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J. M.

DARHOWER

Sempre
Sempre
Série Forever, volume 1
Copyright © 2013 by Jessica Mae Darhower
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Diretor editorial: Luis Matos


Editora-chefe: Marcia Batista
Assistentes editoriais: Aline Graça, Letícia Nakamura e Rodolfo Santana
Tradução: Sally Tilelli
Preparação: Júlia Yoshino
Revisão: Carolina Zuppo e Viviane Zeppelini
Arte e capa: Francine C. Silva e Valdinei Gomes
Capa: Rebecca Barboza

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Angélica Ilacqua CRB-8/7057

D232s
Darhower, J. M.
Sempre / J. M. Darhower ; tradução de Sally Tilelli. –
– São Paulo: Universo dos Livros, 2015.
544 p. (Forever, v. 1)

ISBN: 978-85-7930-847-5
Título original: Sempre

1. Literatura norte-americana 2. Romance 3. Tráfico humano – Ficção


4. Máfia - Ficção I. Título II. Tilelli, Sally
15-0426 CDD 813.6

Universo dos Livros Editora Ltda.


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Prólogo

BLACKBURN, CALIFÓRNIA, SUDOESTE DOS ESTADOS UNIDOS

O prédio estava em ruínas. O passar das décadas à mercê do clima seco e desértico era evidente
naquela fachada. No passado, a construção fora usada como sede da prefeitura, quando as empresas
mineradoras ainda eram as donas daquelas terras. Essa época, porém, havia ficado para trás. Agora,
apenas uma sombra do antigo edifício, vazio e dilapidado, podia ser identificada na noite, como uma
vaga lembrança de um lugar que, no passado, florescera.
O local que outrora reunira um grande número de trabalhadores ocupados hoje atraía outro tipo de
aglomeração, bem mais sinistra, com a qual a pequena Haven, de sete anos, teria de aprender a
conviver. Suas pernas tremiam e seu estômago se contorcia enquanto seguia os passos do seu mestre
rumo ao interior da construção. Ela se mantinha bem próxima dele, mas tomando cuidado para não
pisar em seus sapatos pretos e lustrosos.
Ambos caminharam por um hall estreito e escuro, passando por alguns homens. Haven mantinha
seus olhos no chão. O som daquelas vozes ao cumprimentarem o mestre provocava nela um calafrio
na espinha. Aqueles sujeitos eram novos ali, pessoas estranhas que ela jamais imaginara existirem.
Ele a levou por uma porta no final do corredor e a imagem com que deparou fez com que a menina
parasse de maneira abrupta. Um misto de suor e mofo saturava o ambiente; o cheiro forte de charuto
queimava o nariz da garota. Um grande número de homens se reunia ali, falando alto, ao mesmo
tempo em que o choro ecoava pelas paredes, apavorando a criança. Com o coração à boca, ela
respirou fundo e começou a procurar de onde vinham os gritos de pavor. Porém, diante daquele
aglomerado de homens, era impossível ver qualquer coisa.
Foi então que seu mestre a pegou pela mão e a forçou a se posicionar à frente dele. Ela se contraiu
no momento em que as mãos dele se fixaram em seus pequenos ombros, mas continuou andando,
atendendo ao seu comando. A aglomeração foi se abrindo para que ambos passassem; logo Haven
alcançou seu destino, de maneira obediente. Ela sentia os homens observando-a; os olhos deles eram
como lasers que queimavam profundamente sua pele e esquentavam seu sangue, fazendo seu rosto
enrubescer cada vez mais.
Na parte frontal do salão, sobre um pequeno palco improvisado, algumas garotas jovens formavam
uma fila, ajoelhadas. Etiquetas estavam penduradas em suas roupas rasgadas, e cada uma delas trazia
um número escrito com um marcador preto. Haven se manteve tão imóvel quanto possível, tentando
ignorar o toque de seu mestre, ao mesmo tempo que observava a multidão que atirava dinheiro sobre
o chão. Uma a uma, as meninas foram leiloadas pelo lance mais elevado, suas lágrimas rolavam
pelos rostos frágeis à medida que eram arrastadas pelos respectivos arrematadores.
– Frankie!
Haven contraiu se corpo ao ouvir o nome de seu mestre e recuou ao ver um homem se
aproximando. O rosto dele parecia couro envelhecido, craquelado, e estava coberto de cicatrizes.
Seus olhos eram negros como dois poços de piche. Em sua mente aturdida, ela o percebeu como um
verdadeiro monstro.
Frankie a segurou mais firme, mantendo-a segura enquanto cumprimentava o sujeito:
– Olá, Carlo.
– Vejo que trouxe sua garota. – disse o homem – Está querendo se livrar dela? Se for o caso…
Frankie o interrompeu antes que prosseguisse:
– Não, nada disso. Só achei que seria bom que conhecesse outras garotas iguais a ela.
Iguais a ela. Aquelas palavras atraíram a atenção de Haven, que imediatamente olhou para o
pequeno palco e viu quando uma menina desceu de lá: era uma adolescente que parecia ter se
envolvido em alguma briga com tesouras, tantos eram os buracos em suas roupas; seus cabelos loiros
pareciam ter sido tosados sem o menor cuidado. Ela estava amordaçada e algemada, e ostentava o
número 33 na roupa.
Haven se perguntou: Será que ela própria era como aquela menina? Poderiam as duas ser iguais?
A número 33 lutou e se debateu o quanto pôde, mais que todas as outras, quando um homem a
agarrou pelo braço e a puxou. Todavia, um único segundo mudaria tudo. Mesmo com os aros de metal
ao redor dos tornozelos a jovem tentou escapar, pulando para a frente do palco, colocando-se de pé e
encarando a multidão.
Como a lava de um vulcão que de repente entra em erupção, o caos se alastrou de modo violento.
Todos os homens gritavam. Haven prendeu a respiração enquanto Frankie reagiu de um jeito frio,
enfiando a mão no bolso do casaco e sacando uma arma. Um único tiro foi disparado bem do seu
lado, o que a assustou e deixou seus ouvidos surdos por alguns instantes. A número 33 estava agora
caída no chão, com a testa perfurada por um projétil. O sangue fresco da jovem imediatamente se
espalhou pelo local, salpicando de vermelho até mesmo o vestido jeans usado por Haven.
O peito da garotinha doía enquanto respirava ofegante diante do cadáver que repousava próximo
aos seus pés descalços. O sangue logo escorreu do ferimento, encharcando o velho piso de madeira e
tingindo os cabelos loiros da jovem de um escarlate intenso. Seus olhos azuis e congelados
permaneceram abertos, voltados para Haven, como se pudessem enxergar através de sua pele.
Frankie guardou a arma de volta em seu casaco e se agachou para ficar na altura de Haven que, a
essa hora, tentava se afastar daquela carnificina. Ele, entretanto, a agarrou por trás do pescoço e a
forçou a olhar para a número 33.
– É isso o que acontece quando as pessoas esquecem qual é o seu lugar. – ele disse, com a voz tão
gélida e impiedosa quanto os olhos que a encaravam. Então ele se levantou, voltando à posição
original e mantendo as mãos firmes nos ombros da garota aterrorizada.
O leilão continuou como se nada tivesse acontecido, enquanto o corpo sem vida da número 33
jazia no chão, sem que ninguém se preocupasse com ela, exceto, é claro, a própria Haven. Aquela
tenebrosa visão a assombraria para sempre.
Dez anos mais tarde…
Capítulo 1

O ar quente e seco queimava a pele de Haven, que lutava para respirar conforme a poeira,
levantada pelos seus próprios pés enquanto corria, dificultava sua visão. Não que ela pudesse
enxergar alguma coisa, a noite estava escura demais e ela não tinha ideia de onde estava ou para
onde estava correndo. Tudo parecia igual em todas as direções; ela estava cercada pelo deserto.
Seus pés pareciam arder em chamas; todos os músculos de seu corpo imploravam para que ela
parasse. Tornava-se cada vez mais difícil continuar; sua força se deteriorava e a adrenalina inicial se
dissipava. Foi então que escutou um barulho. Suas pernas já não respondiam ao seu comando, então
ela se virou na direção do som, encontrando uma luz fraca a distância. Uma casa.
Ela seguiu naquela direção, tentando gritar e pedir ajuda, mas nenhum som escapava de sua
garganta. Seu corpo se contorcia, desistindo da luta quando ela mais precisava dele. A luz se tornava
cada vez mais forte conforme ela se aproximava. De repente, tudo o que viu foi um clarão. Cega pela
luz, acabou tropeçando e caindo no chão. A dor percorria seu corpo em forma de ondas, enquanto o
calor da luz a queimava por dentro.

O porão era escuro e úmido. A única saída era por uma porta de metal trancada com pesadas
correntes. Sem janelas, o lugar era muito abafado; o ar era poluído e o cheiro pútrido de esgoto era
forte. O piso de concreto tinha manchas de sangue seco, como respingos de tinta vermelha. O cenário
grotesco de um sofrimento interminável.
Haven estava deitada num canto, com seu corpo frágil completamente imóvel, exceto pela leve
ondulação no peito causada pela respiração. Seus cabelos longos e castanhos, normalmente
encaracolados, pareciam bem mais curtos de tão emaranhados. Ela não poderia estar pior: seus ossos
da clavícula, assim como as costelas, estavam tão visíveis que podiam ser contados; sua pele,
ensanguentada e repleta de hematomas. Apesar disso, ela se considerava saudável, afinal, já tivera a
oportunidade de ver pessoas em situação ainda pior que a dela.
O dia começara como qualquer outro. Haven acordou ainda de madrugada e passou a maior parte
da manhã fazendo faxina. Durante a tarde ela passou algum tempo com sua mãe, ambas sentadas e
encostadas à parede externa da casa de madeira. As duas estavam caladas e ouviam o som da TV, que
saía pela janela aberta bem acima delas. O noticiário previa um furacão, que se formara no sul, e
também discorria sobre uma guerra que atingia o Iraque. Nada disso, no entanto, tinha qualquer
significado para Haven.
Sua mãe lhe dissera que escutar o rádio era perda de tempo, uma vez que, nesse mundo, ambas não
passavam de um blip em um grande radar. Mas Haven não conseguia evitar. O noticiário das 5h da
manhã era o ponto alto de cada um de seus dias. Ela precisava sentir que era real, que algo ou alguém
com quem tivera contato no passado ainda existia, em algum lugar.
A gritaria começou dentro da casa, interrompendo as notícias assim que uma luta se alastrou pela
sala de estar. Haven ficou de pé, tomando cuidado para que ninguém a visse bisbilhotando quando,
de repente, ouviu algo que a deixou paralisada:
– Quero essa menina fora daqui!
– Eu sei, Katrina! Estou cuidando disso!
– Pelo visto não está se esforçando o suficiente! – Katrina era a dona da casa, uma mulher cruel,
de cabelos curtos e negros e um rosto comprido e maldoso – Livre-se dela logo de uma vez!
Livre-se dela de uma vez. Aquelas palavras deixaram Haven sem ar. A briga continuou enquanto
ambos seguiram para o andar de cima, as vozes tornaram-se mais abafadas e finalmente o silêncio se
instalou.
Ela estava em uma grande enrascada.
– Esse mundo é assustador. – sua mãe sussurrou – As pessoas irão machucá-la. Elas farão coisas
ruins com você, coisas doentias… O tipo de coisas que espero que jamais veja por si mesma. Elas
lhe enganarão, mentirão pra você. É preciso estar de olhos abertos o tempo todo, minha menina.
Haven não gostava do rumo que aquela conversa estava tomando:
– Por que você está me dizendo isso?
– Porque você precisa saber. – explicou – Você tem que fugir.
Haven a encarou sem acreditar no que estava ouvindo.
– Fugir?
– Sim, esta noite. Há mais na vida do que isso aqui, e tenho medo do que possa acontecer se ficar.
– Mas não posso fugir, mamãe. Não quero saber o que tem lá fora.
– As pessoas lá fora serão capazes de ajudá-la.
Lágrimas se formaram nos olhos de Haven.
– Não posso deixá-la para trás.
– Este é o único jeito. – insistiu a mãe – Você precisa fugir daqui, encontrar alguém e dizer quem
você é. Eles irão…
– Salvá-la? – Haven perguntou, completando a frase – Eles virão até aqui?
– Talvez… – algo brilhou nos olhos da mãe. Esperança?
– Então, eu o farei. – disse Haven – O farei por você.
Depois do cair da noite, quando Haven imaginou que ninguém mais procuraria por ela, pelo menos
até a manhã seguinte, ela tentou escapar silenciosamente, correndo para o mundo que existia além
daquele rancho, determinada a encontrar ajuda para que nunca tivesse de retornar àquela vida.
Depois de acordar em um porão cheio de mofo, ao ouvir um forte barulho, ela logo percebeu que
havia falhado em sua empreitada. Uma forte luz a iluminava. Encolhendo-se, reparou que as portas se
abriram e alguém parou de pé a apenas alguns centímetros de onde estava: um homem com a pele
esverdeada e uma camisa branca abotoada, de mangas enroladas até os cotovelos. Naquele momento
ela reparou na arma prateada que ele trazia presa ao cinto.
Com a voz falhando ela perguntou:
– Você é da polícia?
O homem se ajoelhou perto dela e colocou uma pequena maleta sobre o chão. Ele não respondeu
sua pergunta, mas sorriu enquanto pressionou a palma de sua mão contra a testa dela.
Haven fechou seus olhos sonolentos e se perdeu em meio ao silêncio até que o estranho finalmente
falou. Ela voltou a abrir os olhos, surpresa pelo tom gentil de sua voz, mas se retraiu ao perceber um
olhar hostil.
Por trás do estranho havia alguém que ela conhecia muito bem. Michael, ou mestre, como ele
próprio preferia ser chamado, a encarava com raiva; sua íris era escura e contrastava com o branco
amarelado que tingia o resto dos olhos. Seus lábios formavam um sorriso zombeteiro e seus cabelos
crespos ostentavam um tom acinzentado ao redor das orelhas.
– Relaxe, criança… – disse o estranho – Tudo vai ficar bem.
Ela o encarou, imaginando se podia mesmo confiar em suas palavras, mas entrou em pânico
quando o viu tirar uma agulha de dentro de sua maleta. Ela choramingou, tentando se afastar, mas ele
a agarrou e enfiou a agulha em seu ombro.
– Não vou machucá-la. – ele disse, soltando-a e entregando a pequena seringa a Michael – Só
estou tentando ajudá-la.
– Ajudar? – ela se lembrou do que sua mãe havia lhe dito sobre pessoas que poderiam ajudá-la,
mas também se recordou do alerta de que outros mentiriam para ela. Haven não tinha certeza quanto
ao grupo em que aquele homem se encaixava, mas estava mais inclinada a acreditar na segunda
hipótese.
– Sim, ajudar. – o homem colocou-se de pé – Você precisa descansar. Poupar suas energias.
Então, ele saiu e seu mestre o seguiu, sem dizer uma palavra. Haven ficou deitada ali, exausta
demais para pensar sobre tudo aquilo; seus olhos se fecharam por um momento, mas logo voltou a
escutar as vozes.
– Ela parece horrível! – o homem gritou. O tom gentil havia desaparecido completamente – Como
você deixou que isso acontecesse, Antonelli?
– Eu não tive a intenção. – Michael respondeu – Não tinha ideia de que ela tentaria fugir.
– Isso não começou ontem, e você sabe disso! Deveria estar de olhos abertos.
– Eu sei. Sinto muito.
– E deve sentir mesmo. – Haven começou a adormecer, mas antes de cair totalmente no sono,
ouviu mais uma vez a voz do estranho – Eu lhe darei o que está pedindo por ela, mas saiba que não
estou nem um pouco feliz com tudo isso. De jeito nenhum.

Haven acordou mais tarde, ainda deitada no chão de concreto. Todo o seu corpo doía e foi difícil
conseguir se sentar. Ela escutou alguém pigarreando e percebeu que o estranho estava novamente de
pé ao seu lado.
– Como se sente?
Ela cruzou os braços sobre o peito, como que tentando se proteger enquanto ele se aproximava
dela.
– Bem.
A voz dele era calma, mas firme:
– Diga a verdade.
– Dolorida. – admitiu de um jeito relutante – Minha cabeça está doendo.
– Isso não me surpreende. – ele disse, ajoelhando-se novamente e esticando o braço para tocá-la,
fazendo com que ela se encolhesse – Não vou bater em você, criança. – ele sentiu sua testa e segurou
o queixo da menina, observando seu rosto – Sabe quem eu sou? – ela acenou negativamente a cabeça,
embora algo nele lhe parecesse familiar. Ela achou que talvez já o tivesse visto antes, a distância.
Quem sabe fosse um dos visitantes dos quais ela fora mantida afastada ao longo dos anos – Sou o
doutor Vincent DeMarco.
– Doutor? – nunca antes alguém ali recebera cuidados médicos, mesmo quando a situação era
grave.
– Sim, sou um médico – ele disse –, mas também sou um sócio dos Antonelli. Cheguei depois que
você fugiu. Você sofreu uma pequena concussão e está desidratada, mas não há nada mais grave que
eu possa perceber. Teve sorte de ser encontrada. Poderia ter morrido lá mesmo.
Um profundo vazio tomou conta de Haven; parte dela provavelmente desejava que isso tivesse
ocorrido. Pelo menos teria sido melhor que padecer nas mãos daquele monstro que se
autodenominava mestre.
O doutor DeMarco olhou para o relógio.
– Acha que consegue caminhar? Nós precisamos sair logo.
– Nós?
– Sim, a partir de agora você ficará comigo.
Ela acenou negativamente com a cabeça, contraindo-se à medida que a dor se intensificava.
– Não posso deixar minha mãe. Ela precisa de mim.
– Talvez devesse ter pensado nisso antes de fugir.
Ela tentou explicar seus motivos, mas as palavras saíam confusas.
– Eles iam me matar. Não tive escolha.
– Sempre existe uma escolha, criança. – ele disse – Na verdade, você terá de fazer uma agora
mesmo.
– Você está me dando uma escolha?
– Claro que estou. Você pode vir comigo.
– Ou?
Ele ergueu os ombros.
– Ou… você fica aqui e eu vou embora sozinho. Mas antes que decida, pense bem e me responda.
Você fugiu porque achou que eles fossem matá-la. O que acha que farão agora, depois que eu partir?
Ela abaixou a cabeça e olhou para os pés machucados e sujos.
– Então, ou eu vou com você ou eu morro? Que tipo de escolha é essa?
– Uma que acredito que você não queira fazer – disse ele –, mas que, ainda assim, é uma escolha.
Um silêncio tenso pairou entre os dois. Haven não gostava daquele homem manipulador.
– Para que você me quer?
Ela costumava ser punida por falar sem permissão, mas não tinha nada a perder. Afinal, o que ele
poderia fazer, matá-la?
– Eu nunca disse que queria você, mas sou um homem ocupado. Você poderia limpar a casa e
cozinhar para mim.
– Não pode pagar alguém pra fazer isso? – ela se arrependeu imediatamente do que disse, e recuou
– Bem… Pelo menos isso seria legal. Acho que o que está pensando é ilegal, não é?
Ela realmente não tinha certeza.
– Suponho que, tecnicamente, o seja… Porém…
Mas antes que ele pudesse terminar, novos gritos foram ouvidos no andar de cima. Haven hesitou
diante do som alto e do barulho de choro. As lágrimas passaram a escorrer pelos seus olhos ao
perceber que Michael estava machucando sua mãe.
DeMarco suspirou:
– Ouça, não vou ficar aqui a noite toda esperando por você. Se não quiser minha ajuda, tudo bem.
Fique aqui e morra.
O homem se levantou para sair. Haven se colocou de pé e sussurrou:
– Por que eu? – ela queria acreditar que havia uma razão para tudo aquilo, mas já não tinha
certeza.
Ele acenou levemente com a cabeça:
– Também gostaria de saber.

As solas dos pés de Haven queimavam enquanto o doutor DeMarco a encaminhava para fora do
porão.
– Não irei atrás de você se fugir. – ele avisou, rindo de um jeito amargo ao perceber o pânico nos
olhos da menina, que mais uma vez viu a arma em seu cinto – Tampouco atirarei em você.
– Não?
– Não. – ele respondeu – Eu atirarei em sua mãe em vez disso.
Ela respirou fundo no momento em que ele soltou seu braço.
– Por favor, não a machuque!
– Fique onde está e eu não terei de fazer isso. – ele disse, saindo.
Embora suas pernas estivessem fracas e ela, tonta, Haven se recusou a mover-se um milímetro que
fosse enquanto ele desaparecia pela escada.
À medida que o sol se punha no horizonte o céu ganhava um brilho alaranjado, revelando sombras
distorcidas sobre a paisagem. Ela não sabia a data, tampouco tinha ideia de quanto tempo havia se
passado. Pela pequena janela percorria os olhos por todo o terreno da propriedade em busca de
algum sinal de sua mãe. Ela queria vê-la, chamá-la, encontrá-la. Queria saber o que fazer. Porém, sua
mãe nunca apareceu. O sol finalmente se pôs, e do meio da escuridão surgiu mais uma vez a figura do
doutor DeMarco.
Ele não olhou para ela enquanto abria a porta do carro preto, apenas comunicou:
– Hora de ir.
De um jeito tímido, Haven entrou no automóvel, acomodando-se no assento do passageiro. Então,
quando a porta foi fechada, ela olhou em seu entorno. O cheiro forte de couro fresco dentro do
espaço confinado fez com que ela sentisse um peso em seu peito. Ela tinha dificuldades para respirar
e lutava para se manter calma enquanto ele se sentava ao lado dela. O doutor DeMarco franziu as
sobrancelhas ao se esticar para pegar sua maleta no banco de trás. Sem dizer uma palavra, ele retirou
de lá outra seringa e aplicou na jovem.
Ela, mais uma vez, adormeceu.

A pequena estrada cruzava uma densa floresta; as linhas centrais estavam tão desbotadas que
pareciam até uma via de mão única. Uma nova rodovia desviava o trânsito daquela região, por isso,
somente locais transitavam por ali, ou pessoas que estavam perdidas. Haven estava literalmente
tombada no banco do carro, zonza, observando as árvores sendo rapidamente deixadas para trás em
meio à escuridão. Ela virou de costas para a janela, lutando contra o mal-estar, quando seus olhos
depararam com o relógio no painel: o mostrador indicava meia-noite e quinze.
Ela ficara desacordada por horas.
– Não tive a intenção de sedá-la por tanto tempo. – explicou-se o doutor DeMarco, percebendo
sua movimentação – Você dormiu durante todo o voo.
– Num avião? – ela se surpreendeu. Ele acenou afirmativamente com a cabeça. Aquela fora a
primeira vez que se aproximara de uma aeronave. Naquele momento, ela não tinha certeza se devia
ficar feliz por estar em terra firme ou desapontada por ter perdido a aventura – Onde estamos agora?
– Quase em casa.
– Em casa? – Haven não sabia exatamente o que aquilo significava.
– Porém, antes de chegarmos lá, quero deixar uma coisa bem clara. – pontuou DeMarco – Você
terá uma vida mais normal vivendo conosco, mas não confunda minha gentileza com fraqueza. Espero
sua lealdade. Se trair minha confiança de algum modo, haverá consequências. Desde que se lembre
disso, não teremos nenhum problema. – ele fez uma pausa – Quero que se sinta confortável conosco.
Portanto, poderá falar livremente, desde que seja respeitosa.
– Nunca o desrespeitaria, senhor.
– Nunca diga “nunca.” Às vezes não percebemos quando estamos sendo desrespeitosos. – Haven
ficou imaginando o que ele queria dizer com aquela afirmação, porém, ele não explicou – Você tem
alguma pergunta?
– Você disse “nós.” O senhor tem uma família?
– Sim, tenho dois filhos. Eles têm dezessete e dezoito anos.
– Entendo. – ela estava à beira do pânico. Nunca tivera contato com pessoas de sua idade, muito
menos com rapazes. Observando mais cuidadosamente, ela reparou na aliança de ouro que brilhava
sob a luz da lua na mão esquerda do médico. Casado – E sua esposa, senhor? A mãe dos seus filhos?
No momento em que a pergunta saiu de seus lábios, a expressão de DeMarco mudou de maneira
radical. Sua postura tornou-se rígida; sua mandíbula se contraiu enquanto seus olhos se fixaram na
estrada à frente. Seu pé pressionou ainda mais o pedal do acelerador e suas mãos seguraram o
volante com tanta força que os nós dos seus dedos ficaram brancos como os próprios ossos. A
conversa havia chegado ao fim.
Acho que chega de falar livremente.
O carro deixou a estrada asfaltada e seguiu por uma via esburacada, entre as árvores densas.
Finalmente chegaram a um lugar aberto e Haven vislumbrou a casa. A sede da fazenda tinha três
andares; suas colunas se erguiam do solo até o topo da estrutura. O branco da pintura original estava
desbotado, o que dava à fachada uma coloração acinzentada. Uma ampla varanda envolvia todo o
primeiro andar, com outras menores decorando o segundo e o terceiro andar.
Doutor DeMarco estacionou ao lado de dois carros menores, um preto e o outro na cor prata.
Haven saiu do automóvel com cuidado, olhando ao redor. Tudo o que conseguia ver na escuridão era
a silhueta das árvores. Uma luz na varanda iluminava levemente o caminho de pedras até a entrada.
DeMarco pegou a bagagem antes de se direcionar à porta, sendo seguido pela jovem, que o
acompanhava com certa dificuldade e de mãos vazias, uma vez que não tinha nada seu para carregar.
De fato, ela nunca possuíra praticamente nada; todas as suas roupas eram trapos usados, vindos de
outras pessoas. Coisas que fora obrigada a deixar para trás.
Depois de pisar na varanda, o doutor DeMarco acionou com o dedo o teclado de um pequeno
painel retangular, que emitiu um bipe antes de a porta se abrir. Haven entrou na casa e manteve-se de
pé, parada, enquanto ele fechava a porta e acionava outro painel similar.
Uma luz verde piscou e a porta se trancou automaticamente.
– Está ligado a uma rede de computadores. – explicou DeMarco – Essa casa é impenetrável; as
janelas são de vidro à prova de balas e ficam sempre trancadas. Você precisa de um código ou
impressão digital autorizada para entrar e sair.
– Mas e se acabar a energia, senhor?
– Há um gerador para casos como esse.
– E se o gerador não funcionar?
– Então acho que ficará trancada na casa até que a força seja restaurada.
– Eu também terei um código?
– Talvez um dia, quando sentir que posso confiar em você. – ele disse – Depois do que aprontou
em Blackburn, tenho certeza de que compreende minha posição. Estamos bem mais próximos da
civilização do que antes.
Ela não conseguia entender a posição dele, e se recusou a tentar:
– O que acontece se houver uma emergência?
– Há meios de burlar o sistema, mas não prevejo nenhuma situação que exija que você aprenda
esses truques.
– Mas e se a casa pegar fogo e eu precisar escapar?
O doutor DeMarco olhou atentamente para ela:
– Você é bem astuta, não é mesmo? – mas antes mesmo que ela pudesse responder, ele se virou –
Venha, vou lhe mostrar a casa.
Bem diante deles havia uma sala de estar, com vários sofás e uma TV numa das paredes. Uma
lareira ornamentava a parede de trás e tinha um piano ao lado; o piso de madeira brilhava refletindo
o luar que invadia o local através das grandes janelas de vidro. À esquerda, ficava a cozinha,
completamente equipada com todos os equipamentos e eletrodomésticos em aço escovado. No centro
havia uma ilha e, sobre ela, estavam penduradas panelas e caldeirões. A sala de jantar abrigava a
maior mesa que Haven já tinha visto, grande o suficiente para acomodar quatorze pessoas. Ela ficou
imaginando com que frequência todos aqueles lugares eram ocupados, incapaz de pensar na ideia de
cozinhar para tanta gente. À direita, havia um banheiro e a lavanderia, assim como um escritório,
logo abaixo da escada.
O segundo andar pertencia ao doutor DeMarco. Lá havia um quarto e um banheiro, assim como
outro escritório e um quarto extra. Algumas das portas tinham painéis eletrônicos ao lado, um claro
sinal de que Haven não deveria ultrapassar aqueles limites.
Eles continuaram até o terceiro andar. As escadas terminavam em um amplo espaço. A parede de
trás era tomada por uma grande janela e, bem à frente, havia uma mesa com duas cadeiras na cor
cinza. As outras três paredes tinham portas que levavam aos quartos. A sala estava repleta de
estantes que, por sua vez, abrigavam centenas de livros empoeirados. Haven ficou surpresa, afinal,
nunca vira tantos exemplares juntos em toda sua vida.
– Nossa biblioteca. – apresentou DeMarco – Ninguém a usa muito, e acho que isso não irá mudar,
considerando que Antonelli me disse que você não sabe ler.
Haven podia sentir os olhos dele sobre ela, mas permaneceu quieta, sem encará-lo. De repente
uma porta se abriu e um jovem saiu de um dos quartos. Ele era alto e esbelto; seus cabelos eram
escuros e malcuidados. DeMarco se virou para ele e disse:
– Dominic, esta é… Bem… ela irá morar conosco.
Dominic a olhou com curiosidade:
– Olá!
– Olá, senhor. – ela respondeu, com a voz trêmula.
O riso do rapaz ecoou pela sala.
– Não, não precisa me chamar de senhor. Apenas Dom.
O jovem desceu as escadas e DeMarco a levou pela biblioteca, passando por uma porta sem dizer
uma palavra, e finalmente parando.
– É aqui que você irá dormir. Entre. Eu voltarei logo.
Haven entrou no cômodo com certa hesitação. Os móveis, as cortinas e o carpete eram lisos e na
cor branca. Tudo estava empoeirado. De fato, a maior parte da casa tinha o mesmo tipo de
decoração; as paredes e os cômodos meio vazios. Não havia quadros nem bibelôs; nada que
sugerisse algum valor sentimental. Nada que lhe desse alguma pista do tipo de pessoas com as quais
estava lidando.
Ela ainda estava de pé à porta quando o doutor DeMarco retornou com uma pilha de roupas.
– Com certeza ficarão grandes, mas pelo menos estão limpas.
Ela pegou as roupas e agradeceu:
– Obrigada, senhor.
– De nada. – ele respondeu – Tome um banho e se acomode. Afinal, esta também é sua casa agora.
Ele repetiu aquela palavra. Casa. Ela havia morado com os Antonelli durante toda a sua vida e
nunca ouvira nenhum deles chamar o lugar de casa ou lar.
DeMarco deu alguns passos e então parou.
– Ah, e pegue o que quiser na cozinha se estiver com fome, mas não tente colocar fogo em minha
casa. Isso não irá ajudá-la a conseguir um código mais rápido. A permitir que você me engane,
prefiro deixar que queime até a morte.

Haven passou a mão sobre o acolchoado macio. Jamais tivera uma cama em sua vida, muito menos
um quarto só para ela. Em Blackburn ela costumava dormir em estábulos, em um pedaço de madeira
coberto com um colchão velho cujas molas eram visíveis em alguns lugares. A temperatura
costumava ser confortável na região, portanto, ela não tinha que se preocupar com cobertores.
Contava apenas com uma coberta velha e suja para cavalos, quando realmente esfriava. Ela preferia
não usá-la, uma vez que era áspera e arranhava sua pele. Nada podia se comparar ao que tinha sob o
toque naquele momento.
Depois de se livrar de suas roupas velhas, Haven foi até o banheiro da suíte. Lá havia uma grande
banheira num dos cantos, assim como um longo balcão. O lugar também contava com uma pia e um
espelho retangular na parede.
De um jeito hesitante, Haven olhou seu reflexo no espelho: seu rosto estava magro e cheio de
cortes. Uma marca roxa se estendia pelo lado direito da mandíbula. Na testa, no limite dos cabelos,
havia um corte que formara uma mancha de sangue seco.
Era como se o seu corpo inteiro estivesse debaixo de uma camada de sujeira, que tingira sua pele
de um tom mais escuro; ainda assim, aquilo não era suficiente para cobrir suas cicatrizes. Havia
dezenas que eram visíveis, além de várias outras nas costas; lembretes constantes de tudo por que já
tinha passado. As marcas roxas desapareciam, assim como, às vezes, as memórias; porém, as
cicatrizes… estas jamais deixariam de existir.
Ela encheu a banheira e escorregou para dentro, murmurando ao sentir sua pele em contato com a
água quente. Esfregou cada milímetro de seu corpo, enquanto as lágrimas brotavam de seus olhos,
assustada e incerta em relação ao que aconteceria com ela. O doutor DeMarco vinha se mostrando
civilizado, mas ela não se deixava enganar por sua voz gentil e pelas ofertas sutis de independência.
Nada na vida é de graça. Embora o doutor DeMarco não parecesse um monstro, Haven era esperta o
suficiente para saber que nada impedia que uma terrível criatura residisse dentro dele, escondida,
mas à espreita.
A experiência lhe dizia que isso sempre se confirmava.
Depois que a água esfriou, ela saiu da banheira e encontrou uma toalha em um pequeno armário. A
peça era macia e trazia um perfume floral. Haven a enrolou em seu corpo e retornou para o quarto,
onde pegou as roupas que lhe foram dadas. Em seguida, vestiu as calças pretas de um pijama de
flanela que, de tão largas em seu corpo frágil, tiveram de ser enroladas várias vezes na cintura, para
não cair. Então pegou e desdobrou uma camiseta branca, reparando no desenho de uma bola na parte
da frente e um grande número 3 na parte de trás.

O tempo passou lentamente, uma vez que Haven não conseguia dormir. Ela estava encolhida sob o
cobertor, tentando se sentir confortável, mas o silêncio era incômodo. Tudo aquilo era muito novo e
estranho. Sentia-se como se sua pele estivesse sendo alfinetada e as paredes estivessem se fechando
sobre ela. A ansiedade e a fome estavam se apossando de seu corpo.
Durante a madrugada, o desconforto tornou-se insuportável e ela silenciosamente desceu as
escadas. Os corredores estavam escuros, mas ela logo notou uma luz na cozinha. Andando na ponta
dos pés, ela olhou pela porta e viu um rapaz em frente à geladeira. Ele era um pouco mais alto que
ela e sua pele, da cor de café misturado a uma grande quantidade de leite. A barba de alguns dias por
fazer acentuava seu rosto, e seus cabelos grossos eram escuros, mais curtos dos lados do que em
cima. Sua camiseta cinza estava grudada em seu peito, as mangas curtas expunham seus braços.
Havia uma figura em seu braço direito, uma tatuagem que ela não conseguiu identificar na escuridão.
O jovem também usava calças idênticas àquelas que ela própria vestia.
Sem perceber sua presença, o rapaz bebeu o suco diretamente da garrafa. Haven deu um passo
atrás para sair dali. Porém, o movimento chamou sua atenção, e ele se virou para ela, derrubando a
garrafa ao vê-la. O vasilhame foi ao chão e se espatifou, ensopando suas calças.
Dando um pulo, ele olhou assustado para baixo.
– Merda!
Aquela palavra deixou Haven em pânico, fazendo com que ela imediatamente corresse até ele para
limpar a bagunça. Ele se ajoelhou no mesmo instante em que Haven também se abaixou e suas
cabeças colidiram. A força o atirou para trás, fazendo com que ele se desequilibrasse e ferisse a mão
com um caco de vidro. Mais uma vez ele praguejou ao ver sangue escorrendo de um pequeno corte
no polegar, e o levou à boca. Ao olhar para o rapaz, reparou numa cicatriz que marcava sua
sobrancelha direita, partindo-a ao meio.
Ele ergueu a cabeça e olhou para Haven com seus olhos verdes e vibrantes. A paixão intensa que
se revelou naquele olhar roubou-lhe o ar. Ela interrompeu o contato visual e, ainda prendendo o ar,
levantou-se e foi ao balcão em busca de uma toalha para limpar o suco. Lágrimas escorriam por sua
face à medida que juntava os pedaços de vidro em uma pilha, mas logo foi interrompida quando a
mão dele segurou seu pulso. Ela deu um pulo como se tivesse levado um choque, e ele piscou ao ser
pego de surpresa por aquela reação.
– O que há de errado com você? – ele perguntou, segurando-a firme.
– Sinto muito! – ela disse – Por favor, não me castigue.
Antes que qualquer um dos dois pudesse dizer outra palavra, a luz principal foi acesa e ambos
escutaram a voz severa do doutor DeMarco:
– Solte a moça.
O rapaz rapidamente soltou o pulso de Haven, como se sua mão estivesse em chamas.
– Desculpe. – ele disse em voz baixa, levantando-se.
Haven mal conseguia respirar. DeMarco encheu um copo de água da torneira e ofereceu a ela:
– Beba – ordenou. Ela forçou a água goela abaixo, embora seu estômago parecesse mais disposto
a expelir o pouco que tinha lá dentro – O que aconteceu aqui?
Ambos responderam ao mesmo tempo, quase de maneira sincronizada:
– Foi um acidente.
– Não acontecerá novamente, senhor. – Haven prosseguiu – Eu prometo.
O doutor DeMarco pestanejou algumas vezes e completou:
– Nesta casa é bastante incomum que duas pessoas concordem e se desculpem ao mesmo tempo.
Como que aceitando a deixa, o jovem voltou a falar:
– É… Bem… Na verdade não foi minha culpa. Ela me assustou. Aliás, de onde surgiu essa ninja
maluca?
O doutor DeMarco pinçou o nariz com os dedos e censurou:
– Preste atenção no que diz, filho. Agora vá se aprontar para a escola.
Ele começou a discutir, mas DeMarco ergueu a mão e o fez parar de falar. Aquele gesto repentino
assustou Haven, que se contraiu, como que se preparando para ser espancada.
O rapaz a encarou de um jeito estranho.
– O que diabos há de errado com essa…?
– Eu o mandei se aprontar. – disse DeMarco – Não tenho tempo para você agora.
– Tudo bem, que seja.
O doutor DeMarco se virou para ela depois que o rapaz saiu:
– Em geral ele não é… Bem… isso não é bem verdade. Geralmente ele é assim. Um rapaz
meticuloso e sempre com raiva. Deixemos isso de lado; é irrelevante. É o jeito dele e não importa o
que eu faça. O nome dele é Carmine.
Carmine. Um nome estranho para um jovem esquisito.
– Mas o que a fez levantar tão cedo? – ele indagou – Imaginei que fosse dormir o dia todo para se
recuperar.
– Não sabia a que horas eu deveria me levantar.
– Você se levanta quando quiser levantar. – ele esclareceu – Pode voltar para a cama agora.
– Mas e o…
DeMarco não a deixou terminar:
– Eu cuido disso, não se preocupe em fazer nada hoje. Apenas descanse.
Capítulo 2

– Preciso de um favor.
Carmine passou direto pelo pai, recusando-se a tomar conhecimento de que havia lhe dirigido a
palavra. O cheiro de café feito na hora se espalhava pela cozinha, enquanto Vincent limpava o chão.
Os joelhos de seu novíssimo terno Armani estavam molhados por causa do suco derramado, e
Carmine gostou do que viu.
– Agora você vai me ignorar, filho?
– Ah, agora o senhor está falando comigo? Pensei que não tivesse tempo para mim esta manhã.
Vincent se levantou.
– Certamente não tenho tempo para esse tipo de atitude, mas preciso de um favor.
– Claro que precisa.
Vincent retirou um pedaço de papel de seu bolso e o entregou ao filho:
– Pergunte a Dia se ela poderia arranjar essas coisas depois da escola. Eu mesmo o faria, mas não
entendo nada sobre as necessidades de uma jovem adolescente.
Carmine sorriu.
– Não acho que Dia entenda mais sobre isso que você.
– Acho que ela sabe o suficiente. – respondeu – Apenas peça a ela.
Carmine enfiou o papel no bolso e disse:
– Como quiser. É para a ninja maluca? Quem é ela, afinal?
– Você realmente se importa?
– Não. – a palavra saiu automaticamente de sua boca. Ele não sabia muito bem o que pensar.
– Então não importa quem ela é. – respondeu Vincent – Mas, independentemente disso, ela precisa
dessas coisas, então não se esqueça de falar com Dia.
– Eu ouvi da primeira vez. – retrucou o rapaz – De qualquer modo, acho que teria sido legal se
tivesse nos avisado que traria alguém pra essa casa. De onde ela veio?
Vincent despejou um pouco de café em sua garrafa térmica para viagem.
– Pensei que tivesse dito que não se importava.
– E não me importo mesmo.
– Então, não importa quem ela é. O que importa é que ela está aqui agora.
– Pra mim tanto faz.
– “Tanto faz”… – repetiu Vincent, acenando negativamente com a cabeça – É bom saber que todo o
dinheiro que investi em você para que frequentasse a Benton Academy o tornou tão mais…
articulado.
Carmine estremeceu só de ouvir a menção ao lugar.
Ele se metera em encrenca no ano anterior. Algo que poderia ter arruinado sua vida, mas seu pai
mexeu alguns pauzinhos e conseguiu dar um jeito na situação. Entretanto, ele não perdoou a atitude do
filho e acabou o matriculando em um internato pelo resto do semestre. Ainda dentro do avião, ao
retornar para casa, Carmine jurou para si mesmo que aquilo não se repetiria. Porém, prometer é bem
mais fácil que cumprir. Na verdade, ele nunca procurava problemas, mesmo assim, eles o
encontravam pelo caminho. E pode-se dizer que Carmine costumava caminhar bastante.
– Pois é, você deveria ter economizado seu dinheiro. Sua vida seria mais fácil se tivesse me
deixado apodrecer lá.
– Aposto que realmente acredita nisso. – disse Vincent, olhando para o relógio – Tenho de me
limpar antes de sair para o trabalho. Apenas se lembre de falar com Dia.
– Eu disse que já ouvi. Quantas vezes você pretende me lembrar?
– Até ter certeza de que não vai esquecer.
– Não vou!
– Ótimo! – disse o pai – Até porque se você esquecer nós dois teremos um problema.

Dia Harper dirigia um velho Toyota cinza-escuro, que tinha duas calotas faltando. Ela o comprara
com o dinheiro economizado fazendo bicos. Isso significava que ela estava acostumada a fazer
praticamente qualquer coisa para ganhar algum dinheiro: fazer compras, limpeza, levar mensagens…
Certa vez, por cinquenta dólares, ela chegou a fazer um trabalho de escola para Carmine. Um
vazamento no sistema exaustor fazia que o veículo emitisse muita fumaça. Algo que ela tentava
encobrir espalhando vários aromatizadores pelo carro, todos no formato de pequenas árvores.
Carmine jamais seria visto dentro daquela lata velha mas, para Dia, aquele carro era o Santo Graal.
Quando Carmine chegou à escola, dirigindo seu Mazda preto, Dia já o esperava no
estacionamento, sentada sobre o capô do carro.
– Ainda não entendi. – ela disse, meneando com a cabeça, enquanto ele saía do veículo – Explique
novamente.
Carmine se encostou no próprio carro.
– Não há nada pra explicar. É apenas o que é.
– E o que é?
– Sexo. – ele disse, gargalhando diante da expressão assustada no rosto de Dia. Seus olhos azuis
estavam escondidos sob camadas de maquiagem escura e, do dia anterior para cá, ela acrescentara
algumas mechas roxas e pink nos seus cabelos curtos e loiros. Dia era a própria definição de
excentricidade: usava roupas que não combinavam e trazia no pescoço sua nova e enorme câmera.
Nada naquela mulher obedecia a qualquer padrão, e era justamente isso o que atraía Carmine.
Embora fosse um rapaz popular, não tinha muitas pessoas as quais considerasse amigas. Ele achava
que existiam dois tipos de pessoas na pequena cidade de Durante, na Carolina do Norte, onde
viviam: aquelas que o queriam e as que desejavam estar em seu lugar. Dia era diferente. Ela era uma
pessoa honesta e direta, embora vivesse em um mundo cercado de mentiras. Carmine apreciava
aquilo.
– Mas por que Lisa? – Dia perguntou, recusando-se a deixar o assunto morrer.
Carmine olhou para o estacionamento em direção a um grupo de jovens e deu de ombros quando
localizou Lisa Donovan, uma garota de cabelos loiros e longos, corpo esbelto e bem bronzeado. De
fato, ela se parecia com todas as outras jovens da escola, sem qualquer atributo especial. Não que
alguém em sua casa se importasse muito com a vida dele.
– Digamos que ela seja rápida para tirar a roupa, o que me dá menos trabalho.
– Isso é tão grosseiro – ela concluiu, enrugando o nariz – Você precisa de uma garota decente para
dar um jeito na sua vida.
– Não preciso dar um jeito na minha vida. – completou Carmine. Afinal, pra que se afogar no amor
quando se pode nadar e se divertir na luxúria?
– Mas justo com ela? – Dia insistiu – De todas as mulheres nesta escola você foi escolher justo
essa Lisa-Reclamona?
Carmine deu risada do apelido e pegou uma mecha colorida do cabelo de Dia.
– Parece que hoje você é a pintura do pedaço, Warhol.
– Ei… Eu gostei disso! – ela se animou – Andy Warhol foi um dos melhores.
– Ele era um maluco.
– Talvez, mas, ainda assim, um gênio. – completou, assentindo com a cabeça em direção às garotas
– Algo que a Lisa-Reclamona certamente não é. Não acho que ela consiga formular sequer uma frase
que faça algum sentido. Já tentou manter um diálogo inteligente com ela? É como falar com uma
parede de tijolos.
– Bem, na verdade a gente não perde tempo falando. – explicou – Aliás, até que ela não é ruim
quando está nua, de quatro e com a cabeça enfiada no colchão.
Dia balançou a cabeça em reprovação, enquanto Carmine soltou uma gargalhada. Ele não tinha
nenhum interesse por Lisa nem por qualquer outra mulher. Porém, embora relacionamentos não
passassem por sua cabeça, ele já tinha percebido os benefícios de se manter uma companhia
feminina. Talvez elas não fossem intelectualmente estimulantes, mas com certeza despertavam outras
partes do seu corpo… e com frequência.
Um Audi prateado estacionou ao lado dos dois veículos. Dele saíram Dominic e sua namorada,
Tess, que, aliás, era irmã gêmea de Dia. Ambas, entretanto, não podiam ser mais diferentes.
Os quatro já se conheciam há muito tempo, desde que os meninos se mudaram para a região, ainda
no primário, mas o namoro entre Dominic e Tess era algo recente. Tudo aquilo era estranho para
Carmine. A vida que ele deixara para trás não era a mesma agora que havia retornado à cidade.
Estava difícil para ele se ajustar a todas as mudanças.
– E aí, o que estão fazendo? – Dominic perguntou.
– Estou tentando enfiar na cabeça de Carmine que ele está fazendo merda quando o assunto é a
Lisa – respondeu Dia –, mas não está funcionando.
– Não posso dizer que esteja surpresa. – replicou Tess – Afinal, nenhuma garota que tenha o
mínimo de respeito próprio iria querer algo com alguém como ele.
– Ah, não sou assim tão ruim. Sou rico, popular, tenho senso de humor, boa aparência. Isso tudo
sem mencionar meu enorme… – todos soltaram um urro antes que ele terminasse a frase. Carmine
deu de ombros, julgando que sua descrição de si mesmo fora bem adequada – Além disso, não estou
planejando namorá-la. A única vez em que vocês me verão convidando uma garota pra sair será
quando já tiver fodido com ela e a estiver convidando para sair da minha frente.
– E é justamente por isso que sempre ficará sozinho! – disse Tess – Você só pensa em si mesmo.
– Veja quem fala, a vadia mais fútil do planeta. – ele replicou – É melhor ter cuidado com sua
língua afiada, Tess, ou em algum momento vai acabar se cortando.
– Ei, já chega vocês dois! – quis encerrar Dominic, colocando-se entre os dois – Carmine é livre
pra fazer o que quiser e com quem quiser, então pare de pegar no pé dele. Quanto a você, cara, acho
melhor ter cuidado e não ameaçar minha namorada.
– Eu não a ameacei, apenas a alertei. Ela devia me agradecer por isso.
Revirando os olhos, Tess saiu andando. Dominic foi atrás dela, chamando seu nome. Aquela era
uma rotina diária: Tess ficava brava, saía batendo os pés, e Dominic ia atrás dela como um
cachorrinho.
Carmine não compreendia aquilo.
– Ele é patético.
– Ele está apaixonado.
– Se é isso que o amor faz com você, tô fora! – ele não podia sequer imaginar a ideia de passar
cada momento de sua vida ao lado de uma mesma pessoa, fazendo a mesma merda que já haviam
feito no dia anterior – Isso deve ser muuuuuuito entediante.
– E o que você faz, não é?
Ele olhou para ela sem acreditar no que tinha ouvido.
– Você acha que minha vida é chata? Fique sabendo que eu tenho o que quero, quando quero. Gosto
demais da minha liberdade pra me envolver com alguma vagabunda.
– Você realmente tem que usar essa palavra?
– Que palavra?
Dia olhou para ele, mas não respondeu. Carmine sabia perfeitamente a que palavra Dia se referia,
mas não via razão para que ela se sentisse ofendida, considerando que era apenas aquilo: uma
palavra.
– Ei, o que foi que aconteceu com aquela garota que costumava dizer “o que vem de baixo não me
atinge”, hein?
O sinal tocou a distância, indicando o início das aulas.
– Lá vem a Lisa-Reclamona – alertou Dia, saltando do carro – E, sim, uma garota teria sorte em ter
você, Carmine, mas não assim. Você está perdendo seu tempo com quem não te merece. Você precisa
encontrar alguém que valha a pena.
Dia se afastou antes que ele tivesse a chance de responder.
– Olá, bonitão. – disse Lisa ao se aproximar. Ela se encostou no carro dele, mas ele a afastou.
Detestava que as pessoas tocassem em suas coisas. Entretanto, ela nem notou e foi passando a mão
sobre seu peito, brincando com os botões de sua camisa.
– Você está irresistível hoje, sabia?
– Obrigado, mas sabe o que seria ainda mais irresistível?
– O quê?
– Bocchino. – ele respondeu, tocando com o dedo os lábios da jovem, cobertos com gloss na cor
pink – Essa sua boca deliciosa no meu pau!

Uma dor aguda ricocheteou a cabeça de Carmine, enquanto sentia algo quente escorrer pela lateral
do seu rosto. Cada ínfimo de racionalidade rapidamente deixou seu corpo. Ele estava sangrando.
Mais uma vez.
Aquilo era inaceitável.
Ele conseguia ouvir uma voz nervosa ao fundo, tentando se desculpar de todas as formas, mas as
palavras soavam distantes ao mesmo tempo que o temperamento de Carmine se tornava
perigosamente violento. Ele esmurrou a porta do armário que o atingira antes de partir para a
agressão física, arremessando o outro rapaz contra a parede oposta, depois de socar-lhe o estômago.
Foi então que alguém se interpôs entre os dois. Carmine já se preparava para revidar quando seus
olhos se depararam com os do treinador Woods, fumegantes. Ele estava parado bem diante dele,
bastante irritado.
– Já pra diretoria! – ordenou.
– Eu?! Mas isso é palhaçada!
O treinador Woods olhou para ele:
– Não se atreva a falar desse jeito no meu vestiário! Eu o deixarei mofando no banco!
Como novo zagueiro do time de futebol americano universitário, Carmine em geral contava com
certas regalias, mas, pela aparência do técnico, ele sabia que dessa vez não seria o caso. Ele pegou
uma toalha, segurou-a junto à testa para estancar o sangue e saiu rapidamente do vestiário.
A secretária na recepção mal conseguiu ver quando Carmine entrou pela porta e se atirou numa
poltrona, para aguardar impacientemente sua vez. Agindo de modo casual, a funcionária notificou o
diretor de que havia alguém à sua espera. Em seguida, o diretor Rutledge saiu de sua sala e olhou
para Carmine, convidando-o para entrar. O jovem adentrou o pequeno escritório e logo ocupou a
mesma cadeira de couro craquelado que já estava acostumado a usar, ainda segurando a toalha em
sua cabeça e esticando as pernas.
– O que foi dessa vez? – a mesma pergunta que Rutledge fazia a Carmine semanalmente, desde o
seu primeiro ano.
– Alguém me atingiu com a porta de um armário.
– De modo intencional?
O jovem deu de ombros.
– Pode ter sido de propósito.
O diretor pegou o telefone e discou para um número que já havia memorizado há muito tempo.
Enquanto esperava, Carmine aproveitou para observar o pequeno espaço e reparou em uma moldura
nova sobre o arquivo. Era a filha do diretor, aluna do segundo ano. A jovem era curvilínea e tinha
olhos avelã e cabelos castanhos.
– Sua filha está muito bonita.
– Fique longe dela, Carmine.
Ele riu, mas não teve muito tempo para responder antes que o diretor se concentrasse no diálogo
ao telefone:
– Doutor DeMarco, aqui quem fala é Jack Rutledge… Sim… estou bem, e o senhor, como vai?
Sim, bem, houve um incidente… Ele está machucado… Não, não acho que o outro rapaz esteja… Ele
ainda está no meu escritório… Não, ele ainda não passou pela enfermaria.
O diretor encarou Carmine e perguntou:
– Acha que precisará de pontos?
Carmine deu de ombros, mas o diretor não esperou por sua resposta e continuou ao telefone:
– Sim, nós temos um protocolo para atender alunos feridos… Sim, eu compreendo… Com todo o
respeito, não acho que seja algo sério… Claro, o senhor está certo; não sou médico. – ele fez uma
pausa enquanto seus olhos se arregalaram – Sim, a escola está coberta pelo seguro, mas não acho que
esse tenha sido um caso de negligência de nossa parte.
Carmine deu um sorriso zombeteiro. A maioria das pessoas não sabia que tipo de homem era seu
pai mas, com certeza, ele conseguia aterrorizar todos ao seu redor.
– Eu o enviarei imediatamente. – o diretor desligou, olhando para o jovem de um jeito cauteloso –
Você precisa ir a um hospital para ser examinado. Eu já deveria ter feito isso; não sei no que estava
pensando.
Carmine se levantou:
– É, também não faço ideia.

Carmine entrou direto pela emergência do hospital, passando pelo balcão de atendimento e
seguindo para o consultório do pai, no terceiro andar. Vincent já o esperava com os braços cruzados
sobre o peito. Ao ver o filho, fez um movimento para que se aproximasse e, então, verificou o
ferimento.
– Você precisará de alguns pontos.
– Legal!
Vincent tirou seus óculos e pinçou o alto do nariz, franzindo a testa.
– O que estava pensando?
– Foi ele quem começou.
Seu pai meneou com a cabeça.
– A culpa nunca é sua, não é mesmo? Nem sempre será possível escapar impune, Carmine. Algum
dia acabará se metendo em uma situação sem volta, e então terá de aprender a viver com as
consequências.
Carmine sorriu, zombando do pai:
– E o mesmo se aplica a você.
Vincent o levou até a emergência, e Carmine sentou-se em uma das macas, esperando pela sutura.
Depois de alguns minutos, a porta se abriu e uma jovem loira vestida com um uniforme na cor pink
entrou na sala.
– Ora, ora, ora, veja quem está aqui.
– Jen. – Carmine quase riu ao ouvir seu nome. Para ele, o termo “oportunista” no dicionário
poderia ter a foto dela como sinônimo. Ele mesmo jamais a tocaria, mas seu pai já o havia feito. Ele
os flagrara certa vez. O que ele viu naquele dia foi algo que sempre tentou engolir, mas não
conseguiu.
Três pontos e duas doses surrupiadas de Percocet mais tarde, Carmine saiu pela porta sentindo-se
como se estivesse flutuando no ar. Vincent o cercou na frente do prédio e ordenou:
– Vá direto para casa. Conversaremos quando eu chegar lá.
Numa atitude de escárnio, Carmine ergueu a mão e prestou continência militar para, em seguida,
dirigir-se ao estacionamento. Seu carro estava parado numa vaga para médicos, bem em frente ao
prédio. Ao levar a mão ao bolso para pegar suas chaves, encontrou um pedaço de papel e logo
franziu as sobrancelhas.
– Merda!
No final das contas, ele realmente acabou se esquecendo da lista.
Ele entrou no carro, relutando um pouco antes de seguir pelas ruas da cidade, e passou direto pela
saída que o levaria para casa; em vez disso, pegou a rodovia que o levaria até a casa de Lisa.
Uma vez sabido que estaria de qualquer forma em apuros, pelo menos faria com que a bronca
fosse bem merecida.

Haven cantarolava enquanto trabalhava.


Aquele era um hábito que ela sempre cultivara em sua vida. Fora herdado de sua mãe, que também
costumava cantar musiquinhas infantis e fazer movimentos com as mãos para ela dormir no estábulo,
antes mesmo de saber. Aquilo costumava acalmá-la e tranquilizá-la enquanto fazia o trabalho, pois o
efeito era similar.
As letras das canções já haviam sido esquecidas, mas as melodias continuavam a tocar em sua
cabeça. Aquilo trazia Haven de volta ao passado, um tempo em que sua vida ainda era inocente. Ela
cantarolava e, de repente, o sol parecia brilhar mais forte, deixando o mundo ao seu redor menos
escuro, como ela sabia que podia ser.
Acostumada a ter sua vida controlada até os mínimos detalhes, agora era difícil para ela resolver
as coisas por si mesma. Ela deveria ter pedido mais informações, pois não deveria presumir nada.
Porém, tinha tanto medo de cometer erros que não conseguia expressar suas dúvidas. Ela já havia
irritado o doutor DeMarco uma vez ao lhe fazer uma pergunta indevida. Quantas chances ela ainda
teria antes que ele se enfurecesse?
Então, ela decidiu ir fazendo tudo conforme as tarefas se apresentavam. Naquela tarde, esfregou o
piso de madeira e limpou os banheiros. Ela passou o aspirador e espanou os móveis, mas se manteve
distante de todos os cômodos que tinham sistemas de alarme e cujos limites, obviamente, não
deveriam ser ultrapassados. No armário de suprimentos ela encontrou uma garrafa clara em que
estava escrito “limpeza de janelas,” em letras pretas. Eram as únicas partes sujas da casa, então ela
as limpou até a altura que alcançava.
Por volta das três da tarde, Haven já não tinha mais o que fazer. Ela estava checando a despensa
quando escutou um bipe, e percebeu que a porta da frente se abrira. Logo ouviu passos vindo em sua
direção e seu coração disparou. Em pânico, ela correu para se esconder e esbarrou em Dominic,
quando este entrou na cozinha.
– Ei, pé de valsa, avise-me da próxima vez que quiser dançar.
Ela instintivamente recuou alguns passos.
– Me desculpe.
– Está tudo bem. – ele disse, indo até a geladeira – Está com fome?
Haven olhou pela porta em busca de alguém que o estivesse acompanhando, só então percebendo
que ele estava se dirigindo a ela, que imediatamente começou a gaguejar. Porém, antes mesmo que
pudesse emitir um pensamento coerente, seu estômago roncou.
Dominic deu risada e emendou.
– Acho que devo tomar isso como um sim.
Ele enfiou algumas fatias de presunto e queijo no meio do pão, o colocou em um guardanapo e
entregou o sanduíche a ela. Haven encarou o gesto com surpresa, mas aceitou a oferta mesmo assim,
com cuidado. Ela nem se lembrava da última vez em que havia comido alguma coisa; não tinha
coragem de tocar na comida deles sem autorização.
Haven deu uma pequena mordida no lanche enquanto Dominic limpava a mesa. Aquele momento
lhe pareceu surreal. Ela mal podia acreditar que ele, um dos donos da casa, tivesse servido a
empregada.
Capítulo 3

Haven sentou-se na beirada da cama e colocou as mãos sobre as pernas enquanto mantinha seus
olhos fixos no chão, como de costume. Mesmo assim, ela podia ver a ponta dos sapatos do doutor
DeMarco e um pequeno rastro de sujeira no tapete, que ele próprio havia deixado. Ela sentiu uma
forte necessidade de limpar aquilo, mas se manteve imóvel para evitar ofendê-lo.
Era pouco depois das seis da tarde. Ela havia retornado ao seu quarto depois de comer o
sanduíche, pois sentia-se um tanto deslocada no andar de baixo.
– Você limpou a casa.
– Sim, senhor.
– Mas eu lhe havia dito para descansar.
Ela ficou tensa. Teria agido com desrespeito?
– Eu estava acordada e não sabia o que fazer.
– Aprecio seu esforço. – ele disse – Honestamente, não consigo me lembrar da última vez em que
essas janelas haviam sido esfregadas. Você as limpou, não foi?
– Sim, senhor.
– E usou o produto certo?
– Acho que sim – respondeu –, a garrafa clara que estava no armário.
Ele deu um passou em sua direção. Ela se encolheu quando ele esticou a mão, mas sua reação não
o impediu. Segurando seu queixo, ele a forçou a olhar para ele.
– Não espero perfeição, criança. Certifique-se apenas de que a casa se mantenha limpa, que as
camas estejam feitas e as roupas lavadas, e assim não teremos nenhum problema. O jantar deve ser
servido às sete, todas as noites, a menos que eu lhe dê outras instruções. Entendeu?
– Sim, senhor.
O doutor DeMarco soltou-a e ela olhou para o lado, sentindo-se desconfortável com o contato
visual. Ele se virou para sair do quarto, mas parou na biblioteca ao perceber que ela o estava
seguindo.
– Há algo de que precise?
– Já passa das seis horas da tarde, então acho que devo começar o jantar.
Ele deu um suspiro.
– Amanhã. Descanse essa noite.
Ela ficou de pé na ponta da escada enquanto ele se foi. Descanse essa noite. Ela compreendeu as
palavras, contudo elas pareciam não se fixar em sua mente. Na verdade, elas soavam tão estranhas
quanto uma língua estrangeira.
Afinal, quem são essas pessoas?
1h47
Os números vermelhos e brilhantes no relógio a assustavam. Tudo estava quieto demais. O
silêncio parecia ensurdecedor. Ela nunca ficara sozinha por tanto tempo. Mesmo durante a noite no
estábulo, os animais costumavam lhe fazer companhia enquanto dormia. Geralmente sua mãe estava
por perto, então, quando se viu sozinha naquele quarto, percebeu que nunca pensara que um dia se
afastaria dela. Agora ela não tinha mais ninguém. Estava sozinha.
2h12
Haven ainda pensava na mãe, imaginando o que estaria fazendo e se estaria bem. Será que ela
ficou sabendo o que aconteceu, ou estaria achando que sua filha estava em algum lugar, pedindo
ajuda? Haven podia vê-la de pé na varanda do rancho, olhando para o deserto e esperando um sinal.
Aguardando ser resgatada. Esperando por ela.
3h28
Haven imaginava o que teria acontecido se tivesse encontrado alguém para salvá-la. Será que
ambas estariam juntas em algum lugar? Ela ficou pensando em como seria as duas tendo sua própria
casa, com um jardim e um gatinho branco e fofinho para lhes fazer companhia. Ele se chamaria Bola
de Neve e escalaria a árvore de Natal que teriam na casa, arrancando as luzinhas e espalhando
galhos do pinheiro. Haveria presentes e chocolate quente, e a neve cobriria tudo do lado de fora.
Haven havia visto neve somente por fotos, mas sua mãe falava sobre o inverno algumas vezes; sobre
o sabor dos flocos de neve em sua boca. Haven se perguntava como ela poderia saber, uma vez que
jamais tivera uma vida diferente daquela em que ambas viviam. “Sonho com isso”, a mãe costumava
dizer. “Quando você sonha é capaz de ir a qualquer lugar. Sempre vou em direção à neve.”
4h18
A jovem imaginou sua mãe com a pele vermelha por causa da neve. Com flocos nos cabelos. Ela
sorria e brilhava enquanto rodopiava na neve. Estava mais feliz do que Haven jamais a vira antes,
vivendo uma vida normal… o tipo de vida que ela sempre merecera.
5h03
Suas bochechas estavam marcadas pelas lágrimas e seus olhos queimavam como se estivessem
cheios de grãos de areia. Ela se sentia como se estivesse correndo novamente, sufocando-se enquanto
lutava para respirar, mas, não importava o quanto lutasse, jamais chegaria a algum lugar.
5h46
O som suave da música chegou ao seu quarto, uma interrupção bem-vinda para aquele silêncio
agonizante. A melodia trouxe conforto para Haven. Ela relaxou à medida que a tensão se esvaiu de
seu corpo, mas nem aquilo fora capaz de fazer sua mente parar de pensar. Ela permaneceu acordada,
ouvindo, e olhava para o relógio, desejando algum alívio para sua dor.
6h30
O horário em que todos se levantavam no rancho. Haven saiu da cama depois que a música parou e
secou as lágrimas do rosto. Em silêncio, ela caminhou pela biblioteca, deslizando os dedos sobre as
lombadas dos livros. Ela manteve a luz apagada, mas a iluminação que vinha de fora era suficiente
para que ela enxergasse. Um estranho sentimento de paz tomou conta dela. Pela primeira vez em
muito tempo, talvez em toda sua vida, Haven quase se sentia segura.
Quase.
Ela andou até a janela e olhou para fora, vendo o céu se iluminar à medida que o sol se levantava.
O jardim era verde e exuberante. Havia árvores espalhadas por todo o espaço, mas a floresta mais
densa ficava ainda a algumas centenas de metros. Haven ficava imaginando até onde iria aquela mata
fechada; quão longe ficaria a cidade mais próxima e quanto tempo demoraria para alguém chegar lá a
pé.
De repente, uma leve tosse a alertou para o fato de que já não estava mais sozinha. Carmine
caminhou em direção às escadas com uma atadura na cabeça que não estava ali no dia anterior. De
algum modo, a visão daquele jovem mexeu com Haven.
Seu olhar desviou para ele, que deu um pulo, levando a mão ao peito.
– Jesus! O que está fazendo aí?
– Só olhando. – ela respondeu, apontando para a janela.
– No escuro? Não podia ter acendido a luz?
Ele desviou o olhar e se desculpou.
– Tá tudo bem – ele disse –, apenas tente fazer algum barulho da próxima vez. Você é pior que um
gato perambulando pela casa. Talvez precise de um sininho no pescoço.
Lágrimas indesejadas se formaram em seus olhos. Não permita que ele te veja chorar.
– Vou tentar.
– Quem é você, afinal? O que está fazendo aqui?
– Haven. – ela disse em voz baixa, olhando para ele.
Ele a encarou de um jeito peculiar. Os olhos dele estavam vermelhos como sangue e havia círculos
escuros ao redor deles.
– Heaven? Como “paraíso” em inglês? Não, isso aqui definitivamente não é o paraíso. Mas
entendo por que está confusa, afinal, estou parado diante de você. – ela o encarou enquanto ele
esboçava um sorriso irônico – Estou brincando. Bem, pelo menos de certo modo… Já me disseram
algumas vezes que sou capaz de levar as garotas ao paraíso.
– É Haven, não Heaven. – ela corrigiu, com a voz mais alta. Nada naquele diálogo fazia o menor
sentido para ela – Meu nome é Haven. Significa…
– Eu sei o que significa – sua voz afiada a interrompeu. Ela modificou o tom de voz e se encostou
à janela. O temperamento dele mudava rápido demais para que ela conseguisse ler sua mente –
Então, o que aconteceu com você? Quero dizer, sem ofensas, mas você parece meio zoada. Parece
que esteve no inferno e voltou.
Ela ergueu a mão para tocar em seu rosto ainda arroxeado assim que entendeu ao que ele se
referia.
– Eu caí.
– Você caiu? Se não quiser me dizer o que houve, diga de uma vez. Não precisa inventar qualquer
merda.
– Estou dizendo a verdade. Eu caí! Eu tentei… Bem… eu estava…
– Não tem que me explicar. Não é mesmo da minha conta.
– Mas eu caí mesmo. – ela insistiu, embora ele ainda não parecesse convencido; mas a jovem não
sabia ao certo o que dizer. Ela apontou para a atadura na cabeça dele – E o que aconteceu com você?
Ele tocou o ferimento do mesmo modo como ela fizera e deu de ombros.
– Eu caí.
– É mesmo?
– Não. – ele respondeu dando risadas, desaparecendo pelas escadas.
Ela cerrou as sobrancelhas e reafirmou:
– Mas eu caí.
Quando Carmine tinha dez anos, seu pai trouxe um gato para casa. O pelo do animal estava cheio
de falhas e o rabo fora cortado. O bicho infestou a casa de pulgas e arranhou toda a mobília. Duas
semanas depois o animal desapareceu. Carmine nunca perguntou o que havia acontecido com ele.
Honestamente, ele nunca se importou.
Aos quatorze anos, foram dois cachorros. O primeiro vivia mordiscando o tornozelo de todos.
Tinha uma cor amarelada esquisita e apenas três patas. Ele fazia xixi por toda a casa e acabou
sumindo depois que mordeu e destruiu os sapatos favoritos de Vincent. O outro cão era da raça Pit
Bull. Tinha um olho só e as orelhas deformadas. Seu pai costumava amarrá-lo no jardim. O bicho
ficava latindo a noite toda e não deixava ninguém dormir. Carmine mal conseguia manter os olhos
abertos durante as aulas no dia seguinte; até que, certo dia, chegou em casa e viu que o cachorro
havia desaparecido.
Depois de tudo isso, Carmine gostaria de estar chocado ao ver aquela jovem em sua casa, mas não
estava. Ele imaginava que o pai havia apenas recolhido algum animalzinho perdido pela rua. Mas, ao
mesmo tempo, sabia que havia algo diferente dessa vez, só não conseguia compreender o quê. O pai
estava comprando coisas para aquela jovem. Ele nunca se preocupara em trazer comida para o
último cachorro.
Aquilo foi se instalando em sua mente à medida que descia as escadas, mas ele preferia acreditar
que era pura curiosidade. Porém, em verdade, em apenas um dia aquela garota havia realmente o
tocado de maneira mais profunda. Ele não sabia por que, tampouco o que fazer a esse respeito, mas
não apreciava a sensação que aquilo lhe provocava no estômago. Aquela situação o irritava e o
mantinha acordado durante a noite, como se fosse um pequeno martelo golpeando sua mente de modo
incessante. Merda de consciência.
Ele parou no segundo andar, de frente para o escritório do pai.
– Ei, você quer que eu…?
– Não.
A voz afiada e direta interrompeu o rapaz antes que ele pudesse terminar a frase.
– Você nem me deixou terminar a frase. Eu ia perguntar se…
– Não preciso que você termine. – disse Vincent, sem desviar os olhos de seu notebook, com os
óculos de leitura na ponta do nariz – Não quero que faça nada por mim.
– Mas e sobre a…?
– Não se preocupe com isso. – disse o pai, rindo de um jeito bem-humorado – Não que você
realmente se incomode. Não se importa com nada que não o beneficie diretamente.
– Isso não é verdade. Eu me importo…
– Não, não se importa.
– Caramba, será que posso terminar pelo menos uma frase? Estou tentando ajudar.
– Não preciso de sua ajuda. – Vincent respondeu, meneando com a cabeça – Eu lhe pedi que
fizesse uma coisa, uma única coisa, mas você não foi capaz. Aprendi a lição, filho. Agora sei que não
posso mesmo contar com você.
Droga. A lista.
– Eu esqueci – replicou –, mas irei compensá-lo.
– Tarde demais. Já pedi a outra pessoa que cuidasse disso.
– Quem?
– Jen.
Ele fez uma careta antes de perguntar:
– E por que ela?
– Bem, ela sabe o tipo de coisas que uma garota precisa, já que também é uma garota.
Com algum esforço, Carmine evitou mencionar a idade de Jen, mas não podia evitar compartilhar
parte de sua opinião.
– Bem, se com isso você se refere a contraceptivos e doses altas de penicilina, então eu concordo.
Vincent o olhou com reprovação.
– Acho que não está em posição de julgar, considerando sua atual companhia.
– É verdade, mas não sou exatamente um modelo que deveria ser seguido, não é? Gostaria que eu
comprasse as coisas?
– De jeito nenhum. – respondeu – Chegaria em casa com calcinhas fio-dental e coisas do tipo.
– E acha que a Jen não fará o mesmo? Ele sequer usa roupa de baixo.
Vincent o encarou com firmeza.
– Não está atrasado para a escola?
– Que se dane.
Ele se virou para sair, mas seu pai o chamou:
– Se realmente deseja compensar sua atitude, há algo que pode fazer.
Carmine o olhou fixamente:
– O quê?
– Mantenha-se longe de encrencas.
– Vou tentar, mas acredito que me meter em confusões faça parte do meu DNA, pai.

