração. - Eu decidi fazer de Kathleen minha amant
e e veremos o que acontece. Ninguém se opõe a isto, espero...

Os conselheiros jovens encolheram os ombros e Kathleen não preci


sou ler seus
pensamentos para ver que não tinham a menor objeção a fazer. Deu
-se conta de
John Petty não prestava atenção ao que dizia e que Kier Gray parec
ia absorvido em suas meditações como se tampouco tivesse ouvido.

Angustiada, Kathleen abriu a boca para falar mas voltou a fechá-


la. Uma ideia surgiu subitamente na sua mente. Supondo que o matr
imônio misto fosse a solução do
problema slan... e que o Conselho aceitasse a proposta de Jem Lorr
y... Apesar de saber que o plano de Lorry baseava-
se meramente no desejo, ousaria ela defender-se
se existisse a mais remota possibilidade de que aqueles slans que ti
nham vindo na
nave estivessem de acordo com ele e desta forma terminasse cente
nas de anos de sofrimento e assassinato?

Voltou a inclinar-
se para trás vendo a ironia da situação. Havia ido ao Conselho
com a intenção de defender-
se e agora não se atrevia a articular uma palavra.

Kier Gray estava falando novamente.

- Na solução apresentada por Jem Lorry não há nada de novo. O pr


óprio Samuel
Lann estava intrigado pelos possíveis resultados de tal união e conv
enceu uma de
suas netas a se casar com um ser humano. A união não produziu fru
to algum.

- Quero fazer o teste eu mesmo - repetiu Jem Lorry obstinadamente.


- O problema
é muito importante para que dependa de uma única união.

- Houve mais de uma - observou Kier Gray tranquilamente.

- A importância da experiência - interveio secamente outro dos prese


ntes, - é que
ofereça uma solução e não resta a menor dúvida de que a raça hum
ana dominaria
no final. Somos aproximadamente mais de três bilhões e meio, contr
a, digamos, cinco milhões, que ao meu ver é uma estimativa aproxi
mada do número. E mesmo que
a experiência não produzisse filhos, conseguiríamos nosso objetivo
no sentido de que
dentro de duzentos anos, considerando uma vida normal com duraç
ão de cinquenta anos, não restaria um slan vivo.

Kathleen ficou impressionada ao ver que Jem Lorry havia ganho sua
causa. Percebeu vagamente na superfície da sua mente que não tr
ataria mais daquele assunto. À

noite ele mandaria soldados buscá-


la e ninguém poderia dizer depois que tinha havido desacordo no Co
nselho, pois seus silêncio significava o consentimento.

Durante alguns minutos só percebeu um vago rumor de vozes e um


barulho de
pensamentos vagos. Finalmente uma frase se fixou em seu cérebro.
Fazendo um esforço, fixou sua atenção no que diziam. A frase pode
ríamos exterminá-los desta forma”, fê-
la ver até onde eles haviam chegado no aperfeiçoamento do seu pla
no no es-

paço daqueles breves minutos.

- Vamos esclarecer a situação - dizia Kier Gray animado. - A introduç


ão da ideia de
adotar um aparente acordo com os slans com o objetivo de extermin
á-los pode ter
feito vibrar uma corda sensível que, ao que parece, também elimina
das nossas mentes toda uma ideia de uma verdadeira e h
onrada colaboração baseada em, por
exemplo, uma ideia de assimilação. Os esquemas da ideias são, em
breves palavras, os seguintes: Número um. Permitir-lhes mesclar-
se com os seres humanos até que
cada um deles tenha sido completamente identificado e então pegar
a maioria deles
de surpresa e caçar os demais em um breve espaço de tempo. Plan
o número dois:
Obrigar todos os slans a se instalarem em uma ilha, Hawai, por exe
mplo, e uma vez
que os tenhamos ali, rodear a ilha com barcos de guerra e aniquilá-
los. Plano núme-ro três: Tratá-
los duramente desde o início; insistir em fotografá-
los e tirar suas impressões digitais, fazê-
los comparecer à Polícia com frequência, o que ofereceria um
elemento de legalidade e retidão. Esta terceira ideia pode ser do agr
ado dos slans,
porque se levada a cabo durante um certo período de tempo, pode p
arecer uma salvaguarda a todos, menos a um pequeno número dele
s que se apresentaram à Polícia
em um dia determinado. A medida restritiva terá ademais o valor psi
cológico de fazê-

los se sentir que somos severos e meticulosos, e tranquilizará gradu


almente e para-doxalmente, seu estado de espírito.

A voz fria continuou discursando, mas tudo aquilo tinha, de um certo


modo, um
senso de irrealidade. Era impossível que sete homens estivessem al
i discutindo a trai-

ção e o assassinato em vasta escala... sete homens que decidiam e


m nome de toda
raça humana um ponto que estava além da vida e da morte.

- Vocês todos estão loucos! - disse Kathleen maldosamente. - Ou im


aginaram por
um instante que os slans se deixarão enganar por essas mentiras fla
grantes? Os
slans podem ler os pensamentos e além disto tudo é tão transparent
e e ridículo, e
cada um dos seus planos é tão infantil e claro, que eu me pergunto
como poderia
acreditar que algum de vocês seja inteligente ou astuto.

Todos voltaram-se para olhá-


la friamente e em silêncio. Um leve sorriso de ironia
se esboçava nos lábios de Kier Gray.

- Pois me parece que você é que está errada e não nós. Acreditamo
s que eles são
inteligentes e desconfiados e portanto não lhes oferecemos nenhum
plano complicado. E isto, é claro, é o primeiro elemento do êxito de
uma propaganda. E quanto a
ler pensamentos, nós nunca entraremos em contato com os chefes
slans. Transmiti-
remos a opinião da nossa maioria aos outros cinco conselheiros, qu
e entabularão as
negociações na crença firme de que estamos jogando limpo. Nenhu
m subordinado
receberá instruções, salvo sobre o assunto que deve ser fielmente r
ealizado.

- Um momento - interrompeu John Petty, com tal tom de satisfação q


ue Kathleen voltou-
se para ele sobressaltada. - O principal perigo não reside em nós m
esmos, e
sim no fato de que esta garota slan ouviu nossos planos. Ela disse q
ue esteve em comunicação mental com o capitão da nave que se ap
roximou hoje do palácio. Em outras palavras, agora eles sabem que
ela está aqui. Suponhamos que outra nave se
aproxime; ela estará em condições de informá-
los sobre nossos planos. Considero,
por conseguinte, que devemos matá-la sem demora.

Uma fraqueza mental ardia dentro de Kathleen. A lógica do argumen


to não podia
ser refutada. Via que as mentes de todos ali reunidos estavam aceit
ando a ideia. Ao
tentar fugir dos assédios de Jem Lorry ela havia caído em uma arma
dilha que só podia terminar na sua morte.

O olhar de Kathleen estava fixo, com fascinação, no rosto de John P


etty. O homem sentia-
se imbuído de uma satisfação íntima que não conseguia ocultar. Nã
o restava a

menor dúvida de que ele não havia esperado uma vitória tão esmag
adora. A surpresa não fazia mais que aumentar a sua satisfação.

Afastou relutantemente o olhar dele e concentrou-


se nos demais presentes. Os vagos pensamentos que havia captad
o deles agora chegavam mais concentrados. Já
não restava a menor dúvida sobre o que pensavam. Sua decisão ca
usava um prazer
particular aos mais jovens que não tinham, como Jem Lorry, um inte
resse pessoal
por ela, mas sua convicção era algo inalterável. A morte.

Kathleen sentiu que a inevitabilidade daquele veredito estava escrito


no rosto de Jem Lorry.

Ele voltou-se para ela, o desespero pintado no rosto.

- Maldita imbecil!... - disse, e começou a morder nervosamente o láb


io inferior e
arriou na cadeira, com a vista melancolicamente fixa no solo.

Kathleen estava aturdida. Ficou olhando por um longo momento par


a Kier Gray antes de realmente conseguir vê-
lo e notou com horror o sulco que cruzava sua testa,
a expressão não dissimulada dos seus olhos. Aquilo lhe deu um mo
mento de coragem. Ele não queria sua morte, ou do contrário não e
staria tão aterrorizado. A coragem e a esperança que vieram com el
e se desvaneceram como uma estrela atrás de
uma nuvem negra, pois o próprio desespero de Gray lhe dizia que o
problema que
que tinha surgido como uma erupção naquela sala não tinha soluçã
o. Lentamente,
sua expressão foi se transformando em impassibilidade, mas não tin
ha a menor esperança até que o ouviu dizer:

- A morte talvez fosse a solução necessária se fosse verdade que el


a esteve se co-
municando com um slan no interior da nave. Felizmente para ela, foi
uma mentira.

Na nave não havia slans, pois era um robô auto-impulsionado.


- Eu achava que as naves-robôs auto-
impulsionadas podiam ser capturadas por radio-
interferência em seu mecanismo - disse um dos presentes.

- E assim é - respondeu Kier Gray. - Você deve lembrar que a nave


elevou-se
quase verticalmente antes de desaparecer. Os controladores slans a
lançaram desta
forma quando subitamente se deram conta de que estávamos tendo
êxito em obs-truir o sinal da sua nave.

Esboçou um sorriso horrível.

- Nós derrubamos sua nave em um terreno pantanoso a cem milhas


ao sul. Ficou
em mal estado, segundo as informações, e ainda não puderam tirá-
la de lá. Mas no
seu devido tempo será levada às grandes oficinas de Cudgen, onde
sem dúvida seu
mecanismo poderá ser analisado. A razão de termos demorado tant
o - acrescentou, -

foi que seu mecanismo robô estava baseado em um princípio ligeira


mente diferente
o que requeria uma nova combinação de ondas de radio para contro
lá-lo.

- Tudo isto carece de importância - disse Petty com impaciência. - O


que conta
aqui é que essa garota slan escutou nossos planos de aniquilação d
a nossa raça e,
portanto, pode ser perigosa, no sentido de que fará tudo quanto pod
e para informar
os seus sobre as nossas intenções. Ela deve ser morta.

Kier Gray levantou-se lentamente e voltou-


se para Petty com o rosto carrancudo.
Ao falar, sua voz tinha um timbre metálico.

- Acho que eu já lhe disse que estou fazendo um estudo sociológico


sobre esta
slan, e eu lhe agradeceria, portanto, que se abstenha de qualquer te
ntativa de executá-
la. Você disse que todos os meses capturam e executam centenas d
e slans, e
que eles afirmam que ainda existem cinco milhões deles no mundo.
Espero - acrescentou, com um tom de sarcasmo na voz, - que me s
erá concedido o privilégio de
conservar a vida a desta para propósitos científicos, uma slan que, a
o que parece, você odeia mais que a todos os outros juntos.

- Tudo isto está muito bem, Kier - interrompeu o outro secamente. -


O que eu queria saber é porque Kathleen mentiu ao afirmar que havi
a estado em comunicação com a nave.

Kathleen deu um profundo suspiro. O terror daqueles minutos de per


igo mortal ia
desaparecendo nela, mas ainda se afogava sob o peso da emoção.
Com voz trêmula, disse:

- Porque eu sabia que Jem Lorry ia fazer de mim sua amante e queri
a que vocês soubessem que estava resistindo.

Sentiu o tremor dos pensamentos dos ali reunidos e viu em suas ex


pressões faciais primeiro a compreensão, depois a impaciência.

- Pela saúde do céu, Jem! - exclamou um deles, - não poderias deix


ar teus assuntos amorosos à margem das reuniões do Conselho?

- Com o devido respeito a Kier Gray - interveio outro, - é simplesmen


te intolerável
que um slan se oponha a qualquer coisa que um ser humano tenha
planejado para
ele. Estou curioso pra ver qual será o resultado desta reunião. Suas
objeções estão
refutadas. E agora, Jem, leve sua protegida para seu quarto e assim
espero que isto acabe com a discussão.

Pela primeira vez em seus dezessete anos Kathleen teve a sensaçã


o de que havia
um limite para o que um slan era capaz de suportar. Sentia um tens
ão interior, como
se algum órgão vital estivesse a ponto de se romper. Dava-
se conta de que não conseguia pensar nada e permanecia sentada,
agarrada com força ao braço plástico da
sua cadeira. E subitamente sentiu em sua mente a chicotada de um
pensamento de
Kier Gray: “Louca! Como foi se meter nesta enrascada?

Olhou-
a angustiada, vendo pela primeira vez que ele estava deitado para tr
ás em sua cadeira, os olhos e a boca apertada.

Finalmente ele falou:

- Tudo isto estaria muito bem se essas uniões precisassem de prova


s, mas não é
assim. Os testemunhos de mais de cem casos de tentativas de repr
odução nas uni-

ões humano-slans acham-


se à disposição de todos nos arquivos da biblioteca, sob o
título “Matrimônios Anormais”. As razões da esterilidade são difíceis
de serem defini-
das, já que os homens e os slans não diferem uns dos outros em u
m grau considerá-

vel. A surpreendente dureza da musculatura dos slans é devida, não


a um novo tipo
de músculo, e sim à aceleração da corrente elétrica que atua nos m
úsculos. Há também um grande incremento no número de nervos de
todas as partes do corpo, o que
os fazem mais sensíveis. Os dois corações não são na realidade doi
s, mas sim uma
combinação em que uma das seções pode funcionar separadament
e. E as duas se-

ções cardíacas não são sensivelmente maiores que as de um coraç


ão normal. São simplesmente duas bombas mais aperfeiçoadas.

Ante a expectativa do auditório, continuou:

- Os tentáculos que emitem e recebem pensamentos são cresciment


os fibrosos de
antigas formações pouco conhecidas da parte alta do cérebro, as qu
ais devem ter
sido, evidentemente, a fonte de toda a fraca telepatia mental conhec
ida pelos primitivos seres humanos, praticada ainda em vários lugar
es por muitíssimos humanos.

Viram, portanto, o que fez Samuel Lann com sua máquina de transf
ormação à sua
mulher, o que lhe deu as três primeiras crianças slans, um menino e
duas meninas,
há mais de seiscentos anos, não acrescentando nada ao corpo hum
ano e sim mudando ou modificando o que já existia anteriormente.

Kathleen achou que ele estava tentando ganhar tempo. Em uma bre
ve fagulha
mental sua, ela viu indícios de uma compreensão total da situação.
Mas devia saber
que não havia argumentos nem lógica que fossem capaz de dissuad
ir a um homem

como Jem Lorry das suas paixões. Ouviu a voz de Gray que prosse
guia:

- Dou-
lhes estas informações porque ao que parece nenhum dos aqui pres
entes se
incomodou em pesquisar a verdadeira situação para compará-
la com a crença geral.

Tomemos, por exemplo, a assim chamada inteligência superior dos


slans, à qual é re-
ferida na carta deles recebida hoje. Há um caso a esse respeito que
foi esquecido
por muitos anos; o experimento pelo qual Samuel Lann, esse home
m extraordinário,
criou um macaco pequeno, um garotinho slan e outro humano, nas
mesmas rígidas
condições científicas. O macaco foi o mais precoce, tendo aprendido
em poucos meses o que o slan e o humano demoraram muito mais
para assimilar. Depois o humano e o slan aprenderam a falar e o ma
caco ficou consideravelmente para trás. O slan
e o humano continuaram progredindo a um passo quase igual, até q
ue na idade de
quatro anos as faculdades de telepatia do slan começaram a manife
star-se vagamente.

Ao chegar àquele ponto, o garotinho slan tomou a dianteira. Entreta


nto, o doutor
Lann descobriu mais tarde que intensificando a educação do garotin
ho humano, era-
lhe possível alcançar e permanecer em um nível relativamente igual
ao do slan, especialmente na rapidez do pensamento. A grande vant
agem do slan era ler os pensamentos dos demais, o que lhe dava u
ma inigualável visão interna da psicologia e um
fácil acesso à educação, coisa que o garotinho humano só poderia c
onseguir através dos olhos e dos ouvidos.

John Petty interrompeu-o com uma voz dura e áspera.

- Tudo que você falou é conhecido há muito tempo e é a principal ra


zão pela qual
não podemos levar em consideração fazer negociações de paz com
esses... esses
malditos seres artificiais. Para que um ser humano possa equiparar-
se a um slan, tem que submeter-
se a anos de terríveis esforços para conseguir o que o slan consegu
e com a maior facilidade. Em outras palavras, exceto uma mínima fr
ação da huma-
nidade é incapaz de ser outra coisa exceto um escravo, em compar
ação com um
slan. Senhores, não podemos tratar de paz, pelo contrário, devemos
tratar de uma
intensificação dos métodos de extermínio. Não podemos correr o ris
co de pôr em
prática um dos planos maquiavélicos que discutimos, porque o perig
o de que fracas-se é muito grande.

- Tem razão! - exclamou um conselheiro.

Várias vozes fizeram eco a esta convicção, e no mesmo instante nã


o cabia dúvida
sobre qual seria o veredito. Kathleen viu Kier Gray olhá-
la fixamente nos olhos.

- Se esta tem que ser vossa decisão - disse, - eu consideraria um gr


ave erro que
algum de nós a tomasse como amante. Poderia dar uma má impres
são.

O silêncio que se seguiu foi de concordância. O olhar de Kathleen fi


xou-se no rosto de Jem Lorry e ele devolveu-
lhe o olhar friamente, ficando a mesmo tempo de pé enquanto ela se
dirigia para a porta. Avançou para esta para dar-
lhe passagem e quando ela passou ao seu lado, disse:

- Não vai ser por muito tempo, querida. De forma que não acaricie v
ãs esperanças

- e sorriu-lhe confiadamente.

Mas não era nesta ameaça que Kathleen estava pensando enquant
o avançava pelo
corredor. Recordava a explosiva e destruidora expressão que havia
aparecido no rosto de Kier Gray no momento em que John Petty soli
citou sua morte. Não conseguia
entender. Não se amoldava absolutamente às palavras que havia pr
onunciado um
minuto antes, quando informou os demais que a nave slan havia sid
o derrubada em
um pântano. Se era assim porque havia se impressionado? E se n
ão fosse assim,
porque Kier Gray havia corrido o terrível perigo de mentir por ela, e
porque estava provavelmente se preocupando por ela?

IX

Jommy Cross ficou contemplando pensativa mas detalhadamente a


quele farrapo
humano que era Granny. Não sentia raiva por sua traição. O resulta
do era o desastre,
seu futuro aparecia subitamente vazio, sem objetivo, sem lar. O prim
eiro problema
que se apresentava era o que fazer com aquela velha.

Ela estava sentada, rindo, em uma cadeira, vestida com uma roupa
de cores alegres que revestia suas forma infectas. Ela olhou-
o, rindo.

- Granny sabe de uma coisa, sim... Granny sabe... - suas palavras e


ram incoerentes. - Dinheiro, oh meu Deus, Granny tem muito dinheir
o para sua velhice! Olha!

Com a confiante inocência de uma pessoa bêbada, tirou um abolsa


negra, rechea-
da de baixo da sua saia e com o senso comum de um avestruz volto
u a escondê-la.

Jommy ficou impressionado. Era a primeira vez que via aquele dinh
eiro apesar de saber dos seus esconderijos. Fazer-
lhe aquela ostentação, agora que acabara de denunciá-
lo, era uma estupidez que merecia o mais severo castigo.

Mas continuava indeciso, enquanto a tensão dos pensamentos exter


iores que iam
aumentando exercia um peso impalpável sobre seu cérebro. Eram d
ezenas de homens que avançavam atrás de suas baterias de metral
hadoras. Franziu o cenho preo-
cupado. Por direito natural tinha que deixar que aquela bruxa que o
havia delatado
sofresse o peso da lei que determinava que todo ser humano, sem e
xceção, que tivesse encoberto ou abrigado um slan fosse pendurad
o pelo pescoço até a morte.

Por sua mente passou a imagem de Granny encaminhando-


se para o patíbulo,
Granny implorando perdão aos gritos, Granny tentando impedir que l
he pusessem o
laço no pescoço, chutando, arranhando, golpeando seus captores.

Avançou e pegou no seu ombro nu, onde a roupa havia deslizado. S


acudiu-a com
uma violência mortal até que seus dentes bateram e e ela soltasse u
m soluço horrí-

vel, e um olhar demente apareceu em seus olhos.

- Será a morte para você se lhe pegarem... Não conhece a lei?

- Eh?... Hum!.... - tentou endireitar-


se, mas voltou a cair no torpor da sua mente aturdida.

Logo, logo, pensou ele, fazendo um esforço mental para ver se suas
palavras haviam surtido algum efeito. Estava a ponto de desistir qu
ando viu um tênue raio de
razão no meio da massa incoerente dos pensamentos da velha.
- Está tudo bem... - murmurou ela. - Granny tem muito dinheiro... As
pessoas ricas não vão enforcá-la.

- Não fale besteira...

Jommy afastou-
se dela, indeciso. O peso dos pensamentos dos homens era uma
enorme carga para sua mente. Estavam se aproximando, fechando
cada vez mais o
círculo. Seu número o surpreendia e mesmo a poderosa arma que ti
nha no bolso seria ineficaz se uma chuva de balas atravessasse as f
rágeis paredes do barraco. E bastava uma bala para aniquilar todos
os sonhos do seu pai.

“Meu Deus! - disse consigo mesmo - Estou louco! O que vou fazer c
om ela mesmo

que a tire daqui? Todos os caminhos da cidade estão bloqueados. N


ão há mais que
uma esperança e seria uma dificuldade quase impossível mesmo se
m o peso de uma
mulher bêbada nos ombros. Não tenho a menor vontade de subir tri
nta andares pelas paredes com este peso morto”

A lógica lhe dizia para abandoná-


la, e esteve a ponto de partir, mas a visão de
Granny sendo enforcada reapareceu com todo seu horror. Por muito
s que fossem os
seus defeitos, aquela mulher tinha salvo sua vida. Era uma dívida qu
e tinha que pagar. Com um gesto brusco arrancou a bolsa preta deb
aixo da saia de Granny, que
lançou um grunhido de bêbada e com um resto de lucidez avançou
as mãos para a bolsa que Jommy balançava, tentando-
a, diante dos seus olhos.

- Olhe! - disse-
lhe. - Todo seu dinheiro, seu futuro. Você morrerá de fome e terá
que varrer o chão do asilo. Eles a açoitarão...
Em quinze segundos a velha se acalmou; uma serenidade ardente e
capaz de compreender os pontos essenciais com a clareza de um c
riminoso endurecido.

- Eles nos enforcarão! - sussurrou.

- Não, nós iremos a um lugar - disse Jommy. - Tome, aqui está seu
dinheiro -

acrescentou, estendendo a bolsa e sorrindo a ver a avidez com que


a velha o pegou.

- Temos um túnel por onde fugir. Vai do meu quarto até uma garage
m da rua 370 e
eu tenho a chave de um carro. Iremos até perto do Controle Aéreo e
roubaremos um...

Deteve-se, dando-
se conta da fragilidade da última parte do seu plano. Parecia in-
crível que os slans sem tentáculos estivessem tão pobremente orga
nizados que ele pudesse agora apoderar-
se de uma daquelas maravilhosas naves espaciais que eles
lançavam a cada noite para o céu. Era certo que uma vez havia esc
apado deles com uma facilidade absurda, mas...

Jommy depositou a velha sobre o chão do telhado do edifício de ond


e partiam as naves espaciais e deixou-
se cair ao seu lado, ofegante. Pela primeira vez em sua vida
sentia um cansaço muscular devido à violência do esforço.

“Deus do Céu! - disse a si mesmo. - Quem diria que esta velha pesa
va tanto?”

Granny lançava roncos ante a perspectiva de terror pela perigosa es


calada. Jommy
captou o primeiro sinal nas palavras de vitupério que subiam aos se
us lábios. Seus extenuados músculos galvanizaram-
se instantaneamente e com mão rápida tapou-lhe a boca.
- Cale a boca ou eu a jogo pela varanda como um saco de batatas! -
disse. - Você
é culpada da situação e tem que aguentar as consequências.

Suas palavras tiveram o efeito de uma ducha fria. Jommy não pôde
deixar de ad-
mirar a reação da velha após seu terror. A velha certamente tinha u
m grande domí-

nio de si própria. Ela afastou a mão que lhe tapava a boca e pergunt
ou:

- E agora?

- Temos que encontrar uma maneira de entrarmos no edifício o mais


breve possí-

vel e... - olhou seu relógio de pulso e sentiu-


se desfalecer. Faltavam doze minutos
para as dez horas! Doze minutos antes da partida da nave foguete!
Doze minutos para assumir o controle da nave!

Levantou Granny de uma vez, colocou-


a no ombro e correu para o centro do telhado. Não somente não tinh
a tempo de procurar as portas, como estas provavelmente
estavam fechadas e lhe restava também muito pouco tempo para es
tudar e neutrali-
zar o sistema de alarme. Não havia mais que um caminho. Em algu
m lugar devia estar a pista pela qual as naves eram lançadas para a
s remotas regiões do espaço in-terplanetário.

Notou sob seus pés uma ligeira elevação, como uma pequena protu
berância e parou, balançando, perdendo o equilíbrio pela súbita par
ada logo após sua corrida. Procurou cuidadosamente pelo começo d
a seção protuberante que devia ser a borda da
pista de lançamento. Tirou rapidamente a arma atômica do seu pai d
o bolso e seu fogo desintegrador lançou chamas.
Aproximou-
se do buraco de mais de um metro de diâmetro que havia feito e viu
um túnel que penetrava nas profundezas, em um ângulo de aproxim
adamente sessenta graus. Eram cem, duzentos, trezentos metros d
e metal reluzente, e a nave ia
adquirindo forma à medida que os olhos de Jommy iam se acostum
ando à luz fraca.

Viu a aguda ponta de um torpedo com os tubos de explosão que sai


am dela, desfi-
gurando o efeito liso e aguçado. Naquele momento tudo aquilo tinha
um aspecto morto e silencioso, mas ameaçador.

Era como olhar pelo cano de uma escopeta e ver a ponta da bala qu
e estava a
ponto de ser disparada. A comparação lhe pareceu tão apropriada q
ue por alguns
momentos ficou indeciso sobre o que devia fazer. Tinha dúvida: ous
aria deslizar pela
suave pista quando de um segundo para outro a nave-
foguete poderia lançar-se ao céu?

Estava com frio. Fazendo um esforço, afastou a vista da paralisante


profundeza do
túnel e fixou seus olhos, primeiro sem ver, e depois como que fascin
ado, no distante
esplendor do palácio. Seus pensamentos passaram velozes; seu cor
po foi perdendo
lentamente a tensão. Durante alguns segundos ficou ali, absorvido p
ela magnificência, pela beleza e esplendor que oferecia o palácio à
noite.

Naquela alta torre e por entre os arranha-


céus, o palácio aparecia claramente com
todo seu brilho. Brilhava como uma chama suave, viva e maravilhos
a, que mudava
de cor a todo momento, oferecendo milhares de combinações, cada
uma delas sutil,
às vezes surpreendente, variada. Nenhuma delas era uma repetição
da anterior.

Reluzia, vibrava, vivia! Uma vez, durante um longo momento, a torre


alta transformou-
se em uma brilhante turquesa azul, enquanto que a parte baixa e vis
ível do pa-
lácio era um profundo e vermelho rubi. Foi só por um momento... e a
combinação de
desfez em um milhão de rutilantes fragmentos de cor: azul, vermelh
o, verde, amare-
lo... Nem uma só cor faltava àquela maravilhosa policromia, naquela
silenciosa explosão.

Durante mil noites sua alma havia se alimentado daquela beleza e a


gora sentia novamente a admiração. Aquela visão dava forças. Volta
va a ele a coragem, como a in-
quebrantável e indestrutível força que tinha. Apertou os dentes e nov
amente contemplou a descida que formava um ângulo tão agudo, tã
o liso, em sua promessa de
uma louca descida até a ponta metálica da nave.

Aquele perigo era como um símbolo do seu futuro. Um futuro ignora


do, menos
predizível que nunca. Era senso comum acreditar que os slans sem
tentáculos sabiam que ele estava no telhado. Eles deviam ter sistem
as de alarme... deviam ter...

- Que está fazendo aqui olhando por esse buraco? - grunhiu Granny.
- Onde está a porta que precisamos? Está na hora de...

- A hora! - disse Jommy Cross. Seu relógio marcava quatro minutos


para as dez o
que deixou seus nervos tensos, pois lhe restavam quatro minutos pa
ra conquistar
uma fortaleza. Captou os pensamentos de Granny que dava-
se conta das suas inten-
ções. A palma da mão chegou a tempo de afogar em seus lábios o g
rito que ela se
dispunha a lançar e um segundo eles caíam, irrevogavelmente lança
dos no inevitá-

vel.

Chocaram-
se com a superfície do túnel, quase suavemente, como se tivessem
entrado subitamente em um mundo de progresso lento. A superfície
não era dura e pa-

recia ceder sob seu corpo e ele tinha somente uma vaga noção de
movimento. Mas
seus olhos e ouvidos não se enganavam, o agudo nariz da nave esp
ecial subia para
eles. A ilusão de que a nave avançava rugindo era tão real que teve
que lutar contra o pânico que ameaçava apoderar-se dele.

- Rápido! - sussurrou para Granny. - Freie com as palmas das mãos!

A velha não precisava que a incentivassem. De todos os instintos do


seu extenuado corpo o mais forte era o da conservação. Naquele m
omento teria sido incapaz de
gritar mesmo para salvar sua vida, mas seus lábios tremiam de terro
r enquanto lutava por ela. O terror havia convertido seus olhos em p
ontos negros, mas... lutava! Estendendo suas mãos ossudas, agarro
u-se ao reluzente metal arranhando a superfície
com as longas pernas abertas e, por fraco que fosse o resultado, ist
o ajudou.

Repentinamente, a ponta da nave elevou-


se acima de Jommy Cross, mais alta do
que ele havia pensado. Fazendo um esforço desesperado,
agarrou-se à primeira
grossa fileira de câmaras de propulsão. Seus dedos tocaram o liso
metal oleoso e resvalaram e imediatamente perdeu a presa.
Caiu de costas e só então se deu conta de que se havia erguido ao
máximo da es-
tatura do seu corpo. Foi uma queda forte, quase atordoante, mas no
ato se pôs novamente de pé graças à força especial dos seus músc
ulos de slan. Seus dedos agarraram-
se na segunda fileira dos grandes tubos com tanta força, que a parte
incontrolável da sua corrida terminou. Extenuado pelo esforço e pel
a descida, abandonou-se, e somente quando voltou a recuperar-
se tentando aliviar o aturdimento da sua cabe-

ça foi que se deu conta de que um pouco mais além, sob o imenso c
orpo do aparelho, via-se uma zona iluminada.

A nave tinha agora uma curva tão fechada em relação ao solo do tú


nel que teve que inclinar-
se de uma forma dolorosa para poder avançar.

“Uma porta aberta, aqui, a poucos segundos antes de terminar a na


ve”, estava
pensando. Era uma porta! Uma abertura de setenta centímetros de
diâmetro no casco de metal da nave, de 30cm de espessura, com a
s dobradiças abrindo-se para dentro. Empurrou-
a sem vacilar com a terrível arma, pronto para o menor movimento.

Mas nada aconteceu.

À primeira vista, viu que estava sozinho na sala de controle. Havia al


gumas cadeiras, um quadro de instrumentos de aspecto complicado
e duas grandes placas curvas
e reluzentes a cada lado. Havia também uma porta aberta que levav
a a outra divisão.

Jommy só precisou de um instante para entrar, arrastando a velha a


ssustada atrás
dele e, uma vez ali, saltou com presteza para a porta de comunicaçã
o.
Ao chegar ao umbral, parou e olhou. A segunda sala estava mobilha
da em parte
com as mesmas cadeiras da sala de controle, umas cadeiras cômod
as e profundas.