Uma hora e meia atrasado, Carmine entrou na sala, interrompendo a aula de História de sua
professora, a senhora Anderson, e no meio de uma apresentação. Ela sorriu e disse:
– Ah, senhor DeMarco, chegou bem na hora de nos presentear com sua apresentação sobre a
Batalha de Gettysburg.
Ele só resmungou. Havia esquecido totalmente que teria de fazer uma apresentação oral naquele
dia. Ela então fez um movimento com a mão, apontando para a frente da sala e, sem muita disposição,
Carmine caminhou até a frente enquanto ela se sentava à mesa.
– Pode começar quando quiser.
– Bem, a batalha aconteceu na Pensilvânia. Por volta dos anos 1 800.
A senhora Anderson o corrigiu:
– 1 863.
– É, exatamente. O General Lee liderou seu exército a partir do Sul e deparou com as tropas do
Norte em Gettysburg. Algumas pessoas morreram em ambos os lados, centenas de milhares.
– Dezenas de milhares.
– É, por aí… – disse – O Sul perdeu e o Norte ganhou. Então, veio Abraham Lincoln e fez a
Proclamação da Emancipação.
– O Discurso de Gettysburg. – respondeu a senhora Anderson – A Proclamação da Emancipação
ocorreu seis meses antes da batalha de Gettysburg.
Ele respirou fundo e perguntou:
– Afinal, quem está apresentando o trabalho aqui?
Ela acenou com a mão.
– Prossiga.
– Como estava dizendo, o Norte venceu. Os escravos foram libertados. Viva… Viva… Fim.
Ele se inclinou para frente, como se estivesse agradecendo pelos aplausos num teatro e todos
deram risada. A professora Anderson balançou negativamente a cabeça e perguntou:
– Você sequer leu a matéria?
– Claro que li!
– E quem foi o líder no Norte?
– Lincoln.
– Não, ele era o presidente.
– Sim, o que significa que ele era o bosta do líder de todos.
A senhora Anderson ficou furiosa:
– O senhor não deve usar esse tipo de linguagem na minha sala!
– Caramba, quase me enganei. – respondeu de modo sarcástico – Achei que já tivesse usado.
Todos os alunos da sala prenderam a respiração enquanto a professora se colocou de pé. Mas
antes mesmo que ela abrisse a boca, Carmine caminhou em direção à porta, sussurrando: “Já para a
sala do diretor”, imitando as palavras que simultaneamente saíam da boca da senhora Anderson.
Sem pressa para reencontrar o diretor da escola, Carmine saiu pela porta lateral e foi direto para o
estacionamento.

A casa estava em silêncio quando Carmine chegou. Ele foi para o terceiro andar, mas parou no
topo da escada. Na biblioteca, praticamente no mesmo lugar em que a viu pela manhã, estava Haven.
Ela olhava para o jardim com uma expressão vazia, com os braços cruzados.
Ele pigarreou para atrair sua atenção. Ela percebeu a presença, mas não olhou para ele. Depois de
um instante, ele caminhou até a jovem e parou ao lado dela. Seu corpo tensionou-se e ela prendeu a
respiração quando seus braços se tocaram. Aquele leve contato físico sequer teria sido percebido
por ele não fosse por sua reação.
– Você chegou a sair daí em algum momento?
– Sim.
Ele esperou que ela continuasse, mas nenhuma outra palavra saiu de seus lábios. Foi então que ele
percebeu que ela estava usando as roupas dele e se lembrou de ter visto seu pai as retirando de seu
quarto.
– Ei, você está usando minhas roupas!
Carmine não pensou que aquilo fosse possível, mas a jovem conseguiu ficar ainda mais nervosa.
– Posso tirá-las se quiser.
Ele suprimiu o riso.
– Você está se oferecendo para tirar suas roupas pra mim?
– São suas essas roupas. Eu não tenho nenhuma.
De repente ela o fez sentir-se culpado. Ela teria o que usar se ele tivesse atendido ao pedido do
pai.
– O que aconteceu com as que você estava usando quando chegou aqui?
– Elas tinham manchas de sangue, então o doutor DeMarco se livrou delas.
– Sangue de quem?
– Meu.
Ele inclinou a cabeça e a encarou. Havia algo estranho na maneira como ela se mantinha imóvel e,
ao mesmo tempo, parecia tremer. Aquilo o deixou desconfortável.
– Fique com as roupas. – ele disse, afastando-se dela para clarear os pensamentos. Ele não
gostava de se sentir desconfortável em sua própria casa – Vou tirar um cochilo, Heaven.
– Haven – ela o corrigiu.
– Eu sei. – respondeu – É que gosto mais de Heaven.
Ela se virou para ele. Seus olhos se encontraram pela primeira vez desde que ele havia chegado.
– Eu também.

Apesar de Carmine ser bastante ciumento e protetor em relação a seus pertences, ele não tinha
nenhum cuidado com o que ele mesmo fazia com suas coisas. Seu quarto era entulhado; tudo ficava
jogado no chão: sapatos estavam misturados a pilhas de roupas sujas, enquanto o cesto ficava vazio
no canto do quarto. Sua escrivaninha estava coberta de papéis e livros, e em algum lugar havia um
notebook perdido.
Aquilo jamais o incomodara. Estava acostumado com a ideia de que nada em sua vida fosse
organizado e bem cuidado. O jovem se sentia protegido em meio ao caos que o rodeava; cercado
pelas coisas que só ele controlava. Era isso que ele mais desejava: controle sobre a própria vida;
algo de que ele nunca tivera a oportunidade de usufruir.
Uma sucessão de pancadas interrompeu o cochilo de Carmine. Ele caminhou até a porta e, ao abri-
la, deu de cara com o pai. Vincent entrou no quarto, tropeçando nas coisas que estavam pelo chão.
Resmungando, ele simplesmente as chutava para longe do seu caminho.
– Onde estão suas chaves?
Carmine esfregou os olhos e entrou na defensiva com a ideia de alguém invadir seu espaço
pessoal.
– O quê?
– As chaves do seu carro. – Vincent disse, começando a procurar sobre a escrivaninha,
empurrando furiosamente a bagunça e atirando no chão metade do que estava lá.
– Pra que diabos você quer a minha chave?
– Apenas me entregue as chaves! – Vincent abriu a primeira gaveta e pegou de lá a carteira de
Carmine. De dentro dela, retirou o cartão de crédito American Express e o enfiou em seu próprio
bolso, antes de largar a carteira e voltar a procurar as chaves.
Carmine sentiu o sangue ferver:
– O que acha que está fazendo?!
– Tentei ser seu amigo. – Vincent respondeu – Deixei muita coisa passar, acreditando, esperando
que fosse apenas uma fase, mas você só piorou. Então, eu o enviei para longe. Depois do que fez no
ano passado, por Deus, eu tinha a esperança de que tivesse compreendido a mensagem. Mas isso não
funcionou. Você voltou e começou o ciclo novamente. As brigas, as respostas malcriadas, os revides
e o desrespeito… Não posso aceitar mais isso.
– Mas o que foi que eu fiz dessa vez?
– Seria melhor se perguntasse o que não fez. – respondeu, fechando com força a primeira gaveta e
tentando abrir a de baixo. Ela não se movia.
– O que tem aí dentro?
Carmine não respondeu e continuou olhando enquanto seu pai a forçava.
– Onde está a chave dessa gaveta, Carmine?
– Não vou lhe entregar. Você não vai pegar nenhuma das minhas chaves.
Vincent o encarou e disse:
– Eu vou pegar as suas chaves. Você está de castigo. Não irá a lugar nenhum, exceto para a escola.
E ficará lá, sem tentar escapar. Fará suas lições e trabalhos de casa, prestará atenção ao que diz e
manterá suas mãos longe das pessoas. E, quando o último sinal tocar, voltará direto para casa. Nada
além disso.
– Eu não posso – ele disse –, tenho que treinar futebol.
– Você não me diz o que pode ou não fazer. Eu lhe digo.
Carmine cerrou os punhos.
– Então, agora você vai me impedir de jogar futebol?
– Foi você quem provocou isso.
Carmine estreitou os olhos enquanto seu pai deixava a escrivaninha de lado e se dirigia à cômoda.
– Só estou vivendo a vida que você me deu!
– Não, você não pode me culpar por isso. – disse Vincent, abrindo a gaveta de cima e retirando um
molho de chaves de dentro, diante do olhar incrédulo de Carmine – Seu irmão se tornou uma pessoa
normal.
– Meu irmão não passou pelo que eu passei! Mas sabe de uma coisa? Eu não me importo. Vá em
frente e tire de mim o futebol. Faça isso. Eu já perdi tudo na vida por sua causa!
O tempo pareceu congelar por um momento enquanto aquelas palavras pairavam no ar entre os
dois. Aquilo fora um golpe baixo, e Carmine quase se sentiu culpado ao perceber a dor nos olhos do
pai.
– Você sempre irá me culpar, não é?
– Pode ter certeza disso. – respondeu Carmine – Devolva minhas chaves.
– Não.
O rapaz perdeu completamente a sensatez quando seu pai deu as costas para ele.
– Se não me devolver as chaves, chamarei a polícia.
Vincent se virou tão rápido que até assustou Carmine.
– Você não o faria.
– Faria sim.
– Arriscaria tudo por causa de um carro?
– Sim. – ele respondeu – E você faria o mesmo se isso fosse tudo o que lhe restasse.
Aquela centelha de mágoa rapidamente reacendeu, mas logo se dissipou. Vincent atirou as chaves
contra o peito de Carmine.
– Muito bem, fique com o carro e vá jogar seu precioso futebol, mas o cartão de crédito fica
comigo.
– Não me importa. Não preciso do seu dinheiro.
Vincent sorriu secamente.
– Veremos.

Havia uma dezena de sacolas cheias até a boca espalhadas pelo chão, como manchas coloridas
sobre o carpete velho e sem graça. O doutor DeMarco as havia trazido, dizendo que eram
necessárias, mas Haven passara a vida toda sem nunca ter acesso àquelas coisas.
– Tudo isso é pra mim?
– Sim. – respondeu DeMarco, de pé à porta do quarto, equilibrando-se sobre os calcanhares. Ele
estava enraivecido, embora não soubesse o porquê – Se perceber que algo está faltando, me avise.
Haven murmurou um agradecimento no momento em que ele saiu, deixando-a sozinha com seus
novos pertences. Ela desembrulhou tudo, pendurou as roupas no armário e levou os itens de toalete
para o banheiro. Acostumada a ter somente uma barra de sabão para se limpar, ela não fazia ideia de
para que serviam sais de banho ou pedras-pomes. Encontrou uma escova e, meio atrapalhada,
passou-a pelos cabelos tentando desfazer os nós.
Ela vestiu roupas novas, retirando o que pertencia a Carmine, e então desceu para preparar o
jantar. Cozinhar não era sua principal tarefa em Blackburn. Isso normalmente cabia à mãe, mas
Haven costumava ajudá-la sempre que podia.
Segundo sua mãe, cozinhar era uma arte. Receitas e instruções eram desnecessárias, pois as
melhores refeições eram feitas com a intuição e o coração. Ela sempre colocara tudo de si nos pratos
que preparava, mesmo que não lhe fosse permitido experimentá-los. Aquela era uma característica
que Haven herdara, e que se mostraria bem útil no momento em que entrasse na cozinha dos
DeMarco.
O doutor DeMarco entrou no momento em que ela terminou de preparar o espaguete. Nervosa, ela
se afastou das panelas, aguardando sua reação. Ele olhou para as panelas antes de balançar a cabeça,
em aprovação.
– Você nos acompanha no jantar?
De modo instintivo ela fez um sinal negativo com a cabeça.
– Bem, você não precisa se não quiser, mas insisto que se alimente todos os dias. Não permitirei
que morra de fome debaixo do meu teto.
Mesmo algo tão generoso como oferecer-lhe comida soava como uma ordem vindo de sua boca.
Capítulo 4

Viver em Blackburn não fora fácil para Haven. Lá o trabalho era abundante e a comida escassa,
mas ela sempre encontrou um jeito de sobreviver. Era uma vida horrível, mas aquela fora sua
realidade; a única que conhecera.
A vida em Durante, em contrapartida, onde o ritmo era lento e nem sempre havia o que fazer,
deixava-a intimidada.
Já no terceiro dia, contudo, ela se acostumou à rotina. Limpava a casa durante o dia e cozinhava à
noite, antes de se esconder até que todos já estivessem deitados. Só então ela descia e comia alguma
coisa na sala de jantar, sempre no escuro. Em seguida voltava para o quarto. Deitava-se e a música
logo começava a tocar. Não sabia de onde vinha, mas a melodia a ajudava a dormir. Então, ficava no
quarto até que todos já tivessem saído pela manhã.
Embora facilitassem a vida, muitas coisas ainda lhe pareciam estranhas. O sabor de menta na pasta
de dentes, a água quente para tomar banho e o uso de talheres nas refeições eram luxos aos quais não
estava acostumada, e cada um deles deixava-a um pouquinho assustada. Ela jamais tivera acesso
àquilo que parecia normal para outras pessoas. Até mesmo os sapatos machucavam seus pés. Ela não
gostava deles.

Era pouco depois das três da tarde, no terceiro dia, quando ela se deparou novamente com
Dominic. Ele entrou na casa e soltou sua mochila no chão antes de se sentar na sala de estar. Haven
considerou a ideia de correr para o andar cima, mas na mesma hora se sentiu culpada. Afinal, ele
fora bastante gentil com ela.
Ela entrou na sala de estar, nervosa, cutucando as próprias unhas e perguntou:
– Precisa de alguma coisa?
Dominic fez um sinal negativo com a cabeça.
– Não, está tudo bem.
– Tem certeza? Deve haver algo que eu possa fazer por você.
– Bem… Até gostaria de comer alguma coisa, eu acho.
Ela sorriu e perguntou:
– Comer o quê?
– Surpreenda-me!
Haven correu até a cozinha e preparou um sanduíche de pasta de amendoim com geleia de uva,
colocou-o em um guardanapo e levou para ele. Dominic pegou-o de suas mãos.
– Você não precisava ter feito isso, é sério.
Ela evitou o olhar.
– Mas você me preparou um…
Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, ela retornou à cozinha para limpar o balcão. Um
minuto depois, enquanto se preparava para descongelar o frango para o jantar, viu Dominic
arrastando seu cesto de roupas para baixo. Ela parou no hall bem na frente dele.
– Posso fazer isso pra você?
Ele riu:
– Está se oferecendo para lavar minhas roupas?
– Sim.
Dominic hesitou, mas deixou que Haven terminasse de arrastar o cesto até a lavanderia. Ele a
seguiu, parando à porta.
– Ouça, Pé de Valsa, não sei quem você é…
Ela se apresentou:
– Sou Haven.
– Haven, a questão é que prefiro ficar longe dos negócios do meu pai. Isso me dá a chance de
negar conhecimento de maneira plausível, o que significa que não faço ideia do que está acontecendo
– ele gesticulou com a mão e completou – nesta casa. Do modo como vejo as coisas, já que está
morando aqui, devo ser hospitaleiro. Portanto, se eu lhe faço um sanduíche isso não significa que
você tenha de fazer outro pra mim. Foi só um sanduíche.
Ela não disse nada, mas ele estava equivocado. Aquilo não fora apenas um sanduíche. De fato,
aquele gesto significou muito mais para ela.
– E aprecio sua oferta de cuidar das minhas roupas. Obrigada, Haven.
Ele saiu e ela sussurrou para si mesma.
– Não, sou eu que tenho que agradecer a você.

Mais uma vez o jantar estava pronto às 18h45, e Haven o mantinha quente enquanto dobrava as
roupas de Dominic. A porta da frente se abriu quando estava na lavanderia, então ela saiu para
cumprimentar o doutor DeMarco.
Na verdade, não tinha certeza se deveria fazê-lo.
– O cheiro está delicioso! – ele disse.
– Obrigada, senhor. O jantar está pronto.
– Ótimo, Carmine deve chegar do futebol em poucos minutos.
Seu coração disparou ao ouvir o nome de Carmine. Ela não o havia visto desde seu último
encontro na biblioteca, e não tinha certeza de que gostaria de vê-lo tão cedo.
Ela preparou a mesa, colocando as travessas no centro para que eles se servissem, antes de pegar
o cesto de roupas de Dominic e levar para cima. Acabava de chegar ao segundo andar, quando a
porta da frente se abriu e ela ouviu nitidamente a voz de Carmine:
– Cazzo, mas que porra é essa que está cheirando tão bem?
Ela sorriu para si mesma e terminou de carregar o cesto, colocando-o na porta do quarto de
Dominic e antes de se esconder no seu.
Na noite seguinte, doutor DeMarco chegou em casa quando Haven ainda procurava algo para fazer
no jantar.
– Ah, esqueci de lhe dizer. Essa é sua noite de folga.
Ela fechou a porta da despensa.
– Certo.
– É sexta-feira. Os rapazes estarão no jogo de futebol, e eu terei uma viagem de negócios neste
final de semana.
Ela ficou confusa. Ele estava partindo?
– Tem certeza de que não quer que eu lhe prepare nada antes de sair?
– Tenho sim. – ele respondeu, estendendo o braço e colocando a mão sobre o ombro da jovem,
mesmo com ela se encolhendo – Venha comigo. Quero lhe mostrar uma coisa.
Ela o seguiu até a sala de estar, onde ele pegou o telefone sem fio.
– Instalei um telefone, caso você precise de qualquer coisa enquanto eu estiver fora. Veja, se
discar o número 1 cairá direto no meu celular. Caso eu não responda e seja uma emergência, disque
2, é o telefone de Dominic.
– O número 3 é de Carmine? – as palavras saíram de sua boca antes que tivesse tempo de pensar.
– Sim, mas seja qual for a emergência, com certeza não será pior do que os problemas que o meu
filho caçula poderia lhe causar. Então, se precisar de algo, ligue para um dos dois primeiros números
da lista.
– Certo. – ela disse, ainda olhando para o telefone – E como faço isso?
Soltando um suspiro, ele deu algumas instruções rápidas sobre como fazer uma ligação. Vários
pensamentos inundaram sua cabeça enquanto ela o ouvia, mas o doutor DeMarco interrompeu seus
devaneios:
– Saberei sempre que for usado, portanto, não tenha nenhuma ideia brilhante, como ligar para 1-9-
0.
Ela franziu a testa.
– Quem é 1-9-0?
Ele a encarou como se achasse que ela estivesse brincando.
– Digamos apenas que ligar para 1-9-0 é a última coisa que você gostaria de fazer, criança.
O doutor DeMarco saiu, mas aquelas palavras ficaram na cabeça de Haven enquanto perambulava
pela casa vazia. Ela acabou retornando à sala de estar depois de alguns minutos, parando diante do
telefone.
Ela o apanhou, apertou a tecla on, como DeMarco lhe havia instruído. Teclou o número 1 e então o
9. A partir daí seu dedo ficou parado, prestes a apertar o 0. Ela ficou petrificada e seu coração
disparou, antes que decidisse por pressionar a tecla off e desligar o aparelho.
Ela repetiria a mesma atitude outras três vezes antes de colocar o telefone definitivamente na base
e sair da sala, assustada demais para concluir a discagem.

O sol já estava se pondo quando Haven foi até a biblioteca. Encontrou alguns papéis e cortou
alguns pedaços, buscando em seguida por um lápis antes de correr para seu quarto. Ela se deitou na
cama e começou a desenhar. Logo o rosto de sua mãe surgiu no papel. Sem nenhuma foto, Haven tinha
medo de que pudesse esquecer suas feições; temia que sua memória se dissipasse com o tempo.
Desenhar era um dom natural de Haven. Quando ainda era pequena, por volta dos sete anos, sua
primeira patroa, Mônica, lhe deu papel e lápis coloridos. Aquela fora a primeira vez que ela ganhara
alguma coisa, e também a última desde então, mas Haven usou o presente até que o último pedacinho
de lápis desaparecesse.
Conforme cresceu, costumava surrupiar algumas coisas do rancho, mas depois destruía todas as
evidências para que ninguém descobrisse. Em geral ela dobrava os desenhos e os enfiava no bolso,
para então queimá-los na primeira oportunidade.
Haven perdeu a noção do tempo enquanto submergiu na tarefa de reproduzir o rosto de sua mãe, e
já era quase meia-noite quando o som de música atraiu sua atenção. Era mais cedo que nas noites
anteriores. Curiosa, ela deixou o desenho de lado e foi até a porta para descobrir de onde vinha.
Carmine estava sentado na biblioteca, segurando um velho violão. A escuridão impedia que Haven
visse seu rosto, mas o luar iluminava seus dedos sobre as cordas. Seu corpo foi sendo lentamente
tomado pela melodia e seus braços ficaram arrepiados. Sentiu uma palpitação no estômago, seus
membros ficaram trêmulos e o calor se espalhou por todo seu corpo. Ela fechou os olhos, deliciando-
se com aquela sensação, até que a música parou.
Ela voltou a abrir os olhos e, dessa vez, pôde ver o rosto dele, ainda parcialmente encoberto pela
sombra. Ele enrugou a testa, olhando para ela com uma pergunta nos olhos, mas Haven não tinha
nenhuma resposta a oferecer.
A jovem se virou e correu para seu quarto, fechando a porta e colocando-se de costas, até que
música recomeçasse.

Na manhã seguinte, Carmine acordou mais cedo que o normal e pegou uma tigela de cereais. Seus
passos podiam ser ouvidos da sala de estar. Dominic estava sentado no sofá lendo uma revista de
esportes e Haven estava ao seu lado. Todos em silêncio.
Antes que Carmine pudesse dizer uma única palavra, Haven deu um pulo e saiu correndo. Ele
ficou olhando para o assento do sofá enquanto o couro retomava sua forma original.
– Caramba, ela age como se eu tivesse alguma doença contagiosa e não devesse me aproximar.
Dominic concordou com a cabeça:
– É, eu reparei.
– Não fiz nada pra ela. – ele fez uma pausa. – Pelo menos acho que não fiz nada.
– Você não percebe o quanto parece ofensivo às vezes. – disse Dominic – É o jeito como olha para
as pessoas.
Carmine deu de ombros. Não havia nada que pudesse fazer em relação a isso.
– Não importa. Mas existe algo errado com ela.
– Você por acaso já tentou perguntar a ela o que seria?
– Nem tive a chance. Como já disse, ela sempre sai correndo de mim.
– Bem, talvez se você se interessasse um pouco mais ela não agisse assim com você.
– Foi isso o que você fez? Demonstrou interesse? – perguntou Carmine – Não acho que a Tess
gostaria de saber disso.
Dominic deu-lhe um cutucão, espalhando um pouco do cereal sobre a roupa do irmão.
– Eu simplesmente fui simpático com ela, cara. Talvez devesse tentar algum dia.
Carmine se livrou de alguns cereais que caíram sobre ele e olhou para a mancha de leite na calça.
– Otário.
Vincent DeMarco era um homem bem conhecido. Para as pessoas da cidade de Durante, ele era um
médico talentoso e um pai dedicado; para as mulheres, era um ricaço disponível e, portanto,
constantemente assediado. De fato, embora já tivesse acumulado alguns cabelos grisalhos, não
aparentava a idade que tinha: quarenta anos. Era muito parecido com seu pai, Antonio DeMarco, que
morrera aos cinquenta aparentando trinta e cinco.
A genética era algo peculiar, segundo Vincent.
Embora fosse famoso e respeitado, poucas pessoas de fato conheciam o homem por trás daquela
máscara. Era como se ele vivesse duas vidas diferentes, ambas reais, porém, antagônicas. Ele
gostava de acreditar que era o homem de família que os outros enxergavam mas, ao mesmo tempo,
estava profundamente comprometido com outro tipo de família.
Esta não era ligada por laços genéticos, mas forjada por sangue derramado e juramentos
perversos. O governo norte-americano chamava-a de LCN, ou La Cosa Nostra, que, por sua vez,
também era conhecida como La famiglia,1 Borgata2, Outfit3 e Syndicate4. No final, todas essas
expressões queriam dizer a mesma coisa: a máfia.
Ele se afastara um pouco daquela vida há alguns anos, depois de se mudar de Chicago, o olho do
furacão. Porém, uma vez tendo feito parte da famiglia, não havia como abandoná-la. Ele era mantido
como um consigliere5 extraoficial para o Chefe, Salvatore Capozzi. O trabalho de Vincent era atuar
como um intermediário nas negociações, oferecer conselhos quando solicitado e atender às
convocações. Ele o fazia de modo obediente, cuidando do que quer que precisasse ser resolvido.
Todavia, o fato de ser bom no que fazia não significava que gostasse de suas atribuições.
Vincent se sentou no esfumaçado gabinete da mansão em Lincoln Park e segurava um copo de
uísque enquanto ouvia um bando de homens debater sobre negócios. Havia vinte participantes no
local, mas Vincent não sabia por que metade deles estava ali. Eles não tinham direito de dizer o que
pensavam e alguns eram tão novos que sequer haviam efetivamente realizado algum trabalho sujo
para a organização. Não havia razão para confiar neles, para revelar segredos na sua frente. Aqueles
sujeitos ainda não tinham sangue nas mãos.
Não que ele quisesse que eles fossem assassinos. Ele invejava a consciência limpa daquelas
pessoas e gostaria de poder avisar a todos que se afastassem enquanto havia tempo, pois, um dia
seria tarde demais… E isso provavelmente significaria uma longa sentença na prisão. Ou, quem sabe,
um buraco de bala na cabeça. Vincent ainda não havia decidido qual dos destinos era mais nefasto.
Mas não havia como alertar ninguém. Ele fizera um juramento, e nele a organização vinha antes de
qualquer coisa; se a máfia queria contratar esses novatos e inexperientes, Vincent se manteria em
silêncio. Ele começara cedo, tornando-se um dos mais jovens ricaços da história. Em geral, os
integrantes tinham de lutar por décadas para provar seu valor; a maioria nem sobrevivia tempo
suficiente para prosperar financeiramente. Mas esse não foi o caso de Vincent. Ele estava no lugar
certo quando seu pai ainda estava no controle.
Vincent, entretanto, não era o mais jovem a fazer negócios com a máfia. Crianças eram recrutadas
ainda no colegial, transformadas em “soldados vingadores”, prontos para resolver os assuntos da
famiglia. Os mais jovens corriam todo o risco, enquanto os membros do alto escalão colhiam os
frutos.
Dinheiro sujo de sangue. Centenas haviam morrido para pagar pela mansão dentro da qual estavam
confortavelmente reunidos.
– Não podemos tolerar esse tipo de coisa. Eles são selvagens.
Giovanni estava falando, mas seu forte sotaque obrigava Vincent a se esforçar para compreendê-
lo. Siciliano de nascimento, imigrara para a América uma década antes e, desde então, subira na
hierarquia para se tornar o capo6 mais produtivo. Alguns de seus subordinados estavam presentes e
sentados ao lado dele. Normalmente, Vincent tinha dificuldades para se lembrar dos nomes dos
soldati,7 mas havia um em particular que ele conhecia bem: Nunzio.
Ele já estava na organização havia muitos anos. O apelido dele era Squint, pelo modo como
mantinha seus olhos semifechados, como se estivesse sempre de soslaio; seu rosto ostentava uma
expressão ameaçadora. Parecia sempre bêbado. Os cabelos castanhos eram apenas uma fina pelugem
na cabeça; os olhos tinham a cor de terra ressecada. O irmão do Chefe o havia adotado quando ainda
era bebê, por isso, Salvatore tinha um carinho todo especial pelo sujeito.
Os homens debatiam enquanto Vincent girava o copo de uísque nas mãos, sem a menor intenção de
bebê-lo. Ele se manteve em silêncio até que a voz inconfundível de Chefe se dirigiu a ele:
– O que você acha, Vincent?
Acho que gostaria de voltar pra casa.
– Bem, eu acho que se agirmos de modo apressado o tiro acabará saindo pela culatra. Não gosto
do modo como os russos conduzem seus negócios, mas nunca machucaram nenhum de nós.
– Mas irão! – alertou Giovanni.
– Se o fizerem, cuidaremos disso da maneira adequada – respondeu –, mas, até que isso aconteça,
quem somos nós para policiar outro grupo?
Vincent olhou para o Chefe. Ele estava sentado em sua cadeira favorita, bem na ponta da mesa. Já
com quase setenta anos, parecia um balão de tão gordo e sua voz era fina, como se seu corpo
estivesse sempre repleto de gás hélio. Ele era o subchefe na época em que o pai de Vincent
comandava as coisas e o sucedeu depois de sua morte. Antonio o havia apelidado de Salamandra.
“Se assustar uma salamandra ela se livra da cauda e foge”, ele costumava dizer. “Elas não ligam,
pois em duas semanas estarão novinhas em folha.”
Sal refletiu um pouco sobre as palavras de Vincent.
– Você está certo. Talvez eles se matem sozinhos com sua própria estupidez.
Squint soltou um riso seco, mas tentou encobri-lo com uma tosse forçada ao perceber que todos se
voltaram para ele. O sujeito ao lado dele parecia incomodado pela reação. Era outro soldato, cujo
nome escapou à memória de Vincent. Ele achava que poderia ser Johnny; um entre tantos outros
Johnnys que perambulavam pelas ruas. Sua aparência certamente combinava com o nome:
indistinguível, genérico. Mais um fulano na multidão que poderia ser facilmente substituído e do qual
ninguém sentiria falta. Era apenas mais uma cauda de salamandra que poderia ser facilmente deixada
para trás, e Sal não teria o menor problema em fazê-lo.
Quando Sal mandou todos saírem com um aceno de mão, Vincent foi o primeiro a se levantar. Ele
deixou o uísque sobre a mesa e seguiu em direção à porta, mas Giovanni o interrompeu.
– Acho que estamos cometendo um grande erro, Doutor. Não será bom se os ignorarmos agora.
– Nós não os estamos ignorando – Vincent respondeu –, só não os estamos instigando a lutar. A
última coisa de que precisamos é violência em nossas ruas por coisas que nada têm a ver conosco.
Vincent seguia em direção ao seu carro alugado, quando a voz de Giovanni foi ouvida novamente:
– Só porque ainda não sabemos de nada não significa que eles não tenham invadido nosso
território. Haverá uma guerra.
A família.
Distrito.
Organização.
Sindicato.
Conselheiro.
Chefe.
Gângsters.
Capítulo 5

Carmine retirou a última camisa limpa do cabide em seu armário. As pequenas pilhas de roupas
para lavar haviam se transformado em montanhas. Cada peça de roupa que possuía estava suja e
atirada no chão. Em geral, as coisas não chegariam a esse ponto, pois já teria levado tudo para a
lavanderia local, mas agora ele tinha um problema: estava sem dinheiro.
Ele então caminhou pela biblioteca até o outro lado e tentou abrir a porta de Dominic, mas ficou
furioso ao perceber que estava trancada. Era possível escutar vozes lá de dentro, então resolver bater
à porta.
Dominic abriu e perguntou:
– O que foi?
Carmine viu Tess deitada na cama usando uma das camisas de Dominic, e se contraiu diante
daquela imagem, percebendo o que havia interrompido.
– Preciso de algum dinheiro, preciso levar as roupas na lavanderia. Estão todas sujas.
– Você quer dinheiro?
– Sim, um empréstimo.
– Você tem um jeito bem engraçado de pedir, cara – respondeu Dominic –, mas como pretende me
pagar se não tem um emprego?
Carmine ergueu os ombros e respondeu:
– Eu darei um jeito nisso.
– Ah, com toda certeza você dará um jeito – disse Dominic –, mas de cuidar de suas próprias
roupas.
Ao dizer essas palavras, Dominic fechou a porta na cara do irmão. Tess riu lá de dentro e Carmine
esmurrou as paredes antes de retornar ao próprio quarto. Ele então pegou o telefone e ligou para a
casa de Dia, soltando um suspiro de alívio quando ela atendeu:
– O que você quer, Carmine?
– Mas o que te faz pensar que quero alguma coisa?
– Eu te conheço – ela respondeu –, e você nunca liga pra bater papo.
Ele suspirou novamente.
– Preciso levar as roupas na lavanderia.
– E quer que eu lave suas roupas?
– Sim, não sei a quem mais poderia pedir.
– Bem, quanto dinheiro você tem?
– Nenhum.
Tudo o que ele escutou do outro lado da linha foi uma gargalhada antes de Dia desligar na sua
cara. Irritado, pegou toda a montanha de roupas e enfiou no cesto antes de arrastá-lo pelas escadas.
Assim que chegou à lavanderia ouviu alguém cantarolando uma melodia suave e doce, como uma
canção de ninar. Haven estava diante da secadora, dobrando roupas. Porém, assim que o viu à porta,
ficou apreensiva e se calou. Seus olhos se desviaram de Carmine e se concentraram no cesto. Este
estava tão cheio que havia roupas penduradas por todos os lados. Ele soltou o cesto no meio da
lavanderia, abriu a tampa da máquina de lavar e simplesmente enfiou tudo de uma vez lá dentro. A
máquina ficou cheia e ele se viu obrigado a forçar as roupas para baixo para fechá-la. Olhou para os
lados procurando o sabão e se deparou com os olhos fixos de Haven. A jovem segurava um par de
calças.
Ele não fazia ideia de qual era o problema dela, mas estava com raiva demais para lidar com isso
agora. Outra semana havia se passado e ela continuava o evitando, fugindo de qualquer cômodo em
que ele estivesse, antes mesmo que ele pudesse dizer olá.
– Então, onde está o sabão? – ele perguntou – Você sabe, o que se usa pra colocar na máquina.
Haven se virou, abriu um armário e pegou um pote de sabão. Carmine pegou o produto de suas
mãos, abriu a máquina e estava prestes a despejar sobre as roupas quando Haven prendeu a
respiração.
Aquela reação o interrompeu.
– O que foi?
– Não seria melhor você colocar somente a quantidade certa de roupas e o sabão no reservatório?
– Seria? – ele hesitou.
– Eu fui ensinada dessa maneira: primeiro se coloca a roupa, até o limite, então o sabão e só
depois giramos o disco até a marca apropriada.
– Que marca?
– A marca que mostra o procedimento da máquina conforme a quantidade e o tipo de roupa.
– Tem uma marca? Um limite? – ele perguntou, baixando o sabão antes de começar a retirar as
roupas de dentro da máquina. Haven voltou a dobrar as roupas enquanto ele se manteve parado sem
saber o que fazer – E onde fica isso?
– Nesse disco. – ela respondeu – Você o puxa para cima, escolhe o programa que precisa e então o
pressiona novamente.
Seu conhecimento em relação ao processo o deixou irritado.
– E qual é o programa de que preciso? Pra mim a máquina de lavar serve pra lavar roupas, mas o
problema é que não sei como fazer ela funcionar.
Ela franziu o cenho.
– Será que… Será que eu posso fazer pra você?
Aquela pergunta o pegou de surpresa.
– Não sei.
Ela se aproximou, ajeitou a metade das roupas do cesto dentro do tambor, colocou o sabão e o
amaciante nos locais adequados, puxou o disco e o girou até a posição “roupas coloridas”, então o
pressionou novamente. A máquina se encheu até um limite predeterminado e, em seguida, começou a
funcionar. O restante das roupas permaneceu no cesto. Haven o empurrou para o lado e voltou a
dobrar as roupas já lavadas.
Carmine ficou ali parado, ansioso, e sem saber o que dizer. Durante toda a semana ele inventara
algum tipo de diálogo em sua mente; coisas que ele planejava dizer a ela quando ela parasse de
evitá-lo, e agora que ela estava ali, do lado dele, não sabia o que dizer.
– Ei, você é muito boa nesse tipo de coisa.
Meio sem jeito, ela abriu um sorriso gentil.
– Tenho feito isso a minha vida toda.
– É mesmo? Bem, pra mim essa é a primeira vez. – ele disse em voz baixa – Então, quem é você?
Ela ficou confusa.
– Eu já lhe disse meu nome.
– Sim, mas isso não me diz o quero saber. Você tem um sobrenome?
Ela continuou a dobrar as roupas.
– Antonelli, talvez.
– Talvez?
– Eu não tenho um sobrenome de verdade, mas esse era o dele.
Ele inclinou a cabeça para o lado, analisando-a.
– Dele quem?
– Do meu mestre.
– O que quer dizer com “seu mestre”?
– O meu mestre. O lugar de onde vim, você sabe.
Mas ele não sabia.
– E de onde foi que você veio?
– De Blackburn. Acho que fica na Califórnia.
– Você acha? Viveu muito tempo lá?
Ela balançou afirmativamente a cabeça.
– Sim, até vir pra cá.
– E você não tem certeza de onde fica? – ele perguntou surpreso – Você odiava o lugar ou algo
assim?
– Depende do que quer dizer com isso.
– Explique pra mim.
Ela soltou um suspiro.
– Eu não gostava do meu mestre, mas havia alguém lá que me compreendia.
– E daqui, você gosta?
– Aqui eu tenho comida e roupas pra vestir.
– Mas ninguém te entende?
Ela fez que não com a cabeça.
– Aqui os meus mestres me tratam delicadamente.
– Espera aí, mestre? – ele interpretou aquilo da maneira errada – Mas por que você fica dizendo
isso? Parece errado, como se você fosse uma serva ou escrava, ou algo do tipo.
Ela olhou para ele enquanto falava.
– E não sou?
– Como…? Mas que merda é essa?
– Não é ruim aqui. – ela pôs-se a explicar rapidamente – Pessoas como eu sonham com esse tipo
de lugar, onde não tenham medo de pagar pelos erros dos outros com a própria vida.
– E seja lá de onde você tenha vindo, você temia ser morta sem qualquer razão?
– Não, sempre havia um motivo, só que nem sempre você era o responsável.
Carmine ficou surpreso ao perceber o quanto ele compreendia aquela garota estranha. Talvez ela
não tivesse reparado, mas o rapaz sabia exatamente o que era pagar pelos erros dos outros. Ele sabia
como era viver sabendo que sua vida poderia terminar a qualquer momento por coisas que outras
pessoas fizeram.
Porém, ele ainda não compreendia a palavra “mestre”.
Haven terminou de dobrar as roupas em silêncio antes de se preparar para sair, mas Carmine
permaneceu na porta, bloqueando sua passagem.
– Você precisa de algo mais? – ela perguntou.
– Preciso saber por que você me odeia.
Ela voltou a franzir o cenho.
– Mas o que você quer dizer?
– Você fugiu de mim várias vezes; nunca olha ou conversa comigo. Só está fazendo isso agora
porque acha que não tem escolha. Você não tem problemas em ficar ao lado do meu irmão, então
porque me evita? Sou tão horrível assim? – ela olhou para ele enquanto revelava toda sua frustração.
Seu silêncio o deixava ainda mais no limite – Jesus, agora eu tô gritando com você, como se isso
fosse resolver o problema. Esse é o problema, não é? Meu temperamento.
– Eu não detesto você. Eu apenas… Eu apenas não o compreendo.
Algo naquelas palavras o fez sentir como se um punhal tivesse sido enfiado em seu peito. Ninguém
jamais o havia compreendido antes, mas ele queria que ela o entendesse. Ele precisava disso, pois,
pela primeira vez em muitos anos, ele imaginava se alguém finalmente seria capaz de fazê-lo.
O toque do celular interrompeu sua resposta. Ele o tirou do bolso e ela aproveitou para sair da
lavanderia.
– Haven! – ele chamou, saindo atrás dela – Acho que se me conhecer melhor descobrirá que
somos bem mais parecidos do que pensa.
Então, ele se virou para responder o chamado.
– Oi, Dia.
– Eu não deveria ter desligado na sua cara. – ela disse – Você ainda precisa de alguém pra lavar
suas roupas?
– Não, já resolvi. – ele disse – Alguém me mostrou como lavar.
Olhando para a lavanderia, percebeu que sequer havia agradecido Haven pelo que fizera por ele.

Carmine invadiu o escritório do pai e se atirou na cadeira à frente da escrivaninha. Vincent, por
sua vez, abaixou o jornal médico que estava lendo e tirou os óculos.
– Entre, filho, sente-se. Não, você não está me interrompendo, de jeito algum.
– Não estou com humor para sermões. – Carmine disse, indo direto ao ponto – Por que aquela
garota está aqui?
Vincent suspirou.
– Já não discutimos sobre isso? Você mesmo disse que não se importava.
– Pois bem, agora me importo. – suas próprias palavras o pegaram de surpresa. Será mesmo?
Vincent o olhou surpreso:
– E por quê?
Boa pergunta.
– Ela fala umas merdas que não consigo entender.
– Não fazia ideia de que se importava o suficiente para conversar com ela.
– Claro… Bem… ela está morando na minha casa…
– Minha casa – Vincent o corrigiu –, seu avô deixou essa casa para mim quando faleceu. E a
garota está aqui porque eu a trouxe para cá.
– De vontade própria? Porque não me parece que ela esteja aqui em férias, tendo de fazer o jantar
e limpar a casa. Ela sequer tinha algum pertence quando chegou aqui.
– Você está certo – realmente ela não está aqui em férias –, mas já é um grande passo se
considerarmos o lugar em que vivia antes.
– Na Califórnia – disse Carmine – ou, pelo menos, é o que ela acha. Ele vivia com um “mestre”
que poderia tê-la matado.
Os olhos de Vincent se arregalaram.
– Fico surpreso por ela ter falado tanto.
– Eu perguntei e, aparentemente, é como se ela não pudesse mentir diante de qualquer pergunta que
lhe seja feita.
– Não, nisso você está errado. – Vincent contestou – Se essa criança não quisesse ter lhe contato,
não o teria feito. Ela pode ter sido treinada para servir, mas sabe como guardar segredos. Não teria
sobrevivido por tanto tempo se não soubesse.
Carmine não fazia ideia de como responder.
– Então, o que vai fazer? Ela ficará aqui para sempre?
– Sim. – Vincent respondeu, colocando os óculos de volta – E ela não deve sair dessa casa sem a
minha permissão, portanto, acostume-se com sua presença.
– Você quer que eu me acostume com ela? Sério? Há algo muito errado com o jeito como vivemos
nessa casa.
Vincent fez um movimento negativo com a cabeça.
– Sei exatamente como você é, portanto, a menos que precise de mais ajuda com a lavagem de suas
roupas, sugiro que se mantenha longe dela.
– Como sabe que ela me ajudou com as minhas roupas?
Vincent se virou para o monitor em sua escrivaninha. Carmine logo percebeu que seu pai assistira
toda a conversa pela câmera de segurança. Havia algumas espalhadas pela casa, principalmente nas
áreas comuns.
– Não estava observando por sua causa. Ainda não existem câmeras nos quartos.
– E é melhor que continue assim. – Carmine concluiu.
– Não tenho interesse em ver o que se passa naquele chiqueiro mais do que você próprio deseja
que eu veja. – Vincent respondeu, pegando novamente seu jornal – Apenas lembre-se do que lhe
disse. Eu apreciaria se você fosse educado e não tentasse se intrometer nisso. A última coisa de que
essa jovem precisa é que você torne as coisas ainda mais difíceis para ela.
Carmine se levantou.
– Em outras palavras, basta que eu não seja eu mesmo.
– Precisamente, filho.

Carmine chegou à escola na manhã de segunda-feira e se deparou com seu irmão e Tess discutindo
no estacionamento. Ele saiu do carro e Dia logo se aproximou para então sentar sobre o capô do
Mazda, mas ele a fez sair imediatamente dali. Ela riu e se sentou no capô do próprio carro.
– O que aconteceu com esses dois?
Dia deu de ombros no momento em que Tess riu de um jeito seco e passou por trás de Dominic.
– O que aconteceu entre nós é o fato de o seu pai ser um idiota.
– Pare com isso, Tess. – disse Dominic – Não é razão pra tanto, caramba.
Tess o fuzilou com os olhos.
– O doutor DeMarco traz uma adolescente para viver na sua casa e você não apenas não conta à
sua namorada, mas, quando eu descubro sozinha, diz que não é pra tanto?
Dia se inclinou na direção de Carmine:
– Há uma garota morando com vocês?
– Sim, mas sua irmã está dando importância demais para o fato. – explicou Carmine – É apenas
uma garota comum.
– Apenas uma garota vivendo na mesma casa que o “senhor comedor”; um homem acostumado a
foder qualquer coisa que passe na sua frente – Tess reagiu.
– Ei, dá um tempo, tá? – disse Carmine – Não aja como se estivesse irritada por minha causa. Não
é culpa minha que você não confie no seu namorado.
Tess ergueu o dedo médio antes de partir enfurecida, mas, dessa vez, Dominic ficou parado onde
estava, sem correr atrás dela.
– Aquilo foi bem interessante. – disse Dia – Você não está trepando com a garota, está?
Dominic se intrometeu:
– Eles nem se dão bem.
– Não é que a gente não se dê bem. – Carmine corrigiu – É só que ela se afasta toda vez que eu
chego perto dela.
Dia sorriu.
– Se você relaxasse um pouco, tenho certeza de que ela se aproximaria.
– Você nunca a viu. – disse Carmine – Caralho, há um minuto você nem sabia que ela existia. E,
quer saber, você não é exatamente uma expert nesse assunto.
– Ela é uma garota, não é? Não somos assim tão complicadas. Além disso, não estou dizendo que
deveria traçar a moça, mas não há nada de errado em fazer amigos.
Carmine revirou os olhos.
– Ninguém nem usa mais a expressão traçar, Dia. Os anos noventa ficaram pra trás, sabia? As
pessoas simplesmente fodem.
– Nem sempre. – ela discordou – Às vezes as pessoas fazem amor.
– Eu não.

Quarenta e cinco minutos mais tarde, Carmine seguia pelo corredor da escola, a caminho do
segundo período, quando viu seu irmão na biblioteca. Dominic estava sentado diante de um
computador, digitando com nervosismo. Carmine ficou curioso e entrou na sala pela porta de vidro.
– Jesus, essa sala é iluminada demais! – Carmine protegeu os olhos com a mão no momento em
que sua voz ecoou pelo cômodo silencioso, mas não havia mais ninguém ali para repreendê-lo.
– Primeira vez na biblioteca da escola? – perguntou Dominic.
– Já estive aqui para aulas de inglês. – disse em sua defesa – Até dei uma olhada num livro certa
vez.
– Que livro?
– O Conde de Monte Cristo. Tive de fazer um trabalho sobre ele no ano passado.
– Então, você o leu?
– É… – ele balbuciou – Eu li a primeira página antes de decidir alugar o filme.
Dominic caiu na risada, mas não fez comentários. Estava ocupado demais buscando arquivos no
computador. Carmine se encostou na carteira mais próxima, tentando decifrar o que todos aqueles
códigos significavam.
– O que está fazendo?
– Alterando suas notas pra você, maninho.
Os olhos de Carmine se arregalaram.
– Mesmo?
– Não, mas eu já dei uma olhada nelas. Jamais terminará o Ensino Médio nesse ritmo.
Carmine balançou a cabeça.
– Você é bem corajoso em invadir os servidores da escola e olhar os registros dos alunos, como se
não fosse ilegal. E as pessoas ainda dizem que fui eu quem puxou ao papai.
– Não machuco as pessoas intencionalmente, mesmo assim, estou sempre lá pra livrar a sua barra.
– reagiu Dominic – Além disso, já viu seu registro disciplinar? – Acho que a verdadeira pergunta
aqui é se você já o viu, Dom.
– Com certeza. E foi como assistir a um romance policial, repleto de crimes. Presumo que seu
registro permanente seja mais longo que a ficha policial do tio Corrado, mas é só um palpite.
O marido da tia Celia, Corrado Moretti, havia sido preso mais vezes ao longo da vida do que tinha
celebrado aniversários, mas nenhuma das acusações jamais conseguiu segurá-lo atrás das grades.
Uma hora, faltavam testemunhas, na outra, o juiz ou alguém do júri estava comprado. Corrado sempre
encontrava um jeito de se livrar.
Um jornalista certa vez o apelidara de “O Assassino à Prova de Grades”, pois, independentemente
do que ele fosse acusado de ter feito, sempre saía ileso.
– Tio Corrado é o Homem de Aço. – Dominic comentou – Mais rápido que uma bala.
– Espere aí, você realmente acabou de compará-lo a um super-herói?
– Sim, mas acho que não fui eu quem inventou isso.
Olhando para seu relógio, Carmine se afastou da mesa e disse:
– Bem, tenho que ir para a aula de História, antes que a senhora Anderson envie uma equipe de
busca atrás de mim.
– É, faça isso – disse Dominic –, pois, pelo que andei vendo, você não vai passar na matéria dela.
– Sério que você não vai alterar minha nota, maninho?
– Desculpe, mas não posso fazer isso. O que é mesmo que o Super-Homem costumava dizer?
“Com o grande poder vem a grande responsabilidade”?
Carmine deu um tapinha na parte de trás da cabeça do irmão e foi saindo:
– Quem disse isso foi o Homem-Aranha, seu tonto.

Carmine chegou em casa naquela tarde, logo depois do treino de futebol, e só teve tempo de
vislumbrar Haven subir correndo pelas escadas. Ele lavou as mãos e se dirigiu à sala de jantar, onde
a comida já havia sido servida. Seu pai já estava iniciando suas preces quando ele se sentou.
– Signore, benedici questi peccatori che esse mangiano la loro cene. – Senhor, abençoe esses
pecadores enquanto se alimentam com esse jantar.
Carmine já estava comendo antes mesmo que todos pudessem dizer “Amém”. Vincent tentou puxar
conversa durante a refeição, e Dominic até o deixou bem-humorado, mas Carmine permaneceu em
silêncio. Já havia escurecido há bastante tempo quando o pager de Vincent disparou. Ele então
dispensou os filhos, dizendo que tinha de trabalhar. Carmine subiu as escadas e hesitou ao ver Haven
na biblioteca, olhando pela janela com a palma da mão pressionada contra o vidro.
Ele esperava que mais uma vez ela fugisse, mas, em vez disso, ela se concentrou nos pequenos
brilhos de luz na escuridão.
– O que são aquelas coisas?
Carmine se virou para ver se havia mais alguém por ali, assustado pelo fato de que ela estava
tentando conversar com ele.
– São vaga-lumes. Algumas pessoas os chamam de pirilampos.
– Por que eles brilham? – ela perguntou – É assim que eles enxergam?
Ele caminhou até ela e respondeu:
– Acho que é o jeito como conversam uns com os outros.
– Uau!
– Nunca tinha visto um desses bichinhos antes?
Ela balançou negativamente a cabeça.
– Não havia bichinhos assim em Blackburn.
– Bem, aqui existem muitos. – ele disse – São como besouros, só que no caso deles, o traseiro fica
iluminado.
Ela sorriu diante da descrição.
– Eles são lindos.
– São só insetos. Nada de especial.
– Eles estão vivos, oras. Isso os torna especiais.
Ele não tinha como retrucar diante daquelas palavras. Haven continuou a olhar pela janela
enquanto ele observava a expressão maravilhada da jovem. Era como se ela estivesse vendo o
mundo pela primeira vez; como se fosse cega até bem pouco tempo atrás, e agora, de repente,
pudesse enxergar. Ele ficou imaginando se ela também se sentia daquele jeito; se tudo diante de seus
olhos era absolutamente novo.
Ele tentou se lembrar da primeira vez que viu um vaga-lume, mas nada vinha à mente em relação
àquele ponto de sua infância. Recordava-se vagamente de ter prendido alguns em um pote de vidro
certa vez.
– Gostaria de vê-los de perto?
As palavras saíram de sua boca antes mesmo que percebesse o que estava sugerindo. Ele ouvira as
palavras do pai, mas, ao mesmo tempo, não imaginou que seria um problema.
Ela se virou e o encarou:
– Eu posso?
– Claro.
Seus olhos brilharam entusiasmados. Aquela visão fez o coração de Carmine parar por um
segundo. Havia anos desde a última vez que sentira algo parecido e, por um momento, ele gostaria de
poder roubar aquele instante para si mesmo.
– Você quer dizer ir lá fora?
– Sim.
– Mas não tenho permissão para isso.
Ele deu de ombros.
– Nem eu.
Tecnicamente isso era verdade, uma vez que ele estava de castigo. Entretanto, ele jamais deixaria
que aquilo o impedisse.
– Eu adoraria – ela disse, fazendo uma pausa –, se você tiver certeza.
Ele sorriu. Ela estava confiando nele. Por um momento ele pensou que talvez ela não devesse
confiar, mas, sem dúvida, aquele fora um passo e tanto em sua relação.
– Espere aqui. Eu já volto.
Ele correu até a cozinha, e ficou feliz pelo fato de seu pai já ter saído de lá, então retornou ao
terceiro andar, depois de pegar um pote de vidro vazio. Haven estava exatamente no mesmo lugar,
com a mão ainda pressionada contra o vidro.
– Venha. – ele chamou, seguindo para o quarto dele. Ao acender a luz, percebeu que ela ficara
parada na porta, observando a bagunça – Você vem ou não? Eu sei que parece um desastre…
– Não, não é isso… – ela parecia em pânico – Não sei se deveria.
– Bem, não podemos sair pela porta porque meu pai descobriria. Teremos de sair por aqui.
Ela franziu a testa.
– Do terceiro andar? Como?
– Você vai ver.
Ele percebeu que ela estava insegura antes de dar um passo e entrar no quarto. Com cuidado para
não tropeçar em nada que estava pelo caminho, ela andou até ele. Carmine levantou as persianas
antes de tentar abrir a grande janela. Esta rangeu um pouco, mas acabou abrindo.
Haven olhou para aquilo.
– Eu não sabia que essas janelas abriam.
– Elas não abrem. – ele disse – Dominic conseguiu deixar esta aqui fora do sistema de alarme,
para que eu pudesse escapar durante a noite. Meu pai nunca me pegou, afinal, nenhum alarme é
disparado.
Carmine manteve as cortinas abertas, fazendo um movimento para que ela saísse pela janela. Ela
então pisou na estreita varanda que circundava o andar. Carmine logo se juntou a ela e a jovem o
seguiu com cuidado até a extremidade da casa, onde havia um plátano enorme. Os grossos galhos da
árvore se estendiam até a casa. De fato, estavam tão próximos que Haven conseguiu tocar em
algumas folhas, cujas pontas já estavam amarronzadas pela proximidade do outono.
O rapaz atirou o vidro lá de cima, prendendo a respiração antes de vê-lo cair na grama, sem
quebrar. Segurando o galho mais próximo, ele subiu no peitoril da varanda e pulou na árvore.
– Venha, é fácil.
Ela olhou de cima da varanda.
– Eu não quero cair.
– Não vai.
– Promete?
Ele riu.
– Sempre, pode acreditar.
Ela hesitou antes de segurar no galho do mesmo modo como ele havia feito e passar por cima do
peitoril. Carmine desceu habilmente pela árvore, como fizera dezena de vezes no passado, e Haven o
seguiu com cuidado. Um minuto depois de ter alcançado solo firme, ela também caiu de pé ao seu
lado.
– Viu, não foi tão ruim, não é?
O esboço de um sorriso surgiu nos lábios de Haven.
– Eu não caí.
Carmine pegou o pote de vidro enquanto a jovem deu alguns passos para o lado e olhou para todos
ao seu redor. Os vaga-lumes continuavam a se distinguir na escuridão, com seu brilho fugaz
iluminando seu rosto assustado. Seu sorriso se abriu no momento em que ela esticou a mão para tocá-
los, mas logo a recolheu.
– Eles não vão me machucar, não é?
– Não. – ele disse – Você provavelmente é dez vezes mais perigosa que esses vaga-lumes.
Perigosa. Aquela palavra fez com que o coração dele disparasse. Algo lhe dizia que aquela jovem
era um perigo para sua própria sanidade.
Ela gentilmente capturou um vaga-lume com a palma da mão e olhou para ele com admiração;
então, o pequeno inseto correu até seu dedo e voou. Um riso suave surgiu de sua boca quando o vaga-
lume desapareceu. Aquilo pegou Carmine de surpresa. Aquela era a primeira vez que ele a via dar
risada.
Livrando-se daquele momento hipnótico, ele entregou o pote em suas mãos.
– Venha, pegue alguns.
Carmine se sentou na grama enquanto ela corria atrás dos vaga-lumes, mas eles fugiam dela. Logo
os risos dela se misturaram aos dele. Ela ficou entusiasmada ao conseguir apanhar alguns. Ela girou e
rodopiou, correu e pulou, o tempo todo com um sorriso estampado no rosto.
Enquanto a olhava, Carmine percebeu que ela parecia diferente da garota que ele encontrara na
primeira vez. Ela não estava sem jeito. A tensão que tomava seu corpo havia desaparecido. Naquele
jardim, sob o luar, ela parecia tranquila e livre.

Haven se sentou e esticou as pernas; a grama macia fazia cócegas em seus pés. Ela inspirou
profundamente o ar frio da noite, algo muito distante da respiração superficial à qual estava
costumava enquanto crescia. O cheiro daqui era diferente, o ar era fresco e gelado. Tudo era tão
verde. Ela nunca dera muita importância às cores, mas naquele momento percebeu que elas
representavam mais que apenas algo diferente para ver. Eram sentimentos, tinham sabor e perfume.
Aquilo tudo era tão novo, tão reconfortante; a umidade da grama e a proteção das árvores. O verde
significava felicidade.
O verde lhe causou uma estranha sensação na barriga. As poucas árvores que vira em Blackburn
eram marrons, deformadas; pequenos gravetos que se erguiam na terra. Aqui havia aqueles
gigantescos guarda-chuvas de folhas bem acima dela.
Haven olhou para o pote em seu colo e observou a meia dúzia de vaga-lumes que conseguira
apanhar. Eles brilhavam de modo intercalado. Ela estranhou o fato de eles piscarem de um jeito
harmonioso, criando uma melodia silenciosa que ela se esforçava para ouvir.
– O que será que eles estão dizendo? – ela perguntou, interrompendo o silêncio que havia se
formado entre os dois.
Carmine apontou para o pote.
– Tenho certeza de que esse aqui está dizendo para aquela ali do outro lado que ela tem um
bumbum bonito e brilhante.
– E os outros?
– Bem, vejamos… Esse aqui parece com ciúmes, porque estava a fim daquela com o bumbum
brilhante. – ele continou, apontando novamente para o pote – Já os demais estão fofocando. Você
sabe, quem fez o quê, quando, onde, por quê e tudo mais.
– Não havia percebido que os insetos eram tão infames.
Ele riu.
– É a natureza. Eles não podem evitar.
Ela olhou para o pote sem saber o que pensar.
Carmine se levantou depois de alguns minutos, sacudindo a grama de suas calças.
– É melhor voltarmos para dentro da casa antes que sejamos pegos em flagrante. Você pode trazer
o pote com você.
Discordando com a cabeça ela o destampou.
– Não, eles devem ser livres. – ela disse com a voz baixa, observando os vaga-lumes voarem para
longe.
Carmine pegou sua mão e a colocou de pé. Ela sentiu os dedos formigarem com o toque do rapaz.
Aquela sensação a deixou alarmada. Era como eletricidade sob a pele, percorrendo suas veias e
alcançando seu coração. Seu pulso ficou acelerado e ela desviou o olhar, não ousando encarar o
rapaz, cujos olhos eram tão verdes quanto a grama e as árvores.
De repente, Haven se sentiu como se ela também estivesse brilhando como um vaga-lume.
Capítulo 6

Durante as semanas seguintes, essas fugas mais uma vez se transformaram num meio de
sobrevivência para Haven, mas no fundo ela sabia que aquilo não iria durar. Numa sexta-feira,
quando desceu as escadas para começar seu trabalho, ouviu a TV ligada na sala de estar. Seu pulso
acelerou; todos já deveriam ter saído de casa. Todos os dias da semana ela costumava ficar sozinha
até as três da tarde. Ela não gostava de mudanças na rotina.
Em silêncio ela caminhou até a sala e viu o doutor DeMarco sentado no sofá. Sem desviar o olhar
ele a cumprimentou.
– Bom dia, criança.
Assustada, ela sussurrou:
– Bom dia, mestre.
DeMarco balançou a cabeça em reprovação e disse:
– Não precisa me chamar assim. Faz com que eu sinta que está me colocando no mesmo nível que
Antonelli, e gosto de pensar que sou um homem melhor que aquilo.
– Peço desculpas, senhor.
– Também não precisa se desculpar. Pode me chamar de Vincent, se preferir.
Ela ficou chocada quando ele sugeriu que ela o chamasse pelo primeiro nome.
– O senhor deseja alguma coisa?
– Não, eu estava só esperando por você. Tenho adiado isso, mas é preciso que você passe por um
check-up ainda hoje.
Os olhos dela se arregalaram.
– Não irá demorar. – ele disse, finalmente olhando para ela – E o lado positivo é que você poderá
sair da casa por alguns momentos. Você não colocou os pés para fora desde que chegou aqui, afinal.
Aquilo não era verdade, mas ela não ousaria corrigi-lo.

Ele a levou de carro até uma pequena construção de tijolos, a cerca de dez minutos da casa. Lá
havia uma placa branca indicando “Clínica Durante”, acima da entrada principal. Bem diferente do
hospital movimentado que podia ser visto do estacionamento, a clínica era escura e vazia. Não havia
alma alguma em nenhum lugar.
– Eles estão fechados hoje, então não seremos interrompidos. – disse DeMarco ao destrancar a
porta da frente.
– O que vamos fazer aqui? – ela perguntou.
– Só o básico.
Haven não fazia ideia do que “o básico” significava, e o doutor DeMarco também não se mostrou
inclinado a explicar.
Ele a levou pelo prédio. A cada passo a jovem se sentia mais tensa. Eles foram direto para uma
sala de exames, onde havia uma maca acolchoada marrom. DeMarco acendeu uma única luz. Ela
ficou ali de pé enquanto ele explorava a sala, pegava as coisas de que precisaria e ligava os
equipamentos. Ele então pegou seu braço e, sem dizer uma única palavra, introduziu-lhe uma agulha
na veia. Ela se manteve imóvel enquanto ele enchia alguns tubos com o seu sangue, o que começou a
deixá-la um pouco tonta.
De fato, a jovem ficou tão zonza que quase desmaiou.
O doutor DeMarco pesou e mediu-a antes de encaminhá-la para a maca.
– Terá de tirar suas roupas. – ela o encarou apavorada; ele suspirou frustrado diante de sua
expressão de medo – Isso irá acontecer, quer você coopere ou não, eu preferiria que fosse de um
jeito tranquilo, sem ter de forçá-la.
DeMarco foi até a janela enquanto Haven cuidadosamente se despia e se sentava na maca. Seus
pés estavam pendurados de um dos lados, longe do chão, enquanto ela se cobria com um fino avental
de papel, segurando-o firme, como se pudesse protegê-la.
Então, ainda de costas para ela, DeMarco ordenou:
– Deite-se de barriga para cima na ponta da maca, erga as pernas, coloque seus pés nos apoios
laterais e tente relaxar.
Ela fez o que ele mandou, fechando os olhos ao ouvir seus passos se aproximando.
– Você irá sentir algo frio lá embaixo. – ele explicou, puxando um banco para perto da maca e
sentando-se enquanto colocava um par de luvas de látex – Será desconfortável, mas terminarei
rápido.
Ela cerrou os olhos ainda com mais força quando sentiu seu toque. Uma lágrima escorreu do seu
rosto. Ela tentava contar mentalmente, tentando se distrair e, assim que chegou ao número 10, ele a
soltou.
– Você parece estar bem, pelo que posso ver. – ele disse, livrando-se de suas luvas. Os olhos dela
estavam embaçados pelas lágrimas, mas ela conseguia ver o médico ao seu lado. Ele injetou nela o
conteúdo de algumas seringas, sendo que umas doíam mais que as outras, e se dirigiu até a porta.
– Vista-se para que possamos ir embora. Esperarei por você no hall.
Ela levantou-se com as pernas ainda trêmulas e se vestiu.

Haven se deitou naquela noite e, como de costume, ficou escutando a música suave que vinha da
biblioteca. Era a mesma melodia de sempre, que no geral a fazia dormir, mas dessa vez ela não
conseguia relaxar. Sua pele parecia tensa, seus músculos, retesados; sentia-se furiosa e enojada.
Mesmo depois de se esfregar muito durante o banho, ainda se sentia suja.
Ela nunca se sentira tão confusa em sua vida.
A jovem se manteve a distância de Carmine, esperando que os estranhos sentimentos que tinha por
ele desaparecessem. Ela não compreendia a razão pela qual seu peito parecia ficar prestes a explodir
toda vez que ele se dirigia a ela; por que sua pele ficava arrepiada quando ele se aproximava, ou o
motivo de ficar tonta quando o ouvia dar risadas. Ela mal o conhecia e decidiu que seria melhor que
as coisas continuassem assim, mas isso não fazia qualquer diferença, pois aqueles sentimentos
surgiam mesmo não querendo.
Haven pegou um pedaço de papel e desenhou o rosto de Carmine, lembrando-se de cada detalhe: o
formato de sua mandíbula, as curvas dos seus lábios, o arco das sobrancelhas e o ângulo do nariz.
Ela se lembrou de seus olhos e do modo como brilhavam contra a luz. Ele tinha algumas sardas no
nariz e também nas bochechas, e uma pequena cicatriz no lado direito de seu lábio inferior.
Deitada, ela começou a pensar em como havia reparado em todos aqueles detalhes.
Depois que terminou, ela levantou o desenho para admirá-lo sob a luz. Mas algo estava errado; o
desenho parecia sem vida e sem cor. Ele não transmitia uma fração da emoção contida na música.
Frustrada, ela amassou o papel e o jogou longe.

Mais uma vez Haven o estava evitando, e Carmine não conseguia entender o motivo.
Ele tentou esperar e dar-lhe tempo para relaxar, mas não tinha muita paciência. Acabou ficando
com insônia e quando desceu as escadas na tarde seguinte, ainda exausto e todo dolorido por causa
do jogo de futebol no dia anterior, estava determinado a não aceitar mais aquela atitude por parte de
Haven.
Ainda um pouco tonto, ele hesitou no hall quando a jovem apareceu na porta da cozinha. Ele
passou a mão nos cabelos desgrenhados, sem ter se preocupado em penteá-los.
– E aí, o que está fazendo?
– Nada. – ela respondeu, olhando ao seu redor – Eu deveria estar fazendo alguma coisa?
Ele deu de ombros.
– Diga-me você.
– Está com fome? Eu poderia lhe preparar algo para comer.
– Não.
– Precisa que eu lave suas roupas?
– Não.
– Já limpei a casa. – ela disse – Acho que não esqueci nada.
– Eu não estava insinuando que tivesse esquecido. Estava apenas conversando com você.
– Ah, sim.
Ela se manteve de pé, olhando para ele com apreensão. Conforme a tensão aumentou, ele se
arrependeu de ter saído da cama.
– Que tal assistirmos um filme ou algo assim?
Ela pareceu surpresa com a sugestão.
– Tudo bem.
– Esse “tudo bem” que dizer: “Tudo bem, eu quero assistir um filme com você, Carmine” ou “tudo
bem, eu farei qualquer porra que me peça pra fazer, seja lá o que for, porque acho que devo fazer”?
Você pode discordar de mim, sabia? Você pode até gritar comigo se isso lhe fizer se sentir melhor,
mas, por favor, não diga “tudo bem”, porque não tenho ideia do que quer dizer com isso.
– Tudo bem.
Eles não estavam chegando a lugar nenhum com aquela conversa.
– Olha aqui, vou sentar minha bunda naquele sofá. Se você vai ou não se juntar a mim, o problema
é seu.
Ele se virou e ouviu a voz dela novamente.
– Você quer algo para beber?
Carmine parou de repente.
– Ah, claro.
– O que deseja?
– Uma Coca-Cola Cereja seria legal.
– Coca-Cola Cereja?
Ele respirou fundo e passou as duas mãos no rosto. Era cedo demais para isso.
– É, Coca-Cola com sabor de cereja. É daí que vem o nome, oras, Coca-Cola Cereja.
Ela correu para dentro da cozinha e Carmine se dirigiu à sala de estar, ligando a tv. Depois de
alguns minutos ele percebeu alguma movimentação no canto dos olhos. Haven estava diante dele,
evitando seu olhar, e com um copo de refrigerante na mão. Ele o pegou e ela se sentou ao lado dele
no sofá, mantendo uma pequena distância.
Confuso, ele olhou para o copo se perguntando por que ela não trouxera a lata. Foi então que
reparou nas cerejas boiando no copo. Ele tomou um gole, percebendo que ela havia lhe preparado
uma Coca-Cola com cereja.
Estupefato, ele não conseguia encontrar as palavras para agradecê-la. Sua mãe uma vez havia feito
aquilo para ele quando ainda era uma criança.
Haven mostrou a ele que realmente queria assistir o filme, colocando os pés sobre o sofá e
inclinando levemente a cabeça.
– Já assistiu a esse filme? – Carmine perguntou.
Ela respondeu que não com a cabeça, como se aquela fosse uma pergunta idiota.
– Nunca assisti a filme nenhum. Essa é a primeira vez que alguém me convida para assistir tv.
Ele franziu a testa.
– Você nunca assistiu TV?
– Não era permitido.
– E como você costumava passar o tempo? Lendo?
– Não, isso também não era permitido. Não achavam apropriado.
Ele a encarou e disse:
– Os professores constantemente enfiam livros goela abaixo dos alunos e havia pessoas que lhe
diziam que ler era inapropriado?
– Eles não queriam que eu tivesse alguma ideia.
– Ideias? Mas que tipo de mal poderiam fazer os livros?
– Muito mal. Eles achavam que eu colocaria na cabeça que o mundo exterior era o local ao qual eu
pertencia.
– O mundo exterior? Você faz soar como se estivesse vivendo em um universo paralelo.
Ela ergueu os ombros, com os olhos ainda fixos na tv.
– Às vezes parece que é isso mesmo.