Mas mais da metade da sala estava ocupada por caixas de embalag


em, presas ao
solo com correntes. Havia duas portas. Uma delas com certeza leva
va a outra seção da longa nave. Estava entreaberta e por ela viam-
se caixas e vagamente, no fundo,
outra porta que levara a uma quarta divisão. Mas foi a segunda port
a da sala que fez
com que Jommy Cross se detivesse gelado onde estava.

Estava em um dos lados, mais além das cadeiras, e dava para o ext
erior da nave
procedente da sala externa, na qual havia alguns homens. Abriu sua
mente para
qualquer recepção. Instantaneamente ondas chegaram a ele; eram t
antas que filtra-
gem combinada que passava através das defeituosas telas mentais,
lhe aportaram
uma variedade de atitudes, umas ameaçadoras, outras inquietas, m
as todas elas
como se aqueles slans sem tentáculos estivesse ali reunidos espera
ndo por alguma coisa.

Cortou a comunicação mental e voltou-


se para o painel de instrumentos que ocu-

pava toda a parede principal do quadro de controles. O quadro tinha


cerca de um
metro de largura e dois de comprimento e continha vários tubos met
álicos reluzentes
e diversos mecanismos brilhantes. Havia mais de uma dezena de al
avancas de controle de diversos tipos, todas ao alcance do homem
que estivesse sentado na poltrona de comando.
Em cada lado do quadro de instrumentos havia as reluzentes placas
curvas que
haviam chamado sua atenção. A superfície côncava de cada seção
principal reluzia
com uma luz própria atenuada. Era impossível solucionar o sistema
de controles da
nave nos poucos instantes de que dispunha. Sem pensar no que faz
ia, sentou-se de
um saldo na poltrona de controle e com um gesto deliberado aciono
u todos os comu-tadores e alavancas do quadro.

Uma porta de se fechou com um ruído metálico. Produziu-


se uma súbita e maravilhosa sensação de leveza, um rápido movim
ento de aceleração que quase esmagou
seu corpo e depois um surgo rugido grave. No mesmo instante Jom
my compreendeu
o objetivo das duas placas curvas. Na da direita apareceu a imagem
do céu que tinha
em frente. Jommy olhava muito verticalmente para que a Terra não f
osse outra coisa que uma imagem deformada no fundo da placa.

Foi na placa da esquerda onde Jommy pôde gozar da gloriosa visão


de uma cidade
de luzes, à medida que ia ficando para trás da nave, tão vasta que i
mpressionava a
imaginação. Longe, de um lado, viu o esplendor noturno do palácio.

E então a cidade perdeu-se na distância.

Cuidadosamente foi fechando todas as chaves que havia aberto, co


mprovando o
efeito de cada uma delas. Após dois minutos, o complicado quadro d
e instrumentos
estava resolvido e ele tinha o simples mecanismo sob controle. A util
idade do quadro
de interruptores não era clara, mas não podia esperar. Adotou uma
marcha horizontal porque não tinha intenção de penetrar no espaço
sem ar. Isto exigia um profundo
conhecimento de todos os botões e contatos do mecanismo, e seu p
rimeiro propósito
era estabelecer uma nova e mais segura base de operações. Depoi
s, com aquela nave disposta a levá-lo onde quisesse ir...

Sua mente estava excitada. Sentia uma estranha sensação de pode


r apoderar-se
dele. Ainda restavam mil coisas por fazer, mas pelo menos estava fo
ra da jaula; tinha
idade e força suficientes. Ainda transcorreriam anos, longos anos, q
ue o separavam
da maturidade. Tinha que aprender a usar toda a ciência do seu pai.
Antes de tudo
tinha que estudar cuidadosamente seu plano primordial de encontrar
os verdadeiros slans e fazer as primeiras explorações.

Seus pensamentos pararam subitamente ao lembrar da presença de


Granny. As
ideias da velha não eram mais que uma leve pulsação da sua mente
durante aqueles
minutos. Sabia que ela estava na sala contigua e no fundo do seu c
érebro via a imagem do que ela estava vendo, e naquele preciso mo
mento a imagem se desvaneceu,
como se ela tivesse fechado os olhos.

Jommy Cross sacou sua arma ao mesmo tempo em que dava um s


alto de lado. Da
porta saiu um raio de fogo que abrasou o lugar onde ele havia estad
o sentado. Tocou no quadro de instrumentos e este se apagou. Uma
alta garota slan sem tentáculos estava de pé em frente a ele, apont
ando-lhe sua pistola, mas seu corpo ficou
imóvel ao ver a arma de Jommy apontando para ela. Assim perman
eceram durante
um longo momento aterrador. Os olhos da garota transformaram-
se em pontos reluzentes.

- Maldita víbora!
Apesar do seu furor, ou talvez devido a ele, a voz tinha uma vibraçã
o sonora quase bela, e no ato Jommy Cross sentiu-
se vencido. Seu aspecto e o som da sua voz trou-

xeram-
lhe à memória a piedosa recordação da sua mãe, e com uma sensa
ção de de-
samparo soube que jamais poderia apagar da existência aquela mar
avilhosa criatura,
como não pôde apagar a da sua mãe. Apesar da potente arma que
a ameaçava,
como a da garota o ameaçava, soube que estava completamente à
sua mercê. E a
forma como ela havia disparado pelas costas, provava a firme decis
ão que ardia atrás
daqueles olhos cinzentos. Morte! O ódio implacável dos slans sem t
entáculos contra os verdadeiros slans.

Apesar da sua fraqueza, Jommy a contemplava com crescente fasci


nação. Alta,
forte, com um corpo esbelto, permanecia imóvel, tranquila, com um
pé adiantado,
um pouco de lado, como um corredor disposto a começar uma corri
da. A mão direita, que sustentava a arma, era delgada, delicadament
e modelada, de uma deliciosa
cor tostada. A mão esquerda estava oculta atrás das costas, como s
e ao avançar rapidamente balançando os braços tivesse se detido s
ubitamente no meio do passo, com uma mão adiante e outra atrás.

Seu traje consistia de uma simples túnica amarrada na cintura e na


sua cabeça, or-
gulhosamente erguida, ondulava um cabelo castanho escuro. Seu ro
sto, sob aquele
diadema dourado, era a epítome de uma beleza sensitiva, os lábios
não muito grossos, o nariz delicadamente perfilado, as sobrancelhas
lisas e suaves. E, não obstante,
era esta suavidade das sobrancelhas o que dava ao seu rosto aquel
a força, aquela
potencialidade intelectual. Sua tez parecia suave e clara e os olhos
cinzentos tinham uma luminosidade sombria.

Não, não, não podia disparar; não podia apagar a existência daquel
a mulher esqui-
sitamente bela. E não obstante... não obstante, tinha que demonstra
r-lhe que podia fazê-
lo. Permanecia imóvel, estudando a superfície da sua mente, os pen
samentos
apagados que brotavam dela. Via em sua reserva a mesma incompl
eta proteção que
havia observado nos outros slans inimigos, devido sem dúvida à sua
incapacidade de
ler os pensamentos alheios e, por conseguinte, de entender o que si
gnificava uma proteção completa.

No momento não se permitia seguir as leves vibrações que emanav


am dela. A úni-
ca coisa que contava agora era que estava de pé em frente daquela
garota terrivelmente perigosa, ambos com as armas levantadas, os
músculos tensos e os dois corpos na mais atenta atitude de um duel
o.

A garota foi a primeira a falar.

- Isto é uma loucura - disse. - Temos que deixar as armas no chão,


sentar-nos e
conversar. Isto acalmará nossa intolerável tensão nervosa, mas nos
sa posição continuará sendo materialmente a mesma.

Jommy Cross ficou surpreso. A proposição delatava uma fraqueza a


nte o perigo
que não aparecia nem em seu enérgico rosto nem no seu corpo. O f
ato de que ela a
tivesse formulado reforçava psicologicamente a posição de Jommy,
mas sentia um
certo receio, tinha a certeza de que sua oferta podia ocultar certos p
erigos.

- A vantagem será sua - respondeu ele lentamente. - Você é uma sla


n adulta, em
pleno crescimento, seus músculos têm melhor coordenação e pode
voltar a pegar na arma mais rapidamente que eu.

- É verdade - assentiu ela, considerando a equidade da reflexão. - M


as por outro
lado você tem a vantagem de poder ler pelo menos uma parte dos
meus pensamentos.

- Pelo contrário - disse ele, mentindo descaradamente, - quando sua


cortina mental estava fechada, a cobertura foi tão completa que eu
não pude adivinhar o seu propósito até que fosse demasiado tarde.

Pronunciar aquelas palavras o fez compreender o quão imperfeitam


ente fechado

estava na realidade sua mente. Apesar de que tinha mantido sua me


nte concentrada
no perigo e não na corrente dos seus pensamentos triviais, havia ca
ptado o suficiente para ter uma breve e coerente história da garota.

Chamava-
se Johanna Hil ory. Era piloto de linha da Linha de Marte, mas aquel
a seria sua última viagem durante alguns meses, já que tinha se cas
ado recentemente
com um engenheiro residente em Marte e esperava um filho, em vist
a do que foi de-
signada para cargos que requeriam menos esforços que a constante
tensão nervosa
da aceleração à qual eram submetidos os viajantes espaciais.

Jommy Cross começou a ficar tranquilo. Uma recém casada espera


ndo um garotinho provavelmente não tomaria decisões desesperada
s.
- Muito bem - disse Jommy - soltemos pois nossas armas ao mesmo
tempo e sen-temo-nos.

Quando as armas já estavam no chão, Jommy Cross contemplou a


garota e surpreendeu-
se em ver em seus lábios um leve sorriso de ironia que foi aumentan
do.

Desesperado, Jommy viu que a garota o ameaçava com uma peque


na pistola que
tinha na mão esquerda. Sem dúvida, ela manteve aquela diminuta a
rma oculta em
suas costas durante aqueles momentos de tensão, esperando ironic
amente o momento oportuno de fazer uso dela. Sua voz musical, co
m timbre de ouro, prosseguiu:

- Então você engoliu toda essa história da pobre esposa separada e


do garotinho,
e do marido esperando ansioso? Uma víbora já crescida não teria si
do tão crédula.

Em troca, agora a víbora jovem morrerá, vítima de uma incrível estu


pidez.

Jommy Cross mantinha a vista fixa na pistola sustentada com mão fi


rme pela garota slan. Em meio à impressão sofrida, via aquilo que n
o fundo lhe causava aquela es-
pécie de desmaio; era a forma como a nave avançava a velocidade
vertiginosa. Não
havia aceleração, era tão somente aquele incansável avanço de mil
has após milhas
de voo, sem a menor indicação de se estavam ainda na atmosfera d
a Terra ou no es-paço livre.

Estava fraquejando. Sua mente não sentia o menor terror, mas tamb
ém carecia totalmente de um plano. Qualquer ideia de ação ficou co
mpletamente afastada do seu cérebro ao dar-
se conta de que estava totalmente dominado. A garota havia lançad
o mão dos seus próprios defeitos para derrotá-lo.

Ela devia saber que sua cortina mental era defeituosa e, com astúci
a quase animal, deixou transparecer sua patética história e fazê-
lo acreditar que jamais, oh, jamais! teria a coragem de sustentar um
a luta até a morte. Agora Jommy via facilmente que sua coragem er
a à prova de aço e que não podia esperar competir com ela
senão após muitos anos.
Obedecendo a uma ordem sua, Jommy afastou-
se para um lado e viu-a recuperar
do chão as duas armas, primeiro a sua e depois a dele. Mas nem po
r um só instante
seu olhar se afastou de Jommy, nem sua mão tivera o menor tremor
enquanto continuava apontando para ele.

Deixou de lado a pequena arma que lhe havia servido para enganá-
lo e voltou a
pegar a primeira e, abrindo uma gaveta que havia sob o quadro de i
nstrumentos, jogou a pistola de Jommy nela sem sequer dirigir-
lhe um olhar. A atitude vigilante que
conservava não deixava em Jommy a menor esperança de poder do
miná-la. O fato
de que não o tivesse matado de imediato podia ser atribuído a que q
ueria falar com
ele. Mas não podia deixar esta possibilidade ao acaso.

- Se importa se eu fizer algumas perguntas antes de me matar? - dis


se em voz baixa.

- Eu farei as perguntas - respondeu ela friamente. - Não há nenhum


a finalidade em satisfazer sua curiosidade. Que idade tem?

- Quinze anos.

- Então você está em um estado de desenvolvimento mental e emoti


vo em que
apreciará mesmo alguns minutos de atraso da morte - assentiu ela -
e como um ser
humano adulto, sem dúvida ficará satisfeito em saber que enquanto
responder minhas perguntas eu não apertarei o gatilho desta pistola
energética elétrica, se bem que o resultado final será a morte.

Jommy Cross não perdeu tempo em refletir sobre essas palavras.

- Como saberá que eu digo a verdade? - perguntou.


- A verdade aparece implícita nas mentiras mais sagazes - disse ela,
com um sorriso confiante. - Nós, os slans sem tentáculos, carecend
o da faculdade de ler os pensamentos, nos vimos obrigados a desen
volver a psicologia até seus limites mais ex-

tremos. Mas deixemos isto. Mandaram-lhe roubar esta nave?

- Não.

- Então quem é você?

Jommy fez um breve relado da sua vida e, enquanto este ia se dese


nvolvendo, via
que os olhos da garota se abriam e que a surpresa franzia com suav
idade sua testa.

- Está tentando por acaso me dizer - interrompeu-


o secamente, - que é o garoto
que foi ao Controle Aéreo há seis anos atrás?

- E fiquei muito impressionado de achar pessoas tão assassinas, ca


pazes inclusive
de matar um garotinho na mesma hora - confirmou ele.

- Então finalmente chegou o momento - exclamou ela, lançando cha


mas pelos
olhos. - Durante seis longos anos temos estudado e analisado se tín
hamos direito a deixá-lo escapar.

- Dei... xar.. me... es... ca... par?... - balbuciou Jommy.

A garota não fez caso e prosseguiu, como se não o tivesse ouvido.

- E desde então temos esperado a nova ação das víboras. Estávam


os quase certos
de que não nos delatariam, porque não podiam desejar que nossa g
rande invenção,
as naves espaciais, caíssem em poder dos humanos. A principal qu
estão que nos
preocupava era: o que havia por trás daquela primeira manobra de e
xploração? Agora, com sua tentativa de roubar uma nave-
foguete, tenho a resposta.

Sumido no silêncio, Jommy Cross escutava aquela análise errônea.


O desalento aumentava nele, um desalento que não tinha nada a ve
r com o perigo que corria. Era a
incrível loucura daquela guerra de slan contra slan, cuja mortalidade
quase ultrapas-sava a imaginação.

Com sua voz vibrante, agora tomada pelo triunfo, Johanna prossegu
iu:

- É agradável saber com certeza a verdade do que durante tanto te


mpo suspeitá-

vamos, e a prova é quase inacreditável. Exploramos a Lua, Marte e


Vênus. Chegamos
inclusive às luas de Júpiter e jamais encontramos uma astronave de
sconhecida, e
nem o menor rastro de uma víbora. A conclusão é contundente: por
alguma razão,
talvez porque seus tentáculos reveladores os obrigam a estar sempr
e em movimento, nunca chegaram a criar as telas de anti-
gravidade que tornam possível a construção da nave-
foguete. Qualquer que seja a razão, a pura lógica tende a demonstr
ar inexoravelmente que vocês carecem de naves espaciais.

- Você e sua lógica já estão começando a me aborrecer - disse Jom


my Cross. - É

incrível como um slan possa estar tão equivocado. Suponhamos, ap


enas suponha-
mos só por um momento que o que lhe contei é verdade.

- Desde o começo - soltou ela, com um esboço de sorriso nos lábios


, - havia somente duas possibilidades. A primeira eu já expus. A outr
a, a que você nunca teve
contacto com os slans, vem nos preocupando durante muitos anos.
Compreenda, se
você havia sido mandado pelos slans, eles já sabiam que controláva
mos as vias aé-

reas. Mas se você era independente, possuía um segredo que cedo


ou tarde, quando
entrasse em contato com os slans, poderia ser perigoso para nós. E
m poucas palavras, se a sua versão é correta, temos que matá-
lo para evitar que no futuro possa informá-
los dos nosso conhecimentos e porque nossa política é não correr ri
scos com as víboras. De qualquer forma sua morte é certa.

Suas palavras eram duras e seu tom era gélido. Mas muito mais am
eaçador que o
tom das suas palavras era o fato de que para aquela mulher nem a
verdade nem a
mentira, nem a justiça ou a injustiça, tinham importância. O mundo d
e Jommy tremia ante a ideia de que se essa imoralidade era a justiç
a slan, estes não podiam oferecer ao mundo nada que sequer pude
sse ser comparado com a simpatia, a bondade
e gentileza espiritual que tão frequentemente havia visto nas mentes
dos seres hu-

manos mais inferiores. Se todos os slans adultos eram como ela, já


não havia esperança.

Sua mente caminhava errante pelo espantoso abismo que separava


os slans, os
seres humanos e os slans sem tentáculos e um pensamento ainda
mais terrível e sombria apoderou-
se dele. Era por acaso possível que todos os grandes sonhos e as
grandes obras do seu pai pudessem se perder naquele solitário des
erto do nada,
destruídos e arruinados por esses dementes fratricidas? Os papeis
da ciência secreta
do seu pai, que há pouco tempo havia retirado das catacumbas, est
avam em seu
bolso, e aquela criatura implacável usaria e abusaria deles se não d
esisti sse do seu propósito de matá-
lo. Apesar de toda a lógica, apesar da certeza de que não podia
esperar pegar um slan adulto desprevenido, tinha que conservar a vi
da a fim de evitar que isto acontecesse.

Seu olhar se fixou no rosto da garota, vendo as rugas de preocupaç


ão na sua teste, uma preocupação que em nada diminuía sua vigilâ
ncia. As rugas da sua testa suavizaram-se enquanto ela dizia:

- Estive examinando seu caso. Eu tenho, claro, autoridade para mat


á-lo sem con-
sultar o Conselho, mas existe o problema de se a situação que você
expôs merece
sua atenção ou não, ou se seria suficiente eu redigir um breve relató
rio. Não é uma
questão de piedade, de forma que não conserve esperanças.

Mas ele as conservava. Para fazê-


lo comparecer ante o Conselho seria necessário
tempo, e para ele tempo era a vida. Apesar de se dar conta de que ti
nha que falar
com calma, colocou um pouco de fogo na voz ao dizer:

- Tenho que confessar que minha razão se sente paralisada por esta
guerra entre
slans e slans sem tentáculos. Será que sua gente não se dá conta d
e como melhora-
ria a posição de todos os slans se quisessem cooperar com as “serp
entes”, como vo-
cês nos chamam? Serpentes! Somente esta palavra é a prova da su
a bancarrota intelectual; denuncia uma campanha de propaganda ch
eia de slogans e frases sem valor.

Apesar das chamas que apareceram nos olhos cinzentos da garota,


suas palavras foram depreciativas
- Uma pequena história pode ilustrar sobre o assunto da colaboraçã
o slan. Os slans
sem tentáculos têm cerca de quatrocentos anos de existência. Da m
esma forma que
os verdadeiros slans, eles são uma raça diferente nascida sem tentá
culos, que é a
única coisa que os diferencia das serpentes. Por motivo de seguran
ça, formaram comunidades em distritos remotos, onde o perigo de s
erem descobertos estava reduzido a um mínimo, dispostos a fazere
m amizade com os verdadeiros slans contra o inimigo comum: o ser
humano. Qual não foi então seu horror ao serem atacados e assassi
nados, sua civilização cuidadosamente edificada arrasada pelas arm
as de fogo
dos verdadeiros slans! Fizeram esforços desesperados para reativar
a amizade, para
estabelecer contato, mas foi tudo em vão. Finalmente, compreender
am que só poderiam encontrar uma certa segurança nas perigosas
cidades regidas pelos humanos.

Ali, os verdadeiros slans, delatados por seus tentáculos, não ousava


m se aventurar.

O tom de mofa havia desaparecido da sua voz e nela só restava a a


margura.

- Serpentes! Que outra palavra poderiam adaptar-


se a vocês? Não os odiamos,
mas temos uma sensação de engano e de maldade. Nossa política
de destruição é
uma mera defesa, mas se converteu em uma implacável e feroz atit
ude.

- Mas com certeza seus chefes poderiam tratar deste assunto com e
les.

- Tratar deste assunto com quem? Durante os últimos trezentos ano


s não conse-
guimos localizar um só lugar onde esteja escondido um verdadeiro s
lan. Capturamos
alguns que nos atacavam e matamos alguns em plena luta, mas jam
ais descobrimos
nada sobre eles. Eles existem sim, mas perto de onde, como e quai
s são seus propó-

sitos, não temos a menor ideia. Não existe maior mistério na face da
Terra.

- Se isto é verdade - interrompeu-


a Jommy Cross com paixão, - por favor, suspen-
da por um instante sua cortina mental para que eu possa ver se sua
s palavras são
sinceras. Eu também considerei esta luta demente, desde que desc
obri que existiam
dois tipos de slans e que eles estavam em guerra. Se eu puder cheg
ar à absoluta convicção de que esta loucura é unilateral, poderia...

A voz da garota, seca como uma tapa, cortou seu arrazoado.

- E o que você quer fazer? Ajudar-


nos? Por acaso tem a pretensão de que poderia-
mos acreditar em você e deixá-
lo sair livre? Quanto mais fala, mais perigoso você me
parece. Sempre temos trabalhado sob a suposição de que uma serp
ente, por causa
da sua faculdade de ler os pensamentos, é superior a nós e portanto
não pode escapar. Sua juventude lhe deu dez minutos de vida, mas
agora que conheço sua história não vejo a razão de conservá-
la... Por outro lado, seu caso me parece digno de ser
levado perante o Conselho. Vou fazer mais uma pergunta e... morrer
á.

Jommy Cross deu um olhar de ódio para a mulher. Não havia o men
or sentimento
amistoso nele, nem a menor relação entre a recordação da sua mãe
e ela. Se ela estava falando a verdade, eram os slans sem tentácul
os que deviam-
lhe inspirar simpatia, e não os misteriosos e evasivos slans que trab
alhavam com tão incompreensível
crueldade. Mas, simpatizando ou não, cada uma das suas palavras
demonstrava claramente quão perigoso seria deixar que aquela pod
erosa arma que o mundo tinha
que conhecer, caísse nas mãos daquela raça de ódios infernais. Tin
ha que destruir aquela mulher. Tinha que fazê-
lo! Rapidamente, falou:

- Antes de me fazer a última pergunta, considere seriamente a oport


unidade sem
precedentes que se apresenta a você. É possível que você deixe qu
e o ódio deforme
sua razão? Segundo você mesma disse, pela primeira vez na históri
a dos slans sem
tentáculos, você se encontrou com um verdadeiro slan que está con
vencido de que
os dois tipos de slans poderiam cooperar em lugar de se aniquilare
m.

- Não seja idiota! - respondeu ela. - Todos os slans que capturamos


estavam dispostos a prometer a mesma coisa.

As palavras soavam como golpes e Jommy sentia-


se atingido por eles, derrotado,
seus argumentos feitos em pedaços. Em seus profundos sentimento
s sempre havia
imaginado os slans adultos como criaturas nobres, dignas, que desp
rezavam seus
perseguidores, conscientes da sua maravilhosa superioridade. Mas..
. dispostos a fazer promessas? Tentou desesperadamente restabele
cer sua posição:

- Tudo isto não muda a situação. Você pode comprovar praticament


e tudo o que
eu falei. O fato de que meu pai e minha mãe foram mortos. O fato d
e eu ter tido de
fugir do antro da velha, esta que você golpeou e que está na sala ao
lado, depois de
ter vivido desde garotinho com ela. Tudo isto provará que eu sou qu
em eu digo ser;
um verdadeiro slan que nunca jamais teve relação com a organizaçã
o secreta. Você
iria desprezar tao rapidamente a oportunidade que lhe é oferecida?
Antes de tudo, você e seu povo deveriam ajudar-
me a encontrar os slans e depois eu atuarei como
oficial de contato e estabelecerei contato em sua representação pela
primeira vez na história. Diga-
me uma coisa, você alguma vez soube porque os verdadeiros slans
odeiam seu povo?

- Não - disse ela, perplexa. - Alguns slans que capturamos fizeram a


ridícula declaração de que não toleram nenhuma mudança em sua
raça. Dizem que somente o
perfeito resultado da máquina de Samuel Lann deve sobreviver.

- Samuel... Lann... máquina? - o fio dos seus pensamentos quase p


arecia soltar-se
fisicamente do cérebro de Jommy Cross. - Quer dizer... acredita que
é verdade que
os verdadeiros slans foram criados por uma máquina?

Viu que a garota estava olhando para ele, franzindo a testa intensa
mente.

- Estou quase começando a acreditar na sua história - disse lentame


nte. - Eu achava que todos os slans sabiam que Samuel Lann havia
utilizado uma máquina para
operar a transformação em sua mulher. Mais tarde, durante o períod
o sem nome que
se seguiu à guerra dos slans, o uso da máquina produziu uma nova
espécie: os slans
sem tentáculos. Seus pais não sabiam nada sobre isto?

- Esta tinha que ser sua missão - disse Jommy Cross tristemente. -
Fazer as explorações, estabelecer contacto, enquanto meu pai e mi
nha mãe preparavam...

Deteve-
se, com raiva de si mesmo. Não era aquele o momento de reconhec
er que
seu pai havia consagrado sua vida à ciência e que não tinha querido
perder um só
dia em uma pesquisa que sabia ser longa e difícil. A primeira mençã
o à ciência poderia levar aquela mulher astuta e inteligente a examin
ar a arma, que sem dúvida acre-
ditaria ser uma mera variação da sua. Prosseguiu:

- Se essas máquinas ainda existem, a acusação de que os slans faz


em monstros com os garotinhos humanos é verdade...

- Eu vi alguns desses monstros - assentiu Johanna Hil ory. - Fracass


os, claro, fracassos, todos eles.

Jommy Cross estava terrivelmente impressionado. Tudo que durant


e tanto tempo
havia acreditado, acreditado com paixão e orgulho, caía como um c
astelo de cartas.

As horrendas mentiras não eram mentiras. Os seres humanos estav


am sustentando
uma maquiavélica luta, quase inconcebível por sua desumanidade.
Deu-se conta de que Johanna Hil ory continuava dizendo:

- Tenho que confessar, apesar da minha convicção de que o Consel


ho ordenará
sua morte, que os pontos que você suscitou constituem uma situaçã
o peculiar. Eu decidi fazê-lo comparecer ante eles.

Jommy precisou de muito tempo para compenetrar-


se do sentido das palavras,
que produziram um grande alívio aos seus nervos. Era como um pe
so insuportável
que se elevava, se elevava... Finalmente tinha conseguido o que tão
desesperadamente desejara: tempo, tempo.... Que lhe dessem tem
po e o acaso poderia preparar-lhe um modo de escapar... Fixou-
se na garota que se aproximava cautelosamente
do quadro de instrumentos. Produziu-
se um leve ruído quando ela apertou um botão.

Suas palavras chegaram às alturas onde se haviam suas esperança


s haviam estado e no ato rolaram pelo chão.

- A todos os membros do Conselho!... Urgente!... Conectar com 743


1 para julgar imediatamente um caso slan especial...

Julgar imediatamente! Censurou-


se por ter tido esperanças. Devia ter pensado que
não teriam necessidade de fazê-
lo comparecer fisicamente ante o Conselho, quando
sua ciência de rádio suprimia todos os perigos de tal demora. A men
os que os membros do Conselho tivessem uma lógica diferente da d
e Johanna Hil ory, estava perdido.

O silêncio da espera que se seguiu foi mais aparente que real. Ouvi
a-se o contínuo
e palpitante zumbido dos foguetes, o fraco sibilar do ar contra o casc
o externo, o que
queria dizer que a nave continuava navegando pela espessa atmosf
era da Terra. E

havia também o insistente jorro de pensamentos de Granny, combin


ando-se para turvar o silêncio.

A impressão se fez aos pedaços. Granny! Granny ativa, consciente,


pensando! Johanna Hil ory, ao encontrar-
se a princípio com a resistência de Jommy e parando para interrogá-
lo antes de matá-
lo, havia dado tempo a Granny para se recuperar do
golpe que Johanna havia dado em sua cabeça para fazê-
la perder os sentidos tempo-rariamente e poder aproximar-
se dele silenciosamente, por trás. Um golpe mortal te-
ria produzido uma queda que teria ressoado de uma forma diferente
aos seus ouvidos sensíveis. O desmaio havia sido de curta duração.
A velha patife tinha despertado. Jommy abriu o quanto pôde sua fac
uldade de captação de pensamentos.

“Jommy, eles vão matar nós dois, mas Granny tem um plano. Faça
um sinal para
me dizer se me ouviu. Bata no chão com o pé. Jommy, Granny tem
um plano para impedir que nos matem”

Uma e outra vez chegava ao seu pensamente a insistente mensage


m, nunca a
mesma, sempre acompanhada de estranhos pensamentos e incontr
oláveis digres-
sões. Nenhum cérebro humano, tão mal educado como o de Granny
, poderia emitir
uma onda coerente das suas ideias. Mas o tema essencial era este.
Granny estava
viva. Granny se dava conta do perigo. E Granny estava disposta a c
ooperar até um extremo desespero para evitar o perigo.

Jommy começou a bater distraidamente no chão com o pé, mais fort


e, mais forte, um pouco mais levemente...

“Granny ouviu”... - captou, e parou de bater no chão. Os pensament


os excitados prosseguiram:

“Granny tem dois planos. O primeiro é fazer um forte ruído. Isto assu
stará a mulher e você poderá saltar sobre ela e Granny irá ajudá-
lo. O segundo plano é levantar-
se do chão, entrar na sala onde vocês estão e jogar-
me sobre ela no momento
em que passar perto da porta. Ela ficará surpresa e você pode saltar
e subjugá-la”.

Não tinha necessidade alguma de refletir. O plano número foi um foi


imediatamente rechaçado. Não havia ruído forte o suficiente que fos
se capaz de alterar os nervos
de uma slan. Uma agressão física, algo concreto, era a única espera
nça.

“Um”, disse Granny mentalmente.

Jommy esperou, captando com ironia a ânsia da velha em ver seu p


rimeiro plano
ser aceito, diminuindo assim o perigo que ela correria com o plano n
úmero dois, sua
preciosa pele. Mas ela era uma velha astuta e no fundo sabia que o
plano número
um era pouco eficaz. Finalmente sua mente pensou relutantemente:
Dois”.

Jommy bateu no chão com o pé. Simultaneamente se deu conta de


que Johanna
Hil ory estava falando pelo rádio, transmitindo o relatório da sua vida
e sua oferta de
cooperação; e ao terminar emitiu sua opinião de que ele deveria ser
executado.

Jommy notou que uns minutos antes tinha estado ali sentado e escu
tando ansiosamente as respostas que iam chegando pelo alto-
falante invisível. Eram vozes profundas, de homens; outras mais bo
nitas e vibrantes, de mulher. Mas agora apenas seguia o fio das sua
s discussões. Uma das mulheres queria saber o seu nome. Jommy
via que nem todos estavam de acordo. Demorou um pouco antes de
se dar conta de se dirigiam a ele.

- Seu nome? - disse o rádio.

Johanna Hil ory afastou-se do rádio e aproximou-se da porta.

- Você é surdo? - gritou - Querem saber seu nome!