O iate de quase quatorze metros flutuava nas águas do Lago Michigan, ao leste do Navy Pear. O
brilho do luar que refletia nas águas tranquilas era suficiente para Vincent. Nada além de escuridão
podia ser visto abaixo da superfície, mas já estivera ali um número de vezes suficiente para saber o
que repousava lá embaixo. Algas, peixes, destroços de barcos, carros afundados e corpos.
Sim, ele sabia de pelo menos quatro corpos que estavam no fundo daquele lago… ou o que sobrara
deles, de qualquer modo. Todos foram atirados exatamente do lugar onde ele estava, a parte de trás
do The Federica. Aquelas palavras estavam escritas em preto no casco do barco, em homenagem à
falecida irmã do Chefe. O iate de meio milhão de dólares pertencia a Salvatore Capozzi, mas, para o
governo, ele era da Galaxy Corp, uma empresa sediada fora de Chicago, que fabricava chips para
GPS. Era um disfarce para as práticas mais sombrias. Com efeito, a maioria de seus pertences
extravagantes estava em nome de empresas. Desse modo, se a Receita Federal dos Estados Unidos
viesse bater à sua porta, não teria de explicar como poderia pagar por tudo aquilo. Ele estava apenas
tomando emprestado.
Pura sonegação fiscal. Vincent admirava o modo como Salvatore fazia da manipulação uma
verdadeira arte.
Ele então ouviu um pigarro atrás de si, mas se manteve imóvel, olhando para a água enquanto Sal
se aproximava.
– Está enjoado?
Vincent gostaria que aquele fosse realmente seu problema.
– Não, apenas apreciando a vista.
– É bonito aqui, não é? Tranquilo.
Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça. Paz não era algo que ele sentia com frequência e, agora
que fora interrompido, a havia perdido novamente.
Sal colocou a mão em seu ombro.
– Venha para dentro. Quero terminar isso e voltar para terra firme.
Mesmo sem desejar, Vincent acompanhou Sal e, logo que entrou, reparou em dois homens sentados
num sofá de couro preto. Um deles ele conhecia bem: seu cunhado, Corrado, um homem de poucas
palavras. Seu silêncio, porém, costumava dizer muito sobre si. Mezza parola, ou “meia palavra”, era
assim que costumavam chamá-lo. Ele era capaz de manter uma longa conversa apenas acenando com
a cabeça.
Alguns anos mais velho que o próprio Vincent, os cabelos densos e escuros de Corrado não
apresentavam nenhum fio grisalho, e o fato de serem um pouco encaracolados o faziam parecer mais
jovem. Era um homem alto, robusto e de pele levemente bronzeada. As mulheres costumavam achá-lo
atraente, mas ele nunca demonstrou nenhum interesse por elas, exceto Celia. A cabeça de Corrado
estava sempre nos negócios.
Sendo ou não da família, a presença de Corrado deixava Vincent desconfortável. Significava que
algo havia saído muito errado, mas o jovem ao lado dele não tinha experiência suficiente para saber
disso.
Nervoso, o rapaz não parava de mexer as mãos. Por ser um médico, para Vincent era óbvio que ele
estava sob o efeito de alguma droga. Talvez cocaína, ele pensou, mas metanfetamina também não o
surpreenderia. Ele já havia presenciado coisas demais na vida para se deixar chocar facilmente.
Salvatore olhou para o rapaz.
– Tem trabalhado para nós há quanto tempo?
– Um ano. – suas palavras irradiavam entusiasmo; tinha orgulho do bom trabalho realizado. O
sujeito não devia ser muito mais velho que os filhos de Vincent, o que significava que provavelmente
havia se envolvido aos dezoito. Jovens turcos idiotas.
– Um ano… – Salvatore repetiu – Pelo que seu capo diz, você já conseguiu bastante dinheiro para
nós… mais do que muitos garotos que trabalham nas ruas.
– É verdade. Apenas fazendo minha parte, sabe? É preciso colocar as mãos nas verdinhas.
De canto de olho, Vincent percebeu o sorriso no rosto de Corrado.
– Ouvi dizer que você tem pedido mais responsabilidades. – prosseguiu Salvatore – Acha mesmo
que possui o que é preciso?
– Com certeza. – o jovem confirmou – Já estou pronto desde que nasci.
Salvatore pegou uma garrafa de uísque e serviu quatro copos. Vincent pegou o seu e ficou a
distância, girando o líquido enquanto ouvia o rapaz se gabar de todos os serviços que fizera.
Sequestros e roubos, extorsões e apostas, mas, em nenhum momento ele mencionou de onde vinha a
maior parte do dinheiro.
– Drogas. – Vincent interrompeu, cansado das brincadeiras. – Esqueceu de mencionar as drogas.
O rapaz ficou branco. Mesmo trabalhando nos escalões mais baixos da organização, ele sabia que
a política da Casa Nostra era: não ser pego com drogas. Jamais.
– Que drogas?
– Aquelas que você tem vendido em sua casa. – disse Vincent – Um informante já nos disse que a
polícia tem informações sobre a localização.
– Eu, hum… Eu não…
Ele não teve tempo de inventar uma desculpa. Corrado levou a mão no casaco e sacou sua arma,
apontando para a nuca do sujeito. Vincent olhou para o lado e Corrado puxou o gatilho, com o
silenciador abafando o ruído da bala que atravessou o crânio do rapaz. Não havia qualquer emoção
no lugar. Corrado botou a arma de volta no casaco; Sal continuou bebendo seu uísque como se nada
tivesse acontecido. Vincent sentiu o estômago revirar no momento em que olhou para a expressão de
medo nos olhos do jovem e saiu rapidamente do iate, dirigindo-se até a lateral para vomitar.
Sal se juntou a ele e o observou com estranheza. Vincent soltou um suspiro e disse:
– Bem, parece que o enjoo finalmente me atingiu.
Corrado arrastou o corpo até o deque, embrulhou-o com uma lona, prendeu as correntes e o atirou
na água. Vincent ficou observando o corpo do jovem desaparecer na escuridão da água.
Agora eram cinco os que repousavam no fundo do lago.
Capítulo 7

A cabeça de Haven estava prestes a explodir quando ela abriu seus olhos no sábado seguinte à
consulta. Passaram-se uns três segundos até que ela se sentisse nauseada e tivesse de correr para o
banheiro a tempo de vomitar.
Uma hora se passou antes que ela pudesse se levantar. Com as roupas amarrotadas e os cabelos
desgrenhados, ela seguiu para baixo, dando de cara com Carmine já no segundo andar. Ele estava
acompanhado por uma garota de cabelos coloridos.
Ela vira Carmine algumas vezes naquela última semana, mas nunca sabia dizer o que ele estava
pensando. Ele ficou curioso ao olhar para ela. Aquela atenção fez com que seu peito se estufasse com
uma sensação desconhecida, algo que ela ainda tinha medo de encarar ou, até mesmo, de colocar em
palavras.
Escapando de ambos antes que pudessem falar, ela quase escorregou escada abaixo ao correr para
cozinha. Tentou se acalmar, lavando alguns pratos, mas uma voz inesperada à porta assustou-a ainda
mais:
– Olá, meu nome é Dia.
O copo que estava segurando escorregou de suas mãos no momento em que ela se virou, e, por
sorte, não quebrou.
– Ah, olá.
Dia ergueu as sobrancelhas e perguntou:
– Você está bem?
Haven olhou para ela. Era óbvio que não. Ela estava sozinha e sentia falta de sua mãe; estava tão
confusa e emocionalmente exausta que não sabia mais como agir. Isso sem mencionar que sentia estar
prestes a vomitar novamente.
– Estou bem – ela sussurrou, desviando o olhar. Então ela respirou fundo algumas vezes, ainda
tonta, e seguiu para as escadas mais uma vez sem dizer nada. Respirando pesadamente, ela se viu
obrigada a parar no topo do primeiro lance de degraus. Sua visão ficou embaçada, seu peito começou
a queimar e ela não conseguia mais respirar. Suas pernas falharam e não viu mais nada.
Ela caiu ao chão, batendo violentamente a cabeça na parede. Em seus ouvidos havia um ruído de
trem correndo sobre os trilhos.

– Haven?
Ela abriu os olhos ao ouvir a voz familiar, incrivelmente perto, e deparou com os olhos verdes
bem em frente aos dela. Ela piscou algumas vezes antes que Carmine se afastasse.
– Maledicalo! Você não pode fazer isso comigo, maldição!
Confusa, sua visão novamente ficou embaçada, mas, dessa vez, pelas lágrimas inesperadas.
– O que disse?
– Você não pode desmaiar novamente como acabou de acontecer! Parecia que estava morta. Jesus,
eu pensei que estivesse!
Ela o encarou. Ele se preocupara que tivesse morrido?
– Dom já chamou o meu pai para que ele venha dar uma olhada em você. Você bateu a cabeça com
muita força. – ele disse, passando a mão sobre sua testa. Seus dedos estavam frios sobre a pele que
queimava de febre. Ele falou novamente, com a voz tão suave que ela mal conseguia escutá-lo – Você
me assustou pra caramba, bella ragazza.
Ela olhou para ele.
– O que isso significa?
– O que significa o quê? Eu disse que você me assustou pra caralho.
Eles ficaram sentados em silêncio, Carmine passando as costas da mão em sua face enquanto
olhava para os olhos dela. Aquilo era desconfortável, mas Haven não conseguia interromper o olhar.
– Sinto muito que isso tenha acontecido – ela se desculpou –, e logo quando sua namorada estava
lhe fazendo uma visita.
As sobrancelhas dele se ergueram antes que ele caísse na risada.
– Eu não tenho uma namorada, mas, se tivesse, certamente não seria a Dia. Digamos que meu
equipamento não seja o mais adequado para ela.
Haven não tinha certeza do que ele queria dizer com aquelas palavras. Suas bochechas ficaram
vermelhas diante da intensidade do olhar do rapaz, mas antes que pudesse colocar os pensamentos
em ordem, escutou a voz de Dominic, irrompendo:
– Colpo di fulmine.
Ambos deram um pulo, olhando para a porta. Carmine retirou sua mão, perguntando:
– O que disse?
– Eu disse Colpo di fulmine. – um sorriso lento se espalhou pelo rosto de Dominic – Não sei
como não percebi antes.
A expressão no rosto de Carmine mudou.
– De jeito nenhum!
– Ah, sim! – disse Dominic – Boom!
Carmine saiu do quarto com Dominic gargalhando, sentando-se no lugar onde estava seu irmão.
– Aquele cara é cheio de surpresas.

Colpo di fulmine, uma expressão italiana cujo significado era algo como “raio fulminante”. É
quando o amor invade o coração de alguém, como um relâmpago, e de modo tão intenso que não
pode ser negado. É lindo, mas ao mesmo tempo complicado, abrir seu coração e revelar sua alma
para o mundo todo. Essa sensação é capaz de virar uma pessoa do avesso, e não há como voltar para
trás. Depois que o raio cai, sua vida muda radicalmente.
Carmine, entretanto, jamais acreditara naquilo tudo: Colpo di fulmine, amor à primeira vista,
almas gêmeas, flecha do cupido… Para ele, tudo aquilo não passava de baboseira. O amor era
simplesmente um sinal de que a pessoa estava iludida pela luxúria, que cegava os homens e os
impedia de usar o bom senso.
E ele ainda desejava pensar assim. Queria negar tudo aquilo. Mas algo dentro dele, lá no fundo,
que ia muito além da cerca de arame farpado e do escudo de aço reforçado que cercavam seu
coração, sugeria exatamente o contrário. E quando ele viu o corpo frágil de Haven caído no chão, ele
apenas não podia mais ignorar aquele sentimento. Aquela jovem tão peculiar havia aparecido do
nada, e ele temia que ela desaparecesse tão rápido quanto chegou. Que ela sumisse de sua vida antes
que tivesse a chance de conhecê-la. Seu peito doía ao pensar nisso, suas entranhas estavam em
chamas, e a jovem que provocara tudo aquilo não fazia a menor ideia.
Em outras palavras, Carmine estava realmente fodido.
Ele saiu como um raio daquela casa e dirigiu até a cidade, juntou todas as moedas que conseguiu
encontrar no carro para comprar uma garrafa de vodca de quinta categoria com sua identidade falsa.
Então parou na beira da estrada e bebeu sozinho na escuridão, até que sua mente estivesse atordoada
o suficiente para que não sentisse mais nada.
Ele acabou desmaiando e só acordou no dia seguinte, com uma bela enxaqueca. Colocou, então, os
óculos escuros e dirigiu de volta para casa, cuidando para não ultrapassar o limite de velocidade.
Afinal, não queria ser parado pela polícia, uma vez que certamente ainda haveria traços de álcool em
seu sangue. Ele tinha certeza de que seu pai ficaria tão animado em pagar sua fiança no meio da tarde
quanto os policiais em encontrar uma pistola Colt 45 debaixo do seu banco.
Quando Carmine entrou na casa, encontrou Haven dormindo no sofá da sala de estar. Naquele
momento algo mudou dentro dele. Ela estava toda arrepiada, então ele apanhou um cobertor no
armário e cuidadosamente colocou-o sobre ela. Ele já ia subir para tomar um banho quando resolver
pegar algumas bolachas para jogar no estômago. Ao retornar à sala de estar, ouviu Haven chamá-lo
pelo nome. Ele passou a mão nos cabelos no momento em que seus olhos se encontraram. Ela o
encarou com um olhar suplicante, e aquele era um convite que não poderia recusar.
Ele se sentou ao lado dela e perguntou:
– Está se sentindo melhor hoje?
– Sim. – ela respondeu, afastando-se um pouquinho dele – O doutor DeMarco disse que pode ser
uma virose estomacal. Pode ser contagioso, então é melhor ficar longe de mim.
– Não estou preocupado com isso – disse Carmine –, afinal, se pegar de você ficarei longe da
escola por alguns dias.
– Você não deveria estar na escola agora?
– É, deveria, mas não sou exatamente conhecido por fazer o que deveria.
Ela sorriu.
– Rebelde.
Carmine ficou surpreso ao perceber que o relacionamento dos dois estava mais relaxado. Ele
esperava alguma tensão. Haven ficou em silêncio por algum tempo, e seus olhos desceram até o peito
de Carmine. Logo ele percebeu que ela estava olhando para sua tatuagem.
Os olhos dela o encararam.
– O que quer dizer?
– Minha tatuagem? Il tempo guarisce tutti i mali, ou “O tempo cura todas as feridas.”
– Desculpe, não quis bisbilhotar.
– Tudo bem. A que tenho no braço é de uma cruz enrolada na bandeira italiana, e no pulso está
escrito fiducia nessuno. Em geral ela fica coberta. – ele então removeu o relógio e estendeu o braço
para que ela pudesse ver de perto as pequenas letras. Ela delicadamente passou os dedos sobre as
palavras. Aquele simples toque provocou nele uma forte sensação e o fez fechar os olhos.
– O que quer dizer?
Ele recolocou o relógio no pulso e respondeu:
– Não confie em ninguém.
– Doeu pra fazer?
Ele deu de ombros.
– Já senti dores bem piores.
Várias imagens passaram em sua mente ao dizer aquelas palavras, e sem perceber, passou a mão
na cicatriz que tinha no rosto. Ele se perdeu naquela memória por um momento, até que ouviu um
ronco e retornou à realidade. Ele olhou para Haven, percebendo que era seu estômago.
– Você come alguma hora?
Ela afirmou com a cabeça.
– Sim, toda noite.
– É verdade? Você nunca janta conosco.
A jovem hesitou.
– O mestre Michael disse que alguém como eu não deveria jamais dormir na mesma casa que
alguém como você, e muito menos se sentar à mesa de jantar.
– Meu Deus, eles fizeram uma lavagem cerebral em você. Você sempre viveu com esse Michael?
– Ele estava sempre por perto, mas não se tornou meu mestre até que seus pais morressem.
– E os pais dele eram assim tão ruins quanto ele?
– Frankie me assustava, mas ele não me batia muito. A senhora Mônica às vezes brincava comigo
quando eu era criança. Michael me ignorava no início, mas as coisas pioraram quando a dona da casa
percebeu que ele… Bem… que ele…
– Ele o quê?
– Ele me fez.
Os olhos de Carmine se arregalaram.
– Michael é seu pai?
Constrangida, ela começou a mexer nas unhas.
– Sim, mas não queria ser.
Capítulo 8

Pela primeira vez desde que chegara a Durante, ela não escutou música durante a noite.
Haven imediatamente percebeu que algo estava errado, que estava se intrometendo e
testemunhando algo que não era de sua conta. Alguma coisa sagrada e íntima.
Contudo, ela não conseguiu evitar.
Inquieta e exausta, ela se sentia ansiosa demais para conseguir dormir. Então, levantou-se da cama
e topou com Carmine na sala de estar. Ele parecia estar em transe. O brilho do luar iluminava o
cômodo silencioso, e o jovem estava sentado diante do piano, inclinado para frente, olhando para as
teclas. O rapaz passou a mão nos cabelos, abaixou a cabeça e soltou um grito abafado; um choro
triste ecoou pela sala. Prendendo a respiração e sentindo seu coração se contrair, Haven deu um
passo atrás e voltou para cima, aliviada por chegar ao quarto sem ser pega.
Estava perturbada. Mesmo sem saber o que sentia por ele, vê-lo tão triste a deixou preocupada.
Seu alarme soou diante daquela percepção e seu coração disparou. Vulnerabilidade não lhe faria
nenhum bem, apenas a machucaria.
Somente depois que ouviu Carmine subir, ela teve coragem para se aventurar e descer as escadas.
Ela preparava o café da manhã para se distrair dos pensamentos, e acabava de terminar tudo quando
Carmine apareceu. Ele abriu a geladeira, pegou o jarro de suco de laranja e então passou por ela
para pegar um copo.
– O cheiro está bom. – ele disse. Mas suas palavras pareciam desprovidas de sentimento ou
verdade. Haven tentou a todo custo controlar seu desejo de aliviar as olheiras sob aqueles olhos
vermelhos.
Enquanto os rapazes comiam, Haven descobriu como fazer café. Ela sabia que o doutor DeMarco
apreciava tomá-lo todas as manhãs. Já estava quase pronto quando ele entrou na cozinha e se deteve
a menos de meio metro de onde estava. Ele olhou para o bule antes de se virar para ela e dizer num
tom acusatório:
– Você fez meu café.
– Sim, senhor. – ela respondeu – Está com fome?
– Ficarei em casa hoje. – ele disse, ignorando sua pergunta – Não quero ser incomodado, a menos
que seja uma emergência.
E saiu sem tomar o café.

Além de lavar algumas roupas do doutor DeMarco, não havia muito a fazer naquele dia. Por volta
do meio-dia, Haven já havia lavado e carregado todas as roupas dele para cima. DeMarco
costumava deixar as portas abertas nos dias em que desejava que ela fizesse limpeza, uma vez que
não lhe dera os códigos para entrar.
Ela puxou o cesto para dentro do quarto e abriu a gaveta da cômoda, mas parou ao ver o revolver
prateado sobre as roupas. Então pegou-o pela parte de trás e o tirou de seu caminho, sentindo um
desconforto na barriga. Era bem mais pesado do que imaginara.
O som de uma porta batendo chamou sua atenção e ela se virou para a direção de onde veio o
barulho. O doutor DeMarco estava de pé dentro do quarto, e havia trancado a porta. Um medo
intenso tomou conta da jovem vendo a expressão em seu rosto. Ele carregava a mesma máscara
serena de sempre, mas seus olhos estavam tomados pelo ódio.
Num reflexo ela soltou a arma, que caiu sobre a cômoda fazendo barulho. O fogo nos olhos do
doutor DeMarco tornou-se ainda mais intenso com o ruído. Ele então esticou o braço para trás e, de
um jeito cuidadoso e deliberado, quase em câmera lenta, colocou a mão sobre a fechadura de
segurança, girando-a suavemente.
O coração de Haven disparou ao ouvir o clique do dispositivo. Naquele momento ela descobriu
que cometera um grave erro. Ela nunca o tinha visto daquele jeito; seus olhos escureceram como um
tornado que se aproxima, destruindo tudo ao ser redor. Havia neles um brilho maldoso e
imprevisível. Olhando para o médico, Haven finalmente vislumbrou o verdadeiro Vincent DeMarco.
O monstro.
Ele deu um passo à frente e, instintivamente, Haven também deu um passo para trás. Ela ficou
presa à parede enquanto DeMarco parava diante da cômoda e pegava a arma.
– Essas coisas são tão lindas. – ele disse, esticando a mão dentro da gaveta e pegando um projétil
dourado, segurando-o – É fascinante o tamanho da devastação que algo tão pequeno é capaz de
causar. Entende alguma coisa sobre armas?
A frieza em sua voz assustava Haven cada vez mais, fazendo seu corpo todo tremer. Ela tentou
parecer forte, mas sua voz também estava trêmula.
– Não, senhor.
Ele recolocou a bala na gaveta e a fechou, olhando para a arma.
– Este é um revolver Smith & Wesson 627, calibre Magnun 357, capacidade de oito tiros; a
munição é de balas de ponta oca. Tenho muitas armas, mas esta aqui sempre foi minha favorita. Ela
nunca me deixou na mão – ele pausou –, exceto uma vez.
Ele apontou a arma para Haven e continuou a se aproximar, colocando o cano contra sua garganta.
Ela não conseguia respirar; a força aplicada impedia o fluxo de ar.
– Um movimento do meu dedo no gatilho fará um buraco no seu pescoço que certamente a matará.
Se tiver sorte, pode ser bem rápido, mas não há garantias. O mais provável é que você não consiga
falar ou respirar, mas sinta tudo até sufocar.
Ele retirou o cano, permitindo que ela respirasse e novamente pressionou-o contra sua garganta.
Seu peito parecia que ia estourar quando ele voltou a falar.
– Será que devemos ver o que acontece se eu puxar o gatilho? Acho que sim.
Ela tentou chorar preparando-se para sentir a dor. Aquele seria seu fim. Ela iria morrer, então,
cerrou os olhos à espera da explosão e deu um pulo ao ouvir o clique. A pressão em seu pescoço
desapareceu e ela caiu no chão, chorando e soluçando, sem conseguir se levantar.
– Olhe para mim. – ele ordenou, estendendo a mão e segurando seu queixo de um jeito rude – Você
teve sorte por não estar carregada, ou estaria morta agora. Compreende?
Exasperada, ela balançou afirmativamente a cabeça.
– Bom. Agora vá para seu quarto e espere sua punição. É hora de aprender o que acontece quando
as pessoas esquecem seu lugar.
DeMarco destrancou a porta e saiu com a arma em punho. Suas palavras reverberavam em sua
mente enquanto imagens do passado surgiam à sua frente; flashes de olhos sem vida consumiam seu
coração. É isso o que acontece quando as pessoas esquecem seu lugar.
A morte aconteceu. A número 33 morreu. Frankie lhe havia dito para se lembrar e ela tinha plena
certeza de que jamais esqueceria. Como poderia esquecer?
Ela conseguiu se colocar de pé e mesmo com as pernas trêmulas chegou ao terceiro andar. O medo
sobrepujava qualquer lógica. Chegando lá, ela foi direto para o quarto de Carmine, abriu a janela e
passou por ela. Correu pela varanda, prendeu a respiração e se forçou a não olhar para trás, enquanto
pulava na árvore para escorregar até o jardim.
No momento em que seus pés tocaram o solo, ela correu. Galhos e gravetos arranhavam seu rosto e
seus membros conforme se embrenhava na floresta densa. Seu coração batia descontrolado. Ela se
movia o mais rápido que suas pernas lhe permitiam, sem qualquer senso de direção. Estava mais uma
vez correndo por sua vida.
Finalmente a floresta tornou-se menos densa. Haven percebeu uma clareira por trás das árvores e
correu naquela direção, direto para a estrada. Foi então que ela ouviu o som dos pneus brecando
praticamente em cima dela, e perdeu o ar ao reconhecer o familiar carro preto.
Não, não, não… Ela tentou se afastar, sacudiu com a cabeça para que ele não a tocasse, mas era
tarde demais.
DeMarco segurou-a pelo braço e arrastou-a até o carro. Ela implorou ao ver o porta-malas aberto,
mas sem muito esforço ele a pegou e enfiou dentro do compartimento. Ela estava apavorada. Ele a
encarou com fúria nos olhos e em seguida fechou o porta-malas.
Haven se sentia aterrorizada presa na escuridão. À medida que acelerava o carro, o corpo da
jovem era jogado de um lado para o outro. Sua cabeça batia contra a lataria. Soluçando, ela ainda
tentou buscar um meio de fugir. Uma luz se acendia toda vez que ele pisava no freio, iluminando o
espaço por tempo suficiente para que ela pudesse enxergar. Ela então encontrou uma pequena
alavanca e a puxou, ficando atônita ao ver que a tampa se abriu. Mais uma vez DeMarco pisou nos
freios e embora tenha sido atirada mais uma vez, ela conseguiu pular para fora. Seus pés, entretanto,
não a levaram muito longe. Logo ela sentiu um braço ao redor de seu pescoço e uma mão
pressionando sua cabeça. Ela lutou, mas ele era forte demais para ela.
Em questão de segundos tudo ficou escuro.

Quando Haven recobrou a consciência, percebeu que estava no chão do seu quarto, amarrada à
cabeceira da cama. O doutor DeMarco estava de pé a alguns metros de distância, observando,
esperando. Ela soltou um soluço no momento em que viu a realidade ao seu redor, mas DeMarco
ergueu a mão para que ela permanecesse em silêncio.
– Você realmente achou que conseguiria escapar? Não aprendeu a lição da última vez que tentou?
Eu já lhe disse uma vez. Você não conseguirá ser mais esperta do que eu.
– Eu não… Eu… eu só… – seu choro escondia as palavras – Eu só não quero morrer.
DeMarco tornou-se ainda mais rígido antes de pegar um rolo de fita adesiva do criado-mudo. Ela
lutou o quanto pôde enquanto ele rasgava um pedaço de fita, mas isso não o impediu de tapar sua
boca.
– Quero que você pense em tudo de bom que tem aqui. Pense na sorte que tem por ainda estar viva.
Ele então saiu do quarto, deixando-a sozinha.
Nove anos.
Quase uma década havia se passado desde o dia fatídico que mudaria para sempre a vida de
Carmine. O dia sobre o qual ninguém falava. Porém, aquilo ainda o afetava como se tivesse
acontecido no dia anterior, embora ninguém soubesse. Até então, ninguém jamais desconfiara de que
ele costumava chorar durante as noites, sem conseguir dormir. Mas pela primeira vez em todo esse
tempo, ele desejou que alguém soubesse.
No momento em que chegou da escola e entrou pela porta, já se deu conta de que algo acontecera.
Era uma sensação que pairava no ar; um silêncio sufocante; uma percepção de perigo que disparou
um fluxo de adrenalina em seu corpo, queimando seus nervos enquanto o sangue corria por suas
veias.
Carmine subiu as escadas, olhando para os lados, e se deparou com a porta do seu quarto aberta.
Uma brisa gelada tomava conta do cômodo; a janela estava aberta e as cortinas, ondulando ao vento.
Seu coração disparou. Aquilo era ruim. Aliás, era péssimo.
A voz atrás dele era fria e desapegada.
– Como ela sabia?
Carmine se virou e viu o pai próximo às escadas, casualmente encostado à parede, com seu
revolver enfiado no cinto.
– Como ela sabia o quê?
– Como ela sabia que a janela do seu quarto podia ser aberta, Carmine? Porque esta é a minha
casa, e eu não sabia!
Carmine se virou para a janela. Que merda!
– Onde ela está?
– Isso importa?
– Sim.
Seu pai o encarou de um jeito sério.
– Por quê?
Carmine empalideceu. Por quê?
– Porque sim. Você é muitas coisas, pai, mas… Jesus Cristo, isso? Eu não sabia que o senhor era
um homem tão mau!
Os olhos de Vincent se estreitaram.
– Você tem algo a me dizer?
– Sim. Nada irá trazê-la de volta.
A máscara de controle de Vincent caiu.
– O que disse?
– Você me ouviu muito bem. Isso não mudará nada! Ela nunca voltou!
Aquelas palavras estilhaçaram algo dentro de Vincent, fazendo com que ele perdesse sua sanidade.
Ele pegou a arma e a apontou para a cabeça do filho.
– Não vai atirar em mim – Carmine disse –, afinal, eu me pareço demais com ela.
Vincent assentiu com a cabeça, confirmando as palavras do filho.
– Fique longe daquela garota.
Ele disse em tom de ameaça, mas Carmine sentiu-se aliviado. Aquilo significava que Haven ainda
estava ali, em algum lugar da casa, e ele não tinha a menor intenção de se manter distante da jovem.
O tempo se passou de maneira terrivelmente lenta para Haven enquanto ela mantinha a mesma
posição no quarto escuro. Seus músculos doíam e nada parecia capaz de aliviar a tensão. Ela gritou
até ser tomada pela exaustão e acabou dormindo.
Um barulho a acordou um pouco mais tarde; a dor se tornou insuportável no momento em que abriu
seus olhos. Ela mal podia ver uma forma encoberta pelas sombras; franziu as sobrancelhas ao
encontrar aqueles olhos verdes e tristes. Carmine se ajoelhou diante dela e secou as lágrimas antes
de deslizar os dedos sobre a fita que cobria sua boca.
– La mia bella ragazza. Sinto muito que isso tenha acontecido.
Ela o analisou por um segundo; sua cabeça se inclinou como se aquilo a ajudasse a compreender.
– Hoje é aniversário de… Droga… Caralho! Por que não consigo dizer? É o dia em que minha
mãe… – ele parou, deixando-a confusa. Ninguém falava a respeito da mãe de Carmine. Haven sequer
sabia o nome dela – Eu gostaria de poder soltá-la, mas ele me mataria. Não, ele mataria você. Ele me
ordenou que não me aproximasse de você, mas precisava saber se estava bem. Mas, Jesus, olha pra
você! O que há de errado com ele?!
Ele ajeitou os cabelos da jovem atrás das orelhas; seus dedos mais uma vez deslizaram sobre a fita
adesiva.
– Voltarei pela manhã. Mantenha-se forte, tesoro. Nunca deixarei que nada de ruim te aconteça
novamente.

– Você está acordada?


Os olhos de Haven se abriram ao escutar a voz do doutor DeMarco na manhã seguinte; seu tom já
não era tão rude como no dia anterior. Agachando-se ao lado dela, ele pegou a ponta da fita adesiva e
a arrancou de uma só vez. Ela recuou; seus lábios tremiam sem parar.
O doutor DeMarco a livrou das amarras que a prendiam e ela esfregou os pulsos que queimavam.
Ela ficou sentada ali com a cabeça abaixada, limpando o nariz com a manga da camisa, ao mesmo
tempo que flexionava suas pernas, tentando se livrar das câimbras.
Depois de apenas alguns minutos Carmine bateu e entrou no quarto com um copo de água na mão.
Ele se ajoelhou mais uma vez ao lado dela.
– Beba isso.
Ela pegou o copo e tentou oferecer-lhe um sorriso diante de sua generosidade, mas não conseguiu.
Tudo em seu corpo doía demais.
Carmine lhe ofereceu uma pequena pílula amarela. Os jovens na escola comeriam isso como se
fossem balas, se pudessem.
– Isso aliviará sua dor.
Ela pegou o comprimido e o engoliu, dizendo em seguida, em voz baixa:
– Obrigada.
– De nada. Acha que consegue se levantar?
Carmine estendeu suas mãos em direção a ela e a puxou para que ficasse de pé, mas no momento
em que ele a soltou os joelhos da jovem falharam. Carmine praguejou e a segurou antes que ela fosse
ao chão, puxando-a em sua direção.
O rosto dele se suavizou no momento em que ele a pegou e a carregou até seu quarto, colocando-a
na cama dele. Confusa, ela permaneceu imóvel enquanto Carmine desapareceu no banheiro,
retornando em seguida com vários itens de primeiros-socorros. Ele jogou tudo o sobre a cama e
sentou-se ao lado dela, com uma toalha na mão.
– Preciso cuidar de você. Não queremos que esses ferimentos infeccionem.
Carmine limpou o rosto dela; a toalha úmida lhe causou uma sensação confortável na pele. Ele a
passou sobre a boca, sendo bastante gentil, e limpou o sangue de seus punhos. Haven fez o possível
para ignorar a dor, mantendo-se focada no rosto dele, absolutamente concentrado.
A dor começou a desaparecer à medida que a droga fazia efeito.
– Você é bom nisso.
Ele sorriu.
– Bem, tenho feito isso a minha vida toda.
Capítulo 9

Carmine fez uma pausa ao lado da cama e encarou Haven, cujo rosto estava enfiado no travesseiro
dele. Ele sorriu de modo inconsciente ao vê-la se sentar.
– Quer falar a respeito do que aconteceu?
– Não há nada pra falar. – ela sussurrou – Eu sobrevivi. É isso que eu faço. E continuarei a
sobreviver até quando for possível.
– Então, está me dizendo que é uma sobrevivente?
Suas faces enrubesceram.
– É, isso não soou muito inteligente. Acho que preciso de um di… dicio… Ah, um desses livros
com palavras.
– Um dicionário? – perguntou rindo.
– Sim, isso.
– Eu te arrumarei um se me prometer que irá usá-lo.
– Claro, usarei – um reconhecimento brilhou em seu rosto, mas, em seguida, o sorriso esvaneceu –
Se bem que… você terá de ler pra mim. Não sei ler.
– Jura?
Ela hesitou.
– Bem, na verdade só um pouquinho. As pessoas me ensinavam e eu também captava algumas
coisas de quando minha patroa assistia TV e apareciam as legendas… Então, acho que posso dizer
que também já assisti um pouco de televisão.
Ele balançou a cabeça, em reprovação.
– Ainda não compreendo porque isso importava para aquele sujeito, o Michael.
– Porque pessoas inteligentes tentam escapar. – ela respondeu – Elas acham que conseguirão
sobreviver no mundo lá fora. Os que não entendem nada são mais fáceis de controlar. É por isso que
eles precisavam me manter nas rédeas.
Ele ficou boquiaberto e surpreso diante de sua repentina seriedade, respondendo apenas:
– Tudo bem.
Haven deu risadas; sua expressão satisfeita logo ressurgiu em seu rosto.
– Esse “tudo bem” significa “compreendi o que disse, Haven”, ou é do tipo “vou concordar apenas
porque não sei o que deveria dizer”.
Ela gozou da cara dele. Justamente dele.
– Você usou a expressão de um jeito todo errado. Nem falou palavrão!
– Nunca digo palavrões.
Ele ergueu uma sobrancelha e perguntou:
– Por quê não?
– Vi muita gente perder os dentes depois de falar palavrões.
– Então, não xingar fez com que você mantivesse todos os seus dentes?
– Não, isso foi sorte mesmo. Depois de levar tantos socos no rosto eu deveria estar ainda mais
desfigurada que agora.
Ele replicou.
– Você não está desfigurada.
– Meu nariz não é bonito. – ela disse, de um jeito trivial – Tem um carocinho aqui, bem aqui.
Ele estreitou os olhos ao olhar para o nariz dela, mas não viu nada de errado nele.
– E como foi que você conseguiu esse carocinho, supostamente tão horrível?
– Minha dona me deu um chute no rosto.
Ele se contraiu.
– Mas por que ela chutou você?
– Porque arranhei os sapatos de salto alto dela quando ela tropeçou em mim.
– E por que razão ela tropeçou em você?
– Não sei, acho que pra se divertir.
Ele franziu o cenho.
– A cadela tropeçou em você de brincadeira, ficou puta porque arranhou o próprio sapato e
decidiu chutar seu nariz como punição?
Ela fez que sim com a cabeça.
– Quer saber a cor dos sapatos também? Afinal, já que perguntou todo o resto. – os olhos de
Carmine arregalaram diante do tom sarcástico. Haven percebeu sua expressão de estranheza e cobriu
a boca – Sinto muito.
– Não sinta. – ele respondeu – Se quiser me contar a cor dos sapatos, faça isso. Mas se estiver de
saco cheio com as minhas perguntas, me mande calar a maldita da minha boca.
– Eles eram vermelhos, e não ligo que me faça perguntas. – ela disse – Nem acredito que disse
essas coisas para você.
Ele sorriu.
– É o remédio. É por causa dele que na última meia hora você está tirando sarro da minha cara, se
soltando e falando à vontade.
– Então quando o efeito passar eu vou ficar com dor e envergonhada? E até mesmo em apuros?
– Não há razão pra ficar constrangida. – ele disse – E nada irá superar o fato de você ter pulado
pela janela do meu quarto, então não acho que deva se preocupar em ficar em apuros por causa do
que disse.
Ela começou a mexer nas unhas e perguntou:
– Eu te coloquei numa enrascada também?
– Nada além daquelas em que eu já me meto diariamente. – ele descontraiu – Só que ele veio aqui
no meio da noite e pregou a janela, portanto, não temos mais como escapar pela árvore… Pelo menos
até eu conseguir destravá-la de novo.
– Entrei em pânico. – ela disse – Pensei que ele fosse me matar.
– Ele não o faria… – Ele não a mataria? Carmine não estava tão certo de que acreditava em suas
próprias palavras – Mas por que pensou que ele fosse fazê-lo?
– Ele disse a mesma frase que meu mestre usou quando eu o vi matar uma menina.
Carmine não sabia o que esperar em resposta, mas certamente aquilo o chocou.
– Você viu uma garota morrer? Isso foi o pior que já viu na sua vida?
– Talvez. Eu já vi muita coisa.
– Do tipo?
Ela desviou os olhos.
– Como minha mãe sendo estuprada.
Apesar do efeito que aquelas palavras provocaram nele, Carmine estava satisfeito com o que quer
que a empresa farmacêutica tivesse usado naquele medicamento. O comprimido fez com que ela se
abrisse.
– Isso jamais acontecerá com você. Sabe disso, não é?
Ela balançou a cabeça, mas não pareceu estar convencida.
– Olha, o sexo pode ser ótimo quando os dois querem praticar, mas nunca tocaria numa mulher a
menos que ela quisesse. Ninguém aqui faria isso. Isso é errado.
– Você ama as mulheres em que toca?
– Não – ele se sentiu mal em admitir.
– Já se apaixonou?
Ele a encarou, sem saber ao certo o que dizer.
– Não sei. Ainda estou tentando entender o que é o amor.
– Eu também – ela disse –, é tão confuso.
Ele torceu o lábio ao pensar sobre aquilo. Será que ela estaria sentindo o mesmo que ele? Ele não
podia perguntar isso. Mesmo que dissesse que sim, não ficaria claro se a afirmação não teria sido
por causa da droga.
Deitando-se na cama, Carmine olhava para o teto, quando Haven perguntou, com as palavras
escorregando de sua boca pela exaustão em que se encontrava:
– Carmine? Qual a pior coisa que você viu na vida?
Ele ponderou um pouco antes de responder. Aquela história ele jamais contara a ninguém. Sua
família sabia os detalhes técnicos, a merda que saiu nos jornais, mas ele nunca falou sobre o que
acontecera.
Poderia compartilhar com ela?
Ele olhou para a jovem e sorriu ao perceber que os olhos dela estavam fechados e seus lábios
semiabertos. Ela caíra no sono. Ele teria contado a história, percebeu. Teria lhe dito qualquer coisa.

Quando Haven acordou, sentiu dores até em músculos que desconhecia possuir. O perfume
intoxicante de colônia invadia seus pulmões, pegando de assalto cada célula viva de seu corpo. Foi
então que ela respirou fundo. Aquilo a lembrava do cheiro que costumava sentir em Blackburn,
quando se aproximava uma tempestade que duraria dois dias.
Haven se sentou. Ela precisava clarear os pensamentos e esticou as costas. Nesse momento,
Carmine pegou um frasco de Tylenol, sentou-se ao seu lado e lhe deu as pílulas antes de esticar a
mão e agarrar um vasilhame de água pela metade que estava em sua mesa de cabeceira.
– Juro que não tenho nenhuma doença.
Ela pegou a garrafa de sua mão e bebeu o resto da água, devolvendo em seguida para ele. Ele
pegou o vasilhame e, dando de ombros, o atirou sobre a pilha de roupas sujas. De algum modo o
quarto estava ainda mais bagunçado que da última vez que o vira.
– Eu poderia limpar seu quarto pra você.
– Não a forçarei a fazer isso.
– Eu sei, mas você foi tão bom comigo. Gostaria de retribuir.
Ele ergueu uma sobrancelha e disse:
– Certo. Mas não fale isso em voz alta, pois poderia arruinar minha reputação. É, talvez eu lhe
peça ajuda com o meu quarto algum dia, mas não hoje.
– Algum dia, então.
Ambos ficaram num silêncio desconcertante. Haven tentou pensar em algo para dizer e aliviar o
peso que pairava no ambiente, mas os olhos dele a encaravam, não deixando que se concentrasse em
outra coisa que não fosse seu olhar.
Haven então voltou a olhar para o quarto, sentindo a necessidade de interromper aquela situação.
– Preciso tentar me levantar logo. Quanto mais ficar deitada, mais difícil será quando tiver de me
levantar.
Carmine a ajudou a ficar de pé. Colocar o peso sobre as pernas não foi fácil. Ele segurou seu
braço o caminho todo pelas escadas, soltando-a de um modo hesitante quando chegaram à sala de
estar.
Ambos se sentaram tranquilamente no sofá enquanto a noite caía. Carmine pegou o controle remoto
e ligou a TV, mudando de canal sempre que surgiam os comerciais. Pouco depois das sete, ele
finalmente se decidiu por um episódio do programa Jeopardy! “Esse prato popular consiste de tiras
largas de massa, intercaladas com queijo e carne moída, ao molho de tomate”.
– Lasanha! – Haven e Carmine responderam ao mesmo tempo.
Ela sorriu e perguntou:
– Que programa é esse?
– É um programa de perguntas e respostas sobre temas idiotas – explicou, completando –, como as
coisas que aprendemos na escola.
Ela se virou para a televisão e permaneceu atenta a tudo que foi dito até o final. Quando o show
terminou, ela se virou para Carmine. Ele parecia entediado, com a cabeça apoiada sobre a mão, no
braço do sofá. Então, ele novamente mudou de canal.
– Obrigada – ela disse –, gostei muito daquele programa.
– Passa todas as noites no mesmo horário. – ele disse – Sabe… Caso você queira assistir
novamente.

A porta da frente se abriu alguns minutos depois e Haven ficou nervosa ao ouvir os passos. Ela
podia sentir que Carmine estava olhando intensamente para ela, mas não conseguiu retribuir o olhar.
Não queria ver sua expressão; sua pena. Ele a tratara de igual para igual, e ela não queria se sentir
novamente menos que o rapaz.
O doutor DeMarco entrou na sala trazendo consigo uma tensão desconfortável. Haven tentou
controlar um surto de ansiedade, concentrando-se numa mancha no chão.
– Poderia ir para seu quarto, Carmine? – pediu DeMarco – Gostaria de conversar com ela a sós.
O coração de Haven disparou e ela voltou a cutucar as unhas, tentando manter a compostura
enquanto Carmine deixava o local. O doutor DeMarco se abaixou diante dela, bloqueando o ponto
para o qual ela estava olhando, então, sem desviar a cabeça, ela fixou os olhos na camisa dele.
Ele ergueu a mão e, nesse momento, Haven se contraiu tentando se proteger o máximo possível,
cruzando os braços e se mantendo o mais distante possível. A sensação de constrangimento continuou
e Haven mordeu o lábio inferior para se controlar.
– Você deveria descansar suas pernas por alguns dias. – ele enfim disse, colocando as mãos sobre
os joelhos dela e pressionando-os levemente.
Ela sentiu dor e voltou a se contrair.
– Estou bem, senhor.
– Você sofre de bursite. É quando as pequenas bolsas serosas sobre as rótulas se inflamam. É
preciso que você descanse e coloque gelo sobre os joelhos para que o inchaço desapareça.
Ele então soltou os joelhos da jovem, mas permaneceu agachado.
– Ouça. – ele disse com a voz mais suave – Sabe o que é um chip GPS?
Ela balançou negativamente a cabeça.
– É um dispositivo de rastreamento, às vezes tão pequeno quanto um grão de arroz. Meu carro tem
um. Se alguém roubá-lo, poderei encontrá-lo rapidamente. É uma medida de segurança para que
ninguém tire de mim aquilo que me pertence. – ele pausou – Você não é diferente, criança. Há um
chip instalado em você.
Ao ouvir aquelas palavras Haven o encarou. Havia simpatia em seus olhos, o que a deixou ainda
mais enojada.
– Eu instalei um em você no primeiro dia em que veio para essa casa. Portanto, não importa o que
aconteça, eu sempre a encontrarei. Foi assim que eu soube exatamente onde estava ontem.
Ela não conseguia falar. Temia que se abrisse a boca perderia o controle. Ela nunca reagira desse
modo com o mestre Michael. Ela suportara anos de abuso e poderia ter aguentado ainda mais. Talvez
ferida, mas forte. Porém, em apenas um segundo e sem levantar a mão ou o tom de voz, DeMarco
havia estilhaçado algo dentro dela.
Capítulo 10

Agora era outono na cidade de Durante. O belo verde que tomava conta da região foi aos poucos
desbotando e sendo substituído por tons ricos e quentes que recobriam o solo entre os pinheiros.
Havia montanhas de folhas secas no chão. Era como um enorme tapete estaladiço.
Com o outono veio também o festival mais popular da cidade, o Homecoming, uma grande festa
para reunir todos os alunos da escola e elevar o espírito de todos com um desfile e um jogo de
futebol. A semana era repleta de atividades que culminavam em um baile. Carmine deveria estar
entusiasmado, mas, dessa vez, estava com medo da aproximação da data.
Haven se tornara fria com ele novamente, escondendo-se sempre que estava em casa. Ele a ouvia
chorar à noite enquanto ficava sentado na biblioteca, passando o tempo tocando seu violão. Ele
queria poder ir até ela e consolá-la, mas não sabia o que lhe dizer. Sinto muito que esteja aqui? Sinto
muito por estar presa nessa casa? Peço desculpas pelo fato de o meu pai ser um filho da puta? Como
ele poderia explicar aquilo, ajeitar aquela situação, quando nada parecia fazer sentido nem para ele
próprio?

Eram quase seis da tarde quando Haven abriu a porta e deu de encontro com o doutor DeMarco.
Ele estava parado no hall e pronto para bater à sua porta; ela recuou quando ele abaixou a mão.
– Posso entrar?
Ela assentiu, confusa pelo fato de ele lhe pedir permissão para entrar em um cômodo de sua
própria casa.
Ele entrou de modo casual, como se estivesse ali para uma conversa normal. Olhou para os lados e
então se dirigiu a ela:
– Como estão seus joelhos?
– Estão bem. – ela respondeu em voz baixa.
– Acha que está em condições de fazer um passeio?
Aquela pergunta a deixou alarmada. Uma voz em sua mente gritava: isso é um truque!
– Somente se você disser, senhor. – ela disse, sem fixar os olhos.
DeMarco aproximou-se dela, fazendo-a contrair o corpo. Seu coração batia acelerado e ela cruzou
os braços imaginando que levaria um tapa. Porém, ele não a tocou. Um suspiro frustrado escapou de
seus lábios, ao se virar e pinçar o alto do nariz com os dedos, franzindo a testa.
– Nós vamos ao jogo de futebol de Carmine. Vista algo apresentável.
Ela ficou ali parada, sem a menor ideia do que ele quisera dizer com “apresentável”. Ela então
vestiu calças cáqui e um suéter. Escovou os cabelos encaracolados, mas nada era capaz de deixá-los
menos volumosos. Ela então fez um rabo de cavalo e enfiou os pés num par de sapatos, pronta para
descer as escadas. DeMarco a aguardava no hall com as mãos enfiadas nos bolsos, balançando o
corpo para frente e para trás. Percebendo sua aproximação ele a olhou da cabeça aos pés. Ela
esperou por sua avaliação, mas ele não disse nada, apenas pegou as chaves e abriu a porta. Haven
aguardou por ele na varanda até que trancasse a casa. Em seguida, ele a levou até o banco do
passageiro.
O estacionamento do Colégio Durante estava lotado quando eles chegaram. Havia carros parados
na rua e até mesmo no campo ao lado da escola. Haven os observou com admiração, enquanto
DeMarco estacionava sobre a grama.
– Agi de uma maneira inadequada. – ele disse – Mantive-a dentro de casa até achar que estivesse
pronta para se comportar bem em público, mas você nunca conseguirá isso se eu não permitir que
tenha contato com pessoas. Então, estou lhe dando uma chance e espero que você se comporte bem.
– Sim, senhor.
Seus joelhos tremiam ao caminharem até o estádio. As pessoas os cercavam por todos os lados,
empurrando e bloqueando a passagem. DeMarco caminhou tranquilamente por entre a multidão. Ela
vinha atrás dele e sentia-se como se estivesse se afogando. Aquela multidão a cercou completamente.
Era como se aquelas vozes e pessoas a engolissem. DeMarco a ignorou enquanto seguiam para as
arquibancadas lotadas.
Havia uma voz nos autofalantes durante a apresentação de uma banda, e as líderes de torcida
cantavam algo que Haven não compreendia por causa do barulho da multidão. Ela tampou os ouvidos
até que todos se sentassem, apenas retirando as mãos quando tudo já estava mais calmo.
Um riso familiar fez com que Haven olhasse para um lado. Era Dominic, caminhando na direção
deles com o braço ao redor de uma jovem, e Dia os seguindo, com um olhar invejoso.
Dominic se sentou na frente deles e apresentou Haven à namorada dele. Tess observou Haven por
um momento, com um olhar intenso, mas não disse uma única palavra ao se sentar ao lado do
namorado. Dia, por sua vez, dirigiu-se até a frente de Haven e DeMarco. Aquilo assustou a jovem,
mas o médico simplesmente se levantou e sentou no próximo lugar que estava vago.
Haven se voltou para o jogo, tentando ignorar as pessoas ao seu redor. Ela olhou para o campo em
silêncio quando viu um jogador ser atingido nas costas. Ela se contraiu.
– Nossa, parece que o número três foi atingido. – ela disse – Espero que ele esteja bem.
– Ele está bem – disse Dominic –, Carmine é durão.
Seus olhos se voltaram mais uma vez para o campo. Carmine?
Ele se levantou e flexionou os dedos. O número três de sua camiseta estava agora sujo de grama e
terra. A jovem ficou com a boca seca ao ver aquilo. Então era aquilo que o grande número preto
significava.
– Você não entende nada de futebol, não é? – perguntou Dominic, virando-se para ela – Não, posso
ver pela sua cara.
– Não… – ela respondeu com um sorriso envergonhado.
Dominic ainda estava tentando explicar o básico sobre o jogo, embora ela não estivesse
entendendo praticamente nada, quando Carmine tirou o capacete. A pele dele brilhava de suor sob a
luz do estádio. Quando ela o viu sua respiração ficou ofegante.
Carmine se virou para as arquibancadas e seus olhos se voltaram na direção deles. Haven poderia
jurar que ele a encarou por um segundo a mais que os outros.
O resto do jogo transcorreu normalmente, mas a energia do estádio deixou Haven um pouco tensa.
De vez em quando alguém se aproximava de DeMarco, mas ninguém lhe perguntava quem ela era.
Ela podia perceber nos olhos das pessoas, em suas expressões, todos a observando de longe,
tentando compreender sua presença.
Quando soou o apito final, a multidão foi em direção ao campo. Com passos inseguros, Haven
seguiu DeMarco até o alambrado.
Ele então parou e disse
– Não saia daqui. Lembre-se do que lhe disse.
A voz em sua cabeça lhe dizia: Ele está te testando!
Alguém se aproximou dela enquanto ela estava ali parada. A voz não lhe parecia familiar e o
sotaque era difícil e arrastado como nada que escutara até então:
– Está perdida?
Haven se virou para o rapaz, cuja pele era bronzeada, os cabelos, loiros e meio escondidos sob o
boné de beisebol. Ele usava shorts com grandes bolsos e uma camiseta azul. Haven imediatamente se
concentrou em seus pés quase nus e sorriu. Ele estava usando chinelos de dedo.
Seus próprios pés estavam doloridos. Ela daria qualquer coisa por um par de chinelos.
– Não, não estou perdida. – respondeu educadamente – Só estou esperando alguém.
– Sou Nicholas.
– Haven.
– Então me diga, Haven. Como se chama um cachorro conduzindo um ônibus?
– Como?
– Cãodutor. – Nicholas sorriu – Entendeu? Condutor… cãodutor.
Ela sorriu quando percebeu que era uma piada.
– Ah, um sorriso! – ele disse, brincando e apertando seu braço.
O sorriso de Haven desapareceu no momento em que ele a tocou, mas ele pareceu não ter
percebido.

Um ódio mortal tomou conta de Carmine. Ele estava procurando por Haven em meio à multidão,
mas seus olhos, em vez disso, se concentraram em Nicholas Barlow. De maneira quase automática,
ele seguiu na direção dos dois, soltando o capacete no meio do campo e correndo o mais rápido que
conseguia. Alguém gritava atrás dele, mas ele não diminuiu o ritmo. Ele não podia.
Carmine saltou sobre o alambrado e caiu de pé do outro lado no momento em que Nicholas e
Haven perceberam toda a comoção. Haven estava confusa, já Nicholas estreitou os olhos.
Carmine odiava e desprezava aquele garoto; o mesmo poderia ser dito sobre Nicholas em relação
a Carmine.
Nicholas deu alguns passos para trás, mas já era tarde demais. Carmine se aproximou e o atirou no
solo, colocando seu joelho sobre a virilha do rapaz e se preparando para lhe dar um soco, mas
alguém o segurou pela camisa antes que ele pudesse fazê-lo e o ergueu colocando-o de pé.
Vincent se colocou entre ambos, empurrando seu filho para longe. Nicholas parecia chocado no
momento em que se levantou, hesitando por um momento antes de sair correndo. Carmine teria rido
de sua covardia, não fosse pelo olhar de seu pai.
– Você sabe o que tive de fazer para te tirar da encrenca em que se meteu no ano passado? –
perguntou Vincent, soltando fumaça – Não farei novamente!
Seu pai saiu dali rapidamente, pegando Haven pelo pulso e puxando-a na frente dele. Lágrimas
escorreram pela sua face à medida que eles desapareciam em meio à multidão. Carmine se
arrependeu do que fizera: ele havia estragado tudo mais uma vez.

A Homecoming do ano anterior fora bem diferente. Sendo um aluno do segundo ano, Carmine era
apenas um espectador do jogo. Estava nas arquibancadas, cercado por colegas e ao lado de seu
melhor amigo, Nicholas Barlow.
Melhor amigo. Aquelas palavras soavam venenosas para Carmine agora.
Embora as circunstâncias fossem diferentes esse ano, Carmine tinha toda a intenção de terminar
aquela noite exatamente como no passado: em sérios apuros. Só que dessa vez ele estaria sozinho.
As pessoas já preparavam a festa pós-jogo quando Carmine entrou na pequena casa, onde dezenas
de pessoas disputavam espaço. Ele passou pela multidão, pegou vodca na cozinha e então seguiu
pelo corredor até o porão. O lugar estava escuro, exceto por uma luz fraca num canto. Uma música
suave estava tocando no aparelho de som.
Todos o olharam quando entrou no recinto e um rapaz chamado Max acenou com a cabeça,
cumprimentando-o.
– Tem pó aí? – Carmine perguntou, sentando-se no sofá. Depois da semana infernal que tivera,
certamente precisava de algo que o fizesse se sentir melhor.
Max saiu da sala e retornou alguns minutos depois com um pequeno saquinho contendo cocaína.
Carmine colocou parte do pó sobre a mesa, o suficiente para duas carreiras, então inspirou uma delas
no ato, ficando com o nariz adormecido e o batimento cardíaco acelerado. Depois de inalar a
segunda carreira, ele fechou os olhos e se recostou no sofá. Uma sensação de euforia tomou conta de
seu corpo, ao mesmo tempo que o calor irradiava do seu peito em direção aos membros. Ele se
sentiu leve, invencível e desencanado.
Pouco tempo depois, Lisa chegou e sentou em seu colo. Carmine sentiu um pico de euforia.
– Se quer se sentar sobre mim é melhor tirar a roupa antes.
Ele então a empurrou para o lado e estendeu duas outras carreiras e as cheirou, desesperado para
repetir a sensação. Depois de passar a mão sobre o nariz cheio de pó, ele despejou o restante da
droga sobre a mesa e ofereceu a Lisa, que o inalou na mesma hora.
– Eu te trouxe uma gravata. – ela disse, acomodando-se no sofá ao lado dele – Combina com o
meu vestido.
– Uma gravata?
– Sim, para o baile.
O baile. Carmine sequer se lembrava de tê-la convidado para ir com ele.
– E qual é a cor da tal gravata?
– Fandango.
Ele olhou para ela.
– E o que diabos quer dizer fandango?
– É como fúcsia, mas um pouco mais escuro.
– Então é roxo ou algo assim?
– É, mais ou menos isso.
Ele deu de ombros e desviou o olhar. Ele não se importava com a cor, desde que não fosse rosa.
A noite foi regada a álcool e drogas e se desenrolou como um filme em rotação acelerada, cujo
ritmo não podia ser reduzido. Ele bebeu, fumou e cheirou, então tomou algumas pílulas antes de
recomeçar tudo de novo. Esse ciclo continuou até que finalmente ele desmaiou no lugar onde estava.

Na manhã seguinte, Carmine sentiu a pior ressaca de sua vida. Sua cabeça doía tanto que os olhos
pulsavam. Sentindo-se tonto, cerrou os olhos diante da forte luz do sol. Na mesma hora, colocou seus
óculos escuros e pulou no carro.
No momento em que estacionou diante de sua casa, sentiu algo quente escorrendo do nariz. Ao
olhar para o espelho do quebra-sol, percebeu que era sangue. Ele então tirou a camisa e a segurou
contra o nariz para estancar o sangramento. Ao entrar no hall deu de cara com seu pai, que trazia
consigo uma mala de tecido preto.
– Vai viajar? – perguntou Carmine, tentando seguir rumo à escada, mas sendo impedido por
Vincent, que parou à sua frente.
– Para Chicago. – respondeu, retirando a mão de Carmine do rosto para avaliar o sangramento –
Se continuar cheirando essa porcaria, vai danificar seu septo.
Carmine se afastou dele e perguntou.
– Como sabe que não levei um soco?
– Porque se alguém o tivesse socado você com certeza teria quebrado o nariz dessa pessoa. –
Vincent rebateu, caminhando em direção à porta – Largue a cocaína ou essa droga acabará te
matando.

Carmine caiu no sono assim que se deitou, mas não teve muito tempo para descansar. Foi acordado
por uma batida na porta. Ele saiu da cama resmungando e ainda com os olhos meio fechados. Era
Dominic, trazendo um pacote pequeno.
– Sua namorada está te esperando.
Merda. Ele havia se esquecido completamente do baile.
Carmine tomou um banho para tentar despertar. Vestiu terno e sapatos pretos antes de pegar o
embrulho e abri-lo. Dentro havia uma gravata pink. Fandango o cacete, né? Sem ter a opção de
recusar, ele a colocou no pescoço. Em seguida, abriu a gaveta da cômoda, encheu um pequeno frasco
com vodca e o enfiou no bolso. Ele saiu do quarto e deu de cara com Haven, no topo da escada.
Carmine tentou pensar em algo significativo para dizer, algo capaz de consertar a situação.
– Essa gravata me faz parecer um “veado”, não é?
Isso não era muito significativo.
Haven caiu na gargalhada.
– Aqueles bichos que têm chifres que parecem galhos?
Ele balançou negativamente a cabeça no momento em que ela correu para o quarto dela. Era óbvio
que ela não havia entendido o que ele quisera dizer… Ou será que havia?

Logo que chegaram à escol, Lisa foi ao encontro dos amigos. Carmine se manteve ao seu lado,
bebendo sem parar. Eles dançaram um pouco e, no momento em que seu frasco ficou vazio, ele já
estava bêbado e pronto para ir embora. Lisa sorriu de um jeito sedutor e ambos seguiram para a casa
dela. Os pais da jovem haviam viajado naquele final de semana. Lisa foi até o armário de bebidas,
pegou uma garrafa de uísque e entregou a ele.
Ela então o levou para seu quarto, onde ele bebeu ainda mais.
Lisa beijou seu pescoço e tirou a garrafa de suas mãos, antes de empurrá-lo para a cama. Ele se
deitou, permitiu que a jovem o despisse e então observou enquanto ela tirava o vestido. Em seguida,
Lisa se arrastou sobre a cama, sentou-se nua sobre ele e se inclinou para beijá-lo.
Ele, entretanto, desviou a cabeça para o lado e murmurou:
– Não estou assim tão bêbado.
O fato é que o toque da moça lhe pareceu desconfortável; talvez íntimo demais. Ela se movia de
um jeito lento e gentil, mas nada daquilo parecia estar correto; o corpo dela não estava certo. De
olhos fechados, Carmine ainda tentou relaxar e curtir o momento. Ele havia se comprometido e usado
uma gravata rosa, agora, seu corpo rejeitava uma transa garantida. Ele já não conseguia reconhecer a
si mesmo. Isso o deixou confuso.
No momento em que aquele pensamento surgiu em sua mente, não conseguiu se controlar e caiu na
gargalhada. Atônita diante da situação, a jovem se afastou.
– Mas o que há de errado com você, Carmine? Está maluco?
– É, eu sei – ele ficou de pé e pegou suas roupas –, devo estar ficando maluco mesmo.
Ela o encarou sem acreditar.
– Espere, você está indo embora? Por quê?
– Eu não te amo. – ele disse, seguindo em direção à porta – Eu nunca vou te amar, Lisa.

Com suas torres pontudas e a fachada de tijolos escuros, a igreja católica de Saint Mary parecia
um castelo medieval em pleno coração de Chicago. O gramado que a circundava estava seco, o piso
da calçada todo trincado, mas a igreja ainda se mostrava imaculada. Arcos enormes e paredes com
detalhes dourados davam um toque especial à decoração em madeira. O piso interno de mármore na
cor marfim brilhava sob a luz que invadia o local pelos vitrais. Quando Vincent ainda era criança,
cada vez que entrava naquele local sentia como se estivesse num baú de tesouros. Ele frequentava as
missas todos os domingos, impreterivelmente, o que, na época, o fazia acreditar que pertencia àquela
comunidade religiosa.
Agora, entretanto, quando caminhava por entre os bancos vazios daquele local sagrado, sentia-se
como um peixe fora d’água. Seus passos ecoaram no recinto e alertaram o padre Alberto de sua
chegada. Ele estava sentado no confessionário, e Vincent foi direto para lá, sentando-se do lado
externo.
Ele afastou a cortina que os separava, sabendo que não fazia sentido esconder-se do padre. Afinal,
ele logo saberia de quem se tratava – ele sempre sabia.
– Abençoe-me, padre, pois eu pequei. Já se passaram três meses desde minha última confissão.
Antes de dizer qualquer coisa, o padre fez o sinal da cruz. Apesar de já viver há décadas na
América, seu sotaque siciliano ainda era bem forte.
– E quais foram seus pecados, meu filho?
Desde sua última visita Vincent havia mentido, roubado e sido cúmplice em um assassinato, tudo
em nome da famiglia. Entretanto, havia um pecado que pesava mais em sua mente.
– Machuquei alguém, padre… uma jovem.
– Você teve a intenção de ferir essa jovem?
Ele hesitou antes de responder.
– Sim, eu tive.
– Sente-se arrependido?
Mais uma pausa.
– Sim, estou arrependido.
– E disse isso a ela?
Frustrado, ele passou as mãos sobre o rosto e respondeu.
– Não.
O padre Alberto ficou em silêncio por um instante, então perguntou.
– Foi ela quem você machucou?
Vincent não precisou responder. Ambos sabiam a resposta… E os dois estavam cientes de que
aquela não fora a primeira vez.
– Eu estava furioso. – disse Vincent – A dor daquela manhã foi a pior que senti em anos. Eu queria
que outra pessoa sofresse pelo menos uma vez. Queria que alguém sentisse o que eu senti. Tinha que
tirar aquilo de dentro de mim antes que explodisse. Precisava me sentir melhor.
– E se sentiu melhor?
– Não. – respondeu – Ainda estou furioso. Tão furioso, padre, mas, acima de tudo, estou tão
envergonhado. Não quero mais me sentir desse modo, mas não consigo deixar para trás.
– Ah, mas eu acho que você consegue. – disse padre Alberto – Não julgueis, e não sereis julgados.
Não condeneis, e não sereis condenados. Perdoai, e sereis perdoados.
– Lucas 6:37. – Vincent reconheceu os versículos da Bíblia – Mas e se eu não conseguir parar? E
se não conseguir deixar para trás? E se não for capaz de perdoar?
– Se, porém, não perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai não perdoará as
vossas ofensas.
– Mateus, 6:15.
Padre Alberto sorriu.
– Seu ódio é veneno, Vincenzo. Ele o consome de dentro para fora. É preciso encontrar o perdão
em seu coração para esquecer. Então, e somente então, você será perdoado.
Capítulo 11

Haven olhava para o despertador quando os números indicavam que já havia passado da meia-
noite. Por vários dias suas noites de sono foram interrompidas por pesadelos, e a simples ideia de
fechar os olhos a aterrorizava. Ela precisava desesperadamente de paz, mas só podia contar com um
silêncio ensurdecedor.
Não havia música essa noite. Nada para distraí-la.
Depois que os rapazes saíram para o baile, Haven passou a noite desenhando e pensando na vida.
Mesmo sem querer admitir, ela acabara ficando com ciúmes. Ela gostaria muito de ser uma jovem
bonita, dentro de um vestido maravilhoso, e a caminho de um baile com outros adolescentes.
Cansada de rolar de um lado para outro, resolveu descer as escadas. Foi até a cozinha para pegar
algo para beber, mas congelou ao ver que havia alguém ali.
Carmine estava sentado sobre o balcão, ao lado da geladeira, com os ombros curvados para frente
e uma garrafa de vodca nas mãos. Seus olhares se cruzaram e, mesmo a distância, ela pôde ver a
paixão dentro dos olhos dele. Uma grande alma se escondia por debaixo daquele exterior hostil.
– Não queria interromper. – ela disse.
– Você não está interrompendo, Haven. Não estou fazendo nada de especial, só sentado aqui,
tentando ficar bêbado e entrar em coma. – o tom de sua voz a deixou assustada. Ela considerou a
ideia de ir embora, mas ele continuou a falar – Eu falei como um idiota, não é?
Sem responder à pergunta, ela passou por ele a caminho da geladeira, abriu a porta, pegou uma
jarra de suco de laranja e a colocou no balcão. Em seguida, se esticou para pegar um copo no
armário atrás de Carmine.
Ele se virou para ela e, soltando a respiração, disse:
– Pegue um pra mim também.
Um arrepio tomou conta de seu corpo naquele momento. Sem conseguir olhar para ele, a jovem
pegou o segundo copo, encheu os dois de suco e guardou a jarra na geladeira.
O comportamento de Carmine a deixava confusa, mas uma parte ingênua de seu coração apreciava
a companhia dele. Além disso, agora que ele estava lá ela tinha alguma distração. Talvez ela até
pudesse escutá-lo tocar violão.
Ele tomou mais um gole da vodca e soltou um gemido ao afastar a garrafa dos lábios.
– Urgh, já chega. – disse, com a voz rouca. Em seguida colocou um pouco da bebida em seu suco e
hesitou antes de fazer o mesmo no dela – Não gosto de beber sozinho.
Sozinho. Haven sabia como era se sentir só.
Ela cheirou a bebida, franzindo o nariz.
– O que é isso?
– Por que me pergunta? Você sabe ler… Leia a porra da garrafa. – os olhos dela se arregalaram e
ele soltou um grunhido – Cacete, fui grosseiro com você de novo. Não foi minha intenção.
Irritada, ela virou o copo. Ainda tinha gosto de suco de laranja, mas o sabor amargo no final
queimou sua garganta. Carmine a encarou no momento em que ela colocou o copo vazio sobre o
balcão.
– La mia grande bella ragazza… – ele disse, rindo antes de virar o copo – Você tem potencial,
tesoro.
Ela sorriu.
– Obrigada, eu acho.
– Isso foi um elogio – ele disse –, e receberá outros se fizer isso de novo.
Ele saltou do balcão, pegou o suco na geladeira e serviu duas outras doses, acrescentando vodca
nos dois copos. Haven respirou fundo, pegou o dela e o levou à boca. A bebida estava bem mais
forte dessa segunda vez e a sensação de queimação foi ainda mais profunda. Ela não conseguiu tomar
tudo e já começou a tossir.
– Meu Deus, isso está muito forte.
– É, dessa vez eu caprichei. – ele replicou – Não entorne outra vez, do contrário vai acabar
desmaiando e, neste momento, eu estou precisando de companhia.
Ele ergueu a garrafa.
– E isso aqui é vodca, caso ainda queira saber.

Ambos subiram as escadas até o terceiro andar e foram para o quarto de Carmine. Ele colocou o
copo na escrivaninha e sentou-se. Haven, em contrapartida, hesitou e ficou parada na porta, sem
saber o que fazer.
– Você pode se sentar onde quiser. – disse, notando seu dilema.
Ela se sentou na beirada da cama e, com certa ansiedade, tomou mais um gole de sua bebida.
– Então, o que acha de jogarmos alguma coisa? – Carmine sugeriu – Que tal “21 Perguntas”?
Ela ficou um pouco tensa. Não tinha ideia do que aquilo significava.
Ele reparou em sua expressão assustada e resolveu explicar:
– Nós dois nos alternamos em fazer perguntas um ao outro, até chegarmos a vinte e um. A única
regra é: não pode mentir. Não importa sobre o que serão as perguntas, só não vale mentir.
– Ok – ela respirou fundo –, mas você começa.
As mãos dela começaram a tremer quando Carmine a olhou do canto do quarto. Ele deu um suspiro
e se levantou, pegando o copo dela e o colocando sobre a escrivaninha. Depois de puxar a chave do
bolso ele destrancou a gaveta.
– O que pensa sobre drogas? Ah, mas isso não conta como uma pergunta. Só quero saber antes de
agir.
– Bem, não sei muito sobre elas.
Ele pegou o que parecia um cigarro e o acendeu. Imediatamente o quarto foi inundado com um
cheiro forte. Ele levou o cigarro até os lábios e inalou profundamente enquanto se agachava à frente
dela.
– Isso a deixará relaxada, ok?
Ela acenou com a cabeça, petrificada pela proximidade do jovem.
– Vou facilitar as coisas pra você – ele disse –, apenas inspire e segure o mais que puder.
Então ele repetiu o movimento com o cigarro e se inclinou na direção dela. O coração de Haven
disparou no momento em que ele pendeu a cabeça para um lado, parando com os lábios a apenas
alguns centímetros dos dela e exalou a fumaça de seus pulmões, que imediatamente se infiltrou nos
dela. Haven fechou os olhos diante daquela nuvem e só soltou a respiração quando precisou de ar.
Exalando lentamente ela abriu os olhos e encontrou Carmine no mesmo lugar; a expressão dela
parecia mais ardente que a própria fumaça.
– Pergunta número um: Como você aprendeu a ler se não tinha permissão para ter livros?
Ela ficou vermelha.
– Peguei um livro que pertencia ao meu primeiro mestre.
– Isso a deixa embaraçada?
– Acabei de confessar que roubei algo.
Ele se sentou novamente.
– Ah, tudo bem, você vive na casa de um criminoso profissional. Roubo não nos deixa
intimidados.
– Você é um criminoso profissional?
Ele a olhou, confuso.
– Não, eu estava me referindo ao meu pai. Ao que ele faz em Chicago. – ela não sabia e ele logo
percebeu isso – Merda, eu já sei… mas isso não importa. Pergunte outra coisa.
Ainda confusa, ela pensou em algo diferente.
– Como conseguiu essa cicatriz no rosto?
– Jesus, você não vai aliviar pra mim, não é? – ele passou a mão nos cabelos – Ganhei essa
cicatriz quanto tinha oito anos, uma bala me acertou de raspão.
Haven havia pensado em algo como uma queda ou um acidente qualquer, mas nunca imaginaria que
ele fosse dizer que levara um tiro.
– Como já te disse, somos mais parecidos do que você imagina. – ele continuou – Também sangrei
por causa de merdas que não tinham nada a ver comigo.
Será que eles poderiam mesmo ter algo em comum?
– Por que atiraram em você?
Ele balançou negativamente a cabeça.
– Não, é minha vez. Você tem algum talento secreto?
– Bem, eu gosto de desenhar, mas não sei se isso é um talento.
– Você pode desenhar algo pra mim?
Ela sorriu.
– Você já fez sua pergunta.
Ele acenou com a mão.
– Tá legal, sua vez.
– Por que atiraram em você?
– Não posso responder porque realmente não sei. – disse – Pergunte outra coisa.
Ela hesitou.
– Bem, então, por que você atacou aquele rapaz no jogo?
– Porque o Nicholas mereceu. Mas derrubar ele não foi nada perto do que aconteceu da última vez
que nos vimos. – ele murmurou para si mesmo antes de prosseguir – Então, vai desenhar algo para
mim?
– Talvez um dia.
– Algum dia? O que algum dia significa?
– Eu desenharei pra você no mesmo dia em que me permitir limpar seu quarto. – respondeu. Ele
abriu a boca como se fosse argumentar, mas ela o interrompeu com a próxima pergunta – O que fez
com Nicholas antes que foi assim tão ruim?
– Atirei no carro dele. O tanque de gasolina pegou fogo. Me acusaram de tentar matar, mas…
honestamente, não estava tentando matar ele. Ah, que se dane!
Haven ficou chocada ao saber que Carmine fora tão violento com um jovem que lhe parecera tão
gentil.
– O que ele te perguntou que a fez sorrir? – perguntou Carmine.
– Ele me contou uma piada sobre um cachorro.
Ele revirou os olhos.
– Isso não conta como minha pergunta. Você já foi beijada?
Ela fez um movimento lento e negativo com a cabeça, sentindo-se constrangida.
– Isso provavelmente me faz passar como imatura…
– De jeito nenhum. Eu não devia ter lhe perguntado isso. – ele disse, demonstrando nervosismo e
mudando de posição na cadeira – Bem, tecnicamente eu também nunca beijei ninguém. Afinal, nunca
beijei os lábios de uma mulher. – ele parou novamente – E isso provavelmente me faz parecer um
babaca; como alguém que só quer mesmo fazer sexo, sem jamais beijar uma garota.
– E com quantas garotas você já ficou?
Ele abaixou a cabeça diante da pergunta.
– Sei lá, umas dezoito; talvez duas ou três mais que isso, quem sabe?
– Então são vinte ou vinte e uma?
Ele olhou para ela.
– Ei, você é boa de matemática. E eu sei que esse número é bem alto.
Ele pareceu triste diante da própria resposta, e ela não conseguiu evitar a impressão de que talvez
ele tivesse se arrependido de algumas delas. Ela sorriu, tentando demonstrar confiança, mas ele
apenas rosnou.
– Outro assunto. Pergunta número… seja lá qual for o número da próxima. Quando você ficou mais
apavorada na vida?
– Acho que foi no quarto do seu pai.
Carmine acenou como se esperasse por aquela resposta e se virou para pegar sua bebida.
– Sua vez.
– Onde está sua mãe?
Ela perguntou de repente, logo encobrindo a boca com a mão ao perceber que Carmine parou com
o copo no meio do caminho.
– Chicago. – ele disse, colocando o copo de volta sem beber. Então, ele se virou para ela e a
surpreendeu com a falta de qualquer expressão no rosto.
– Chicago?
– Bem, na verdade o nome do lugar é Hillside; fica a alguns quilômetros de Chicago.
– Ah.
– Tudo bem – ele disse –, e qual é sua cor favorita?
– Verde. – as bochechas dela ficaram rosadas ao responder. Ela se deitou na cama para evitar o
olhar dele.
A cama se moveu no momento em que ele se sentou ao lado dela. Os olhos de Haven o encararam
no momento em que ele se fixou nela.
– Sua vez.
– E qual é a sua cor favorita? – ela estava embaraçada demais para pensar em outra coisa.
– Nesse momento estou meio dividido entre marrom profundo e esse tom de vermelho rosado.
Parece com a minha gravata.
Ela ficou ainda mais vermelha. Seu coração acelerou e ela sentiu que precisava desviar o olhar.
– Minha vez. Por que verde é sua cor favorita?
– Não quero responder essa.
– Você não pode deixar de responder.
– Mas você não respondeu algumas perguntas.
– Tudo bem, então outra pergunta. Por que você se sente embaraçada pelo fato de verde ser sua cor
favorita?
Ele franziu a testa.
– Mas eu disse que não queria responder essa pergunta.
– Não, você disse que não queria responder “Por que verde é sua cor favorita?” Agora quero
saber por que o fato de verde ser a sua cor favorita a deixa sem graça? Duas coisas completamente
diferentes.
Ele foi incisivo, como se aquilo tudo fosse muito simples.
– Acho que você está trapaceando – ela respondeu –, então também não vou responder essa
pergunta.
Carmine deu uma gargalhada e reacendeu seu cigarro. Haven ficou surpresa pela calma no rosto
dele enquanto tragava. Sua pele se arrepiou ao olhar para o rapaz. Talvez fosse efeito da droga, mas
algo a deixava confortável ao lado dele. Ela se sentia segura e, por mais assustadora que aquela
situação lhe parecesse, ela apreciava aquela sensação. Nunca em sua vida ela se sentira segura ao
lado de ninguém, nem mesmo de sua mãe. Afinal, ela não podia protegê-la.
Haven confiava em Carmine, mesmo sabendo que não deveria. Afinal, ele era filho do homem que
a controlava. A família dele tinha a vida dela em suas mãos. Eles poderiam matá-la e ela não teria
como se defender. Mesmo assim ela acreditava nele, e podia sentir isso em cada partícula de seu
corpo, em cada batimento do seu coração.
Algo a respeito daquele jovem havia se arraigado sob sua pele.
Carmine se inclinou para frente, ficando mais uma vez a apenas alguns centímetros de sua boca.
Ela abriu os lábios, inalando tudo o que ele exalava e fechou os olhos enquanto experimentava a
sensação.
O rosto dele roçou em sua face; fagulhas se espalharam pelo corpo dela. Ela podia sentir o toque
de seus pelos faciais arranhando seu rosto enquanto ele inalava profundamente mais uma vez. Ele
voltou a soltar a respiração sobre ela e, nesse momento, ela se permitiu imaginar que talvez, apenas
talvez, aquela criatura assustadora pudesse estar querendo o mesmo que ela.
Ela prendeu a respiração o mais que pôde, sem querer abrir a boca. Porém, a necessidade de
oxigênio foi mais forte. Ela exalou o ar no momento em que Carmine se levantou, mas ela manteve os
olhos fechados. Ainda não queria encarar a realidade. Carmine saiu do quarto. Ele precisava colocar
algum espaço entre os dois. Ela o havia confundido. De repente tudo estava de cabeça para baixo, o
errado parecia correto e tudo ao seu redor se tornara nebuloso. Era difícil para ele admitir que tinha
tão pouca experiência quanto ela. Ele podia transar com uma garota sem sentir nada, mas, quando o
assunto era amar uma mulher, ele não tinha ideia do que fazer.
Amar. Aquela palavra o deixava perplexo. Ele já não estava mais navegando em um mar de
luxúria. Aquelas águas eram desconhecidas para ele, e sentia-se como se estivesse se afogando.
Carmine acendeu a luz da biblioteca. Piscando algumas vezes, ele olhou para os títulos dos livros
nas prateleiras, pegando um deles antes de voltar ao quarto. Haven estava de bruços na cama, com os
pés para cima, ao lado dos travesseiros. Ele estampou um sorriso suave e fechou a porta atrás de si,
entregando-lhe o livro.
– O Jardim Secreto. Achei que gostaria desse.
Ela o pegou.
– Sobre o que é?
Ele ergueu os ombros.
– Talvez sobre um jardim? Um segredo? Não sei. Leia e me diga.
– Bem. – ela começou, franzindo o cenho enquanto admirava a capa.
Ele riu. Um livro era capaz de deixá-la envergonhada.
– Olha, você não precisar ler se não quiser. Não vou te pedir pra escrever uma redação. Só achei
que isso lhe daria algo para fazer.
– Mas eu quero ler! É só que… E se o seu pai descobrir?
– Não se preocupe com o meu pai – ele disse –, te darei cobertura.
Os olhos dela se encheram de lágrimas no momento em que ela abriu aleatoriamente o livro.
– Não sei se consigo ler isso. Há muitas palavras diferentes.
– Eu acho que você consegue. – ele incentivou – Além disso, você agora tem ajuda.
– Ajuda?
– É. Digo, se não quiser, tudo bem, mas eu ficaria feliz em ajudar.
Ela voltou a olhar para o livro.
– Então tudo bem.
– Tudo bem. Ok, lá vamos nós de novo. Esse “tudo bem” é de “Sim, eu gostaria de ler essa
porcaria com você” ou de “Sim, você é maluco se acha que pode me ajudar nisso”?
Ela apenas sorriu, praticamente lhe dizendo que era provavelmente uma mistura de ambos.
Ele tirou os sapatos e se sentou perto dela, tocando algumas notas em seu violão enquanto ela lia o
livro. Aquilo o aqueceu por dentro e, por um momento, sua vida pareceu normal… Ambos eram
pessoas normais. Apenas um jovem e uma garota, ambos um pouco ferrados, mas, simplesmente eles
próprios.
Ele saboreou aquele momento. Mesmo tentando desviar sua atenção para não deixá-la
desconfortável, pelo canto dos olhos ele podia ver a concentração de Haven enquanto dizia as
palavras em voz alta.
– O que é tir… tirân… essa palavra aqui?
Ele colocou o violão de lado e seu estômago revirou quando viu a palavra que ela apontava no
livro. Carmine apoiou o queixo no ombro dela e explicou.
– Tirânico. É como tirano, opressivo, como um mestre.
Ela se virou para ele e ambos ficaram tão próximos que as pontinhas dos narizes se tocaram.
Capítulo 12

Haven estava de pé na cozinha, pensativa enquanto preparava biscoitos. Ela levantara uma hora
antes, ainda tensa pela noite anterior. Conseguia controlar seu corpo enquanto estava ao lado de
Carmine, mas seu coração assumia o controle sobre sua mente, que dizia que era ridículo e perigoso
passar o tempo ao lado dele, mas seu coração lhe garantia que estava tudo bem.
Ela havia preaquecido o forno e colocado uma assadeira dentro quando ouviu alguém bater à
porta. Olhando pela janela, viu um pequeno carro branco na frente da casa. Quem quer que fosse o
dono estava batendo novamente, e com mais força dessa vez.
Ela não podia abrir a porta. O alarme estava ligado e ela ainda não tinha o código. Sem saber o
que fazer, sentiu-se aliviada quando Carmine desceu as escadas.
– Quem quer que seja, é melhor ter um mandado de busca.
Haven foi até a sala para vê-lo abrir a porta. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, alguém o
empurrou e entrou na casa.
– Você é um filho da puta!
Enquanto Haven ficou assustada, a expressão de Carmine se manteve tranquila.
– Lisa.
– Como você pôde fazer aquilo comigo ontem à noite? – Lisa berrou, olhando furiosa para ele,
fazendo com que Haven se recordasse da gritaria de Katrina com o mestre Michael. Ela ficou
imaginando o que Carmine poderia ter feito para provocar tamanha ira, mas ele não parecia disposto
a responder.
Carmine olhou para a cozinha enquanto Lisa continuava xingando o rapaz, e ele sorriu quando viu
Haven assistindo a tudo aquilo. Lisa percebeu a troca de olhares.
– É por causa dela, Carmine? Dessa vaca?
O sorriso de Carmine desapareceu.
– Se você sabe o que é bom pra você, é melhor calar a boca.
– Pensei que fosse melhor que isso! Olha pra ela! – Lisa olhou para Haven – Ei, quanto o doutor
DeMarco está te pagando para foder o filho dele?
Aquelas palavras fizeram Carmine perder a paciência. Ele pegou Lisa pelo braço, abriu a porta da
frente com tamanha força que ela bateu com estrondo na parede. Em seguida ele empurrou a moça até
o carro. Lisa continuou gritando, se debatendo e tentando atingi-lo, mas Carmine conseguiu se
esquivar. Ele também gritou com ela e, embora Haven não pudesse ouvir o que ele dizia, era óbvio
que estava furioso. De repente ele deu um soco no capô do carro.
O alarme do forno apitou. Os biscoitos estavam prontos. Haven retirou a assadeira e ouviu a porta
bater forte novamente, balançando tudo na cozinha.
– Você deveria ter atendido e dito que eu não estava em casa.
– Eu não podia. Não tenho o código.
Ele olhou para ela de um jeito peculiar, roubou um dos biscoitos da assadeira, deu uma mordida e
disse:
– Coma um biscoito, Haven. Eles estão ótimos.

O doutor DeMarco chegou em casa no momento em que Haven colocava os biscoitos dentro de
uma vasilha. Ele caminhou até a cozinha e parou tão perto dela que seu braço encostou no dela. Sua
pele ficou arrepiada; sua presença a deixava assustada, mas tentou se controlar.
DeMarco roubou um biscoito antes que ela tampasse o recipiente.
– Bom dia, dolcezza.
– Bom dia, senhor. – ela fez uma pausa antes de perguntar – O que quer dizer essa palavra?
– Dolcezza? – ele deu uma mordida e sorriu – Quer dizer “doçura”.
Doçura?
Em seguida, DeMarco preparou um bule de café, algo que Haven não se atreveu mais a fazer desde
aquela manhã horrível, em que tudo dera errado. Ele serviu uma xícara antes de sair da cozinha. Ela
então sacudiu a farinha do avental e terminou de limpar tudo antes de seguir para a sala de estar, onde
todos já estavam reunidos. Carmine olhou para ela do lugar que ocupava no sofá.
– Pai. – ele disse, mantendo os olhos fixos nela – Vou ensinar Haven a ler.
Ela ficou assustada. O doutor DeMarco ergueu as sobrancelhas e disse:
– Imagino que para ensinar algo a alguém é preciso saber como fazer a tal coisa.
Carmine revirou os olhos.
– Eu sei ler, pai.
– Com certeza, pai. – interferiu Dominic – O senhor não sabia? Carmine leu a primeira página de
O Conde de Monte Cristo.
– Vaffanculo! – protestou Carmine.
O doutor DeMarco suspirou ao voltar sua atenção para Haven.
– Sente-se, criança.
Ela nunca podia distinguir quando era um convite ou uma ordem, mas considerava mais seguro
fazer o que ele dizia. Um pouco tensa, ela se sentou no lugar vazio ao lado de Carmine, colocando as
mãos sobre as pernas. Carmine, em contrapartida, pôs os pés casualmente sobre a mesa de centro e
se afundou no sofá, como se estivesse entediado.
Alguém bateu à porta, mas ninguém se levantou para atender. A pessoa voltou a bater e quando
ninguém respondeu, uma voz feminina fez-se ser ouvida do lado de fora:
– Ei, ninguém aí pode abrir a porta para mim?
Finalmente a porta foi aberta pelo próprio doutor DeMarco e logo uma jovem entrou na sala de
estar. Era Tess, que olhou para todos que estavam ali, concentrando-se um segundo a mais em Haven,
e apertando-se em seguida no sofá ao lado de Dominic.
Haven se voltou para a TV e tentou se concentrar no filme, mas Carmine continuou a escorregar
para cada vez mais perto dela. A proximidade dele mexia com ela.
– Doc, seu filho te falou que esmurrou o carro de Lisa essa manhã? – Tess perguntou.
– Eu dei um murro no carro dela – disse Carmine –, mas só ficou uma marquinha pequena.
– Bem, então é melhor arrumar um emprego para pagar pelo conserto dessa marquinha pequena. –
disse o doutor DeMarco – Não vou mais pagar suas contas, lembra-se?
– Eu não deveria pagar por nada. Ela mereceu, depois de invadir essa casa e começar a me
interrogar.
Aquelas palavras atraíram a atenção de DeMarco.
– E por que ela o interrogou?
– Ela quer namorar comigo ou algo assim.
DeMarco deu risada.
– É isso o que dá sair por aí flertando com garotas.
– Qual é, eu não fico flertando com ninguém. Bom, talvez eu até merecesse ser xingado, mas a
Haven não precisava ter sido arrastada para a briga.
DeMarco ergueu a sobrancelha.
– E como foi que isso aconteceu?
Carmine deu de ombros e respondeu.
– Lugar errado na hora errada.
– Não acho que ela tenha desejado me ofender. – ela disse em voz baixa.
– O cacete que não. – replicou Carmine – Lisa sabia exatamente o que estava fazendo.
O doutor DeMarco acenou com a cabeça.
– Você não deveria ficar na linha de fogo entre Carmine e as puttani que ele arranja por aí.
Haven não fazia ideia do que DeMarco queria dizer com aquilo, mas pressentia que fosse algo
ruim.
– Já sobrevivi a coisas bem piores.
O olhar de DeMarco foi intenso.
– Sim, é verdade.
Todos se voltaram para a TV, mas Haven continuava nervosa em seu lugar. Desconfortável,
precisava de uma razão para sair da sala, então se voltou para Carmine.
– Você quer algo pra beber?
Ele ergueu os ombros.
– É, você pode me trazer algo.
Ela se levantou e deu alguns passos em direção à cozinha.
– O senhor deseja alguma coisa, doutor DeMarco?
– Não, obrigado.
– Eu gostaria de uma garrafa de água, e obrigada por perguntar. – Tess alfinetou.
Haven parou por um momento, com medo de ter cometido um erro, mas o doutor DeMarco aliviou
sua preocupação.
– Você é perfeitamente capaz de pegar sua própria água, Tess. Não há nada de errado com suas
pernas.
Haven preparou uma Coca-Cola com cereja para Carmine e pegou uma garrafa de água para si
mesma, hesitando antes de pegar a segunda. Em seguida, voltou à sala de estar e entregou a garrafa a
Tess, que ergueu as sobrancelhas e pegou o vasilhame sem dizer uma única palavra.
Haven se sentou novamente e entregou o refrigerante a Carmine.
– Você não precisava ter feito isso. Aliás, você não precisava ter trazido nada. – ele afirmou,
levando o copo até a boca e tomando um gole – Mas eu gostei, obrigado.
– Não há de quê. – naquele momento, algo lhe chamou a atenção no canto dos olhos: o doutor
DeMarco a estava observando novamente.
Foi então que o telefone da casa tocou e todos deram um pulo. Haven nunca ouvira o som do
aparelho. Seu coração disparou no momento em que o doutor DeMarco se levantou para atender a
chamada.
Haven percebeu a expressão de surpresa no rosto de Carmine.
– É o telefone.
– É, eu sei disso, mas de onde ele veio?
Ela deu de ombros enquanto DeMarco atendia à ligação.
– Residência dos DeMarco… Espere, fale mais devagar… Quantas você disse? – Haven tentou
não ficar escutando, mas ele falava em voz alta – E como isso foi possível?
– Sério – disse Carmine –, quando foi que adquirimos um telefone?
Dominic deu risada.
– Há semanas, maninho.
DeMarco elevou ainda mais a voz.
– Verifique de novo. Se voltar a se repetir faremos tudo outra vez, mas isso que me disse tem de
estar errado. Não há como estar correta essa informação.
– E por que ninguém me disse nada? – Carmine perguntou.
– A pergunta certa, maninho, é: por que você não reparou?
– Não faça nenhum registro disso. – continuava DeMarco em voz mais alta – Não quero que isso
se espalhe até entender o que foi que aconteceu. Capice?
Ele colocou o fone no gancho, encerrando a chamada, e cutucou a ponta do nariz com os dedos.
Seu olhar se voltou para Carmine e Haven; sua expressão era indefinida, mas o olhar furioso estava
de volta aos seus olhos. Ele caminhou até Carmine e tirou o refrigerante de sua mão, derramando
algumas gotas no chão enquanto saía da sala. Um segundo depois foi possível ouvir o som de vidro
se estilhaçando na cozinha, como se algo tivesse sito atirado contra a pia de metal.
Assustada, Haven olhou para Carmine.
– Mas o que foi que aconteceu?
Ele deu de ombros, olhando para a mão vazia.
– Não faço a menor ideia. Nem sabia que tínhamos a porcaria do telefone.

Surpreendentemente, a porta do escritório de DeMarco no segundo andar estava aberta. Vincent


estava sentado à escrivaninha, com os óculos posicionados na ponta do nariz, e remexia seus
arquivos. Carmine ficou de pé à porta, olhando para o pai.
– Quem fodeu com o seu dia?
Vincent o encarou com uma expressão confusa.
– Como é?
– Qual é o seu problema? – perguntou Carmine, elaborando melhor sua frase ao entrar no cômodo
e se sentar, sem esperar pelo convite – Você estava bem pra caramba e, de repente, foi como se
alguém tivesse fodido o seu dia.
Vincent balançou a cabeça em reprovação e perguntou:
– Você precisa ser sempre assim tão grosseiro no seu linguajar?
– Sei lá – respondeu Carmine –, e você, precisa ser sempre tão evasivo?
– Somente quando faz perguntas para as quais não quer realmente saber a resposta. – Vincent
retrucou – Você precisa de alguma coisa? Tenho coisas a resolver.
– Bem, em primeiro lugar, quero saber por que pegou minha bebida.
– Eu estava com sede.
– Então você bebeu meu refrigerante?
– Não. – respondeu – Mais alguma pergunta?
– Sim. Por que você mantém Haven presa nessa casa, como se fosse uma prisioneira?
– Ela já saiu de casa. – Vincent disse, olhando de um jeito incrédulo para filho – Aliás, ela
pareceu estar se divertindo até o momento em que você teve um dos seus surtos.
– Um dos meus surtos? É assim que você os chama?
– A menos que tenha um nome melhor para eles.
– Como quiser. – Carmine replicou – A questão é que ela raramente sai de casa. Ela sequer tem um
código pra abrir a porta.
Exasperado, Vincent soltou um suspiro.
– E por que de repente você resolveu se importar com isso?
– Porque ela é uma pessoa.
– Tanto quanto Nicholas Barlow, mas você nunca pareceu se preocupar com ele.
– É diferente. Alguém realmente deveria colocá-lo atrás das grades, mas ela é apenas uma menina.
Ela é inofensiva.
Vincent olhou novamente para o filho ao escutar aquelas palavras, piscando algumas vezes.
– Carmine, estaria você sugerindo que nunca machucou uma garota antes? Porque acho que
algumas delas pensam diferente.
O escritório ficou em silêncio, uma vez que Carmine não tinha o que responder. Vincent colocou
sua papelada de lado e tirou os óculos.
– Ouça, essa jovem está trancafiada aqui porque eu não tenho nem tempo nem energia para levá-la
a lugar algum, e não há mais ninguém para fazer isso.
– É, talvez você esteja certo. – replicou – Não tenho nem gasolina suficiente no tanque para sair
dessa casa.
– Ah, e como planeja ir à escola?
Carmine deu de ombros.
– Roubando alguma gasolina do seu carro enquanto dorme.
Apesar da tensão que se criou, Vincent caiu na gargalhada.
– É, você provavelmente faria isso.
Carmine sorriu. Ele certamente o faria.
Vincent abriu sua gaveta e retirou de lá um cartão American Express.
– Bem, então façamos um acordo.
Carmine o encarou de maneira cética.
– Estou escutando.
– Eu lhe darei seu cartão de crédito de volta se você se esforçar um pouco mais.
– Como assim? Tipo, mantendo meu quarto limpo e arrumado?
– Eu disse se esforçar um pouco mais, não operar um milagre. E o que quero dizer com isso é que
você se torne mais responsável: pare com as brigas, com as drogas, seja aprovado na escola e,
quando eu lhe pedir um favor, simplesmente o faça.
– É justo. – respondeu Carmine, pegando o cartão da mão do pai antes que ele se arrependesse –
Vou me esforçar.
– Ótimo, porque preciso de um favor.
Carmine olhou para ele, sem demonstrar surpresa.
– Preciso que vá ao supermercado e compre algumas coisas. – disse Vincent – O suficiente para
durar algum tempo.
– Tipo comida e outras merdas?
– Só comida já é o suficiente, Carmine.
– E quer que eu compre essa comida sozinho?
– É claro que não. – Vincent retrucou – E já que está tão preocupado, leve a garota com você.
Carmine olhou para o pai e novamente para o cartão.
– Isso é algum tipo de teste? Porque há menos de duas horas você disse que não pagaria mais as
minhas contas.
– As coisas mudam, filho.
– O que mudou?
Vincent balançou a cabeça, evitando responder.
– Você quer uma chance de provar que é capaz, não é? Então simplesmente faça. E veja se não
estraga tudo dessa vez. Se algo acontecer com essa jovem, as consequências para você serão bem
mais sérias do que ficar sem o seu cartão de crédito.
Carmine se levantou, imaginando que seria melhor ir embora antes que seu pai recobrasse o juízo.
– Isso significa que não estou mais de castigo?
Vincent suspirou.
– Você tem estado de castigo desde que tinha treze anos, e continuará assim enquanto morar sob o
meu teto. Não que isso o impeça de fazer asneiras.
– Então, basicamente, não estou realmente de castigo.
– Você realmente já ficou alguma vez de castigo?
Carmine deu risada.
– Não.
Capítulo 13

A mansão Sunny Oaks, localizada nas imediações de Hyde Park, em Chicago, parecia uma
residência extremamente sofisticada. O único detalhe que revelava sua verdadeira natureza eram as
pessoas que ali trabalhavam, usando aventais médicos como uniformes. Todos eram amistosos e as
instalações eram modernas, mas nada disso importava para Gia DeMarco.
Vincent fizera tudo ao seu alcance para mantê-la confortável, assegurando-lhe o maior quarto e
também todos os luxos permitidos, mas ela ainda se ressentia pelo fato de ter sido forçada a se mudar
para lá. Sunny Oaks não era sua casa, ela insistia, e no que lhe dissesse respeito, jamais o seria.
Gia estava sentada numa cadeira à janela. Seu quarto ficava de frente para o jardim. Ela vestia um
impecável vestido azul e sapatos pretos de salto alto. Diante da mãe, Vincent esticou o braço e tocou
no braço da cadeira, mas não se surpreendeu ao ver que ela se recusava a cumprimentá-lo. O mesmo
ocorria todas as vezes.
– Está um dia lindo lá fora. – ele disse, tentando iniciar uma conversa – Poderíamos sair para uma
caminhada.
– Não o vejo há meses, Vincenzo. – Gia retrucou, com a voz rude – Há meses.
Vincent suspirou.
– Faz apenas três semanas.
– Três meses, três semanas. – ela replicou – Talvez tenham sido três anos. Você não liga.
– Eu ligo sim, mas já não moro mais em Chicago, você se lembra?
– Não precisa me recordar. – respondeu – Odeio pensar que meu único filho abandonou sua
família.
Vincent sabia que por família ela não estava se referindo a laços de sangue, mas a la famiglia, na
qual, aliás, toda sua lealdade estava depositada. Se havia no mundo um estereótipo de esposa da
Máfia, ou seja, de alguém que sempre dedicara seu estilo de vida à Cosa Nostra, essa pessoa seria
sua mãe.
– Não abandonei ninguém. – disse Vincent.
– Sim, você me abandonou. – Gia retrucou – Você me prendeu nesse hospital.
– Não se trata de um hospital, mamãe, mas de uma comunidade de repouso.
– Esse lugar não é para mim. – ela resmungou – Não estou doente! Seu pai, que Deus proteja a
alma dele, teria vergonha de você.
Aquilo não era uma novidade.
– Bem, que tal o passeio agora?
– Não me importa o que esses idiotas dizem. – afirmou, desconsiderando seu convite – Não se
pode confiar neles. É provável que todos estejam trabalhando para o governo. Kennedy sempre quis
destruir seu pai. Acabar com ele.
– Kennedy está morto. – Vincent respondeu – E já faz muito tempo.
– Sei disso. – ela resmungou – Não sou louca.
Vincent sorriu de um jeito seco. Quanto a isso ninguém tinha certeza. Os médicos suspeitavam que
Gia DeMarco sofresse de demência prematura, mas Vincent se inclinou em direção a ela se
recusando a deixar para trás seus dias de glória. Ela não queria admitir que a vida seguira em frente
sem ela; que o mundo não parara de girar porque seu marido havia morrido.
Geralmente lúcida, Gia de vez em quando retornava aos velhos tempos, época em que Antonio
DeMarco era o homem mais poderoso de Chicago e Vincent ainda se importava em fazer com que
seus pais se orgulhassem dele.
– Um pouco de ar fresco lhe faria bem, não acha?
Gia levantou a mão e esfregou o ouvido direito, ignorando pela terceira vez o convite do filho.
– Meu ouvido está zumbindo. A velha Gertrude do quarto ao lado deve estar falando de mim.
– A senhora tomou sua aspirina hoje? Isso pode estar causando o zumbido.
– Não é a medicação. – ela retrucou – É ela.
Gia era bastante supersticiosa.
– Gertrude não me parece o tipo que gosta de fofocar sobre a vida alheia.
– Ah, como se pudesse distinguir algo assim, Vincenzo. É um completo imbecil em seus
julgamentos! Você e sua irlandesa…
– Não comece mãe. – Vincent ergueu a voz e a interrompeu – Não pretendo escutar isso
novamente.
Gia ficou quieta, como se considerasse a ideia de terminar ou não a frase que havia começado,
mas resolveu mudar de assunto.
– Sua irmã me visita o tempo todo. Vejo Corrado mais que você.
Aquilo não era verdade, mesmo assim, Vincent preferiu levar a culpa.
– Aquele sim é um bom homem. – ela disse – Corrado é perfeito. Sempre foi. Seu único defeito foi
jamais ter dado um filho à sua irmã. Sempre quis ter netos.
– Mas a senhora tem netos; dois, aliás. – replicou Vincent.
Gia fez um gesto zombeteiro, mas conseguiu se manter calada em relação à opinião que tinha sobre
isso. Ela então olhou pela janela, meneando com a cabeça, e disse:
– Você não liga para mim, Vincenzo. Nunca mais sequer me convidou para dar um passeio lá fora.

Desde que os DeMarco se mudaram para a Carolina do Norte, os rapazes habituaram-se a dar uma
festa de Halloween. Vincent estava hesitante em concordar neste ano, mas depois de muita insistência
e de inúmeras promessas, ele concordou, estabelecendo uma única regra: Haven deveria ser
observada o tempo todo.
A casa cheirava muito bem quando Carmine chegou naquela tarde; o aroma de desinfetante era tão
forte que fazia seus olhos arderem. Ele parou à porta da cozinha, de onde ficou observando Haven
esfregar o mármore do chão. Ela cantarolava, sem perceber sua presença; ele ouvia e tentava se
lembrar da música.
Ela ficou de pé e se virou, parando imediatamente de cantar e soltando um gritinho.
– Ah, você já chegou!
Ele riu quando a viu soltar a esponja.
– Não queria interromper o beija-flor enquanto cantarolava.
– Ah, você não interrompeu. Eu só estava… – então ela se virou para ele e olhou de um modo
peculiar – Beija-flor?
– Sim, beija-flor, ou colibri se preferir. Você me faz lembrar esses pássaros.
Ele se sentia como um idiota com aquele diálogo.
Ela pareceu surpresa.
– Mas por quê?
– Sei lá. – ele disse – Eles são coloridos e voam pra lá e pra cá, sempre cantando. E você também
é assim.
As bochechas dela coraram.
– Você já tinha me ouvido cantar?
– Já ouvi algumas vezes. É, uh… – ele não sabia bem o que dizer – Que música é essa?
– É algo que minha mãe costumava cantar. – ela disse, movimentando nervosamente as mãos e
evitando seu olhar. Suas calças de moletom e blusa estavam cheias de manchas de sabão; seu cabelo,
todo desajeitado.
– Bem, é melhor trocar de roupa – ele sugeriu –, pois temos de sair e acho que gostaria de vestir
outra coisa.
Ela o olhou sem acreditar e ainda esperou um pouco antes de dizer seu costumeiro “tudo bem” e
subir as escadas.
Carmine, por sua vez, girou os ombros tensos enquanto repreendia a si mesmo em silêncio,
desejando se sentir mais relaxado ao lado dela. A ansiedade dele alimentava a dela, e a última coisa
que ele queria é que ela voltasse a evitá-lo novamente.
Só demorou alguns minutos para Haven retornar, usando jeans e uma camiseta. Ele abriu a porta da
frente e a jovem hesitou à soleira antes de pisar na varanda. Depois de fechar a porta e religar o
alarme, ele a ajudou a entrar no carro. Ela agradeceu a gentileza quando ele sentou no banco do
motorista. Seus olhos não perdiam nada enquanto ele dirigia. Então perguntou:
– Aonde estamos indo?
Carmine abriu o console central do carro, à procura da lista, antes de se voltar para o porta-luvas.
– Procure ali por um pedaço de papel.
Ela seguiu as instruções dele e começou a remexer as coisas, ficando vermelha ao se deparar com
uma caixinha preta. Carmine resmungou ao perceber que ela achara as camisinhas que costumava
guardar no carro.
– Jesus, esqueci que elas estavam aí! – ele disse, pegando-as da mão dela, abaixando o vidro e
atirando a caixinha no meio da estrada. Ele ignorou seu olhar de incredulidade, sem querer dar
explicações, e fez sinal para que continuasse procurando.
Haven finalmente encontrou um pedaço de folha de caderno.
– É isso?
– Sim, leia o que está aí.
Com os olhos arregalados, ela gaguejou algumas palavras
– Uh, batata frita… pret… hum… pretzels… refrigerante… Estamos indo num supermercado?
– Sim! É disso que precisamos para a festa. E, enquanto estivermos lá, vamos fazer algumas
compras pra casa. Assim matamos dois coelhos com uma cajadada só.

Ao chegarem no mercado, as pernas de Haven bambearam quando a porta se abriu sozinha. Ela as
examinou com atenção, como se estivesse com medo de sair do veículo. Carmine esperou que ela
pegasse um carrinho, mas ela ficou parada.
– Você alguma vez foi a um mercado? – perguntou.
Ela respondeu que não com a cabeça.
– Nunca estive em um mercado.
– Nunca?
– Nunca.
A tarefa parecia mais complicada do que ele pensara.
– Bem, não posso dizer que já tenha feito isso também. Em geral não confiam em mim, então acho
que teremos que descobrir isso juntos.
Haven tentou entregar-lhe o papel, mas, em vez disso, foi ele quem lhe deu uma caneta.
– Você cuida da lista. A prática leva à perfeição.
Antes que ela pudesse argumentar, ele pegou um carrinho e seguiu para o setor de verduras e
legumes.
– Bem, tenho que confessar outra coisa. Eu não posso dizer que já tenha cozinhado na vida,
portanto, não faço ideia do que é a metade dessas porcarias.
Ele pegou um maço verde e olhou, cético:
– Por exemplo, que merda é essa?
Ela sorriu.
– Isso é couve-de-bruxelas.
– Definitivamente não vou comprar isso. – ele disse, atirando o vegetal de volta à banca.
Estava bem no início da tarde, então havia poucos consumidores no local, além deles próprios.
Carmine estava feliz pela privacidade. Haven estava claramente se sentindo um peixe fora d’água, e
segurava a lista com força, monitorando tudo ao seu redor.
– O que devemos levar?
– O que quer que queira cozinhar. – ele disse – Não sei se você notou, mas o Dom come de tudo.
Credo, ele comeria até essa couve-de-… bruxelas! Meu pai também não é difícil de agradar.
– E quanto a você?
Ele deu de ombros.
– Você é meio enjoado pra comida. – disse em voz baixa.
Ele pestanejou algumas vezes,
– Do que foi que me chamou?
Ela se sentiu culpada ao repetir o que dissera:
– Enjoado.
– Foi o meu pai quem te disse isso sobre mim, não é? Ele me chama assim todo o tempo.
– O doutor DeMarco realmente mencionou isso, mas não quis ser desrespeitosa.
– Eu sei. – ele disse – Bem, seja como for, vamos fazer as compras. Parecemos dois idiotas
parados aqui, como se nunca tivéssemos feito isso antes.
– E não fizemos mesmo. – ela o relembrou.
– É, eu sei disso, você sabe disso, mas os demais filhos da puta dentro do mercado não precisam
saber, né?

Eles percorreram todos os corredores. Carmine fez a maior parte do trabalho, enchendo o carrinho
de besteiras, enquanto Haven pegava os itens essenciais que ele deixava de lado. Ele a observava
conforme ela pegava leite, ovos, pão de forma, com os ombros já relaxados e demonstrando
confiança.
Finalmente ela devolveu a lista ao jovem, depois que todos os itens estavam ticados, e eles foram
para o caixa. Ele colocou todas as compras na esteira rolante e esticou a mão para pegar um
chocolate. Haven se assustou com o movimento brusco, então ele foi mais cuidadoso ao atirar a barra
de Toblerone sobre a esteira.
Depois de pagar, Carmine encheu o porta-malas com todos as sacolas enquanto Haven aguardava
ao lado da porta do passageiro. Ele não estava prestando atenção quando ela decidiu devolver o
carrinho de compras. Seu estômago virou do avesso quando ele se virou para o carro. Haven já não
estava mais lá.
Carmine entrou em pânico, olhando para todos os lados no estacionamento à procura da jovem,
sem encontrar um sinal dela. O pai dele certamente iria matá-lo dessa vez. Foram necessários apenas
dez segundos, meros dez segundos de desatenção para que ela sumisse, desaparecesse em pleno ar.
Ele correu para o carro e entrou tão rápido que quase arrebentou o joelho. Para sua surpresa,
Haven já ocupava o banco do passageiro, com o cinto de segurança afivelado e as mãos sobre as
pernas. Ele teve de respirar fundo para recobrar a calma e apreciar a sensação de alívio, antes de se
ajeitar no assento com a barra de chocolate na mão.
Carmine abriu a caixinha amarela, quebrou um triângulo e o ofereceu a ela, observando confuso
enquanto ela olhava para a mão dele.
– Você gosta de chocolate?
– Nunca provei.
Ele atirou o triângulo para ela.
– Jesus, garota, experimente então!
Ela riu diante do entusiasmo do rapaz e deu uma pequena mordida no cantinho do chocolate.
– Uau, isso é doce.
Separando alguns triângulos para si mesmo, Carmine entregou o restante do chocolate a Haven.
– Já sei o que vai dizer. É delicioso, não é?

Estava garoando quando chegaram em casa, então Carmine estacionou o mais próximo da varanda
que conseguiu.
– Destranque a porta, ok? – ela se preparou para responder, mas ele a interrompeu – O código é 6-
2-3-7-3. Digite isso no teclado e então aperte o botão maior. Consegue se lembrar?
– 6-2-3-7-3. – ela repetiu.
Ela pressionou os números e correu para dentro de casa no momento em que a chuva se tornou
mais intensa. Depois que a porta já estava aberta, ela pegou algumas sacolas e levou para a cozinha.
Quando retornou para ajudar com mais compras, ele colocou a mão à sua frente para impedi-la. Os
braços de Haven logo se ergueram num movimento de autoproteção, então ele retirou a mão.
– Merda, não tive a intenção de lhe assustar. Só não queria que você se molhasse.
Ela o olhou com uma mistura de confusão e divertimento, antes de pegar as sacolas da mão dele e
levá-las para a cozinha. Ele tirou tudo do carro e tentou ajudá-la a guardar, enfiando as coisas nos
lugares que ele achava corretos. Na verdade, ele só tornou a tarefa da jovem mais difícil ao se
colocar no caminho.
Dominic comprou pizzas para o jantar e Carmine foi direto na caixa da pizza de pepperoni antes
de pular no sofá. Olhando para Haven, ele deu um tapinha no assento vago ao seu lado. Os olhos
dela, entretanto, se voltaram para as escadas. O rapaz franziu a sobrancelha para ela, como se
dissesse “Não ouse fazer isso”. Ele a teria arrastado de volta para a sala. Não havia razão para que
ela não jantasse com ele.

Carmine acordou na tarde seguinte com a casa em um verdadeiro caos. Tess e Dia estavam de pé
sobre cadeiras na sala de estar, prendendo fitas nas janelas, enquanto Haven cuidava de uma caixa
com flores de plástico. Dominic corria de um lado para outro, atendendo às ordens de Tess.
Entrando silenciosamente na sala, Carmine balançou a cadeira sobre a qual Tess estava,
assustando-a. Dando um berro, Tess pulou da cadeira e ele cobriu a cabeça enquanto ela estapeava a
cabeça dele.
– Você é um imbecil, Carmine!
– Qual é, você bate como uma menininha. – aquelas palavras mal saíram de sua boca e ela lhe deu
um soco no peito. Ele estreitou os olhos – Caramba!
Tess sorriu.
– Quem é a menininha agora?
– Aparentemente, eu. – disse Carmine massageando o peito e olhando para o irmão, que ajeitava
as flores que recebia de Haven – De qualquer jeito, estou começando a me sentir como uma, nessa
sala cheia de cadelas.
– Do que você me chamou? – a voz de Haven soava diferente. Ele jamais ouvira aquele tom desde
que ela chegara a sua casa.
Ele franziu o cenho até que a ficha caísse e ele percebesse o que havia dito.
– Ah, merda… – cadela, pensou – Nada, não disse nada.
Haven se voltou para as flores sem dizer uma só palavra, entregando mais delas a Dominic.
Carmine a observou antes de se aproximar, inclinar-se ao lado dela e sussurrar em seu ouvido:
– Desculpe. Não quis dizer isso.
A jovem nem reagiu e ele sentiu seu peito encher-se de culpa. Ele não sabia se ela havia
acreditado e aceitado seu pedido de desculpas.

Depois que a casa já estava decorada, Carmine vestiu sua fantasia de pirata: calças e botas pretas,
camisa branca e bandana vermelha na cabeça. Em seguida, pegou o grande chapéu preto e desceu
para ver Dominic no hall, segurando uma espada.
– Quem foi o idiota que deu a ele uma arma? – Carmine gritou, se esquivando da lâmina de
plástico quando seu irmão a apontou para ele – Vocês deveriam ter mais bom senso.
– Ninguém a deu para ele. – Tess respondeu, saindo da sala de estar em sua fantasia de diabo – Ele
a encontrou sozinho.
Acenando com a cabeça, Carmine foi até o escritório que ficava embaixo das escadas e digitou o
código para destrancar a porta. O cômodo parecia um escritório normal, com uma mesa de mogno e
uma cadeira de couro preta. Um tapete persa cobria o chão; Carmine virou a ponta, expondo uma
porta oculta. Ele então a abriu e desceu a escada estreita até o porão, acendendo as luzes. Um brilho
sutil tomou conta do lugar, revelando dezenas de caixas de madeira.
Usando a parte da frente de sua camisa para cobrir a mão, ele retirou a tampa da que estava mais
próxima da escada e pegou algumas garrafas de bebida. Ele não se atreveria a ir mais à frente; não
desejava se arriscar.
Não tinha certeza se era algum medo inconsciente ou se o seu pai o havia ensinado isso em algum
momento, mas ele nunca deixava suas digitais naquele lugar. Então, depois de pegar as bebidas que
desejava, subiu antes de os convidados começarem a chegar.

Haven sentou-se na beirada da cama, remexendo as unhas e sentindo o estômago se contorcer. Ela
se sentia como um peixe fora d’água e estava com medo de descer as escadas; temia que, ao olharem
para ela, todos soubessem o que ela era; que não pertencia àquele mundo.
De repente ela escutou uma suave batida na porta, e então Dominic apareceu.
– Posso entrar, Pé de Valsa?
– Claro. – ela respondeu.
Ele entrou, usando a espada como bengala e sentou-se ao lado dela na cama. Em seguida se apoiou
nos cotovelos e ambos ficaram em silêncio, enquanto Dominic olhava para o teto. Ela se perguntava
o que ele estaria fazendo ali, em vez de estar aproveitando sua festa, mas permaneceu em silêncio e
deixou que ele falasse primeiro.
– Nella vita: chi non risica, non rasica. – ele disse – Na vida, quem não arrisca, não petisca.
Minha mãe costumava nos dizer isso. Já faz um bom tempo, mas ainda consigo ouvir a voz dela.
Ele sorriu para si mesmo ao recordar-se, enquanto Haven tentava se lembrar da voz de sua própria
mãe, desejando jamais se esquecer do modo como ela falava.
– Mamãe nos ensinou muito, mas é disso que mais costumo me lembrar. Você não deveria ter medo
de se arriscar. Talvez as coisas não funcionem; é possível que você fracasse e até se machuque, mas
jamais saberá a menos que tente. – ele fez uma pausa e deu um suspiro – Você pode tentar evitar
correr riscos, Haven, e eu não a condenaria por isso. Pode continuar sendo como sempre foi, e
sobreviverá, mas é isso o que quer? Isso seria suficiente?
Haven não tinha uma resposta para aquilo.
– Ou você pode escolher se arriscar. – continuou – Sei que traz isso dentro de você. Não posso lhe
prometer que conseguirá tudo o que quer da vida, mas lhe asseguro que nada irá mudar se você não
tentar.
Ela o encarou, absorvendo cada palavra, e percebeu quando a expressão de Dominic se tornou
mais sombria.
– Carmine nem sempre foi desse jeito, sabe? Ele costumava ser como a mamãe, incapaz de ferir
uma mosca, mas tudo isso mudou. Ele agora corre riscos físicos. Tanto que às vezes me pergunto se
ele dá alguma importância para a própria vida, mas qualquer coisa de caráter emocional lhe é
impossível. Você é boa para ele do jeito que é. Aliás, é a primeira mulher para quem ele olha como
um ser humano, não como um objeto.
Os olhos de Haven arregalaram.
– Mas por que eu sou diferente para ele?
– Acho que você o faz lembrar-se de nossa mãe, mas ele é o único que pode responder a essa
pergunta. – Dominic levantou-se – Agora me diga, vamos nos proteger ou vamos nos arriscar?
A festa já durava mais de uma hora, e durante esse tempo ninguém havia colocado os olhos em
Haven. Carmine caminhava entre os convidados em busca dela, mas ao chegar à cozinha se deparou
com Dia, sozinha. Ela usava um vestido colorido e meia-calça azul, um bico amarelo no nariz, que
combinava com seus tênis gema de ovo.
– Olá, senhorita papagaio. – ele a cutucou – Como é que você consegue parecer mais normal
justamente quando está fantasiada para o Halloween?
Ela revirou os olhos.
– Ha… ha… ha… Muuuuito engraçado.
Foi então que um grupo de garotas entrou na cozinha e Carmine rosnou ao ver Lisa fantasiada de
mulher gato.
– Quem foi que a convidou?
Dia o pegou pelo braço e o arrastou para fora dali antes que Lisa pudesse chegar até ele.
– Tenho quase certeza de que foi você, quando ainda estavam saindo juntos.
– Eu não estava saindo com ela. – ele retrucou – Acho que poderíamos dizer que eu estava
entrando nela de vez em quando.
Dia se encolheu.
– Nossa, como você é grosseiro.
– É, mas na verdade a culpa é sua. Você deveria ter me alertado em relação a isso… ou, sendo
mais específico, em relação a ela. Mas deixa pra lá.
– Eu bem que tentei. Foi você quem não quis escutar.
Ambos entraram no hall no momento em que Haven surgiu no topo da escada, trajando um vestido
dourado brilhante, repleto de moedinhas falsas penduradas nas extremidades. Havia ainda bijuterias
ao redor do pescoço e uma pequena tiara no cabelo.
– Ela é o meu tesouro ou não é?
Dia deu um tapinha de leve no rosto de Carmine e então se afastou.
Haven parou no hall no momento em que Carmine deu um passo à frente, pegando sua mão.
– Bella ragazza.
Os olhos dela brilharam quando viu suas mãos juntas.
– O que isso significa?
Ele deu um sorriso e, sem responder, puxou-a em direção à cozinha para se reunir com os outros
convidados. Ela se mostrou atenciosa, sorriu e cumprimentou a todos como se já estivesse
acostumada a receber convidados. Observá-la deixava Carmine fascinado: era impressionante o
modo como ela se adaptava facilmente ao que acontecia ao seu redor. Ele não conseguia deixar de
imaginar a enorme injustiça que sua ausência representava para o mundo.
Os dois estavam pegando suas bebidas quando alguém decidiu aumentar o volume do som na sala.
Carmine pegou a mão de Haven para girá-la. Ela riu e perdeu o equilíbrio. Carmine a segurou firme e
a puxou para perto dele. Já um pouco alterado pela bebida, ele só queria senti-la o mais próximo
possível. Ele então segurou os quadris da jovem e guiou seu corpo tenso ao ritmo da música.
– Relaxe, tesoro.
A ansiedade em sua expressão diminuiu.
– Algum dia você me dirá o que essas palavras significam?
– Tesoro significa quase o mesmo que doçura, mas a tradução é tesouro… o que, aliás, é a palavra
perfeita pra descrever você nesse momento.
Ela ficou vermelha e, sem graça, desviou o olhar. Ele, por sua vez, aproveitou a oportunidade para
pressionar suas costas. Soltando um ganido, ela colocou os braços ao redor do pescoço dele e deu
risada quando ele puxou suas costas mais para cima. As pontas dos narizes se tocaram e ele ficou
congelado no momento em que Haven inclinou a cabeça para o lado e encostou suavemente seus
lábios nos dele.
O sabor de morango do batom que ela usava se espalhou por sua boca, e ele lambeu os lábios,
chocado demais para fazer qualquer outra coisa além de encará-la. Haven deu alguns passos para
trás, afastando-se dele, mas ele agarrou os braços dela no momento em que percebeu que ela iria
fugir. Puxando-a com mais força, ele a beijou com desejo sem pensar duas vezes.
Naquele abraço roubado, e naquele beijo, foram liberados dezessete anos de paixão. Haven
retribuiu; seus lábios se abriram e se moveram juntos dos dele. Passando sua mão trêmula atrás da
cabeça dele, ela tocou seus cabelos com os dedos, mas Carmine não sabia dizer se aquilo era
nervosismo ou excitação.
– Caralho!
Os dois interromperam o beijo ao ouvir a voz de Dominic. Ele estava parado na porta da cozinha,
olhando para eles. Haven se afastou e rapidamente saiu da cozinha, antes que qualquer um deles
pudesse impedi-la.
– Droga, eu não queria atrapalhar – disse Dominic, dando um tapinha nas costas do irmão –, mas,
honestamente, não esperava por essa.
Carmine acenou com a cabeça, confuso. Ele também não esperava.

Haven olhava para o espelho do banheiro, levando a mão aos lábios, que latejavam com a força do
beijo de Carmine. Sua mente estava a mil enquanto ela tentava entender o que havia acontecido. Será
que aquilo significava que o que ela sentia por ele era recíproco?
Alguém bateu à porta dizendo que precisava usar o banheiro e Haven saiu de lá à procura de
Carmine. Ela perguntou a Dia, que apontou para as escadas.
Haven subiu até o terceiro andar e viu Carmine parado na porta do quarto dela com um grupo de
rapazes. Um sorriso se abriu nos lábios dela à medida que se aproximou dele. Ele retribuiu o sorriso,
mas este desapareceu rapidamente quando o garoto parado ao lado dele sussurrou.
– Carne nova?
Tudo aconteceu tão rápido quanto o toque num interruptor. Seu sorriso se transformou em uma
expressão de raiva; suas mãos se fecharam e se preparavam para a briga. Sem dizer uma única
palavra, Carmine pegou o sujeito e o empurrou até a parede, dando-lhe um soco na boca. As pessoas
começaram a gritar e seguiram para o caos que se estabeleceu no terceiro andar. Carmine batia e
chutava o rapaz, liberando toda sua ira em cima dele.
– Se você ousar olhar pra ela de novo, eu juro que te mato! – ele esbravejou.
Haven respirou fundo e correu para seu quarto, trancando imediatamente a porta atrás de si.

As batidas na porta eram tão fortes que faziam as paredes vibrarem, transportando Haven direto
para o passado.
Tum. Tum. Tum. Haven estava encolhida num canto do estábulo, tapando os ouvidos. Mas isso não
aliviava o som. Ela não sabia o que estava acontecendo. A mãe dela já tinha ido embora quando as
batidas começaram.
Tum. Tum. Tum. As pancadas se tornavam cada vez mais altas. Onde estava sua mãe? Haven
apertava os olhos, contando mentalmente para acabar com aquilo. Ela contou até seis antes de se
perder e recomeçar, sem nunca conseguir chegar ao dez.
Tum. Tum. Tum. Havia alguém chorando e gritando, mas não era ela. Aquilo parecia tão perto e, ao
mesmo tempo, tão longe. Naquela escuridão, ela não conseguia descobrir de onde vinha.
Tum. Tum. Tum. Foi então que ela ouviu uma voz baixa e maliciosa dizer – Se contar para
alguém, eu juro que te mato. – Ela não sabia quem estava falando, tampouco o que não deveria ser
contado, mas soava como o silvo de uma cobra. – Prometo que não direi nada – respondeu a outra
voz, terrivelmente familiar –, mas eu te imploro, não toque na minha menina.
Tum. Tum. Tum. O barulho desapareceu, porém, o silêncio não a confortou. Ela abriu os olhos
esperando que fosse um pesadelo, mas a primeira coisa que viu foi o rosto daquele monstro maldito.
Ele estava parado do lado de fora do estábulo, fechando as calças e a encarando de um jeito
provocativo.
O estômago dela estava mais contorcido que a pele desfigurada daquele monstro. Seu peito doía
de tanto chorar; havia um grande vazio interior. Naquela noite sua mãe voltou tremendo e a abraçou.
Hoje, entretanto, ela não estava lá para aplacar o terror que Haven sentia.

– Haven? – a voz de Carmine era suave e as batidas na porta eram leves – Cacete, eu sinto muito.
Não quis te assustar.
Capítulo 14

A parede branca da biblioteca ostentava uma mancha de sangue. Haven estava tentando limpá-la
com um pano quando Carmine, com os cabelos desgrenhados, saiu de seu quarto e olhou para ela.
– O que está fazendo? Você não deveria estar esfregando isso! – ele exclamou, arrancando o pano
das mãos da jovem. Ela ficou assustada e seus olhos se encheram de lágrimas. Carmine esticou as
mãos em sua direção, mas ela se contraiu. Estava devastada e exausta; simplesmente não conseguia
suportar aquele olhar repleto de raiva e aversão. Porém, na tentativa de evitar o toque do rapaz,
acabou tropeçando e caindo no chão. Confuso, ele deixou o braço cair.
– Não dou uma dentro com você, não é?
– Sinto muito. – ela respondeu, sem compreender bem a pergunta. Afinal, ela apenas estava
tentando limpar o sangue da parede.
Ele rosnou e atirou o pano longe, esbravejando.
– Você sente muito? Pelo quê? Ciò è scopare pazzesco! O porra-louca aqui sou eu. Vou ficar
maluco se não parar com esse jogo!
Jogo?
– Do que você está falando?
Ele agarrou o braço de Haven. Um frio percorreu sua espinha. Ao mesmo tempo em que ela se
perguntava por que ele a estaria tocando, uma parte irracional sua desejava que ele continuasse. Toda
vez que ele encostava a mão em seu corpo ela se sentia menos sozinha. Pela primeira vez na vida ela
sabia o que era estar viva.
– Diga que não sente nada e eu me afastarei.
Ela olhou para a mão dele e, em seguida, o encarou.
– Então você também sente?
– É claro que sinto. Eu te beijei ontem à noite!
Ela pestanejou algumas vezes.
– Na verdade fui eu quem te beijou. Eu não devia ter feito aquilo, afinal, você mesmo me disse que
nunca…
– Você apenas tocou nos meus lábios; fui eu quem praticamente te engoliu viva. – ele balançou
negativamente a cabeça – E… você está certa. Não faço isso. E é justamente por essa razão que estou
enlouquecendo. É o que venho tentando te dizer.
Ele deslizou os dedos pelos próprios cabelos desarrumados e a encarou como se estivesse
implorando. Implorando pelo quê? Haven não fazia ideia.
– Dizer o quê?
A resposta dele foi o silêncio. Carmine deslizou o corpo pela parede, sentou-se no chão e contraiu
os joelhos, segurando-os com os braços.
– Eu mesmo teria limpado esse sangue na parede, afinal, ele só está aí por minha causa.
– Tudo bem com o rapaz?
– Claro! Aquilo ali é como uma lagartixa. Eu poderia ter arrancado o rabo dele e ainda assim
estaria saracoteando por aí.
Ela soltou um suspiro diante de sua relutância em oferecer-lhe uma resposta direta.
– Sei que não tenho o direito de lhe dizer o que fazer, mas não gosto que pessoas fiquem
machucadas por minha causa. Se quiser culpar alguém culpe a mim. Puna a mim. Mas, por favor, pare
de machucar as pessoas desse jeito. Nenhum desses caras me fez nada.
Ele mais uma vez a encarou e, dessa vez, ficou com a boca aberta.
– Acha que te vejo desse jeito?
– Quando você ataca alguém é como se estivesse irritado porque eles estão mexendo com algo que
pertence a você.
Ele mais uma vez passou as mãos na cabeça e agarrou alguns dos próprios cachos.
– Tudo bem, eu tenho um problema com o meu temperamento. É só que… Eu sinto… – ele hesitou
e então respirou fundo – Olha, não é que eu ache que você pertença a mim; eu só quero que você seja
minha.
Haven franziu as sobrancelhas.
– E há alguma diferença?
– Tá, isso não soou como deveria. Caramba, eu me importo com você, entendeu? Eu reajo desse
jeito porque não quero que ninguém te machuque. E eu sei que talvez isso não faça muito sentido,
considerando que eu acabo te machucando mais que esses filhos da puta, mas não é a minha intenção.
Você não se parece com ninguém que eu já tenha conhecido. Você é capaz de me compreender como
ninguém nunca conseguiu. – ele se aproximou dela – La mia bella ragazza.
– Você sabe que eu não sei o que isso significa. – ela disse, ficando vermelha diante da intensidade
do olhar do jovem.
Ele deslizou a parte da frente de seus dedos pela sua bochecha corada. Seu toque era suave e ela
inclinou a cabeça na direção dele.
– Minha linda garota. – ele finalmente traduziu.
Ela ouviu aquela frase e o encarou.
– Você me acha linda?
– Eu não acho que você seja linda, Haven. Eu sei que você é.
Suas palavras deixaram-na confusa.
– Você também é.
Ele fez uma careta.
– Você está me dizendo que me acha bonito?
Haven confirmou com a cabeça.
– Você é uma pessoa bonita.
– Caramba, já me chamaram de um monte de coisas nessa vida, mas “pessoa bonita” nunca foi uma
delas.

Nunca em toda sua vida Haven se deparara com um desastre de tamanha proporção quanto aquele
que os esperava no andar térreo. Havia coisas espalhadas por todos os cômodos; garrafas e latas
vazias largadas sobre as mesas e os balcões. O chão estava coberto de comida pisoteada e a casa
cheirava como uma enorme lata de lixo. Havia vidro quebrado na sala de estar; os móveis e objetos
estavam fora do lugar.
Haven ficou parada no último degrau da escada avaliando a bagunça, enquanto Carmine seguiu
direto para a lavanderia. Ele logo retornou com vários sacos para recolher o lixo.
– Você começa pela cozinha enquanto eu checo o que foi quebrado. Tenho certeza de que nem tudo
sobreviveu intacto à noite de ontem.
– Você não tem de fazer isso. – ela disse – Posso cuidar de tudo.
– Sei que pode, Haven. – ele respondeu – Mas deixe que eu tente te ajudar.
Ela seguiu para a cozinha e limpou os balcões, escutando alguns barulhos de vez em quando. Era
Carmine remexendo as coisas na sala de estar. Ela recolheu todas as latas e encostou o saco num
canto. Haven acabava de começar a lavar a louça quando Carmine reapareceu, deixando outro saco
de lixo no chão.
– Você não tem de lavar tudo isso com as mãos. – ele disse – Temos uma máquina de lavar louças.
– Não sei como fazer ela funcionar.
Carmine abriu a máquina e puxou a bandeja superior.
– Agora coloque tudo aqui e tire suas mãos dessa água suja.
Ela olhou para ele com certa cautela. Considerando que ele não sabia como operar uma máquina
de lavar roupas, ela esperava que ele também não fizesse ideia de como lidar com aquela. Todavia,
achou melhor acatar o que havia dito e colocar pratos e copos nos devidos lugares. Quando a
máquina ficou cheia ele deu um sorriso metido. Haven não tinha certeza se estava orgulhoso de si
mesmo ou dela.
Em seguida, Carmine colocou um pouco de sabão e fechou o tampo frontal; estreitou os olhos e
começou a pressionar alguns botões. O equipamento começou a funcionar imediatamente e ele logo
afastou as mãos, surpreso.
Haven deu risadas assim que ele saiu da cozinha, sabendo que estava certa desde o início: ele
realmente não sabia como mexer na máquina.
Depois de colocar algumas roupas para lavar ela retornou para a cozinha, mas, no instante em que
se aproximou da pia, a jovem pisou numa poça d’água e escorregou. Felizmente conseguiu se agarrar
ao balcão e manter-se de pé. Foi então que ela olhou para o lado e ficou estarrecida ao perceber as
bolhas de sabão saindo da máquina de lavar louças.
– Carmine! – ela gritou. Não havia como aquilo ser normal. Haven ouviu alguém descendo as
escadas rapidamente e em seguida ele entrou na cozinha. Ela tentou avisá-lo – Cuidado! – mas ele
escorregou na água cheia de sabão.
– Merda! – ele praguejou, tentando vencer a espuma que aumentava e chegar à máquina.
Desesperado, ele fuçou em todos os botões e bateu no tampo frontal do equipamento tentando fazê-la
parar, porém, mais bolhas continuavam a sair por todos os lados. Furioso, ele esmurrou e chutou a
máquina. Haven franziu a testa ao perceber que ele deixara uma marca na parte da frente.
Carmine continuou xingando, esbravejando e apertando todos os botões, até que a máquina
finalmente parou de funcionar.
– Acho que temos um probleminha aqui. – Haven concluiu ao ver aquela enorme confusão. Era
impossível ver o piso da cozinha. De algum modo os dois conseguiram piorar muito a situação. Ela
sorriu, tentando se manter séria, e então levou a mão à boca para segurar o riso.
Carmine ergueu uma sobrancelha e indagou.
– Você está rindo de mim?
Ao ver a expressão no rosto dele, Haven não se conteve e caiu na gargalhada. Ela então soltou a
mão do balcão e, sem prestar atenção por onde andava, acabou escorregando. Carmine tentou segurá-
la, mas também perdeu o equilíbrio. Ela caiu de costas para o chão e o rapaz sobre ela.
Embaraçado pela situação, ele logo se colocou de joelhos ao lado dela.
– Caralho, eu não queria te derrubar! Você se machucou? Eu te machuquei? Hein? Machuquei?
Diga alguma coisa, caramba!
Ambos conseguiram se sentar um de frente para o outro. Haven estava ensopada; Carmine a
encarou assustado, como se ela tivesse agora duas cabeças. Ela meneou com a cabeça e mais uma
vez levou a mão à boca para tentar segurar o riso, mas foi em vão. Ele começou a rir sem parar.
– Acho que você fez algo errado com a máquina, Carmine.
Ele encheu a mão com bolhas de sabão e atirou contra ela. Ela conseguiu desviar parcialmente, e
foi atingida só no peito e na bochecha. A jovem não hesitou em dar o troco. As bolhas o atingiram
bem no rosto; ele cerrou os olhos e passou a mão na face para se limpar.
– Eu não acredito que você fez isso! – ele disse, olhando para ela com uma expressão
determinada. Ela ainda tentou desviar de novo, mas ele a pegou antes que pudesse escapar. Ele a
empurrou de costas para o chão e deslizou sobre ela, prendendo-a no meio da água cheia de sabão.
Ela ainda conseguiu atirar algumas bolhas contra ele, mas o tiro saiu pela culatra. Ele se inclinou e
passou o nariz sobre o dela, transferindo o sabão. Haven inclinou a cabeça para o lado, sentindo-se
forte, o beijou. Os lábios dele eram macios e úmidos; sua boca tinha o gosto doce e mentolado.
Havia, entretanto, algo amargo no meio daquilo e ela enrugou o nariz.
– Você está com gosto de sabão.
Rindo, ele a pegou pela mão, colocou-a de pé e retirou algumas bolhas do cabelo da jovem.
– Que tal nós limparmos essa bagunça para podermos conversar? – ele perguntou, dando uma boa
olhada na situação, e completou – E tirar um cochilo. Eu definitivamente preciso de um cochilo.
Capítulo 15

Depois que a casa estava finalmente limpa e organizada, e o chão da cozinha tão brilhante a ponto
de Carmine conseguir ver seu reflexo nele, ambos foram para o terceiro andar. Haven foi para seu
quarto tomar banho e Carmine para o dele. O jovem se despiu e atirou as roupas imundas e molhadas
sobre a pilha das que precisavam ainda serem lavadas. Ele realmente precisava delas limpas, mas se
achava um bundão por ter de pedir a Haven que o ajudasse. Será que namoradas costumavam fazer
essas coisas por seus namorados? Ele não tinha certeza, considerando que jamais tivera um
relacionamento sério até então.
Caramba, ele sequer tinha certeza de que ela fosse sua namorada. Tudo de que tinha certeza era
que aquela jovem roubara seu coração e não havia como pedi-lo de volta. De repente, num curto
espaço de tempo, ela o havia sequestrado, e representava para ele uma parte tão crucial de seu corpo
como o próprio ar que respirava.
Que desastre! Pensou. Em seguida, vestiu seus shorts, pegou o controle remoto do aparelho de som
e se atirou na cama, passando por várias estações. Ele estava muito cansado e logo caiu no sono. De
repente a cama estalou. Haven se sentou ao lado do rapaz, então ele moveu o edredom e fez sinal
para que ela se unisse a ele.
– Não tive a intenção de acordá-lo. – ela disse, deitando-se ao lado dele.
– Estava apenas descansando os olhos. – ele afirmou – A propósito, você parece bem melhor
agora. Não estou dizendo que não estava bem antes, apenas que fica mais bonita depois que toma
banho. Tá, eu sei, isso não soou muito bem também. Quer saber, deixa isso pra lá.
Ela riu de todo aquele falatório e esticou a mão, hesitando no meio do movimento. Ele sorriu como
se pedindo que ela continuasse e fechou os olhos, apreciando seu toque leve explorando seu rosto.
Ela deslizou os dedos pelo nariz dele e pela testa antes de chegar aos cabelos.
Quando ele voltou a abrir os olhos, sua expressão o surpreendeu. Ela parecia apavorada. Sua mão
ficou imóvel sobre sua face; seus olhos pareciam vidrados e cheios de lágrimas não derramadas.
– Há algo de errado? – ele perguntou.
– Você…? – ela deslizou seu polegar pelo rosto dele, provocando uma sensação deliciosa no
corpo do rapaz – Você realmente sente alguma coisa?
– É como se houvesse estática debaixo da pele.
– O que acha que é?
– Colpo di fulmine? – ele sugeriu. Ela olhou para ele e o jovem sorriu – Acho que vai querer uma
tradução.
– Por favor.
– É quando você se sente atraído por alguém com tanta força que é como ser atingido por um raio.
Ela o encarou e disse.
– Ah, muito bem.
– Espere aí, esse “muito bem” é do tipo “Muito bem, você é mesmo um idiota, Carmine, portanto
tanto faz o que tenha dito” ou, quem sabe, de “Muito bem, Carmine, isso faz todo sentido”?
– De faz todo sentido. – ela respondeu – Não entendo o que está acontecendo. É tudo tão novo, e
não sei o que espera de mim.
– Não espero nada de você, tesoro. – ele disse – Não posso mentir. Estou me sentindo atraído por
você, mas… Você só fará o que quiser. Seremos o que quer que você queira que nós sejamos. Só
quero uma chance. Estou te pedindo uma oportunidade.
– Uma oportunidade para fazer o quê?
Para fazer o quê? Para se provar como pessoa? Para ser feliz? Para que alguém confiasse nele?
Para que alguém o amasse? Para que ele a amasse? Para finalmente se transformar em alguém que
valesse a pena.
– Sei lá, apenas… uma oportunidade. Não posso lhe prometer que as coisas serão fáceis,
tampouco que só teremos momentos felizes. Nunca estive numa situação parecida, então também não
sei direito o que estou fazendo. Mas tentarei ser bom pra você.
– Também não sei o que estou fazendo. – ela disse.
– Podemos aprender juntos. Apenas me diga o que deseja de mim, e nós descobriremos juntos.
Ela sorriu, mas ele ainda pôde sentir sua apreensão.
– Você me faz feliz. Eu, bem… Não gosto de estar aqui quando você não está por perto.
Certamente era difícil para ela admitir aquilo.
– Não posso prever o futuro, mas farei tudo o que puder por você. Você está se arriscando comigo.
Aprecio o que está fazendo e saberei valorizar isso.
Ele então pressionou seus lábios contra os dela e ela sorriu quando ele se afastou.
– Uau! – ela exclamou, percorrendo a boca dele gentilmente com os dedos – Sua boca é
surpreendentemente doce para quem diz coisas tão feias e rudes.
Ele caiu na gargalhada.
– Acho que você está delirando. Que tal tirarmos um cochilo antes que resolva me dizer que tenho
o cheiro do brilho do sol ou algo desse tipo?
– Você realmente tem o cheiro da luz do sol.
– É, e como cheira a luz do sol?
– Cheira como o mundo lá fora. Quente. Alegre. Seguro… – ela fez uma pausa, então continuou –
Verde.
– Verde?
Ela confirmou com a cabeça
– Com certeza, verde.