- O nome? - repetiu Jommy Cross, com uma certa surpresa gravada


na mente.
Mas não podia distrair-
se naquele momento supremo. Enquanto batia com o pé, todo
pensamente desapareceu da sua mente. Só se dava conta de que
Granny estava de
pé ao lado da porta e captou as vibrações que dela emanavam. A te
nsão do seu corpo, a preparação para agir e depois o terror. Espero
u ansiosamente que chegasse o
momento, a paralisia ameaçando seu corpo esgotado.

Todos os crimes que ela havia cometido durante sua acidentada carr
eira acudiram
em sua ajuda. Entrou na sala. Com os olhos brilhantes, mostrando o
s dentes, lançou-
se sobre as costas de Johanna Hil ory. Seus braços delgados rodear
am os ombros da

garota. A chama que brotou da arma que Johanna tinha na mão alca
nçaram inutilmente o chão. Depois, como um animal, voltou-
se com força irresistível. Durante um
momento desesperado Granny permaneceu agarrando-
a pelos ombros. Era o momento certo. Jommy deu um salto.

Também naquele instante Granny lançou um agudo grito. Suas garr


as soltaram a presa e seu corpo magro ficou largado no solo.

Jommy Cross não perdeu tempo em querer igualar uma força que s
abia ser superior à sua. No momento em que Johanna Hil ory se volt
ou como uma tigresa para ele, assestou-
lhe um rápido e forte golpe na nuca. Era um golpe perigoso, e reque
ria
uma perfeita coordenação de músculos e nervos. Teria podido perfei
tamente que-brar-lhe o pescoço, mas sua destreza limitou-
se a deixá-la sem sentidos. Sustentou-a
quando caía e, enquanto a estendia no chão, sua mente tentou capt
ar a da garota,
tendo sido franqueada a destroçada cortina mental, procurando febri
lmente. Mas as
funcionamento do seu cérebro inconsciente era muito lento, e o calei
doscópio das suas imagens muito apagado.

Começou a sacudi-
la suavemente, observando o rápido torvelinho dos seus pensament
os, enquanto os movimentos físicos do seu corpo sofriam leves mud
anças quí-

micas, que por sua vez mudaram a orientação dos pensamentos. M


as não havia tempo para pensar em detalhes e enquanto as imagen
s iam-se fazendo mais ameaçadoras, afastou-
se rapidamente dela e aproximou-
se do radio. Com a voz tão pausada quanto pôde, disse:

- Continuo querendo discutir condições amistosas. Posso ser de gra


nde ajuda para
os slan sem tentáculos - não houve resposta. Repetiu suas palavras
com maior insistência e acrescentou: - Tenho o sumo interesse em
chegar a um acordo com uma organização tão poderosa como a de
vocês. Estou disposto inclusive a devolver a nave
se me ensinarem logicamente a forma de escapar sem cair em uma
armadilha.

Silêncio! Desligou o rádio e voltou-


se para Granny, que estava meio sentada meio deitada no solo.

- Não há saída - disse. - Tudo isto, a nave, a garota slan, fazem part
e de uma armadilha na qual nada foi deixado ao azar. Há sete cruza
dores de cem mil toneladas
fortemente armados que estão nos dando caça neste momento. Seu
s instrumentos de detecção reagem às nossas placas de anti-
gravidade, de forma que nem a escuridão é uma proteção. Estamos
prontos.

As horas da noite foram passando, e com cada uma delas a situaçã


o ia parecendo
mais desesperadora. Dos quatro entes animados que gravitavam po
r aquele céu de
um negro azulado, somente Granny estava deitada sobre uma cadei
ra pneumática
mergulhada em um profundo sono. Os dois slans e aquela incansáv
el e vibrante nave velavam.

Que noite fantástica! Por um lado, o pensamento de que uma força


destruidora poderia alcançá-
los a qualquer instante; por outro... Como que fascinado, Jommy
Cross fixou os olhos na placa de visão e viu a veloz imagem que pa
ssava diante dos
seus olhos. Era um mundo de luzes que se estendia até o infinito, at
é onde a vista
alcançava, luzes e mais luzes. Manchas escuras, lagos, poças, lago
as de luz... comunidades agrícolas, povoados e cidades, e de vez e
m quando, metrópoles colossais.

Finalmente seus olhos se afastaram das placas de visão e ele voltou


-
se para onde estava Johanna Hil ory com as mãos e os pés atados.
Seus olhos cinzentos o olharam
interrogadores. Antes que ele pudesse dizer alguma coisa, a garota
perguntou:

- E então, já decidiu?

- Decidir o que?

- Quando vai me matar, claro.

Jommy Cross balançou a cabeça negativamente e depressa.

- O que mais me surpreende são suas palavras - disse pausadamen


te, - é esta atitude mental que acha que alguem deve ser morto ou
matar. Não vou matá-la, vou soltá-la.

- Não há nada de surpreendente na minha atitude - respondeu ela, d


epois de uma
breve silêncio. - Durante cem anos os verdadeiros slans têm matado
os nossos à primeira vista; durante cem anos tomamos represálias.
Que poderia ser mais natural?

Jommy Cross encolheu os ombros, impaciente. Havia nele muita inc


erteza sobre os
verdadeiros slans para se permitir discutir sobre eles agora, quando
sua única ideia fixa era escapar.

- Meu interesse não reside nessa fútil e miserável guerra entre os sl


ans e os seres
humanos. O que me importa são as sete naves de guerra que nos p
erseguem neste momento.

- Foi insensato tê-


las descoberto - respondeu ela. - Agora você passará o tempo
todo em inúteis preocupações e fazendo planos. Teria sido menos cr
uel para você ter
se sentido a salvo e depois, no mesmo momento que descobrisse q
ue não estava a salvo, morrer.

- Ainda não estou morto! - exclamou Jommy Cross com viva impaciê
ncia. - Não
resta a menor dúvida de que é muita presunção por parte de um rap
az esperar,
como estou começando a fazer, que deve haver uma forma de sair d
esta armadilha.

Tenho o maior respeito pela inteligência dos slans adultos, mas não
esqueço que seu
povo já sofreu várias derrotas. Por que, por exemplo, se minha destr
uição é dada
como certa, estas naves estão esperando? O que elas esperam?

Johanna Hil ory sorria, com seu belo e enérgico rosto sereno.

- Você não espera que eu responda sua pergunta, não é verdade?


- Sim - respondeu Jommy sorrindo, mas com uma certa indiferença.
- Compreenda

- acrescentou, - que durante estas últimas horas eu amadureci um p


ouco. Até a noite
passada eu era muito inocente, idealista. Por exemplo, durante aque
les primeiros minutos que estivemos apontando nossas armas mutu
amente, você poderia ter me matado facilmente, sem resistência da
minha parte. Para mim, você era um membro da
raça slan e todos os slans devem estar unidos. Eu não teria apertad
o o gatilho nem
para salvar minha alma. Você demorou, claro, porque queria interrog
ar-
me, mas naquela ocasião você tinha a oportunidade. Agora a situaç
ão mudou.

Os lábios perfeitos da garota adquiriram uma expressão pensativa.

- Creio começar a entender aonde isto vai dar.

- Na realidade é muito simples - assentiu Jommy, sorrindo. - Ou voc


ê responde minhas perguntas ou eu a golpeio na cabeça e obterei o
que quiser do seu cérebro inconsciente.

- Como você saberá que eu vou dizer a verda... - começou ela, mas
calou-se,
abrindo seus olhos cinzentos, atemorizada ao ver o olhar de Jommy.
- Você espera que..?

- Sim! - exclamou ele, fixando a vista em seus olhos hostis brilhante


s. - Você baixará sua tela mental protetora. Claro, não espero ter um
a acesso pleno à sua mente.

Não vejo inconveniente em que você controle seus pensamentos for


mando um círculo ao redor do tema, mas sua tela deve baixar... ago
ra!
A garota permanecia sentada, silenciosa, com um brilho de repugnâ
ncia nos olhos cinzas. O olhar de Jommy era curioso.

- É surpreendente - disse ele. - Que estranhos complexos se desenv


olvem nas
mentes que não têm contato direto com outras! É possível que sua r
aça tenha construído em seu mundo interior outros mundos sagrado
s e secretos, e que depois,

como qualquer ser humano sensível, vocês se envergonhem de deix


ar estranhos verem esses mundos? Há nisto material suficiente para
um estudo psicológico que poderia revelar a causa básica desta gu
erra inter-slan. Mas esqueçamos isto. Lembre-se

- concluiu - que já visitei sua mente. Lembre-


se também que de acordo com sua pró-

pria lógica, dentro de poucas horas serei consumido para sempre pe


las chamas dos projetores elétricos.

- Claro - disse ela apressadamente, - isto e verdade. Você tem que


morrer, não é verdade? Bem, responderei suas perguntas.

A mente de Johanna Hil ory era como um livro grosso que não podia
ser medido,
com um infinito número de páginas para analisar e uma estrutura inc
rivelmente rica
e incrivelmente complexa, embelezada por bilhões de experiências
acumuladas durante os anos, por um intelecto de uma aguda observ
ação. Jommy Cross captou rá-

pidos e tentadores flashes das suas últimas sensações. Em uma pal


avra, via a imagem de um planeta indizivelmente desolado, de baixa
s montanhas, arenoso, gelado,
completamente gelado... Marte! Havia imagens de uma bela cidade
encerrada entre
vidros, de grandes máquinas funcionando sob cegantes baterias de l
uzes. Em algum
lugar nevava com uma fúria inusitada e logo ficou visível uma nave
espacial que reluzia como uma joia sob o sol, através do grosso vidr
o de uma janela.

A confusão de imagens começou a clarear quando a garota começo


u a falar. Falava
lentamente, e ele não fez nenhuma tentativa para apressá-
la, apesar da sua convic-

ção de que cada segundo contava e de que de um minuto para outr


o a morte podia
cair sobre aquela nave indefesa. Suas palavras e os pensamentos q
ue as corrobora-
vam eram como tantas outras pedras preciosas, maravilhosamente l
apidadas, fascinantes.

Os slans sem tentáculos sabiam, desde que ele começou a trepar p


ela parede, que
um intruso se aproximava. Interessados principalmente em qual seri
a seu objetivo, não o mataram quando teriam podido fazê-
lo sem dificuldades. Haviam deixado
abertos vários acessos à nave e ele utilizou um deles, apesar - e est
e era um fator
desconhecido para ele - de que as campainhas de alarme não havia
m funcionado.

A razão pela qual as naves perseguidoras vacilavam em destruí-


lo era que resistiam em utilizar os projetores elétricos sobre um conti
nente tão densamente habita-
do. Se subisse a uma altura conveniente para que caísse no mar, se
se decidisse a girar em torno do continente, seu combustível acabar
ia no prazo de umas doze horas
e, ao chegar o amanhecer, poderiam utilizar os projetores elétricos c
om um rápido e mortal efeito.

- Suponhamos que aterrizasse na parte baixa de uma cidade - disse


Jommy Cross,
- talvez pudesse escapar por entre tantas casas, edifícios e pessoas
.

- Se a velocidade desta nave descer a duzentas milhas por hora, ela


se destruirá,
sem levar em conta o risco que isto comporta e que eles ainda espe
ram salvar minha
vida capturando a nave intacta. Está vendo que estou sendo franca
com você.

Jommy parecia silencioso. Estava convencido, aterrorizado, da reali


dade do perigo.

Não havia a menor inteligência naquele plano. Era uma mera questã
o de confiança em um grande número de canhões.

- Tudo isto - disse afinal, estranhando, - por causa de um pobre slan,


por uma
nave. Quão intenso deve ser o temor que leva a um esforço tão gran
de, a tal gasto, por tão pouca compensação!

- Temos que julgar a víbora segundo nossas próprias leis - responde


u ela, friamente, com um brilho de fogo em seus olhos cinzas. Sua
mente estava concentrada no
significado essencial das suas palavras. - Os tribunais humanos não
deixam em liberdade os culpados porque custa mais o processo qu
e a importância roubada. Além

disto, o que você roubou tem um tal preço que seria o maior desastr
e da nossa história se você escapasse.

- Você dá como certo com excessiva facilidade de que os verdadeiro


s slans não es-tão de posse do segredo da anti-
gravidade - respondeu Jommy impaciente. - Meu
propósito é analisar, durante os próximos anos, os verdadeiros slans
em seu lugar de residência e posso assegurar-
lhe desde já que praticamente nada de tudo o que me
disse será usado como prova. A mesma circunstância de que vivam
tão escondidos é uma indicação dos seus imensos recursos.

- Nossa lógica é muito simples - interveio Johanna. - Não os vimos u


sar naves-
foguetes e, por conseguinte, eles não as têm. Ontem mesmo, durant
e aquele ridículo
raid sobre o palácio, sua nave, embora muito bonita, era propulsion
ada por vários
motores a combustão, um tipo de motor que descartamos há mais d
e cem anos. A
lógica, como a ciência, é a dedução sobre a base da observação, de
forma que...

Jommy Cross franziu o cenho contrariado. Quanto ela fazia referênci


as aos slans,
era ruim. Eram estúpidos e assassinos, haviam desencadeado uma
guerra estúpida,
inútil e fratricida contra os outros slans. Rondavam pelo país utilizan
do suas diabólicas máquinas de transformação sobre as mães huma
nas e as monstruosidades que
disto resultava eram destruídas pelas autoridades médicas. Um prop
ósito louco de destruição! Simplesmente não fazia sentido!

Não se amoldava ao nobre caráter dos seus pais. Não se amoldava


ao gênio do
seu pai nem ao fato de que ele mesmo havia vivido seis anos sob a i
nfluência da baixa mentalidade de Granny e permanecia inalterado, i
mpoluto. E, finalmente, não se
amoldava ao fato de que ele, um slan ainda muito jovem, havia caíd
o em uma armadilha que não suspeitara e somente porque um dos
mecanismos da rede interna da
nave não havia funcionado, permitindo assim que escapasse da vin
gança.

Sua pistola automática! Um fator evidente era que eles nem ao men
os suspeitavam dela. Seia inútil, claro, contra as naves de guerra qu
e navegariam atrás deles na
escuridão. Necessitaria de um ano ou mais para construir um projet
or com um raio
suficientemente potente para reduzir aquelas naves a cinzas. Mas u
ma coisa podia
fazer. O que pudesse atingir, seu fogo destruidor desintegraria em át
omos. E por Deus, com tempo e um pouco de sorte teria a resposta!

O brilho de um refletor apareceu na placa visual. Ao mesmo tempo a


nave sofreu
uma forte sacudida, como um brinquedo que acabasse de receber u
m golpe formidá-

vel. Os metais rangeram, as paredes tremeram, as luzes piscaram e


então, enquanto os ruídos da violência iam-
se desvanecendo e transformando-se em sussurros amea-

çadores, deu um salto da profundezas da cadeira onde havia estado


sentado e agarrou o ativador do foguete.

A máquina iniciou no ato uma louca aceleração. Contra a pressão d


o furioso mer-
gulho, avançou e pôs em ação o rádio. A batalha havia começado e
se não conseguisse persuadi-
los a desistir, jamais se apresentaria a oportunidade de por seu únic
o
plano em ação. A bonita e vibrante voz de Johanna Hil ory repetiu co
mo um eco o pensamento que latejava no seu cérebro.

- Que vai fazer? Dizer-


lhes que renunciem aos seus planos? Não seja idiota! Se
eles finalmente decidirem sacrificar-
me, não pense que seu bem estar lhes importe
minimamente, não acha?

XI

Fora da nave, o céu noturno estava negro. Algumas estrelas cintilav


am friamente
na noite sem lua. Não havia o menor sinal da nave inimiga, nem um
movimento,
nem uma sombra que se destacasse contra a intensidade daquele t
eto profundo, túrgido, negro. Dentro da nave, o silêncio foi quebrado
por um grito rouco procedente
da sala ao lado, seguido por uma enxurrada de vitupérios. Granny ti
nha acordado.

- Que está havendo? O que aconteceu?

Houve um breve silêncio e logo a seguir o súbito final do rancor e o


enlouquecido
começo do medo. Instantaneamente, seus pensamentos aterrorizad
os brotaram com
o jorro frenético. Maldições obscenas, frutos do terror, saturaram o a
r. Granny não
queria morrer. Que matassem todos os slans, mas não Granny. Gra
nny tinha dinheiro...

Estava bêbada. O sono havia feito com que a bebida se apoderasse


dela novamente. Jommy Cross fechou sua mente aos seus pensam
entos e imediatamente chamou pelo rádio.

- Ao Comandante de todas as naves de guerra! Ao Comandante de t


odas as naves
de guerra! Johanna Hil ory está viva. Estou disposto a liberá-
la ao amanhecer com a
única condição de que me permitam voltar novamente para o ar.

Houve um silêncio e a voz pausada de uma mulher penetrou na cabi


ne.

- Johanna, você está ai?

- Sim, Manan.

- Muito bem - prosseguiu a voz pausada da desconhecida, - aceitam


os sob as seguintes condições: Você nos informará com uma hora d
e antecipação o lugar onde
aterrizará. O ponto de aterrizagem deve estar situado pelo menos a
trinta milhas, ou
seja, a cinco minutos da maior cidade mais próxima o que permite a
aceleração e a
desaceleração. Supomos, claro, que você acredita que pode escapa
r. Muito bem. Terá
duas horas mais de chance e nós teremos Johanna Hil ory. Boa troc
a!

- Espere! - gritou Johanna.

Mas Jommy Cross foi mais rápido que ela. Uma fração de segundo
antes que o grito tivesse saído dos seus lábios, seus dedos já havia
m desligado o radio. Então ele voltou-se para ela.

- Não devia ter levantado sua cortina mental. Era toda a advertência
que eu precisava. Mas, claro, eu teria ganho das duas formas. Se vo
cê não tivesse levantado a
cortina mental eu poderia ter captado também o pensamento da sua
mente.

“Que súbita paixão tresloucada é esta - perguntou, olhando-


a com suspeita - que a induz a sacrificar-
se somente para me negar mais duas horas de vida?

A garota permaneceu silenciosa. Seus grandes olhos cinzas tinham


uma expressão
mais pensativa que nunca. Em tom de gentil mofa, Jommy Cross lhe
disse:

- Não poderia ter sido o fato que você me concedeu a possibilidade


de escapar?

- Eu estava me perguntando - disse ela - por que as campainhas de


alarme do edifício das naves espaciais não nos avisaram da forma e
xata como você se aproximava
da nave. Há nisto um fator que ao que parece não levamos em cont
a. Se você deve realmente escapar com esta nave...

- Escaparei - disse Jommy com calma, - viverei, apesar dos seres h


umanos, apesar
de Kier Gray e de John Petty e do cruel bando de assassinos que vi
ve no palácio. Viverei, apesar da vasta organização dos slans sem t
entáculos e suas intenções assassinas E algum dia eu encontrarei o
s verdadeiros slans. Não agora, porque um jovem
garoto slan não pode esperar triunfar onde os slans sem tentáculos f
racassaram,
apesar de serem milhões. Mas eu os encontrarei, e neste dia... - fez
uma pausa e depois prosseguiu gravemente: - Srta. Hil ory, quero as
segurar-lhe de que nem esta
nave nem nenhuma outra jamais serão empregadas contra seu pov
o.

- Uma declaração muito aventureira - respondeu ela com súbita ama


rgura. - Como
você pode assegurar alguma coisa em nome desses implacáveis se
res que governam o Conselho das víboras?

Jommy Cross ficou olhando para a garota. Em suas palavras havia


algo de verdade. Entretanto, uma parte da grandeza que tinha que s
er sua apoderou-
se dele enquanto permanecia naquela sala de controles, com seu re
luzente quadro de instrumentos, com as brilhantes placas visuais e
os belos móveis em que estava sentado.

Era o filho do seu pai, herdeiro dos frutos do gênio do seu pai. Que l
he dessem tempo, e ele seria o senhor de um poder irresistível. A su
ave chama de todos esses pensamentos infiltrou-
se em suas palavras quando disse:

- Na verdade posso lhe dizer que de todos os slans que vivem hoje
no mundo, nenhum é tão importante como o filho de Peter Cross. Ao
nde quer que eu vá, minhas
palavras e minha vontade terão influência. No dia em que eu encont
rar os verdadeiros slans, a guerra contra seu povo estará terminada
para sempre. Você disse que
minha salvação seria o pior desastre que poderia acontecer para os
slans sem tentá-

culos; pelo contrário, será a maior das suas vitórias. Algum dia, você
e os seus se darão conta disto.

- Enquanto isto - disse a garota, com um sorriso irônico - você tem d


uas horas
para fugir de sete cruzadores pesados pertencentes aos verdadeiros
governantes da
Terra. O que me parece que você não se dá conta é que atualmente
nós não tememos nem os seres humanos nem as víboras, e que no
ssa organização sobrepassa
todo o imaginável. Cada povo, cada capital, cada cidade, tem seu gr
êmio de slans
sem tentáculos. Conhecemos nossa força, e quando menos esperar
em sairemos à luz do dia, nos apoderaremos do Governo e...

- Mas isto seria a guerra! - saltou Jommy Cross.

- E no prazo de dois meses aniquilaremos tudo - foi a resposta da g


arota.

- E depois disto? Que será dos seres humanos nesse pós mundo? V
ocê consegue imaginar quatro bilhões de escravos perpetuamente?

- Somos inconcebivelmente superiores a eles. E tivemos q


ue viver escondidos
constantemente, passando privações nos mais frios planetas, enqua
nto suspirávamos
pela verde Terra e pela liberdade desta eterna luta contra a natureza
... e quanto aos
homens que tão valentemente você defende? Não lhes devemos na
da mais que a dor. As circunstâncias nos obrigam a devolver-
lhes com juros.
- Será um desastre para todos... - disse Jommy Cross.

A garota encolheu os ombros e respondeu:

- O fator que obrou ao seu favor no Controle Aéreo, quando nossa at


itude era negativa a esperar pelos acontecimentos, jamais poderá aj
udá-lo agora, quando nossa
atitude é definitivamente positiva de aniquilá-
lo com nossas mais poderosas armas.

Um minuto de fogo reduzirá esta nave a cinzas que cairão sobre a t


erra na forma do mais fino pó.

- Um momento! - exclamou Jommy Cross.

Parou em seco. Não havia nem sonhado que o limite de tempo seria
tão curto e
que agora teria que depender da tênue esperança psicológica de qu
e a velocidade da
nave enganasse suas suspeitas. Com voz dura, disse:

- Basta de estupidez! Vou levá-


la para a sala ao lado. Tenho que fixar uma coisa no
nariz da nave e você não pode saber o que é.

As luzes da cidade apareceram a oeste um momento antes de aterri


zar. Depois disto o muro de um vale cortou a vista do mar resplande
cente. A nave pousou no solo
com a suavidade de uma nave enquanto Jommy equilibrava as plac
as de antigravidade. Apertou o controle que abria a porta e soltou a
garota.

Com a pistola elétrica da garota na não, já que havia prendido a sua


na ponta da nave, viu Johanna Hil ory deter-
se por um momento no umbral. A aurora começava a
assomar por trás das colinas do leste e a luz, ainda de um cinza suj
o, marcava a curiosa silhueta da sua enérgica e bem formada figura.
Ela saltou para a terra sem dizer mais nem uma palavra. E no mom
ento que Jommy avançou para o umbral, pôde
ver a cabeça da garota ao nível da parte baixa da porta, iluminada p
elo resplendor que brotava do interior da nave.

- Como você está se sentindo? - perguntou ela.

- Um pouco emocionado - disse ele, encolhendo os ombros, - mas a


morte me parece remota e dificilmente aplicável a mim.

- Mais ainda - respondeu ela com vigor. - O sistema nervoso de um


slan é uma fortaleza quase inexpugnável. Não pode ser afetada pela
demência, pelos “nervos” ou
pelo medo. Quando matamos, é porque a lógica nos levou a esta po
lítica. Quando a
morte ameaça nossas vidas, aceitamos nossa situação, lutamos até
o final com a esperança de que um fator imprevisível nos salve e, fin
almente, contra nossa vontade,
nos inclinamos perante o fantasma da morte, conscientes de não ter
mos vivido em vão.

Jommy olhou-
a com curiosidade, projetando seus pensamentos sobre os da garot
a, sentindo o suave bater das suas pulsações e o estranho tom semi
-amistoso da
sua voz brotando da sua mente. Abriu os olhos. Que propósito estav
a se formando
naquele cérebro frio, insensível, alheio a todo sentimentalismo?

- Jommy Cross - prosseguiu Johanna, - talvez você estranhe ao sab


er que eu che-
guei a acreditar na sua história e não somente no que é ou que afir
ma ser, e sim que
realmente professa os ideais que pretende. Você é o primeiro slan a
utêntico que encontrei na vida, e sinto ceder a tensão que me domin
ava, como se depois de tantos
séculos se levantasse aquela sombra mortal. Se você escapar dos n
ossos canhões,
eu lhe peço que conserve seus ideais quando crescer e que não nos
traia. Não se
converta no instrumento de uns seres que vêm usando a morte a a
destruição durante tantos anos sombrios. Você invadiu meu cérebro
e sabe que não estou mentindo
sobre isto. Qualquer que seja a lógica da filosofia deles, é equivocad
a, porque é de-
sumana. Tem que ser equivocada, porque seus resultados têm sido
sofrimento sem fim.

Estava fugindo. Então era assim! Se conseguisse fugir, eles depend


eriam da sua
boa vontade e a garota agora estava jogando esta carta, qualquer q
ue fosse o valor que tivesse.

- Mas lembre de uma coisa - prosseguiu Johanna Hil ory, - não deve
esperar ajuda
da nossa parte. Por medida de segurança, devemos considerá-
lo como um inimigo.

Muitas coisas dependem disto, o destino de todo meu povo está em


jogo. De forma
que não espere mercê no futuro, Jommy Cross, pelo que você falou
ou porque me li-
bertou. Não intervenha em nossa vida, porque, eu lhe advirto, será s
ua rápida des-

truição. Reconhecemos nos verdadeiros slans uma inteligência supe


rior, ou melhor
dizendo, um desenvolvimento superior da sua inteligência, devido à
sua faculdade de
ler os pensamentos, mas acreditamos que não há astúcia da qual n
ão sejam capazes, não há implacabilidade que não hajam igualado.
Um plano que requeira cem
anos de preparação não lhes é desconhecido. Por conseguinte, ape
sar de eu dar cré-

dito ao que você me falou, diante da incerteza sobre a forma em que


você se desenvolverá ou em que se transformará quando crescer, e
u me inclinaria a matá-lo neste
mesmo instante se isto estivesse em meu poder. Portanto, jamais po
nha à prova a
nossa boa vontade. É a suspeita, e não a tolerância, o que nos gove
rna. Mas agora
adeus e, por paradoxal que possa parecer... boa sorte!

Jommy ficou olhando-a afastar-se graciosamente e perder-


se na escuridão que cobria o vale pelo oeste, o caminho que levava
à cidade, seu caminho também. Sua forma transformou-
se em uma sombra em meio à penumbra da noite e desapareceu
atrás de uma colina. Jommy fechou rapidamente a porta, entrou no
depósito e pegou um par de trajes espaciais da parede. A velha res
mungou fracamente quando
ele a obrigou a vestir um deles. Ele vestiu o outro e entrou na sala d
e controles.

Fechou a porta atrás do rosto contorcido de Granny, que continuava


soluçando atrás do vidro do traje e sentou-
se, fixando intensamente o olhar na placa visual.

Seus dedos procuraram o ativador das placas de antigravidade e en


tão surgiu a vacilação, a dúvida que vinha crescendo nele durante c
ada segundo em que se aproximava o momento da ação. Era possí
vel que aquele plano tão simples surtisse efeito?

Jommy Cross via as naves como pontos escuros no céu. O sol já es


tava brilhando,
fazendo reluzir as metálicas formas de torpedo, como diminuto
s insetos sobre o
imenso céu azul. As nuvens e a neblina do vale estavam se fundind
o com mágica rapidez e se a clareza com que podia vê-
las na placa visual era digna de fé, até o tempo estava ficando contr
a ele. As sombras daquele estreito vale ainda o ocultavam,
mas dentro de poucos minutos a perfeição do dia começaria a dimin
uir todas suas possibilidades de salvação.
Sua mente estava tão intensamente concentrada que por um mome
nto o pensamento deformado que chegou lhe pareceu que vinha de
si próprio.

“...não precisa se preocupar. A velha Granny se livrará do slan. Pega


rá um pouco
de maquiagem e mudará o rosto. De que serviria ter sido atriz se nã
o pudesse mudar suas feições? Granny se transformará em uma mu
lher deliciosa e branca com foi antes. Sim!”

Parecia estar tendo convulsões ao pensar no rosto dela e Jommy Cr


oss afastou a
imagem da sua mente. Mas recordava das suas palavras. Seus pais
haviam usado cabelo postiço, mas o necessário e incessante corte
do cabelo natural não havia dado
resultado satisfatório. Mas os verdadeiros slans se viam obrigados a
fazê-
lo constantemente, e agora que tinha idade suficiente para consegui
r de uma forma satisfató-

ria, a ajuda de Granny e sua experiência podiam ser a resposta.

Era estranho, agora que havia traçado seus planos para o futuro, su
a vacilação desaparecia.

Leve como uma partícula de poeira, a nave se distanciava da Terra,


alcançando
uma enorme velocidade sob o impulso dos foguetes. Cinco minutos
de aceleração e
desaceleração, havia dito o comandante slan. Jommy sorriu, não de
saceleraria. A uma velocidade que não diminuía, lançou-
se contra o rio que formava uma linha negra fora da cidade, a cidad
e que havia escolhido precisamente porque ela tinha um
rio. E o último minuto acionou a fundo a desaceleração.

E naquele momento final, quando já era quase muito tarde, a confia


nça dos comandantes slans deve ter enfraquecido, pois esqueceram
sua resistência a fazer uso
dos canhões atômicos e de mostrar suas naves tão perto de uma ci
dade humana... e lançaram-
se como sete aves de rapina, lançando fogo a partir dos sete cruzad
ores.

Jommy Cross puxou levemente o arame que acionava o gatilho da a


rma montada na ponta dianteira da nave.

Do exterior, um violento golpe aumentou a velocidade de quinhentos


quilômetros
por hora da nave. Mas ele mal notou aquele único efeito do fogo da
nave inimiga.

Sua atenção estava concentrada em sua própria arma. Então quand


o puxou o arame, produziu-
se uma chama branca. Instantaneamente um círculo de sessenta ce
ntímetros de diâmetro da ponta da sua nave desapareceu e o mortíf
ero raio branco se estendeu para diante em forma de leque, dissolve
ndo a água do rio à frente da nave
em forma de torpedo. E pelo túnel assim formado, deslisou em plen
a desaceleração sob a espantosa explosão dos tubos propulsores.

As placas de visão escureceram com a água acima e embaixo, depo


is escureceram
mais ainda ao terminar a água, e a inconcebível ferocidade da destr
uição atômica ia
abrindo passagem na terra, mais e mais profundamente.

Era como voar pelo ar, salvo que não havia outra resistência além d
a pressão das
explosões dos foguetes. Os átomos da terra, destroçados e reduzid
os aos seus elementos componentes, perdiam instantaneament
e sua irreal solidez matemática e
ocupavam um espaço tenuemente ocupado pela matéria. Dez milhõ
es de anos de formação coesiva se desvaneceram, convertendo-
se no mais baixo estado da matéria primitiva.
Com o olhar fixo, Jommy contemplava a agulha dos segundos no se
u relógio; dez,
vinte, trinta... um minuto. Começou a levantar o nariz da nave para c
ima, mas a
enorme pressão da desaceleração fazia todo o nivelamento físico im
possível. Transcorreram trinta segundos antes que diminuísse o nú
mero de explosões dos foguetes e o final estava à vista.

Ao cabo de dois minutos e vinte segundos de avanço subterrâneo, a


nave se deteve. Devia estar perto do centro da cidade e tinha aprox
imadamente treze quilômetros de túnel atrás dele, por one penetrari
a a água do rio deformado. A água fecharia
a passagem, mas os frustrados slans não precisariam interpretar par
a compreender o
que tinha acontecido. Além disso, seus instrumentos deviam estar m
ostrando naquele momento a situação da nave.

Jommy Cross riu alegremente. Bem, que soubessem. Que poderiam


esperar fazer
agora? Existia perigo à sua frente, claro, muito perigo, especialment
e quando ele e
Granny saíssem para a superfície. Toda a organização dos slans se
m tentáculos devia
ter sido advertida. Entretanto aquilo era um problema do futuro. No
momento sua vi-
tória era sua e era agradável, depois de tantas horas de esgotament
o e desespero.

Agora viria o plano de Granny, que consistia em separarem-


se e adotarem um disfarce. O riso desapareceu dos seus lábios.

Estava sentado e pensativo e se dirigiu à sala ao lado. A bolsa negra


do dinheiro
estava sobre o regaço da mulher, protegida por suas garras de best
a feroz. Antes
que ela pudesse se dar conta das suas intenções, ele já a tinha tom
ado. Granny lan-
çou um grito e lançou-
se sobre ele que, friamente, manteve a distância.

- Não se excite. Eu decidi adotar o seu plano. Tentarei me disfarçar


de ser humano e nós nos separaremos. Vou dar-
lhe cinco mil dólares e o resto você terá daqui a
aproximadamente um ano. Eis aqui o que você tem que fazer.

Detalhadamente explicou-lhe:

- Eu preciso de um lugar para morar, de forma que você amanhã irá


às montanhas
e comprará uma fazenda ou o que seja. Uma vez que você esteja in
stalada, ponha
um anúncio em um jornal. Eu responderei da mesma forma e poder
emos continuar

juntos. Conservarei o dinheiro para o caso em que você se decida a


me trair. Sinto
muito, mas foi você quem me capturou primeiro e portanto tem que f
icar comigo.

Mas agora tenho que voltar e fechar o túnel. Algum dia eu dotarei es
ta nave de energia atômica e enquanto isto não quero que outros ve
nham até aqui.

Tinha que abandonar aquela cidade durante algum tempo para emp
reender uma
viagem transcontinental e ali poderia encontrar outros slans sem ten
táculos. Da mesma forma que seu pai e sua mãe se haviam conheci
do acidentalmente, a sorte podia depará-
lo com o encontro de outro slan verdadeiro. Além disto, havia també
m a primeira pesquisa que era necessário ser feita, sobre o ainda ru
dimentar plano que ia
tomando forma em sua mente. O plano de pensar o caminho a toma
r para encontrar os verdadeiros slans.

XII
Procurou... e conseguiu. Na tranquila reclusão do seu laboratório no
rancho de
Granny, no vale, os planos e projetos que seu pai havia impresso na
sua mente foram se transformando lentamente em realidade. Apren
deu de cem maneiras diferentes a controlar a energia ilimitada que c
onservava em seu sagrado depósito, para
o bem dos slans e dos seres humanos ao mesmo tempo.

Descobriu que a eficácia da invenção do seu pai era o resultado de


dois fatores bá-

sicos: que a fonte de energia podia ser tão diminuta quanto alguns g
rãos de matéria
e que o efeito não tinha necessariamente que adotar a forma de cal
or. Podia ser convertido em movimento ou vibração, em radiação e,
diretamente, em eletricidade.

Começou a construir um arsenal. Transformou uma montanha próxi


ma ao rancho
em fortaleza, sabendo que seria insuficiente contra um ataque conju
nto, mas sempre
era alguma coisa. Com uma ciência protetora ainda mais vasta à su
a disposição, suas
pesquisas adquiriram um caráter mais determinado.

Jommy Cross parecia seguir sempre por caminhos que brilhavam m


ais além dos
distantes horizontes, ou que levavam a estranhas cidades, todas ela
s povoadas por
intermináveis exemplares de seres humanos. O sol saía e se punha,
voltava a sair e
se por. E havia também melancólicos dias de chuva e incontáveis no
ites. Apesar de
estar sempre sozinho, a solidão não o afetava porque sua alma tran
sbordante se nu-
tria da insaciada ânsia e do tremendo drama que cotidianamente se
apresentava
ante seus olhos. Onde quer que fixasse sua atenção, encontrava a o
rganização dos
slans sem tentáculos, e semana após semana sua preocupação au
mentava. Onde estavam os verdadeiros slans?

O mistério era um problema sem solução que não o deixava por um


só instante.

Seguia seus passos enquanto ele caminhava lentamente por uma ru


a da sua centési-ma... - ou seria milésima? - cidade.

A noite fechada semeada pelas janelas iluminadas das lojas e cem


milhões de luzes deslumbrantes. Detinha-
se diante de uma banca de jornais e comprava todos os
da cidade; depois regressava ao seu carro, aquela nave de guerra e
special sobre rodas de aspecto comum e que nunca se afastava da
sua vista. O vento fresco da noite
revolvia as folhas dos jornais enquanto ele percorria rapidamente su
as colunas.

O vento refrescou um pouco e trouxe ao seu nariz um cheiro de chu


va. Um sopro de vento sobre a folha de papel a fez soltar-se, fê-
la revolutear pelo ar e levou-a rua
abaixo, brincando com ela. Dobrou cuidadosamente o jornal para pr
otegê-lo da fúria
do vento e subiu em seu carro. Uma hora depois jogava os sete jorn
ais no cesto de
papéis da calçada. Refletindo profundamente, voltou a subir no carr
o e sentou-se ao volante.

A velha história de sempre. Dois dos jornais eram dos slans inimigos
. Era-lhe difícil
observa a sutil diferença, o colorido especial dos artigos, a mesma f
orma como as
palavras eram usadas, as distintas diferenças entre os jornais huma
nos e os dirigidos
pelos slans Dois jornais em sete. Mas aqueles dois eram os de maio
r circulação. Era
uma média normal.

E mais uma vez isto era tudo. Seres humanos e slans sem tentáculo
s. Nenhum terceiro grupo, nenhuma das diferenças que conhecia lh
e indicariam que um jornal era
redigido pelos verdadeiros slans, se sua teoria estava correta. Só re
stava procurar
em todas as revistas semanais, passar a noite como havia passado
o dia, perambu-
lando pelas ruas, analisando casa por casa, cada mente dos transeu
ntes. E naquele
momento, enquanto se dirigia pra a extremidade oriental mais distan
te da cidade, a
tormenta se desencadeou como uma besta feroz no meio da noite e
scura. Atrás dele,
a noite e a tempestade engoliam outra cidade, outro fracasso.

A água jazia sombria e imóvel ao redor da nave naquele terceiro ano


em que Jommy Cross regressou ao túnel. Andou afundando-
se na lama, dirigindo a devoradora
energia dos seus instrumentos atômicos sobre o ferido casco de met
al.

O aço de dez pontos se derretera ao redor do buraco que seu desint


egrador havia
aberto no dia que escapou dos cruzadores slans. Durante toda uma
interminável semana, uma máquina monstruosa foi mordendo poleg
ada por polegada da superfície
da nave, exercendo seu espantoso poder sobre a estrutura dos áto
mos até que os
trinta centímetros de espessura das paredes da longa e afilada máq
uina chegou a uma frágil resistência.

Precisou de algumas semanas para analisar as placas de antigravid


ade com suas
vibrações eletricamente produzidas e fabricar uma duplicada que, co
m refinada ironia, deixou no túnel, porque era graças a elas que os d
etetores dos slans inimigos
operavam. Era melhor que continuassem acreditando que a nave es
tava ali.

Durante três meses trabalhou como um escravo e então, no fim de u


ma fria noite
de outubro, a nave retrocedeu seis milhas pelo túnel sobre um leito i
nclinado não re-sistente à força atômica e lançou-
se em uma neblina de chuva gelada.

A chuva se transformou em nevasca, depois em neve; pouco depois


já estava nas
nuvens, fora das mesquinhezas da Terra. Acima dele, o vasto dossel
dos céus brilhava com suas milhares de estrelas que se inclinavam
à passagem da sua nave sem
par. Ali estava Sírio, a joia mais brilhante daquele diadema, e ali esta
va Marte, vermelho. Aquela era somente uma curta viagem de explo
ração, uma cautelosa viagem
à Lua, um voo de teste pra adquirir aquela indispensável experiência
que sua lógica
usaria para a longa e perigosa exploração, que a cada mês que pas
sava em sua in-
frutuosa busca, se fazia mais inevitável. Algum dia teria que ir a Mart
e.

Abaixo dele, a mancha borrada de um globo envolto na noite ia se di


stanciando.

Na extremidade dessa massa, um resplendor de luz ia se fazendo m


ais brilhante e,
subitamente, sua contemplação da maravilha do Sol foi interrompida
pelo som de
uma campainha de alarme. Um ponto luminoso aparecia e desapare
cia em uma forma discordante em sua placa de visão. Desacelerand
o a toda velocidade, observou a
posição alternada da luz. Subitamente desapareceu, e ali, no extrem
o limite da visibi-lidade, havia uma nave.
A nave não estava avançando diretamente para ele. Ia aumentando
de tamanho e
já estava claramente visível um pouco mais além da sombra da Terr
a, sob o pleno
resplendor do Sol. Era uma máquina de trezentos metros, de metal
escuro e liso, que
passou ao seu lado a menos de cento e sessenta quilômetros de dis
tância, submergiu nas sombras e desapareceu. Ao cabo de meia hor
a, a campainha de alarme parou.

Dez minutos depois o alarme soava novamente. Uma segunda nav


e aparecia mais
distante, seguindo uma rota em ângulo reto em relação à da primeir
a. Era uma nave
bem menor, do tipo destroier, e não seguia um rumo fixo, andava ao
acaso. Uma vez

tendo ela desaparecido, Jommy Cross lançou sua nave para diante,
indeciso, quase
amedrontado. Uma nave de guerra e um destroier! Por que? Parecia
indicar uma patrulha. Mas contra quem? Com certeza não contra se
res humanos. Eles não sabiam
nem mesmo que existiam, nem os slans sem tentáculos nem suas n
aves.

Moderou a marcha e parou. Não estava ainda em condições de trop


eçar com uma
patrulha de naves de guerra bem armadas. Cautelosamente, fez gir
ar sua nave e na
metade da manobra viu um pequeno objeto negro, como um meteor
o, que se dirigia
para ele mas que no instante se afastou. O objeto mudou de direção
para ele, como
um monstro de espaço. Era uma espécie de bola, redondo, de metal
escuro, com
algo menos que um metro de diâmetro. Jommy tentou desesperada
mente afastar a
nave da sua trajetória, mas antes que pudesse consegui-
lo aconteceu uma explosão ensurdecedora

Caiu no chão e permaneceu aturdido, confuso mas vivo, quase estra


nhando que
aquelas paredes tivessem resistido a um golpe quase intolerável. A
nave caía com
espantosa aceleração. Fazendo um esforço, endireitou-
se e conseguiu sentar-
se diante dos controles. Havia se chocado com uma mina!

Uma mina flutuante! Que aterradoras precauções havia ali? E contra


quem?

Dirigiu cautelosamente a avariada e quase inutilizada nave para um


túnel que, sob
o rio que cortava o rancho de Granny, penetrava no coração de um
pico montanhoso
livre da água que serpenteava em torno dele. Não podia nem ao me
nos aventurar
uma suposição do tempo que teria que permanecer escondido ali. A
s paredes externas da nave estavam violentamente radioativas e, po
r conseguinte, estava tempora-
riamente fora de uso, embora não fosse por outra razão. Não estava
ainda em condi-

ções de enfrentar nem de prevalecer sobre os slans sem tentáculos.

Dois dias depois, Jommy estava apoiado na porta do rancho em ruín


as de Granny, quando viu aproximar-
se a sua vizinha mais próxima, a Sra. Lanathan, que subia pelo
caminho entre as duas hortas. A Sra. Lanathan era uma loira roliça,
cujo rosto infantil
ocultava um espírito malicioso, e que ao chegar fixou seus olhos azu
is no suposto neto da velha Granny.

Jommy Cross abriu-


lhe a porta e entrou atrás dela na casa. Em sua mente havia
toda a ignorância daqueles que vem vivendo toda sua vida nas atras
adas regiões ru-
rais onde a educação estava reduzida a uma sombra; reflexo tênue,
sem caráter, do
cinismo oficial. Não sabia exatamente o que era um slan, mas suspe
itava que Jommy
era um e tinha vindo averiguar. A mulher seria uma interessante exp
eriência para ele
comprovar seu método de hipnotismo pelo cristal. Era fascinante ver
a forma como
ela olhava para o pequeno fragmento de cristal que ele havia posto
sobre a mesa, ao
lado da sua cadeira, observar como ela falava, completamente de a
cordo com o seu
caráter, sem jamais se dar conta de quando havia deixado de ser u
m ser livre para transforma-se em um escravo

Quando ela finalmente partiu sob a pálida luz do crepúsculo, aparent


emente não
havia sofrido mudança alguma. Mas o objetivo que a havia trazido à
quela casa estava esquecido, porque sua mente havia adotado uma
nova atitude a respeito dos
slans. No futuro não mais sentiria nem o ódio - por um possível futur
o da vida de
Jommy Cross - nem aprovação, por sua própria proteção em um mu
ndo de pessoas que odiavam os slans.

No dia seguinte Jommy Cross viu o marido da Sra. Lanathan, um gi


gante de barba
negra, em um campo distante. Uma conversa amigável, uma nova e
xperiência com o
fragmento de cristal e ele o teve também sob o seu domínio.

Durante os meses que ficou descansando ao lado de Granny, já sua


vemente hipno-

tizada, conseguiu o controle absoluto de centenas de pessoas que v


iviam naquele
idílico clima do vale ao pé daquelas colinas eternamente verdes. A p
rincípio necessi-
tava dos cristais, mas à medida que seu conhecimento da mente hu
mana foi aumentando, descobriu que, embora fosse um procedimen
to mais lento, podia facilmente
prescindir daqueles cristais anatomicamente desequilibrados.

Calculou que com uma cota de dois mil hipnotizados ao ano e sem c
ontar com as
novas gerações, podia hipnotizar os quatro bilhões de pessoas em d
ois milhões de
anos. Inversamente, dois milhões de slans poderiam fazê-
lo em um ano, contanto
que possuíssem o segredo dos seus cristais.

Precisava de dois milhões de slans e não conseguia encontrar nem


um só. Em alguma parte devia haver um verdadeiro slan. E durant
e os anos que tinham que
transcorrer antes que pudesse logicamente consagrar sua inteligênc
ia à tarefa intelectual que representava encontrar a verdadeira organ
ização slan, tinha que achar este um.

XIII

Estava encurralada. A tensão de Kathleen Layton aumentou. Seu co


rpo esbelto ficou rígido diante da gaveta aberta da mesa de Kier Gra
y, cujo conteúdo tinha estado
estudando. Sua mente alarmada saltou para o lugar onde Kier Gray
e outro homem
estavam abrindo a porta da sala que levava, cruzando um corredor
e outro quarto, à sala onde ela estava, o estúdio do ditador.

Sentia-
se triste. Durante semanas inteiras havia estado esperando a reuniã
o do
Conselho que reclamaria a presença de Kier Gray e lhe daria livre a
cesso ao seu es-
túdio... e agora este torpe incidente. Pela primeira vez Kier Gray hav
ia ido ao quarto da garota em vez de chamá-
la para o seu. Com todas as outras saídas guardadas,
seu único caminho de fuga estava cortado.

Estava encurralada. Mas não se arrependia de ter vindo. Um slan en


carcerado não
podia ter outro propósito senão a fuga, e a gravidade da situação est
ava aumentando. Ser pilhada ali em flagrante... Subitamente parou
de guardar os papeis na gaveta. Não tinha tempo. Os homens já est
avam atrás da porta.

Em uma súbita decisão, fechou a gaveta, jogou o monte de papeis s


obre a mesa e, como uma galinha que foge, correu a refugiar-
se em uma cadeira.

No mesmo instante a porta se abriu dando passagem a John Petty s


eguido por Kier Gray. Ao vê-
la, os dois homens se detiveram. O belo rosto do Chefe de Polícia
adquiriu uma cor mais escura, seus olhos se converteram em duas f
endas e lançou
um olhar penetrante ao ditador. Este franziu o cenho intrigado e esb
oçou um leve sorriso de ironia.

- Olá - disse. - O que a trouxe aqui?

Kathleen já havia tomado sua decisão de antemão, mas antes que p


udesse pronunciar uma palavra John Petty interveio. Tinha uma bela
voz, quando queria, e desta vez fez uso dela.

- Ela está visivelmente lhe esperando, Kier - disse amavelmente.

Na lógica contundente daquele homem havia alguma coisa que deix


ou a garota
gelada. Parecia que o sombrio destino do Chefe da Polícia Secreta
era estar presente
em todos os momentos críticos da sua vida, e sabia, fraquejando su
a coragem, que
aquele era um desses momentos e que ninguém neste mundo poria
mais paixão que John Petty em demonstrar seu ódio mais mortal.

- Realmente, Kier - prosseguiu o Chefe de Polícia com calma, - volta


mos de uma
forma dramática ao que vimos discutindo. Na próxima semana esta
garota completará vinte e um anos e será então, legalmente, adulta.
Será que ela vai viver aqui eternamente até que morra em uma idad
e avançada de cento e cinquenta anos ou algo assim?

O sorriso de Kier Gray tornou-se mais amargo.

- Kathleen, você não sabia que eu estava na reunião do Conselho?

- Claro que ela sabia - interveio John Petty. - E este final inesperado
foi para ela uma desagradável surpresa.

- Me nego a responder qualquer pergunta em que intervenha este h


omem - disse
Kathleen friamente. - Ele tenta conservar sua voz pausada e tranquil
a, mas apesar
da curiosa maneira como oculta seus sentimentos, já está sob a infl
uência de uma
forte excitação. E acha que finalmente terá a possibilidade de conve
ncê-lo da necessidade de me suprimir.

A hostilidade apareceu claramente no rosto do chefe. A mente da ga


rota tentou
captar o pensamento de Kier, mas viu que nele estava se formando
uma decisão que foi incapaz de ler.

- Historicamente falando - disse ele finalmente, - a acusação dela co


ntra você está correta, John. Seu empenho em matá-
la demonstra.... um tributo, claro, ao seu zelo anti-
slan, mas ao mesmo tempo um fanatismo, em um homem dotado da
s suas enormes capacidades.
Pelo gesto que fez, John Petty pareceu ficar profundamente impress
ionado por essas palavras.

- A verdade é - disse, - que quero e não quero sua morte. No meu m


odo de ver,
ela constitui uma grave ameaça. Meu único desejo é afastá-
la do nosso caminho e, tendo sentimentos anti-
slan, considero que o método mais efetivo para isto é a morte. Entre
tanto, dada a minha reputação de parcialidade, não insistirei neste v
eredito.

Mas acredito sinceramente que minha proposta durante o Conselho


de hoje é boa.

Ela tem que ser levada a uma nova residência.

Na mente superficial de Kier Gray não havia nenhuma ideia que indi
casse que ele queria falar. Seu olhar fixou-
se na garota com uma firmeza desnecessária.

- E no momento que me tirarem deste palácio eu serei assassinada


- disse a garota secamente. - Como de fato disse o Sr. Gray há dez
anos atrás, depois que seu esbirro tentou assassinar-
me, uma vez que um slan tenha sido morto, as perguntas sobre o as
sunto são vistas com receio.

Notou que Kier Gray a olhava movendo negativamente a cabeça. Ja


mais Kathleen
o havia ouvido empregar um tom de voz mais suave que quando dis
se:

- Você supõe com excessiva facilidade, Kathleen, que não posso pro
tegê-la. No conjunto, me parece o melhor plano.

Kathleen olhou-
a desolada. Kier terminou sua virtual sentença de morte, mas sua
vez já não era suave e sim autoritária, decidida.
- Você reunirá suas roupas e seus pertences e se aprontará para sai
r do palácio dentro de vinte e quatro horas.

A impressão passou. Em sua mente a calma renasceu. Via com clar


eza muito cristalina que Kier Gray havia retirado sua proteção e, por
conseguinte, toda reação seria
sem sentido. O que a assombrava era que não havia ainda nenhum
a prova do delito
sobre o qual ele teria podido basear sua condenação. Não havia seq
uer olhado para
os papeis que ela havia amontoado precipitadamente sobre a mesa.
Consequente-
mente, sua acusação se baseava meramente em sua presença ali e
nas acusações de John Petty.

O que era surpreendente, porque em outras ocasiões ele a havia de


fendido em circunstâncias muito mais sinistras. E ela havia entrado
naquele estúdio sem ser descoberta nem castigada por mais de mei
a duzia de vezes.

Tudo isto significava, portanto, que sua decisão havia sido tomada d
e antemão e
que, por conseguinte, toda discussão teria sido inútil. Deu-
se conta que John Petty
também estava surpreso. O homem franzia o cenho diante da sua vi
tória fácil. A superfície do seu cérebro vibrava sob uma leve sensaçã
o de contrariedade, e tomou a
súbita decisão de esclarecer o assunto. Ele deu uma olhada ao redo
r do local e finalmente fixou-se sobre a mesa.

- O que conviria saber é o que ela estava averiguando enquanto est


eve aqui sozinha. Que papeis são estes? - não era um homem tímid
o e enquanto fazia as perguntas se aproximava da mesa. Quando o
chefe se aproximou, revolveu os papeis. - Ah!

a lista de todos os lugares onde se ocultavam os slans que ainda e


mpregamos para
prender aos não organizados. Felizmente são tantas centenas que e
la não pode ter
tido tempo de relembrar seus nomes, sem contar os dos lugares ond
e estão localiza-dos.

A falsidade das conclusões não foi o que preocupou Kathleen, naqu


ele momento
ao ser descoberta. Evidentemente nenhum dos dois suspeitava que
não somente
cada um dos refúgios slans haviam ficado impressos em sua mente
de forma indelé-

vel, como também que conservava um registro quase fotográfico do


s sistemas de
alarme que a Polícia havia instalado em cada centro para avisar da
entrada suspeita
de algum slan. Segundo a minuciosa análise de um dos relatórios, ti
nha que haver
uma espécie de emissora mental que permitia aos slans forasteiros l
ocalizarem o local onde poderiam se esconder. Mas agora isto não ti
nha importância. O que contava
era Kier Gray, que estava olhando os papeis com curiosidade.

- Isto é mais sério do que eu imaginava - disse lentamente, fazendo


o coração de
Kathleen desfalecer. - Você andou examinando minha mesa.

Kathleen concentrou seus pensamentos; não tinha necessidade de f


azer John Petty
saber. O antigo Kier Gray jamais teria procurado com seu pior inimig
o um gramo de munições para ser usado contra ela.

Kier Gray fixou nela seus olhos frios. Coisa estranha, a superfície da
sua mente parecia mais calma e tranquila que nunca. Viu que não e
stava irritado, mas sim que ele
estava rompendo, fria e definitivamente, com ela.

- Vá para seu quarto arrumar suas malas e espere por novas instruç
ões.
Kathleen já se dispunha a sair quando John Petty interveio.

- Você falou em várias ocasiões, chefe, que conservava sua vida me


ramente com
propósitos de observações. Se ficar distante da sua presença, este
propósito já não
poderá ser aplicado. Por conseguinte, creio não estar equivocado ao
supor que ela será posta sob a proteção da Polícia Secreta.

Ao sair do quarto, Kathleen fechou sua mente para as dos dois hom
ens e dirigiu-se
correndo para seu quarto. Não tinha o menor interesse pelo hipócrit
a plano de assassinato que pudessem estar tramando o Chefe do G
overno e seu verdugo. O caminho
a seguir estava claro. Abriu a porta que dava para um dos corredore
s principais, fez um sinal ao guarda que lhe respondeu saudando-
a rigidamente... e dirigiu-
se lentamente para o elevador mais próximo.

Teoricamente só lhe era permitido subir até a plataforma que se elev


ava a cento e
cinquenta metros de altura, e não até os hangares dos aviões, a mai
s cento e cinquenta metros. Mas o robusto empregado que manejav
a o elevador pelo visto não
foi capaz de resistir ao formidável murro que o atingiu em plena man
díbula. Kathleen
havia lido em sua mente que, como a maioria dos demais habitantes
do palácio, jamais lhe teria ocorrido que aquela magra garota pudes
se ser perigosa para um homem em plena força da idade. Antes de
descobrir seu erro, ele já estava sem sentidos. Era cruel, mas atou s
uas mãos e seus pés com a mesmo fio que empregou para
amarrar sua mordaça.

Ao chegar ao telhado, fez uma rápida exploração mental dos arredor


es do elevador. Finalmente abriu a porta e voltou a fechá-
la rapidamente atrás dela. A menos de
dez metros dela havia um avião e ao seu lado outro, no qual estava
m trabalhando
três mecânicos e havia também um soldado que falava com eles.

Só precisou de dez segundos para subir ao avião e não foi em vão q


ue havia captado os pensamentos dos oficiais de aviação durante to
dos aqueles anos. Os jatos
silvaram, a grande máquina avançou e subiu aos ares.

- Ei! - chegou a ela o pensamento de um dos mecânicos. - Ah, lá vai


outra vez o Coronel!

- Provavelmente vai atrás de alguma outra mulher - disse o soldado.

- Sim - disse o segundo mecânico. - Vá confiar nesse tipo...

Duas horas depois voando para o sul, chegou ao refugio dos slans q
ue havia escolhido. Depois pôs o avião no automático e viu quando
este empreendeu sua rota
para o leste. Durante os dias que se seguiram, esperou impaciente
mente por um carro, mas somente quinze dias depois um longo e afi
lado automóvel negro apareceu
por trás de um grupo de árvores, seguindo pela estrada antiga e diri
gindo-se para
ela. Seu corpo ficou tenso. Fosse como fosse, tinha que deter aquel
e homem, dominá-lo e apoderar-
se do carro. A Polícia Secreta já devia estar procurando-a; tinha que
partir dali e já. Com o olhar fixo no carro, esperou.

XIV

A plana e ventilada pradaria estava finalmente diante dos seus olhos


. Jommy Cross
seguiu diretamente para o leste e depois para o sul. Então encontro
u-se diante de
uma série de barricadas da Polícia que parecia interminável. Ningué
m fez o menor esforço para detê-
lo e finalmente leu na mente de vários homens que eles estavam
procurando por uma garota slan.
Aquilo foi um golpe impressionante. No momento a esperança lhe p
areceu boa demais para ser verdade. E, não obstante, não podia ser
uma garota slan sem tentáculos Aqueles homens, que só podem re
conhecer um slan por seus tentáculos, só poderiam estar procurand
o um slan autêntico. O que significava... que ali era onde o
sonho se convertia em realidade.

Dirigiu-
se para a zona que tinha ordem para circundar e em pouco tempo a
bandonou a estrada principal e, seguindo outra secundária, chegou
a um vale cheio de árvores e subiu em uma colina alta. A manhã tinh
a sido cinza, mas ao meio-dia o sol
saiu, brilhando gloriosamente no profundo céu azul.

A impressão geral de que tinha que encontrar-


se perto do coração da zona de perigo, foi reforçada por um pensam
ento que roçou por sua mente. Foi um tênue sinal,
mas de tanta importância que turvou seu cérebro.

“Atenção, slans! Aqui é a emissora de Porgrave! Sigam a estrada lat


eral durante
800 metros. Será enviada uma nova mensagem mais tarde”.

Jommy se endireitou. Suave e insistente, a onda mental chegou a el


e novamente,
suave como uma chuva de verão... “Atenção, slan! Siga!”

Continuou avançando, cauteloso mas ansioso. O milagre tinha acont


ecido. Slans,
perto dali, muitos slans! Uma máquina como aquela podia ser manej
ada por um só
indivíduos, mas a mensagem sugeria a presença de uma comunida
de, e tinham que ser slans verdadeiros... não era assim?

A proximidade da realização das suas esperanças transformou-


se em uma dor aguda ao pensar na possibilidade de uma armadilha.
Podia tratar-
se de um aparelho deixado ali por uma antiga colonização slan. Não
existia perigo de verdade, claro, posto
que seu carro resistia aos golpes mais perigosos e suas armas paral
isariam o agressivo poder do inimigo. Mas claro, talvez fosse conven
iente levar em conta a possibilidade de que alguns seres humanos h
ouvessem deixado ali aquela máquina emissora
mental como uma armadilha e que agora estivessem se aproximand
o dela na crença
de que alguem se ocultava ali. Depois de tudo, era esta possibilidad
e que o havia atraído.

Em suas mãos, o belo e longo carro continuou avançando e após u


m minuto Jommy Cross viu o caminho; não era nada mais que um at
alho. O carro super longo entrou por ali. O caminho ondulava atravé
s de zonas de árvores espessas, cruzando alguns vales. Já havia pe
rcorrido cinco quilômetros quando a nova mensagem chegou
a ele e o fez deter-se repentinamente.

“Aqui é a emissora de Porgrave; dirija-


se, verdadeiro slan, a uma pequena fazenda

mais adiante, que dá entrada a uma cidade subterrânea de fábricas,


jardins e residências. Bem vindo. Aqui Porgrave...”

Depois de cruzar uma zona acidentada, o carro atravessou um pequ


eno bosque de
salgueiros flexíveis e saiu em uma clareira. Jommy Cross encontrou
-se em frente a
um pátio coberto de grama diante de uma fazenda deteriorada pelo t
empo, em cujos
lados havia outras construções ainda mais deterioradas, uma garag
em e um celeiro.

Sem janelas e sem pintura, o velho edifício parecia olhá-lo sem vê-
lo. O celeiro estava quase em ruínas e suas duas portas, uma pend
ente de suas dobradiças e a outra caída no chão. Seu olhar se fixou
por um instante na garagem, depois mais para
diante ainda, pensativo. Por todas as partes reinava uma sensação
de alguma coisa
morta há muito tempo...e, entretanto, era diferente. A sutil diferença f
oi crescendo
nele, aumentando o interesse da sua observação. A garagem pareci
a estar a ponto
de cair, mas era por sua arquitetura, por seu estado. Misturados co
m os objetos de construção, viam-se pedaços de metais duros.

As portas, aparentemente quebradas, inclinavam-


se pesadamente para o chão, no entanto abriram-
se facilmente sob a pressão dos dedos de uma alta garota vestida
de cinza saiu e olhou-o com um sorriso deslumbrante.

A garota tinha uns olhos luminosos e um rosto delicadamente model


ado e saiu da casa acreditando ser ele um ser humano.

E era um slan!

E ele era um slan!

Para Jommy Cross, que levara tantos anos procurando cautelosame


nte por um slan
no mundo todo, com a mente sempre aberta, a impressão e a reaçã
o dela foram
quase instantâneas. Sabia que algum dia aquilo tinha que acontecer
, que algum dia
encontraria um verdadeiro slan. Mas para Kathleen, que nunca tiver
a que ocultar
seus pensamentos, a surpresa foi devastadora. Tentou recobrar o d
omínio de si mesma e viu que era impossível. A cortina mental, tão r
aramente usada, estava fora de uso.

O nobre orgulho saturava o jorro de pensamentos que brotou naquel


e instante da
sua mente como um livro aberto e sem proteção. Orgulho e uma do
urada humildade.

Uma humildade baseada em uma profunda sensibilidade, em uma i


mensa compreensão que equivalia à sua, mas que carecia da vonta
de de lutar contra um perigo sem
fim. Havia nela uma cálida bondade de coração que entretanto já ha
via conhecido o
ressentimento e as lágrimas, e que já se havia enfrentado com um ó
dio sem fim.