A Pizzaria Tarullo era um estabelecimento pequeno cujo proprietário, John Tarullo, fazia parte da
segunda geração de imigrantes italianos. Ele era o que todos costumavam chamar de um uomo de
panza, ou seja, um homem barrigudo, e a Cosa Nostra o recompensava por isso. Ele cuidava dos
próprios negócios e nunca prestava atenção a assuntos que não lhe diziam respeito. Em troca de seu
silêncio, a famiglia garantia sua prosperidade. Tarullo não gostava de confiar na máfia. Na verdade,
várias vezes ele chegara a comentar com Vincent que detestava aquela organização, porém, se não
fossem eles seriam outras pessoas. Alguém viria até ele esperando algo em troca e era bom que esse
alguém pelo menos tivesse um rosto familiar.
O próprio Vincent gostava de proteger a pizzaria. Tarullo foi o responsável por encontrar Carmine
na noite em que ele fora baleado e Vincent sempre se sentiria em dívida com ele por ter salvado a
vida de seu filho. Isso era algo que Tarullo preferia esquecer.
Nunca havia problemas naquela pizzaria, afinal, todos sabiam que o lugar era protegido pelos
mafiosi, por isso Vincent ficou chocado ao receber uma ligação para comparecer ao local,
principalmente depois de tantos anos do ocorrido.
No momento em que pisou no restaurante e ouviu as vozes altas e impacientes, sua mão repousou
sobre a arma escondida no casaco.
Ele ficou imóvel, observando os homens que estavam no balcão, ambos caucasianos e com
cabelos ruivos. Vincent os avaliou enquanto brigavam; ambos falavam de um jeito enrolado. Ele não
tinha certeza do porquê fora chamado para resolver uma situação tão corriqueira, mas quando o alvo
dos dois passou a ser Tarullo, DeMarco deu um passo à frente. De fato, ele se afastara pouco da
porta quando esta se abriu novamente e ele ouviu alguém dizer uma única palavra.
– Zatknis!
Cale a boca. Aquela era a única expressão que Vincent conhecia em russo. Ele a ouvira muitas
vezes dos lábios do homem que agora estava parado a apenas alguns centímetros dele.
Vincent o encarou. Era alto e forte como um jogador de futebol americano. Os cabelos grisalhos
estavam escondidos por um boné preto. Embora estivesse na casa dos setenta, o sujeito parecia um
jovem psicopata assassino.
– Ivan Volkov – Vincent disse –, você não é bem-vindo neste lugar.
Ivan o encarou sem expressão por um momento antes de sair da pizzaria. Porém, antes mesmo que
a porta se fechasse, ele voltou.
– Não vejo seu nome na placa.
– Não preciso ser o dono do lugar. – Vincent retrucou – Você não tem negócios nessa parte da
cidade.
Apesar de Vincent estar irritado, Ivan teve a audácia de sorrir.
– Por que está sempre tão sério? Só viemos comer uma pizza.
– Procure outro lugar.
– Mas eu quero jantar aqui.
Os dois estavam em um impasse; a mão de Vincent ainda posicionada sobre o revólver em seu
casaco. Porém, Ivan não parecia afetado, apenas impaciente ao olhar o cardápio afixado na parede.
A porta se abriu novamente e Corrado entrou no restaurante. Ele sequer olhou para Ivan quando
passou por ele.
– Volkov.
– Moretti.
– Saia.
– Por quê?
– Porque serei forçado a te matar se não sair. Estou usando minha camisa favorita, portanto,
arruinaria o meu dia se ela ficasse manchada com o seu sangue.
Ivan não disse uma só palavra enquanto Corrado caminhava de modo casual até o balcão. Os dois
sujeitos que estavam sentados se afastaram quando Corrado levou a mão ao bolso. Todos estavam
tensos e o silêncio sufocante inundava o ambiente. Porém, em vez de retirar sua arma, ele pegou sua
carteira.
– Quero uma pizza de calabresa com cogumelos. Com pouco molho. Você sabe como eu prefiro.
Tarullo o chamou e ao mexer na registradora ela emitiu um som forte, que interrompeu o silêncio
do local.
– São 17 dólares e 78 centavos.
Corrado entregou-lhe uma nota de cinquenta dólares e comentou: – Guarde o troco.
Ivan respirou fundo e gesticulou para que seus homens deixassem aquele local. Em seguida voltou-
se para Vincent.
– Nós nos encontraremos novamente.
Vincent acenou com a cabeça.
– Tenho certeza de que sim.
Os russos saíram, falando mais uma vez em voz alta ao deixarem o local. Vincent olhou para seu
cunhado. Corrado também o encarou de um jeito peculiar, apoiado no balcão à espera de sua pizza.
– Eles estão tentando nos provocar.
– Eu sei. – disse Vincent – Também recebeu um telefonema para vir aqui esta noite?
– Não, só queria comer pizza.
Vincent olhou para ele e disse.
– Sabe que Sal nos espera para uma reunião, certo?
– Sei – respondeu Corrado, olhando para o relógio –, mas estou faminto.

Reuniões da famiglia não se pareciam em nada com as do cinema. Quando ainda era criança,
Vincent costumava assistir a encontros elaborados que mais pareciam julgamentos, então ria ao
imaginar seu pai num traje preto e com um martelo na mão, sentado no centro da sala enquanto ambos
os lados defendiam suas posições. O culpado perdia e a justiça era feita; mais um caso resolvido.
Não, as reuniões da famiglia não eram assim. Em geral elas ocorriam em uma caminhada casual,
às vezes chegando ao fim sem que uma única palavra fosse trocada. Não havia argumentação e
também não importava se você era inocente. O julgamento já havia ocorrido antes de sua chegada.
Vincent ficou de pé próximo ao píer olhando para o Lago Michigan. O Federica flutuava a não
mais de trinta metros de onde ele estava. Havia uma mulher caminhando no deque. Ela parecia
jovem, possivelmente não tinha trinta anos. Uma goonah, ou amante, que se sentia atraída por esse
estilo de vida e também pelo poder desses homens. Vincent as via apenas como prostitutas de luxo,
que trocavam sexo por presentes e viagens ao exterior.
– Carlo também foi chamado? – perguntou Giovanni. Vincent se virou e olhou para os homens que
já estavam reunidos. Giovanni parecia congelado dentro de um casaco grosso.
Sal negou com a cabeça.
– Não, ele voltou para Vegas.
Carlo havia assumido as operações da famiglia há alguns anos em Vegas, então raramente aparecia
em Chicago. Vincent se ressentia pelo tratamento especial que recebia. Afinal, ele também se
mudara, mas ainda assim era obrigado a comparecer.
– Muito bem, quatorze dos nossos foram presos. – iniciou Sal, indo direto ao assunto – Dois deles
estão colaborando com a polícia.
Um falatório se instalou entre os presentes. Quatorze membros da Cosa Nostra haviam sido presos
e dois deles se tornaram testemunhas e estavam cooperando com o governo.
– Você irá silenciá-los? – perguntou Squint.
Vincent olhou para ele, ainda sem entender por que aquele sujeito era convidado para as reuniões.
– As coisas ainda não esfriaram. Eles estão bem protegidos.
– Mas então – disse Squint –, por que não pegamos suas famílias? Os dois entenderão o recado.
Em conjunto, Vincent e Giovanni tentaram fazer suas objeções, mas a voz de Corrado se
sobressaiu à voz de ambos.
– Não.
Ele então se encostou à sua Mercedes e pegou a caixa de pizza que estava no banco. Ele a devorou
como se não comesse há semanas. Aquela foi sua única palavra. Não houve qualquer explicação, o
que não surpreendia Vincent. Ele dissera tudo o que precisava com aquela única palavra.
– Corrado está certo. – disse Sal – Vamos apenas ser cuidadosos até descobrirmos mais.
Squint resmungou para si mesmo enquanto Corrado continuava a comer. Giovanni sentia calafrios
e Vincent estava impaciente quando percebeu que a atenção de Sal se voltara para o barco. Eles
conversaram um pouco mais até que a atenção de Vincent foi atraída pela menção dos russos.
– Eles estavam no Tarullo esta noite. – Vincent disse.
– Eles machucaram alguém? – perguntou Sal – Ou a situação foi resolvida?
– Foi resolvida.
Ele aprovou com a cabeça.
– Não há motivos para entrarmos em conflito com eles.
Giovanni tentou interferir, mas o olhar de Sal foi suficiente para encerrar a conversa. Ele então
abanou a mão, liberando todos os presentes. Corrado entrou no carro sem dizer outra palavra.
Vincent se virou para sair, mas foi interrompido pela voz de Salvatore.
– Como vai meu afilhado?
O sangue de Vincent congelou ao ouvir aquela pergunta.
– Ele está bem.
– Está se saindo bem na escola, passando de ano?
– Ele vive reclamando; falta bastante.
Sal deu risadas.
– Isso não me surpreende. Os negócios, a famiglia está no sangue daquele jovem. E isso é tudo,
você sabe. A famiglia é tudo o que importa.
Vincent não tinha nada de positivo a dizer sobre o assunto, mas Sal não esperou por uma resposta.
Levando a mão ao bolso, pegou um envelope grosso e o entregou a Vincent.
– Dê isso ao Príncipe por mim. Um presentinho de seu padrinho.
Mesmo sem querer, Vincent pegou o envelope e seguiu para o carro. Depois que se sentou, enfiou
o envelope no porta-luvas. Não tinha a menor intenção de entregar aquele presente ao seu filho.

Haven se sentou à janela da biblioteca. Carmine pegou seu violão e se aproximou dela. Sem dizer
nada, ela pegou um livro que estava na mesinha entre eles. Carmine sorriu ao perceber que se tratava
de O Jardim Secreto.
– Então, você ainda não desistiu desse livro?
– Não. – ela respondeu, abrindo o livro no que representava um quarto das páginas – É muito bom.
Ela busca um jardim e faz amizade com um pequeno passarinho. Isso me faz lembrar…
Ela interrompeu a frase no meio e Carmine continuou dedilhando o violão de maneira aleatória até
que perguntou.
– Te faz lembrar o quê?
– De quando eu era criança e costumava conversar com os animais. – ela respondeu – Havia
alguns cachorros, mas na maioria eram cavalos. Eu costumava ficar nos estábulos com eles.
Pego de surpresa, Carmine errou a nota e ambos se contraíram ao ouvir o som desagradável.
– Você dormia com os malditos cavalos?
– Sim, mas não era tão ruim. Eles me faziam companhia.
Ele contraiu a mandíbula e tentou se controlar. Ela poderia dizer que aquilo não era ruim, se
quisesse, mas Carmine não conseguia imaginar um cenário mais desumano.
Continuou a dedilhar seu violão, brincando com as notas. O olhar dela ocasionalmente aparecia
acima do livro e se concentrava nele.
– Posso te fazer uma pergunta, Carmine?
– Claro que pode.
– Por que atirou em Nicholas no ano passado?
Mais uma vez ele errou a nota. De todas as coisas que ela poderia lhe perguntar, ela queria saber
logo sobre Nicholas?
– Nós discutimos depois que eu me meti com a irmã dele. Ele ficou puto comigo e acabou dizendo
algo sobre a minha mãe. Eu surtei.
– Sua mãe?
– Sim.
– E ela está em Chicago?
Ele deu um suspiro.
– Em Hillside.
– E o que ela está fazendo lá?
Ele hesitou por um segundo.
– Nada. Ela se foi.
– Você quer dizer que ela já… morreu?
Carmine se contraiu ao escutar aquela palavra e confirmou com a cabeça.
Ele voltou a dedilhar enquanto ela se concentrou no livro. Ele não sentiu qualquer tipo de
julgamento, desapontamento ou pressão para explicar o que acontecera. Só naquele instante ele
percebeu o quanto ele precisava desse tipo de aceitação. Ela o havia mudado. Embora não soubesse
de que modo, ele se sentia diferente. Ele havia voltado a ser o filho de Maura, e não somente o
herdeiro de Vincent DeMarco.

– Olhe aquele Chevy Suburban.


A voz parecia casual, mas Vincent conhecia Corrado bem o suficiente para saber que ele estava
alerta. O médico esperou alguns segundos antes de se virar e observar um veículo Chevy Suburban
na cor preta, estacionado próximo à guia, a meio quarteirão de distância.
Os vidros escuros impediam a visão do interior, mas Vincent tinha um ou dois palpites.
– Acha que é o FBI? Não parece ser da região.
– Qualquer coisa é possível – dissse Corrado – FBI, Departamento de Justiça, cia…
Vincent fez um movimento negativo com a cabeça.
– O que aprontou para fazer a cia trabalhar em pleno sábado à noite?
– Nunca se sabe. – disse Corrado – Talvez eles estejam querendo me recrutar.
Vincent deu risada, embora ele não descartasse essa possibilidade. Não teria sido a primeira vez
que alguém da cia tentava trocar informações.
– Eles estavam parados próximo do clube esta manhã. – disse Corrado – Agora estão perto do
restaurante.
– E só agora você me dá essa informação?
– Você mesmo deveria ter percebido a presença deles.
– Não acha que seja alguém como os irlandeses, não é? Russos, talvez?
– Não. Eles são policiais.
– Talvez um novato fazendo sua primeira campana. – sugeriu Vincent – Ou estão deliberadamente
fazendo com que nós os vejamos.
– De qualquer modo você está me ofendendo. O que acha que eu sou? Um idiota que não
perceberia ou um covarde que se sentiria intimidado?
– Talvez não estejam aqui por sua causa. – disse Vincent – Talvez estejam aqui para me observar.
Corrado deu de ombros.
– Isso faria mais sentido.
– Por quê?
– Porque você é o idiota que não percebeu a presença deles.
Se Vincent não fosse um homem maduro e seu cunhado não lhe desse um murro na cara por fazê-lo,
ele certamente teria revirado os olhos.
– Vou falar pro Sal. – disse Corrado – Se eles estão por aqui é melhor tomarmos precauções.
Fazendo um gesto com a cabeça, Corrado seguiu direto para sua casa, enquanto Vincent desceu o
quarteirão.
Ao chegar na varanda do imóvel branco de dois andares, ele pegou um molho de chaves que trazia
em seu bolso e usou uma velha chave de cobre para abrir a porta. Ao abri-la sentiu imediatamente o
forte cheiro de mofo. O pó do local fez seu nariz coçar conforme seguia pelo corredor. Depois de
ficar fechado por tanto tempo, o lugar estava abafado e úmido. Vincent entrou no piso térreo vazio e
o som dos seus passos sobre a madeira ecoou pelas paredes vazias. Uma dor no peito dificultava sua
respiração, e embora preferisse culpar o ar pesado, ele sabia perfeitamente que se tratava de um
tormento emocional que o engolia por dentro.
Já na sala de estar, encostou-se a uma parede e fechou os olhos. Foi então que conseguiu ver a luz
do sol entrando pelas janelas, soprando e movimentando as cortinas azuis. A casa agora estava
atulhada de móveis, bibelôs e retratos de família.
Ele também conseguia ouvir os passos no piso de cima; os gritos entusiasmados das crianças
brincando de esconde-esconde. No rádio ele ainda podia escutar o som de Mozart e Beethoven.
Vincent era capaz de senti-los: o calor, o amor e a felicidade que tanto buscava. Aquele lugar era
um caos, mas representava também sua paz interior. Era sua casa e não havia nada como aquele lugar.
E lá estava ela, como sempre, se movendo pela casa num vestido leve de verão, com os pés
descalços sobre o piso de madeira; as unhas dos pés pintadas de um cor-de-rosa suave. Ela sorriu
para ele com aqueles olhos verdes brilhantes.
Porém, quando abriu novamente os olhos tudo havia desaparecido. Ele se deparou com a
escuridão total e um profundo silêncio que só era quebrado pelo som de sua respiração ofegante. Ele
ainda dormia lá às vezes, quando visitava a cidade, mesmo não havendo eletricidade nem móveis.
Costumava se deitar no chão e olhar para o teto, deixava o tempo passar entregando-se às
lembranças.
Mas este não seria o caso nesta noite. Ele não poderia ficar.
O Chevy Suburban preto já havia desaparecido quando ele saiu.
Haven ficou acordada naquela noite, sem conseguir dormir. Ela passara toda sua vida pertencendo
a outras pessoas, mas, pela primeira vez, ela sentia como se realmente fizesse parte de algo. Não era
como ser um objeto, mas pertencer a alguma coisa maior. Ninguém nunca se preocupara com o que
ela sentia até então, mas Carmine era diferente. Ele perguntava e Haven sentia que queria responder.
Ainda era de madrugada quando ela desistiu de tentar dormir e desceu as escadas, surpresa ao
ouvir barulhos na sala de estar. Dominic estava deitado no sofá vestindo pijamas, com a TV ligada.
Ele se sentou ao perceber sua presença e fez um sinal para que se juntasse a ele.
– Venha, sente-se aqui.
Ela se sentou e colocou as mãos sobre os joelhos.
– Estou surpresa que esteja acordado tão cedo.
– Não consegui dormir. – ele disse – E você, por que está de pé a essa hora?
– O mesmo que você. – respondeu – Achei melhor descer e ver se tudo estava em ordem.
– Não há pressa. – ele disse – É provável que meu pai ainda demore alguns dias.
Ela encarou Dominic e comentou.
– Ele viaja bastante.
– É verdade, e tem sido assim desde que consigo me lembrar. – explicou – Há sempre algo para
ele fazer em algum outro lugar longe daqui.
– E o que ele faz quando viaja?
Dominic sorriu de um jeito seco.
– Não sei e também não quero saber. Meu pai nos trouxe para cá há alguns anos para que não
fizéssemos parte de tudo aquilo. Ele disse que queria que nós dois tivéssemos uma vida normal; que
fôssemos crianças normais, mas não há nada de normal em criar a si mesmo, sabe? Não há nada de
normal na sua situação. Todos nós sofremos por coisas que ele fez, e odeio a ideia de pensar o
quanto sofreríamos se soubéssemos em que tipo de coisa ele está envolvido.
Ela o encarou, confusa, e ele sorriu diante de sua expressão.
– Em outras palavras, Pé de Valsa, a ignorância é uma bênção.

Vincent colocou uma nota de cem dólares no cesto de coleta da igreja e suspirou quando sua mãe o
passou para frente. Fazia anos que ela não contribuía, convencida de que os coroinhas estavam
roubando o dinheiro para comprar drogas e pagar prostitutas, embora todos ainda estivessem no
ensino fundamental.
Celia e Corrado também fizeram sua doação, e os quatro se sentaram enquanto o cestinho passava
pelo resto da multidão. Como sempre, Corrado se manteve distante, enquanto a irmã de Vincent se
portava como sempre, sorridente. Celia era uma mulher alta e magra; seu rosto era suave e redondo.
Ela tinha cabelos pretos, da cor da noite, e seus olhos também ostentavam a mesma cor.
Os bancos estavam cheios. Vincent olhou para a congregação e percebeu que a maioria dos
membros da famiglia estava presente. Todos estavam bem vestidos, na parte da frente da igreja.
Aquela era uma grande produção para eles, o único dia da semana em que podiam compartilhar seu
dinheiro e fingir serem boas pessoas. Aquilo fazia com que os homens honestos – os galantuomini –
se sentissem protegidos e, assim, os respeitassem, confiassem neles e se mostrassem menos
inclinados a traí-los.
Depois que as doações terminaram, as pessoas se reuniram no corredor e uma longa fila se formou
para a comunhão. Vincent, entretanto, permanecia em seu lugar. Corrado o olhou de um jeito peculiar,
mas se manteve em silêncio enquanto entrava na fila.
O restante da celebração foi rápido e todos ficaram de pé para ouvir a última oração. O padre
Alberto fez o sinal da cruz e encerrou o culto dizendo:
– Que a paz esteja com vocês.
Os quatro já se preparavam para sair quando o padre chamou o nome de Vincent. Os pelos de sua
nuca se levantaram, como se estivesse prestes a levar uma bronca.
– Sim, padre?
– Não tomou a comunhão, meu filho. – disse o padre, demonstrando preocupação genuína – Aliás,
não tem comungado há semanas.
Na verdade, haviam se passado meses desde a última vez, mas Vincent preferiu não corrigir o
padre.
– Sempre me esqueço de jejuar antes da missa.
Padre Alberto sabia que ele estava mentindo.
– A igreja nunca fecha. Não precisa marcar hora. Deus está sempre aqui para você.
– Eu sei, padre. Obrigado.
Vincent saiu antes que o padre pudesse continuar pressionando e se reuniu à sua família nos
degraus da catedral. Corrado e Celia estavam parados, esperando. Gia já havia se misturado à
multidão. Estava cercada de mafiosi, que a escutavam enquanto ela falava sobre o passado. Todos
sorriam e gargalhavam, dando corda, sem jamais fazer pouco caso dela. Afinal, ela era a viúva de um
ex-chefe da máfia, mãe de um consigliere e ainda tinha como genro outro homem importante. Todos a
respeitavam, independentemente de sua mente estar ou não afetada. O fato é que, vivendo em Sunny
Oaks, Gia não se sentia respeitada.
Vincent esperou que a mãe terminasse de contar suas histórias sobre Antonio e uma de suas
aventuras de quando Vincent e Celia ainda eram jovens. Ele sorriu ao pensar naqueles dias. Foi antes
daquela tragédia tê-lo afetado. Antes de Maura e as crianças; antes dos Antonelli e a garota. Antes de
a família de Salvatore ser assassinada e que o mundo implodisse ao redor de todos.
Gia se virou para o filho quando terminou; todos já se despediam e aos poucos a multidão se
dissipava.
– Mãe, já está pronta para…
– Você não comungou.
Ele deu um suspiro. Planejava perguntar se estava pronta para retornar a Sunny Oaks, mas aquilo
não fazia mais sentido agora. Ela não iria a lugar algum antes de dizer tudo o que quisesse.
– Não, eu não pude.
Gia sorriu.
– Ah, estou orgulhosa de você.
Ele ficou paralisado enquanto assimilava aquelas palavras. Nunca em sua vida ouvira aquilo da
boca de sua mãe. Ela deve estar demente.
– Está orgulhosa de mim?
Ela confirmou com a cabeça.
– Agora você vê, não é? Depois de todos esses anos, você compreende.
– Compreendo o quê?
– Que estava vivendo em pecado. Seu casamento nunca foi reconhecido pela igreja.
O sorriso desapareceu do rosto de Vincent. Não, ela não estava demente, estava apenas sendo a
pessoa maligna de sempre.
– Sim, meu casamento foi reconhecido.
– Você era jovem, Vincenzo. E ela era irlandesa. Nem era como nós.
Celia respondeu antes de Vincent.
– Maura era católica, mamãe. A união dele foi abençoada. O padre Alberto os casou.
Gia sorriu para a filha antes de fazer um movimento com a mão, como se isso não importasse.
– Como eu poderia saber? Nem fui convidada.
Ela fora convidada, é claro, mas não compareceu à cerimônia. Antônio viera em respeito ao filho,
mas Gia se recusou. Em sua cabeça, se ela não viu o casamento ela poderia continuar agindo como se
a união não tivesse ocorrido.
– Você foi convidada. – Vincent refutou – Mas decidiu não aparecer.
– Isso é ridículo. – Gia retrucou – Não sabia nada sobre o casamento até que tudo já estivesse
acabado.
– Se isso fosse verdade, mãe, como é que o papai compareceu?
– O que isso tem a ver comigo? Seu pai sempre me escondia as coisas. Não me contava nada. Por
que seria diferente neste caso?
Vincent tentou controlar sua raiva.
– Porque eu entreguei o convite em sua mão. Você o olhou e atirou na lata de lixo.
Gia reclamou.
– E aqueles médicos charlatões ainda dizem que tenho problemas de memória. Isso nunca
aconteceu.
Corrado se aproximou, com as mãos nos bolsos.
– Sobre o que é a discussão agora?
– O casamento de Vincent e Maura – Celia explicou –, de novo.
– Ah, sei. – respondeu Corrado – Sinto por não ter comparecido.
Gia sorriu.
– Eles também não te convidaram?
– Eu fui convidado. Só achei que não seria apropriado participar da cerimônia.
– Viu? – Gia falou – Eu te disse que aquilo não foi um casamento de verdade. Corrado concorda
comigo.
Corrado começou a corrigi-la, mas Vincent acenou negativamente com a cabeça. Embora ainda o
deixasse magoado o fato de seu cunhado não ter comparecido ao casamento, Vincent compreendia a
situação. Diferentemente de Gia, a intenção de Corrado era boa.
– Não importa o que outras pessoas pensem. – disse Vincent – Eu sei que nosso casamento foi real.

Haven passou a manhã toda limpando a casa e terminou por volta das três da tarde. Foi então que
ouviu o barulho de carros do lado de fora. O alarme foi desativado e a porta da frente se abriu. Ela
rapidamente seguiu para a cozinha, escutando outras vozes além do doutor DeMarco. Os pelos na
nuca da jovem se levantaram quando ela os viu.
Os olhos de DeMarco se fixaram nela e a jovem logo percebeu que aqueles homens eram
provavelmente como o mestre Michael: frios e indiferentes; sem nenhum respeito por pessoas como
ela. Eles eram como a parte sombria do médico, que ela testemunhara no quarto dele há pouco tempo.
Eram perigosos. Verdadeiros monstros.
Ela respirou fundo e deu um passo à frente para avaliar a reação de DeMarco. Os cantos de sua
boca se curvaram para cima e ela entendeu que deveria ficar. As pernas da jovem tremiam quando
ela entrou na sala de estar, onde todos estavam reunidos. Os sujeitos perceberam sua presença
imediatamente.
– Traga-nos uma garrafa de uísque e copos. – solicitou DeMarco com um aceno. Haven correu
para a cozinha e procurou nos armários até encontrar uma garrafa em que estava escrito Glenfiddich
Single Malt Scotch Whiskey. Então tirou o pó de cima do vasilhame e o levou juntamente com três
copos até a sala. Ela serviu as bebidas, nervosa demais para olhar nos olhos daqueles homens.
– Então, essa é a garota.
Haven imediatamente olhou para o sujeito que falou; sua voz soava como vidro sendo arranhado
por metal. Um ar de autoridade pairava sobre ele, que estava sentado entre DeMarco e o outro
sujeito. Ele era bem mais velho que os demais.
– Sim. – respondeu DeMarco – É ela mesma.
– Estou curioso, Vincent. – disse o homem – Acha que valeu a pena?
O riso amargo de DeMarco provocou um frio na espinha de Haven, deixando-a ainda mais
nervosa.
– Você quer dizer em termos pessoais ou comerciais?
– Pessoais.
– É claro que não valeu.
Ela não conseguia respirar; as palavras de DeMarco a magoaram. Seria ela tão inútil?
– Porém, como homem de negócios – DeMarco continuou, dando de ombros –, posso dizer que ela
trabalha duro.
– Então, não foi um mau investimento? – perguntou o outro sujeito. Haven olhou para ele.
Investimento? Seus olhos se encontraram e ela percebeu nos dele o perigo de uma lâmina afiada. A
pele dela se arrepiou diante do interesse que demonstraram por ela. Viu-se obrigada a desviar o
olhar.
– É, pode-se dizer que não. – disse DeMarco, mudando de posição e pigarreando – Por que não
começa o jantar, criança? Meus convidados nos acompanharão esta noite.

O coração de Haven disparou no momento em que ela correu para a cozinha, apoiando-se no
balcão para respirar fundo. Dominic chegou em casa enquanto ela ainda estava ali, e cumprimentou
os homens na sala de estar antes de se juntar a ela.
– Você parece preocupada. – ele disse, pegando um refrigerante na geladeira.
– Estou nervosa. – ela admitiu.
Dominic suspirou, abrindo a lata e encostando-se no balcão.
– Ajudaria saber que também não me sinto confortável com eles aqui?
De fato suas palavras ajudaram um pouco, mas não foram suficientes para eliminar seus temores.
– Sabe por que eles estão aqui?
– Negócios, eu acho. Como já disse, nunca me envolvo. – ele tomou um gole e meneou a cabeça –
Na verdade, eu conheço o sujeito de terno cinza. É Salvatore, e ele está no comando.
– E o outro?
– O nome dele é Nunzio. Costumávamos brincar juntos quando éramos crianças, mas agora já não
somos mais amigos.
Uma hora depois, enquanto ainda preparava o jantar, Haven ouviu alguém se aproximando dela.
Foi então que o sujeito chamado Nunzio apareceu na porta. Seus olhos se fixaram nela enquanto ela
deliberadamente se concentrava no jantar, ignorando a pele arrepiada e esperando que ele fosse
embora depois de fazer o que pretendia.
Entretanto, ela ainda mexia o macarrão quando sentiu que ele se movia na direção dela. A tensão
fez com que seus músculos doessem; suas mãos tremiam cada vez mais a cada passo dado por aquele
homem. Um calafrio percorreu sua espinha quando sentiu a respiração dele em sua pele.
– Você é mais bonita do que eu esperava. – ele disse, passando a parte da frente dos dedos em seu
braço – Acho que poderíamos nos divertir um pouco mais tarde.
A mão dele repousou no quadril de Haven, que cerrou os olhos e desejou do fundo do coração que
ele a soltasse. Foi então que a mão dela encostou no caldeirão de água fervente. A dor fez com que
ela reabrisse os olhos e segurasse a mão ferida com a outra. Nesse momento, DeMarco prendeu
Nunzio contra o balcão, bem ao lado dela, com uma faca de serra bem próxima à garganta do sujeito.
A voz dele era severa.
– Não toque no que me pertence, Squint.
Nunzio respondeu de cara feia.
– Já ouvi, doutor.
A lâmina da faca quase cortou a pele do homem, bem onde o sangue pulsava. DeMarco deu um
passo para trás e Nunzio deu uma última olhada para Haven antes de sair da cozinha.
A faca foi atirada sobre o balcão e, em seguida, DeMarco caminhou até ela, que se contraiu.
– Sinto muito.
Ignorando seu nervosismo, ele pegou na mão dela e deu algumas instruções sobre como cuidar do
ferimento. Ele se virou para sair, mas hesitou, olhando para o caldeirão de água fervente.
– Você jantará conosco essa noite, portanto, prepare um lugar à mesa.

Carmine estacionou na garagem depois do treino de futebol e logo viu o sedan preto alugado
parado na frente da casa. Aquela visão o deixou agitado. Seu pai não voltara de Chicago sozinho.
Ele escutou a voz de Salvatore assim que entrou no hall. Carmine olhou rapidamente para Haven
na cozinha antes de seguir para a sala de estar.
Salvatore sorriu ao vê-lo entrar.
– Ah, Principe!
Carmine beijou a mão de Salvatore quando ele a esticou em sua direção, tentando controlar o
desejo de se esquivar. Se havia um costume que fazia com que seu estômago revirasse, era justamente
aquele.
– Ótimo revê-lo, Sal.
– Digo o mesmo, meu querido. Estávamos falando a seu respeito.
– Coisas boas? – perguntou Carmine.
– Seu pai estava me contando as coisas que tem feito.
Ele riu.
– Então, não devem ter sido coisas boas.
Vincent manteve-se de pé, balançando a cabeça enquanto os outros riam.
– Se me derem licença por um minuto, preciso falar com meu filho.
Sal acenou com a mão e Carmine ficou imediatamente pálido diante da expressão desconfortável
de seu pai.
Capítulo 16

Carmine se sentou na cadeira de couro no escritório de seu pai, tentando demonstrar tranquilidade,
mesmo estando bastante nervoso. Ele dedilhava os braços da cadeira enquanto Vincent se sentava à
escrivaninha com seu notebook.
– Gosta do número 13, Carmine?
Carmine franziu as sobrancelhas diante daquela pergunta.
– Bem, para mim é só um número.
– Nunca compreendi esse fascínio. – disse Vincent, digitando algo no computador, sem levantar os
olhos – Existe até mesmo um distúrbio psicológico associado ao medo desse número:
triscadecafobia. No sul da Itália, tredici, ou treze, é uma gíria. Significa que a sorte de alguém está
chegando ao fim.
Ele parou de falar e o escritório ficou em absoluto silêncio. Carmine mais uma vez dedilhou os
braços da cadeira.
– Agradeço por compartilhar esse conhecimento, e tenho certeza de que se um dia participar do
Jeopardy! na TV, essa informação será bem útil. Mas não compreendo o que isso tem a ver comigo.
Vincent parou de digitar.
– Lasciare in tredici.
– Está me dizendo que minha sorte acabou?
– Não somente a sua, filho. – Vincent se voltou novamente para o notebook – Preciso de outro
favor.
– Claro que sim.
– Preciso que alguém fique de olho na garota.
Carmine olhou incrédulo para o pai.
– Quer que eu a espione para você?
– Não exatamente. – ele respondeu – Preciso me certificar de que ela fique segura. Peguei o Squint
tocando nela.
Carmine ficou furioso e se levantou tão rápido que a cadeira se virou para trás.
– Ele a tocou?
– Ele não a machucou, embora ela tenha queimado a mão. – Vincent disse de um modo casual,
ignorando a ira do filho – Eu já cuidei disso.
– Você cuidou disso? – Carmine cerrou os punhos e se controlou para não quebrar alguma coisa.
– Sim, já cuidei. – Vincent repetiu – O que deu em você?
Carmine olhou para o pai, ajeitou a cadeira e voltou a se sentar.
– Não gosto dessa merda.
– Eu sei, mas precisa controlar seu temperamento. Eu me livraria de Squint se pudesse, mas Sal
parece cego. Para ele o sujeito faz parte da família. Seu padrinho não tem parentes de sangue, uma
vez que as famílias de seu irmão e de sua irmã foram assassinadas. É por isso que sempre teve
fixação por você. É o que tem de mais próximo a um filho: seu afilhado. Fazer com que ele acredite
que Squint não é confiável não será fácil.
– Você acha que ele poderia ser perigoso?
Vincent suspirou.
– Coisas ruins estão para acontecer, e digamos que ninguém esteja realmente concentrado no que
acontece dentro da fortaleza. Acho que Squint está mais do que feliz em se aproveitar disso.
– Mas por que ele estaria interessado em Haven?
– Provavelmente porque seria a coisa errada a fazer.
O coração de Carmine disparou. Errada?
– Por acaso você quer dizer que é errado alguém como ela ficar com alguém como algum de
vocês?
– Estava me referindo ao fato de ele não ter o direito de tocar no que não lhe pertence – respondeu
Vincent –, embora esse seja um ponto importante.
– Então, você realmente pensa assim?
– Claro que é errado. – Vincent respondeu – Estupro sempre é errado.
– Digo, sexo consensual.
Vincent balançou negativamente a cabeça.
– E você realmente acha que uma garota como ela tem a estrutura para consentir? Seria preciso
uma mulher forte para olhar para ele como um homem, não como um mestre; vê-lo como realmente é,
e não pelo que faz da vida. Mas só porque poderia acontecer não significa que deveria. É arrumar
problema para todos os envolvidos.
Carmine ficou em silêncio por alguns instantes. Ele jamais pensara muito sobre essas questões.
Para ele, Haven era apenas uma jovem.
– De qualquer modo, as investidas de Squint foram indesejadas. – disse Vincent – Eu deveria ter
imaginado que isso iria acontecer, mas não podia ter agido de modo diferente. Não podia continuar
mantendo a menina escondida. Sal teria perguntado sobre ela pelo fato de ela ser quem é.
As sobrancelhas de Carmine se ergueram.
– E quem é ela?
– O que disse?
– O pai dela é alguém importante, ou algo assim? Michael Antonelli?
Vincent o encarou.
– Não me lembro de ter lhe dito que Michael era o pai dela.
Ele deu de ombros.
– Talvez Haven tenha mencionado.
– Estou surpreso. – ele disse – Michael nunca a reconheceu, portanto, não há muita gente que saiba
sobre isso. Sua própria mulher só descobriu isso recentemente, e não ficou nada feliz.
Carmine sorriu.
– É, Haven também me contou isso.
Vincent ergueu uma sobrancelha.
– Você disse a ela que os conhecia?
Carmine olhou para o pai.
– Mas eu não conheço.
– Sim, conhece. – Vincent insistiu – Bem, pelo menos conhece o irmão de Katrina. Somos
parentes, afinal.
O silêncio tomou conta do lugar. Demorou algum tempo para que a ficha caísse.
– Katrina Moretti? Está me dizendo que a filha da puta que torturava Haven é irmã de Corrado?
– Sim.
– Aquele canalha! Ele sabia o que estavam fazendo?
– Possivelmente, mas nada disso importa nesse momento. – disse Vincent – Squint colocou os
olhos na garota, portanto ela precisa ser vigiada o tempo todo.
Aquilo não fazia sentindo para Carmine, mas ele sabia que seu pai não lhe contaria mais nada.

– Apenas relaxe. – disse Carmine com a voz suave, puxando uma cadeira para que Haven se
sentasse à mesa de jantar. Ele se sentou ao lado dela e Haven permaneceu imóvel enquanto todos
abaixaram a cabeça para rezar. Todos se serviram, mas a jovem só pegou uma pequena porção.
Estava aflita demais para comer. Ela remexeu a comida no prato, alarmada, tentando ignorar o olhar
de Nunzio do outro lado da mesa.
– Então, Carmine. – disse Salvatore, tentando iniciar uma conversa – Em poucos meses estará com
dezoito anos. Algum plano para o futuro?
Haven olhou para ele, curiosa. Ela também se perguntava a respeito dos planos que teria, mas
Carmine apenas ergueu os ombros, sem responder.
DeMarco pigarreou.
– Carmine poderá fazer o que quiser com sua vida, mas prefiro imaginar que ele permanecerá
nesta casa até se formar.
Nunzio deu risadas.
– Escola é inútil. O que um diploma poderá lhe garantir hoje em dia, um emprego no McDonalds?
Pode-se ganhar muito dinheiro na vida, mas nenhum pedaço de papel oferecido por alguma escola irá
importar.
DeMarco voltou a se pronunciar, com a voz afiada.
– Um diploma pode não importar muito na área em que trabalhamos, mas não se trata de um
pedaço de papel. Diz respeito a terminar o que começou; dedicar-se a alguma coisa e não se vender.
Não há nada pior que um oportunista.
– Não acho que isso tenha a ver com ser oportunista. – replicou Nunzio – É abrir os olhos e mudar
as prioridades.
– As prioridades não deveriam ser mudadas quando alguém jura fidelidade ao caminho escolhido.
– retrucou Vincent – A mãe de Carmine certamente teria desejado que ele terminasse os estudos.
Nunzio deu de ombros.
– Mas a Maura não está mais aqui, então, o que importa o que ela desejaria?
DeMarco saltou da cadeira, que caiu no chão.
– Nunca mais diga o nome dela, scarafaggio! A família nunca fica de lado, seu inseto nojento!
Haven estava tensa; seu coração batia acelerado e ela estava ficando tonta. Salvatore pegou no
braço de DeMarco e o fez sentar à mesa. Todos voltaram a comer sem dizer uma única palavra; o
silêncio tomou conta da sala de jantar.
– Mas então, Haven…
Ouvir seu nome sendo pronunciado em voz alta fez com que a jovem soltasse o garfo que tinha na
mão, que caiu sobre o prato. Ela se contraiu. Respirando fundo, olhou para Salvatore. Tudo o que ela
queria era desaparecer, tornar-se invisível.
– Não precisa ficar nervosa. – disse Salvatore – Só estou curioso para saber o que está achando
da vida na casa de Vincent. Escondida como estava, pensei que fosse apenas parte de nossa
imaginação.
– Os DeMarco são generosos comigo, senhor. – ela disse em voz baixa – Eles me tratam com
justiça.
Salvatore acenou.
– É ótimo ouvir isso. Se eu soubesse que os Antonelli estavam sendo tão cruéis com você, já teria
agido. Quando Vincent me contou, a situação já estava complicada demais para que eu pudesse
intervir.
Antes que Haven tivesse a chance de compreender, Carmine interferiu.
– Mas de que diabos vocês estão falando?
DeMarco rosnou.
– Veja como fala, filho.
Salvatore deu de ombros.
– Talvez eu tenha falado demais. Esqueça esse assunto.
– Não se pode dizer algo assim e em seguida pedir que as pessoas esqueçam. – retrucou Carmine –
Se sabia que um dos seus abusava de uma criança, por que não fez nada?
Salvatore olhou para DeMarco, que balançou a cabeça em reprovação.
– Michael Antonelli não é um dos nossos. – respondeu Salvatore, voltando-se para Carmine – Há
certas regras que governam a vida. Elas não devem ser desconsideradas pelo fato de não gostar do
que está acontecendo. Sentimentos pessoais não têm espaço nos negócios.
Nunzio soltou uma risada amarga, mas não opinou.
O silêncio voltou a se fazer presente no momento em que Carmine olhou para Salvatore e seu pai.
Eles pareciam não ligar para ele; ambos estavam concentrados em Haven.
Ela limpou a garganta, nervosa.
– Obrigado por se preocupar, senhor.
Em voz baixa Carmine resmungou.
– Não o agradeça, merda!

Mais tarde naquela noite Haven deitou a cabeça no ombro de Carmine enquanto ambos assistiam a
um filme no quarto dela. Ela deslizou seus dedos sobre o braço dele e tocou as costas de sua mão,
antes de virá-la e percorrer as linhas de sua palma. Os dedos dele se contraíram quando ela tocou na
tatuagem em seu pulso.
– Você realmente acredita nisso? Não confie em ninguém?
– Eu costumava acreditar. – ele respondeu – Até que você aparecesse.
Ela ergueu a cabeça e olhou para ele.
– Você confia em mim?
– Sim, mas por que isso a surpreende? – perguntou – Eu deixo você dormir na minha cama e se
aproximar das minhas coisas. Acha que eu faria isso se não confiasse em você? Eu nunca faria isso.
– É verdade – ela disse –, você é fresco.
Ele soltou uma risada e ambos os corpos chacoalharam.
– Sou assim tão ruim?
– Não. – ela respondeu – Mas ainda não deixa que eu arrume seu quarto.
Ele suspirou fundo.
– Isso nada tem a ver com confiança ou frescura. Eu me sinto como um babaca deixando que você
limpe a bagunça que eu faço. Quero dizer, você é minha garota, e não tem que fazer isso.
Uma fagulha de esperança surgiu dentro dela quando ouviu as palavras minha garota saindo dos
lábios dele.
– Mas você não percebe? Essa é uma das poucas coisas que posso fazer por você. Não tenho nada
a lhe oferecer, Carmine. Não tenho como fazer você feliz.
Ele a encarou com uma expressão intensa. Constrangida, Haven desviou o olhar, mas Carmine
pegou seu queixo e fez com que ela o olhasse novamente.
– Não pense que você precise fazer algo pra me impressionar. Ser você mesma já é o suficiente
para me manter interessado.
Olhando para ele, ela imaginou se as coisas poderiam ser assim tão simples.
– Você é pura. – ele disse, como se pudesse sentir seu desconforto – Depois de tudo o que fiz,
espero poder ser bom o suficiente para você.
Ela piscou algumas vezes, surpresa com as palavras do rapaz.
– Você é bom demais para mim.
– Eu? – ele retrucou – Tem certeza de que estamos falando da mesma pessoa? Do filho da puta
egoísta que xinga, berra e bate em todo mundo porque não consegue controlar o próprio
temperamento? Você sabe, aquele que bebe como se não houvesse amanhã e destrói o cérebro com
drogas? É esse o sujeito que é bom demais pra você?
Ela fez um sinal negativo com a cabeça.
– Não, estou falando do rapaz que dividiu comigo uma barra de chocolate, mesmo nunca tendo
compartilhado nada com ninguém; da pessoa que me emprestou o livro favorito de sua mãe porque
achou que eu merecia aprender a ler. Estou falando sobre o garoto que me trata como se eu fosse uma
garota normal; do cara que precisa desesperadamente que seu quarto seja limpo e suas roupas sejam
lavadas, mas prefere viver no meio da bagunça e usar roupas sujas porque é educado demais para
pedir ajuda à garota que beija.
– Uau! – exclamou Carmine – Acho que gostaria de conhecer esse sujeito.
Haven sorriu e ele voltou a puxá-la para perto dele. Ela colocou a cabeça em seu ombro. Carmine
pegou sua mão e a acariciou como ela fizera antes, sendo cuidadoso para não tocar no ferimento
recente.
Capítulo 17

Haven saiu de seu quarto por volta de 8h15 da manhã e deu de cara com Dominic parado diante da
porta. Ela se contraiu, mas ele continuou na frente dela, segurando um DVD e um pote de pipocas.
– Já estava na hora de acordar, Pé de Valsa. Agora vire-se e volte para o quarto.
Dominic deu um passo à frente e Haven instintivamente deu outro para trás. Ele achou engraçado e
repetiu o ato até que ambos estivessem dentro do quarto. Ele então fechou a porta e colocou o pote
sobre a mesa, antes de ligar o DVD.
Pegando o controle remoto, atirou-se ao sofá e colocou os pés sobre a mesa. Então iniciou o filme,
começando a fazer barulho ao mastigar as pipocas.
– Pretende ficar de pé? Ficará cansada.
Um pouco intimidada, Haven se sentou ao lado dele, e franziu o cenho ao perceber que ele
colocara um desenho. Ela estava prestes a lhe perguntar o que iriam assistir quando ele colocou o
pote de pipocas bem na sua cara.
Ela se assustou com o movimento brusco, e ele parou.
– Tem medo de pipocas?
– Não. – ela respondeu, enquanto ele aproximava o pote mais uma vez. Ela pegou um punhado e se
virou para a TV – O que vamos assistir?
– Shrek. – ele respondeu, colocando um punhado de pipocas na boca – Adoro essa porcaria de
desenho.
Ela assistiu um pouco. Depois de conhecer Dominic, Haven não ficou surpresa em saber que ele
gostava desse tipo de filme.
– Bem, faz sentido você assistir a desenhos. Não é isso que as babás fazem quando cuidam de
crianças?
Ele riu, assustando Haven ao atirar uma pipoca contra ela.
– Olhe quem está fazendo uma piada! Você é engraçada. Não é de admirar que Carmine tenha se
apaixonado por você.
Ela o encarou.
– Ah, não sei se diria que ele… se apaixonou por mim. – a última parte foi dita na forma de um
sussurro, sendo difícil para ela pronunciar aquelas palavras.
– Por favor, garota. Ele deixou de lado todas as puttani e isso é algo que jamais pensei que veria.
O passatempo favorito dele era dar uma gozada.
– Dar uma gozada?
Dominic soltou um suspiro.
– Você é tão inocente. Pergunte a Carmine o que isso significa quando ele chegar em casa. Quero
vê-lo tentando explicar isso pra você.
Depois que o filme terminou, Haven seguiu Dominic até o jardim, que ficava na parte de trás da
casa. Ela ficou parada na porta e logo sentiu um raio de sol tocando seu rosto. O ar estava úmido e
uma brisa fria soprava contra seus braços descobertos e bochechas coradas.
Ela parou antes de colocar o pé para fora.
– Tem certeza de que realmente posso sair da casa?
– Sim, tenho certeza absoluta. – ele respondeu – Eu pedi permissão.
Os dois caminharam em direção às árvores, que se tornavam mais densas. O chão de pedras estava
estalando por conta das folhas secas. Ela ficou apreensiva quando ambos entraram na floresta; a
mesma pela qual ela tentara fugir há alguns meses, mas queria acreditar que Dominic não fosse largá-
la pelo meio do caminho.
O som de água corrente chegou aos seus ouvidos enquanto caminhavam, e logo os dois chegaram a
um pequeno riacho. Ela se ajoelhou e colocou a mão na água gelada.
– Esse lugar é lindo.
– É, acho que sim. – disse Dominic – Não sou um grande apreciador da natureza. Carmine gosta
mais de andar pela floresta.
– Ele costuma vir aqui?
– Ele não veio mais depois que voltou do internato, mas costumava vir quando queria ficar
sozinho. Quando estava preocupado ou infeliz ele se sentava perto da água ou corria pela trilha.
Dominic se sentou e se apoiou em uma árvore, olhando para a água. Haven esperou um pouco
antes de tirar os sapatos e caminhar pela grama. Então subiu as calças até os joelhos e entrou no
riacho. A água estava gelada.
– Ei, há todo tipo de bichos aí. Peixes, insetos e até cobras.
Ela sorriu ao ver a lama entrar pelos dedos dos pés.
– Não tenho medo do que está na água.
– Pensei que todas as mulheres tivessem medo de cobras.
– Eu não. – ela riu – Cresci ao lado de escorpiões.
– Tem medo de alguma coisa?
– Claro. Todo mundo tem medo de algo.
– Então, do que tem medo?
Ela fez uma pausa, pensando em como responder.
– De ter esperança.
Dominic franziu a testa.
– Ter esperança te assusta?
– Tento nunca esperar por nada. – ela continuou – Se não esperar por nada, não ficará desapontada
quando não receber nada.
– Isso é… muito triste. – ele disse – Você não tem nenhuma esperança?
– Acho que tenho um pouquinho agora. – ela respondeu, chutando a lama e desviando a conversa.
Ela não queria discutir o fato de que agora tinha a única coisa para a qual jurara a si mesma que não
sucumbiria – Do que você tem medo, Dominic?
– De perder o meu pai. – ele disse – Já perdi minha mãe para essa vida. Não quero perdê-lo
também.
A jovem sentiu uma dor no peito ao pensar naquelas palavras. A mãe dela ainda estava viva, mas
ela achava que a havia perdido para sempre.
– Não se pode perder a esperança, sabia? – disse Dominic.
– Minha mãe costumava dizer isso o tempo todo.
– Mulher inteligente. – ele disse – Então, você a conheceu?
– Sim. Passei minha vida inteira ao lado dela. Ela me disse pra correr, tentar escapar, mas fui
pega. Foi então que o seu pai me trouxe para cá.
Dominic a encarou.
– Meu pai a afastou de sua mãe? Ele sabe disso?
– Sim, ele sabe.
Ambos ficaram em silêncio por algum tempo. Dominic perdido em pensamentos, enquanto ela
caminhava dentro da água.
– Sinto muito que esteja aqui. – ele finalmente falou – É inacreditável que ele tenha sido capaz de
afastar você de sua mãe. Isso é errado.
– Foi assustador deixar ela para trás, mas eu não diria que ele agiu errado. – ela disse –
Comparado ao lugar de onde vim, minha mãe diria que ele me fez um grande favor.
Dominic a encarou em silêncio por alguns instantes e então lhe disse que precisavam voltar para
casa. Embora não quisesse retornar, ela acabou saindo da água. Seus pés estavam cobertos de lama,
então ela os lavou. Afinal, o doutor DeMarco não ficaria feliz em ter uma empregada com os pés
sujos justamente quando ele tinha companhia.
Ambos caminharam de volta para a casa em silêncio e se depararam com um grande caminhão-baú
branco parado no jardim. Os homens da noite anterior estavam descarregando caixas e as levando até
uma porta lateral da casa, que ficava meio escondida sob as videiras e as heras.
– Não sabia que havia uma porta ali. – ela disse.
– Ela leva ao porão. – ele explicou – Acredite em mim quando lhe digo que não quer ir até lá.
Nesse momento, Nunzio surgiu de trás do caminhão com uma caixa nas mãos e logo seus olhos se
concentraram na jovem. Haven se aproximou de Dominic e passou a olhar para o chão, sem querer
lhe dar uma impressão errada.
Assim que os dois entraram, Dominic foi tomar banho e Haven reuniu as roupas sujas de Carmine
para lavá-las e então iniciar a limpeza. Depois de descer apenas alguns degraus ela parou,
petrificada, ao perceber que alguém vinha em sua direção. O medo se espalhou tão rapidamente que
ela quase parou de respirar.

Nunzio.
O que ela viu nos olhos dele a deixou alarmada. Havia ódio e luxúria em sua expressão. O
coração dela batia acelerado e uma voz em sua cabeça lhe dizia para correr. Ela deu alguns passos
para trás, derrubando o cesto de roupas, e correu para seu quarto. Ela podia escutá-lo vindo atrás
dela quando entrou no quarto e tentou fechar a porta. O pé dele a estava bloqueando.
Ela deu alguns passos para trás e buscou algum tipo de proteção, mas ele logo entrou no quarto.
Nunzio fechou e então trancou a porta. As pernas de Haven estavam trêmulas. Ela estava presa ali.
Nunzio calmamente retirou o casaco e o atirou sobre a mesa. Seu tom de voz soava como se eles
fossem velhos amigos.
– Finalmente sozinhos.
Afrouxando a gravata, ele puxou a camisa para fora das calças e começou a andar na direção dela.
Haven pediu ajuda, mas Nunzio tapou sua boca antes que alguém pudesse escutá-la. Ela ficou em
silêncio.
– Comporte-se – ele disse –, e acabará gostando.
Lágrimas escorriam de seus olhos e ela deu mais um passo para trás, colidindo com a cama.
– Não toque em mim.
– Ah, não seja assim. – ele sorriu de um jeito vingativo – Não gosta de fazer as pessoas felizes? É
só isso que tem de fazer. Seja uma boa garota e me faça feliz. Afinal, é pra isso que existe. É só pra
isso que serve. Ninguém jamais amaria alguém como você.
Ele diminuiu a distância entre os dois e desafivelou o cinto. Ela segurou a vontade de chorar,
embora seu corpo estivesse tremendo. Foi então que tentou fugir pelo lado dele, mas Nunzio
bloqueou sua passagem.
– Não morda ou eu arranco seus dentes. – ele disse, com a voz áspera. Em seguida, segurando a
cabeça dela com uma das mãos, ele a forçou a se ajoelhar a sua frente. A outra ele enfiou dentro das
calças. Em pânico e sem alternativa, Haven pegou a arma que estava na cintura dele e, usando toda a
força que lhe restava, deu uma pancada no rosto dele com a coronha. Atordoado, Nunzio caiu no chão
e a soltou.
Era tudo que Haven precisava para fugir.
Atirando a arma longe, ela correu para a porta, mas Nunzio se recuperou e veio atrás dela,
gritando. Sua mão conseguiu destrancar a porta, mas ele a pegou antes que pudesse abri-la. Haven
gritou o nome de Dominic, mas ele conseguiu agarrá-la e atirá-la sobre a cama. Ela caiu sobre o
colchão e tentou se afastar enquanto ele avançava para cima dela. Foi então que a porta se abriu e
Dominic entrou no quarto, somente com uma toalha e ainda molhado. Ele empurrou Nunzio para
longe de seu caminho e ajudou Haven a ficar de pé.
– Você está bem?
– Estou bem. – Haven respondeu, ainda secando as lágrimas – Está tudo bem.
– Ele te machucou?
Ela acenou negativamente a cabeça, enquanto Nunzio se defendia.
– Eu, machucá-la? Essa vadia me atacou!
Uma expressão de fúria se apossou do rosto de Dominic. Ele pegou a arma no chão e se virou para
a jovem.
– Saia, Haven. Preciso ter uma conversinha com meu velho amigo.
Haven correu e hesitou na biblioteca antes de se esconder no quarto de Carmine. Depois de se
trancar em segurança, ela se sentou na beirada da cama e tampou os ouvidos para não escutar a
discussão.

Carmine sabia que algo estava errado no momento em que chegou em casa e ouviu a gritaria.
Ouvia-se xingamentos e insultos em várias línguas. Era possível sentir que havia muita hostilidade na
cozinha. Assustado, Carmine parou à porta e viu seu pai suturando um corte no rosto de Nunzio.
– O que foi que aconteceu aqui?
Dominic passou por trás de Carmine e o olhou com certa cautela.
– Eu deveria ter protegido Haven. Nunzio a prendeu no quarto.
O estômago de Carmine se revirou e ele teve de se esforçar para manter o controle.
– Onde ela está?
– No seu quarto. – respondeu Dominic – Ela disse que está bem.
Bufando, Carmine olhou para seu pai na cozinha. Nunzio se afastou um pouco e gritou:
– Aquela vagabunda estava implorando por isso.
Carmine perdeu o controle ao escutar aquelas palavras.
– O que foi que você disse?
Nunzio olhou para ele e respondeu.
– Eu disse que ela queria que eu a comesse.
Carmine deu um pulo em sua direção e Vincent bloqueou o caminho quando Nunzio tentou se
mover. Carmine quase conseguiu atingir o nariz dele, mas foi impedido por Sal, que interveio e o
arrastou para fora da cozinha.
– Você é doente! – Carmine gritou, enquanto Vincent empurrava Nunzio contra a parede,
continuando a suturá-lo.
Sal puxou Carmine até o hall, sem soltá-lo até que estivessem próximos da escada.
– Isso não está certo.
– Eu sei, Principe, mas não conversamos ontem sobre o fato de não haver espaço para sentimentos
nos negócios? Ele sofrerá as consequências por ter desrespeitado seu pai, mas o que ele fez com a
garota não pode ser considerado uma grande violação.
Carmine o encarou.
– Então ela não vale nada pra vocês? É isso o que está me dizendo? Quem liga se ele machucou a
garota? Ela não é nada, simplesmente porque não teve a sorte de nascer em uma família poderosa!
A expressão de Sal mudou e ele ficou furioso, o que fez com que Carmine ficasse em silêncio.
– Aquela jovem significa mais do que você compreende, mas, para a famiglia, as coisas são muito
claras. Você precisa aprender a distinguir entre o que é pessoal e o que são negócios. Precisa
aprender a seguir o código de conduta aqui. – ele esbravejou, dando um tapa na parte de trás da
cabeça do jovem – E pare de se meter nisso. No momento em que você me respondeu com grosseria
ontem à noite eu percebi que ela havia mexido com você. – outro tapa, dessa vez no peito – E
certamente causará problemas se não começar a usar isso aqui. – Sal completou, dando um tapa na
cabeça de Carmine.
– Pare de me bater!
Sal acenou a cabeça.
– Você sabe que gosto de você como um filho. Sempre o tratei como se fosse meu e quero o que for
melhor para você. Quero que seja bem-sucedido, que tenha uma vida boa, a vida que merece. Não
estou lhe dizendo para não deixar que aquela garota entre aqui – ele tocou com a mão no coração do
jovem –, mas estou ordenando que não deixe que esses sentimentos sobrepujem todo o resto. Você
precisa de equilíbrio.
Frustrado, Carmine passou as mãos no rosto.
– Eu entendo.
Sal deu um tapinha em seu ombro.
– Você está apaixonado. Essas coisas acontecem, mas essa é uma situação delicada que não pode
ser exposta. Acredite em mim quando lhe digo que não é hora de ignorar a razão.
– Eu só… Não percebi que era tão óbvio.
– É uma situação complicada. – Sal replicou – Seu pai tem um problema similar. Passei anos
tentando fazê-lo perceber certos limites, mas ele continua misturando as coisas. – um som alto ecoou
na cozinha e Salvatore suspirou – E acho que isso acaba de acontecer novamente.

Haven olhava para o relógio e contava os minutos. Três. Cinco. Oito. Doze. Dezesseis. Vinte e
dois.
Depois de agonizantes trinta minutos ela ouviu passos rápidos na biblioteca. Alguém tentava girar
a maçaneta, mas Haven não destrancou a porta, aterrorizada. Ela ouviu o barulho de chaves e a porta
se abriu.
Carmine correu para dentro do quarto e a abraçou. Lágrimas escorriam pelo rosto dela. Ela não
tinha certeza de quanto tempo havia se passado quando escutou a voz de DeMarco na porta do quarto.
– Ela está bem?
A visão de Haven estava embaçada, mas ela podia sentir a expressão grave na voz do médico. Ele
parecia furioso. Ela só esperava que toda aquela raiva não fosse dirigida a ela.
– Ela ficará bem. – disse Carmine – Nunzio já foi embora?
– Sal o está levando para o aeroporto agora.
– Para o aeroporto? – Carmine perguntou – Ele se safou fácil demais. Eu teria matado aquele filho
da puta.
Tudo ficou em silêncio por alguns momentos e Haven fechou os olhos. Ela imaginava se os dois
estariam sozinhos quando a voz de DeMarco foi ouvida novamente.
– Eu também o teria matado.

Carmine se deitou ao lado dela na cama e retirou os fios de cabelo grudados em seu rosto. Ela
havia parado de chorar, mas seu rosto ainda estava inchado.
– Sinto muito. – ele disse – Eu deveria estar aqui para proteger você
– Não foi sua culpa. – ela respondeu, com a voz embargada – Eu que não deveria ser tão fraca.
– Você não é fraca. – ele retrucou – Você tem todo o direito de estar assustada. Merda, eu estou.
Ninguém toca na minha garota a menos que ela queira ser tocada. Isso foi algo que minha mãe me
ensinou desde cedo. O corpo de uma mulher é um templo e não deve ser invadido sem ser convidado.
Ele fez uma pausa e deslizou os dedos pelos cabelos. Era difícil para Carmine falar sobre esse
assunto, mas ele queria compartilhar aquilo com Haven.
– Não sei dos detalhes, mas a minha mãe foi estuprada quando era jovem. Depois disso ela se
tornou uma voluntária e passou a defender pessoas carentes. Meu pai ainda faz doações para o centro
no qual ela trabalhava em Chicago.
Haven se aproximou ainda mais dele.
– Nossa…
– É por isso que não quero que você se sinta como se tivéssemos de fazer qualquer coisa. Seu
corpo é um templo e eu não vou entrar a menos que você o queira. – no momento em que aquelas
palavras saíram de sua boca, começou a rir para si mesmo – Minha nossa, o que eu disse soou muito
errado. Não foi minha intenção.
Haven ergueu a cabeça e o encarou.
– Mas o que há de errado no que você disse?
É claro que ela não entenderia a conotação pervertida daquele comentário.
– Não acho que seja o momento certo para explicar.
Ela ergueu os ombros e deitou novamente a cabeça.
O quarto estava em silêncio, exceto pelo barulho do ventilador no teto. Haven entrelaçou seus
dedos aos de Carmine e levou a mão dele até seu peito. Ele podia sentir a respiração dela pelos
lábios que repousavam sobre as juntas de seus dedos.
Ele sorriu ao sentir que ela estava beijando a mão dele.
– No que está pensando, tesoro?
– Estava imaginando se… bem… é algo estúpido.
Ele ficou ainda mais curioso.
– Nada do que pensa é estúpido.
– Bem, você acha… – ela parou para respirar fundo – Você acha que seria capaz de amar alguém
como eu? – ela sussurrou a pergunta e o fez congelar. Antes que ele pudesse reunir seus pensamentos
e responder, Haven o interrompeu – Eu disse que era algo estúpido.
Uma sensação devastadora fez sua voz tremer no momento em que ela viu aquela hesitação como
rejeição. Ela teve a coragem de levantar uma questão que ele próprio não fora capaz de discutir; de
dizer a palavra amor, que tanto o aterrorizava, mas, em vez de encorajá-la ele ficou ali, parado.
– Haven, eu jamais poderia amar alguém como você, simplesmente porque não existe mais
ninguém como você. Você é única.