E então a mente da garota se fechou e ela permaneceu com os olho


s muito abertos, olhando-
o. Após um momento, ela voltou a abrir seu pensamente e deixou qu
e seus pensamentos chegassem a ele.

“Não devemos permanecer aqui. Já faz muito tempo. Você já deve t


er lido no meu
pensamento que a Polícia está me procurando e o melhor que pode
mos fazer é sair imediatamente.

Cross permaneceu imóvel, olhando-


a com um brilho nos olhos. A cada segundo,
sua mente se estendia mais, todo seu corpo sentia o ardor do júbilo.
Era como se tirassem de cima dele um peso intolerável. Durante to
dos aqueles anos tudo havia de-
pendido dele. Aquela arma que lhe haviam confiado para a criação d
o mundo futuro,
às vezes lhe parecia a espada de Dámocles, suspensa sobre o desti
no dos slans e
dos humanos pelo tênue fio da sua vida. E agora haveria o fio de du
as vidas para mantê-la.

Não era um pensamento, e sim uma emoção; uma emoção ao mes


mo tempo triste, doce e gloriosa. Um homem e uma mulher, sozinho
s no mundo, encontravam-se
daquela forma, como seu pai e sua mãe haviam se encontrado há m
uito tempo.

Jommy sorriu ante a recordação e abriu sua mente para ela. E então
balançou a ca-beça.
- Não, não imediatamente. Eu li em sua mente que na cidade subter
rânea existe
uma maquinaria que eu gostaria de ver. Não se preocupe com o peri
go - disse sorrindo para tranquilizá-
la. - Tenho armas que os humanos não podem igualar e este carro é
um meio infalível de fuga. Pode levar-
me praticamente a qualquer lugar. Espero
que haja lugar para ele no subterrâneo.

“Oh, sim! Primeiro se desce por uns elevadores, depois pode-


se ir aonde quiser Mas não devemos demorar”.

Mais tarde, Kathleen repetiu-lhe suas dúvidas.

“Não acho que devamos ficar aqui. Vejo em seu pensamento que vo
cê possui armas maravilhosas e que seu carro é feito de um metal q
ue você chama de aço de
dez pontos. Mas você tem uma tendência demasiada a subestimar o
s seres humanos. Não deve fazer isto! Em sua luta contra os slans,
homens como John Petty têm
um cérebro de um poder anormal e ele não se deterá diante de nad
a para me destruir. Agora mesmo, sua rede deve estar se fechando
estreitamente sobre os diversos
refúgios onde eu poderia me esconder”.

Jommy Cross olhou-a com olhos turvos. Ao seu redor estendia-


se o silêncio da cidade subterrânea; as muralhas, que um dia foram
brancas, elevavam-se orgulhosa-
mente para os tetos rachados, as fileiras e mais fileiras de colunas e
stavam mais deterioradas pelo peso dos anos que pelo peso da terr
a acima. À sua esquerda via o
princípio de um vasto jardim artificial que se estendia ao longe e o ar
roio que forne-
cia a água para aquele pequeno mundo subterrâneo. À direita, esten
dia-
se uma longa fileira de portas; as paredes de plástico reluziam com
um brilho melancólico.
Um povo inteiro havia vivido ali e foi expulso por seus implacáveis in
imigos e a
ameaçadora atmosfera da guerra ainda parecia saturar o ar. Dando
uma olhada ao
seu redor, Jommy achou que a cidade havia sido evacuada há não
mais que vinte e
cinco anos; tudo nela parecia recente e mortal. Sua resposta mental
a Kathleen refletiu a ameaça deste perigo permanente.

“Segundo todas as leis da lógica, basta permanecermos em constan


te controle dos
pensamentos exteriores e nos mantermos a não mais que vinte e ci
nco metros do
meu carro para estarmos a salvo. Entretanto, estou assustado por s
ua intuição do
perigo. Examine bem sua mente e procure a base dos seus temores
. Eu não posso fazê-lo tão bem como você própria”.

A garota permaneceu silenciosa e com os olhos fechados e sua corti


na mental foi
levantada. Estava sentada no carro, ao seu lado, e parecia uma gar
otinha já crescida
que tivesse adormecido. Finalmente, seus lábios sensíveis se mover
am e pela primeira vez ela falou em voa alta.

- Diga, o que é aço de dez pontos?

- Ah! - exclamou Jommy Cross satisfeito. - Começo a compreender


os fatores psicológicos que intervêm. A comunicação mental tem mu
itas vantagens, mas não pode
transmitir com tanta precisão, por exemplo, o alcance do poder de u
ma arma, como
uma imagem ou um pedaço de papel e, claro, não tão bem como a
palavra. A força,
o tamanho e o poder e demais imagens abstratas similares não são
bem transmiti-das.

- Continue.
- Tudo o que eu fiz - explicou Jommy Cross - foi baseado na grande
descoberta da
primeira lei da energia atômica realizada por meu pai, a concentraçã
o como oposição
ao velho método de difusão. Pelo que eu sei, meu pai jamais suspeit
ou das possibili-

dades de fortalecimento do metal, mas, como todos os pesquisador


es que vêm depois de um grande homem e das suas descobertas b
ásicas, eu me concentrei em detalhes de desenvolvimento, baseand
o-me em parte em suas ideias e em parte nas
ideias que iam surgindo por si mesmas.

E prosseguiu:

- Todos os metais se mantém compactos por tensões atômicas, com


preendendo a
força teórica de cada metal. No caso do aço, chamo a este potencial
teórico um ponto. Como comparação, quando o aço foi inventado, s
ua força era de aproximadamente 2/1000 pontos. Novos processos
aumentaram sua resistência para 10/1000 pontos
e mais tarde, transcorrido um período de cem anos, o atual nível resi
stência de sete-
centos e cinquenta. Os slans sem tentáculos têm fabricado aço de q
uinhentos pontos, mas nem mesmo este material incrivelmente duro
pode comparar-se ao produto
da minha aplicação à resistência atômica, que muda a estrutura dos
átomos e produz
um aço quase perfeito de dez pontos. Um oitavo de polegada de aç
o de dez pontos
pode deter o mais potente explosivo conhecido pelos seres humano
s e pelos slans sem tentáculos.

- O importante a lembrar aqui - concluiu - é que uma bomba atômica


, sem dúvida
alguma suficientemente forte para derrubar uma nave de guerra gig
ante, não penetrou um pé no aço de dez pontos, apesar do casco te
r ficado bastante avariado e
um quarto das máquinas terem ficado aos pedaços.

Kathleen olhava-o com um brilho nos olhos.

- Que idiota eu sou! - disse ofegante. - Encontrei o maior slan que ex


iste no mundo e estou tentando comunicar-
lhe meus temores adquiridos durante vinte e um
anos de vivência entre os seres humanos e suas infinitesimais força
s e poderes.

- O grande homem não sou eu e sim meu pai - respondeu Jommy s


orrindo, - se
bem que ele tinha seus defeitos também, sendo o maior deles a falt
a de precaução.

Mas este era o verdadeiro gênio - acrescentou, desaparecendo seu


sorriso. - Temo
entretanto que tenhamos que fazer frequentes visitas a este subterr
âneo, e cada
uma delas será tão perigosa como esta. Eu conheci John Petty muit
o brevemente e o
que li sobre ele em seu cérebro o desenha como um homem obstina
do e implacável.

Sei que ele está vigiando este local, mas que não devemos deixar-
nos assustar por
isto. Desta vez ficaremos somente até que escureça, o tempo de me
permitir examinar a maquinaria. No carro há comida, que poderemo
s preparar quando tivermos
dormido um pouco. Dormiremos no carro, claro, mas primeiro a maq
uinaria...

As máquinas estavam por todas as partes, silenciosas e empoeirada


s, como cadá-

veres. Fornos arrebentados, grandes máquinas de diversos tipos, to


rnos, serras, incontáveis ferramentas e máquinas, oitocentos metros
de máquinas, cerca de trinta
por cento delas fora de uso, mas uma boa parte ainda era utilizável.

A luz fixa e sem brilho criava um mundo de sombras sobre aquele s


olo afundado
pelo qual avançavam entre montes de máquinas. Jommy Cross esta
va pensativo.

- Aqui há mais coisas do que eu imaginava, tudo que eu sempre pre


cisei. Só com
os desperdícios de metal poderia ser construída uma nave potente
e eles provavelmente utilizavam somente para capturar slans. Diga-
me - acrescentou pensativo, -

você está certa de que esta cidade só tem duas entradas?

- A lista na mesa do Kier Gray só menciona duas e eu não localizei


mais nenhuma.

Jommy ficou em silêncio, mas não podia ocultar o curso das suas re
flexões para Kathleen.

- É uma loucura da minha parte pensar outra vez na sua intuição, m


as não eu não
gostaria de deixar uma possível ameaça ao acaso até que tenha ex
aminado todas as contingências possíveis.

- Se existe uma entrada secreta, nós vamos precisar de várias horas


para encontrá-
la - disse Kathleen - e se a encontrarmos não estaremos certos de q
ue não existem outras e, portanto, já não nos sentiremos seguros. E
u continuo acreditando que devemos sair imediatamente.

- Eu não queria que você tivesse lido isto antes em meu pensament
o - disse Jommy em tom decidido, - mas a principal razão pela qual
não quero sair daqui é que
até que você tenha mudado seu rosto e ocultado seus tentáculos so
b um cabelo falso, tarefa bastante difícil, o lugar mais seguro é aqui.
Todas as estradas estão vigia-
das. A maioria sabe que perseguem um slan e têm sua fotografia. E
u me afastei da estrada principal com a esperança de encontrá-
la antes deles.

- Sua máquina voa, não? - perguntou Kathleen.

- Ainda faltam sete horas para que escureça - disse Jommy sorrindo
tristemente, -

e um minuto depois disto sairemos por avião. Imagine o que os pilot


os transmitirão
ao aeroporto mais próximo quando virem um automóvel levantar voo
. E se voarmos
mais alto, digamos a oitenta quilômetros, com certeza seremos visto
s pelas patrulhas
dos slans inimigos. O primeiro comandante imediatamente se dará c
onta de quem
somos, comunicará nossa posição e atacarão. Eu tenho armas para
destruí-los, mas
não queria ter que destruir a dúzia de naves que nos seguiriam, pelo
menos antes
que suas potentes forças alcancem este carro com tanta força que a
mera concussão poderia matar-
nos. Por outro lado, não queria me pôr voluntariamente em uma situ
ação em que teria que matar todo mundo. Só matei três homens em
toda minha
vida e a cada vez minha resistência a destruir vidas humanas cresce
u de tal forma
que chegou a ser uma das minhas mais potentes forças; tão potente
que baseei todo
meu plano em encontrar com os verdadeiros slans, na análise desta
minha característica dominante.

O pensamento da garota passou por sua mente, rápido como um so


pro de ar.
- Você tem um plano para encontrar os verdadeiros slans? - pergunt
ou.

- Sim. Na realidade é muito simples. Todos os slans que eu conheci


até agora, meu
pai, minha mãe, eu mesmo e agora você, são pessoas de bom cora
ção e generosas.

E isto apesar do ódio dos humanos, do esforço que fazem para nos
aniquilar. Não
posso acreditar que nós quatro sejamos exceções, por conseguinte
deve haver alguma explicação razoável para os monstruosos atos q
ue são atribuídos aos verdadeiros
slans. É provavelmente muita presunção da minha parte, na minha i
dade e com minhas limitações - acrescentou, - ter uma opinião sobr
e este ponto e por outro lado
creio que até agora foi um fracasso completo. E também não devo f
azer nenhuma jo-
gada arriscada até ter tomado medidas mais defensivas contra os sl
ans inimigos.

Kathleen estava com os olhos fixos nele e concordou com a cabeça.

- Vejo também porque devemos permanecer aqui por mais tempo.

Era curioso, mas Jommy teria preferido que não se tocasse mais ne
ste ponto. Embora ocultasse seus pensamentos, acabara de ter a pr
emonição de um grande perigo, tão grande, que a lógica o descarta
va. A vaga reminiscência que dele restava o fez dizer:

- Não saia do lado do carro e vigie mentalmente. Afinal poderemos d


escobrir a
presença de um ser humano a quatrocentos metros, mesmo adorme
cidos.

Mas, apesar das suas palavras ainda não se sentia tranquilo.


A princípio, Jommy Cross teve um sono leve. Devia estar desperto p
or algum tempo, porque, apesar de ter os olhos fechados, sentia a p
resença dos pensamentos da
garota e se dava conta de que ela estava lendo um dos seus livros.
Tão leve era o
sono que uma vez chegou à sua mente uma pergunta:

“As luzes do teto ficam constantemente acesas?

Sem dúvida a garota lhe sugeriu suavemente a resposta, pois imedi


atamente soube que aquelas luzes estavam assim desde que ela ha
via chegado e deviam estar assim há centenas de anos. Na mente d
e Kathleen havia uma pergunta que Jommy respondeu:

“Não, não quero comer até depois de ter dormido”.

Ou era uma mera recordação do que haviam falado antes? Entretan


to não estava
completamente adormecido, porque sentia profundamente arraigada
nele a alegria
de haver encontrado outro slan verdadeiro; aquela garota tão bela e
deliciosa.

E, para ela, aquele rapaz tão jovem e atraente.

Era ele quem tinha pensado isto ou ela?

“Fui eu, Jommy”.

Como era delicioso poder entrelaçar seu pensamente com outro que
simpatizava
tão intimamente com ele e que pareciam ser um só, e perguntar e re
ceber respostas,
e trocar impressões com aquela voz silenciosa que o frio emprego d
as palavras não poderia jamais conseguir!

Estariam apaixonados? Como duas pessoas poderiam se apaixonar


pelo mero fato
de haverem se encontrado, sabendo que havia milhões de slans no
mundo e, entre
eles, rapazes e garotas que cada um deles teria preferido em outras
condições?

“Existe algo mais que isto, Jommy. Temos vivido toda nossa vida soz
inhos, em um
mundo de homens diferentes de nós. Vamos compartilhar esperanç
as e dúvidas, perigos e vitórias. Encontrar a bondade no final é uma
grande alegria, mas encontrar a
todos os demais slans não será a mesma coisa. Acima de tudo, criar
emos um filho.

Compreenda, Jommy, eu já amoldei todo meu ser a uma nova forma


de vita. Não é isto o verdadeiro amor?

Ele achava que sim, e eles tinham a noção destra grande felicidade.
Mas quando
adormeceu, aquela felicidade não se achava presente; somente sen
tia em sua frente
um abismo do qual se aproximava vendo sua profundeza sem fim. D
espertou sobres-
saltado. Olhando ao redor, viu o lugar onde Kathleen havia estado s
entada, mas o lugar estava vazio. Sua mente exaltada, ainda na mar
gem do sonho, vibrou:

“Kathleen”.

A garota aproximou-se da porta do carro.

- Eu estava olhando todos esses metais e me perguntando quais del


es seriam de
utilidade imediata para você - parou, sorrindo. - Para nós.

Jommy permanecia imóvel, refletindo, e contrariado por ela ter desci


do do carro
mesmo que por um instante. Adivinhava que ela vinha de um ambie
nte menos tenso
que o seu. Havia tido liberdade de movimentos e afastou-
se dali, apesar dos perigos
que a ameaçavam, certa de poder passar por eles. Quanto a ele, ha
via vivido toda
sua triste existência com a constante preocupação de que o menor
erro poderia acarretar-
lhe a morte. Cada movimento tinha que incluir o cálculo do risco.

Esta era uma linha de conduta à qual Kathleen teria que se acostum
ar. A ousadia
de levar a cabo uma determinada missão frente ao perigo era uma c
oisa, o descuido era outra.

- Vou preparar um pouco de comida enquanto você recolhe as coisa


s que quiser
levar - disse a garota alegremente. - Já deve ter escurecido.

Jommy olhou seu relógio e concordou. Dentro de duas horas seria


meia-noite, e a escuridão ocultaria seu voo.

- Onde está a cozinha mais próxima? - perguntou.

- Ali embaixo - disse ela, apontando para uma fileira de portas com o
braço.

- A que distância?

- A uns trinta metros. Jommy, estou vendo como você está inquieto -
acrescentou,

franzindo o cenho. - Mas se vamos formar um casal, um de nós tem


que fazer uma coisa enquanto o outro faz outra.

Ele a viu afastar-se, inquieto, perguntando-


se se conseguir uma companheira seria
uma boa coisa para seus nervos. Ele, que havia se acostumado a to
dos os riscos que o ameaçavam, teria que acostumar-
se agora à ideia de que ela teria que corrê-los também.
Não que houvesse algum risco no momento. O lugar estava silencio
so. Nem o menor ruído e, com exceção de Kathleen, nem o menor s
inal mental de um pensamento. Os perseguidores, os que procurava
m e os que levantavam as barreiras que havia
visto durante o dia, já deviam estar dormindo ou a ponto de se retira
rem.

Viu Kathleen entrar por uma porta e calculou que estava a uns duze
ntos e cinquenta metros e já se dispunha a sair do carro quando che
gou à sua mente uma chamada, urgente, alta, vibrante:

“Jommy, a parede está se abrindo! Alguem...!

Subitamente seu pensamento se deteve e começou a transmitir as p


alavras de outro homem.

“Ah, então é Kathleen! - dizia John Petty com fria satisfação. - E ape
nas no quin-
quagésimo sétimo esconderijo que visitei! Eu o fiz pessoalmente, cla
ro, porque poucos outros seres humanos seriam capazes de impedir
que você fosse avisada da sua
aproximação. Além disto, esta é uma missão que não pode ser confi
ada a ninguém
Que lhe pareceu a psicologia de abrir estas entradas secretas na co
zinha? Pelo visto,
os slans também levam seus estômagos quando viajam...”

Sob os rápidos dedos de Jommy, o carro pegou e saltou para a frent


e. Ele captou a resposta de Kathleen, fria e pausada:

“Então afinal me encontrou, Sr. Petty. - e adotou um tom de mofa. -


Talvez eu deva pedir por sua piedade?

A piedade não é precisamente meu ponto fraco - respondeu o outro


em tom gelado. - Nem costumo demorar quando uma oportunidade
a muito tempo esperada se apresenta...”

“Jommy, depressa!”
O disparo repercutiu em seu cérebro. Durante um terrível momento
de intolerável
tensão, a mente da garota deteve a morte que a bala em seu cérebr
o havia causado.

“Oh, Jommy... e poderíamos ter sido tão felizes!... Adeus, meu amor.
..!”

Totalmente desfalecido, Jommy seguiu a força da vida que ia se apa


gando da
mente da garota. O negro muro da morte apagou subitamente nele
a imagem do que havia sido Kathleen.

XV

Jommy Cross não sentiu ódio, nem dor, nem esperança. Sua mente
limitou-se a
captar impressões e seu corpo superlativamente sensível reagiu co
mo a perfeita má-

quina física que era. Seu carro parou subitamente e viu a figura de J
ohn Petty de pé ao lado do corpo contorcido de Kathleen.

“Droga! - saltou a mente do assassino. - Outro deles!

E sua arma disparou contra a invulnerável armadura do carro. Surpr


eso por seu
fracasso, o Chefe da Polícia Secreta retrocedeu e dos seus lábios s
aiu um grito de raiva. Durante um instante, todo o ódio concentrado
contra os slans pareceu personifi-car-
se em sua aterradora expressão e a tensão nervosa do seu corpo p
arecia esperar pela morte inevitável.

Bastaria apertar aquele botão e John Petty seria reduzido a nada, m


as Jommy
Cross não fez gesto algum nem disse uma palavra. Seu olhar fixava
-se impessoal-
mente naquele homem e no corpo de Kathleen. E finalmente acudiu
à sua mente a
lembrança de que era o único possuidor do segredo da energia atô
mica e não podia
se permitir nem o amor nem uma vida normal. Em todo aquele mund
o de ódio entre
homens e slans, para ele só havia a inexorável existência dos seus
altos destinos.

Pela abertura do muro iam entrando outros homens armados que ab


riam fogo inu-
tilmente conta o carro blindado. E entre eles pôde notar a presença
de dois slans
sem tentáculos. Ao cabo de um momento seus penetrantes olhos lo
calizaram um deles no momento em que se refugiava em um canto
e transmitia uma mensagem pelo
rádio de pulso. As palavras chegavam claramente à sua mente:

“... modelo 7500, base 200 polegadas... tipo normal 7, cabeça 4, que
ixo 4, boca 3,
olhos castanhos, tipo 13, sobrancelhas 13, nariz 1, bochechas 6... c
âmbio!”

Jommy teria podido aniquilar a todos, a todo aquele bando sinistro,


mas nenhum
pensamento de vingança era capaz de penetrar naquela gelada e tr
anscendental re-
gião que era seu cérebro. Naquele universo de loucura, para ele só
existia a seguran-

ça da sua arma e as certezas inerentes a ela.

Seu carro retrocedeu e arrancou a uma velocidade que as pernas n


ão poderiam igualar. Meteu-
se pelo túnel do arroio subterrâneo que alimentava o jardim e subme
rgiu-
se nele ampliando seu leito por desintegração durante meia milha. A
li se deteve para deixar que a água ocultasse o túnel que havia feito
e elevou-se a fim de
que a água não tivesse muito espaço para encher.

Finalmente penetrou na escuridão sob a terra. Não podia sair à supe


rfície ainda
porque os slans inimigos teriam ali os seus cruzadores para fazer fre
nte a tal eventualidade.

Nuvens negras ocultavam o mundo noturno quando Jommy finalme


nte saiu das
entranhas da terra por uma ladeira de uma colina. Parou ali e produ
ziu uma avalan-
che de terra para que esta fechasse a saída do túnel e elevou-
se para o céu. Pela segunda vez conectou seu aparelho com a emis
sora dos slans inimigos e ouviu a voz

de um homem que dizia:

- Kier Gray acaba de chegar e se apossou do corpo. Parece que mai


s uma
vez a organização das víboras permitiu que um deles visse outro ser
aniquilado sem fazer um gesto sequer para evitar. Já é hora de tirar
mos nossas
conclusões dos seus fracassos e que deixemos de considerar como
fator importante qualquer oposição que possam fazer aos nossos pl
anos. Entretanto
ainda existe o perigo incalculável que oferece este slan chamado Cr
oss. É

preciso deixar bem claro que nossas operações militares contra a Te


rra te-
rão que ser suspensas até que ele tenha sido destruído por complet
o.

Entretanto, sua aparição em cena hoje foi uma grande vantagem qu


e ob-
tivemos, pois temos os sinais do seu carro e a descrição da sua pes
soa e do
seu físico. Qualquer que seja o disfarce que use, não poderá ocultar
a estrutura óssea do seu rosto e nem sequer a imediata destruição
do seu carro
conseguiria anular as indicações que temos dele. Foram vendidos s
omente
uns cem mil exemplares do modelo 7500 e o seu pode ter sido roub
ado, mas podemos encontrar seu rastro.

Johanna Hillory, que fez um estudo muito detalhado desta víbora, foi
de-
signada para isto. Sob sua direção serão exploradas todas as regiõe
s de
cada continente, já que pode haver pequenas zonas na Terra, como
vales,
pradarias e distritos agrícolas onde ainda não tenhamos penetrado.
Essas seções devem ser cercadas, estabelecendo-
se células policiais em cada uma delas.

Não há possibilidade de que as víboras possam estabelecer contato


com
Cross, porque temos o controle total das comunicações. E a partir d
e hoje
será detida cada pessoa que tenha uma semelhança física com ele,
para ser examinada.

Isto o manterá fora de circulação, evitando assim que descubra as d


emais víboras e dando-
nos tempo para continuar nossas pesquisas. Por muito tempo que s
eja preciso, descobriremos o lugar onde mora este perigoso slan.

Não podemos fracassar.

Aqui o Quartel General.

O vento assobiava e redemoinhava ao redor do carro que continuav


a avançando
por entre as negras nuvens. Assim, a guerra contra o gênero human
o agora estava
ligada à sua própria vida, com um adiamento indefinido para os dois.
Aqueles meticulosos slans o encontrariam, claro. Haviam fracassad
o uma vez devido a um fator
desconhecido para eles: sua arma, que agora já era conhecida. Alé
m de tudo, isto
não era um fator que pudesse influenciar suas implacáveis investiga
ções. Ficou refletindo por alguns minutos sobre a possível invasão d
a sua vila e finalmente chegou a
uma conclusão que se inclinava a seu favor. Uma pergunta. Sim, ele
s o encontrariam, mas de quanto tempo necessitariam para isto?

XVI

Foram necessários quatro anos. Faltavam dois meses para Jommy


Cross completar
vinte e três anos quando os slans sem tentáculos descarregaram se
u golpe com uma inesperada e insuspeita violência.

Em uma manhã de calor asfixiante, Jommy desceu lentamente os d


egraus da varanda e se deteve junto ao caminho que dividia o jardi
m. Lembrava sentimentalmen-
te de Kathleen e dos seus pais, mortos há tanto tempo. Não era a d
or, nem sequer a
tristeza que o invadia, e sim um profundo e filosófico sentido da trag
édia da vida.

Mas nenhuma meditação podia embotar seus sentidos. Dava-


se conta com uma
clareza anormal e não humana de tudo quando o rodeava. De tudo
no mundo, durante seu desenvolvimento que havia se produzido na
queles quatro anos, o que mais
marcava seu crescimento para o amadurecimento era esta percepçã
o das coisas.

Nada escapava aos seus sentidos. A vinte milhas dali, onde estava
escondida sua
nave espacial, as ondas de calor flutuavam entre as subidas das coli
nas. Mas nenhum calor poderia impedi-
lo de ver a quantidade de imagens que nenhum olho humano teria p
odido perceber. Os detalhes apareciam claramente ali, onde há algu
ns anos atrás só teria percebido uma imagem apagada.

Um enxame de insetos revoluteava em torno de Granny, que estava


acocorada
junto a um canteiro de flores. O suave zumbido das milhares de asa
s acariciava os
super sensíveis receptores do seu cérebro. Remotos rumores acudi
am aos seus ouvidos e sussurros mentais, apagados pela distância,
chegavam a ele. E gradualmente,
apesar da sua incrível complexidade, um caleidoscópio da vida daqu
ele vale ia aparecendo diante dos seus olhos formando uma sinfonia
de impressões que revoluteavam
lindamente, formando um todo coerente.

Homens e mulheres trabalhando, garotinhos brincando, os tratores e


m pleno trabalho, toda aquela comunidade reunida mais uma vez co
mo antigamente... Olhou
novamente para Granny e neste momento sua mente penetrou em s
eu cérebro inde-
feso e foi como se toda ela formasse parte do seu próprio corpo. Um
a imagem cristalina do mundo sombrio que ela estava vendo foi tran
smitido para ele. A alta flor que
tinha em frente pareceu crescer ante seus olhos. De repente a velha
levantou a mão sustentando um pequeno inseto negro. Esmagou-
o e limpou com prazer os dedos no solo.

- Granny! - gritou Jommy, - será que não pode refrear seus instintos
criminosos?

A velha olhou para ele e o olhar de desafio que apareceu no seu ros
to lembrou a velha Granny de outros tempos.

- Que besteira! Faz noventa anos que venho matando esses maldito
s diabos e minha mãe os matava também antes de mim.
Seu riso soava senil. Cross franziu ligeiramente o cenho. Granny ha
via se recupera-
do fisicamente sob aquele clima benigno da costa ocidental, mas Jo
mmy não estava
contente do restabelecimento hipnótico da sua mente. Ela era muito
velha, claro,
mas o emprego de certas frases, como a de que “sua mãe também
havia feito isto

antes”, era muito mecânico. Ele havia impresso aquela ideia em seu
cérebro, em primeiro lugar, para preencher um enorme vazio deixad
o pela anulação das suas recordações, mas por um desses dias teri
a que tentar de novo.

Começou a afastar-
se e foi naquele momento que o aviso chegou à sua mente, um
ligeiro pulsar de distantes pensamentos exteriores. “Aviões!”, pensa
vam as pessoas.

“Quantos aviões!”

Fazia anos que Jommy Cross havia implantado a sugestão hipnótica


de que todo
aquele que visse algo inusitado no vale tinha que comunicar-
lhe através do seu subconsciente, sem sequer se dar conta disto. O
fruto desta precaução chegava a ele
agora, em ondas, de uma outra mente.

E então viu os aviões. Diminutos pontos negros que vinham por cim
a da montanha
e se dirigiam para ele. Como uma lagosta que ataca, sua mente se l
ançou na captura
dos cérebros dos pilotos e as tenazes cortinas mentais dos slans ini
migos receberam
o impacto da sua investigação. Com um puxão, arrancou Granny da
terra e meteu-se
com ela na casa. A porta de aço de dez pontos do edifício, construíd
o do mesmo metal, fechou-
se no mesmo instante em que o reluzente transporte de propulsão a
jato
pousava no jardim como uma gigantesca ave, entre os maciços de fl
ores de Granny.

Cross então concentrou seu pensamento:

- Um avião para cada fazenda. Isto quer dizer que eles não sabem e
xatamente em
qual delas eu estou. Mas agora as naves espaciais virão para termin
ar o trabalho.

Bem, uma vez que a situação havia chegado àquele extremo, era ob
vio que se via
obrigado a levar seu plano até o limite. Sentia uma confiança absolu
ta e não havia nele nem sombra de dúvida.

Uma profunda depressão apoderou-


se dele ao olhar para sua placa visual subterrâ-

nea. Os cruzadores e demais naves de guerra estavam ali, claro, m


as também havia
algo mais... outra nave. Uma nave! O monstro ocupava a metade d
a placa visual,
seu casco em forma de roda enchia a quarta parte mais baixa do cé
u. Uma nave de
oitocentos metros, dez milhões de toneladas de metal flutuando com
o se fosse mais
leve que o ar, como um balão inchado, gigantesco, inspirando pavor
com a ameaça do seu poder ilimitado.

A nave criou vida! Uma chama branca de cem metros brotava do se


u maciço casco
e o sólido cume da montanha se dissolvia sob aquele fogo devorado
r. Sua montanha,
aquela montanha onda a nave, sua vida, estavam ocultas, estava se
ndo destruída pela energia atômica controlada do inimigo.
Cross permanecia imóvel sobre o tapete que cobria o solo de aço do
seu laborató-

rio de aço. Murmúrios de humanas incoerências chegavam de todas


as direções à
sua mente. Baixou a cortina mental e a confusão dos pensamentos
exteriores ficou
instantaneamente fechada. Às suas costas, Granny grunhia aterroriz
ada. À distância,
acima deles, a obra de destruição atacava sua quase inexpugnável f
azenda, mas a
louca mistura de ruídos não chegava até ele. Estava sozinho em um
mundo de silêncio pessoal, um mundo de pensamentos pausados,
seguidos, ininterruptos.

Se eles estavam dispostos a fazer uso da energia atômica, por que


não os haviam
pulverizado com bombas? Mil ideias acudiram à sua mente em form
a de respostas.

Queriam o segredo do tipo perfeito de energia atômica que ele poss


uía. O método
deles não era uma modificação da maravilhosa bomba chamada de
hidrogênio dos
tempos antigos, com sua base de urânio e água pesada e a reação
em cadeia, e sim
haviam voltado a período mais antigo, o do princípio de explosão co
m ciclotrons. Somente isto poderia explicar aquelas dimensões desc
omunais. Ali havia dez milhões
de toneladas de ciclotrons capazes de um feroz desenvolvimento de
energia e sem
dúvida eles esperavam fazer uso da sua mobilidade para obriga-
lo a entregar seu se-

gredo.

Aproximou-
se do quadro de instrumentos que cobria toda a parede posterior do
laboratório e acionou um interruptor. As agulhas assinalaram a prese
nça de uma nave
de guerra em frente àquela montanha que estava se dissolvendo, u
ma nave que estremecia sob sua vida mecânica, penetrando mais e
mais profundamente na terra e ao mesmo tempo dirigindo-
se infalivelmente para o laboratório. As diferentes esferas
começavam a marcar loucamente, passando do zero ao máximo, os
cilando, detendo-
se. Mas elas também revelaram a presença de projetores atômicos
emergindo do
solo onde durante tanto tempo haviam estado ocultos, e no moment
o em que acionou o comando dos instrumentos de precisão que hav
ia ambicionado por toda sua
vida, vinte canhões invencíveis dispararam com uma sincronização
perfeita.

Os projéteis miraram o alvo que era o casco da nave. E se detivera


m. Qual era seu
propósito contra aquele implacável inimigo? Não queria derrubar aq
uela máquina
monstruosa. Não queria criar uma situação na qual os slans e os ser
es humanos teriam que lutar com uma ferocidade sem precedentes.
Seus grandes canhões móveis
também podiam lançar projéteis capazes de perfurar qualquer metal
que estivesse
de posse dos slans, e se alguma daquelas naves caísse em mãos d
os humanos, não
demoraria muito tempo antes que eles as possuíssem e seria o com
eço de uma guerra infernal. Não, não queria fazê-lo.

E também não queria destruir aquela nave, porque não queria matar
os slans sem
tentáculos que havia a bordo dela. Porque, depois de tudo, represen
tavam uma raça,
uma lei e uma ordem que ele respeitava. E sendo como eram, uma
grande raça, uma raça afim da sua, mereciam piedade.
Antes de por suas ideias a claro, a vacilação passou. Cross apontou
sua bateria de
armas sincronizadas para o centro daquele imento ciclotron. Seu pol
egar apertou o
botão e os 800 metros da nave em forma de espiral pareceu encolh
er-se como um
elefante atingido por um golpe certeiro. Estremeceu como um berga
ntim atingido por
um furioso temporal. No mesmo instante, quando tudo se acalmou,
Jommy pôde ver
o céu através de um imenso orifício e se deu conta da sua vitória.

Havia cortado a vasta espiral de um extremo a outro e o poder daqu


ele ciclotron
estava aniquilado. Mas as consequências da presença daquela nav
e persistiam. Franzindo o cenho, Cross viu a nave deter-
se por um instante, tremendo. Lentamente, ela
começou a retroceder com suas placas de antigravidade aparentem
ente avariadas.

Foi subindo, subindo, diminuindo de tamanho, enquanto perdia-


se à distância.

A oitenta quilômetros de distância ela ainda era maior que as demai


s naves que
assomavam pelo quase ileso vale. E agora as consequências eram
claras, frias, mor-
tais. A natureza do ataque demonstrava que há meses eles haviam
descoberto suas
atividades no vale e sem dúvida alguma haviam esperado o moment
o de lutar uma batalha titânica, obrigando-
o a sair para onde pudessem segui-lo dia e noite por
meio dos seus instrumentos, e matá-lo, apoderando-
se das suas instalações.

Jommy voltou-se para Granny e falou desapaixonadamente.


- Vou deixá-la aqui - disse-
lhe. - Você vai seguir minhas instruções ao pé da letra.

Cinco minutos depois que eu tiver partido, você vai sair da mesma f
orma como en-
tramos, fechando todas as portas metálicas. Depois se esquecerá d
este laboratório
pois ele vai ser destruído e portanto você pode perfeitamente esque
cê-lo. Se alguém
lhe interrogar, você se mostrará senil, mas nas demais ocasiões ser
á normal. Vou deixá-
la correr este perigo sozinha porque já não estou certo, apesar de to
mar minhas precauções, se vou sair com vida desta vez.

O pensamento de que finalmente havia chegado o grande dia produ


zia-lhe uma
espécie de interesse impessoal. Os slans inimigos podiam considera
r aquele ataque

que acabavam de realizar como uma mera parte de um desígnio ma


is vasto que incluía o tão demorado plano de assalto à Terra. Qualqu
er coisa que acontecesse, Jommy havia traçado seus planos o mais
minunciosamente possível e, apesar de ainda
faltarem alguns anos para a realização dos seu desígnio, devia fazer
uso das suas
forças até o limite do seu poder. Havia tomado um caminho do qual j
á era impossível
de retroceder, porque atrás dele se encontrava a morte.

A nave de Cross saiu do rio e efetuou uma longa e aguda ascensão


para o espaço.

Era importante não ficar visível até que os slans se dessem conta de
que ele já não
estava no vale e iniciassem sua fútil perseguição. Mas, antes tinha q
ue fazer uma coisa.
Sua mão acionou um interruptor. Fixou seu penetrante olhar na plac
a visual, a qual
lhe revelou o vale que ia se distanciando, e em cujo verde solo podi
am-se ver alguns
pontos que lançavam chamas brancas de um estranho resplendor.
Dentro da terra,
cada arma, cada aparelho atômico estava se consumindo. O metal d
e todas as casas
estava se fundindo sob a devoradora violência da energia.

Quando voltou a olhar, minutos mais tarde, as chamas brancas aind


a eram visíveis
Que procurassem agora no metal destroçado. Que seus cientistas te
ntasse levar à luz
do dia os segredos pelos quais lutaram tão desesperadamente para
obter, os quais
haviam chegado onde os humanos pudessem ver alguns dos seus p
oderes! Em nenhum dos lugares deste vale encontrariam absolutam
ente nada.

A destruição de tudo aquilo que era tão precioso para os atacantes f


oi questão de
uma fração de minutos, mas durante este tempo eles o haviam visto
. Quatro naves
negras como a morte se lançaram imediatamente em sua perseguiç
ão e repentinamente hesitaram quando Jommy acionou o mecanism
os que tornou sua nave invisí-

vel.

Subitamente, os detetores de energia atômica dos inimigos entrara


m em ação e as
naves foram em sua perseguição de uma forma infalível. As campai
nhas de alarme
avisaram sobre outras naves adiante dele que fechavam o círculo e
somente os in-
comparáveis propulsores atômicos o salvaram da grande frota. Era
m tantas as naves que não sequer pôde começar a contá-
las, e todas as que conseguiam aproximar-se
apontavam seus projetores para onde seus instrumentos as
sinalavam. Falhavam,
porque no momento em que o descobriam sua nave já estava fora d
a trajetória dos seus potentes canhões.

Completamente invisível e viajando a uma velocidade de muitos quil


ômetos por segundo, sua nave se dirigia para Marte. Devia passar a
través de algum campo de minas, mas isto já não tinha importância,
pois os devoradores raios de desintegração
que surgiam do casco da sua grande máquina dissolviam as minas
antes que estas
explodissem e, simultaneamente, destruíam toda onda de luz que p
udesse revelar sua presença sob os cegantes raios do sol.

Havia somente uma diferença. As minas eram dissolvidas antes que


alcançassem a
nave, e a luz, sendo uma onda, só podia ser destruída durante uma
fração de segundo em que tocava sua nave e começava a refletir. N
o preciso momento de refletir,
sua velocidade diminuía, os corpúsculos básicos que a compunham
alongavam-se de
acordo com as leis da Teoria da Contração, de Lorentz-
Fitzgerald, e naquele momento de quase imobilidade, a fúria dos rai
os do sol era apagada pelos desintegradores.

E levando em conta que a luz tinha que tocar as paredes primeiro e


portanto podia
ser absorvida tão facilmente como sempre, suas placas de visão nã
o eram afetadas.

A imagem de tudo quanto acontecia no exterior chegava a ele, que p


ermanecia invisível.

Sua nave parecia suster-


se imóvel na abóbada, salvo que Marte ia gradualmente
aumentando de tamanho. A um milhão de milhas havia um grande di
sco resplandes-
cente do tamanho da Lua vista da Terra, que ia crescendo como um
globo que inchava, até que seu grande volume encheu a metade do
céu e perdeu sua cor vermelha.

Os continentes começaram a tomar forma e iam sendo vistas as mo


ntanhas, os
mares, incríveis abismos, extensões de terra plana e deserta e aglo
merações de rochas. A vista ia ficando sinistra, e o novo aspecto da
quele planeta denteado parecia
mais mortal. Marte, visto através do telescópio elétrico de 600 quilô
metros, recordava um ser humano muito velho, murcho, ossudo, enr
ugado pela idade, totalmente repelente.

A zona escura que era o Mar Cimmerium, aparecia como um tenebr


oso mar de
barro. Silenciosas, quase sem marés, as águas jaziam sob o céu ext
remamente azul,
mas jamais nave alguma poderia sulcar aquelas águas plácidas. Ext
ensões sem fim
de rochas dentadas rompiam a superfície. Não havia acidentes, nem
canais, somente
o mar com as rochas emergentes. Finalmente Cross viu a cidade of
erecendo um estranho e impressionante aspecto sob sua cúpula de
vidro. Depois apareceu uma segunda e mais tarde uma terceira.

Distante de Marte, ele iniciou a descida com os motores parados, se


m que nenhuma parte da nave difundisse a menor partícula de ener
gia atômica. Era simplesmente
uma precaução. Não havia possibilidade de que houvesse detetores
àquelas distâncias Finalmente o campo de gravidade do planeta co
meçou a agir sobre a nave, que
foi cedendo à sua inexorável atração, aproximando-
se da parte noturna do planeta.

Era uma tarefa difícil. Os dias terrestres se convertiam em semanas.


Mas finalmente
pôs em ação, não a energia atômica, e sim suas placas de antigravi
dade que não haviam sido usadas deste que ele instalou seus propu
lsores atômicos.

Durante dias e dias, enquanto a ação centrífuga do planeta suavizav


a sua rápida
queda, permaneceu sem dormir observando as placas visuais. Por c
inco vezes as te-
míveis bolas de metal, que eram minas, voaram para ele mas de ca
da vez ele usou,
durante breves segundos, seus devoradores desintegradores do cas
co... e esperou
para ver se alguma nave havia descoberto seu momentâneo uso da
força. Duas vezes os sinais de alarme e os visores acusaram luzes,
mas nenhuma nave apareceu à
vista. Abaixo da nave, o planeta ia aumentando e já cobria todo o ho
rizonte com sua
imensidão sombria. Além das cidades, em toda aquela região não h
avia sinais distin-
guiveiss nas terras. Alguma ou outra vez, manchas luminosas delata
vam uma cidade
ou um centro de atividades e por fim ele encontrou o que procurava.
O mero ponto
luminoso de uma chama, como uma vela que vacilasse na remota e
scuridão.

Era a entrada de uma mina e a luz que provinha da casa onde vivia
m quatro slans
inimigos que vigiavam seu funcionamento, movido inteiramente por
uma maquinaria
automática. Já quase havia escurecido quando Cross regressou à s
ua nave, convencido de que havia encontrado o que queria.

Uma espessa neblina, como uma manta negra, cobria o planeta na


noite seguinte
quando Cross aterrizou novamente no desfiladeiro que levava à entr
ada da mina.
Não se via o menor movimento, nem o menor ruído turvava o silênci
o quando ele seguiu seu caminho. Tirou uma das caixas metálicas q
ue protegiam seus cristais hipnó-

ticos e inseriu o objeto atômico cristalino em uma brecha nas rochas


da entrada. Levantou a tampa protetora e correu antes que seu cor
po fosse afetado pelo nefasto
artefato e ficou esperando nas sombras do barranco.

Após vinte minutos a porta da casa se abriu e a luz do seu interior d


esenhou a silhueta de um homem alto e jovem. A porta fechou-
se novamente e nas mãos do homem brilhou a luz de uma tocha elé
trica que iluminou o caminho e que brilhou ao refletir no cristal hipnót
ico. O homem acercou-se do objeto, intrigado, e parou para

examiná-
lo. Seus pensamentos voaram para a superfície da mente de Jommy
.

“É curioso! Este cristal não estava aqui esta manhã - pensou. - Talve
z alguma rocha tenha se desprendido e o cristal estivesseva por trás
dela”.

Permaneceu contemplando, fascinado e a suspeita acudiu à sua me


nte. Refletiu
sobre o objeto, com fria lógica, e se dirigiu para a caverna onde esta
va Cross, no
mesmo momento em que os raios paralisantes o atingiam e caiu se
m sentidos.

Cross precipitou-
se para ele e em poucos minutos tirou o homem do barranco, fora
de todo possível alcance de voz da mina. Mas mesmo durante aquel
es minutos sua
mente procurava através da cortina mental protetora do desconheci
do. Era uma trabalho lento, porque procurar no cérebro de um home
m sem sentidos era como andar
na água: havia muita resistência. Mas subitamente achou o que proc
urava: o corredor aberto pela aguda percepção do homem da forma
do cristal.

Cross seguiu rapidamente o corredor mental até seu distante extrem


o por entre as
complexas raízes do cérebro. Mil caminhos pareciam abrir-
se diante dele, perdendo-
se em todas as direções. Com cauteloso porém desesperado afã os
seguiu, despre-
zando os que eram visivelmente impossíveis. E então, mais uma ve
z, como o ladrão
que abre um cofre e espera ouvir o ruído delator de outro número da
combinação, um novo corredor chave apareceu diante dele.

Oito corredores chaves, quinze minutos, e a combinação era sua, o


cérebro daquele homem era seu. Sob suas ordens, o homem chama
do Mil er voltou a si com um
suspiro e no mesmo instante fechou hermeticamente sua cortina me
ntal.

- Não seja idiota - disse Cross. - Baixe a cortina.

A cortina correu no ato e, na escuridão, o slan inimigo ficou olhando-


o assombra-do.

- Caramba, você me hipnotizou! - disse admirado. - Como conseguiu


isto?

- O método só pode ser utilizado pelos verdadeiros slans - responde


m Jommy friamente, - de forma que as explicações seriam inúteis.

- Um verdadeiro slan! - disse o homem lentamente. - Então você é C


ross!

- Sou Cross, sim.

- Suponho que você sabe o que está fazendo - prosseguiu Mil er, -
mas não sei o que pode ganhar controlando meu cérebro.
Subitamente Mil er se deu conta de quão estranha era aquela conve
rsa na escuridão do barranco, sob o céu negro coberto pela neblina.
Somente uma das luas de
Marte era visível, como uma vaga forma branca que brilhava na dist
ante abóboda ce-leste. Rapidamente o homem disse:

- Como é que estou podendo falar e raciocinar com você. Eu achava


que o hipnotismo nos deixava embotados.

- O hipnotismo - interrompeu Cross, sem se preocupar com longas e


xplicações - é
uma ciência que comporta muitos fatores. Um controle total permite
ao sujeito uma
liberdade aparentemente completa, exceto que sua vontade está co
mpletamente do-
minada pelo outro. Mas não temos tempo a perder - sua voz se fez
mais autoritária e sua mente retirou-
se da do homem. - Amanhã é seu dia de descanso e você irá ao
Escritório de Estatísticas averiguar o nome e a localização de todo h
omem que tenha aparência física comigo.

Parou porque Mil er estava rindo suavemente. Sua mente e voz esta
vam dizendo:

- Homem, isto eu posso lhe dizer agora mesmo. Todos foram desco
bertos desde
que sua descrição foi publicada há alguns anos e todos estão sob o
bservação. São homens casados e...

Sua voz se apagou.

Cross falou sardonicamente:

- Continue!

Mil er prosseguiu, relutante:


- Há um total de vinte e sete que se parecem com você em todos os
detalhes, o que é uma porcentagem surpreendente.

- Continue!

- Um deles - prosseguiu Mil er, desconsolado - está casado com um


a mulher que
foi gravemente ferida na cabeça em um acidente de uma nave espa
cial na semana passada. Estão tratando-
lhe o cérebro e o crânio mas...

- Mas precisarão de algumas semanas - terminou Cross em seu lug


ar. - O homem
se chama Barton Corliss, vive na fábrica de naves espaciais de Cim
merium, como
você, e vai à cidade de Cimmerium a cada quatro dias.

- Deveria haver uma lei que condenasse os que podem ler pensame
ntos - disse
Mil er torpemente. - Felizmente os receptores de Porgrave o descob
rirão - terminou,
com um melhor humor. - A rádio de Porgrave emite pensamentos e
os receptores os
recebem. Em Cimmerium há um a cada passo, em todos os edifício
s, casas, por todas as partes. São nossa proteção contra os espiões
das víboras. Um pensamento in-discreto e... pronto!

Cross ficou em silêncio e finalmente falou.

- Mais uma pergunta, e quero que sua mente lance uma série de pe
nsamentos sobre este ponto. Necessito de detalhes. Até que ponto
é iminente o ataque à Terra?

- Foi tomada a decisão de que, em vista do fracasso da tentativa de


apoderar-se de você para matá-
lo e conhecer seu segredo, o controle da Terra chegou a ser essenci
al para prever todo perigo. Com esta finalidade, estão sendo constru
ídas grandes quantidades de naves siderais. A frota está mobilizada
em lugares estratégicos,
mas a data do ataque, embora já deva estar decidida, ainda não foi
anunciada.

- O que planejaram fazer com os seres humanos?

- Ao diabo com os seres humanos! exclamou Mil er - Quando nossa


própria existência está em perigo não podemos nos preocupar com
eles!

A escuridão que os envolvia parecia estar aumentando e o frio da no


ite começava
a penetrar através das suas roupas dotadas de calefação. Cross ia s
e preocupando
cada vez mais à medida que refletia sobre as palavras de Mil er. Gu
erra! Com voz apagada, disse:

- Somente com as ajuda dos verdadeiros slans pode-


se parar este ataque. Tenho que encontrá-
los... onde quer que estejam, e já esgotei quase todas as possibilida
des. Vou ao local onde é mais provável que eles residam.

A manhã surgiu. O sol brilhou abrasador no azul profundo do vasto c


éu e as sombras que ele fazia sobre o solo iam-
se reduzindo à medida que se elevava e voltaram a alongar-
se quando Marte ofereceu a face pouco amistosa da tarde à luz pers
isten-te.

Do local onde havia aterrizado a nave de Jommy, o horizonte ofereci


a uma linha denteada de colinas destacando-
se sobre o céu escurecido. O crepúsculo se anuncia-
va ameaçador e finalmente sua longa espera foi recompensada. O p
equeno objeto listrado de vermelho em forma de torpedo elevou-
se sobre o horizonte expelindo
fogo por sua popa. Os raios do poente brilhavam em sua pele metáli
ca e ele lançou-
se para a esquerda de onde Cross esperava ao lado da sua máquin
a que, como um
animal de caça, estava agachada na caverna dos penhascos.

Umas três milhas, calculou Cross aproximadamente. A distância não


seria obstácu-
lo para aquele motor que jazia silencioso na sala de máquinas da na
ve, disposto a lançar-
se para a frente com seu formidável e silencioso poder.

Trezentas milhas e aquele estupendo motor vibraria sem esforço, se


m falhar nem
um só instante. Só que aquela força titânica não podia ser utilizada
onde pudesse
podia tocar a terra e arrancar um novo pedaço daquela terra já tortur
ada.

Três milhas, quatro, cinco... fez rapidamente os preparativos. A força


dos magne-
tos lançou seu poder através da distância e, simultaneamente, a idei
a que ele havia
desenvolvido durante sua longa viagem da Terra tomou vida sob a f
orma de um motor especial. Ondas de rádio, tão similares às vibraçõ
es de energia que estava usando, que somente um instrumento extr
aordinariamente sensível teria podido descobrir
a diferença, brotaram do motor que havia instalado quinhentas milha
s mais adiante.

Durante aqueles breve minutos, todo o planeta vibrou com ondas de


energia.

Os slans sem tentáculos já deviam estar procurando o centro daquel


a onda de interferência, enquanto seu escasso uso de força devia p
assar despercebido. Os motores continuavam cumprindo rapidamen
te sua missão, mas suavemente. A distante
nave reduziu sua velocidade como se tivesse tropeçado com uma re
sistência. Reduziu ainda mais sua velocidade e foi arrojada inexorav
elmente contra o penhasco de argila.
Sem o menor esforço, utilizando as ondas de radio como tela para u
m maior uso
de força, Cross escondeu sua nave mais profundamente no volumos
o ventre do penhasco, ampliando o túnel natural com um jorro de en
ergia desintegradora. Depois,
como uma aranha com uma mosca, atraiu a pequena nave ao seu a
ntro.

Naquele momento uma porta se abriu e apareceu um homem. Salto


u rapidamente
para o chão do túnel e ficou por um instante contemplando o brilho d
o refletor da outra nave. Confiante, aproximou-
se e seus olhos se fixaram no cristal na úmida parede da caverna.

Olhou o cristal com indiferença e depois, a mesma anormalidade de


uma coisa que
podia distrair sua intenção em um momento como aquele penetrou e
m sua consciência. No momento que ia pegar o objeto da parede, o
s raios paralisantes de Cross o
derrubaram e no mesmo instante Cross cortou toda a força, desligou
um interruptor
e a distante emissora de onda atômica se dissolveu em sua própria
energia.

Quanto ao homem, a única coisa que Cross queria dele naquele mo


mento era uma
foto grande, um registro da sua voz e o controle hipnótico. O homem
só precisou de
vinte minutos para voltar a voar novamente para Cimmerium, com u
ma raiva interior de não poder fazer nada contra isto.

Não podia haver pressa no que Cross sabia que tinha que fazer ant
es de se atrever
a entrar em Cimmerium. Tudo tinha que ser planejado, uma quantid
ade quase ilimitada de detalhes laboriosamente preparados. A cada
quatro dias - no dia de folga, -
Corliss vinha à caverna, indo e vindo, e enquanto as semanas trans
corriam, sua mente ia se esvaziando das suas memórias, dos detalh
es. Finalmente Cross estava pronto
e no sétimo dia de descanso seus planos foram postos em ação. U
m tal Barton Corliss permanecia na caverna em um profundo sono hi
pnótico e o outro tomava a pequena nave listrada de vermelho e se
dirigia rapidamente para a cidade de Cimmerium.

Vinte minutos depois a nave de guerra aparecia no céu e se colocav


a ao seu lado com uma longa massa de metal reluzente.

- Corliss - disse a aguda voz de um homem no rádio da nave, - dura


nte a
observação normal de todos os slans que se parecem com a víbora
Jommy
Cross, nós te esperávamos e vemos que você chegou com aproxim
adamente
cinco minutos de atraso. Será, portanto, levado a Cimmerium sob es
colta,
onde comparecerá ante a Comissão Militar para ser examinado. Isto
é tudo.

XVII

A catástrofe aconteceu tão simples assim. Um acidente não totalme


nte imprevisí-

vel, mas amargamente decepcionante. Por seis vez Barton Corliss j


á havia chegado
com vinte minutos de atraso e havia passado despercebido. Desta v
ez, por cinco minutos de atraso inevitável, o longo braço do acaso h
avia caído sobre a esperança do mundo.

Cross olhou tristemente para as placas visuais. Aos seus pés tinha r
ochas abruptas
e inimaginavelmente desertas. As rachaduras já não formavam estre
itos riachos. As
rochas se estendiam em todas as direções como animais emboscad
os. Vastos vales
criavam vida; as rachaduras mostravam profundezas insondáveis e
se elevavam formando montanhas abruptas. Aquela extensão imprat
icável era o único caminho que
poderia tomar se pretendia escapar, porque não havia nave captura
da, por grande e
formidável que fosse, que pudesse esperar fugir da guerra que os sl
ans inimigos podiam lançar entre ele e sua nave indestrutível...

Restava uma certa esperança, claro. Tinha uma pistola atômica con
struída em forma parecida com a de Corliss, que lançava uma desca
rga elétrica, até que o mecanismo de descarga de energia atômica e
ra acionado. E a aliança de matrimônio que
tinha no dedo era uma cópia da de Corliss, com a única diferença qu
e continha o
menor carregador atômico que jamais tinha sido construído e era de
stinado, como a
pistola, a desintegrar o que se pusesse em contato. Duas armas e u
ma dúzia de cristais para deter a guerra das guerras!

O solo que passava sob sua nave aérea ia ficando cada vez mais de
serto, uma
água negra, plácida e oleosa formava poças sujas no fundo daquele
s abismos primitivos formando o princípio daquele oceano sem bele
za que era o Mare Cimmerium.

Subitamente viu uma coisa fora do normal. Sobre uma meseta mont
anhosa à sua
direita estava uma grande nave de guerra parecida com um tubar
ão negro. Um
quantidade enorme de canhoneiras estava sobre a rocha nua ao se
u redor e, como
uma manada em uma pastagem aérea, estavam meio ocultas nas a
nfractuosidades
daquela terra morta. Ante seu penetrante olhar a montanha se transf
ormou em uma
imponente fortaleza de rocha e de aço. Aço negro incrustado na roc
ha negra com gigantescos canhões elevando-se para o céu.

E ali, à sua esquerda desta vez, via-


se outra meseta de rocha nua e outro cruzador
rodeado por suas naves pilotos quase ocultas em seus berços.

Os canhões foram aumentando de tamanho, sempre apontando par


a o céu, como
se esperassem de um momento para outro a aparição de algum mo
nstruoso e perigoso inimigo. Contra quem era destinada aquela incrí
vel defesa? Podiam os slans inimigos ter tal incerteza sobre os verd
adeiros slans que nem mesmo aquele poderoso
armamento podia acalmar seu temor daqueles seres esquivos?

Cento e cinquenta quilômetros de canhões, fortalezas e naves! Cent


o e cinquenta
quilômetros de infranqueáveis gargantas, de águas, de inexpugnáve
is despenhadei-
ros! E ao permitir a entrada da sua nave e do cruzador armado que l
he dava escolta

em um pico inacessível, apareceu a uma curta distância a cidade cri


stalina de Cimmerium. A hora de ser examinado havia chegado.

A cidade estendia-
se por uma planície que chegava até a costa escarpada de um
braço de mar. O vidro reluzia sob o sol com um resplendor branco e
ardente que lan-

çava chamas de fogo sobre a superfície das águas . Não era uma gr
ande cidade, mas
era o máximo que podia ser naquela terra desabitada. Erguia-
se temerariamente
mesmo sobre a borda dos incontáveis abismos que abarcavam sua
abóbada de vidro.
Seu diâmetro mais largo era de cinco quilômetros e na parte mais es
treita podia alcançar três e dentro dela viviam duzentos mil slans, se
gundo as cifras que lhe haviam fornecido Corliss e Mil er.

O campo de aterrizagem estava situado onde ele havia suposto. Um


a vasta extensão de metal em um dos extremos da cidade, suficient
e para albergar uma nave de
guerra, cruzada por reluzentes trilhos de ferro. Seu aparelho pousou
suavemente em
uma dessas vias, pousando sobre o chassis número 9977. Simultan
eamente, a imponente massa da grande nave de guerra passou em
direção ao mar e perdeu-se de
vista no mesmo instante, atrás do imponente penhasco da abóbada
cristalina.

A maquinaria automática arrastou o chassis pelos trilhos em direção


a uma grande
porta de aço que se abriu automaticamente e voltou a fechar-
se atrás dele.

Em um primeiro golpe de vista o que se ofereceu ante seus olhos nã


o foi totalmente inesperado, mas na realidade ultrapassou o que hav
ia lido nas mentes de Mil er e
de Corliss. Na seção do vasto hangar que podia ver, devia haver pel
o menos mil naves. Do solo ao teto, estavam entulhadas como sardi
nhas em lata, cada uma no seu
chassis e cada uma, ele sabia, a ponto de ser lançada caso seu nú
mero aparecesse no quadro de sinais.

O aparelho se deteve, Cross desceu tranquilamente e fez uma brev


e saudação aos
três slans que o estavam esperando. O mais velho se dirigiu para el
e, sorrindo:

- Então, Barton, você ganhou um novo exame! Bem, tenha a certeza


de que seja
feito depressa; o de sempre, você sabe, impressões digitais, raios X,
análise de sangue, reação cutânea, exame microscópico do cabelo.
..

Os pensamentos que brotaram das mentes dos três homens parecia


m indicar que
eles estavam à espera. Mas Cross não precisava deles. Jamais tinh
am estado tão
atentos, tão atentos aos detalhes, tão capazes de distinguir as mais
superficiais suti-lezas.

- Desde quando a análise química da pele faz parte de um reconhec


imento?

Os três homens não se desculparam da armadilha que haviam lhe h


aviam lançado,
nem seus pensamentos delataram o desengano do fracasso. Mas C
ross tampouco revelou alguma emoção por sua primeira vitória. Tinh
a que lançar mão, até o limite, de
todos os preparativos que havia feito durante aquelas últi
mas semanas, quando
analisou as informações captadas nas mentes de Mil er e Corliss.

- Leve-
o ao laboratório e faremos a parte física do reconhecimento - disse o
mais jovem dos homens. - Pegue a pistola dele, Prentice.

Cross estendeu sua arma sem dizer uma palavra.

Ingraham, o mais velho, sorria ante a expectativa. Bradshaw olhava-


o fixamente
com seus olhos cinzas. Somente Prentice parecia indiferente ao col
ocar no bolso a
arma de Cross. Mas era o seu silêncio e não suas ações o que cheg
ava ao cérebro de
Jommy. Não havia o menor ruído, não se ouvia nem o murmúrio de
uma conversa-
ção. Aquela comunidade do hangar lhe parecia um cemitério e no m
omento não parecia que por trás daquelas paredes uma cidade trab
alhasse febrilmente na prepara-

ção de uma guerra.

Acionou a combinação e viu o chassis e nave deslizarem em silênci


o, primeiro hori-

zontalmente e depois para o alto teto. Ouviu-


se um leve ruído metálico e voltou a ficar em posição. E novamente
reinou o silêncio, depois daquela breve percussão sonora.

Sorrindo interiormente, pela forma como eles estavam esperando se


u menor erro de manobra, Cross dirigiu-
se para a saída. Saiu em um corredor em cujas reluzentes
paredes havia algumas portas fechadas, a intervalos regulares. Qua
ndo estavam à vista do laboratório, Cross falou:

Suponho que vocês chamaram o hospital a tempo para dizer que eu


chegaria atra-sado.

Ingraham se deteve secamente e os demais o imitaram e ficaram ol


hando-o.

- Meu Deus! A tua mulher vai recuperar a consciência esta manhã? -


perguntou Ingraham.

- Os doutores tinham que levá-


la à margem da consciência vinte minutos depois
da hora em que eu tinha que aterrizar - assentiu Cross sem sorrir. -
Já devem estar
trabalhando durante uma hora. Seu exame e o da Comissão Militar t
erão que ser adiados.

- Os militares te escoltarão, sem dúvida - assentiu Ingraham.


Foi Bradshaw quem tomou a palavra brevemente por seu rádio de p
ulso e a tênue porém clara resposta chegou aos ouvidos de Cross.

- Em circunstâncias ordinárias, os militares o escoltariam até o hospi


tal,
mas acontece que nos encontramos ante o indivíduo mais perigoso
que o
mundo já conheceu. Cross tem somente vinte e três anos, mas é um
fato
comprovado que o perigo e a adversidade amadurecem os indivíduo
s. Podemos supor, por conseguinte, que nos encontramos ante uma
potencialidade
desconhecida. Se Corliss fosse Cross realmente, a coincidência de r
ecobrar
a consciência da Sra. Corliss neste preciso momento exigiria estar p
reparado para qualquer contingência, particularmente a da suspeita,
no momento
em que aterrizasse. Já deu esta impressão ao saber que ia ser exa
minado.

Entretanto, o próprio fato de que pela primeira vez foi necessário adi
ar o
exame de um homem parecido com Cross, requer que os peritos trei
nados
nos reconhecimentos preliminares não se afastem do seu lado nem
um segundo. Se procederá então desta forma até novas ordens. No
elevador há um carro esperando.