Aquela melodia insistia em ocupar o subconsciente de Carmine e assombrá-lo. Ele via sua mãe
sob a luz tremeluzente de uma rua estreita. Suas palavras podiam ser ouvidas em meio à canção
triste; sua voz era suave. Mio sole, ela dizia em voz baixa. Ela o chamava de “meu sol” porque ele
brilhava como um astro.
Ela sorria, abafando as notas da música. Era uma noite tão linda que ela preferiu caminhar até em
casa. Carmine confiava nela, então não reclamou. Sua mãe nunca cometia erros, portanto, ele sempre
acatava suas decisões.
De repente tudo se transformou em caos. As imagens surgiram do nada. Tudo aconteceu tão rápido
que ele mal conseguiu entender o que estava se passando. O som de pneus cantando. O terror no rosto
dela. A frieza nas vozes daqueles homens; as palavras brutais.
Corra, Carmine, ela gritou. E não pare, meu querido, não pare!
Ela gritou tão alto, mas não havia ninguém para ajudá-la. Carmine ficou petrificado. Ele não queria
ir sozinho, tampouco deixá-la para trás. Afinal, ele era o sol de sua mãe… Ele não podia deixá-la
sozinha na escuridão.
Se você me ama, Carmine Marcello, corra! Ela disse com lágrimas escorrendo de seus olhos. Ele
hesitou, aterrorizado, mas no último minuto acatou suas ordens.
Cale a boca dela! Gritou um homem. E rápido!
Aquele grito aterrorizante ecoou pela rua estreita. Os passos do garoto eram apressados, mas, de
repente, ele parou e se voltou para ver o que estava acontecendo. Eles estavam machucando sua mãe.
Ela precisava dele.
Os homens estavam vestidos de preto, mas com a luz ele pôde ver parte do rosto de um deles. Era
uma imagem borrada que misturava ódio e um mosaico de cicatrizes. Então, ele ouviu o tiro fatídico
que ecoaria para sempre em sua mente.
Assustado, Carmine se sentou na cama e levou as mãos ao peito tentando fazer seu coração
desacelerar. Olhando para o lado ele pôde ver Haven, com olhos bem abertos e uma expressão
preocupada.
Ao deitar-se novamente ele passou as duas mãos no rosto. Estava suando e tremendo; sua
respiração era irregular. Ele esperava que Haven corresse ao vê-lo estender a mão em sua direção,
mas ela ficou. Em vez disso, ela permitiu que ele a abraçasse forte.
As lágrimas se acumularam em seus olhos e ele lutou para limpar a garganta.
– Eu tinha oito anos. Era o meu primeiro recital de piano. Acabou muito tarde e minha mãe
preferiu caminhar até em casa. Ela não queria esperar que alguém fosse nos buscar. Nós pegamos um
atalho. Uma rua estreita e, de repente, um carro brecou bem perto. Era preto e tinha janelas escuras.
Carmine ainda conseguia vê-lo. Era um automóvel comum; outro sedan preto e indistinguível, mas
de alguma maneira aquele carro ficara em sua mente.
– Eu o vi e pensei que papai o tivesse enviado para nos pegar, porque ele não gostava que
andássemos sem proteção. Mas a minha mãe sabia da verdade. Não sei como, mas ela sabia. Ela me
mandou correr; ir direto para casa. Eu não queria, mas ela disse que se eu a amasse faria o que ela
estava pedindo. Eu a amava, então eu corri.
Lágrimas quentes queimavam a face do rapaz. Ele não a defendera. Eles a teriam matado, ele
querendo ou não.
– Eu tinha chegado ao final do beco quando ouvi ela gritar; eu me virei e o vi puxar o gatilho. Ela
caiu. O outro sujeito apontou a arma para mim. Senti algo queimando. Pensei que estivesse em
chamas. Corri e consegui me esconder atrás do lixo da pizzaria da esquina. Eu estava apavorado
demais para seguir em frente. Achei que eles estivessem atrás de mim. Pensei que fosse morrer.
Ele parou e limpou a garganta novamente, tomando fôlego.
– A próxima coisa de que me lembro foi de acordar num hospital. Eu nunca tinha visto meu pai
chorar antes daquele dia. Ele estava sentado ao lado da minha cama, dizendo “a culpa é minha”. E,
merda, eu me senti do mesmo jeito. Eu corri. Eu deixei ela pra trás; deixei ela morrer.
A respiração de Carmine estava trêmula, e ele abraçava Haven com força, sentindo seu calor e sua
vida. A mão dela tocou em seu peito quando ela o encarou com o rosto cheio de lágrimas.
– Eu também corri, você sabe? Minha mãe me mandou correr e ir embora. Eu só o fiz porque ela
me pediu.
– Então você sabe a culpa que carrego.
Haven acenou com a cabeça.
– Mas você não a decepcionou, Carmine. Você fez o que ela precisava que você fizesse naquele
momento.
Carmine esfregou as lágrimas com a mão.
– E o que foi que eu fiz?
– Você sobreviveu.
Capítulo 18

Semanas se passaram e, aos poucos, o frio outono sulista deu lugar a um inverno particularmente
gelado. A temporada de futebol já havia terminado e, agora, Carmine passava mais tempo em casa. A
cada dia, ele e Haven se tornavam mais próximos. Apesar do frio e do clima horrível do lado de
fora, calor e paixão ganhavam força dentro da antiga casa de fazenda à medida que aquele amor
juvenil florescia, sem que nada pudesse detê-lo.
Carmine e Haven se acostumaram a deitar lado a lado; a segurar a mão um do outro e a se
abraçarem no quarto escuro depois do cair da noite, longe dos olhares curiosos; longe daquela
realidade cruel e incapaz de compreender como aquelas duas crianças ansiosas, e cujas vidas haviam
sido estilhaçadas, conseguiam encontrar um meio de completar um ao outro.
Certo dia, Carmine aproximou os lábios dos ouvidos de Haven e disse.
– Ti amo tantissimo, mia bella ragazza.
Embora Haven não soubesse exatamente o que ele estava lhe dizendo, o mero som de suas
palavras fazia seu coração disparar.
Então, quando ela se deitou na cama, ele a beijou. Ela segurou firme em seus ombros, tentando
aproximá-lo ainda mais. Seus corpos se moviam no mesmo ritmo e se tocavam de uma maneira
incessante. De repente Carmine se afastou e procurou dentro dos olhos de Haven a resposta para uma
pergunta que sequer fora feita. A jovem precisava desesperadamente descobrir o que se passava na
mente dele, porém, antes mesmo que pudesse perguntar, ela percebeu que Carmine já havia
encontrado a resposta.
Os cantos de sua boca formaram um sorriso e ele a beijou com doçura antes de sussurrar em seu
ouvido.
– Deixe que eu faça você se sentir bem. Prometto di non danneggiarlo. Digo, eu prometo que não
irei machucá-la; apenas tocá-la.
Ela tremeu ao ouvir aquelas palavras. Seu corpo se incendiou. Até então, aquela sensação lhe era
totalmente desconhecida.
– Confio em você.
Carmine esticou o braço até o criado-mudo e pegou o controle remoto do som. A melodia suave da
música clássica imediatamente preencheu o quarto.
– Se quiser que eu pare, basta me pedir e vou parar no mesmo momento, tudo bem?
Ela deslizou seus dedos trêmulos pelos cabelos grossos de Carmine enquanto os lábios do rapaz
percorriam seu pescoço, e as mãos dele tocavam suavemente as laterais de seu corpo já despido da
blusa que vestia. Haven fechou os olhos tentando relaxar, mas sentiu um arrepio quando percebeu a
respiração dele próxima de seu barriga. Ele passou a língua sobre o corpo dela e a enfiou
delicadamente em seu umbigo. Ela suspirou, sentindo um estranho formigamento na parte inferior do
corpo.
Carmine aproveitou muito bem aquela oportunidade, beijando e acariciando cada milímetro da
pele exposta de Haven. Ela se contorcia e gemia. Os sons de prazer e descoberta se misturavam à
música suave soprada pelos alto-falantes. Ela não fazia ideia de quem era o autor da música,
tampouco sabia quem a estava executando, mas o fato é que a melodia invadira seu corpo,
acentuando cada movimento e cada toque dos dedos de Carmine. As mãos dele deslizaram pelas
coxas da jovem e tocaram sua pele macia antes de retornarem à cintura. Ele então passou as mãos
pelas costas de Haven e, com um movimento rápido e experiente, abriu o fecho do sutiã.
Surpresa, Haven abriu os olhos novamente e o encarou enquanto ele se colocava de joelhos sobre
a cama e se acomodava sobre as próprias pernas. Ele sorriu no momento em que ele puxou o sutiã e o
atirou no chão. Seus olhos permaneceram fixos nos dela por um momento antes que ele se inclinasse
em sua direção, de um jeito lento e carinhoso.
Ela ficou tensa ao se lembrar das cicatrizes. Agora ele podia ver cada marca; cada deformidade
remanescente das inúmeras surras que tivera de suportar nas mãos das pessoas que, supostamente,
deveriam tê-la protegido. Sentia-se absolutamente inexperiente e exposta, afinal, jamais mostrara seu
corpo a ninguém.
Ela esperou que ele reagisse negativamente àquela visão; que se sentisse repelido e se afastasse.
Porém, em vez disso, percorreu com o dedo indicador a trilha que se desenhava entre o pescoço da
jovem e o espaço entre os seios. Ele tocou cada uma das pequenas cicatrizes com as pontas dos
dedos e desenhou círculos em seu abdômen trêmulo.
– Bellissima. – ele sussurrou – Você é tão linda.
O som da voz dele a deixou mais tranquila. Fagulhas se desprendiam do seu peito à medida que
sua pele se arrepiava com o toque do jovem. A mão que ainda repousava sobre a barriga de Haven
lentamente escorregou por debaixo de seus shorts. Tudo em que Haven pensava era naquele toque;
tudo o que sentia se resumia a ele; aquela sensação forte mexia com ela, da cabeça aos pés, e ficou
ainda mais intensa quando ele tocou a região entre suas coxas. Até aquele momento ela não fazia
ideia de que aquela parte de seu corpo urgia tamanha atenção.
Ele pressionou seus lábios contra os dela, calando seus gemidos de prazer e fazendo com que suas
costas arqueassem. Pura eletricidade percorreu suas veias e minúsculas explosões se espalharam por
dentro de seu corpo delicado. As pernas dela tremiam; sua respiração era irregular e murmúrios
suaves escapavam de sua garganta.
Ela cerrou os olhos e segurou firme nos lençóis. As sensações provocadas pelos toques de
Carmine eram mais intensas do que ela jamais imaginara possível. Todo seu corpo estava em chamas;
lava escorria em suas artérias deixando a superfície de sua pele quente e rosada.
Carmine mais uma vez sussurrou em seu pescoço com a voz rouca.
– Apenas sinta, beija-flor. Curta esse momento.
A sensação de prazer se intensificou, tornando-se cada vez mais forte enquanto Haven movia seus
quadris, tentando intuitivamente aumentar a fricção. Seu corpo precisava daquilo; exigia e implorava
por mais.
Com um rosnado, Carmine afastou sua boca do pescoço da jovem e os lábios de ambos se
encontraram. Haven já estava completamente dominada antes mesmo que o prazer irrompesse e seu
corpo entrasse em erupção. Ondas de choque se espalharam dentro dela, percorrendo suas pernas e
seu estômago enquanto ela convulsionava com seu primeiro orgasmo. Ela tentou pronunciar o nome
dele, porém, com os lábios atracados aos dele, era impossível deixar escapar qualquer palavra
coerente. A sensação desapareceu tão rapidamente quanto surgiu e ela pôde sentir o refluxo da tensão
em seus músculos.
Capítulo 19

Eram duas da manhã e Carmine não conseguia dormir. Ele desceu as escadas e deu um pulo ao ver
o pai na porta da cozinha. Ele não esperava encontrar alguém acordado àquela hora, muito menos seu
pai. O olhar de Vincent perseguiu o jovem no momento em que passou por ele em direção à cozinha.
– Insônia?
Carmine ergueu os ombros.
– É, poderia dizer que sim.
– Está tendo pesadelos novamente?
– É, também poderia dizer que sim. – Carmine estava irritado pelo fato de o pai levantar aquele
assunto, mas podia ver a preocupação genuína na expressão do pai. Ele, entretanto, não queria
discutir, então rapidamente mudou de assunto.
– E você, por que está de pé?
Vincent respirou fundo.
– Estou viajando para Chicago.
– Não sabia que teria de viajar neste final de semana.
– Nem eu, até que Sal me ligou. – explicou – Eu não precisaria viajar até o próximo final de
semana, mas parece que os problemas com os russos estão ficando mais graves.
Carmine ergueu as sobrancelhas.
– Então você tem um problema com russos?
– Somente um, por enquanto. Eles se meteram no nosso território, algo que não podemos tolerar.
Carmine ficou surpreso pelo fato de o pai estar lhe contando tantos detalhes. Ele não era do tipo de
oferecer informações extras.
– Bem, então boa sorte com isso, eu acho.
– Obrigado. Estarei de volta no domingo à noite… Pelo menos assim espero. – DeMarco hesitou
por um momento, como se tivesse algo mais para dizer, mas, no final, apenas acenou com a cabeça –
Tenha um bom fim de semana, filho.
Vincent saiu da cozinha e Carmine ficou de pé, continuando a olhar para o lugar onde seu pai
estava e que agora se encontrava vazio. Ele bebeu o resto do suco para então subir as escadas,
deitar-se silenciosamente na cama e olhar para o teto.

Quando Haven acordou na manhã seguinte, ele a abraçou pela cintura.


– Bom dia, bella ragazza. Que tal nos vestirmos e fazermos algo diferente hoje?
Ela sorriu desconfiada.
– Como o quê, por exemplo?
– O que você quiser. – ele disse – Podemos ir ao cinema ou ao parque, talvez jantar fora.
Ele não fazia ideia do que os namorados costumavam fazer. O mais perto que ele chegara desse
tipo de situação foi quando passou pelo drive-thru de uma lanchonete antes de deixar uma garota em
casa, depois de fazer sexo com ela. Mas não tinha certeza se aquilo podia contar, considerando que
ele, geralmente, fazia que elas comprassem a própria comida.
Uma expressão diferente surgiu no rosto de Haven.
– Em público?
Ele riu.
– Sim, em público. Com outras pessoas ao nosso lado.
– Ah, muito bem – ela sorriu, entusiasmada –, vou me vestir.
Ele a soltou e a seguiu com os olhos enquanto desaparecia nas escadas, surpreso que algo tão
comum como assistir a um filme no cinema pudesse deixá-la tão feliz.
Carmine subiu, tomou um banho e procurou algo apropriado entre suas roupas. Ele optou por um
par de jeans desbotados e uma camiseta polo verde, de mangas compridas, uma vez que aquela era a
cor preferida de Haven. Em seguida, sentindo-se abafado, dobrou as mangas; então calçou um par de
tênis Nike e pegou suas coisas. Ao sair do quarto, deparou-se com Haven de pé na porta do quarto
dela, vestindo um par de jeans justinhos e um suéter azul. Ela parecia agitada.
– Estou bem assim?
– Você está mais do que bem. – ele disse, esticando a mão em sua direção.
Os dois desceram e seguiram em direção ao carro. Ele abriu a porta para que ela entrasse, deu a
volta, se sentou e passou alguns minutos ajeitando os espelhos e o banco. Haven deu risada e disse:
– Enjoado.
Ele revirou os olhos e ligou o carro. Já em movimento, começou a procurar alguma música
interessante no rádio enquanto Haven olhava pela janela, com um sorriso contido nos lábios. Eles
deram as mãos e falaram sobre coisas sem importância ao longo do trajeto. Ela nunca deixava de
assustá-lo com seu conhecimento sobre coisas que jamais experimentara na vida.
Ele dirigiu até seu restaurante mexicano favorito e já diminuía para entrar no estacionamento
quando percebeu um carro branco familiar e resolveu passar direto. Ele sabia que eles não poderiam
comer ali se Lisa estivesse trabalhando. Ele parou numa churrascaria no quarteirão seguinte e Haven
se virou para ele.
– Você conhecia alguém lá, não é?
Ele suspirou e passou a mão nos cabelos.
– Sim. Mas não quero que você pense que não desejo ser visto ao seu lado, porque isso não é
verdade. É só que… é a Lisa, e ela…
Haven colocou o dedo indicador sobre os lábios de Carmine.
– Eu entendo.

Logo os dois estavam sentados à mesa e Haven pegou o cardápio laminado. Ela franziu a testa e
moveu lentamente os lábios pronunciando as palavras em voz alta. Quando a garçonete se aproximou,
ela olhou para Carmine esperando que ele fizesse o pedido pelos dois, mas ele ficou parado,
esperando pacientemente.
Ela entendeu.
– Eu vou querer peito de frango recheado, com salada, por favor.
Carmine sorriu.
– Para mim um bife grelhado.
– E como prefere o bife? – perguntou a garçonete.
– Mal passado. – ele respondeu – Só passado na grelha.
Haven o encarou de um jeito peculiar quando a moça se afastou.
– Eu não sabia que gostava de carne mal passada. Sempre preparo seu bife bem passado.
– É, há duas coisas na vida que eu prefiro sangrando: meu bife e meus inimigos.
Ela acenou balançou a cabeça em desaprovação.
– Você é jovem demais para ter inimigos.
– Quem me dera. – ele disse em voz baixa – Já nasci com inimigos. Só o meu sobrenome já pesa o
suficiente.
Poucos minutos depois do pedido, os pratos foram servidos. Carmine imaginou que ela se sentiria
um pouco deslocada no meio de tantas pessoas, já que Haven raramente tinha esse tipo de
oportunidade. Porém, mais uma vez ela o surpreendeu, então, ele ficou imaginando se em algum
momento ela deixaria de fazê-lo.
Ele pagou a conta antes de seguirem para o cinema, do outro lado da cidade. Ambos ficaram um
pouco afastados da multidão e Carmine pegou na mão dela enquanto olhava a lista de filmes.
– Bem, o que gostaria de assistir?
– Não sei muito a respeito de cada um.
– Bem, tem um aqui sobre uma estrela do rock drogada; um com uma família cheia de filhos e
outro sobre umas crianças que são sugadas para dentro de um vídeo game. – ela o encarou, confusa
por causa da última opção, e ele riu – Nem pergunte. Ah, e tem outro do tipo meloso.
– Meloso?
– É, você sabe, do tipo romântico e sentimental.
Ela riu.
– Bem, qualquer um destes está bom para mim.
Ele a levou até a bilheteria e comprou dois ingressos. Em seguida foi à lanchonete e comprou
refrigerante e Sour patch kids – balas de goma, antes de entrarem no cinema já quase lotado. Ela
hesitou por um momento, olhando ao seu redor, e então ele se deu conta de que aquela era a primeira
vez em que ela ia a um cinema. Às vezes era fácil para Carmine esquecer que o mundo ainda era algo
novo para Haven e que ela jamais experimentara coisas que para ele eram comuns. Ele apertou a mão
dela, tentando lhe transmitir segurança, e escolheu assentos próximos da saída, para o caso de ela
precisar sair rapidamente dali.
Ela relaxou no momento em que ele afastou o braço móvel que separava as poltronas e a puxou
para perto dele. A sala ficou lotada e as luzes se apagaram. Haven ficou um pouco nervosa ao ouvir o
som alto vindo dos autofalantes, mas voltou a se tranquilizar quando o filme começou. Ele colocou
algumas balas de goma na boca; Haven analisou o doce antes de pegar uma. Ela fez uma careta assim
que mordeu a bala.
– Caramba, isso é azedo. – e ele riu de sua expressão.
– É, mas é bom.
Ela pegou mais algumas e assistiu ao filme com muita atenção, enquanto Carmine passou a maior
parte do tempo olhando para ela. Eles compartilharam o refrigerante e se esbaldaram com as balas
de goma, como se aquilo fosse grande coisa. Mas aquelas coisas simples representavam muito para
ambos. Carmine estava tendo a oportunidade de dar alguma coisa a alguém; Haven, por sua vez, não
tinha problemas em receber o que ele lhe oferecia.
Ele não ficou bravo quando ela surrupiou uma bala de sua mão. Pelo contrário. Ele ficou
orgulhoso pelo fato de ela ter se tornado mais corajosa. Ela baixara a guarda e, pouco a pouco,
Carmine sentia que estava ficando menos na defensiva.
Quando os créditos apareceram na tela, ele pegou a mão dela e ambos saíram rapidamente do
cinema, antes que o resto das pessoas fizesse o mesmo. Entusiasmada, Haven falou durante todo o
trajeto de volta para casa. Ele não fazia ideia qual era o assunto, mas sorria de qualquer modo; a
alegria dela o deixava feliz.

Nove homens. Nove armas e quase noventa balas. Um caminhão de entregas cheio de
equipamentos eletrônicos.
Não era assim que Vincent planejara passar sua noite de sábado.
Eles estavam em número menor. Eram dois para um. Uma Glock do tipo comum estava apontada
para o peito de Vincent, que, em contrapartida, segurava uma Beretta. A mão do sujeito que
empunhava a Glock tremia, o que revelava para Vincent seu nervosismo. Por essa razão, DeMarco
optou por mirar seu revólver no outro. Se Vincent havia aprendido algo na vida era que um homem
com a mão firme não hesitaria em puxar o gatilho.
Corrado estava a alguns metros, de frente para Ivan Volkov. Os dois homens olhavam um para o
outro, imóveis e calados, com suas respectivas armas apontadas para a cabeça um do outro. Corrado
parecia nem perceber as pessoas que estavam ao seu redor. Vincent não sabia se aquilo era bom ou
ruim.
Giovanni mantinha sua postura apesar de homens armados o terem como alvo. O caminhão-baú
estava em ponto morto; a rua estreita, repleta de fumaça intoxicante. Aquilo queimava o nariz de
Vincent e distorcia sua visão, mas ele lutou para manter a concentração. Eles haviam sido chamados
por Sal poucos minutos antes, que informou que um caminhão sequestrado pela equipe de Giovanni
no lado leste da cidade havia sido roubado por uns bandidos. Eles foram atrás, pensando que se
tratavam de amadores, mas se depararam mais uma vez com os russos.
O homem com a Glock foi o primeiro a desistir. Ele baixou sua arma e rapidamente deu um passo
para trás. Acenando com a cabeça, saiu correndo sem dizer uma única palavra.
Um por um, todos se renderam. Era impressionante sua falta de lealdade em relação ao chefe.
Todos desapareceram, deixando o calmo Volkov para trás nas mãos de três mafiosi. Não havia medo
em sua expressão, preocupação em seus olhos ou surpresa pelo fato de seus homens terem
abandonado seus postos.
Eles eram completamente diferentes dos italianos. Se um deles deixasse a famiglia, simplesmente
não viveria para ver o sol nascer.
Depois de um momento, Volkov abaixou sua arma e a colocou de volta no bolso.
– Podem levar o caminhão. – ele disse, como se estivesse fazendo um favor diante das
circunstâncias.
Ele tentou ir embora, mas Corrado se colocou em seu caminho.
– Da próxima vez que eu ver você, vou te matar.
Volkov parou por um instante.
– Isso é uma ameaça?
– Não, é um fato.
Mais um segundo tenso se passou, então outro e mais outro. Por fim, Volkov ostentou um leve
sorriso em seu rosto gélido e respondeu.
– Estou ansioso pelo nosso próximo encontro, Moretti.

Haven sentou-se com as pernas cruzadas na cama de Carmine, com o livro O Jardim Secreto no
colo. Carmine entrou no quarto e chutou um livro da escola que estava no caminho, machucando o
dedão. Ele deu um grito, pegou o livro e se jogou na cama ao lado dela, balançando o colchão e
fazendo com que ela perdesse a página. Mas antes que ela pudesse achá-la, ele pegou o livro de suas
mãos e o fechou. Por um segundo ela ficou irritada pela interrupção, mas o sentimento desapareceu
quando ele deitou a cabeça em suas pernas.
Ela passou a mão sobre o rosto dele, e o olhou com um sorriso enquanto ele falava.
– É, meu quarto precisa de uma faxina.
Ela caiu na gargalhada e acabou sacudindo os dois.
– É, precisa mesmo.
Haven passou a mão sobre o cabelo dele, que deu um suspiro de satisfação.
– Amanhã. A faxina pode esperar.
– Estou ansiosa por limpar isso aqui.
Ele riu.
– Você deveria estar com medo, isso sim.
Ambos caíram no sono. Quando Haven despertou, um pouco mais tarde, percebeu que estava
sozinha. Ela saiu do quarto e ficou surpresa ao encontrar a biblioteca vazia. Desceu as escadas em
busca de Carmine.
A casa parecia estar em silêncio, porém, no andar térreo ela conseguiu ouvir o som abafado de
música, uma melodia triste. Caminhou lentamente até a sala de estar e logo viu Carmine sentado ao
piano, com uma postura que também revelava tristeza. Ela o viu dedilhar o teclado vigorosamente,
fazendo a música crescer, inclinou-se e deslizou o corpo pela porta, sentando-se ao chão e
assistindo-o tocar como se estivesse num transe. Ficou hipnotizada e surpresa ao sentir tamanha
emoção escorrendo pelos dedos de Carmine. A mesma música foi tocada repetidas vezes, do início
ao fim.
Ela reconheceu a melodia. Embora o tom fosse diferente, mais alto e fluido no piano, era a mesma
música que ele costumava tocar no violão à noite.
Suas pálpebras ficaram pesadas enquanto ouvia, mas ela combateu o sono, cativada pelo som. No
final, entretanto, ela acabou perdendo a batalha e cochilando. A próxima coisa de que se lembrava é
de estar sendo carregada. Seus olhos se abriram e ela ficou assustada ao ver que estava no colo de
Carmine. Eles já estavam no segundo andar. Ela olhou para ele como se pedisse desculpas,
esperando que ele não tivesse ficado chateado por ela tê-lo espionado, mas ele apenas sorriu.
– Temos camas nessa casa, tesoro. Não é preciso dormir no chão.
Capítulo 20

Haven parou na porta do quarto de Carmine, exausta por causa da noite maldormida e sonhando
em tirar um cochilo, mas tinha coisas mais urgentes para fazer.
Ao olhar para a bagunça, ficou imaginando por onde deveria começar.
– Ouça, eu não faço ideia do que você irá encontrar aqui – disse Carmine –, portanto, prefiro me
desculpar antes, por tudo, assim não terei que ficar pedindo desculpas enquanto trabalhamos, ok?
Ele foi até a pilha de roupas sujas e as colocou no cesto, enquanto Haven tentava encontrar uma
trilha por onde passar.
– Não prefere separar as roupas? – ela perguntou.
Ele parou, segurando um par de caças.
– Separar como?
– Uma pilha de roupas brancas e outra de coloridas já é suficiente.
– Sim, senhora. – ele riu e prestou uma continência. O sorriso dela se desfez e ele soltou um
suspiro diante de sua expressão desanimada – Estou brincando. Eu posso separar as roupas… Só
havia esquecido desse detalhe.
Ele retirou tudo de dentro do cesto e fez duas pilhas de roupas enquanto Haven recolhia os livros
do chão. Ela os colocou sobre a escrivaninha e organizou os papéis soltos para que todos ficassem
numa mesma posição.
– Bem, ah… – Carmine levantou uma camisa branca com listras azuis – Você consideraria isso
como colorido ou branco?
– Colorida – ela respondeu, observando as pilhas –, e aquela camiseta branca com detalhes em
verde também.
Carmine pegou a camisa e a colocou na outra pilha.
– Como pode saber?
– A etiqueta diz para não usar nenhum alvejante.
– Você lê as etiquetas das minhas roupas? – a voz dele parecia séria como se estivessem
discutindo algo escandaloso.
Ela sorriu.
– Sim, eu faço isso antes de lavar.
– E você se lembra disso?
– Claro.
– Bem, você não me disse para ler as etiquetas.
Haven segurou o riso, sabendo que aquilo só o deixaria mais irritado. Quando Carmine terminou
de separar as roupas, ela levou o cesto com as brancas para já ir lavando. Retirou alguns itens que
obviamente não poderiam ser alvejados e as deixou de lado para a próxima leva, sem querer chateá-
lo com aquela história.
Ela levou o cesto vazio para o quarto de Carmine e o pegou deitado de bruços na cama. Olhou
para as costas dele e ficou impressionada com os músculos esculpidos e com o modo como suas
tatuagens pareceram mais nítidas. Ele se virou, olhou para ela e sorriu com preguiça.
– Desisto. Isso é difícil demais.
Tudo que havia feito era separar algumas roupas, e já não foi um serviço bem feito.
– Para mim é fácil.
Ele revirou os olhos e ela reuniu o segundo lote de roupas.
Ele guardou alguns CDS e ela tirou as roupas de cama.
Ele fez uma pausa. Ela buscou lençóis limpos.
Ele colocou uma música. Ela arrumou a cama dele.
Ele se sentou à escrivaninha enquanto ela perambulava pelo quarto, recolhendo coisas espalhadas
por todos os cantos e as colocando nos lugares que considerava apropriados. Carmine ficou
prestando atenção e ela percebeu que seus olhos a seguiam em cada movimento. Ela não se
importava que ele não estivesse ajudando muito, considerando que as coisas ficariam mais bem-
feitas se ela cuidasse de tudo sozinha, mas aquele olhar a incomodava. Ocasionalmente ele cerrava
os dentes, tentando conter sua irritação quando ela tocava em alguns objetos.
Não demorou muito até que o chão estivesse livre, exceto por um livro cuja ponta podia ser vista
debaixo da cama. Ela se ajoelhou, surpresa ao ver o que ainda estava amontoado ali. Tirou livros,
revistas e alguns filmes. Havia também algumas caixas de sapato, mas ela não as tocou. Então,
colocou o edredom sobre a cama e olhou para a pilha que havia feito, assustando-se ao ver uma
mulher nua na capa de um dos DVDS. Ela o cobriu, mas não foi rápida o suficiente, pois Carmine já
havia reparado.
– Sabia que acabaria encontrando pornografia. – ele riu e o pegou – Gostaria de assistir?
Havia um brilho travesso no olhar dele. Ela fez um movimento negativo e veemente com a cabeça,
então ele enfiou o filme em uma gaveta de sua mesa. Haven pegou uma pilha de fotos e Carmine
apontou para a gaveta onde elas deveriam ser guardadas.
– Pode vê-las se quiser. Acho que todos estão vestidos, mas não posso prometer.
Ele deu uma piscada quando ela tornou a pegar as fotografias. À medida que foi olhando uma a
uma, reconheceu rostos familiares e ficou surpresa ao encontrar Nicholas em algumas delas. Todos
pareciam jovens e quase todos estavam felizes, exceto por Carmine. Os olhos dele estavam tristes e
não havia neles o brilho com o qual ela havia se acostumado. Era óbvio que ele passara por maus
momentos e aquelas fotos contavam uma história que nenhuma palavra conseguiria refletir.
Ela abriu a gaveta onde ele disse que elas deveriam ser guardadas e ficou petrificada. Em cima de
tudo havia um pequeno boneco feito de barbante, com pouco mais de alguns centímetros. Ele tinha
cabelos curtos feitos com fios e roupas de feltro coladas ao corpinho. Ela ficou imaginando por que
Carmine teria algo como aquilo e pegou nas mãos com cuidado para não estragá-lo.
Ela sentiu uma forte dor no peito ao olhar com mais cuidado e se lembrar de ter visto algo similar
há muito tempo. Ela tinha cinco ou seis anos e o viu enquanto corria pelo rancho dos Antonelli.
Também se recordou de que, na ocasião, ela chutava a terra com os pés descalços e ria alto como os
sinos da igreja que badalavam a distância nas manhãs de domingo. O pequeno boneco estava firme
em sua mão e, quando ela correu para o estábulo, o longo fio marrom flutuou pelo vento.
Mamãe, ela gritou, Olhe, mamãe!
Sua mãe suspirou e olhou para trás. Seu rosto estava pingando de suor. Estou ocupada, Haven.
Olhe, mamãe, ela disse novamente, parada do lado de fora do estábulo. Sua mãe ainda estava ao
lado do cavalo. Rindo, Haven lhe entregou o boneco, superanimada. Ela nunca se sentira tão feliz em
toda sua vida. Sou eu, mamãe.
Os olhos de sua mãe se arregalaram e ela entrou em pânico ao ver o boneco. Onde foi que
conseguiu isso? Precisa devolvê-lo.
Não, mamãe. Ela disse.
A mãe saiu do estábulo e tentou arrancar o boneco à força. Dê isso para mim agora. Você sabe
muito bem o que irá acontecer.
Não!
Haven Isadora, me dê isso agora!
Ela o segurou atrás do corpo, balançando negativamente a cabeça. Já não estava feliz, apenas
irritada. Nunca tivera um brinquedo antes, e ninguém o iria tirar de suas mãos, nem mesmo sua mãe.
Não, é meu! É meu! Ela deu pra mim, não pra você!
Quem deu a você?
Meu anjo, mamãe. Ela me deu um presente!
Seu anjo. Haven havia sonhado com aquilo por vários anos. A bela mulher vestida de branco, que
brilhava sob a luz do sol no deserto. Ela lutava para se lembrar daquela imagem novamente quando
ouviu alguém pigarrear ao seu lado, arrancando-a de seus pensamentos. Ela olhou para cima e viu
Carmine parado ao seu lado.
Ela colocou o boneco de volta na gaveta.
– Sinto muito. Não deveria estar mexendo nas suas coisas.
Ele ficou em silêncio enquanto o nervosismo dela só aumentou. Mordeu o lábio inferior, com medo
de sua reação. Ele esticou a mão abruptamente na direção de Haven, fazendo-a contrair-se, mas ele
apenas passou os dedos em sua boca e puxou levemente seu lábio para fora.
– Vai acabar se machucando se continuar mordendo o lábio. – ele disse, reabrindo a gaveta –
Minha mãe costumava fazer esses bonequinhos para as crianças que vinham para o centro em que ela
trabalhava. A maioria das pessoas ali não ficava muito tempo num mesmo lugar, então não tinham
praticamente nada. Ela dizia que era fácil guardar os bonequinhos porque eles eram pequenos.
E também eram fáceis de esconder. Haven havia guardado seu bonequinho por vários anos sem
que seu mestre soubesse.
– Ela sempre achou que quanto mais individual melhor.
– E ela estava certa. – disse Haven – É melhor.
Ele suspirou, olhando para o bonequinho.
– Há alguns meses eu teria discordado disso.
– E agora?
Ele fechou a gaveta novamente.
– Agora tudo mudou.
Capítulo 21

Haven estava deitada na cama segurando um lápis e desenhando numa pilha de papéis à sua frente.
Fez uma pausa e olhou para os traços em cinza, antes de amassar a folha e atirá-la no chão.
Fazia horas que estava ali, o piso repleto de bolinhas de papel amassado. Ela se sentia culpada
por desperdiçar tanto. O papel vinha das árvores e, embora não houvesse falta de verde em Durante,
não era certo deixar de protegê-las. Ela sabia que as árvores eram seres vivos e respiravam; elas
suportavam tantas intempéries, mas, ainda assim, sobreviviam e se tornavam cada vez maiores e mais
fortes, a despeito das condições que enfrentavam todos os dias.
Seria bobo considerar tanto a natureza?
Ela deixou o lápis de lado e recolheu todas as bolinhas de papel, colocando-as na lata de lixo, e
desceu as escadas. Era meados de dezembro, uma sexta-feira e o último dia de aula para Carmine
antes das férias de inverno. O Natal se aproximava e o único pensamento de Haven repousava em sua
mãe, em Blackburn. Ela se recordava do olhar dela quando se sentava no estábulo e olhava para o
rancho decorado com luzes, desejando ser parte de algo maior. Jamais admitiria aquilo, mas, no
Natal, sua mãe não queria estar do lado de fora, apenas olhando a comemoração.
Haven conhecia bem aquele sentimento e agora se sentia muito triste pelo fato de estar longe de
sua mãe; porém, ao mesmo tempo, ela estava feliz por ter se tornado parte de algo maior.
Os DeMarco não costumavam decorar muito a casa. Havia apenas uma pequena árvore de plástico
retirada de uma caixa. Mesmo assim, Haven ajudara Carmine a pendurar as luzes. Alguns ornamentos
coloridos também foram acrescentados nos dias que se seguiram e Tess pendurou na porta de entrada
um enfeite feito com visco.
A presença do doutor DeMarco havia sido rara nas últimas semanas. Na maioria das noites, só
chegava em casa depois de o sol já ter nascido e só permanecia tempo suficiente para tomar um
banho e trocar de roupas. Haven não fazia perguntas, mas achava estranho o fato de ele a deixar tanto
tempo por conta própria.
Será que finalmente ele acreditava que ela não voltaria a fugir?
Ela ainda cozinhava todas as noites, mesmo sabendo que DeMarco não estaria em casa para jantar,
e acostumou-se a sentar à mesa com os rapazes. Nas noites em que ele vinha para casa, nunca
reparava em sua presença. Ocasionalmente ela o flagrava olhando-a de um jeito desconfortável,
como se estivesse se preparando para algo que nunca aconteceu.
Naquele dia, enquanto Haven dava o primeiro gole no refrigerante que pegara na cozinha, ouviu
um carro estacionar do lado de fora. A familiar Mercedes estava próxima da varanda e DeMarco
entrou diretamente na casa. Ela pôde ouvir sua voz quando entrou no hall. Ele falava ao celular.
Livrou-se do casaco e seus olhos repousaram sobre ela, permanecendo ali até o término da chamada.
– Pode me esperar no meu escritório? Subirei num momento.
Ele havia colocado na forma de pergunta, mas ela sabia que não se tratava de algo negociável.
Nervosa, ela subiu até o escritório e se sentou na cadeira diante da escrivaninha do médico. O
cômodo estava em silêncio, exceto pelo tique-taque do relógio na parede atrás dela. O tempo parecia
não passar até que finalmente escutou os passos na escada. Seu coração disparou quando ele se
aproximou, e ela instintivamente prendeu a respiração quando DeMarco entrou no local.
Ele parou diante dela, segurando um grande cotonete e um recipiente plástico. Os joelhos dele
estalaram no momento em que ele se agachou diante da jovem, levando-a a se contrair.
Preocupada, ela o observou enquanto ele sorria. Porém, havia algo estranho em sua expressão. Um
quê de preocupação, talvez até mesmo certa irritação, mas, no geral, parecia tristeza. Aquilo a
surpreendia. Ela olhou para ele e imaginou o que o teria deixado daquele jeito, mas não podia
perguntar. Não era de sua conta.
– Abra a boca. – ele ordenou.
Ela obedeceu e ele passou o cotonete no interior de sua bochecha. Ele se levantou em seguida,
guardando o cotonete dentro do recipiente, e se encostou na escrivaninha.
– Você não parece…
As palavras dele foram logo interrompidas por uma chamada telefônica. DeMarco fechou os
olhos.
– Pode ir, criança.

Haven seguiu diretamente para a sala de estar, sentou-se no sofá e ficou olhando para a
arvorezinha de plástico. Os rapazes chegaram da escola; suas vozes animadas logo preencheram a
casa. Os olhos dela repousaram em Carmine e ele piscou para ela ao se sentar numa cadeira do outro
lado da sala. Dominic sorriu e se sentou ao lado dela, tão próximo que estava praticamente no colo
da jovem, e ainda colocou o braço em seu ombro.
– E aí, Pé de Valsa? Sentiu minha falta enquanto estava na escola?
– Ah, sim. – ela respondeu – Acho que sim.
Carmine olhou para ele incomodado, e Dominic caiu na risada, fingindo cochichar.
– Acho que meu irmão está com ciúmes.
Haven ouviu passos descendo as escadas e preparou-se para sair, mas Dominic a segurou.
DeMarco entrou na sala e franziu a testa ao vê-los ali.
– Não deixe que a Tess veja isso, ou iniciará uma guerra. Eu detestaria ter de intervir.
Dominic deu risadas.
– E de que lado ficaria?
– Não disse nada sobre escolher um lado. Minha política é me manter sempre neutro.
– Certo, mas digamos que tivesse de apostar – disse Dominic –, em quem colocaria seu dinheiro?
DeMarco suspirou.
– Está me perguntando quem eu acho que venceria numa briga?
– É, acho que estou.
Carmine rosnou do outro lado da sala.
– Bem, Tess é muito boa no que se refere a golpes baixos, mas a jovem aqui tem um instinto de
sobrevivência. Ela também não é indefesa, como Squint pode atestar. Tess está acostumada a contar
com ajuda dos outros; essa menina, por sua vez, sempre se virou sozinha. Considerando tudo isso,
acho que ela derrubaria facilmente a Tess. – os olhos de Haven se arregalaram; ela ficou surpresa ao
ouvi-lo dizer aquelas palavras – Mas não conte isso a Tess ou ela poderá tentar provar que estou
errado.
– Eu não diria a Tess nem que minha vida dependesse disso. – disse Dominic – Ela me daria um pé
na bunda.
– E Haven provavelmente também o derrotaria. – completou DeMarco – Sei do que ela é capaz.
As bochechas de Haven ficaram vermelhas quando todos olharam para ela.
– Ah, não saberia lhe dizer, senhor.
– Não subestime a si mesma. Eu não a subestimo. – Haven o encarou sem compreender o que ele
queria dizer, mas ele desviou o olhar sem explicar – Tenho coisas a fazer, portanto é provável que só
retorne amanhã depois de escurecer. Tenham todos uma boa-noite.
Ele saiu e um silêncio desconfortável se fez presente.
– Nossa, isso foi bem estranho. – disse Carmine antes de se virar para o irmão – E tire o braço do
ombro da minha garota antes que eu te quebre ao meio.
Dominic se inclinou na direção de Haven e falou.
– Eu disse que ele era ciumento.
– Não importa. – disse Carmine – Aliás, qual o seu problema? “Quem venceria numa briga?” Que
tipo de pergunta é essa?
– Foi uma boa pergunta. – retrucou Dominic – Mas por que está tão bravo, afinal? Ele escolheu
sua garota, não a minha.

Os dois estavam escutando música mais tarde naquela noite quando Carmine fez uma pergunta que
surpreendeu Haven.
– Que presente você gostaria de ganhar de Natal?
O que ela queria? Ela jamais pensara sobre aquilo.
– Não espero ganhar nada.
– Bem, você vai ganhar alguma coisa.
– Mas não tenho como te dar um presente.
– Você já me deu um presente, Haven. Você mesma. E foi o melhor presente que já ganhei.
Ela suspirou quando ele se deitou ao lado dela.
– Ainda gostaria de te comprar alguma coisa.
– Não estou precisando de nada. – ele disse – Mas haverá muitas outras ocasiões no futuro em que
poderá mimar seu namorado.
Uma sensação de esperança invadiu seu corpo. Natais. Presentes. Um futuro. Aquilo tudo era
demais para ela compreender.
– Vocês costumam fazer uma grande festa?
– Costumávamos quando eu era jovem, mas agora somos só nós. Minha tia Celia sempre passa
alguns dias com a gente. Fora ela e o marido, não temos outros parentes. Meu avô está morto e não
visitamos nossa avó. Ela sofre de demência ou algo parecido. Não sei direito.
– E quanto à família de sua mãe?
Ele ficou em silêncio e ela imaginou que talvez tivesse feito uma pergunta intrometida, mas no
final ele respondeu com a voz suave.
– Não conheço ninguém da família dela. Ela imigrou para cá.
– Já pensou em encontrar eles?
– Não. – ele respondeu – Eles nunca vieram à procura de minha mãe; jamais se preocuparam em
saber o que aconteceu com ela, então, por que me preocuparia em descobrir? Caramba, eu nem sabia
que ela tinha nascido na Irlanda até que vi uma papelada do governo no escritório do meu pai há
alguns anos.
– Você não fica triste por não ter uma grande família? – perguntou Haven – Eu costumava fingir
que tinha uma. Minha mãe dizia que eu estava sempre conversando com amigos imaginários. Eu
costumava até mesmo conversar com um anjo.
– Um anjo com asas e halo na cabeça e toda essa merda?
– Era um anjo com certeza, mas não tinha nada disso. – ela respondeu – Minha mãe costumava
dizer que os anjos cuidavam de mim e que um dia eu também seria um deles, então eu pensava neles
como pessoas. Meu anjo me contou sobre a vida. Ela disse que eu poderia ser livre como ela quando
crescesse e ter qualquer coisa que quisesse. Acho que ela não queria me entristecer com a verdade.
Carmine puxou-a para mais perto dele, enfiando a cabeça nos cabelos da jovem. Apesar de ainda
ser cedo, Haven estava exausta. De fato, ela estava quase dormindo quando ouviu a voz suave de
Carmine.
– Você ainda pode ter uma grande família, beija-flor. Seu anjo não mentiu pra você.
Capítulo 22

Quando Carmine estava crescendo, o Natal sempre fora sua época favorita do ano. Ele adorava
tudo que era relacionado à data. Assistir filmes como Rudolph - a rena do nariz vermelho, A lenda
de Frosty, o boneco de neve e A felicidade não se compra, cantarolar músicas natalinas e tocar
“Bate o Sino” no piano. Era simplesmente mágico! Essa era a maneira como Carmine descrevia
aquele período, embora nem mesmo essas palavras fossem capazes de fazer jus ao sentimento que
transbordava dentro dele.
Porém, depois que sua mãe faleceu, tudo mudou. Ele perdeu o interesse pela maioria das coisas na
vida, mas, em especial, pelos feriados e festas. O Natal o fazia se lembrar dela, e tudo o que ele
sentiu depois de sua morte foi tristeza e sofrimento.
Agora era novamente véspera de Natal, e, ao longo de toda a semana, Carmine observara Haven
entrando no espírito natalino. Ele não via tanto entusiasmo pelas celebrações desde o último Natal
que passara ao lado da mãe. Parte dele ainda queria esquecer aquilo, afastar-se de tudo e se esconder
em seu buraco, mas, agora, uma parte ainda maior não podia evitar sentir-se feliz. Ele finalmente
encontrara sua luz na escuridão; a centelha que se apagara quando sua mãe morreu, de algum modo
ganhou vida em Haven.
Porém, Carmine temia que essa luz desaparecesse novamente.
Os nervos do rapaz estavam à flor da pele quando ele dedilhava os braços da poltrona, olhando
atentamente para o relógio e sem conseguir prestar atenção na TV. Depois de cerca de vinte minutos,
um carro estacionou na frente da casa. A porta se abriu e a voz de Vincent pôde ser ouvida no hall,
seguida de uma voz feminina.
Tia Celia.
Dominic imediatamente se levantou, pegou-a nos braços e a girou pela sala. Depois de recolocada
no chão, ela olhou para Carmine.
– Cada vez que o vejo está mais parecido com sua mãe, garoto.
Ela não precisava ser mais específica, pois Carmine sabia o que ela queria dizer. Ele a abraçou,
sem se preocupar em responder. Era verdade, e Celia era a única pessoa que não tinha medo de falar
a respeito de sua mãe.
Celia se afastou um pouco e perguntou.
– Você tem sido um bom rapaz?
– Bem, não tenho explodido nada nos últimos tempos, se isso conta.
– Já é um bom começo.
Vincent pigarreou, concentrando-se em Haven, que estava de pé diante do sofá. Ela olhava para o
chão e, nervosa, mexia nas unhas. Vê-la tão assustada mexeu com Carmine.
Celia se aproximou da jovem.
– Haven?
– Sim, senhora.
– Já ouvi muito sobre você. – disse Celia – É um grande prazer conhecê-la.
A voz de Haven mal podia ser ouvida.
– Digo o mesmo, senhora Moretti.
– Pode me chamar de Celia, querida. A senhora Moretti é minha sogra e uma verdadeira bruxa, se
quer saber.
Os olhos de Haven se arregalaram e Vincent riu da piada, mas balançou a cabeça sem compartilhar
o que quer que tivesse achado engraçado. Ele lançou um olhar cúmplice para Celia, com os cantos de
sua boca ainda lutando para esboçar um sorriso.
– Bem, de qualquer modo, estou faminta e exausta pela viagem – disse Celia –, portanto não
esperem que eu seja uma grande companhia essa noite.
Os olhos de Haven se voltaram para o relógio.
– É hora de eu preparar o jantar.
Ela estava deixando a sala quando Vincent parou em seu caminho. Isso a assustou, fazendo-a
prender a respiração e se contrair diante de sua mão erguida.
Aquilo era péssimo, mas mesmo odiando aquela situação, Carmine não podia fazer nada além de
assistir ao desenrolar dos fatos.
– Acalme-se, criança. – disse Vincent – Eu só ia dizer a você que não se incomode em cozinhar.
Haven se protegeu cruzando os braços.
– Posso ir então, mes… digo, senhor?
Carmine ficou tenso e se contraiu diante do diálogo.
– Sim, pode ir. – a jovem saiu da sala como um relâmpago antes mesmo que a frase terminasse, e
ele fez um sinal negativo com a cabeça – Eu deveria ter imaginado.
– Você não poderia prever. – disse Celia – Também não passou pela minha cabeça.
Carmine os observou, desconfiado.
– Não poderia prever o quê?
Uma sensação de pânico tomou conta de Carmine quando a tia começou a rir, surpresa. Ela
conseguia ler o que estava em sua mente com facilidade e ele esquecera de considerar esse detalhe
antes de abrir a boca.
– Isso não importa. – disse Vincent, dando as costas para o filho – Cuidaremos da garota mais
tarde.

Carmine não voltou a colocar os olhos em Haven naquela noite. Ele ficou perambulando pela
biblioteca na esperança de que ela saísse do quarto, mas caiu a madrugada e nem sinal da jovem.
Desistindo de esperar, desceu as escadas e foi até o piano, repousando os dedos sobre o teclado
ainda na escuridão e começando a tocar “Sonata ao Luar”, de Beethoven. Ele tocou por alguns
minutos; as notas tristes já o engoliam, quando ouviu alguém atrás dele.
Interrompendo a música de maneira abrupta ele se virou e encontrou Haven. Seus cabelos estavam
soltos e emolduravam um rosto exausto e solene. Ele tocou no banco do piano, convidando-a para
sentar-se ao seu lado. Ela aceitou.
– Você toca lindamente. – ela olhou para as teclas e ele voltou a tocar, continuando de onde havia
parado – Essa é a única música que conhece?
Ele terminou de tocar a sonata e respondeu.
– Conheço algumas outras, não tão bem quanto essa, mas consigo tocar um pouquinho.
– E todas são tristes?
– Não.
– Poderia tocar alguma música alegre para mim?
Ele se sentiu tomado por certa irritação diante daquele pedido, mas tentou se controlar, sabendo
que precisava fazê-lo quando estava ao lado dela. Ele então dedilhou a canção “Bate o Sino”,
lembrando-se apenas vagamente das notas. Hipnotizada, os olhos de Haven brilhavam ao admirar os
dedos do rapaz.
O cômodo ficou em silêncio quando ele terminou a música.
– Feliz Natal, bella ragazza.
Ela sorriu, sussurrando de volta em seus ouvidos.
– Feliz Natal.
Ele a olhou nos olhos e se inclinou para beijá-la, quando ouviu alguém pigarrear bem atrás deles.
Ele se virou rapidamente. Cacete, quase fomos pegos.
– Estou interrompendo? – perguntou Celia, com um sorriso nos lábios que dizia a Carmine que ela
sabia que estava. Ele ia falar, mas Haven saiu correndo da sala antes que ele pudesse dizer qualquer
coisa. Suspirou quando ela desapareceu e Celia se sentou ao lado dele no banco – Tão talentoso.
Ele revirou os olhos.
– Eu assassinei aquela música. Tenho tentado tocar ela há anos.
– Haven achou que você a tocou lindamente.
– Isso é porque ela nunca ouviu a música antes. Ela achou que meus erros foram intencionais.
– Você está sendo autodepreciativo. Sua mãe sempre teve orgulho de seu pequeno Mozart.
Ele não respondeu. Mas ela sabia que ele não o faria. Ele nunca respondia.
– Ela me reconheceu. – disse Celia – Era sobre isso que eu e seu pai estávamos falando. Ela me
viu quando visitei Blackburn.
Carmine se ajeitou no banco.
– E você alguma vez pensou em ajudar ela enquanto estava lá?
– Acredite, meu rapaz. Eu queria tê-la ajudado. Conversei com Corrado sobre isso, mas não havia
nada que pudéssemos fazer. É o negócio deles e…
– Blá, blá, blá… – ele a interrompeu – Já sei, sempre mantenha a vida pessoal e os negócios
separados; o código de conduta e toda essa baboseira. Já ouvi tudo isso antes.
– Acho que andou conversando com Salvatore. – ela disse – Bem, de qualquer modo, se me
permite, há uma garota se escondendo em algum lugar e gostaria de conversar com ela.
Capítulo 23

Haven se sentou na beirada da cama, sentindo-se deslocada. Ela nunca falara com Celia até a noite
passada; apenas a vira passar, mas sua presença naquela casa fazia com que os dois mundos
convergissem. Sua antiga vida, repleta de dor, se mesclava agora à nova vida. E justamente quando
ela começava a se sentir mais confortável.
Aquilo a deixava incomodada e ela queria muito que aquela sensação desaparecesse.
Então ouviu uma leve batida na porta. Seu estômago estava embrulhado quando pegou na maçaneta
com a mão suada. Ao abrir lentamente, ficou alarmada ao encontrar Celia.
– Posso falar com você?
Haven assentiu com a cabeça, então Celia se sentou na cama. A jovem tentou controlar as mãos
trêmulas ao sentar-se ao lado da mulher.
– Gostaria de lhe contar uma história. Você se oporia a isso?
Uma história?
– Não, senhora.
– Nos anos 1970, quando eu ainda tinha cerca de onze anos, uma guerra começou a surgir entre
os… os grupos. Casas seguras foram construídas em todo o país para que os homens pudessem tirar
suas famílias da linha de fogo. Esta era uma delas. Foi para onde meu pai nos enviou. Também foi o
lugar onde conheci meu marido, Corrado, e sua irmã Katrina. Nossos pais eram amigos. Vincent e eu
nunca gostamos de Katrina. Ela é um demônio, que sente prazer em ferir as pessoas. Sei que você
sabe disso.
Haven concordou com a cabeça. Era verdade.
– Corrado era o oposto de sua irmã. Ele costumava se manter fora do caminho e ficar quieto. Certo
dia, todos estávamos próximos do riacho e Katrina começou a atirar pedrinhas em mim. Corrado
ficou ali parado, observando. Nós o considerávamos ingênuo. Vincent, entretanto, não gostou da
brincadeira e devolveu uma pedra, que pegou no rosto dela, deixando uma grande marca.
Apesar de tudo, Haven sorriu.
– Katrina deu com a língua nos dentes e minha mãe estava prestes a espancar Vincent quando
Corrado de repente resolveu abrir a boca. O menino não havia dito uma palavra por semanas, e na
primeira vez que abriu a boca ele falou com grande autoridade. Ele disse “A senhora não deveria
bater nele”. Ele disse que uma pessoa não deveria ser punida por proteger sua família. Minha mãe
ficou tão surpresa que deixou que Vincent fosse embora.
Celia riu para si mesma.
– Esse é o meu marido. Quando ele fala as pessoas escutam. – ela fez uma pausa – É provável que
esteja imaginando aonde quero chegar com isso.
– Sim, senhora.
– Só quero que você saiba que não sou como as pessoas em Blackburn… Meu marido não é como
eles. Nós também somos obrigados a lidar com pessoas com as quais não gostamos de lidar. É algo
que se aprende quando se envolve com um homem que vive esse tipo de vida. Eles fazem coisas
horríveis; coisas que a maioria das mulheres ficaria envergonhada em saber sobre seus maridos.
Porém, nós sabemos que isso faz parte deles, assim como outras coisas fazem parte de quem nós
somos. Eu aceitei Corrado pelo que ele é, e tenho certeza de que aceita Carmine, mesmo com suas
atitudes ruins.
Haven ficou alarmada ao ouvir o nome de Carmine, mas tentou se manter inexpressiva.
– Eu aceito igualmente os dois rapazes.
Celia sorriu.
– Tenho certeza de que os aceita, Haven. Não temo por Dominic. Apesar de tudo, é um rapaz bem
ajustado, mas Carmine é diferente. Ele tem uma alma gentil por debaixo daquela terrível armadura
que usa. Acho ótimo que alguém finalmente tenha conseguido ultrapassar essa barreira.
O coração da jovem disparou.
– Ele é… – ela não sabia como completar a frase – É diferente.
– Sim, ele é. – ela concordou – Embora eu acredite que o significado que nós damos para isso não
seja o mesmo. Mas, de qualquer modo, acho que devo começar o jantar.
Haven deu um pulo, tendo se esquecido completamente do jantar. Afinal, aquela fora a razão para
ter levantado tão cedo.
– Oh, não, eu já deveria ter começado o jantar.
– Relaxe. Eu cuido do jantar da véspera de Natal. Sempre espero ansiosamente por isso. Hoje
você só tem que se divertir.

Depois que Celia deixou o quarto, Haven foi até a porta e viu Carmine invadir o local, segurando
um presente. Ele o estendeu na direção dela, sem hesitar. Contudo, ele a pegara de surpresa, e a
jovem deu um passo para trás, encostando na cama.
Ele parou diante dela e continuou com a mão estendida até que ela pegasse o presente com as mãos
trêmulas.
– Abra.
Foi difícil encontrar uma parte que não estivesse coberta de fita adesiva, mas ela conseguiu rasgar
uma pontinha e abrir o pacote. Depois de se livrar do papel ela se deparou com um livro grosso e
azul, que trazia escrito na capa Dicionário Léxico Merriam-Webster.
– É para mim?
– Sim. – ele disse – Eu me lembrei de quando você disse que precisava de um dicionário. Sei que
estava brincando, mas achei… sabe… que talvez fosse útil ou, sei lá… – ele suspirou – Sou péssimo
para dar presentes.
Ela o encarou enquanto ele falava, percebendo que estava nervoso.
– Obrigada.
– Não é o que eu gostaria de te dar…
– É um ótimo presente, Carmine.
Em seguida ela caminhou até o outro lado da cama e, depois de reconsiderar rapidamente o que
estava prestes a fazer, pensou em como ele havia se exposto e decidiu fazer o mesmo.
– Desenhei algo pra você.
Os lábios dele se abriram num belo sorriso.
– Pensei que tivesse esquecido nosso trato.
– Nunca me esqueço de nada.
Ele riu. Todo o nervosismo dele parecia ter se dissipado, enquanto a tensão dela só estava
aumentando.
– Eu me lembrarei disso mais tarde quando fizer alguma besteira.
Ela abriu a gaveta da cômoda e retirou uma folha de papel, colocando-a contra o peito para que
ele não pudesse ver o que estava ali.
– Bem, ah… Não está tão bom.
Ele esticou a mão.
– Tenho certeza de que está ótimo.
Aceitando o fato de que era tarde demais para voltar atrás, Haven entregou o desenho a ele e
engoliu seco algumas vezes, tentando controlar os nervos enquanto se sentava ao lado dele. Fora sua
mãe, ninguém mais tivera a oportunidade de ver nenhum de seus desenhos.
– Ah, eu disse que não estava tão bom.
– Tesoro, isso é fantástico! Estou sem palavras. E você achou que não estivesse bom?
Ela olhou para a figura nas mãos dele. Embora jamais tivesse visto um pessoalmente, ela procurou
a imagem de um beija-flor num livro da biblioteca. Era o único desenho que fizera que lhe pareceu
proporcional.
– É mesmo?
Ele riu.
– Sim, é mesmo. É a melhor coisa que alguém fez por mim. Eu disse que queria você de Natal e
você me deu isso. É lindo. Você é linda, beija-flor.

Haven ficou petrificada quando olhou pela janela na sala de estar. O jardim estava escondido sob
uma fina camada branca e flocos macios continuavam a cair do céu, como confete.
– Não costuma nevar muito por aqui. – disse Carmine – Nunca dura muito tempo, mas é legal.
Para ela a palavra “legal” não definia aquela cena. Era simplesmente lindo. Haven caminhou até a
janela e pressionou sua mão contra os vidros embaçados; sua barriga estava leve enquanto seus olhos
se enchiam de lágrimas. Ela se lembrou de sua mãe, a visão dela dançando sobre a neve. Aquele era
o lugar em que ela costumava se divertir; o lugar para onde se transportava quando sonhava. Agora
Haven compreendia e também queria ir até lá.
Alguém pigarreou atrás dela e a jovem se virou para ver que todos já estavam reunidos. Havia
dezenas de presentes de todos os tamanhos e formatos sob a árvore, que agora estava decorada com
papel brilhante e grandes bolas. Ela se sentou no sofá, com os nervos à flor da pele enquanto olhava
para todos. Carmine hesitou por um momento, mas logo se sentou ao lado dela.
DeMarco distribuiu os presentes e Haven ficou surpresa ao ver que ele colocou dois deles bem na
frente dela. O nome de Dominic estava num deles; ela olhou para o segundo e viu uma letra não
familiar.
– Celia. – disse Carmine, no mesmo instante em que ela leu o nome no cartão.
O presente de Dominic era uma caixa cheia de utensílios de arte, tintas, papéis e lápis de cor; o de
Celia era um porta-retratos vazio. Surpresa pela generosidade de Celia, Haven nada pôde fazer além
de sussurrar um agradecimento. Ela se sentiu quase uma garota normal olhando os outros abrindo
seus presentes; era como se ela fosse uma simples adolescente apreciando as pequenas coisas da
vida. Sentir-se parte daquela família aqueceu seu coração.
Apesar disso, ainda havia nela um sentimento de culpa. Quando olhou para a sala e viu o chão
tomado por papéis de presente e a mesa cheia de pratos com biscoitos, ela sentiu como se tivesse
traído sua própria mãe. Lá onde ela estava, não havia doces, risos, família, neve ou amor.
Ela estava tão perdida em seus pensamentos que não reparou que a sala já estava vazia, até que
Carmine apertou seu joelho. Ela deu um pulo, assustada, e ele olhou para ela sem entender.
– O que há de errado?
– Eu só estava pensando na minha mãe.
Carmine colocou o braço ao redor dela e a puxou em sua direção.
– Eu também sinto falta da minha.

Tess e Dia chegaram alguns minutos mais tarde e todos se reuniram na sala de estar enquanto
Haven ficou parada na porta. DeMarco e sua irmã riam juntos de algum segredo sussurrado, e Tess
estava sentada no colo de Dominic, sendo calorosamente abraçada por ele. Dia contava uma história
que fazia Carmine dar risada. O amor naquela sala era tão puro e poderoso que os olhos de Haven
ficaram anuviados.
Carmine olhou para ela e bateu a mão no assento para que se juntasse a ele.
– Por que estava parada ali sozinha?
– Acho que é o hábito. – ela respondeu – Estou acostumada a ficar do lado de fora, só observando.
– Bem, vamos quebrar esse hábito. Você pertence ao lado de dentro, comigo.
Ela olhou para ele, sorrindo, antes de perceber por sobre o ombro do rapaz um par de olhos
escuros observando-a. Aquilo a deixou paralisada. Era o doutor DeMarco, e ele não parecia mais
estar se divertindo.
– Hora de brincar na neve!
Todos se levantaram imediatamente ao ouvir as palavras de Dominic, mas Haven continuou
sentada enquanto todos saíam da sala. Celia deu risada.
– Não vai se juntar a eles?
– Eu devo? – Haven perguntou olhando para o doutor DeMarco e aguardando instruções, mas ele
permaneceu calado, sem qualquer expressão no rosto.
– Se quiser – Celia respondeu –, mas precisará se vestir apropriadamente.
– Sim, senhora.
Ela subiu as escadas e encontrou Carmine, que já esperava por ela. Haven colocou mais algumas
roupas e pegou seu casaco. Ela vestia tantas camadas que teve dificuldade para descer as escadas.
Todos foram em direção à porta de trás e Dominic logo se atirou no chão, jogando neve para todos os
lados. Ele fez bolas de neve para atirar em Carmine, e Haven ria enquanto ele as devolvia.
Rapidamente a brincadeira saiu de controle. Haven se abaixava enquanto Dia corria de um lado para
outro, mas as duas sempre desviavam-se por pouco. Tess não teve a mesma sorte e foi logo atingida
no peito.
Dia caminhou até onde Haven estava abaixada, passando a mão na neve, e tirou fotos. Ela podia
sentir o frio através das luvas, o ar gelado em seu rosto. Ela observava a neve escorrer pelos dedos,
cativada pelo modo como ela se desfazia quando fechava a mão.
Aquele peso no coração diminuiu. Por alguns instantes ela permitiu que sua culpa diminuísse.
Carmine caminhou até ela e perguntou.
– Quer dar uma caminhada, tesoro?
Ela assentiu com a cabeça e seguiu os passos do rapaz. Chegaram até as árvores; Carmine pegou a
mão de Haven e a levou em direção ao riacho. Ele parou a uns trinta centímetros de onde a água
jorrava. No rosto, uma expressão de saudade. Ela olhou para ele, que com certeza sentiu que estava
sendo observado, pois sorriu um segundo depois.
– Gosta de algo que está vendo?
Ela respondeu.
– Você sabe que a resposta é sim.
Eles ficaram parados sob as árvores, de mãos dadas, e dois esquilos passaram correndo. Haven
ficou olhando enquanto um perseguia o outro pela neve, antes de ambos subirem na árvore e pularem
num galho. Ela se abaixou, percebendo o que estavam fazendo, mas Carmine não foi rápido o
suficiente. No momento em que ele olhou para cima, um dos esquilos se encostou numa pilha de neve,
que caiu direto no rosto do rapaz.
– Filho da puta. – ele xingou, soltando a mão dela para tirar a neve do rosto. Ela deu risadas ao
vê-lo irritado e ele se virou pra ela – Achou alguma coisa engraçada?
Ela mordeu o lábio para segurar a gargalhada. Porém, quando conseguiu se controlar, os esquilos
vieram correndo pela árvore novamente e fizeram com que mais neve caísse sobre Carmine.
Um brilho travesso surgiu nos olhos do jovem quando Haven riu novamente. Ela se virou para
correr quando ele se moveu em sua direção, reconhecendo a mesma expressão do dia que usou a
máquina de lavar louça. Contudo, não conseguiu ir muito longe e tropeçou em alguma coisa. Ela caiu
com o rosto na neve e imediatamente sentiu o frio tomar conta de seu corpo.
– Viu? – disse Carmine – É isso o que acontece quando você ri de mim.
Ela se virou e, sem perder tempo, atirou uma bola de neve no peito dele.
– E é isso o que acontece quando você ri de mim.
Ele deu risada e a ajudou a levantar.
– Agora você está coberta de neve.
Ela deu de ombros.
– É só água.
– Só água? Esse gelo pode te causar feridas na pele, deixar você gripada e até mesmo causar uma
pneumonia. Merda, você pode sofrer de hipotermia. Muitas coisas podem acontecer. Você pode até
perder um dedo do pé.
– Carmine, eu nasci prematura numa cocheira de cavalo, e sobrevivi. Passei muito tempo sem ver
a luz do sol, e sobrevivi. Apontaram uma arma pra minha garganta e também sobrevivi. É só água
gelada… Eu vou sobreviver.
– Então, você está me dizendo novamente que é uma sobrevivente?
– Sim, e como acabei de ganhar um dicionário ainda não tive tempo de arrumar outras palavras pra
dizer isso.
– Seguir em frente. – ele disse – Continuar vivendo. Permanecer viva.
– Essas não seriam definições?
– Sinônimos, definições… é a mesma coisa. É apenas um detalhe técnico.
Olhando para ele, Haven mais uma vez teve de controlar o riso.
– Não acho que essa seja a palavra que está buscando.
Ele a ignorou.
– Sabe que eu também nasci prematuro? Algumas semanas. Minha mãe sempre desejou um monte
de filhos, mas ficamos só nós dois mesmo. Nunca compreendi o motivo.
A voz dele era melancólica. Haven se aproximou e colocou os braços ao redor do pescoço dele.
– Talvez eles tenham percebido que tinham alcançado a perfeição com você e que simplesmente
não precisariam de outros filhos.
– Estou bem longe de ser perfeito, Haven. – ele retrucou – Aliás, tenho mais defeitos que
qualidades.
– Sim, você tem defeitos, mas isso faz parte do que te faz maravilhoso. Você é perfeito. Perfeito
para mim. – ela ficou na ponta dos pés e o beijou suavemente, cochichando no ouvido dele – Além
disso, com defeitos, sem defeitos, com qualidades ou sem qualidades… Isso provavelmente é apenas
um detalhe técnico também.
O riso de Carmine aqueceu sua pele gelada.
Capítulo 24

Vincent estava de pé na sala de estar, vendo os jovens brincando na neve. Ele não conseguia se
lembrar da última vez em que vira os dois rapazes felizes ao mesmo tempo. Por vários anos ele viu o
mais novo em um eterno estado de desconforto; a alma dele parecia destruída e seu coração, partido.
Vincent culpava a si mesmo por isso, por não ter feito mais para aplacar seus medos.
Seu filho se parecia tanto com Maura, mas Vincent falhara com ele há muito tempo.
Celia ficou de pé ao lado do irmão.
– Carmine estava tocando piano esta manhã.
– “Sonata ao Luar”?
– Não. – Vincent conseguiu sentir o sorriso em sua voz – “Bate o Sino”.
– Interessante.
– É, muito interessante. – ela disse – Não posso acreditar que não me contou!
Ele sabia perfeitamente ao que ela estava se referindo só pelo seu olhar.
– E o que queria que eu lhe dissesse? Que meu filho é um idiota?
Celia deu-lhe um cutucão pela lateral, com o cotovelo.
– Não o chame assim. Ele gosta dela.
– Ela é uma novidade para ele. – disse Vincent – Mas isso logo ficará para trás e então ele seguirá
em frente.
– Por favor, tenha dó. Nem você acredita no que está dizendo.
– Sempre se pode torcer, não é?
Ela balançou a cabeça.
– Eles estão felizes juntos.
– São dois idiotas. – Celia o empurrou novamente. Ele deu alguns passos e olhou para a irmã
quando esta agarrou seu braço – Muito bem, e o que pretende fazer a respeito?
– Não tenho ideia. – era a mais pura verdade; ele não fazia ideia de como lidar com aquela
situação – Eu pensei em mandá-la pra Chicago.
– Nós teríamos ficado com ela. – Vincent olhou para Celia com ceticismo e ela sorriu – Eu sei que
de algum modo eu teria conseguido convencer Corrado.
Vincent duvidava que mesmo ela fosse capaz de fazê-lo se envolver naquilo. Há anos ele se
recusava a interferir e Vincent não podia culpá-lo. Foi um desastre.
– Isso não importa agora. Perdi a oportunidade quando ela se apresentou.
– Vincent, você é um idiota se acha que algum dia teve uma oportunidade.
Ele não respondeu. Não havia nada a dizer. A irmã estava coberta de razão, mas ele se negava a
admitir aquilo.
Ele já sabia há algum tempo o que estava acontecendo. Ele temeu o pior desde a primeira manhã
da jovem naquela casa, até ouvir o que o filho lhe disse ao soltar o pulso de Haven. Foi uma palavra
simples, comum para a maioria das pessoas, mas poderosa para pessoas como eles. Algo que
Carmine não dizia desde que tinha oito anos e era ingênuo em relação aos problemas da vida; mas,
naquela manhã, ele dissera aquela palavra de um jeito tão casual, normal, que Vincent ficou
imaginando se o rapaz sabia o significado.
A palavra era desculpe.
Algo que nem o próprio Vincent conseguia dizer. A irmã costumava falar que ele era um bom
homem, um sujeito decente com um coração cheio de compaixão; Maura teria dito o mesmo. Ela
jamais percebera o demônio que se escondia dentro dele. Ninguém percebera.
Quando sua esposa foi levada dos seus braços, a escuridão tomou conta dele. Foi tomado e
consumido pelo ódio e pela culpa. Não importava quantas pessoas ele tivesse matado em sua busca
por vingança, sua sede por sangue nunca passou. Aquela jovem tímida de cabelos castanhos, de quem
seu filho mais novo aprendera a gostar, quase morrera nas mãos de Vincent, por conta de sua
necessidade de se vingar.
DeMarco se afastou de Celia e sentou-se, esfregando o rosto, frustrado. Celia sentou-se de frente
para ele e riu.
– É tão engraçadinho o modo como eles se acham astutos. Isso me faz lembrar de você e…
– Pare. – ele disse. Celia interrompeu a frase no meio e fez um sinal com a mão, como se fechasse
a boca com um zíper – Não há nada de engraçadinho nessa situação.
– Ah, Vincent, tenha dó. Além disso, por que você não pode deixar as coisas acontecerem?
– Você sabe o porquê. – ele respondeu – Você não pode honestamente acreditar que é uma ideia
inteligente deixar os dois juntos.
Celia olhou para o irmão.
– Essa não deveria ser uma decisão deles?
– Eles não sabem de nada.
Ela ergueu uma sobrancelha.
– Bem, talvez você devesse explicar. Conte a ele a verdade.
DeMarco sorriu de um jeito amargo.
– A verdade, Celia? E a que verdade você estaria se referindo? Quer que eu conte a ele tudo,
mesmo a parte que irá machucá-lo? Ele se parece muito comigo agora e você precisa considerar a
possibilidade de ele surtar. Carmine e eu quase não conseguimos nos relacionar do jeito que as
coisas estão, e isso poderia arruinar o pouco que temos. É isso o que quer?
– Sabe que não é.
– Certo, então quer que eu lhe diga apenas parte da verdade que possibilite que os dois fiquem
juntos, mas não posso enganá-lo dessa maneira. É tudo ou nada.
Ela franziu o cenho.
– Gostaria que houvesse um modo.
– Eu sei. – ele disse – Tenho tentado encontrar um meio-termo em tudo isso, mas não consigo ver
uma luz no fim do túnel. Eu sei o que deveria fazer, porém, a ira que isso provocaria contra nós seria
grande demais para enfrentar. Isso sem mencionar que eu estaria atirando a pobre garota aos lobos.
E, se isso acontecesse, sequer consigo imaginar do que Carmine seria capaz para ajudá-la.
– Você não pode ficar eternamente se perguntando “e se…”, Vincent.
– Eu não paro de pensar neles. – retrucou – Quase não durmo à noite, pensando em como um
detalhe foi capaz de mudar tudo. E se eu não tivesse levado Maura comigo naquele final de semana?
E se tivéssemos ido mais cedo? E se tivéssemos ido mais tarde? Por que tínhamos de estar ali,
naquele lugar e naquele exato momento?
– Se aquilo não tivesse acontecido, aquela garota lá fora já estaria morta. Você está salvando a
vida dela e ela está curando seu filho.
Vincent balançou negativamente a cabeça.
– Se não estivéssemos lá, Celia, meu filho não precisaria ser curado.
Ele jamais esqueceria o dia em que tudo começou, e como se sentiu dirigindo pela primeira vez
por aquela longa estrada vazia no meio do deserto. Vincent estava péssimo, suando sem parar. O
carro em completo silêncio, exceto pelo barulho do motor. Maura sabia que ele detestava quando ela
ficava sem falar com ele. Ele preferia que ela gritasse em vez de ficar sem abrir a boca, olhando pela
janela do carro, sem qualquer expressão no rosto.
DeMarco não fazia ideia de que enquanto segurava firme no volante, tudo conspirava para que
aquele dia jamais fosse esquecido.
– Maura, se não disser alguma coisa vou acabar explodindo. – ela respirou fundo e continuou
calada – O que quer que eu faça, hein? É minha responsabilidade!
Seu temperamento explosivo fez com que ela respondesse de modo crítico:
– É nosso aniversário de casamento. É Dia dos Namorados!
– Eu sei disso, mas eles não se importam. Quando meu pai chama, eu tenho que ir.
Ela sabia, quando ele fez seu juramento, que ele teria que estar presente sempre que a famiglia o
convocasse, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, 365 dias por ano.
Vincent diminuiu a velocidade do carro quando chegaram à saída da rodovia que os levaria até a
propriedade dos Antonelli. Ambos saíram do carro quando chegaram na casa, mas Maura ficou
parada ao lado do veículo. Vincent foi até a varanda e bateu à porta. Nesse momento eles ouviram um
grito alto. Ao se virar, ele viu uma garotinha frágil correndo na direção de Maura. Era magra como
um palito de dente e mal alcançava a altura do joelho; os cabelos delas estavam sujos, pareciam tufos
de pó. Ela parecia um ratinho de esgoto coberto de sujeira.
A menina nem percebeu a presença de alguém no caminho e trombou de frente com Maura, sem
sequer diminuir. Maura quase se desequilibrou, e a menina caiu no chão. Ela enrugou o narizinho sujo
ao ver aquela pessoa em seu caminho.
– Meu Deus, você está muito sujinha, garotinha. – disse Maura.
A menina olhou para si mesma e perguntou:
– Onde?
Maura deu risada e se abaixou.
– Você está completamente suja.
Os negócios naquele dia não demoraram mais que trinta minutos para serem resolvidos, mas
aquela meia hora mudaria tudo para sempre. A pequena garota invadira sua vida e tudo se virou de
cabeça para baixo.
Diante da insistência de Maura, Vincent acabou perguntando sobre a menina na semana seguinte,
mas Frankie o informou que ela não estava à venda, por nenhum valor. Ele não iria negociar. Vincent
achou que Maura esqueceria aquilo, mas a criança se tornou uma obsessão para ela.
Ele, no entanto, manteve-se indiferente a tudo aquilo, vivendo numa concha de ignorância. Ele era
uma boa pessoa, mas a esposa havia passado toda sua vida usando uma máscara sobre o rosto. Não
fazia ideia do que ela era capaz de fazer. Mas deveria ter se preocupado em saber.
Ele deveria saber que ela veria aquilo como uma segunda chance.
Vincent se levantou.
– Quando eles entrarem, diga a ela para ir até o meu escritório.
– Quem?
– Você sabe quem, Celia.
Antes de se virar, viu quando a irmã fez um movimento negativo com a cabeça.
– Ainda não compreendo por que nunca diz o nome dela.

Vincent estava digitando um e-mail quando ouviu uma batida delicada na porta, que se abriu
suavemente. Ela entrou no escritório. Era uma garota firme, do tipo que sabe guardar segredos. Muito
parecida com a esposa dele, nesse aspecto. Aquele pensamento o fez sentir como se tivesse recebido
um forte golpe no estômago.
Ele acenou com a mão para que ela se sentasse.
– Está se divertindo, criança?
– Sim, senhor. Obrigada.
– Ótimo. Posso lhe fazer uma pergunta?
– Claro.
– Antes de eu trazê-la para esta casa, lembra-se de ter me visto alguma vez?
Ela enrugou o nariz e ele sorriu involuntariamente. Aquilo o fez lembrar do olhar que ela dera para
Maura naquele dia.
– Não, senhor – disse, hesitante.
– A primeira vez que eu a vi, você tinha seis anos. – ele disse – Bem, na verdade você disse seis à
minha esposa, mas só ergueu quatro dedos.
Ela ficou surpresa.
– Sua esposa?
– Sim, minha esposa. – ele disse – Suponho que também não se lembre dela.
– Sinto muito, senhor.
– Não precisa se desculpar. – ele retrucou – De qualquer modo, a razão pela qual a chamei foi
porque tenho algo para você.
Ele abriu a gaveta da escrivaninha e retirou de lá uma fotografia e a empurrou até Haven.
– Vi sua mãe há algumas semanas, enquanto estava viajando a negócios, e tirei uma fotografia.
A jovem agarrou a foto com as mãos trêmulas e deslizou o dedo indicador pela silhueta da mulher.
– Obrigada por me mostrar, senhor.
– De nada. Bem, era isso que eu queria com você, portanto, pode voltar para a festa. – ela ficou de
pé, olhou para a foto rapidamente antes de esticar o braço para devolvê-la. DeMarco acenou
negativamente a cabeça – Fique com ela. Foi por isso que Celia lhe deu um porta-retrato vazio.

Carmine saiu do chuveiro enrolado apenas numa toalha e ficou surpreso ao ver Haven sentada na
beirada de sua cama. Ela segurava uma foto e estava completamente concentrada naquela imagem.
– O que é isso?
Ela o encarou com os olhos vermelhos.
– Minha mãe.
Uma sensação de pavor tomou conta dele.
– Sua mãe? Aconteceu algo com ela?
– Não, é uma foto dela. Seu pai me deu essa noite.
– Caramba, isso foi muito legal da parte dele. – ele passou a mão nos cabelos molhados e se
sentou ao lado dela. Esticou a mão para tocar na fotografia, mas a jovem automaticamente a segurou
mais firme – Só quero vê-la de perto, beija-flor. Vou te devolver.
Ela sorriu envergonhada e a entregou a ele.
Ele olhou para a foto de uma mulher bem magra, de cabelos curtos, de pé em frente a uma grande
casa de madeira. Ao lado havia um estábulo com várias cocheiras velhas; também havia uma estufa
atrás dela e um galpão de armazenamento.
Haven repousou a cabeça no ombro dele.
– Agora você sabe de onde eu vim.
– Não posso acreditar que eles faziam você dormir no estábulo.
– Não era tão ruim.
– Não era tão ruim? Há muito mais pra se ter na vida do que coisas não tão ruins. E quanto a ser
feliz?
– Felicidade não é nada mais que boa saúde e uma memória ruim.
Ele franziu a testa.
– O quê?
– Albert Schweitzer disse isso.
Ele revirou os olhos.
– Você até que é bem sabichona, sabia?
– Obrigada. – ela agradeceu de um jeito genuíno – Ninguém nunca me chamou de esperta até hoje.
– Prego.
Ela o encarou.
– Prego? Para pendurar algo na parede?
Ele riu.
– Prego quer dizer “de nada” em italiano.
– Ah. – ela voltou a se concentrar na foto – Por que você não tem uma fotografia de sua mãe?
– Eu tenho, mas é difícil olhar para elas.
Haven sorriu suavemente.
– Aposto que ela era linda.
– Claro que era. – ele disse de um jeito divertido – Afinal, ela me fez.

Vincent ficou sentado em silêncio no seu escritório por alguns instantes e então voltou a abrir a
gaveta. Ele retirou dali algumas coisas e se ateve numa pequena foto que estava no fundo. Ela
estivera ali por anos; as laterais já estavam amassadas e a imagem desbotada, embora raramente
recebesse a luz do dia.
Ele olhou para a foto de sua esposa e sentiu uma forte dor no peito. Desejava desesperadamente
que ela estivesse ali, ao lado dele, pois entre todas as pessoas no mundo, somente ela seria capaz de
lhe dizer o que fazer. Ela saberia o que dizer, como consertar as coisas. Ela sempre tinha as respostas
certas, mesmo que não fossem aquelas que Vincent gostaria de ouvir.
Levando a mão dentro da camisa, ele puxou uma corrente que trazia no pescoço e, meio que sem
perceber, começou a mexer com a argola de ouro que estava pendurada ali. Era igual àquela que
ainda trazia no dedo. Nunca tivera a coragem de retirá-la.

Carmine puxou a cadeira para que Haven se sentasse na sala de jantar, então deu a volta e se
sentou na frente dela. Tess e Dia também se sentaram ao lado de Haven; Dominic e Celia, ao lado de
Carmine. Vincent ocupou a ponta da mesa, abaixou a cabeça e fez uma prece como de costume.
Todos contaram histórias sobre férias e festividades e Haven ouviu tudo com muita atenção,
absorvendo cada palavra. Seus olhos brilhavam e um sorriso se abriu em seu rosto. Era um momento
estranho, mas quando Carmine olhou ao seu redor, tudo parecia estar certo, como se todos realmente
devessem estar ali. Ela pertencia àquela família, a ele, e algum sopro do destino a havia enviado
para lá.
Ele não se importava com o que ela dissera; felicidade era mais que boa saúde e memória ruim.
Aquilo ali era felicidade. Era ela e ele e aquele momento. Albert Schweitzer que se foda. Ele bem
que podia ir pro inferno. A felicidade existia de verdade.

Depois do jantar, Haven e Carmine subiram e foram para o quarto dele. Ela colocou os braços em
torno do pescoço dele, enfiou os dedos nos cabelos encaracolados e o puxou em sua direção, dando-
lhe um beijo apaixonado. Pego de surpresa, no início ele resistiu, mas acabou aceitando e a
empurrando para a cama. Ele então tirou a camisa e a atirou no chão, antes de se deitar sobre a
jovem. Ela ajeitou os quadris, pressionando seu corpo contra o dele. Carmine suspirou quando
aquele movimento inesperado o deixou arrepiado.
Ele a queria mais do que qualquer outra coisa na vida. Ele queria tê-la para si, sentir seu sabor e
explorar seu corpo. Ele queria transar com ela, mas não podia. Haven não era o tipo de garota que
alguém simplesmente fode. Ela era o tipo de mulher com quem se faz amor e, por mais que ele
quisesse isso, não sabia direito como agir.
Ele se afastou dos lábios dela; sua voz firme contrariava o que seu corpo dizia.
– Precisamos parar por aqui.
– Parar?
– Sim, parar. – ele hesitou, pensando, quando é que eu me tornei a voz da abstinência sexual? –
É que nós, você sabe…
Ele não sabia, mas ela assentiu.
– Tudo bem, Romeu.
– Romeu?
– Como em Romeu e Julieta. Eles vêm de lados opostos, mas se encontram no meio do caminho.
Existe um amor proibido entre nós, não é?
– É, mas nós não vamos nos matar no final, Haven, portanto, essa aí é a única coisa em comum.
Além disso, Romeu é um idiota. Escolha outro exemplo.
– Que tal o Shrek?
Ele franziu a testa.
– Shrek? Jura? Ele é um ogro.
– Shrek e Fiona pensavam que eram diferentes, mas não eram.
Ele até flertou com a ideia, mas se lembrou que ela os estava comparando com um desenho.
– Não, outro.
– Titanic? Rose e Jack não deviam ficar juntos.
– Está falando sério? Ele morre no final. Isso dá azar.
Ela ficou em silêncio por um instante, deslizando os dedos pelo abdômen do rapaz e pela cicatriz
que tinha ali.
– E que tal se fôssemos apenas Haven e Carmine? Não sabemos o final da história, mas podemos
torcer pra que tudo dê certo.
– Gosto disso. – ele disse – Além do mais, há uma razão para não sabermos como a história
termina.
– Qual?
– Ela não termina.
Capítulo 25

Haven abriu a porta da secadora e enfiou todas as roupas úmidas dentro dela, escutando enquanto
todos conversavam no hall. Celia tinha um voo para Chicago em poucas horas e o doutor DeMarco
iria viajar com ela por alguns dias. Eles estavam se despedindo, então a jovem preferiu ficar na
lavanderia, considerando que não seria adequado impor sua presença num momento familiar.
Foi então que ela ouviu uma batida fraca na porta, virou-se e se deparou com Celia. Haven ficou
tensa no momento em que a senhora a abraçou.
– Foi ótimo conhecê-la.
– Digo o mesmo, senhora.
– Quero que me chame de Celia, querida. – ela retrucou – Tenho de ir antes que Vincent comece a
reclamar, mas não podia ir embora sem me despedir de você.
Haven ficou tocada pelo fato de aquela senhora se preocupar tanto.
– Muito bem, Celia.
A tia dos rapazes passou a mão nos cabelos da jovem antes de sair. Haven se virou para a
secadora e Carmine veio procurá-la depois que todos haviam saído.
– Dia quer saber que horas vamos chegar esta noite.
– Você acha mesmo que eu deveria ir?
– Mas é claro que sim. Por que não iria?
– Bem, é que seus amigos estarão lá. É bem provável que eu só complique as coisas pra você.
A verdade é que aquela noite era véspera de Ano-Novo e ela não queria passar a noite toda
afastada de Carmine.
– Ei, não chame a si mesma de complicação. – ele disse – E a resposta é sim, eu quero que você
venha comigo.
– Tudo bem. – ela respondeu com suavidade.
Ele passou a mão no rosto, frustrado.
– Tudo bem? Vamos entrar nessa de novo? Se não quiser ir, apenas diga. Eu ficarei com você em
casa. Só achei que seria legal sairmos essa noite. E, honestamente, todos sabem a nosso respeito, até
porque, Lisa tem uma língua bem comprida. Maldita schifosa.
– O que significa schifosa?
Ele levou a mão à cabeça e disse.
– Uma garota feia.
– E você realmente a considera feia, ou só está dizendo isso porque está com raiva dela?
– Bom, eu acho que ela dá pro gasto.
Haven sorriu para si mesma.
– Eu irei com você essa noite. Só não quero deixar o meu namorado constrangido na frente de
todas as schifosas com quem ele vai pra escola.
Ele olhou para ela como se estivesse dissecando cada palavra.
– Essa é a primeira vez que me chamou assim.
– De que jeito?
– De “meu namorado”.
Ela hesitou.
– Não é isso o que somos?
– Sim. – ele respondeu – É que você nunca reconheceu isso antes. Estava começando a imaginar se
você estaria envergonhada com isso.

A festa de Ano-Novo estava acontecendo num campo aberto nos arredores de Durante; uma antiga
fazenda de algodão que fora abandonada. O celeiro ainda estava lá, vazio e caindo aos pedaços. O
mato estava alto pela falta de uso do local.
Haven olhou para o lugar de um jeito peculiar enquanto Carmine estacionava ao lado de dúzias de
outros automóveis. Já era tarde e estava bem escuro, mas Haven pôde ver uma enorme fogueira a
distância. Carmine pegou na mão dela e ambos caminharam pelo campo. Algumas pessoas o
cumprimentaram, mas o jovem parecia distraído. Então eles avistaram Dia e seguiram à esquerda em
sua direção. Ela estava sozinha.
– Já volto, ok? Fique aqui. – ele disse.
Ele pareceu triste ao soltar a mão dela antes de se afastar.
Aquela era a razão pela qual Haven havia considerado não ir à festa desde o início.
– Ficarei bem sozinha, Dia. Pode ir se divertir.
Dia deu risada.
– Me divertir? Acho que não. Não curto esse tipo de coisa. Prefiro ficar aqui com você.
A resposta de Dia surpreendeu Haven, que ficou aliviada ao ouvir.
Ambas conversaram um pouquinho e várias pessoas passavam por elas como se não estivessem
ali. De repente Haven ouviu um riso familiar. Ela se virou e deu de cara com Dominic, antes que ele
apoiasse o braço em seu ombro. Tess parou bem na frente delas e seu namorado ofereceu um copo a
Haven.
– Aqui está, uma bebida pra você. Não aceite nada de nenhum desses outros filhos da puta que
estão aqui.
Ela pegou o copo e cheirou o líquido.
– Ah, obrigada.
– Bem, eu não sabia direito o que preferia, então peguei um pouco de chope. Imaginei que não
gostaria. O fato é que ninguém aqui gosta desse treco, mas todos bebem do mesmo jeito. – ele
levantou seu copo e bateu levemente contra o dela – Bem-vinda ao clube.
Ele voltou a aproximar a bebida da boca e tomou um gole. Haven experimentou o líquido e fez
uma careta ao considerá-lo amargo, mas bebeu mesmo assim e relaxou quando todos começaram a
brincar. Ela riu ao lado de todos, quase se sentindo encaixada no grupo.
– Olá, Dom.
Uma voz soou atrás deles. Dominic se virou e levou Haven consigo. Ela tropeçou nos próprios pés
ao ver Nicholas.
Os dois rapazes se cumprimentaram.
– E aí, como vão as coisas?
– Nenhuma novidade. – Nicholas respondeu olhando para Haven – E você, resolveu trocar de
namorada?
Dominic riu.
– Não, só estou tomando conta dela para que nenhum urubu se aproxime.
– Certo, eu ouvi os comentários da Lisa mais cedo. – Nicholas se virou novamente para ela – Foi
bom reencontrar você, Haven.
Ela ficou surpresa que ele tivesse se mostrado gentil mesmo depois do que acontecera quando se
viram da primeira vez.
– Digo o mesmo.
Ele sorriu e, antes de partir, perguntou:
– Diga, o que dois tomates disseram um pro outro ao atravessarem a rua?
Ela ergueu os ombros, sem saber a resposta.
– Olha o carro! “Ploc”. Onde? “Ploc”.
Ela não entendeu, mas Dominic deu risada.
– Bem, eu só queria dizer olá. – disse Nicholas – A gente se vê mais tarde.
Ele foi embora e Haven imediatamente olhou para Dominic, perguntando, curiosa.
– Você ainda gosta dele, mesmo depois de ter dito coisas ruins a respeito de sua mãe?
Dominic balançou positivamente com a cabeça.
– Nicholas não devia ter falado daquele jeito, mas ele queria provocar Carmine. Antes de você
aparecer, Pé de Valsa, só havia um jeito de magoar ele: falando de nossa mãe.
Dominic se voltou para o resto do grupo, levando-a consigo. Todos conversaram e beberam suas
cervejas. Pouco tempo depois, ela ouviu uma risada próxima, tão perto que ficou arrepiada. Carmine
se encostou e colocou os lábios próximos à orelha de Haven.
– Oi, beija-flor.
Haven sentiu a respiração de Carmine em seu pescoço, assim como o cheiro de álcool e menta,
que a deixou um pouco tonta. Já não conseguia se concentrar no que estava acontecendo, pois a
eletricidade que fluía do corpo dele a atingia com força. Ela se sentiu leve, tonta e extremamente
feliz.
Ela teve medo de cair, mas ele a puxou por trás e apoiou o queixo sobre a cabeça dela, enquanto
lhe oferecia o que estava em seu copo. Ela experimentou. A cerveja quente era tão amarga quanto a
que ela já estava bebendo.
Dominic rosnou.
– Ei, eu não te disse pra não aceitar bebidas de ninguém?
– É só o Carmine. – ela respondeu.
– E daí? Ele poderia drogar você, sabia?
– Podia mesmo. – Carmine brincou – Eu já fiz isso, você se lembra? Aliás, duas vezes. Esqueci
que deixei você meio tontinha daquela vez também. Isso sem mencionar quando te deixei bêbada.
Jesus, sou um sujeito horrível. Eu corrompi você.
Ela queria discordar, mas só conseguia suspirar e se entregar aos braços dele enquanto ele a
beijava no pescoço. A sensação de sua boca sobre a pele dela fazia desaparecer qualquer
pensamento coerente de sua cabeça.
– Você está tremendo. – ele disse – Vamos dar uma volta.
Carmine a segurou pela mão, entrelaçando os dedos, e a levou por entre os carros estacionados,
sem dizer uma palavra. Ele a beijou e ela respondeu abrindo os lábios enquanto ele a empurrava
contra o Mazda. Interrompendo o beijo por um instante, ele a segurou forte e ela soltou um grito de
surpresa quando ele a sentou sobre o capô do veículo. Ele se encaixou entre as pernas dela e ela
passou os dedos pelos cabelos do jovem. Os lábios de ambos voltaram a se encontrar.
O coração de Haven se acelerou com aquela proximidade. O corpo dele estava pressionado contra
o dela, irradiando calor e aquecendo cada milímetro. Ele se afastou por um instante para ganhar
fôlego e suas testas se tocaram, relevando um leve suor no rosto dele. O nariz dela roçou no dele no
momento em que o encarou e viu aquele verde radiante. Olhando para aqueles olhos, ela podia ver a
emoção que se acumulava ali; ela sentia que o mesmo florescia dentro dela. Para Carmine, ela não
era uma posse, tampouco um título. Ela era apenas uma garota.
Uma jovem que de repente se sentiu como se estivesse flutuando.
– Eu te amo. – aquelas palavras simplesmente escorregaram da boca dela, com extrema facilidade,
como se já tivessem sido pronunciadas milhões de vezes. Mas esse não era o caso. Ela nunca o havia
dito antes. Porém, ao ouvi-las de sua própria boca, cada célula de seu corpo sabia que aquele
sentimento era verdadeiro. Até aquele momento ela não sabia o que era amor, mas agora estava
claro. Amor era aquela sensação estranhamente deliciosa que sentia em suas entranhas sempre que
Carmine estava por perto; era o brilho no olhar de quando ria; o calor no corpo dela ao ouvir as
palavras que ele dizia. Amor era alegria; era segurança; era verde. O amor era simplesmente ele.
Aquele rapaz lindamente repleto de falhas que a fez brilhar.
Ele olhou para ela enquanto aquelas palavras pairavam no ar entre ambos.
– E eu amo você. – disse na forma de um sussurro. Haven, entretanto, sentiu aquelas palavras
poderosas, profundas dentro de sua sua alma – Per sempre.
– Per sempre? – ela indagou.
Sorrindo, ele passou o dedo indicador suavemente sobre os lábios dela.
– Quer dizer “para todo o sempre”.
Naquele exato momento Haven escutou um assobio forte, seguido de uma forte explosão no ar.
Haven se abaixou e tampou os ouvidos, enquanto Carmine continuou a olhar para ela.
– São só fogos de artifício.
Ele se encostou à porta do carro, ao lado dela, e a abraçou, apertando-a contra seu peito. As
explosões continuaram e ela pôde ver as cores no céu. Ela se contraiu diante das luzes vibrantes no
céu e Carmine deu risada.
– Viu, são apenas fogos de artifício, tesoro. Não há nada a temer. Eles não vão te machucar.
Os dois ficaram admirando as luzes em silêncio enquanto a multidão que estava ao lado da
fogueira deu início à contagem regressiva. Carmine a pegou pelo braço e a colocou de frente para
ele. Os fogos continuavam a explodir a distância. Quando a contagem chegou a zero, ele se inclinou
em direção a ela e a beijou.
– Você faz alguma ideia do quanto é importante pra mim? – perguntou, depois de afastar-se de seus
lábios – Estou conseguindo me reencontrar por sua causa. Nunca achei que isso pudesse acontecer.
Minha mãe costumava falar sobre o destino, e acho que você representa o meu… Você é o meu
destino. Você foi trazida a mim por uma razão; para que nós salvássemos um ao outro. Você não era a
única que precisava ser salva, Haven. Eu estava me afogando e você me estendeu a mão; me salvou.
– ele fez uma pausa – Feliz Ano-Novo, meu beija-flor.
Ela riu.
– E você falou tudo isso sem dizer um só palavrão.
Ele piscou algumas vezes.
– É, acho que sim. Que… se foda!
Carmine abraçou a jovem com força e ambos apreciaram o silêncio que pairava no local. Os fogos
haviam chegado ao fim e a multidão se acalmara, portanto, tudo o que restava ali eram os dois no
meio da escuridão. Ele podia sentir o cheiro de seu xampu, doce e feminino, e tudo em que conseguia
pensar era o quão sexy ela parecia. As outras garotas já não o atraíam em suas minissaias e rostos
maquiados. Sua bela ragazza, com suas unhas mordiscadas e bochechas coradas, era mais sensual
que todas, uma vez que sua beleza não era fabricada, mas real. Ela era real.
– Nunca tinha pensado num futuro antes de você surgir em minha vida, Carmine. – ela disse depois
de alguns segundos – Mas quero que nós dois tenhamos um, juntos.
– Não faz ideia do quanto fico feliz em ouvir isso. – ele disse, tirando o cabelo dela do rosto e
deslizando a língua no pescoço da jovem e no lóbulo de sua orelha – Será que posso guardar você só
pra mim? – ele sussurrou, rindo e se afastando dela assim que aquelas palavras saíram de sua boca –
Mas o que há de errado comigo? Estou falando como o Gasparzinho.
Ela o olhou curiosa.
– Gasparzinho?
– É, Gasparzinho, o fantasminha camarada – ele esperava que ela soubesse do que estava falando,
mas ela apenas o encarou – Não importa. É um filme idiota. Acho que você iria gostar dele.
Ela inclinou a cabeça e o olhou de um jeito estranho, indagando.
– O que está dizendo?
Ele ficou mudo.
– Não… Eu não quis dizer isso. Não estava sugerindo que gostaria do filme porque ele é idiota,
nem porque você fosse idiota. – ele rosnou – Você não é! A frase não saiu como deveria. Sabe que
não penso assim. Aliás, você teria que ser muito boba para não perceber o quanto é esperta e
inteligente. – ele fez uma pausa – Quer saber, acho melhor eu calar a boca.
Os cantos dos lábios de Haven se curvaram para cima formando um sorriso e ela se encostou
novamente no rapaz.
– Obrigada!
– Por saber quando calar a boca?
Ela riu.
– Não, por sempre se preocupar com meus sentimentos. Sei que isso não é algo com o que esteja
acostumado. Nunca tive alguém que cuidasse de mim.
– Sempre farei o que for melhor pra você, Haven. – ele disse – Tenho pensado muito sobre isso.
Depois que eu completar dezoito anos e puder ter acesso direto à minha poupança, nós poderíamos
desaparecer e fugir de tudo isso. Só acho que não vai dar pra levar o Mazda, porque ele tem um chip
GPS.
– Um chip GPS. – ela sussurrou.
– Sim. – respondeu Carmine, olhando para o relógio – Você gostaria de voltar pra casa?
Haven balançou afirmativamente a cabeça. Ambos entraram no carro e ele logo saiu pela
estradinha que os levaria à rodovia. Haven se virou para a janela e começou a olhar para as árvores.
O silêncio da jovem o preocupou.
– O que há de errado?
– Pensei que soubesse.
– Soubesse do quê?
– Que também tenho um chip implantado em mim.
Ele a olhou, confuso, e imediatamente abaixou o volume do rádio.
– O que está querendo dizer?
– Como o seu carro. Tenho um chip de GPS instalado em mim.
Carmine pisou fundo nos freios assim que ouviu aquelas palavras. Os pneus cantaram e o
automóvel parou bruscamente. Assustada e com os olhos arregalados, Haven segurou firme no painel.
– Tem um chip instalado em você? Onde?
– Está no meu corpo, sob a minha pele.
– Não, você só pode estar brincando. Seu pai colocou um chip em você, como se fosse um
cachorro?
Ela acenou negativamente a cabeça.
– Não foi o meu pai quem fez isso, foi o seu.
Carmine piscou algumas vezes.
– Você tem certeza disso?
– Sim, tenho certeza. Ele enfiou uma agulha nas minhas costas. Também enfiou um cotonete na
minha boca. Eu não sabia o porquê, mas ele fez isso. Ele disse que jamais conseguirei escapar. É
impossível.
Carmine sentiu o estômago revirar. Ele iria vomitar.

Vincent saiu do elevador no quinto andar do hotel Belden Stratford e caminhou em direção ao seu
quarto no final do hall. A luz fraca fazia bem para seus olhos cansados. Ele não conseguia se lembrar
da última vez que tivera uma boa noite de sono. Sua jornada contínua de trabalho estava começando a
pesar.
Exausto pela constante mudança de fuso, tudo o que ele mais queria era descansar um pouco. As
próximas dez horas de sua agenda estavam surpreendentemente livres, e ele não tinha a menor
intenção de fazer qualquer outra coisa senão ficar deitado numa cama. Estava cansado de viajar, de
trabalhar, conversar, pensar. Tudo o que queria agora era apreciar um pouco de paz, pelo menos uma
vez na vida.
No momento em que adentrou o quarto do hotel, seu telefone tocou e ele ficou surpreso ao ver que
era Carmine. Vincent se sentou na beirada da cama e atendeu.
– Não é um pouco cedo para você já estar de pé, filho?
Carmine suspirou e respondeu.
– Chama-se insônia, lembra? Nunca durmo.
Vincent conhecia bem aquela sensação.
– O que há de errado?
– Não há nada de errado. – ele respondeu – Um filho não pode ligar para o pai para desejar um
feliz Ano-Novo?
Vincent ficou surpreso. Carmine jamais ligara para ele para conversar casualmente.
– Bem, nesse caso, feliz Ano-Novo para você também, filho. Vocês passaram bem a noite de
réveillon?
– Sim, tudo correu muito bem, eu acho.
– Não se envolveu em nenhuma briga?
– Não. Ninguém foi parar no hospital dessa vez.
– Ótimo. – o pai respondeu, bocejando. O sol já começava a nascer lá fora – E o que vocês
pretendem fazer hoje?
– Ainda não sei. – respondeu o filho – Mas acho que poderá me dizer depois. Você sabe, né, por
causa do rastreador que colocou na Haven.
Aquelas palavras caíram como um raio na cabeça de Vincent. Demorou um minuto para que elas
fossem devidamente incorporadas.
– Ah, então ela te contou sobre isso?
– É, acho que ela mencionou alguma coisa. – ele disse – Ah, e ela também falou sobre o fato de
você ter passado um cotonete em sua boca. Ela não é, sei lá, nossa prima ou algo do tipo, é? Ou,
quem sabe, uma filha ilegítima? Você andou traindo a mamãe?
Vincent soltou um suspiro.
– Claro que não. Não há nenhum laço de parentesco.
A paz estava se esvaindo mais uma vez.
Capítulo 26

A primeira semana de janeiro passou rapidamente, pois logo os rapazes voltaram para a escola.
Haven ficou na cama um pouco mais naquela sexta-feira, antes de sair do quarto e caminhar pela
biblioteca. Ela levou um susto e levou a mão ao peito quando olhou para o topo da escada e viu
DeMarco parado ali com os braços cruzados.
Ele passara a semana toda em Chicago, portanto, era a última pessoa que Haven esperava ver ali.
Ela o encarou, imaginando quando ele teria chegado em casa, mas ainda mais curiosa para descobrir
o que ele estaria fazendo no terceiro andar. Algo dentro dela lhe dizia que havia alguma coisa errada,
principalmente depois que ele fizera aquilo com ela. Ela procurou por alguma emoção escondida e
percebeu um ar de aborrecimento em seu rosto. O monstro espreitava novamente.
– Bom dia, doutor DeMarco.
– Bom dia. – ele respondeu, com a voz fria e distante – Pegue seu casaco e desça.
O medo a consumia por dentro, mas ela tentou se manter no controle. Ele continuou a encará-la,
aguardando que ela lhe mostrasse que havia compreendido. Ela não sabia por que, mas não era como
se tivesse escolha. Se ele a mandasse ir a algum lugar ela simplesmente acatava, querendo ou não.
– Sim, senhor.
Ela suspirou fundo quando ele desapareceu e balançou negativamente a cabeça enquanto pegava
seu casaco. Haven enfiou as mãos no bolso e desceu as escadas, com as palmas das mãos suadas.
Seria aquele o fim de sua estada naquela casa? Estaria DeMarco cansado dela? O que ele planejava
fazer? Será que a venderia? E se ela jamais visse Carmine novamente?
Já prestes a ter um colapso, a jovem sentiu uma mão em seu ombro. Ela se contraiu e DeMarco
falou.
– Você parece especialmente nervosa hoje.
– Sinto muito.
DeMarco olhou para o relógio e disse.
– Vamos, não quero me atrasar.
A porta foi aberta e ela manteve a cabeça abaixada ao sair. Ele trancou a porta e ligou o alarme,
passando por ela em direção ao carro como se ela não existisse.
Haven olhou pelo retrovisor quando ele saiu com o carro e pouco a pouco viu a casa desaparecer
por trás das árvores. Soltando um suspiro, ela olhou para DeMarco desejando saber o que o havia
incomodado tanto. Porém, ela o olhou por tempo demais.
– É rude ficar encarando as pessoas. Se tem uma pergunta, faça. Se não for o caso, seja educada.
Não estou disposto a tolerar insolência no dia de hoje.
Ela não fazia ideia do significado daquela palavra, mas não pretendia dizer a ele.
– Eu só estava imaginando aonde estamos indo, senhor.
– Ao hospital. – ele respondeu, na mesma hora em que Haven identificou o prédio a distância. Ele
estacionou em uma vaga na frente do prédio e desligou o carro – Assim como no dia do jogo de
futebol, espero que você se comporte bem.
Ela permaneceu imóvel, observando através do vidro a placa em que estava escrito Dr. Vincent
DeMarco em letras azuis.
– Eu me comportarei, senhor.
Haven o seguiu dentro do prédio, acelerando o passo para não ficar para trás. Eles foram direto
para um elevador e, apesar de o trajeto não levar mais que trinta segundos, sua ansiedade triplicou
entre o térreo e o terceiro andar. Ela sabia que DeMarco não a machucaria em público, mas não era
fácil se manter racional confinada dentro de uma caixa com um homem perfeitamente capaz de feri-
la.
Ela suspirou aliviada quando a porta se abriu, e então o seguiu por um longo corredor. Olhando
para baixo, ela não reparou que ele havia parado até esbarrar nele. A jovem se contraiu, deu alguns
passos para trás e ergueu as mãos para se proteger. DeMarco ficou parado, com as mãos agitadas.
Ele chegou a cerrar o punho, mas lutou para manter o controle.
Retirou do bolso um molho de chaves, abriu a porta, acendeu a luz e mandou que ela entrasse.
– Sente-se, eu já volto.
Logo ela já não podia mais escutar os passos dele do lado de fora, então ficou ali parada, olhando
para a placa com o nome dele antes de observar o resto do consultório. Tudo parecia bem
organizado. Os livros estavam dispostos na estante e as pastas, bem arrumadas sobre a escrivaninha.
Não havia itens pessoais nem fotos de família; também não existiam canecas com inscrições do tipo
“melhor pai do mundo”. As paredes eram brancas e vazias, os móveis todos de madeira, exceto pela
cadeira de couro preto.
O lugar se parecia com a casa; estéril.
Ela se sentou numa das cadeiras e repousou os braços nos joelhos, cutucando as unhas. DeMarco
retornou e se sentou à escrivaninha, colocando seus óculos. Arriscou-se a olhar para ele e percebeu
que ele estava lendo um arquivo. Ele sentiu o olhar da jovem e suspirou de um jeito dramático.
– Pergunte de uma vez.
– Eu só estava pensando no motivo por que estamos aqui, senhor.
– Eu preciso retornar ao trabalho e você precisa de uma injeção. – ele disse, retirando um livro da
estante e o entregando a ela – Uma enfermeira logo cuidará de você, mas, fora isso, você passará a
maior parte do dia aqui. Então, isso poderá entretê-la, já que aparentemente agora sabe ler.

O consultório de DeMarco era bastante silencioso, exceto pelo som das páginas que
ocasionalmente eram viradas. Haven estava com as mãos agitadas enquanto o tempo demorava a
passar. Depois de algum tempo, alguém bateu à porta e DeMarco se levantou para atender.
– Boa tarde.
Uma mulher jovem e loira entrou sorrindo para o médico e disse:
– Feliz aniversário!
Haven ficou congelada. Ninguém lhe havia dito que era aniversário dele.
– Obrigado. – ele respondeu sem muito entusiasmo, virando-se para Haven – Vou buscar o almoço.
Antes de sair, ele cerrou os olhos como que lhe dando um aviso silencioso.
– Olá, eu sou a Jen. – disse a mulher, depois que ele já havia saído – É bom conhecer a jovem que
conseguiu fazer com que Carmine entrasse nos eixos. Como conseguiu isso, afinal?
Seu coração acelerou quando viu Jen pegar uma seringa.
– Não sei…
– Não dá pra explicar, não é? Aquele garoto costumava vir parar na emergência desse hospital, ou
mandar alguém para cá, pelo menos uma vez por semana, mas já se passaram meses desde a última
vez. O doutor DeMarco deve estar feliz. – ela fez uma pausa e sorriu – Agora vire-se e abaixe a
calça. Essa tem que ser aplicada no bumbum.
Haven seguiu as instruções, fechando os olhos quando a agulha atravessou sua pele.
– É difícil acreditar que agora o pior que Carmine é capaz de causar a alguém seja fazer com que
sua namorada tome uma injeção anticoncepcional.
Injeção anticoncepcional? Ela puxou as calças para cima e a porta se abriu. Era o doutor
DeMarco, trazendo consigo dois recipientes com comida e entregando um a Haven no momento em
que ela voltava a se sentar. A jovem abriu o recipiente e ficou olhando para a comida.
– Apreciem o almoço, vocês dois. – disse Jen – Mais uma vez, foi ótimo conhecê-la, Haven. Ah, e
não deixe que esses DeMarco deem muito trabalho a você. Às vezes é preciso mostrar a eles quem é
o chefe.
DeMarco sorriu ao ouvir aquelas palavras.
Jen caminhou em direção à porta, mas parou e disse.
– Além disso, já ouvi dizer que Carmine gosta de garotas safadas.
O humor desapareceu do rosto de DeMarco e mais uma vez sua expressão parecia irritada.
Quando a porta se fechou, Haven pegou o garfo, mas suas mãos tremiam.
– Coma! – ordenou DeMarco. Ela se contraiu diante do tom de sua voz e levou uma garfada à
boca, tão nauseada que quase não conseguiu engolir. Depois de uns dez minutos de tensão, enquanto
forçava a comida goela abaixo, ela colocou o garfo de lado, esperando que aquilo o satisfizesse.
Ele pegou o recipiente e o atirou no lixo. Em seguida, ela o viu pegar o telefone e discar um
número, colocando no viva-voz quando começou a chamar. Ela ficou assustada ao reconhecer a voz
do outro lado da linha.
– Alô? – atendeu Carmine – Por que está me ligando na hora do almoço?
– Preciso que venha até o hospital assim que sair da escola.
Depois de uma pausa, ele retrucou.
– Ei, não fui eu.
DeMarco suspirou.
– Não foi você o quê?
– Seja lá o que estiver pensando que eu fiz.
– Apenas venha ao meu consultório. Hoje não estou com paciência para suas gracinhas.
DeMarco desligou antes que o filho tivesse tempo de responder e voltou sua atenção para a jovem.
– Hoje é meu aniversário.
– Feliz aniversário, senhor – ela disse – Ninguém me disse nada sobre isso.
– Isso é porque não há nada para celebrar. Este pode ser o dia em que nasci, mas também é o dia
em que minha vida foi tirada de mim. Eu posso até pegar o meu carro e ir a algum lugar, mas isso não
significa nada. O que quer que me mandem fazer, eu tenho de fazer ou corro o risco de morrer. Você
conhecia essa faceta de minha vida?
Ela balançou negativamente a cabeça. De fato, ela não sabia de muita coisa. Carmine havia lhe
falado algumas coisas sobre o pai, mas nunca explicou a fundo. Ninguém o fizera.
DeMarco continuou depois de um momento.
– Já vi isso acontecer inúmeras vezes. Homens recebendo ordens para matar a própria família.
Eles seguiam as ordens ou eram mortos. Aquele senhor que esteve em minha casa? Ele é o meu
mestre, assim como, independentemente do que eu faça, você continuará me vendo como o seu.
Afinal, eu tenho o poder de mantê-la viva, assim como Sal tem o poder de me manter vivo. Não era
muito mais velho que Carmine quando me envolvi nisso; e era tão estúpido naquela época quanto ele
é agora. Ele não faz a mínima ideia sobre a confusão em que está se metendo; aliás, nenhum dos dois
tem noção.
Haven estava assustada demais para falar, então esperou que ele dissesse algo, mas, em vez disso,
ele pegou uma caneta. Ela imaginou que a conversa estava encerrada e voltou a se concentrar no
livro para passar o tempo, mas DeMarco falou novamente, deixando-a paralisada.
– Você está apaixonada por ele?
O livro escorregou da mão dela e caiu no chão.
– Por quem?
– Você sabe muito bem de quem estou falando – ele disse –, não se finja de boba comigo.
Uma profunda amargura tomou conta dela ao ouvir aquele tom de voz.
– Sim.
Ele pegou uma maleta preta e o coração da jovem disparou quando ele se moveu em direção a ela,
sentando-se na cadeira que estava ao seu lado. Ele retirou seu notebook e o colocou sobre a
escrivaninha para que ambos pudessem vê-lo.
– Carmine me perguntou se havia um chip instalado em seu corpo e eu não fiquei nada feliz com
essa pergunta.
– Eu… Me desculpe… não sabia que não deveria dizer nada.
– Não é por isso que estou furioso. Não me importa se ele sabe ou não. O que importa, e o que me
preocupa, é o fato de ele estar tão interessado. A única razão em que consigo pensar para esse
interesse é a possibilidade de ele estar considerando a ideia de fugir e levá-la daqui.
Ela congelou ao ver DeMarco abrir um programa em seu notebook.
– Não vou fugir daqui, senhor.
Ele fez um sinal para que ela ficasse quieta antes de digitar alguns números no aplicativo. Um
mapa surgiu na tela, com um ponto vermelho piscando no centro.
– O problema está no fato de você ter estado ao lado de alguns dos homens mais perigosos do
país. Por causa disso, vocês não se dão conta de situações potencialmente perigosas. Eu amo meu
filho, mas ele é volátil. Eu era exatamente como ele quando tinha essa idade, e sei o que pode
acontecer. Não sou um homem horrível. Tenho coração, e venho tentando deixar que as coisas sigam
seu rumo naturalmente, na esperança de que tudo se acerte no final, mas Carmine está cada vez mais
impaciente. Ele está indo fundo demais.
Ele apontou para o ponto vermelho na tela.
– É você. Não importa para onde vá, tudo o que tenho de fazer é abrir esse programa, digitar o
código e ele me dará sua posição exata. Fugir só fará com que alguém saia machucado, e não posso
deixar que isso aconteça. Eu tentaria explicar a Carmine, mas ele exigiria respostas que não posso
lhe dar. Se resolver fugir com meu filho, eu irei atrás de você e a matarei. Não quero fazer isso, mas
não posso sacrificar a vida dele. E se ambos forem estúpidos o suficiente para tentar desaparecer,
Carmine acabará se machucando no final.
Ela o encarou, assustada. A última coisa que desejava era que Carmine sofresse.
– Não gosto de esconder coisas do meu filho, mas a segurança dele vem em primeiro lugar. Até
porque, esses segredos dizem respeito a você.
Ele desligou o notebook e o colocou de volta na maleta antes de retornar à cadeira atrás da
escrivaninha. Haven ficou em silêncio, tentando absorver tudo o que ele lhe dissera. Muitas pessoas
já haviam se machucado por causa dela, e Carmine não poderia ser a próxima vítima. Ela não podia
permitir que aquilo acontecesse.
– Sei que é informação demais para digerir. – disse DeMarco – Tenho tentado a todo custo manter
meu filho longe desse estilo de vida. Quando entreguei minha vida à organização, jurei que eles
sempre viriam em primeiro lugar. Sal vê Carmine como um principe, um príncipe da Máfia, e se
descobrir que não quero isso para ele, Sal verá a mim como um traidor. Sabe qual é a punição para
isso no mundo em que vivo? O que acontece com pessoas que esquecem qual o lugar delas?
Ela se contraiu diante daquelas palavras.
– Morte.
– Então, você percebe a situação em que me encontro. Você está ajudando meu filho de maneiras
que eu mesmo não consegui, mas precisa perceber que também estou tentando ajudá-lo. Eu o estou
salvando de um perigo que ele próprio desconhece. O problema é que ainda não encontrei um meio
de impedir que alguém saia machucado; um jeito de ninguém ter que ser sacrificado.
Ele pegou sua caneta novamente e arrumou alguns papéis. O assunto estava encerrado. Haven o
observou por um momento antes de se abaixar e pegar o livro no chão.

Pouco tempo depois, a porta atrás de Haven se abriu e DeMarco rosnou.


– Carmine Marcello, quantas vezes teremos de discutir essa sua mania de entrar de repente sem
pedir permissão?
Haven se arrumou na cadeira, olhando para frente e sentindo um arrepio quando Carmine se sentou
ao lado dela.
– Eu já tinha sua permissão, afinal, foi você quem me chamou aqui.
O doutor DeMarco balançou a cabeça em reprovação.
– Entregue as chaves do seu carro.
Carmine ficou irritado.
– O quê?
– Mas o que acontece com vocês, crianças, sempre agindo sem pensar? Quero suas chaves agora.
– Vai começar com essa merda de novo?
– Filho…
Carmine retirou as chaves do bolso e atirou o molho sobre a mesa do pai. Elas caíram em cima de
uma pilha de papéis. DeMarco as colocou no bolso antes de entregar-lhe outro molho.
Confuso, Carmine olhou para o pai.
– Mas por que você está me dando as chaves de sua Mercedes?
– Porque ela não é sua.
– Mas do que você está falando?
– Imaginei que preferiria usar o carro de outra pessoa – disse DeMarco –, mas se prefere que ela
comece com um Mazda, pegue de volta suas chaves.
Carmine chacoalhou a cabeça e retrucou.
– Não estou entendendo merda nenhuma do que está dizendo.
– Olha como fala, rapaz! – esbravejou DeMarco – Se parasse de agir na defensiva entenderia que
estou lhe pedindo que ensine a jovem a dirigir.
Carmine arregalou os olhos.
– Mas que merda é essa agora? Você está zoando com a minha cara, né?
DeMarco rosnou mais uma vez.
– Às vezes eu tenho vontade de te dar uma porrada por causa dessa sua boca suja, filho.
– Você percebeu que usou um palavrão pra me corrigir porque eu usei um palavrão, certo? Que
tipo de modelo você é?
– Certamente não o tipo de que você precisa. Faça o que digo, não o que eu faço. Você é bom
demais para seguir meus passos.
– Bom demais pra ser um médico?
– Você sabe muito bem do que estou falando.
Uma súbita expressão de tristeza surgiu no rosto de DeMarco e isso deixou Haven surpresa. Até
aquele momento, ela nunca fora capaz de sentir nenhuma simpatia por ele. Agora, entretanto, ela
conseguia compreendê-lo; entender seus medos. Mas o que mais a deixava assustada era o fato de
que ambos desejavam exatamente a mesma coisa. Como seria possível? Ela não fazia ideia.
– Bem, não me parece assim tão ruim. – retrucou Carmine – Veja tudo o que conseguiu na vida.
– As aparências enganam, filho.
– É você quem diz. – ele resmungou – Mas, afinal, o que estamos fazendo no hospital? Implantando
merdas? Fazendo mais testes? Ou, deixe-me adivinhar: é um segredo, certo?
A expressão de irritação que Haven testemunhara mais cedo ressurgiu no rosto de DeMarco.
– É melhor vocês irem andando. Tenho pacientes que preciso ver.
O médico saiu do consultório, deixando Carmine e Haven sozinhos. Ambos ficaram sentados em
silêncio por alguns momentos depois que a porta se fechou atrás deles, então Carmine se levantou.
– Caramba, fiquei superassustado em ver você sentada aí. Por um momento imaginei que seria
necessário dar um soco nele, te agarrar pelo braço e fugir.
Aquelas palavras lhe fizeram lembrar de tudo o que DeMarco lhe dissera. Na semana anterior
Carmine havia dito que colocaria a segurança dela acima de seus próprios desejos, e agora ela
precisaria fazer o mesmo. Haven não queria que ele se machucasse, portanto, se isso significasse ser
totalmente leal ao doutor DeMarco, ela o faria por Carmine.
Ela preferia sacrificar a si mesma a vê-lo sofrer, por um instante que fosse, por causa dela.

Haven parou na calçada bem ao lado do banco do passageiro. Ambos ficaram ali em silêncio por
um segundo antes que ele perguntasse a ela.
– Ei, por que está parada aí? Você vai dirigir.
– Agora?
Ele balançou o chaveiro da Mercedes diante do rosto da jovem.
– É, por que não?
Haven pegou as chaves.
– Mas não faço ideia do que fazer.
– Eu te direi o que fazer. Vê esse negócio preto com um botão vermelho? Aperte o…
Antes que ele pudesse concluir a frase e dizer o que deveria apertar, a jovem pressionou o botão
vermelho. As luzes se acenderam e a buzina disparou. Ele pegou o dispositivo e o desarmou,
enquanto ela sorria sem graça. Aquela aventura seria um desastre se eles não pudessem sequer abrir
as portas sem disparar o alarme.
– Vê a figura de um botão com um cadeado aberto?
– Sim.
– Então, pressione o filho da puta. – ela o apertou e seu rosto se iluminou quando o carro
destravou. Ele sorriu diante da expressão orgulhosa no rosto dela – Muito bem, agora entre no carro,
mas não toque em nada.
Haven se sentou no banco do motorista e ele, ao lado dela. Carmine sorriu ao perceber o quão
longe o assento estava da direção. Ele logo utilizou os controles para ajustar a posição, de maneira
que ela conseguisse olhar por sobre o painel e alcançar os pedais.
Ela colocou o cinto de segurança e ergueu as sobrancelhas.
– Não vai colocar o cinto?
– Eu nunca uso cinto.
– Tudo bem, mas eu não faço ideia do que estou fazendo.
– Dirigir é muito fácil. – ele disse – Você não pode ser tão ruim.
– Então tá, farei o que me disser.
– Exatamente, você fará o que eu lhe disser. E eu digo: coloque a chave na ignição.
A jovem seguiu a instrução e ele ficou esperando que ela ligasse o carro, o que não aconteceu.
– Vai ficar aí parada ou ligar de uma vez esse carro?
Nervosa, ela o encarou.
– Você não me disse pra ligar.
Haven girou a chave e ligou o automóvel, mas continuou a segurá-la naquela posição.
– Jesus, solte a chave ou vai queimar o motor de arranque.
Ela afastou rapidamente a mão.
– Sinto muito.
– Tudo bem. – ele disse – Eu deveria ter dito, mas achei que já soubesse.
– Posso contar numa única mão o número de vezes que entrei num carro. Não entendo nada sobre
eles.
– Não pensei nisso. – ele ponderou – Veja, esse pedal aqui é o acelerador; esse outro aqui é o
freio; a gente usa pra brecar. Isso aqui é o câmbio; ele é usado pra mudar de marcha: o “R” escrito
nele é para dar ré; o “D” é para dirigir, seguir em frente; o “P” é pra parar. Esses são os espelhos
laterais e aqui está o retrovisor. Você usará eles para ver o que está ao seu redor, entendeu?
– Acho que sim. – ela respondeu – E todos esses sinais aqui?
– Pare quando vir aquelas placas vermelhas com a palavra “Pare”. Os demais não são tão
importantes. Ah, e se a luz do semáforo estiver vermelha você para. Se estiver verde, você continua.
Todo mundo faz isso.
– Mas e se estiver no amarelo?
– Bem, se estiver no amarelo você acelera pra passar antes que fique vermelho. Detesto esperar.
– Muito bem.
– Tudo certo, baby. Pode dar ré nessa vadia.
Haven colocou a mão no câmbio, acionou a posição “R” e respirou fundo antes de pisar no
acelerador. O carro deu um tranco para trás e subiu na calçada. Ela imediatamente pisou no freio e
parou de maneira abrupta. Carmine segurou firme no assento.
– Caramba, eu disse pra você pisar no acelerador, não pra enfiar o pé nele com toda força.
Pressione devagar.
Ela recolocou o carro na posição “D” e mais uma vez pressionou o acelerador. Eles então rodaram
pelo estacionamento até uma placa de “Pare.” Pela segunda vez ela apertou com força o pedal do
freio, dando outro tranco. Ficou parada e ele se tornou impaciente, imaginando por que ela não se
mexia.
– Ei, se não tem nenhum carro vindo você não precisa ficar parada. Pode seguir.
Ela bufou.
– E para onde eu devo seguir, Carmine?
– Ah, naquela direção. – disse, apontando para a esquerda.
Ela olhou para ambos os lados antes de girar o volante e pegar a estrada. Carmine se perguntou
por que ela não havia sinalizado, mas logo se lembrou de que não havia explicado isso a ela. Ela se
colocou na faixa correta, mas suas mãos tremiam sem parar no volante. Eles se aproximaram de uma
luz amarela e ele pensou que ela fosse parar. Porém, ela pisou no acelerador e passou pelo
cruzamento depois que ele já havia ficado vermelho.
– Você passou pela bosta do sinal vermelho, Haven! Vermelho significa “pare”!
– Mas você mesmo disse que eu deveria pressionar o acelerador quando estivesse amarelo.
– É, mas só se fosse possível passar antes de ficar vermelho, o que não foi o caso.
– E como eu deveria saber?
Ele não tinha uma boa resposta, afinal, como ela poderia saber se ele não foi claro com ela? Ele se
sentiu sem graça por ter perdido o controle, mas na sequência olhou pelo vidro da frente e percebeu
que ela estava indo direto para cima de uma caixa de correio.
– Cacete!
Ele levou as mãos ao volante e conseguiu girá-lo a tempo de desviar o carro. Somente o espelho
lateral raspou na caixa do correio. Haven pisou no freio e o carro deslizou e parou na lateral da
estrada.
Ele soltou o volante.
– Tudo bem. Vejamos se conseguimos tentar outra vez. Ficarei de boca fechada para não te distrair,
e você só presta atenção na estrada, ok?
Carmine não a estava ensinando da maneira correta; era difícil para ele ensinar algo que lhe
parecia tão natural. O rapaz colocou o cinto de segurança e silenciosamente acenou com a mão para
que ela prosseguisse.
Haven retornou à pista, mas não dirigiu nem cem metros quando deparou com uma placa que
mandava dar preferência aos carros da direita. Ele se lembrou que não havia explicado o significado
para ela, mas já era tarde demais. Ela passou pelo cruzamento a toda velocidade, sem parar.
Pneus cantaram e Haven deu um grito e pisou no freio, a opção errada quando se fecha outro
veículo. Ele mandou que ela voltasse a pisar no acelerador. Ela agarrou o volante com ainda mais
força e seus olhos se encheram de lágrimas.
– Pare nesse estacionamento à direita. – ele disse, quando os dois se aproximaram de uma
mercearia. Haven girou o volante e o carro deslizou, parando completamente torto e ocupando
algumas vagas. Uma lágrima escorreu pelo rosto dela. Carmine soltou o cinto e a abraçou.
– Eu acho que eu tornei as coisas bem mais complicadas do que precisavam ser. Talvez fosse
melhor que outra pessoa te ensinasse a dirigir.
– Por que preciso aprender?
– Para que possa sair sozinha. – ele disse – Além disso, é uma habilidade importante de se ter.
Você irá apreciar quando tentar de novo.
– Tentar de novo.
– Claro, como se nada tivesse acontecido, a partir do zero. Independentemente do quão difícil lhe
parecer.
– Você realmente acha que…?
– Eu tenho certeza!
– Então, eu não quero outra pessoa pra me ensinar. Quero você.
Ele riu.
– Sua memória deve estar ruim. Já esqueceu o desastre que sou como instrutor?
– Nós estamos aprendendo todas as coisas juntos, você lembra? E dirigir não deve ser diferente.
– Ok, então. – ele concordou – Vamos tentar mais uma vez. Ah, e pensando melhor, quando vir a
luz amarela no semáforo é melhor reduzir a velocidade e parar, tá bom?
Capítulo 27

Haven estava de pé na cozinha, de frente para o refrigerador, pensando no que iria cozinhar. As
palavras do doutor DeMarco se infiltraram em sua mente, ecoando como uma música que se repetia
sem parar. Ela desejava uma vida ao lado de Carmine, mas ambos teriam de encontrar um meio de
garanti-la sem fugir. Seria possível? Ela não tinha certeza. Porém, mesmo sabendo que seria um
grande risco, ela desesperadamente esperava que isso acontecesse.
Haven deu um gritinho quando sentiu mãos em torno de sua cintura. Ela estava tão perdida nos
próprios pensamentos que sequer percebeu a aproximação de Carmine.
– Que tal ficarmos bêbados essa noite, tesoro?
– Por quê?
– Porque é sexta-feira? Alguém precisa de uma razão pra ficar bêbado? Prometo que me
comportarei como um gentleman. – ele então se inclinou e deu uma mordidinha no pescoço dela –
Bem, talvez não exatamente um perfeito gentleman.
Ela sorriu sem se preocupar em lhe dar uma resposta.
– Você sabe, nós temos ar-condicionado. – ele disse – A porta dessa geladeira está aberta há tanto
tempo que já estava imaginando que estivesse tentando refrigerar a cozinha ou algo assim.
– Estou pensando no jantar.
– Que ótimo, porque estou faminto. – ele disse, pegando um copo no armário. Ela o tirou da mão
dele e ele a olhou confuso, erguendo os ombros. Haven pegou um pote de cerejas e uma garrafa de
Coca-Cola e preparou-lhe uma bebida. Ele provou.
– Você é boa demais pra mim.
– Bem, você pode me retribuir mais tarde. – ela disse em tom de brincadeira.
– Se quiser subir agora, eu retribuirei agora mesmo.
– O jantar tem de estar pronto às sete, o que significa que só tenho meia hora para preparar alguma
coisa. – ela explicou, retirando um pacote de linguiça do freezer. Em seguida ela o colocou para
descongelar no microondas, mas Carmine pegou o pacote e o enfiou no freezer novamente.
– O que está fazendo? Vai acabar me metendo em encrenca!
Ele não respondeu, apenas pegou o celular e procurou o número que desejava. Assim que
atenderam, ele pediu que trouxessem pizza no caminho para casa. Encerrou a ligação com um sorriso
orgulhoso.
Haven revirou os olhos.
– Nós ainda não vamos lá pra cima.
– Tudo bem, mas ainda quero beber essa noite.
Haven escutou um carro se aproximando e viu o Mazda estacionar na frente da casa. O doutor
DeMarco abriu a porta e saiu do carro trazendo consigo algumas caixas de pizza.
– Ele chegou.
A porta da frente se abriu e Carmine suspirou exasperado, soltando-a. DeMarco caminhou até a
cozinha e colocou o jantar sobre o balcão antes de olhar para Carmine, soltando um resmungo quase
inaudível. Haven olhou para Carmine com um sentimento de incerteza enquanto ele tomava sua
bebida.
Os dois trocaram novamente de chaves e DeMarco seguiu em direção à porta antes que alguém
pudesse reagir. Ele foi até o carro, parando ao lado do espelho do passageiro, que ostentava um
grande arranhão na pintura brilhante. Virou-se para a casa e olhou para Haven pela janela. Ela temeu
que ele fosse retornar à cozinha para puni-la, mas ele apenas entrou no carro e saiu.
Haven logo se virou para Carmine e disse.
– Acho que agora eu quero ir lá pra cima.
– Podemos fazer isso. – ele respondeu, pegando a pizza que estava em cima do balcão – Mas ainda
posso aprontar, certo?
Ela sorriu diante da expressão infantil em seu rosto: os lábios curvados para baixo formando um
biquinho.
– Claro que pode.
– E você vai beber comigo, não vai?
– Se é isso o que deseja, sim.
– Quero fazer tudo com você – ele disse –, até coisas que talvez não devêssemos fazer juntos.
– Como dirigir, por exemplo?
Ele riu.
– Sim, vamos nos divertir e esquecer que você quase me matou hoje tentando aprender.

Haven levou seu copo à boca e provou a bebida doce com sabor de fruta. O gosto de álcool pôde
ser sentido na garganta, mas não estava tão forte a ponto de modificar o sabor.
– Isso é bom. O que é?
– Sweet-Tart. Você sabe, refrigerante de laranja, suco em pó da Kool-Aid e Everclear, uma bebida
com alta concentração de álcool. – Haven não sabia, mas gostava do sabor mesmo assim, então
tomou mais um gole, enquanto Carmine pegou uma garrafa de bebida alcoólica e serviu uma dose
para si mesmo.
Ele estava sem camisa e Haven ficou impressionada com os músculos de seu abdômen quando se
movimentava. Foi então que ele passou a mão áspera sobre a cicatriz que tinha do lado; seus longos
dedos atraíram a atenção de Haven.
Carmine se abaixou para olhar sob a cama e retirou de lá as caixas de sapato, olhando dentro delas
antes de empurrá-las de volta para o lugar onde estavam. Ele encontrou o que estava procurando, um
console de jogos e controles. Sem dizer uma palavra, ele ligou o equipamento na TV.
– O que é isso? – ela perguntou.
– O bom e velho Nintendo. – respondeu.
– E você vai jogar agora?
– Nós vamos jogar. – ele a corrigiu, pegando um dos jogos e o colocando no console – Ou, pelo
menos, vamos tentar.
Ele ligou o aparelho e o jogo abriu. Em seguida ele se sentou no chão com as pernas afastadas e
bateu com a mão no espaço vazio para que ela também se sentasse ali. Ela o atendeu e logo recebeu
um controle nas mãos, assim como algumas explicações sobre como funcionava. Ficou observando
enquanto ele navegava pela primeira tela.
– Digamos que o Mario é um rito de passagem. Você não é ninguém até que tenha aprendido a
jogar. – o tom dele era sério, mas, ao mesmo tempo, jovial e inocente. Isso a fez sorrir – Pegue,
termine essa parte.
Ela pegou o controle.
– Mas e se eu matar ele? Ele pode morrer, não pode?
– Ele sempre volta à vida. Não é como se tivéssemos de planejar um funeral ou coisa assim.
Foram três tentativas até que ela tivesse a coordenação necessária para fazer o personagem
começar a saltar obstáculos. Carmine pegou as bebidas e voltou a se sentar, puxando o corpo dela em
direção ao próprio peito.
Durante as próximas horas o ciclo se repetiu algumas vezes. Ela matava o personagem e Carmine
completava a fase para que ela pudesse tentar a sorte na próxima. Haven já conseguia sentir o álcool
em seu corpo; seus membros estavam meio adormecidos e a cabeça, um pouco zonza. Ela achou
delicioso os dois terem a oportunidade de fazer algo tão infantil e tranquilo. Ele estava lhe dando a
chance de vivenciar experiências que ela não tivera.
Ela estava jogando uma fase em que havia muitas tartarugas, quando Carmine aproximou o nariz de
seu pescoço. Distraída, ela deixou que o personagem caísse de uma base e, frustrada, soltou o
controle no chão.
– O fato de eu beber te incomoda? – perguntou Carmine, antes de tomar um longo gole direto da
garrafa de vodca.
– Você não bebe o suficiente para que eu me sinta incomodada. – ela respondeu –Você não é um
bêbado maldoso como o mestre Michael.
– Gostaria de matar aquele sujeito. – Carmine retrucou – Você não faz ideia do quanto eu quero
que ele sofra.
Ela reprovou com a cabeça.
– Você não pode fazer isso.
– E por que não? Na boa, você não se preocupa mesmo com aquele sujeito, né?
– Não, mas me preocupo com você. E não quero que você machuque as pessoas. Não quero que
você seja um matador.
Carmine a puxou ainda com mais força, beijando o topo de sua cabeça.
– Sabe de uma coisa, eu nunca soube o que queria da vida. Ir para Chicago sempre me pareceu a
coisa certa a fazer, mas agora que tenho você na minha vida, começo a ver as coisas de um jeito
diferente. O que você quer importa pra mim, portanto, se você não quer que eu me envolva nesse tipo
de coisa, então terei de pensar sobre isso. Afinal, será a sua vida também e… bem… você importa
muito mais pra mim que qualquer um deles.
Ela sorriu enquanto as palavras dele adentravam sua mente.
Carmine desconectou o jogo e o guardou novamente na caixa.
– Eu estava curiosa para saber o que tinha nessas caixas. – ela disse – Imaginei que fossem mais
revistas pornográficas.
Ele riu.
– É onde eu guardo meu velho eu.
Ela se sentou na cama com a bebida nas mãos enquanto ele pegava outra caixa menor e procurava
algo dentro dela. Ele retirou de lá um porta-retratos preto e o entregou a Haven, que o pegou com
cuidado. Nele havia a foto de uma mulher ruiva, cujos olhos eram da mesma cor que os de Carmine.
Haven não conseguia respirar. Era o rosto da mulher que ela vira repetidas vezes em seus sonhos;
o anjo vestido de branco, que brilhava sob a luz do sol. Ela ficou emocionada e sussurrou.
– Ela é um anjo.
Carmine pegou a moldura das mãos dela, porém, em vez de guardá-la novamente na caixa, ele a
colocou sobre a escrivaninha.
– É, um anjo. – disse em voz baixa – Agora mais do que nunca.

Naquela noite Haven teria vários sonhos. A noite estava escura e não havia nuvens. O brilho da lua
iluminava o ambiente em sua mente. Ela estava de volta a Blackburn; era uma garotinha com os
cabelos despenteados, tentando ver alguma coisa de dentro do estábulo.
– O que está acontecendo, mamãe?
– Nada que tenha a ver com você, garotinha. – disse sua mãe em voz baixa, enquanto tentava
tranquilizar Haven – Vá se deitar.
– Mas não estou com sono. – Haven argumentou – Por favor, mamãe, quero ver.
– Não está acontecendo nada. – ela respondeu – Já está tudo acabado.
Haven desistiu de tentar sair e, em vez disso, sentou-se no chão e ficou espreitando por entre as
pernas. Ela mal conseguia ver o contorno de um automóvel com o porta-malas aberto. No chão havia
um corpo, imóvel.
– É a senhora Martha! – ela exclamou.
– Silêncio. – sua mãe ordenou – Não quer que eles a escutem.
– Desculpe, mamãe. – Haven tentou sussurrar, mas não conseguia evitar. Ela observou enquanto a
senhora Martha era colocada no porta-malas. Os olhos dela estavam fechados, como se estivesse
dormindo.
– Aonde a senhora Martha está indo?
– Para longe daqui. – respondeu a mãe.
– E é muito longe daqui?
– Muito. – ela disse – Há um mundo inteiro lá fora.
– E a senhora Martha está indo pra esse mundo lá fora?
– Não, a senhora Martha está indo para o Paraíso.
– O que é Paraíso?
A mãe suspirou.
– O Paraíso é o melhor lugar que alguém pode imaginar. Lá as pessoas não machucam umas às
outras. Lá existe paz. É um lugar lindo e todos são maravilhosos.
Haven sorriu, entusiasmada.
– E algum dia eu irei para lá?
A mãe acenou afirmativamente com a cabeça.
– Algum dia um anjo virá para levá-la.
De repente a escuridão se transformou em uma forte luminosidade. Haven protegeu os olhos. Ela
conseguia sentir o sol queimando seu corpo enquanto corria; o ar frio se chocava com sua pele suada.
Ela fingia estar voando, como a senhora Martha fizera em seu caminho para o Paraíso na noite
anterior, mas colidiu com algo em seu caminho.
Caindo no chão, mal conseguia compreender o que via contra a luz ofuscante.
– Você está muito sujinha, garotinha.
A visão se tornou mais clara quando a pessoa se ajoelhou e olhou para ela: era a imagem da pura
beleza e compaixão; de puro amor. Até aquela ocasião, Haven jamais vira um anjo, mas tinha certeza
de que um acabara de se colocar bem à sua frente.
Capítulo 28

O quarto estava totalmente claro quando Carmine acordou. A cabeça dele doía muito e os olhos
ardiam. Ele piscou algumas vezes ao se sentar, percebendo que estava sozinho.
Esticou-se um pouco, enfiou dois comprimidos de Tylenol goela abaixo para se livrar da ressaca e
então saiu do quarto. Assim que chegou ao segundo andar, ele deparou com Haven e o pai, de pé, um
ao lado do outro. Os olhos de ambos se encontraram no mesmo momento em que Vincent percebeu a
presença do filho.
– Estão faltando roupas limpas em seu armário novamente? – perguntou.
– Não, por quê?
– É a segunda vez seguida que pego você andando pela casa praticamente nu.
Carmine olhou para o próprio corpo.
– Bem, meus “documentos” estão devidamente cobertos.
– Sim, fico feliz que pelo menos isso você tenha aprendido ao longo dos anos.
Carmine deu risadas.
– O que foi? Acha que é jovem demais para se tornar vovô?
– Bem, para falar a verdade, sim, eu acho. – respondeu Vincent – Só tenho quarenta e um anos,
afinal. Mas, honestamente, me preocupa tanto a possibilidade de você pegar uma doença quanto de
engravidar alguém. Por algum tempo, cada vez que você me perguntava “o que é isso?”, eu temia que
você fosse expor seu pênis e me mostrar algo suspeito.
Carmine deu risada.
– Obrigado pela preocupação, pai, mas te asseguro que o meu pau está em perfeitas condições.
Vincent balançou a cabeça, desaprovando, e olhou para Haven.
– Pode ir, criança. Tenho certeza de que tem coisas mais importantes a fazer.
Ela desceu as escadas feito um raio enquanto Vincent se voltou para Carmine.
– Vá se vestir.
– Mas por quê? Não estou pelado.
– Eu não disse que estava pelado, mas tenho o dia livre, portanto, imaginei que pudéssemos sair
para praticar tiro ao alvo, como nos velhos tempos.
Carmine o olhou sem acreditar.
– Vincent DeMarco achou um espaço livre em sua agenda para passar algum tempo com seu
filhinho?
Vincent suspirou.
– Vá logo antes que eu mude de ideia.
Rindo, Carmine subiu até o quarto para se vestir. Ele estava no banheiro escovando os dentes
quando Haven entrou.
– Você e o doutor DeMarco vão sair?
O rapaz acenou confirmando enquanto enxaguava a boca.
– Vamos brincar com nossas armas.
– Você estará seguro, não é?
– Claro, ele não vai atirar em mim ou algo do tipo. – respondeu – Eu já o testei algumas vezes e
uma vez ele até apontou pra mim, mas não conseguiu puxar o gatilho.
Aquele comentário não a tranquilizou, como agravou a expressão de pânico no rosto da jovem.
– Ele apontou uma arma pra você?
– Relaxe, é provável que ele já tenha apontado uma arma pra todo mundo em algum momento. –
ele disse, terminando de se arrumar – Vai sentir minha falta, tesoro?
– Sempre sinto sua falta quando não está aqui.
Carmine vestiu o casaco.
– Espere mais alguns meses e já estará de saco cheio de mim.
– Nunca.
– Ótimo ouvir isso, mas como é mesmo que as pessoas dizem? A distância só aumenta a paixão?
Minha saída significa que você me amará ainda mais quando eu retornar.