Ao sair para a rua, Bradshaw disse:

- Se ele não é Corliss, sua presença no hospital será completament


e inútil e o cé-

rebro da Sra. Corliss pode ficar permanentemente lesionado.

- Você está equivocado - disse Ingraham. - Os verdadeiros slans po


dem ler os pensamentos. Com a ajuda dos receptores Porgrave ele
será capaz de captar os erros do
cirurgião com a mesma exatidão de Corliss.

Cross viu o amargo sorriso no rosto de Bradshaw enquanto dizia:

- Sua voz fraquejou, Ingraham. Ocorreu-


lhe pensar que a presença dos Porgrave
pode impedir Cross de fazer uso do seu cérebro, exceto na forma m
ais limitada?

- Outra coisa - interveio Prentice. - A única razão pela qual Corliss va


i para o hospital é porque reconhecerá se houver alguma coisa estra
nha, por causa da afinidade
natural entre marido e mulher. Mas isto também quer dizer que a Sr
a. Corliss reconhecerá imediatamente se ele é ou não seu marido.

- E portanto temos a conclusão final - inferiu Ingraham. Se Corliss é


Cross, o restabelecimento da Sra. Corliss em sua presença pode ter
consequências fatais para ela.

Mas estas mesmas consequências bastariam para provar sua identi


dade, embora todas as demais provas dessem um resultado negativ
o.

Cross não disse nada. Havia examinado a fundo o problema aprese


ntado pelos receptores Porgrave. Constituíam um perigo, sem dúvid
a, mas não eram mais que má-

quinas. O controle que ele tinha sobre a mente reduziria esta ameaç
a.

Ser reconhecido pela Sra. Corliss já era outro assunto. A afinidade e


ntre marido e
mulher era facilmente compreensível e era imaginável que tivesse q
ue contribuir para
a destruição da sua mente feminina de slan. De uma ou de outra for
ma tinha que
salvar aquela mulher da demência, mas tinha que salvar-
se a si mesmo também.

O carro avançou suavemente por um bulevar adornado de flores. O


caminho era
escuro, de aparência cristalina e torto. Ondulava por entre as altas á
rvores que ocultavam um pouco os edifícios à direita e à esquerda.
Os edifícios eram estruturas baixas e sua beleza e florida ornamenta
ção o surpreendia. Já havia captado algumas
das imagens nas mentes de Mil er e Corliss, mas aquele triunfo do g
ênio arquitetôni-co superava suas expectativas.

Não é de se esperar que uma fortaleza seja bonita; e as torres artilh


adas costu-
mam ser construídas mais para a defesa que para inspirar cantos à
beleza das formas arquitetônicas, e neste caso serviam admiravelm
ente ao seu propósito. Pareciam
verdadeiros edifícios que fizessem parte da cidade, em lugar de ser
meramente um
baluarte armado destacado desta. Uma vez mais, a magnitude das
defesas demonstrava com que temor os verdadeiros slans eram esp
erados. Um mundo de homens ia
ser atacado por causa dos temores dos slans sem tentáculos e aquil
o era o último grau da trágica ironia.

“Eu tenho certeza - pensou Cross, - que os verdadeiros slans vivem


com os slans
inimigos, assim como os slans inimigos vivem por sua vez com os s
eres humanos.

Portanto, todos estes preparativos são contra um inimigo que já se i


nfiltrou nas suas defesas”.

O carro se deteve em um vestíbulo que levava a um elevador. O ele


vador afundou
nas profundezas do solo com a mesma rapidez com que o primeiro
havia saído do
hangar. Dissimuladamente, Cross tirou uma das caixas de “cristais”
do seu bolso e jogou-
na no cesto de papeis que haviam em um dos cantos do elevador. V
iu que os slans haviam observado seu gesto e explicou-se:

- Tenho doze destas caixas, mas ao que parece só posso carregar c


omodamente onze. O peso estava apertando contra meu lado.

Foi Ingraham quem agachou-se e recolheu o objeto.

- O que é isto? - perguntou.

- A razão do meu atraso. Eu explicarei à comissão mais tarde. As do


ze são exatamente iguais, de forma que esta não faz falta..

Ingraham olhou-o pensativamente e já estava a ponto de abri-


la quando o elevador se deteve e guardou-
a decididamente no bolso.

- Vou guardá-la. Saia primeiro, Corliss.

Cross saiu decidido para o largo corredor de mármore e viu uma mul
her com uma capa branca.

- Nós os chamaremos dentro de cinco minutos. Barton, espere aqui.

Ela desapareceu por uma porta e Cross captou um pensamento sup


erficial de Ingraham e voltou-se para o slan mais velho que dizia:

- O assunto da Sra. Corliss me preocupa tanto que me parece que a


ntes de deixá-

lo entrar, Cross, temos que fazer um teste simples que há anos não
usamos, porque
carece de dignidade e porque temos outros testes igualmente efetiv
os.

- Que teste é este? - perguntou Cross secamente.


- Bem... se você for Cross, tem que estar usando cabelo postiço par
a ocultar os
tentáculos. Se você for Corliss, a força natural dos seus cabelos nos
permitirá levantá-lo do solo sem causar-
lhe o menor problema. O cabelo postiço, artificialmente co-
lado, não resistiria ao peso. De forma que é pelo interesse da sua m
ulher que vou pedir-
lhe que incline a cabeça. Seremos cautelosos e exerceremos a pres
são gradualmente.

- Vamos - disse Cross sorrindo, - creio que você verá que o cabelo é
verdadeiro.

E era, claro. Fazia algum tempo que já havia descoberto a forma de


solucionar
este problema. Um espesso fluido que, trabalhando sobre a raiz, en
durecia o cabelo até dar-
lhe uma elasticidade que bastava para cobrir os tentáculos delatores
. Retor-
cendo cuidadosamente o cabelo antes que o processo de endureci
mento se completasse, formavam-
se diminutos receptáculos de ar na raiz de cada cabelo. Lavagens
frequentes do material e longos períodos deixando seu cabelo em s
eu estado natural, haviam sido suficientes para não afetar o estado
da sua cabeça . Algo parecido
deviam ter feito, ao seu ver, os verdadeiros slans durante todos aqu
eles anos. O perigo residia nos períodos de “descanso”.

- Na realidade isto não provaria nada - disse Ingraham finalmente, gr


unhindo. - Se
Cross viesse aqui não se deixaria pegar por uma coisa tão simples c
omo esta. Ah, aí vem o doutor...

O quarto era vasto e cinzento e cheio de instrumentos que pulsavam


suavemente.

A paciente não era visível, mas havia uma longa caixa de metal com
o um ataúde, em
que uma das extremidades estava voltada para a porta e a outra era
invisível, mas
Cross sabia que a cabeça da mulher devia estar aparecendo nesta.

Presa sobre a caixa havia uma grande bola de testes transparente.


Dela saíam uns
tubos mais finos que penetravam no ataúde e por eles e pela bola c
orria um abun-
dante jorro de sangue vermelho. Ao lado da cabeça da mulher havia
uma mesa cheia
de instrumentos. As luzes pareciam cintilar, como se agora uma, ago
ra outra, cedes-
sem alternativamente a alguma pressão oculta. E a cada vez a que
se apagavam pareciam lutar obstinadamente para recuperar sua en
ergia.

Do local onde o doutor o havia feito inclinar-


se, Cross via a cabeça da mulher destacando-
se sobre aquelas máquinas pulsantes. Não, não era a cabeça, só es
tavam vi-
síveis as bandagens que a envolviam. E os fios dos instrumentos de
sapareciam dentro daquela branca massa de ataduras.

Sua mente ainda estava destroçada e Cross tentou penetrar cautelo


samente no dédalo de semi-
inconscientes pensamentos que flutuavam com extrema lentidão.

Conhecia a teoria do que os cirurgiões slans inimigos haviam feito.


O corpo estava
inteiramente desconectado de qualquer contato nervoso com o cére
bro por um sistema de curto-
circuito. O cérebro, conservado vivo por leves raios geradores de tec
idos, havia sido dividido em vinte e seis seções. E desta forma simpl
ificada, a enorme
quantidade de reparações podiam ser levadas a cabo rapidamente.

A onda dos seus pensamentos passou por cima dessas operações d


e “separação” e
“reparação” e viu que havia nelas muitos erros, mas todos eles de m
enor importância, tão soberbamente tinha sido levada a cabo a cirur
gia. Cada seção daquele poderoso cérebro cederia à força curativa
dos raios geradores de tecidos. Sem dúvida alguma, quando a Sra.
Corliss abrisse os olhos seria uma mulher sadia e capaz e o re-
conheceria como o impostor que era. Apesar da urgência do momen
to, Cross pensou:

“Há anos eu era capaz de hipnotizar seres humanos sem a ajuda de


cristais, se
bem que fosse necessário muito mais tempo. Então, por que não os
slans?”

A mulher estava sem sentidos e com a cortina protetora levantada. A


princípio
Cross sentiu os receptores Porgrave e o perigo que representavam
e lentamente foi
adaptando seu cérebro às vibrações de ansiedade que seriam natur
ais em Corliss naquelas circunstâncias. Todo medo desapareceu do
seu cérebro e então foi adiante com rapidez frenética.

O método utilizado na operação o havia salvo. Um cérebro slan nor


malmente desenvolvido, teria requerido horas para ser explorado, d
evido aos milhões de caminhos a explorar sem o menor indício do c
omeço apropriado. Mas agora, naquele cé-

rebro fragmentado pelos mestres cirurgiões de vinte e seis frações,


a massa de células onde residia a vontade era facilmente reconhecí
vel. Em um minuto estava no centro dela e a força palpável de suas
ondas mentais lhe haviam dado seu controle.

Teve tempo de por os auriculares dos receptores Porgrave, observa


ndo ao mesmo
tempo que Bradshaw já usava outros... para ele, pensou sorrindo. M
as não viu o menor receio no cérebro do jovem slan. Evidentemente,
o pensamento em forma de
força física quase pura, completamente indolor, não podia ser trans
mitido pelo Porgrave. Suas provas foram confirmadas.
A mulher estremeceu física e mentalmente e o pensamento incoeren
te do seu cé-

rebro ressoou em seus auriculares.

“Luta... ocupação...”

As palavras eram compreensíveis porque ela havia sido comandant


e militar, mas
não eram suficientes para fazerem sentido. Houve um silêncio.

“Junho... junho, definitivamente... poderemos fazer a limpeza antes


do inverno e
assim não haverá mortes desnecessários pelo frio e... está fixado, e
ntão... em 10 de junho...”

Cross teria podido reparar os defeitos do seu cérebro em dez minuto


s, por sugestão hipnótica, mas foi preciso uma hora e quinze minuto
s de cautelosa cooperação
com os cirurgiões e suas máquinas de pressão vibratória. Cross est
eve continuamente pensando em suas palavras.

Então 10 de junho era o dia do ataque à Terra! Estavam a 4 de abril,


data terrestre. Dois meses! Um mês para a viagem para a Terra e u
m mês para... para que?

Enquanto a Sra. Corliss submergia suavemente em um sono sem p


esadelos, Cross
viu a resposta. Não se atrevia a gastar mais um dia em busca dos v
erdadeiros slans.

Mas tarde talvez voltasse a seguir a pista, mas agora, se pudesse s


air desta...

Franziu mentalmente o cenho. Dentro de alguns minutos estaria sen


do examinado
por membros da raça mais implacável, minuciosa e eficiente de todo
o Sistema Solar.
Apesar do êxito da sua tentativa de demora, apesar do seu êxito pre
liminar de conseguir por um cristal nas mãos de um dos membros d
a sua escolta, a sorte tinha se
voltado contra ele. Ingraham não tinha sido suficientemente curioso
para abrir a caixa e examinar o cristal. Teria que fazer outra tentativa
, claro, mas já seria desesperada. Um slan era incapaz de experime
ntar outra coisa mais que suspeita na segunda
tentativa, qualquer que fosse o método empregado.

Seu pensamente se deteve. Sua mente adquiriu um estado de recep


tividade aguda
no momento em que uma voz falou pelo rádio com Ingraham e as p
alavras brotaram na superfície da sua mente.

“Tendo ou não terminado o reconhecimento físico, traga Barton Corli


ss imediatamente à minha presença. Esta ordem anula qualquer out
ra anterior”.

- OK, Johanna! - respondeu Ingraham, perfeitamente audível e volt


ou-se para
Cross. - Você vai ser levado imediatamente à presença de Johanna
Hil ory, a Comissária Militar.

Foi Barton quem repetiu o pensamento na mente de Cross.

- Johanna é a única entre nós que passou algumas horas com Cros
s - disse. - Foi
nomeada Comissária devido a isto e aos seus subsequentes estudo
s sobre ele. É ela
quem controla a frutuosa busca do seu lugar de refúgio e foi ela que
m também pre-
viu o fracasso do ataque com o ciclotron. Escreveu também um long
o relatório explicando com os menores detalhes as horas que passo
u em sua companhia. Se você é
Cross, ela o reconhecerá imediatamente.

Cross ficou em silêncio. Não tinha meios de comprovar as declaraçõ


es do alto slan, mas supunha que deviam ser corretas.
Ao sair daquela hermética sala, Cross pôde ver pela primeira vez a
cidade de Cimmerium, a verdadeira, a cidade subterrânea. Da porta
ele via dois corredores. Um
deles levava ao elevador que os tinha descido, o outro levava a um l
argo vestíbulo
onde havia um grande número de altas portas transparentes. Mais a
lém das portas estendia-se a cidade dos sonhos.

Na Terra, ele havia ouvido dizer que o segredo dos materiais que ha
viam servido
para fabricar os muros do grande palácio havia se perdido. Mas ali,
naquela cidade
oculta dos slans inimigos sua glória era vista em todo seu esplendor.
Havia uma rua
de cores suaves e alternadas, e a magnífica realização daquela idad
e de ouro dos ar-
quitetos, formando edifícios perfeitos que tinham vida, com a tem a
música. Ali havia, e não se pode aplicar outro nome porque não con
hecia nenhuma outra palavra
que se amoldasse, o maravilhoso equivalente em arquitetura da mai
s alta forma da música.

Já na rua, ele apagou a beleza da imagem em sua mente. Somente


os seres im-
portavam. E havia milhares deles nos edifícios, nas carruagens pela
s ruas. Milhares
de mentes ao alcance de uma mente à qual nada escapava e que a
gora procurava tão somente um verdadeiro slan.

E não havia nenhum, nem o menor sinal de uma mente que se delat
asse por um
sussurro; nem um cérebro que ele não soubesse que seu dono era
um slan sem tentáculos. Sua convicção de que eles tinham que esta
r ali estava destroçada, como estaria pelo resto da sua vida. Onde q
uer que estivessem os verdadeiros slans, sua
proteção era à prova de slans, sem dúvida alguma, pela lógica. Mas
neste caso, claro, a lógica dizia que os garotinhos-
monstros não eram criados por pessoas normais.

Os fatos neste caso eram diferentes. Que fatos? O que se dizia? Qu


e outra explicação havia?

- Cá estamos - disse tranquilamente Ingraham.

- Vamos, Corliss - acrescentou Bradshaw. - A Srta. Hil ory que vê-


lo... sozinho.

O solo de uma centena de passos que ele teve que percorrer até ch
egar à porta,
lhe pareceu de uma dureza estranha. O escritório de Johanna e
ra confortável e
quase luxuoso, com um aspecto mais de boudoir feminino que de e
scritório. Havia
estantes com livros, um sofá de tons suaves, cadeiras pneumáticas
e um grosso tapete. E finalmente uma vasta mesa atrás da qual esta
va sentada uma mulher jovem, bela e altaneira.

Cross não havia esperado que Johanna parecesse mais velha do qu


e parecia. Cinquenta anos mais poderiam marcar alguns sulcos em
suas bochechas aveludadas,
mas atualmente a única diferença estava nele e não nela. Antes, ele
era um garotinho slan que havia contemplado aquela garota, agora
seus olhos a contemplavam com toda a admiração de um adulto.

Observou com certa curiosidade que seu olhar tinha uma expressão
um pouco ansiosa, o que lhe pareceu fora de lugar. Sua mente se c
oncentrou e o poder de coordenação da sua mente logo transformou
sua expressão facial em triunfo e em alegria
autêntica. Seu cérebro pressionou intensamente a cortina protetora
de Johanna, as-

somando os mais tênues interstícios, absorvendo o menor sinal de p


ensamento, analisando tudo à medida que segundo após segundo s
ua perplexidade crescia. Seu sorriso converteu-
se em riso franco e então sua cortina mental desapareceu. Sua men
te
se oferecia aberta ao seu olhar, franca, sem artifícios. Simultaneame
nte, no cérebro da garota formou-se um pensamento.

“Olhe atentamente, John Thomas Cross. Você deve saber antes de t


udo que os receptores desta sala e da sua vizinhança foram desliga
dos. Deve saber também que
sou o único ser vivente que é seu amigo e que dei ordem para que o
trouxessem
aqui antes que fosse submetido a um exame físico ao qual seria imp
ossível que você
sobrevivesse. Eu o observei através dos Porgrave e soube que era
você. Mas se
apresse e procure em minha mente, comprove minha boa vontade e
trabalharemos rapidamente para salvar sua vida”.

Cross não sentia confiança nem credulidade. Os minutos voavam e


ele continuava
procurando nos escuros corredores da mente da garota as razões b
ásicas que pudessem explicar aquele fato portentoso. Finalmente fal
ou com voz pausada:

- Então você acreditou nos ideais de um garoto de quinze anos, foi i


nfluenciada por um jovem egoísta que só lhe oferecia...

- Esperança! - terminou ela. - Você me trouxe a esperança um insta


nte antes que
chegasse ao ponto em que a maioria dos slans chegam à dureza e
a implacabilidade
máxima que a vida lhes pode dar. “Seres humanos”, você falou, “qu
em são os seres
humanos?”. E a impressão causada por essas palavras e por outras
coisas me afeta-
ram até o impronunciável. Dei deliberadamente uma falsa descrição
sua. Você deve
estranhar, mas eu o fiz porque não me atribuía uma conhecimento p
rofundo da psicologia humana. Eu não tinha, claro, mas teria podido
perfeitamente desenhá-lo de
memória e a imagem adquiria clareza a cada dia. Era considerado n
atural que eu me
dedicasse ao estudo do “assunto Cross”. Era natural também que m
e designassem
para os mais altos cargos relacionados a você. Suponho que era igu
almente natural que...

Deteve-se inesperadamente e Cross disse gravemente:

- Desculpe por isto...

Seus olhos cinzas fixaram-


se nos olhos castanhos de Cross gravemente.

- Com quem mais você quer se casar? - preguntou. - Uma vida norm
al deve incluir
o matrimônio. Não sei nada, claro, das suas relações com Kathleen
Layton, salvo que
presenciou sua morte, mas o casamento com várias mulheres ao m
esmo tempo não
é uma coisa inusitada na história slan. Claro, existe o problema da
minha idade...

- Eu reconheço - disse simplesmente Cross - que quinze ou vinte an


os de diferença
não oferecem o menor obstáculo para um matrimônio entre slans. A
contece entretanto que tenho uma missão a cumprir.

- Seja como esposa, ou não - disse Johanna, - a partir deste momen


to você tem
uma companheira para levar a cabo esta missão, contanto que poss
amos tirá-lo vivo do exame físico.

- Oh, isso!... - disse Cross com um gesto de mão. - A única coisa qu


e eu precisava
era tempo e encontrar a maneira de pôr certos cristais nas mãos de
Ingraham e dos
outros. Tentei ambas as coisas. Necessitaremos também da pistola
paralisante que
você tem na gaveta da sua mesa. E então você os chama um a um.

Com um gesto rápido, Johanna tirou a arma da gaveta.

- Eu mesma dispararei. Estou pronta.

Cross riu-
se da veemência da garota e sentiu estranheza ante a súbita mudan
ça
dos acontecimentos, agora que estava certo de ganhar. Durante ano
s inteiros havia
vivido de nervos e de fria determinação. Subitamente, uma parte da
determinação

da garota também o atingiu. Seus olhos brilharam.

- Você não se arrependerá do que fez, apesar de que sua fé ainda p


ode ser posta
à prova antes de ter triunfado. Este ataque à Terra não deve ter luga
r. Pelo menos
antes que saibamos o que fazer com esses pobres diabos, além de
dominá-los pela
força. Diga, há algum meio pelo qual eu pudesse ir à Terra? Eu li na
mente de Corliss
alguma coisa sobre um plano de transferir todos os slans para a Terr
a, foi o que me pareceu. Isto pode ser feito?

- Pode sim e a decisão depende só de mim.

- Então - disse Cross - chegou o momento de trabalharmos rapidam


ente. Tenho
que ir à Terra. Tenho que ir ao palácio. Tenho que ver Kier Gray.

Os belos lábios da garota se abriram com um sorriso, mas em seus t


ernos olhos não a havia a menor ironia.
- E como conseguirá se aproximar do palácio com todas suas fortific
ações? - perguntou, marcando as palavras.

- Minha mãe me falava frequentemente de uns corredores secretos


sob o palácio -

respondeu Cross. - Talvez sua máquina estatística conheça a localiz


ação exata das di-versas entradas.

- A máquina!... - ela ficou silenciosa por alguns momentos e depois p


rosseguiu: -

Sim... sabe. Sabe muitas coisas. Venha.

Cross seguiu Johanna através do dédalo de salas cheias de grande


s placas metálicas e reluzentes. Era o Departamento de Estatísticas,
e aquelas placas eram registros
elétricos que buscavam a informação ao premir de um botão, ao pro
nunciar de um
nome ou um número ou uma palavra chave. Ninguém sabia a quanti
dade de informações que havia naquele gabinete. Haviam sido trazi
dos da terra e datavam dos
mais remotos dias dos slans. Havia ali armazenado um quatrilhão d
e informações, incluindo, claro, toda a história dos sete anos de bus
ca de um tal John Thomas Cross,
busca que Johanna Hil ory havia dirigido a partir do santuário interior
daquele mesmo edifício.

- Quero lhe ensinar uma coisa - disse Johanna.

Cross ficou observando enquanto ela acionava a placa “Samuel Lan


n” e depois

“Mutação Natural”. Seus dedos tocaram o botão ativador e na reluze


nte placa a má-

quina leu:
Fragmentos do diário de Samuel Lann, 1 de junho de 2071:

“Hoje eu voltei a olhar os três garotinhos e não resta a menor dúvida


de
que houve uma extraordinária mutação. Vi seres humanos com cau
das, vi
cretinos e idiotas e vi os monstros que saíram desses casos recente
mente. E

observei esses curiosos e espantosos desenvolvimentos orgânicos


a que os
seres humanos estão sujeitos. Mas este é o contrário desses erros.
este é a perfeição.”

“Duas meninas e um menino. Que tremendo e grande acidante! Se


eu não
fosse um racionalista de sangue frio, a perfeição do que aconteceu t
eria
feito de mim um pedante adorador do santuário da metafísica. Duas
meninas para reproduzir uma espécie e um menino para ser seu co
mpanheiro.

Terei que acostumá-los a esta ideia.”

“2 de junho de 2071”

começou a máquina, mas Johanna apertou imediatamente limpar e


manipulou o número chave, o que produziu:

7 de junho de 2073:

“Um jornalista idiota escreveu hoje um artigo sobre os garotinhos. O


ignorante conta que utilizei a máquina sobre a mãe, quando na reali
dade não
conheci a mulher até depois dos garotinhos terem nascido. Terei qu
e convencer os pais a que se mudem para alguma parte remota do
mundo. Nos
lugares onde existe esta espécie de asnos, que se chamam seres h
umanos, pode acontecer qualquer coisa.”

Johanna fez outra seleção:

31 de maio de 2088:

“Eles completaram dezessete anos. As garotas aceitaram, sem inco


nvenientes, unirem-
se ao seu irmão. A imoralidade, depois de tudo, é uma questão de c
ostumes. Quero que se produza esta união apesar desses outros jo
vens que encontrei no ano passado. Não me parece prudente esper
ar que
cresçam. Poderemos começar os cruzamentos da raça mais tarde.”

Outra seleção:

18 de agosto de 2090:

“Cada uma das garotas teve trigêmeos. Maravilhoso. A esta média d


e reprodução, o período em que o acaso pode ser a causa do seu d
esapareci-
mento pode ser reduzido ao mínimo estrito. Apesar do fato de que o
utros
da sua raça vão aparecendo aqui e ali, estou continuamente inculca
ndo neles a crença de que seus descendentes serão os futuros don
os do mundo.”

Uma vez tendo regressado ao gabinete de Johanna, ela olhou para


Cross e disse:

- Você viu. Não há nem nunca houve uma máquina criadora de slan
s. Todos os
slans são metamorfoses naturais. A melhor entrada no palácio, para
seus propósitos

- disse subitamente - está situada na seção estatutária, duas milhas


abaixo da terra e
constantemente sob uma brilhante iluminação, e exatamente sob os
canhões da primeira linha de fortificações. Patrulhas de tanques e b
aterias de metralhadoras controlam os próximos três quilômetros.

- E a minha pistola? Estarei eu autorizado a conservá-la na Terra?

- Não. O plano de transporte para os homens que se parecem com v


ocê inclui o desarmamento.

Cross notou o olhar interrogativo que Johanna lhe dirigia e sua testa
franziu-se.

- Que tipo de homem é Kier Gray, segundo suas informações?

- Extremamente capaz para um ser humano. Nossos raios X secreto


s o revelaram
como indiscutivelmente humano, se é isto o que está pensando...

- Naquele tempo eu pensei nisto, mas suas palavras confirmam a ex


periência de Kathleen Layton.

- Nós saímos do caminho - disse Johanna Hil ory. - O que sabe sobr
e as fortifica-

ções?

- Quando o prêmio é grande - respondeu ele tristemente, - os riscos


têm que ser
equiparados a ele. Eu irei sozinho, naturalmente. Você - acrescento
u, olhando-a so-
briamente - terá a grande missão de confiança de localizar a cavern
a onde está minha nave e levar a máquina para a Terra antes de 10
de junho. Corliss tem que ser
libertado também. E agora, por favor, que entre Ingraham.

XVIII

O rio parecia mais largo do que quando Cross o vira na última vez.
Cross observava inquieto através dos quatrocentos metros das suas
turbulentas aguas as manchas
de luz e sombra formadas na superfície pelas luzes do palácio. Nos
trechos de grama
da margem ainda havia restos de neve quando Cross tirou a roupa e
meteu seus pés na água fria.

Sua mente estava quase vazia. Então lhe ocorreu o irônico pensam
ento de que era
um homem nu contra todo um mundo, era um triste símbolo da ener
gia atômica que
controlava. Havia tido muitas armas e não fez uso delas quando pôd
e. E agora levava
aquele anel no dedo, com seu diminuto gerador atômico e seu mesq
uinho alcance de
setenta centímetros, único produto dos seus anos de esforço que ha
via se atrevido a levar consigo para a fortaleza.

As árvores da margem oposta refletiam sua sombra no rio. A escurid


ão tornava sinistro o curso das rápidas águas que o arrastaram por
oitocentos metro correnteza
abaixo antes que enérgicos esforços o levassem para o amparo das
sombras.

Ali se estendeu, repassando mentalmente os pensamentos que che


gavam dos arti-
lheiros das metralhadoras ocultos entre as árvores. Chegou cautelos
amente a um espesso maciço de arbustos, vestiu-
se e ali permaneceu agachado, como um tigre que
espera sua presa. Tinha uma clareira para atravessar e estava longe
demais para poder exercer controle hipnótico. O momento da sua i
mprudência chegou subitamente,
quando cobriu os cinquenta metros no espaço de escassos três seg
undos.

Um dos homens nunca soube de onde tinha vindo o golpe. O outro v


oltou-
se lentamente com o rosto magro convulsionado sob um raio de luz
e assomou através da
folhagem. Mas não era questão de parar, e não pôde evitar o golpe
que o alcançou
em plena mandíbula e que o derrubou. Em quinze minutos de hipnot
ismo sem cristal
estavam sob seu controle. Quinze minutos! Oito por hora! Cross sorr
iu ironicamente.

Isto dava toda a possibilidade de dominar hipnoticamente todo o pal


ácio com seus
dez mil homem ou talvez mais. Tinha que dispor de homens chave.

Fez os dois prisioneiros recobrarem os sentidos e lhes deu instruçõe


s. Eles pega-
ram silenciosamente suas metralhadoras e o seguiram. Conheciam
o terreno passo a
passo e não havia melhores soldados do exército humano que aquel
es guardas do
palácio, Em duas horas havia doze lutadores treinados que deslizav
am como sombras
obedecendo a uma silenciosa coordenação que só precisava de alg
uma ocasional ordem falada.

Três horas depois tinha dezessete homens, um coronel, um capitão


e três tenen-
tes. E diante dele aparecia o longo cordão de esquisita estatuaria, ci
ntilantes fontes e
deslumbrantes luzes que marcavam a meta final. O primeiro brilho d
a próxima aurora
tingiu o céu do oriente, enquanto Cross se ocultava com seu pequen
o exército nas
sombras da vegetação e observava os trezentos metros de terreno il
uminado que se
estendia diante dele. No lado oposto estava a escura linha de bosqu
es que ocultavam as fortificações.

- Infelizmente - sussurrou o coronel, - não há a menor possibilidade


de enganá-
los, pois a jurisdição desta unidade termina aqui. É proibido cruzar q
ualquer dos doze
círculos fortificados sem um passe especial, e ainda mais de dia.

Cross franziu o cenho. Encontrava-


se diante de precauções com as quais não havia
contado e viu que aquele rigor era uma criação recente. O ataque sl
an àquela região,
apesar de que ninguém dava crédito aos fantásticos rumores dos ag
ricultores sobre
as naves, nem suspeitassem que existiam naves do espaço, havia p
roduzido uma
tensão e um alarme que agora poderiam ser a causa da sua derrota.

- Capitão!

- Sim! - disse o alto oficial, aproximando-se dele.

- Capitão, você é o que mais se parece comigo. Por conseguinte, vo


cê vai trocar
seu uniforme por minhas roupas e então todos voltarão aos seus po
stos.

Ficou olhando-
os atentamente enquanto desapareciam na escuridão. Vestido com
o uniforme do capitão, saiu para a zona iluminada. Três metros, seis
, dezoito... viu a
fonte que procurava, com seus cintilantes jatos d'água. Mas havia m
uita luz artificial,
muitas mentes ao seu redor, uma confusão de vibrações que criaria
m uma interferência na onda mental que estava procurando, se é qu
e ainda se encontrava ali depois daquelas centenas de anos. Se nã
o estivesse ali, que Deus o ajudasse...

Doze metros, quinze, dezoito... e à sua mente tensa chegou um pen


samento, um murmúrio, a mais leve das vibrações mentais.
“A qualquer slan que tenha chegado até aqui. Há uma entrada secre
ta para o pa-
lácio. O desenho de cinco flores da fonte branca em sua parte norte
é um botão da
combinação que aciona por rádio uma porta secreta. Sua combinaç
ão é...”

Ele sabia... a máquina de estatística sabia que o segredo estava na


fonte, mas nada mais que isto. Agora...

Uma voz rouca amplificada chegou a ele de trás das árvores.

- Quem diabos é você? O que quer? Volte ao seu posto de comando


, consiga um passe e volte pela manhã. Rápido.

Já se encontrava na fonte com seus dedos ágeis nas cinco flores do


adorno, o corpo meio oculto dos perspicazes olhos das hostes inimi
gas. Não podia desperdiçar um
mínimo de energia da sua intensa concentração. Ante a singularidad
e do propósito, a
combinação cedeu e um segundo pensamento chegou a ele através
de uma segunda emissora Porgrave.

“A porta já estará aberta. É um túnel muito estreito que penetra para


baixo em
uma profunda escuridão. A boca do túnel está no centro do grupo eq
uestre a trinta metros para o norte. Coragem...”

Não era coragem o que lhe faltava, era tempo. Trinta metros para o
norte, na dire-

ção do palácio, daqueles fortes ameaçadores. Cross riu em voz baix


a. O antigo cons-
trutor da entrada secreta tinha procurado um complicado lugar para
realizar seu projeto engenhoso. Continuou avançando, apesar da du
ra voz que falou novamente:
- Ei, você ai. Pare imediatamento ou abriremos fogo! Volte ao seu lu
gar e considere-se preso! Imediatamente!

- Tenho uma mensagem muito importante para transmitir! - gritou Cr


oss, tentando
imitar a voz do capitão dentro do limite do possível. - Urgente!

E continuou andando, mas a resposta não se fez esperar.

- Não há urgência que justifique tal infração dos regulamentos! Volte


imediatamente para o seu posto! Último aviso..! Volte agora mesmo
!

Cross permanecia olhando para o diminuto orifício no solo e uma fra


queza apoderou-
se dela, uma claustrofobia aguda, a primeira que havia experimenta
do, negra e terrível, como o próprio túnel. Meter-
se naquele buraco, com sua potencial sufoca-

ção, possivelmente para ser enterrado vivo naquela astuta armadilh


a idealizada pelos
humanos! Não havia certeza de que eles não houvesse descoberto
aquele esconderijo da mesma forma que já tinham encontrado tanto
s outros refúgios dos slans.

Mas a coisa era urgente. Uma torrente de pulsações sibilantes cheg


ou a ele de trás
das árvores, sussurros que vibravam em seu cérebro como suaves
contatos físicos.

Alguem estava dizendo:

“Sargento, teste seu fuzil nele...”

“E o cavalo da estátua, capitão? Seria uma pena estragá-lo.”

“Aponte para as pernas e depois para a cabeça. E nada mais.”


Apertando os dentes, com o corpo rígido e ereto, as mãos levantada
s acima da ca-
beça, saltou no buraco com os pés adiante, como o nadador que me
rgulha, e caiu
tão perfeitamente no buraco que transcorreram alguns segundos ant
es que suas roupas roçassem a parede vertical.

Os muros eram lisos como vidro e já tinha percorrido um trecho con


siderável em queda livre quando começou a afastar-
se da vertical. A força de fricção se fez mais
forte e no espaço de alguns segundos a rampa foi se aproximando d
a horizontal e
sua vertiginosa velocidade se moderou. Viu um fraco brilho adiante
e no ato saiu em
um corredor de teto baixo fracamente iluminado. Ainda continuava d
escendo, mas o
caminho ia se endireitando rapidamente. Finalmente a viagem termi
nou e achou-se de costas no solo, vendo tudo ao redor girar.

Uma duzia de luzes giratórias que via sobre sua cabeça foram reduz
indo o círculo e
se converteram em uma só lâmpada que lançava um triste brilho; u
ma luz fraca,
quase inútil, que brotava do teto e se perdia antes de chegar ao solo
. Cross se pôs
de pé e viu um sinal na parede que estava alto o suficiente para ficar
iluminado pela luz. Espichou-se e leu:

Você está agora a três quilômetros e meio da superfície. O túnel atrá


s de
você está bloqueado por comportas de aço e cimento que foram aci
onadas
durante sua queda. Será preciso uma hora para chegar ao palácio.
É proibido aos slans entrarem no palácio sob severas penas. Atençã
o!

Sentiu uma ardência na garganta e, embora tentasse evitar, o espirr


o aconteceu e
foi seguido de mais meia dúzia e as lágrimas correram por seu rosto
. Pareceu-lhe
que a luz era mais fraca agora do que quando havia entrado no corr
edor. A longa fileira de luzes no teto que se perdiam na distância não
era tão brilhante como antes.

O pó as escurecia.

Cross agachou-
se no meio da penumbra e passou os dedos pelo chão e verificou
que um espesso tapete de pó o cobria. Procurou para ver se encontr
ava pegadas que
denotasse que o corredor havia sido recentemente usado, mas só c
onseguiu sentir a
capa de pó, de pelo menos uma polegada de espessura, acumulado
durante muitos anos.

Incontáveis anos haviam transcorrido desde que aquela ordem, com


suas amea-

ças, havia sido fixada ali, mas agora o perigo era mais real. Os sere
s humanos sabiam onde procurar a entrada secreta. Antes que eles
a descobrissem ele tinha que,
desafiando toda lei slan, penetrar no palácio e chegar a Kier Gray.

Aquele era um mundo de trevas e silêncio, os dedos asfixiantes do p


ó haviam
agarrado a garganta de Cross e, curioso paradoxo, faziam-
lhe cócegas em vez de sufocá-
lo. Cruzou portas e corredores e grandes salas majestosas
Subitamente ouviu um ruído metálico atrás dele e voltando-
se rapidamente viu
uma enorme porta que, saindo do solo, criava atrás dele um sólido e
reluzente muro

de metal. Ficou completamente imóvel e durante um momento torno


u-se uma má-
quina sensitiva que captava impressões. O longo e estreito corredor
terminava ali
mesmo, coberto pela fofa camada de pó e fracamente iluminado.

No meio do silêncio, ouviu outro ruído metálico e viu que as paredes


começavam a
se mover com um leve rangido, avançando lentamente para ele, enc
urtando a distância entre elas. Automaticamente, deduziu, pois não
havia o menor indício de pensamento tentacular em parte alguma. E
xaminou friamente as chances daquela armadilha e descobriu que e
m cada uma das paredes havia uma parte oca de uns dois
metros de altura, o suficiente para comportar um corpo humano, cuj
o contorno estava perfurado na parte oca.

Cross estremeceu. Dentro de poucos minutos as duas paredes se te


riam juntado e
o único espaço que restava eram aquelas aberturas em forma de co
rpo humano que se juntariam. Bonita armadilha!

O certo era que a energia atômica do anel podia desintegrar o metal


e abrir-lhe
um caminho através da parede ou da porta, mas seu propósito requ
eria que a armadilha em que havia caído desse resultado... até certo
ponto. Examinou a abertura
mais detidamente e deste vez o anel lançou dois furiosos raios, diss
olvendo o par que esperava o desgraçado e dando-
lhe espaço suficiente para ter liberdade de movimento...

Quando os muros estavam a trinta centímetros de distância, no chã


o da prisão se
abriu e uma fenda de dez centímetros e por ela caiu a montanha de
pó. Poucos minutos depois, as duas paredes se juntaram com um ru
ído metálico.

Um momento de silêncio! Depois a maquinaria zumbiu fracamente e


se produziu
um rápido movimento ascendente que continuou durante alguns min
utos, moderou-
se e finalmente parou. Mas a maquinaria continuava zumbindo ao s
eu redor. Outro
minuto e o cubículo no qual se encontrava começou a girar lentame
nte. Diante do
seu rosto apareceu uma fenda que foi se alargando até formar um b
uraco retangular através do qual pôde ver uma sala.

A maquinaria parou de zumbir e reinou de novo o silêncio enquanto


Cross examinava a sala. No centro do reluzente solo havia uma mes
a e as paredes eram cobertas
de nogueira. Algumas cadeiras, uns arquivos e uma biblioteca que ia
do chão até o
teto, completavam o que ele podia ver daquela sala com aspecto de
escritório.

Soaram passos. O homem que entrou fechando a porta atrás de si e


ra de uma cor-
pulência magnífica, as têmporas grisalhas, com algumas rugas delat
oras da idade no
rosto. Mas não havia ninguém no mundo incapaz de reconhecer aqu
ele rosto magro,
aqueles olhos penetrantes, a rudeza e a severidade indelevelmente i
mpressas nas
aletas do nariz e nas mandíbulas. Era um rosto duro demais, decidid
o demais para
ser agradável, mas havia nele uma expressão de nobreza. Era um h
omem nascido para mandar em outros homens. Cross sentiu-
se dissecado, explorado, por aqueles olhos penetrantes.

Finalmente o homem esboçou um leve sorriso de mofa.

- Então você foi agarrado? - disse Kier Gray. - Não foi muito inteligen
te.

Estas palavras foram reveladoras, porque nelas se produziram pens


amentos superficiais, e estes pensamentos superficiais eram a corti
na mental deliberadamente corrida, de um cérebro tão hermético qu
ando o seu. Não se tratava de um slan inimigo,
sem tentáculos, e sim que se encontrava diante de algo portentoso.
Kier Gray, con-
dutor de homens era um homem que ele acreditava ser...

Um verdadeiro slan!

Esta foi a frase explosiva pronunciada por Cross e novamente a fluid


ez da sua
mente voltou ao pacífico pensamento. Durante todos aqueles anos,
Kathleen Layton

havia vivido com Kier Gray sem suspeitar da verdade. Ela carecia d
e experiência, claro, com as cortinas mentais. E lá também havia Jo
hn Petty com um tipo semelhante
de cortina para produzir a confusão, porque John Petty era humano.
Quão habilmente o ditador havia imitado a forma humana em busca
de proteção!

Cross reagiu mentalmente e, decidido a chegar à verdade, disse:

- Então você é... um slan!

O rosto de Kier Gray sorriu sardonicamente.

- Não sei se a palavra pode ser aplicada a um homem que não tem t
entáculos e não pode ler os pensamentos, mas sim, sou um slan.

Houve uma pausa e, mais decidido em seu tom, prosseguiu:

- Durante centenas de anos, nós os que sabemos a verdade temos


estado lutando
para evitar que os slans sem tentáculos se apoderem do mundo dos
homens. Então,
o que seria mais natural do que nos insinuarmos e abrirmos caminh
o para o controle
do governo humano? Não somos por acaso os seres mais inteligent
es na face da Terra?
Cross concordou. Era verdade, claro. Suas próprias deduções lhe h
aviam dito isto.

Uma vez que soube que os verdadeiros slans não eram na realidad
e o governo oculto dos slans sem tentáculos, era inevitável que gov
ernassem no mundo dos homens,
apesar do que achava Kathleen e das imagens dos raios X dos slan
s inimigos mostrando Kier Gray como possuidor de um coração e de
outros órgãos não slans. Entretanto ali subsistia ainda um tremendo
mistério. Moveu a cabeça, perplexo.

- Continuo sem entender. Eu esperava encontrar os verdadeiros sla


ns governando
os falsos... secretamente. Tudo se amolda, claro, de uma forma disf
orme. Mas... por
que fazer propaganda anti slan? E a nave slan que veio a este palác
io há muitos
anos atrás? Por que os verdadeiros slans são perseguidos e mortos
como ratos? Por
que não chegar a um acordo com os slans sem tentáculos?

O chefe ficou olhando pensativo para ele.

- Em algumas ocasiões nós tentamos acabar com a propaganda anti


slan. Uma delas foi a nave a que você acaba de se referir. Por razõ
es especiais eu me vi obrigado
a ordenar que a derrubassem nos pântanos. Mas apesar deste apar
ente fracasso,
conseguiu seu objetivo principal, que era convencer os slans sem te
ntáculos de que
estavam firmemente planejando um ataque, de que ainda éramos u
ma força com a
qual tinham que contar. Foi a palpável fragilidade da nave prateada
o que convenceu
os slans inimigos. Sabiam que não podíamos ser o povo impotente
que acreditavam
e novamente vacilaram e ficaram perdidos. Sempre é uma desgraça
ver o número de
slans verdadeiros que são mortos nas diferentes partes do globo. Sã
o os descendentes dos slans que, disseminados pelo mundo depois
da Guerra do Desastre, nunca
estabeleceram contato com as organizações slans. Uma vez tendo
os slans sem tentáculos aparecido em cena, naturalmente já era mui
to tarde para fazer alguma coisa.

Nosso inimigos estavam em condições de criar interferências em tod


os os sistemas de comunicações que possuíamos.

Fizemos tudo quanto pudemos, naturalmente, para por-


nos em contato com esses
aventureiros, mas os únicos que realmente seguiram adiante foram
os que vieram ao
palácio para me matar. Para eles nós preparamos uma séries de fác
eis acessos ao
palácio. Meus instrumentos me informaram que você veio por um do
s mais difíceis,
uma das entradas mais antigas. Muito ousado. Podemos utilizar outr
a, garoto ousado, em nossa organização.

Cross olhava friamente para Kier Gray. Este não suspeitava visivelm
ente da sua
identidade nem sabia quão próximo estava o ataque dos slans sem t
entáculos. Demorou muito tempo para responder.

- Fico surpreso que você tenha se deixado surpreender deste modo.

O sorriso de Kier Gray desapareceu como por encanto e, com voz á


spera, falou:

- Sua observação é muito curiosa. Supõe que me pegou de surpres


a. Ou é um imbecil, possibilidade rechaçada pela sua obvia inteligên
cia, ou então, apesar do seu
aparente encarceramento, este não é real. E não há mais que um h
omem no mundo
capaz de destruir o duro aço das paredes daquele cubículo.
Surpreendentemente, toda a dureza dos seu rosto tinha ficado doce
e toda a força
havia se concentrado agora nos olhos. Parecia contente, animado.
À meia voz sussurrou:

- Homem, homem, você conseguiu! Apesar da minha impossibilidad


e de lhe fornecer a menor ajuda... a anergia atômica em toda sua for
ça, afinal!

Sua voz aumentou de volume, clara e triunfante:

- John Thomas Cross, eu lhe dou as boas vindas, a você e à descob


erta do seu pai. Venha e sente-
se. Espere até que saiamos deste maldito lugar e possamos falar
no meu gabinete privado, onde não há um ser humano que possa e
ntrar.

O assombro da situação aumentava a cada minuto. Seu imenso sig


nificado, o equilíbrio mundial daquelas imensas forças... Os verdadei
ros slans com os seres humanos, que desconheciam seus donos, c
ontra os slans inimigos que, apesar da sua brilhante e vasta organiz
ação, não sequer suspeitavam da chave do mistério.

- Naturalmente - disse Kier Gray, - sua descoberta de que os slans s


ão naturais e
não criados por meio de máquinas não é nada novo para nós. Somo
s a metamorfose
segundo o homem. As forças desta metamorfose estavam em jogo h
á muito tempo
antes que Samuel Lann realizasse a criação perfeita em algumas da
s suas transformações. Hoje nós vemos com toda clareza, retrospec
tivamente, que a natureza trabalha em pró daquela tremenda tentati
va. Os cretinos aumentavam de uma forma
alarmante e a demência avançava em proporções extraordinárias. A
parte assombro-
sa do caso era a rapidez com que a rede das forças biológicas se es
tendeu pela superfície da Terra.
Sempre havíamos exposto, com muita facilidade, que não existia co
esão entre os
indivíduos, que a raça dos homens não era uma unidade com um eq
uivalente imensamente tênue de corrente sanguínea e nervosa corr
endo de homem para homem.

Existem, claro, outras formas de explicar porque bilhões de indivídu


os podem ser induzidos a trabalhar da mesma forma, pensar igual, s
entir a mesma coisa, possuir um
estímulo dominante, mas os filósofos slans, no decorrer dos anos, a
nalisaram a possibilidade de que essa afinidade mental fosse o prod
uto de uma extraordinária afinidade física e mental ao mesmo tempo
;

Durante centenas, talvez milhares de anos, as tensões têm aumenta


do. E então
em somente um maravilhoso quarto de milênio se produziram mais
de um bilhão de
nascimentos anormais. Foi como um cataclismo que paralisou a von
tade humana. A
verdade foi perdida em uma onda de terror que espalhou a guerra p
or todo o mundo. Todas as tentativas de restabelecer a verdade fora
m afogadas por uma incrível
histeria de massas... que duram ainda hoje, depois de mil anos. Sim
, eu disse mil
anos. Somente nós, os verdadeiros slans, sabemos que aquele perí
odo sem nome
durou quinhentos anos infernais. E que os garotinhos descobertos p
or Samuel Lann nasceram há cerca de quinhentos anos.

Pelo que sabemos, muitos poucos desses nascimentos anormais for


am iguais. A
maioria deles foram horríveis fracassos e só era produzida alguma r
ara perfeição.

Mesmo estes teriam se perdido se Lann não os houvesse reconheci


do como o eram.
A natureza se baseava na Lei da Proporcionalidade. Não existia um
plano preconcebi-
do, e o ocorrido parecia ser simplesmente uma reação às numerosa
s pressões intole-

ráveis que enlouqueciam os homens, porque nem suas mentalidade


s nem seus corpos eram capazes de suportar a moderna civilização.
Essas pressões eram mais ou
menos similares, é compreensível que muitos dos remendos feitos p
ela natureza tenham certa semelhança entre si, sem ser semelhante
nos detalhes.

Um exemplo da enorme força desse fluxo biológico e também da uni


dade fundamental do homem - prosseguiu Kier Gray, - fica visível no
fato de que quase todos os
nascimentos slans que se produziram durante os primeiros séculos f
oram de trigê-

meos ou, pelo menos gêmeos. Hoje acontecem muitos poucos parto
s múltiplos. O filho único é a regra geral, a maré se retirou. A parte q
ue a natureza tomava no mundo cessou, só resta a inteligência para
levá-la adiante. E foi aqui que se apresentou a dificuldade.

Durante aquele período sem nome os slans eram caçados como fer
as selvagens. É

impossível achar hoje um paralelo da ferocidade dos seres humanos


contra o povo a
quem consideravam responsável pelo desastre. Era impossível orga
nizar-
se efetivamente. Nosso antepassados tentaram de tudo: lugares sub
terrâneos ocultos, ampu-
tação cirúrgica dos tentáculos, substituição dos seus corações huma
nos pelos nobres
corações slans, emprego de pele falsa sobre os tentáculos. Mas foi t
udo inútil.
A suspeita era mais veloz que toda a resistência. Os homens denun
ciavam seus vizinhos e os submetiam a um reconhecimento médico.
A polícia fazia “razzias” pela
mais vaga suspeita. A dificuldade maior eram os nascimentos. Mes
mo quando os pais
haviam conseguido adotar um disfarce habilidoso, a chegada do gar
otinho era sempre um período de um imenso perigo e, com excessiv
a frequência, significava a morte do pai, da mãe e do bebê. Gradual
mente se viu que a raça não poderia sobreviver
e os restos disseminados dos slans se concentraram finalmente em
seus esforços
para controlar a força de transformação. Finalmente encontraram a
maneira de dar
forma às grandes moléculas que formam a própria gênese que era a
matéria embrionária da vida que controla os genes, enquanto que e
stes, por sua vez, controlam a forma dos órgãos e do corpo.

Só faltava passar para a experimentação, para o que foram necessá


rios duzentos
precários anos. Não se podia correr riscos com a raça, apesar de qu
e os indivíduos
arriscavam sua vida e sua saúde. Finalmente descobriram a forma c
omo os grupos
complexos de moléculas podiam controlar a forma de cada órgão pa
ra uma ou para
várias gerações. Que se alterasse a forma desse grupo e o órgão af
etado se transformava, para reaparecer novamente em uma geraçã
o posterior. E assim modificaram a
estrutura básica do slan, conservando o que era bom e que tinha um
valor de sobrevivência, eliminando o que era perigoso. Os genes qu
e controlavam os tentáculos foram alterados, transferindo a faculdad
e de ler os pensamentos para o cérebro, mas assegurando-
se de que esta faculdade não apareceria durante muitas gerações.

Cross interrompeu-o com um profundo suspiro.


- Um momento! Quando eu comecei a ir à procura dos verdadeiros s
lans, a lógica
me dizia que eles se haviam infiltrado entre os slans inimigos. Por a
caso você está
tentando me dizer que os slans sem tentáculos poderiam eventualm
ente ser os verdadeiros slans?

- Em menos de cinquenta anos eles terão a faculdade de ler pensa


mentos - respondeu Kier Gray, como dando a coisa como certa, - se
bem que esta faculdade por
algum tempo estará localizada no interior da mente. Paulatinamente,
claro, aparecerão os tentáculos. Ainda não descobrimos se podemo
s ou não fazer uma mudança permanente.

- Mas por que eles deixaram de possuir a faculdade de ler pensame


ntos, particularmente durante aqueles anos decisivos? - perguntou
Cross.

- Vejo que você não reconhece ainda as inevitáveis realidades da vi


da dos nossos
antepassados - respondeu vigorosamente Kier Gray. - A faculdade d
e ler pensamentos foi retirada porque era necessário observar as re
ações psicológicas... porque da
mesma forma que o povo agia ignorando que eram verdadeiros slan
s, teria agido sabendo disto. Que aconteceu?

Nós, os administradores slans, havíamos alterado tanto os seus dife


rentes órgãos para protegê-
los da devastação dos humanos, que eles trabalharam como se não
tivessem interesse em ser outra coisa mais que um povo de vida pa
cífica nos remotos confins do mundo. A verdade teria podido acordá-
los, mas não a tempo. Descobrimos que os slans são, por natureza,
anti-guerra, anti-assassinos, anti-
violência. Usamos todo tipo de argumentos, mas nenhuma lógica co
nseguiu produzir nada fora do
sentimento geral, que ao cabo de cem anos ou mais começariam a
pensar em termos de ação.
Era impossível permitir-
lhes permanecer naquele estado. A existência humana era
como a mecha de uma bomba. A vida ardia lentamente durante milh
ões de anos e
depois o fogo alcançava a bomba... que explodia. A explosão conse
guia manter outra
mecha acesa mas, se bem que naqueles tempos somente suspeitáv
amos, a velha
bomba e sua mecha haviam terminado. Hoje, é um certeza que os s
eres humanos
explodirão, que desaparecerão da Terra como resultado da esterilida
de que se iniciou
em vasta escala, se bem que isto ainda não é visível. O Homem pas
sará para a histó-

ria, como passaram o antropopiteco de Java, o homem fera de Nean


derthal e o primitivo Cro-Magnon.

Indubitavelmente, a esterilidade que será a causa disto tudo será im


putada aos
slans, e quando os humanos descobrirem começará a segunda gran
de onda de ferocidade e terrorismo. Somente a mais poderosa orga
nização, estendida ao máximo de
aceleração sob um constante e perigoso impulso, poderia estar devi
damente preparada.

- Então - disse Cross lentamente, - vocês se arrojaram aos slans se


m tentáculos...

aos seus protegidos, com uma violência que os aterrorizou e depois


exerceram sobre
eles uma reação igualmente impetuosa... Vocês têm sido desdo o pr
incípio um incentivo à sua expansão e um freio a esse espírito impla
cável artificialmente engendrado.

Ma, por que não lhes disseram a verdade?


- Nós tentamos - respondeu o ditador, - mas os que escolhemos co
mo confidentes
acreditaram que era um truque e sua lógica os levou instantaneame
nte aos nosso re-fúgios. Tínhamos que assassiná-
los todos. Tivemos que esperar que recobrassem sua
faculdade de ler o pensamento. E agora, pelo que você acabou de
me dizer, vejo que
temos que trabalhar rapidamente. Seus cristais hipnóticos podem se
r, claro, a solu-

ção final do problema do antagonismo humano. E quando houver u


m número de
slans com o devido conhecimento, esta dificuldade poderá ser diluíd
a. Quanto ao ataque iminente...

Estendeu a mão para o botão de uma campainha que havia sobre a


mesa e apertou-o produzindo uma vibração surda e prosseguiu:

- Vou mandar buscar alguns dos meus colegas. É necessário que co


mecemos imediatamente uma conferência.

- Os slans podem fazer conferências impunemente no grande paláci


o? - perguntou Cross.

- Meu amigo - respondeu Kier Gray sorrindo, - baseamos nossas op


erações nas limitadas faculdades dos seres humanos.

- Não entendi bem...

- É muito simples. Há alguns anos, eram vários os seres humanos q


ue sabiam mui-

to sobre as entradas secretas deste palácio. Um dos meus primeiros


atos, quando
me foi possível, foi classificar estes conhecimentos. Depois, um apó
s o outro, transferi para outras partes do mundo os homens que tinh
am esta informação. Ali, isolados
em escuros Departamentos governamentais, foram habilmente assa
ssinados. Não foi
preciso muito tempo - prosseguiu, movendo tristemente a cabeça, -
e uma vez que o
segredo ficou a salvo, a vasta extensão deste lugar e as estritas me
didas militares de
todo acesso impediram a redescoberta. Raras vezes há menos de c
em slans ao redor
do palácio. A maioria deles tem tentáculos, se bem que alguns não t
êm - descendentes, como eu próprio, dos primitivos voluntários para
as experiências de sobrevivência na transformação de genes - e se
mpre souberam a verdade e têm feito parte da
organização. Poderíamos operar os que tinham tentáculos, claro, e
dar-
lhes a faculdade de sair com total segurança, mas chegamos a um p
onto em que queremos dispor de alguns slans com tentáculos, a fim
de que os outros possam ver como serão
seus descendentes dentro de algumas gerações. Além disso, não q
ueremos que o pânico se apodere deles subitamente.

- E Kathleen? - perguntou lentamente Cross.

Gray dirigiu-lhe um longo e ponderado olhar e finalmente disse:

- Kathleen era uma experiência. Eu queria ver se os seres humanos


que crescem
em contato com um slan são incapazes de se darem conta de que u
ma afinidade é
possível. Quando finalmente vi que era impossível consegui
-lo, decidi transferi-la
para cá, para estas salas secretas, onde poderia começar a obter o
benefício de sua
associação com outros slans e favorecer tudo o que tinha que ser fei
to. Aconteceu
dela ser mais ousada e engenhosa do que eu havia suposto... mas v
ocê já sabe daquela fuga.

A palavra “fuga” era uma tênue descrição da maior tragédia que Cro
ss jamais havia presenciado. Evidentemente, aquele homem era ain
da mais indiferente que ele
diante da morte. Antes que pudesse fazer algum comentário, Kier Gr
ay prosseguiu:

- Minha própria esposa, que era uma verdadeira slan, caiu vítima da
Polícia Secreta
de uma forma diferente, se bem que igualmente triste, salvo que no
seu caso eu não
estive presente até muito depois... - parou de falar e durante um lon
go instante permaneceu contemplando-
o, com olhos tristes, e toda sua indiferença havia desaparecido. - E
agora que eu lhe falei tantas coisas - disse subitamente - ...qual é o
segredo do seu pai?

- Posso falar disto com mais detalhes mais tarde - disse Cross com
simplicidade. -

Em poucas palavras, meu pai havia rechaçado a ideia de uma mass


a crítica sobre a
qual as primeiras bombas eram baseadas. A energia atômica se enc
ontra facilmente
nesta forma explosiva, em forma de calor e para certos empregos m
édicos e indus-
triais. Mas é quase impossível de controlar para o uso direto. Meu p
ai rechaçou, em
parte porque era inútil para os slans nessa forma e em parte porque
tinha sua teoria.

Rechaçou também o princípio do ciclotron massivo, mas foi o ciclotr


on o que lhe
deu pelo menos uma parte da grande ideia. Envolveu um núcleo de
elétrons positivos, afiados como um fio delgado. A este núcleo, contr
a o Sol, mas não diretamente
a ele - uma comparação poderia ser a forma como um cometa se ap
roxima do Sol
formando uma longa órbita, - dispara seus “cometas” de elétrons ne
gativos à velocidade da luz.
O “sol” varre os cometas que tem ao seu redor e os lança para o “es
paço”, onde -

e aqui a comparação é muito real - um segundo núcleo positivo, que


poderíamos
chamar de “Júpiter” atrai os cometas que já viajam à velocidade da l
uz, e os catapul-
ta mais rápidos que a luz fora das suas órbitas. A esta velocidade, c
ada elétron se
converte em matéria em um estado “negativo”, com um poder destru
tivo infinita-

mente desproporcional ao seu “tamanho”. Em presença desta matéri


a “negativa” a
matéria normal perde sua coerência e volta instantaneamente ao se
u primitivo estado. Então...

Fez um pausa e levantou a vista quando a porta se abriu. Três home


ns com os
tentáculos dourado nos cabelos entraram na sala. No momento em
que os viu eles
estavam com a cortina mental protetora levantada, mas Cross baixo
u a sua no ato.

Houve um intercâmbio animado de impressões entre os quatro hom


ens: nomes, propósitos, história passada, dados de todos os tipos n
ecessários para a plena compreensão da conferência... Tudo aquilo
era perturbador para Cross que, salvo por um
breve contato com a experimentada Kathleen e das suas mal desen
volvidas relações infantis com seus pais, até então tivera que limitar-
se a imaginar quão frutosa poderia ser tal intercâmbio de ideias.

Estava tão absorto naquela conversa que foi colhido pela surpresa q
uando a porta novamente se abriu.

Entrou uma garota jovem e alta. Seus olhos lançavam chamas, tinha
um corpo delicada e esbeltamente modelado e seu rosto era de um
a suave e completa beleza. Ao vê-
la, os músculos de Jommy ficaram rígidos, seus nervos ficaram tens
os e um calafrio percorreu todo seu corpo. Se, à medida que seu as
sombro crescia, pensasse com
uma lógica afiada, teria se dado conta disto pela forma como foi rep
arada a cabeça
destroçada de Corliss no distante Marte. Naquele momento teria co
mpreendido que
Kier Gray era um verdadeiro slan. Devia ter adivinhado, conhecendo
os ódios e as in-
vejas que reinavam no palácio, que somente a morte, e um secreto r
egresso da morte, poderia conservar, definitiva e efetivamente, Kathl
een a salvo de John Petty.

Suas reflexões estavam neste ponto quando ressoou a voz clara e b


rilhante de Kier
Gray, com o tom vibrante do homem que durante anos inteiros tinha
esperado que chegasse aquele momento.

- Jommy Cross, quero apresentá-lo a Kathleen Gray... minha filha.

Alfred Elton van Vogt (Winnipeg, 26 de abril de 1912 - Hollywood,


26 de janeiro de
2000) foi um escritor canadense de ficção científica. Muitos fãs daqu
ela era consideravam
van Vogt, Robert A Heinlein e Isaac Asimov como os três melhores e
scritores de ficção científica.

Foi um dos escritores de ficção científica mais famosos da década d


e 1940, que é considerada a Era Dourada deste tipo de livros. Come
çou a sua carreira de escritor com pequenos trabalhos publicados e
m revistas, mas decidiu mudar e escrever algo que lhe interessa-
va, ficção científica. Em 1941 decidiu tornar-
se num escritor em tempo integral e desistiu
do seu trabalho no Departamento da Defesa canadense. Durante al
guns anos van Vogt escreveu um grande número de “short stories”.
Na década de 1950 muitos desses livros foram agrupados formando
pequenas séries ou “fixups”. Este termo foi inventado por van
Vogt e começou a ser usado no vocabulário de ficção científica.

Em 1944, van Vogt mudou-


se para Hollywood, Califórnia onde o seu método de escrita se
modificou, depois da Segunda Guerra Mundial. Profundamente afeta
do pela revelação de
estados totalitários que emergiram depois da Segunda Guerra Mund
ial, van Vogt escreveu
uma série que tinha lugar na China Comunista. Van Vogt disse que
os seus sonhos eram uma
das principais fontes de ideias para os seus livros. Durante a sua vid
a de escritor acordava
a cada 90 minutos para escrever o que havia sonhado.

Nos últimos anos da sua vida, Van Vogt permaneceu em Hollywood,


com a sua segunda
mulher, Lydia Bereginsky. Neste período final da sua vida escreveu
maioritariamente séries
compostas apenas por um livro, que, no geral, mostravam as dificuld
ades de van Vogt de
acompanhar o ritmo de evolução da ficção científica.

Alfred Elton van Vogt morreu em consequência do mal de Alzheimer.


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I

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