A área de prática de tiros ficava a alguns quilômetros fora da cidade, em Swannanoa Valley. O
campo, que tinha cerca de 350 metros de comprimento, possuía um pavilhão repleto de alvos de
tamanhos variados. Eles frequentaram o lugar algumas vezes, mas não haviam retornado desde o
incidente envolvendo Nicholas…. Ou seja, desde que Carmine foi embora da cidade.
Carmine sempre tivera talento para atirar, entretanto, a mira de Vincent era impecável; sua mão era
tão firme quanto a de um atirador profissional. Ele não precisava se esforçar para que suas balas
atingissem o que ele quisesse.
Vincent recarregou seu rifle M1 Garand, depois de usar todas as balas, e o deu a Carmine.
– Gostaria de tentar usá-lo?
Carmine pegou a arma do pai e hesitou um pouco antes de entregar a ele sua pistola. Depois de
mirar, o jovem atirou uma única vez e sorriu orgulhoso ao atingir o alvo.
– Isso foi pura sorte. – disse Vincent, carregando a pistola e atirando. Ele atingiu um alvo que
estava ainda mais longe, descarregando todas as balas do tambor.
– Seu exibido. – Carmine retrucou, dando outro tiro e mais uma vez atingindo o alvo sobre ele –
Viu? Não foi pura sorte. Foi uma demonstração de habilidade.
– É, devo admitir que você não é nada mau. – Vincent concordou – Nicholas pode atestar isso.
Carmine revirou os olhos enquanto o pai trocava as armas novamente. Ele atirou exatamente no
alvo, mas o clima agora estava mais pesado, repleto de palavras não ditas. Vincent disparou mais
algumas vezes antes de abaixar a arma e olhar fixamente para frente. Foi então que Carmine
percebeu… Aquilo não era apenas um passeio casual. Não era uma oportunidade para que passassem
algum tempo juntos. Havia algo na mente de Vincent que seria compartilhado com Carmine antes que
ele pudesse retornar para casa. Se é que Carmine teria permissão de voltar para casa.
– Era sobre isso que queria falar? – disse Carmine, sabendo que teria que ser o primeiro a dizer
algo – Nicholas?
– Não. – respondeu Vincent – A menos, é claro, que ele seja a razão para você andar tão bem
humorado ultimamente.
Carmine olhou para o pai no momento em que ouviu aquelas palavras. Ele sabia.
– Não pude evitar. – disse o rapaz, com a voz trêmula por conta do nervosismo – Não é que eu
tenha planejado isso. Apenas… aconteceu.
Vincent se manteve em silêncio. A falta de uma resposta deixou Carmine ainda mais tenso.
– Ok, tudo bem, eu sei que você tem uma opinião formada sobre isso; não precisa ficar calado,
pode falar. Me diga o quanto você está enojado pelo fato de o seu próprio filho se rebaixar tanto a
ponto de se apaixonar por uma escrav… – ele não conseguiu terminar a frase.
– O fato de você pronunciar ou não essa palavra não muda em nada a situação dessa jovem, ou
quem ela é. – disse Vincent.
Carmine esperou que o pai completasse.
– Isso é tudo o que tem pra me dizer? Eu já te disse que posso suportar. Diga que está errado; que
não pode dar certo porque pessoas como nós não se misturam. Diga que ela jamais poderá me amar.
– É isso o que você quer ouvir?
Carmine estreitou os olhos.
– Não.
Vincent olhou casualmente para o relógio como se não se sentisse afetado por aquele diálogo.
– Por que não vamos almoçar?
Carmine ergueu uma sobrancelha.
– Seria mais fácil me matar aqui.
– Matar você? Que tipo de pessoa você acha que eu sou?
– Caralho, eu pensei que você fosse o tipo de pessoa capaz de machucar uma garota inocente. É
bom saber que eu estava errado a esse respeito.
– Sou um homem que comete erros, e que não espera ser perdoado por eles, mas também sou um
homem que espera que seus filhos sejam respeitosos. – disse DeMarco, de maneira afiada – Se
quiser discutir a situação usando toda a raiva que existe entre nós, podemos fazê-lo, mas eu
sinceramente esperava que pudéssemos conversar como adultos.
Carmine hesitou por um momento.
– Tudo bem.
– Agora, você vai se desculpar por jogar isso na minha cara?
O filho retrucou.
– Eu me desculparei por dizer quando você se desculpar por ter feito.

Vincent e Carmine se sentaram assim que entraram no restaurante, e ambos pediram a primeira
opção no cardápio. Depois que o garçom trouxe a comida, Vincent se virou para o filho.
– Quero que me ouça atentamente, Carmine. O que vocês dois têm um pelo outro é inofensivo por
enquanto, mas não quero ouvi-lo falar sobre isso. Você pode se importar com ela, mas lembre-se: ela
não é sua. É provável que você me odeie por dizer isso, mas eu controlo essa situação. Na primeira
vez em que ela não atender uma ordem minha, eu colocarei um ponto final nisso tudo.
Carmine contraiu os músculos do maxilar no momento em que sua ira se revelou, mas Vincent
levantou a mão e impediu a explosão.
– Não vou machucá-la, mas a mandarei embora se forçar a situação. Não vou lhe dar minha
bênção, mas também não irei impedi-los. Sou esperto o suficiente para escolher minhas batalhas e,
nesse momento, tenho coisas mais urgentes para tratar.
O rapaz olhou para o pai.
– Parece justo.
Vincent se voltou para a comida.
– Só fico imaginando se você sabe no que está se metendo.
– Bem, digamos que eu esteja na expectativa de que o filho da puta que a possui não pretenda
manter ela para sempre.
Os olhos de Vincent se concentraram em Carmine.
– Bem, essa é sem dúvida uma informação valiosa, mas não foi isso que eu quis dizer. Por que
você acha que pedi que você a ensinasse a dirigir, Carmine? Por que acha que eu lhe pedi que a
levasse ao supermercado?
– Para tentar nos separar.
Aquela resposta irritou Vincent, que soltou o garfo.
– Você não ouve nada do que lhe digo? Acha que eu tenho tempo para ficar brincando com as
pessoas? Acredita mesmo que sua mãe teria se casado comigo se eu fosse essa pessoa tão má?
– Eu não sei. Não tenho ideia do que se passava na cabeça da minha mãe, mas tenho certeza de que
ela não ficaria feliz com o que está fazendo com Haven.
– Você era muito jovem quando ela se foi e, francamente, sua visão está distorcida. Fiz muitas
coisas ao longo dos anos que iriam desapontar sua mãe, mas comprar essa menina não seria uma
delas.
– Comprar? Acha mesmo que minha mãe aceitaria isso? Você é doente!
Vincent deu um murro na mesa.
– Quem você pensa que é para falar assim comigo? Olhe a maneira como trata todo mundo!
– Tá, e de quem é a culpa? – perguntou Carmine, empurrando a cadeira e se levantando – De quem
é a culpa por eu ter me tornado assim? De quem é a culpa pelo fato de eu ter assistido à morte da
minha mãe?
Vincent olhou para o filho.
– Não é minha.
Uma voz foi ouvida atrás deles quando o gerente se aproximou. Outras pessoas estavam olhando
para eles, desconfortáveis com aquela situação. Vincent tirou algum dinheiro da carteira e o jogou
sobre a mesa antes de sair.

Os dois se mantiveram em silêncio durante o trajeto para casa. Quando finalmente chegaram,
Carmine tentou descer, mas foi impedido pelo pai.
– Eu tive de agir desse modo para que você visse no que estava entrando. Essa jovem esteve
afastada de tudo, Carmine. Dentro dessas quatro paredes talvez as coisas pareçam ótimas, mas esse
não é o mundo real. Considerando a pequena possibilidade de que você dois ficassem juntos, achei
que seria melhor se você experimentasse lidar com a realidade dessa jovem. Isso estará presente a
cada passo do seu caminho, porque quando alguém é criado como ela foi, não se tem o conhecimento
necessário para viver a vida de outro modo. Tentei ajudá-lo, filho, não machucá-lo.
Carmine tentou dizer alguma coisa, mas o pai continuou antes que ele pudesse abrir a boca.
– Você acha que sua mãe ficaria desapontada pelo fato de eu ter trazido essa jovem para essa
casa? Acho que está enganado. Ela teria gostado? Certamente não. Eu mesmo não gosto. Mas
acredito que sua mãe teria ficado muito mais desapontada se eu tivesse soltado essa garota no meio
da rua. Ela teria sido engolida viva pela sociedade. E é provável que ainda o seja.
Carmine se concentrara em tudo o que o pai fizera de errado, mas jamais considerou que talvez ele
estivesse ajudando Haven.
– Ela precisa reconhecer o que é ter uma vida normal antes de ser apresentada ao que nós
consideramos normal. – Vincent continuou – Você a ama? Muito bem, continue amando. Mas não me
contradiga. Não estou brincando, Carmine. Não estou gostando dessa situação, mas estou aceitando e
acho que isso já deveria ser o suficiente para merecer seu respeito. Você tem de parar de agir como
se fosse todo poderoso e espertalhão, porque não é nenhuma dessas coisas. Você precisa
compreender isso, filho, ou acabarei perdendo você como perdi sua mãe.
Vincent saiu do carro e bateu a porta tão forte que os vidros vibraram.

Ao entrar no quarto, Carmine viu Haven espalhada bem no meio de sua cama, de barriga para
cima. Ele tirou seu casaco, os sapatos e se deitou ao lado dela. A jovem abriu os olhos e piscou
algumas vezes, sorrindo ao vê-lo ali.
– La mia bela ragazza. – ele disse – Tirando um cochilo no meio da tarde, não é?
– Não tinha mais nada pra fazer. – ela explicou – Está tudo limpo e em ordem.
Ele deu suspiro.
– Quer saber, um cochilo agora parece mesmo uma ótima ideia.
Ela o olhou curiosa.
– Teve um dia ruim?
– Eu diria que foi um pouco confuso, mas não diria que foi ruim. – ele respondeu – Afinal,
qualquer dia que envolva deitar ao seu lado, tesoro, não pode ser ruim.
Ela passou os dedos nos lábios dele.
– Senti sua falta.
– Mi sei mancata. – ele disse – Isso significa “senti sua falta” em italiano.
– Bem, então, mi sei mancata, também.
Ele riu.
– Sou homem, portanto você diria mancato. Você sabe, com “o” no lugar do “a”.
– Mi sei mancato. – ela repetiu.
– Perfeito! E não é que minha namorada está se tornando bilíngue?

Haven estava de joelhos, cantarolando para si mesma enquanto admirava o piso reluzente da
cozinha. Ela o esfregara por mais de uma hora, removendo uma a uma as marcas pretas do mármore.
DeMarco nunca lhe dissera nada sobre limpeza. Nas raras ocasiões em que esqueceu de fazer alguma
coisa, ele não reclamou. Às vezes ela sentia como se estivesse vivendo em outro universo, tamanha a
mudança em sua vida. Ela nunca imaginara, por exemplo, que um dia teria a chance de largar a
vassoura de lado ou simplesmente deixar para lavar as roupas depois, só para não perder um
programa na TV no meio da tarde.
Muitas coisas aconteceram sem que ela sequer se desse conta. Antes de vir para a casa dos
DeMarco, ela se mantinha constantemente concentrada em suas tarefas para evitar encrencas, mas
agora ela podia pensar mais em si mesma. Ela nunca tivera essa chance no passado.
Ela se levantou, percebendo a presença de alguém, antes de se virar e deparar com o doutor
DeMarco. Ele estava parado à porta, observando-a em silêncio. Era meio-dia e ela não havia
percebido que ainda havia alguém na casa.
– Está com fome, senhor?
Ele acenou afirmativamente com a cabeça.
– Pode preparar algo para o almoço, dolcezza. Assistiremos TV enquanto comemos.
Ela piscou algumas vezes depois que ele se retirou. Nós?
Depois de preparar dois sanduíches de frango e salada e, de modo distraído, servir dois copos de
Coca-cola e colocar cerejas, Haven seguiu para a sala de estar. O doutor DeMarco estava recostado
em uma poltrona, com as pernas esticadas. O sorriso dele se fechou quando pegou sua bandeja.
Ela se sentou no sofá e pegou seu sanduíche enquanto ele experimentava um gole de sua bebida.
– Posso lhe fazer uma pergunta, criança?
– Claro, senhor.
Ele retirou a cereja de dentro de seu refrigerante.
– Você inventou isso por conta própria ou foi o meu filho quem lhe pediu que fizesse assim?
– Eu fiz por conta própria. Só queria ser gentil com ele.
– Interessante.
– Tem algo errado com a bebida? – ela perguntou.
– Não, eu só estava curioso. – ele disse – Na verdade, estou curioso em relação a várias coisas.
– Como o quê?
– Como… De que modo soube que produto usar para limpar as janelas?
Ela franziu as sobrancelhas.
– Porque estava escrito na embalagem.
– Então admite que já conseguia ler no passado?
Aquele erro a deixou apreensiva. Com medo de falar, ela apenas assentiu.
– Bem, eu já sabia disso na época, mas fiquei surpreso que desse esse fora no primeiro dia. Você
não é tão esperta quando acha, mocinha.
Ela sentiu um mal-estar e colocou o sanduíche no prato.
– Como sabia que eu podia ler?
– Descobri isso há vários anos em uma viagem que fiz a Blackburn. Você tinha um livro. Mas
mesmo que eu não soubesse, você mesma teria se entregado. No momento em que o fato de você não
saber ler foi mencionado, você olhou para a esquerda. Foi isso que a traiu. Quando se esconde
alguma coisa, olha-se para o lado esquerdo.
Haven não disse nada, apenas se forçou a olhar para frente.
Capítulo 29

Carmine caminhava de um lado para o outro no hall de entrada. O som de seus pés sobre o piso de
madeira ecoava por todo o piso térreo. O sol sequer havia nascido e ele já estava impaciente.
Depois do que lhe pareceu uma hora, embora só tivessem passado alguns minutos, um carro
estacionou em frente à casa. Ele abriu a porta com tamanha violência que quase arrancou-a do
batente, com dobradiças e tudo.
– Você está atrasada!
Dia o empurrou para o lado e entrou na casa.
– Você me disse para estar aqui às seis da manhã. São 5h45.
Ele franziu a testa.
– Ainda não deram seis horas?
– Não, ainda não. – ela respondeu, entregando-lhe um pedaço de papel – Relaxe, tudo dará certo.
– Tem certeza? Digo, isso é o suficiente, não acha? – Dia ergueu uma sobrancelha e a expressão da
moça fez com que o pânico aumentasse em Carmine – Caramba, então eu exagerei, não é?
– Ela vai adorar, Carmine.
– Nunca fiz nada disso antes. – ele disse – Na verdade, nem sei o que estou fazendo.
– Eu sei. E é muito meigo de sua parte. Estou mais que feliz em poder ajudar.
– Obrigado. – ele agradeceu – Eu vou tirar algum dinheiro do banco para pagar pelo seu freela.
Ela riu.
– Não precisa. Essa é por minha conta. Estou mesmo a fim de conhecer ela melhor.
– Jura? Você realmente vai tentar fazer amizade com uma garota na minha vida?
Dia revirou os olhos.
– Bem, a culpa não é minha se você vivia grudado na Lisa-Reclamona, não é?

Sentadas a uma mesa na Crossroads Diner, uma pequena lanchonete no centro da cidade, Haven
apreciava sua omelete de queijo e cogumelos enquanto Dia discorria sobre a escola. A jovem de
cabelos coloridos acordara Haven uma hora mais cedo que o normal para convidá-la para tomar
café. A princípio houve certa resistência. Haven temia deixar a casa sem permissão, mas Dominic
ligou para o Dr. DeMarco para assegurar que tudo ficaria bem. Ela não tinha muita certeza do motivo
de estar naquele lugar, mas estava grata pelo fato de alguém desejar passar algum tempo ao seu lado.
Mesmo que esse alguém fosse ainda um completo mistério para Haven.
Depois que Dia terminou de comer suas panquecas, pediu licença para ir ao banheiro. Haven ficou
apreensiva quando a garota desapareceu. Estar sozinha num local público, cercada por estranhos, a
deixava intimidada.
– Mas o que uma gracinha como você está fazendo nessa lanchonete comendo sozinha?
Haven ficou ainda mais tensa quando Nicholas se sentou à mesa, de frente para ela.
– Estou com a Dia. Ela foi… ela foi a algum lugar.
– Legal, será ótimo revê-la. – ele disse – Então, tenho uma pergunta pra você.
Ela o olhou preocupada.
– Que pergunta?
Ele enfiou a mão no bolso do casaco e retirou de lá uma caixinha rosa com pequenas balas no
formato de coraçõezinhos, e pegou algumas com a mão.
– Por que o vampiro rompeu com sua namorada?
Ela sorriu. Outra piada.
– Não sei.
Ele colocou algumas balas na boca e completou.
– Porque ela não era o seu tipo sanguíneo. Não tinha o mesmo tipo de sangue dele, entendeu? Ah,
deixa pra lá.
Ela o encarou sem entender o que havia de engraçado naquilo.
Dia retornou e se sentou ao lado de Nicholas.
– O que faz aqui?
Ele ergueu os ombros.
– Parei pra tomar café da manhã antes de ir para estação. Tenho trabalho comunitário agendado
com o chefe de polícia.
Dia franziu a testa.
– Mas você não deveria estar na escola nesse horário?
– Olha quem fala. O mesmo não se aplica a você?
– Eu tirei o dia de folga. – ela respondeu – Eu vou ajudar Haven a se preparar para um encontro
mais tarde.
Um encontro? Aquelas palavras pegaram Haven de surpresa. Nicholas também pareceu
igualmente espantado.
– Um encontro? Com quem?
– Com o namorado dela, oras. – retrucou Dia enquanto Haven permanecia calada – Você sabe
quem é: Carmine.
A expressão de Nicholas mudou.
– Carmine DeMarco?
– E que outro Carmine você conhece? – perguntou Dia – E não fique assim tão chocado. Ele já não
é mais a mesma pessoa que você conheceu.
– Carmine jamais mudará. – o tom de Nicholas era mordaz – Talvez ele consiga enganar vocês,
mas não o vejo como o príncipe encantado que todos enxergam nele. Todos nessa cidade ridícula
ainda acham que o sol gira em torno desse moleque; que ele seria incapaz de fazer coisas erradas.
Isso chega a ser bizarro. – ele fez uma pausa, brincando com as balas – Bem, tenho que ir.
Dia se levantou para que ele pudesse passar e ele colocou uma bala na frente de Haven antes de ir
embora. Em seguida, abriu a porta da lanchonete com certa impaciência e saiu sem tomar o café.
Haven olhou para a bala laranja em formato de coração e percebeu que nela estavam escritas, de
maneira quase ilegível, as palavras “fale comigo”.
Carmine mais uma vez caminhava de um lado para o outro no hall. Vestido com um terno preto, o
jovem trazia nas mãos uma linda rosa vermelha. Desde que compartilhou seus planos com Dia, ela
batizou a empreitada de “Operação Cinderela”. Para Carmine, entretanto, um melhor codinome seria
“Operação Por Favor Não Faça Merda Dessa Vez”. O mais perto que ele chegara de ser um príncipe
encantado havia sido rotulado como Principe della Mafia, o que obviamente não tinha nada de
romântico.
Sua mente navegava por todas as potenciais catástrofes que poderiam ocorrer, e ele já se
preparava para o pior. Talvez ele dissesse algo rude e a ofendesse; ou quem sabe ela ficaria
desapontada ou até mesmo assustada por tudo o que ele planejara. O piquenique certamente seria um
desastre: acabaria com uma intoxicação alimentar ou uma invasão de formigas. Mas se nada daquilo
acontecesse, era bem provável que despencasse uma tempestade, mesmo sabendo que os
meteorologistas haviam previsto uma noite clara.
Terremoto, tornado, tsunami, ciclone, monção, inundação, granizo, nevasca, qualquer coisa poderia
acontecer. Ele sequer sabia se metade daqueles fenômenos seriam possíveis ali, mas os imaginava
ocorrendo todos ao mesmo tempo.
Finalmente a lata-velha que Dia chamava de carro estacionou na frente da casa. Seu coração bateu
mais forte. Ele tentou se lembrar de que era apenas Haven: a garota que, de algum modo, conhecera
seu lado mais negro e, mesmo assim, conseguia amá-lo.
A porta se abriu e Haven entrou. Ela estava um pouco nervosa. Trajava um vestido branco e seu
rosto estava iluminado com uma maquiagem leve; seus cabelos encaracolados estavam puxados para
trás, emoldurando seu rosto.
– Buon San Velentino. – ele disse, entregando a rosa – Feliz Dia dos Namorados.
Sorrindo de um jeito envergonhado, ela pegou a flor da mão do rapaz.

Carmine saiu da rodovia ao chegar em Black Mountain e logo seguiu para um centro de artes na
Cherry Street. A placa acima da entrada principal do prédio cinza já anunciava o propósito do local,
mas quando Carmine ajudou Haven a sair do carro, tudo o que viu em seu rosto foi uma expressão
confusa.
– É uma galeria de arte. – ele explicou, sem saber se ela compreendia.
– Como um museu?
– É, como um museu.
Seus olhos brilharam com entusiasmo e, naquele momento, ele teve certeza de que havia feito a
escolha certa. Ele pegou na mão dela para conduzi-la até a entrada. O lugar tinha uma iluminação
leve e um brilho suave, cuidadosamente colocado acima de cada item exposto.
– Venha, tesoro.
Ela não se moveu.
– Não tem que pagar?
– Não. – ele certamente não previra que ela pudesse perguntar aquilo. Agora ele começava a se
sentir mal por trazê-la a um lugar gratuito, que não lhe custaria nada.
– Esse lugar é realmente de graça?
– Sim.
– Por quê?
Ele jamais pensara sobre aquilo até então.
– Por ser uma atração educativa, eu acho. Os artistas são como musicistas e trabalham mais pelo
prazer que para ganhar dinheiro.
Carmine não fazia ideia se estava ou não dizendo a coisa certa, mas, pelo menos, aquilo soava
plausível.
Os dois caminharam pela galeria, parando diante de cada peça de arte, entalhes e cerâmicas,
esculturas e pinturas, desenhos e fotografias. Aquele não era o tipo de atração que pessoalmente
considerava interessante, porém, qualquer atividade se tornava mais divertida ao lado de Haven. Ela
pareceu bastante animada durante todo o tempo, enquanto ele apenas se postava atrás dela, ouvindo
abismado enquanto ela analisava e dissecava cada obra de arte.
– Você precisa ir para uma faculdade. – ele disse – Você é muito foda para deixar de ir.
Ela cerrou os olhos.
– Seria apropriado dizer palavrões em uma galeria?
Ele riu.
– Sei lá, que se foda.
Ela balançou a cabeça e perguntou:
– Você realmente acha que eu poderia frequentar uma escola?
– Claro que sim. E você sabe que eu poderia te ajudar, certo?
– Eu sei que poderia tentar. – ela disse, em tom de brincadeira – Agora, se funcionaria ou não é
outra história.
Eles visitaram o resto da exibição, conversando de modo casual e com as mãos entrelaçadas. Já no
final do passeio, Haven parou diante de um desenho feito a lápis. Era a figura de uma mulher vista de
costas, com uma esfera de luzes vibrantes pairando no ar ao lado dela. Haven ficou fascinada por
aquela imagem. Um sorriso se abriu em seus lábios no momento em que esticou a mão e deslizou os
dedos pelo contorno da figura.
– Gosto muito desse aqui. Faz com que eu me lembre de mim mesma.
– Como assim?
– Bem, a jovem… Ela parece presa em uma vida em que não há sabor nem esperança, mas então
surge essa figura belíssima ao lado dela e colore sua vida. Cores que ela jamais imaginara ser capaz
de ver diante dos olhos.
Ele a encarou, abismado, antes de se virar para o desenho. Ele não fazia ideia de como ela
conseguira extrair tanto de um simples desenho feito a lápis.
– Sabe, talvez um dia você tenha o seu trabalho exposto num lugar como esse.
– Você acha mesmo que eu sou tão talentosa?
– Claro que sim!

Carmine pegou uma estrada secundária que ladeava as montanhas e logo avistou um pequeno
chalé. Era apenas um cômodo com uma cama, uma lareira e um banheiro pequeno. Ele estacionou o
carro, e o sol que estava escondido atrás das nuvens logo apareceu, clareando o vale que circundava
a construção. Havia alguns veados perambulando entre as árvores; o rapaz olhou para os animais e
percebeu que um deles dava alguns passos em sua direção. Carmine se sentiu como se de repente
estivesse dentro de um filme da Disney. Mas se um deles começasse a falar, o jovem certamente
sairia correndo.
– Que lugar é esse? – perguntou Haven no momento em que saiu do carro.
Ele retirou a chave do bolso.
– Nossa casa pelas próximas vinte e quatro horas. Eu aluguei.
Ela o olhou com ceticismo.
– Não é de admirar que você tenha me levado a uma exposição gratuita. Isso deve ter custado uma
fortuna.
Ele sorriu e pegou uma cesta de comida no carro. Em seguida estendeu um cobertor na grama.
– Venha, vamos comer. Acho que ainda tenho o suficiente pra te alimentar.
Haven olhou surpresa.
– Um piquenique?
Ela logo se livrou dos sapatos e se sentou sobre o cobertor, esticando as pernas. Ele se sentou ao
lado dela e começou a retirar os recipientes de comida. Haven pegou uma uva do cacho e a enfiou na
boca e Carmine removeu a tampa de uma grande garrafa verde. A jovem o observou atentamente à
medida que ele servia a bebida borbulhante.
Ao pegar o copo que ele lhe ofereceu, a jovem perguntou.
– Isso é alcoólico?
– Infelizmente não, tesoro. É apenas suco de uva com gás. Essa noite nos manteremos sóbrios.
Ela ficou surpresa quando o viu tomar o primeiro gole.
Ambos se refestelaram com as comidinhas enquanto jogavam conversa fora e riam. No início
foram assuntos triviais, TV, o clima etc., mas, posteriormente, adentraram tópicos mais sérios. Ela lhe
contou histórias sobre o que teria sido seu equivalente a uma infância e ele lhe falou a respeito de sua
mãe.
Carmine voltou a abrir a cesta e pegou duas barras de Toblerone.
– Dia me disse que é preciso dar chocolate de presente para a sua namorada nessa data especial:
Dia de São Valentino.
Haven logo abriu o dela e partiu um triângulo.
– Achei que o Dia de São Valentino tivesse a ver com um massacre.
Ele engasgou.
– Como sabe disso?
– Aquele programa de perguntas e respostas, lembra?
O massacre do Dia de São Valentino, quando a Cosa Nostra em Chicago matou sete parceiros
irlandeses. Carmine ficou curioso para saber se ela percebia alguma conexão entre a família dele e
esse tipo de coisa, mas achou melhor não levantar a questão. A última coisa que desejava era
manchar sua noite com lembranças do mundo para o qual teriam de retornar.
Ambos assistiram ao pôr do sol em silêncio. Aquilo era justamente o que ele mais amava em
relação a ela. Haven não sentia a necessidade de preencher o silêncio. De repente algo caiu bem no
meio da cabeça dele, que logo olhou para cima. Fechando os olhos instintivamente, o jovem rezou
para que não fosse um passarinho mal-intencionado. Em seguida ele sentiu outra gota e começou a
rosnar, no mesmo momento em que Haven caiu na risada e disse:
– Está chovendo.
Ele soltou um suspiro. Claro que o meteorologista iria se enganar em suas previsões.
Ambos correram e se acomodaram na varanda do chalé enquanto a chuva caía sem parar, formando
uma cortina de água que os isolava do resto do mundo. Haven ficou bem quieta, admirando a
tempestade; Carmine pegou seu violão e começou a tocar.
– Vai tocar algo pra mim? – ela perguntou. Ele começou a se preparar para responder quando ela o
interrompeu – Algo bem bonito, por favor.
Ele suspirou. Nada mais de “Sonata ao Luar”.
– Claro! Tocarei uma música que me faz pensar em nós dois.
– Jura?
– É uma canção de verdade de uma banda texana chamada Blue October.
– E vai cantar também?
Ele olhou para ela um pouco sem graça; sabia que sua voz era ruim o suficiente para furar alguns
tímpanos e irritar as pessoas, mas não podia lhe negar o pedido. Não quando ela o olhava daquele
jeito.
– Tudo bem, mas acho que não vai sair grande coisa.
O sorriso dela se expandiu. Carmine tocou as primeiras notas da música 18th Floor Balcony, antes
de começar a cantar a letra. Ele podia sentir o olhar da jovem enquanto dedilhava no violão, mas
tentou se manter concentrado para não estragar tudo. Carmine poderia passar o dia todo dizendo a ela
o quanto a amava, mas isso significaria abrir seu coração e sair detrás de seu escudo para que ela o
visse por completo.
Ele olhou para Haven no final da música e seus dedos pararam quando percebeu as lágrimas que
escorriam pelo rosto da jovem. Ele se esticou e secou algumas delas.
Ela deixou escapar um suspiro trêmulo e colocou a mão sobre a dele.
– Podemos entrar?
Pela primeira vez os dois entravam no chalé. Ela paralisou ao ver as dezenas de rosas que a
esperavam em meio à escuridão. Ele passou por trás dela e ligou o som, procurando uma música
adequada. Haven caminhou pelo cômodo, tirou o casaco e o colocou sobre uma cadeira, antes de
pegar uma rosa e levá-la ao nariz; ela inalou o perfume doce e se sentou na cama, mordendo
levemente o lábio inferior.
Carmine, por sua vez, atirou o paletó sobre a mesa e acendeu a lareira antes de caminhar até ela. A
expressão da jovem o fez cambalear.
– Você está bem, beija-flor?
A voz dela saiu um pouco falha.
– Perfeitamente bem!
– De fato, está perfeito!
Ele colocou a mão no rosto dela e a beijou. Haven passou as mãos nos cabelos de Carmine e
soltou um gemido quando ele a empurrou e a fez sentar na cama, inclinando-se sobre ela e apoiando
as mãos sobre o colchão. Ele interrompeu o beijo para tomar fôlego e então, com o nariz, inclinou a
cabeça dela para o lado para poder beijar-lhe o pescoço.
– Carmine. – ela suspirou enquanto ele beijava seus ombros – Faça amor comigo.
Naquele momento várias emoções fortes e conflitantes surgiram dentro dele: choque e euforia
mesclados a uma avalanche de pavor. Foi exatamente isso o que ele sentiu quando os olhos de ambos
se encontraram. Ele desejava o mesmo que ela, e como o desejava. Porém, aquele ato jamais poderia
ser desfeito.
– Haven…
– Parece a coisa certa a fazer. – ela disse – Nós somos as pessoas certas um para o outro.
Ele sentia o mesmo. Naquele momento eram apenas os dois; não havia mais ninguém por perto.
Eles eram tudo o que importava: duas pessoas desesperadamente apaixonadas e querendo demonstrar
aquele sentimento. Não havia mestres nem divisão de classes. Não existia a ideia de Principe della
Mafia e seu fruto proibido.
Nenhum dos dois jamais se sentira daquela maneira, mas era difícil ignorar os rótulos. Em todos
os lugares havia coisas que os faziam lembrar constantemente de quem deveriam ser, embora não o
desejassem. Entretanto, ali tudo parecia diferente. Ambos estavam longe de tudo que ameaçava
separá-los. Não existiam complicações; não havia necessidade de se esconder ou fingir.
Carmine não respondeu. Nenhuma palavra se fez necessária. Aquela voz insana em sua cabeça que
levantava dúvidas e preconceitos finalmente se calara.
Ele olhou para ela, tentando absorver todo o amor antes de se inclinar e capturar seus lábios com
delicadeza. Carmine a beijou com ternura enquanto colocava a mão sobre o joelho da jovem e
lentamente a escorregava pela parte interna de sua coxa. Ela se contorceu ao sentir aquele toque; um
choramingo escapou de sua garganta no momento em que ela colocou as mãos sob a camisa dele,
acariciando sua pele e deixando-o completamente arrepiado.
Afastando-se por alguns momentos, ele se agachou ao lado da cama e começou a erguer o vestido
da jovem, sempre atento a qualquer sinal de desconforto.
– Você pode mudar de ideia quando quiser, beija-flor.
– Não vou mudar de ideia. – ela disse com a voz trêmula, levantando os braços e permitindo que
ele puxasse o vestido por cima de sua cabeça. Carmine ficou petrificado ao perceber o enorme
contraste entre a pele clara de Haven, repleta de cicatrizes, e suas roupas íntimas escuras. Aquela
jovem forte e alegre de repente lhe pareceu extremamente frágil. Ele jamais poderia viver consigo
mesmo se de algum modo a machucasse.
Ela esticou a mão e abriu o primeiro botão da camisa dele, mas ele a deteve.
– Relaxe, ok? Quero apenas admirar seu corpo.
Os lábios dela se curvaram em um sorriso diante daquelas palavras. Ele então abriu o fecho do
sutiã da jovem e o atirou no chão, olhando para ela ao mesmo tempo em que acariciava seus seios. O
rosto dela ficou rosado e aquela sensação logo se espalhou por todo o seu corpo.
Ela se deitou na cama quando ele terminou de despi-la e agarrou com firmeza o edredom. Gemidos
fortes reverberavam pelas paredes do chalé conforme ele deslizava sua língua por cada milímetro
daquele corpo nu, que se contorcia intensamente. As pernas da jovem vibravam, derretendo-se por
ele. O aroma de Haven era como um néctar doce que ele estava desesperado para consumir. Carmine
agora era um homem faminto, que a desejava mais que qualquer outra coisa em sua vida.
Ela soltou um grito quando seu corpo explodiu em puro prazer, levando Carmine à loucura. Ele
arrancou a camisa e a atirou ao lado das roupas de Haven, antes de beijá-la com paixão. Ela o
abraçou forte; sua respiração tornou-se ainda mais ofegante no momento em que ele desabotoou as
calças e também as jogou ao chão.
– Nós ainda podemos parar…
A voz dela era como uma bola de fogo.
– Eu não quero parar.
Aliviado, sua excitação sobrepujou seus medos. Pairando com o corpo sobre ela, ele beijou o
rosto e mordiscou o pescoço; o coração dele pulsava forte ao sentir o calor que irradiava dela. As
mãos de Haven sobre a pele dele pareciam eletrificadas quando ela deslizou os dedos por sobre a
cicatriz que ele ostentava na lateral do corpo. Ela inclinou a cabeça para trás e ele beijou o seu
pescoço, fazendo os lábios se moverem por entre os ombros.
Os nervos do rapaz ficaram à flor da pele quando ele se apoiou nos joelhos para se firmar.
– Eu irei bem devagar, ok?
Haven se agarrou nele, cravando as pontas dos dedos em suas costas e enrijecendo o corpo no
momento em que ele a penetrou. Um grito escapou de sua garganta no momento em que ele se
manteve imóvel, dando-lhe tempo para ajeitar sua posição.
– Tanto gentile e tanto onesta pare la donna mia! – ele sussurrou por entre os lábios as palavras
de Dante Alighieri em Vida Nova – quando’ella altrui saluta, che’ogne lingua deven tremando
muta, e li occhi no l’ardiscono di guardare.8
À medida que tentava tranquilizá-la, a voz dele se tornava ofegante pela expectativa; enquanto
isso, o corpo dela relaxava a cada palavra pronunciada. Foi então que ele a penetrou pela segunda
vez e fagulhas se espalharam pelo seu corpo diante daquela sensação indescritível.
– Maravilhoso. – ela disse.
– O quê, o poema ou a penetração? – ele perguntou, sem pensar antes de pronunciar as palavras –
Merda, eu não deveria ter dito isso.
– Eu me referia ao poema, mas não posso negar que a outra parte também está perfeita até o
momento. – ela respondeu, um pouco envergonhada – E você definitivamente deveria ter dito isso,
porque isso é o que você é.
– É, bem, na verdade estou tentando ser carinhoso. – ele explicou – Você merece esse tipo de
romantismo.
– Não preciso de romance, Carmine. Preciso de você.
Os olhos dela se fecharam. Uma corrente elétrica se espalhou pelo seu corpo, a partir do ponto em
que estavam conectados; sua pele ficou toda arrepiada e ele sentiu calafrios descendo pela espinha.
Ao fazer amor com Haven, finalmente compreendeu o que aquilo significava. Ambos estavam
vivenciando uma nova experiência juntos; ele jamais sentira aquela intensidade até então. Cada
milímetro do corpo daquela jovem, por dentro e por fora, estava conectado ao dele.
– Somente você, Carmine. – ela sussurrou, como se pudesse ler sua mente – Será somente você,
sempre.
Aquelas palavras o incendiaram por dentro, mexendo com um sentimento de possessão que exigia
que ambos pertencessem somente um ao outro, e para sempre. Os dois corpos se moveram juntos,
num ritmo perfeito. Os gemidos dela se tornaram mais altos; ele entrelaçou seus dedos aos dela e
pressionou com força o colchão.
– Eu te amo, Carmine. – ela disse, já quase sem fôlego.
Um som escapou de sua garganta quase que involuntariamente; um murmúrio estimulado pela fome
que sentia por ela.
– Ti amo. Meu deus, como eu te amo, Haven.
Um dor forte preencheu seu peito. Ela vinha direto do seu coração. Era a dor de um amor tão
intenso, tão transbordante e tão poderoso que lhe tirava a capacidade de respirar. Ele continuou
dentro dela, pegou sua outra mão e a ergueu acima da cabeça. O peso do corpo dele repousava sobre
o dela, enquanto os joelhos da jovem se erguiam e suas pernas o abraçavam, abrindo ainda mais o
caminho. Com o rosto enfiado no pescoço de Haven, ele sentiu o sabor salgado do suor de ambos os
corpos que, unidos, deslizavam suavemente.
Quando os sentimentos finalmente se acalmaram, ela se aninhou junto a ele e colocou a mão sobre
o peito do rapaz, que batia violentamente. Os dois ficaram ali, juntinhos, com as pernas entrelaçadas,
saboreando cada sensação que surgia depois daquele ato de amor. Ele queria perguntar se ela
conseguia sentir seu coração pulsando forte, mas preferiu apreciar o silêncio.
Ali estavam eles, apenas duas crianças; dois jovens unidos e apaixonados. Naquele momento, não
havia nada que precisasse ser dito.
Aparece gentil e tão honesta minha senhora! Quando nos saúda, cada voz, trêmula, fica muda, e os
olhos não ousam mesmo olhar. (N. T.)
Capítulo 30

As semanas que se seguiram à estada no chalé transcorreram normalmente. Meio ano havia se
passado desde que Haven fora forçada a abandonar sua mãe. Ela se adaptou ao mundo longe do
deserto; pequenas coisas que antes a intimidavam tornaram-se comuns em sua vida. Ainda fazia seu
trabalho, cozinhando e limpando todos os dias, mas sempre tinha tempo para descansar. Ela jamais
tivera a chance de se divertir, e quanto mais aprendia a apreciar sua liberdade, mais difícil se
tornava imaginar a possibilidade de voltar para aquele lugar.
Tempo livre. Era assim que Carmine costumava chamar. Aquela escolha de palavras a fazia rir.
Desenhar e pintar, ler e fazer artesanato, agora seus dias eram repletos de momentos de
criatividade. Ela havia pegado alguns cadernos de Carmine e completado páginas e páginas com
palavras, escrevendo ali tudo o que se passava em sua mente. As ideias eram desconexas e as frases,
recheadas de erros, mas, afinal, ela não estava escrevendo para ninguém, apenas para si mesma.
Achava aquilo libertador, como se uma válvula de escape tivesse sido acionada e a pressão dentro
dela estivesse sendo liberada aos poucos. Os pesadelos agora eram menos frequentes, como se, com
a força de suas palavras, ela houvesse afastado os monstros que a perseguiam.
Ela também se sentia mais confortável para sair da casa. Carmine a levava a todos os lugares que
ia e lhe dava dinheiro para que pudesse contá-lo e pagar pelas mercadorias. Ela já fazia seus
próprios pedidos nos restaurantes, escolhia os produtos de que precisava e falava por si mesma
sempre que a oportunidade se apresentava.
A vida não havia apenas mudado para Haven, mas para todos naquela casa. O doutor DeMarco
passava todos os finais de semana em Chicago; Dominic já se preparava para entrar na faculdade e
em poucos meses viajaria para o outro lado do país com Tess. Até mesmo Dia também estava se
formando, mas pretendia ficar por perto, em Charlotte.
Haven estava na cozinha logo cedo na véspera do domingo de Páscoa, limpando a mesa do café da
manhã. Como de costume, Carmine se encostara no balcão para observar sua namorada.
– O que você gostaria de fazer hoje? – ele perguntou.
Ela ergueu os ombros e respondeu o mesmo de sempre.
– O que você quiser fazer.
– Se eu tivesse ideia do que gostaria de fazer, acha mesmo que eu me daria ao trabalho de
perguntar?
– Sim – ela respondeu, dando risada –, você sempre pede minha opinião.
– Bem, e você tem alguma opinião dessa vez?
– Nós podemos ficar por aqui mesmo.
– Não, passamos tempo demais enfiados nesse buraco. – ele disse, fazendo uma pausa – Então, o
que gostaria de fazer?
– O que você quiser, Carmine.
– Bem, eu esperava que dissesse isso.
Segurando sua mão, ele a arrastou até o escritório que ficava sob a escada e digitou o código para
destrancar a porta. Ela parou diante da sala, mas se recusou a entrar.
– Não tenho permissão para entrar aí. O doutor DeMarco me disse que certas portas ficam
trancadas por alguma razão.
– É, elas ficam fechadas por alguma razão; e eu tenho o código por alguma razão.
– E qual é?
– Porque meu pai nem sempre está em casa e de vez em quando precisamos de umas merdas que
ficam guardadas aqui.
Ela ficou olhando para ele e avaliando suas palavras, antes de entrar no recinto com certa
hesitação. Carmine colocou a mão em seu quadril e beijou a parte de trás de sua cabeça.
– Viu, não há nada assustador aqui.
– Não é da sala que eu tenho medo. – ela murmurou – Mas, afinal, o que estamos fazendo aqui?
– Vou te ensinar a usar uma arma.
Ela deu um passo atrás.
– Você está brincando, não é?
– Eu pareço estar brincando? Não há nada de interessante pra fazer, e eu até que gostaria de atirar
em alguma coisa. Além disso, você tem ideia de como ficará sexy atirando com uma arma?
Haven não estava muito segura.
– Não acho que o seu pai iria querer que eu tocasse numa arma depois que peguei na dele.
– Você também pegou a arma de Nunzio. – disse Carmine, tentando provar sua tese – Ele não ficou
furioso daquela vez, ficou?
– Eu só estava tentando me proteger.
– E agora é a mesma coisa. Nunca se sabe quando será preciso atirar para se proteger.
Ela deu um suspiro. Tão insistente!
– Tudo bem, mas o que estamos fazendo aqui?
Carmine puxou o tapete e abriu um alçapão escondido no chão.
– Alvos, munição, equipamentos de segurança. E, dependendo do seu estado de humor, talvez até
um colete a prova de balas para mim.
Ela o encarou e disse.
– Eu jamais atiraria em você.
– Eu sei. Pelo menos não intencionalmente.
Com cautela, a jovem desceu a escada que levava ao porão, segurando na mão de Carmine e
tomando cuidado com os degraus estreitos.
– Terra di contrabando. – ele disse quando chegaram ao seu destino – Bem-vinda à terra do
contrabando.
Os olhos da jovem fizeram uma varredura no cômodo de concreto, atentando para as enormes
caixas.
– Tudo aqui é ilegal?
– Não, mas digamos que tudo seja bastante desagradável. – ele respondeu – As caixas da frente
são basicamente de bebidas alcoólicas.
– E as de trás?
– Venha, eu vou te mostrar. Mas não toque em nada.
Ela o seguiu, parando quando percebeu as armas. Havia dezenas delas penduradas na parede e
colocadas em prateleiras meticulosamente organizadas.
– Meu Deus.
Carmine cobriu a própria mão com a camisa antes de abrir uma caixa atrás dela. Ele tentou
entregar os suprimentos para Haven, mas ela não estava prestando atenção nele, apenas observando
as armas de fogo.
– O que posso dizer? Meu pai adora armas – Carmine abriu um armário e retirou de lá uma caixa
de balas –, mas você já sabia disso, não é?
Ela desviou o olhar dos equipamentos.
– Sim, é verdade.
– Você não precisa ter medo das armas, mas dos idiotas que colocam o dedo no gatilho. Desde que
se mantenha longe deles, não haverá problema.
Ela mais uma vez observou as armas.
– O que mais tem aqui?
– Mais armas, um montão de fichas de cassinos, a masmorra…
Ela arregalou os olhos. Masmorra?

Levou mais ou menos uma hora até que chegassem a um lugar ideal escondido na floresta. O solo
estava coberto de flores do mato e o local era circundado por pinheiros enormes, como se a natureza
deliberadamente tivesse produzido uma cerca. Carmine colocou sua mochila no chão e Haven
observou a clareira, com um olhar de surpresa.
Depois de preparar um alvo próximo à fileira de árvores, Carmine posicionou o corpo de Haven e
pegou sua arma, explicando a ela os itens de segurança e o número de tiros que havia no pente. Ele a
instruiu a se manter firme e usar a mira para se concentrar apenas no alvo, bloqueando qualquer outra
visão lateral.
Depois que ela compreendeu as regras, ele deu a ela protetores auriculares e óculos de segurança.
Carmine deu um passo para trás e observou enquanto ela mirava, com as mãos trêmulas enquanto
apertava o gatilho. Ele fechou os olhos quando ela deu o primeiro tiro e se assustou com o tranco e
com o cartucho que saiu pela lateral. Ela deu um berro e quase soltou a arma enquanto ele olhava
para o alvo: ela não havia chegado nem perto.
Mais uma vez ele colocou as mãos em sua cintura e a posicionou, segurando a pistola e pedindo
que ela pusesse as mãos sobre as dele. Juntos eles deram todos os tiros e então ela relaxou. Depois
de recarregar a arma, ele a entregou a ela e se afastou um pouco. O primeiro tiro dessa nova fase
passou bem mais próximo do alvo, mas as mãos dela ainda tremiam.
Ele recarregou a arma outra vez, sem que nenhuma das balas tivesse atingido o alvo. Ela se
aproximava cada vez mais, entretanto. Seus olhos brilhavam entusiasmados toda vez que apertava o
gatilho. Carmine tentava imaginar como ela se sentia manuseando algo tão poderoso; pensava na
adrenalina que corria por suas veias.
Tendo acertado o alvo depois da terceira recarga, Haven deu um grito e se virou para Carmine,
esquecendo-se completamente de abaixar a arma.
O rapaz se abaixou e ergueu as mãos para se proteger enquanto ela mirava para a cabeça dele.
– Olhe o que está fazendo!
Ela abaixou a arma.
– Sinto muito.
Ele soltou os braços.
– Nunca aponte uma arma pra ninguém a menos que queira atirar no filho da puta.
Haven assentiu com a cabeça, demonstrando que compreendera, e se virou novamente, disparando
uma série de tiros que arranharam o alvo. Ela sorriu, tentando controlar sua excitação. Soltando um
suspiro, Carmine arrancou seus protetores de ouvido, caminhou até ela e colocou as mãos mais uma
vez no quadril da jovem, alinhando-a novamente para o alvo.
– Você está se saindo muito bem.
Ela girou o corpo com um olhar determinado. Ele sentiu o corpo dela tenso por causa da
expectativa; seus músculos firmes e os braços vibrando. Carmine deu um beijo na orelha da jovem
sem pensar e ela murmurou. Perdendo completamente o foco, ela apertou o gatilho e descarregou o
pente contra as árvores.
– Nossa! – ela exclamou ao ver a revoada dos pássaros a distância.
Ele riu e roçou o pescoço dela com o nariz.
– Melhor os pássaros que eu.

O caminho de volta foi bem mais difícil do que o de ida. No momento em que a casa pôde ser
avistada, o sol já havia desaparecido e Carmine estava exausto. Ambos entraram e seguiram direto
para as escadas, mas sequer haviam chegado ao segundo andar quando ouviram alguém bater à porta.
Haven seguiu adiante, mas Carmine desceu, desarmou o alarme e abriu a porta, dando de cara com
Max na varanda.
– E aí, o que está rolando?
– Seu pai está em casa?
– Não, ele está em Chicago.
– Droga. Preciso entregar algo a ele. – disse Max, enfiando a mão no bolso para pegar um
envelope.
– Pode deixar comigo. – respondeu Carmine, esticando a mão sem questionar sobre o que se
tratava. Ele não fazia questão de saber que tipo de negócios Max tinha com seu pai. O sujeito lidava
com drogas para juntar dinheiro para a faculdade, o que, aliás, aliviava um pouco a culpa de Carmine
quando ele próprio comprava das mãos de Max. Ele sentia como se estivesse fazendo aquilo por uma
boa causa; era como participar de uma maratona voluntária para enviar uma criança merecedora para
uma boa faculdade.
Contudo, a Cosa Nostra sempre evitava o ramo de drogas.
– Obrigado, cara. Eu disse a ele que o traria e, bem, não quero me atrasar com o seu pai.
Carmine pegou o envelope, se despediu de Max e fechou a porta. Em seguida foi até o escritório
sob as escadas e retirou um grande quadro da parede, expondo um cofre. Ele então retirou seu molho
do bolso, enfiou uma pequena chave dourada na fechadura e digitou o código de segurança. O cofre
se abriu e nesse momento uma pasta escorregou e caiu no chão, espalhando vários documentos.
Carmine se ajoelhou para recolhê-los, mas o nome Antonelli em um dos papéis logo chamou a
atenção do jovem. Ele ficou petrificado e um arrepio percorreu sua espinha quando viu as palavras
Teste Genético no cabeçalho do documento.
Sua mente começou a trabalhar de modo incessante enquanto ele pensava no que fazer. O tempo
estava passando e logo perderia sua oportunidade. A curiosidade superou a razão e ele pegou o
documento com os resultados dos testes.
O único nome que aparecia ali era o de Haven, mas o resultado era conclusivo e indicava uma
combinação de DNA mitocondrial. Na borda do papel havia alguns rabiscos do seu pai: CODIS
combinação parcial confirmada. Carmine esbravejou consigo mesmo por não ter prestado mais
atenção às aulas de ciências.
Ele enfiou os papéis de volta na pasta e colocou o envelope no cofre, trancando-o antes de subir
para o quarto.

Todos foram acordados repentinamente por um forte barulho de portas batendo no piso inferior.
Haven se sentou na cama com os olhos arregalados.
– O que foi isso?
– Não faço ideia. – respondeu Carmine, olhando para o relógio. Eram três da manhã. Ele saiu da
cama e ouviu passos decididos vindo da biblioteca e indo na direção do seu quarto. O rapaz ficou
apavorado ao ver a porta ser aberta com violência por Vincent. Mesmo na completa escuridão sua
fúria era evidente.
– Vá para o seu quarto, menina. – ele ordenou, sem tirar os olhos de Carmine. Haven saiu correndo
do quarto – O que há de errado com você? Por acaso tem algum último desejo antes de morrer?
Não importava o que Carmine dissesse, ele certamente estaria errado.
– Pensei que fosse mais esperto que isso. Você realmente achou que o dia de hoje foi uma boa
ideia? Não pode ser tão burro! E sei que já tem alguns planos na cabeça, filho. Eu te conheço, por
Deus, mas estou lhe dizendo agora mesmo: seja o que for, não irá funcionar.
Carmine permaneceu em silêncio.
– Não quero que você entre novamente em meu escritório ou no porão. Você não tem nada a fazer
ali. E eu também sei muito bem o que você viu; o que leu. Nem posso imaginar que ideias possam
estar passando por essa sua cabeça, mas não ouse tomar nenhuma atitude com base naquilo. Seja o
que for, não faça nada. – Vincent fez uma pausa, resmungando consigo mesmo – Se não estivesse
prestes a completar dezoito anos, eu o enviaria de volta para aquela escola amanhã mesmo. E já
estou praticamente decidido a me livrar da garota.
– Você não vai fazer nada com ela. – disse Carmine – Vai deixar ela em paz.
– Eu farei o que quiser com ela! Não ouviu uma palavra do que eu disse? Vai acabar sendo morto!
Talvez você não se importe com sua vida, mas não posso permitir que a jogue fora. E farei tudo o que
estiver ao meu alcance para me assegurar de que isso não aconteça, mesmo que isso implique matá-
la.
Aquelas palavras eliminaram qualquer lógica que ainda restasse no jovem. Ele cerrou o punho e
encarou o pai.
– Vá se foder! Eu te mato se machucar ela novamente!
– Talvez você o faça mesmo. – respondeu Vincent – De fato, não duvido que o faça, mas pelo
menos a alma de sua mãe ainda estará iluminada. Ela jamais iria querer vê-lo envolvido em tudo
isso.
– Não use a mamãe como desculpa para justificar as merdas que faz! Eu amo a Haven! Aceite isso
de uma vez!
– Não posso! – disse Vincent, dando um passo em sua direção – Você é apenas uma criança,
Carmine.
– Eu posso ter dezessete anos, mas não sou uma criança. Aliás, já não sou uma criança desde que
recebi um tiro por sua causa!
– Não faz ideia do que está falando. Não sabe a devastação que essa garota provocou em minha
vida! Olhe para nós! Veja o que ela está provocando!
– Ela não está provocando nada; você está! Foi você que nos colocou nessa vida! Você pagou por
ela; pagou por uma criança. Agora quer culpar ela por isso?
Vincent balançou negativamente a cabeça.
– Eu tentei ajudá-la! Fiz tudo que pude por aquela jovem, e nada parece ser o suficiente. Nada
nunca é suficiente! É impossível! É inútil! Você não faz a mínima ideia do quanto já sofri por causa
dessa vadiazinha.
No momento em que aquelas palavras escaparam da boca de Vincent, Carmine perdeu
completamente o controle. Seus olhos ganharam um brilho avermelhado e uma fúria sem precedentes
tomou conta do rapaz. Ele socou a boca do pai e gritou.
– Nunca mais a chame assim!
Porém, antes mesmo que Carmine percebesse, seu pai também se atirou contra ele, empurrando-o
contra a parede, segurando firme em seu pescoço e deixando-o sem ar. O jovem mal conseguia
respirar quando o pai o atirou contra a escrivaninha, derrubando no chão tudo o que estava nela.
Ainda sem ar, Carmine tentava a todo custo se defender.
Ao ouvir toda a comoção, Dominic invadiu o quarto e segurou o ombro do pai. Só então Vincent
percebeu o que estava fazendo e rapidamente retirou as mãos do pescoço de Carmine. Ele deu um
passo atrás e levou a mão à boca ensanguentada.
– Por que não pode confiar em mim, Carmine? Por que não me deixa cuidar disso?
– Porque você não foi capaz de me dar uma razão para confiar em você?
– Mantê-lo em segurança já não é uma boa razão?
Carmine não hesitou.
– Minha segurança não significa nada se comparada à dela.

De pé na porta do quarto, Haven observou os danos provocados pela briga enquanto Carmine
resmungava, abrindo a gaveta de sua escrivaninha e pegando uma garrafa de uísque. Ele fez uma
careta ao tomar um gole e chutou a gaveta em vez de fechá-la com a mão. Em seguida, atirou-se numa
cadeira e ficou olhando para o chão do quarto ainda escuro.
Sem suportar toda aquela tensão, Haven se concentrou em pegar as coisas espalhadas pelo quarto.
Ele ligou o relógio de volta e até tentou acertar o horário, mas desistiu. Ao pegar o porta-retratos do
chão ela soltou um gemido quando um pequeno pedaço de vidro cortou seu polegar, que começou a
sangrar. Ela recolocou a foto sobre a escrivaninha.
– Meu Deus, você está sangrando. – disse Carmine, tentando pegar a mão da jovem, mas ela não
deixou.
– Vocês quebraram a moldura.
– E daí? – ele retrucou – Pare de limpar essa merda. Nada disso importa agora.
– Importa sim. – ela disse, tentando segurar as lágrimas – É a foto de sua mãe.
Ela continuou a recolher as coisas, sem ter ideia do que mais poderia fazer. Frustrado, Carmine
pegou novamente a garrafa da escrivaninha e a atirou com tudo na parede. O vasilhame se espatifou;
pedaços de vidro e poças de álcool se espalharam por todo o quarto. Haven se contraiu, fechando os
olhos enquanto lágrimas escorriam pelo seu rosto. Flashes do seu passado retornaram à mente da
jovem; aquelas lembranças a feriam tanto ou até mais que punhos reais. A ira de Michael, o vidro
estilhaçado e o cheiro horroroso e revoltante de bebida em todos os lugares.
Você não presta pra nada! – ele gritava, cuspindo aquelas palavras contra ela – Não faz nada
certo, menina! Você é a pior coisa que já fiz na vida!
Ela abriu os olhos novamente, percebendo a irritação se dissipar no rosto de Carmine.
– Eu não devia ter gritado com você. Nada disso é sua culpa.
– É sim. – ela disse em voz baixa – Estou destruindo sua família.
Carmine se ajoelhou perto dela, pegando um notebook e o colocando sobre a escrivaninha.
– Essa família foi destruída no momento em que minha mãe foi morta, portanto, a menos que queira
levar o crédito por isso também, pare com essa besteira.

Mais tarde naquele dia, Haven estava deitada ao lado de Carmine, acariciando as dobras dos
dedos inchadas do rapaz e sentindo-se cada vez mais culpada. Não importava o que ele dizia, ela
acreditava ser responsável por tudo aquilo.
Ela não dormiu muito. A paz que tivera nas últimas semanas foi maculada pelos surtos de Carmine,
que sofria com pesadelos horríveis.
Pela manhã, ela desceu as escadas ainda atordoada e começou a preparar as coisas para o jantar
de Páscoa. A Mercedes não estava estacionada na vaga e ela logo imaginou se haveria alguma lógica
em cozinhar, uma vez que DeMarco havia saído.
A manhã transcorreu normalmente, transformando-se em tarde e, em seguida, no início de mais uma
noite. Os rapazes estavam no piso térreo e o clima estava bastante pesado na casa. Ela, entretanto,
estava exausta demais para lidar com toda aquela tensão. Estava parada diante do fogão, fazendo
suas obrigações como de costume, enquanto Carmine a olhava do balcão. Dominic entrou na cozinha
e pegou um dos ovos cozidos recheados que a jovem havia preparado.
– Está se sentindo bem, Haven?
– Ela está no piloto-automático. – respondeu Carmine no lugar dela – Uma feliz Páscoa para todos
nós.
Ela não disse nada. Um som suave do lado de fora chamou sua atenção. Olhando pela janela, ela
viu o carro de DeMarco estacionar na frente da casa. Carmine se levantou imediatamente do balcão e
a abraçou com o intuito de protegê-la. A porta da frente se abriu e DeMarco caminhou até eles. Ele
parou a apenas meio metro dos dois, dizendo com a voz tensa.
– Deixe-me ver sua mão, Carmine.
– O quê?
– Você com certeza colocou muita pressão sobre os dedos quando me socou essa madrugada. É
bem provável que os tenha fraturado.
– Vai se foder!
Dominic suspirou fundo.
– Carmine, apenas deixe que ele olhe sua mão e acabe logo com isso, cara.
Carmine ficou imóvel por um momento antes de esticar a mão. A expressão de DeMarco
permaneceu indecifrável enquanto examinava a mão do filho. Carmine fez algumas caretas enquanto o
pai pressionava os nós dos dedos.
– Você ficará bem.
Retraindo a mão rapidamente, ele retrucou.
– Como já disse, vai se foder!

Haven levou a bandeja de comida até a mesa e já planejava subir para seu quarto quando Carmine
a impediu. Puxando uma cadeira à mesa, ele fez um movimento para que ela se sentasse. A tensão se
tornou ainda mais palpável. Ninguém queria estar ali; nenhum deles desejava lidar com aquela
situação, mas isso já não podia ser evitado: era tarde demais.
Dominic foi o primeiro a falar.
– Precisamos esclarecer de uma vez essa situação. Vamos fazer uma reunião.
DeMarco zombou do filho mais velho.
– E o que você sabe sobre reuniões?
– Você está certo; faremos então a minha versão de reunião. – retrucou Dominic – E ninguém deixa
essa mesa até que algumas respostas sejam fornecidas.
– Há algumas respostas que não poderei fornecer. – disse DeMarco.
– Muito bem – disse Dominic –, se não puder respondê-las simplesmente diga isso. Isso, aliás,
será uma ótima prática9. O fato é que as coisas não podem continuar assim, pai. Nós costumávamos
nos sentir como uma família; talvez sempre tenha sido uma família disfuncional, mas ainda assim uma
família. E agora é cada um por si.
DeMarco continuou olhando para o prato.
– Muito bem, reunião de família.
A palavra “família” deixou Haven apreensiva. Ela se levantou.
– Posso sair, senhor?
DeMarco assentiu, mas Carmine bateu com as mãos na mesa e ordenou.
– Sente-se, Haven. Isso também envolve você.
Ela ficou congelada, sem saber o que fazer até que DeMarco apontasse para a cadeira.
– Sente-se.
Ela se sentou e colocou as mãos nos joelhos, mas desejou ter saído dali logo que Dominic
começou a falar.
– Em primeiro lugar, pai, qual é afinal o seu problema com a Haven?
– E por que você acha que tenho um problema com essa menina? – perguntou DeMarco.
Carmine disse em tom zombeteiro.
– Talvez pelo fato de você ameaçar ela o tempo todo?
– Vê se mantém a calma. – retrucou Dominic, apontando para Carmine – Nas minhas reuniões não
haverá gritaria. Deixe que eu cuide disso.
Carmine resmungou para si mesmo e cruzou os braços.
– Assim é melhor. – disse Dominic, voltando-se para o pai – Talvez pelo fato de você ameaçar ela
o tempo todo?
DeMarco discordou com a cabeça.
– Não tenho absolutamente nada contra essa jovem.
– Mas o senhor disse… – ela disse, antes de perceber o que estava fazendo, e logo se calou,
nervosa por ter interferido.
– Eu disse o quê? – perguntou DeMarco erguendo a sobrancelha – Fale de uma vez.
– O senhor disse àqueles homens que eu não valia a pena.
– Está correta; não retiro uma palavra do que disse. Isso, entretanto, não significa que eu tenha
algum problema com você.
Carmine se mostrou impaciente, lutando para se manter calado. Dominic, por sua vez, continuou a
questionar o pai.
– Muito bem, então se o senhor não odeia Haven, qual é o verdadeiro problema em Carmine e ela
estarem juntos?
– Porque existem complicações que eles não compreendem. – ele respondeu – Eu disse a ele que
poderiam ficar juntos por enquanto.
Carmine não conseguiu se controlar.
– Não consegue ver o quanto isso é injusto? Nós podemos ficar juntos “por enquanto”? O que
diabos isso quer dizer?
– Quer dizer: até que eu descubra certas coisas. Não posso lhe dar nenhuma garantia em relação ao
futuro.
– Que coisas? – Carmine perguntou, mas DeMarco não respondeu – Muito bem, eu descobrirei
sozinho, apenas me diga de uma vez com quem exatamente ela tem laços sanguíneos.
– Não posso. Se eles descobrirem que você sabe, acabará se machucando. Preciso que
compreenda isso.
– Mas qual é o grande problema? – perguntou Dominic – Ela tem uma família… Isso não é bom?
– Não, não é. Ele exigirá que ela seja devolvida e ela não estará segura nas mãos dele.
Haven tentava desesperadamente compreender o que ele estava dizendo.
– Ninguém vai tirar ela daqui. – esbravejou Carmine – Eu não permitirei.
– Acha que não sei disso? Você irá atrás dela e eu não posso permitir que os dois sejam mortos.
Estou tentando encontrar um meio de tirá-lo dessa situação, mas você só está tornando as coisas mais
difíceis.
– Eu conheço essa pessoa? – perguntou Carmine.
– Não posso responder isso.
O jovem sorriu.
– Vou tomar isso como um sim.
– Cuide de sua própria vida! – retrucou DeMarco – Quero que esqueça tudo sobre aquele teste de
DNA!
– E por que você não pode esquecer isso, pai? – perguntou Dominic – Deixe isso pra lá. Enterre
de vez esse assunto.
– Porque três pessoas só guardam um segredo se duas delas estiverem mortas. É por isso que não
posso. As pessoas sabem. Vocês não fazem ideia do dilema em que me encontro; os problemas que
arrumei por tê-la ajudado. Carmine não tem o menor respeito pela própria vida, e mostrou isso
novamente ontem à noite. Ameaçá-lo não faz nenhuma diferença, mas se eu ameaçar a jovem ele
agirá. Mas não se trata aqui de uma ameaça vazia. Se não houver outra saída, protegerei o sangue do
meu sangue.
O coração de Haven disparou. Carmine, por sua vez, perdeu o controle.
– Você é um idiota em pensar que eu seguiria normalmente com a minha vida se algo acontecesse
com ela.
– Sei que pensa assim.
Carmine retrucou.
– Não finja que conhece meus sentimentos! Pare de me tratar como uma criança!
DeMarco bateu com o punho sobre a mesa e gritou.
– Então cresça! Eu sei como está se sentindo porque já me senti da mesma maneira quando tinha
exatamente sua idade! Sei o que seria capaz de arriscar por ela, mas não posso permitir isso. Tenho
pelo menos que tentar… pela sua mãe!
Os olhos de Carmine se cerraram.
– A mamãe não tem nada a ver com isso.
– Você está errado. Sua mãe tem tudo a ver com isso! Ela a amava! – disse DeMarco, apontando
para a garota.
Carmine ficou sem palavras diante daquilo. Ele imediatamente olhou para Haven e, em seguida,
para o pai. Ele abriu a boca, mas as palavras não saíam.
– Sua mãe era ingênua demais. – continuou DeMarco com a voz sombria – Ela insistiria que
haveria algum modo de sairmos dessa encrenca sem que ninguém se machucasse, mas estava
enganada. Alguém irá se machucar, e eu sinceramente espero que não seja nenhum de vocês.
A tensão voltou a pairar no ambiente com essa reviravolta no diálogo. A voz de Carmine saiu
trêmula quando finalmente conseguiu falar.
– Quem foi o responsável?
– Quem foi o responsável pelo quê? – perguntou DeMarco, sem se importar em erguer a cabeça.
– Você sabe o quê. Quem a matou? Estamos esclarecendo as coisas aqui, não é? Eu quero saber
quem atirou em mim.
– O nome deles não importa.
– Então, por que o fizeram? – ele perguntou – O mínimo que pode fazer é me dizer o que provocou
tudo aquilo.
– Não há motivo para falarmos sobre isso, Carmine. O que está feito está feito.
Carmine sorriu com desdém.
– Não faça isso comigo. Eu tenho o direito de saber de quem é a culpa.
– Eu não sei.
– O que quer dizer com “eu não sei”?
– Quero dizer que não sei a quem responsabilizar! – respondeu DeMarco – Sua mãe. Meu Deus, eu
a amava tanto, mas ela agiu por trás das minhas costas e fez coisas que ela sabia que não deveria ter
feito.
– Que coisas? – Carmine perguntou – E por que ela agiu assim?
– Por que sua mamãe fazia qualquer coisa? Ela só queria ajudar.
– Ajudar a quem?
– Não importa, Carmine.
– Sim, importa. – ele retrucou – Quero saber quem era essa pessoa tão importante para que ela
arriscasse a própria vida para salvar. Quero saber por quem ela atirou a própria vida no lixo!
Sua ira aterrorizava Haven. DeMarco olhou para o filho com a expressão indecifrável, mas de um
jeito intenso. A fúria no rosto de Carmine diminuiu e ele franziu o cenho, interrompendo o contato
visual com o pai. Abaixando a cabeça, o jovem enfiou as duas mãos entre os cabelos e piscou
algumas vezes.
– Você se parece demais com sua mãe, Carmine. – disse DeMarco em voz baixa – Não posso
permitir que a mesma história se repita. De jeito nenhum.
Carmine se levantou, atirou o guardanapo sobre a mesa e saiu da sala de jantar sem pedir
permissão.
– Será que essa nossa reunião acabou? – perguntou DeMarco – Eu detestaria sair no meio dessa
agradável discussão.
– É, acabou. – disse Dominic – Mas pelo jeito foi um fracasso.
DeMarco se colocou de pé, deu um tapinha no ombro do filho e disse:
– Estamos saindo vivos e intactos, filho. Nem sempre isso acontece nas reuniões de verdade.

Um turbilhão de emoções passava pela cabeça de Carmine quando ele se trancou em seu quarto.
Horror, choque, amor, saudade, gratidão, raiva, remorso. Ele chutou a cama ao passar por ela e
puxava com tanta força os cabelos que quase conseguia arrancá-los. A força da verdade pesava uma
tonelada sobre seu peito, e aos poucos o estraçalhava.
Foi pela Haven. Ela era o motivo pelo qual sua vida fora destruída.
Ele começou a atirar tudo ao chão, tentando liberar um pouco da pressão que sentia; seus
pensamentos estavam confusos; aos poucos ele foi deixando de lado as acusações e passou a tentar
encontrar alguma lógica em tudo aquilo, mas simplesmente não havia. A vida dele deveria ser tão
fácil e tranquila, então por que razão tudo parecia tão intrincado?
Ele pegou a moldura de cima da escrivaninha e olhou para a imagem de sua mãe; havia um
pequeno rastro do sangue de Haven sobre o vidro quebrado. Lágrimas de ressentimento inundaram
seus olhos. Nada havia mudado, mas, de repente, tudo parecia tão diferente.
Ele atirou o porta-retratos no chão e seguiu para o banheiro, onde encarou o próprio reflexo no
espelho; o rapaz estava abatido e confuso. Seus olhos vermelhos e cheios de tristeza o faziam se
lembrar ainda mais dela e, naquele momento, o pouco controle que lhe restava se dissipou.
Ele esmurrou o espelho, que se quebrou na hora. Cacos de vidro começaram a se espalhar pelo
banheiro à medida que ele continuou socando o que restava do espelho, sem parar até que estivesse
completamente destruído e não pudesse mais identificar sua imagem. Tomado pela emoção, ele
escorregou no chão e contraiu os joelhos até o peito. Seu ódio deu espaço ao desespero e as lágrimas
começaram a rolar. Ele se rendeu àquele sentimento, sem forças para continuar resistindo.
Um sentimento de angústia se apossou dele quando abaixou a cabeça. Ele se deixou dominar
completamente e entregou-se de vez ao sofrimento por tudo aquilo que havia perdido.

O banheiro já estava escuro quando Carmine recobrou a consciência. Ele se levantou e caminhou
até a pia pisando com os pés descalços sobre os cacos de vidro. Os cortes na mão começaram a doer
conforme a água escorria sobre ela e limpava o sangue.
Depois de pegar uma garrafa de vodca de outro esconderijo no quarto, ele desceu as escadas e viu
a luz acesa no escritório do pai. Ele não se preocupou em bater, apenas entrou e chutou a porta atrás
de si. Atirando-se na cadeira de couro, o rapaz tomou um gole de sua bebida.
– Nunca pretendi lhe contar isso. – disse Vincent – Achei que seria cruel demais. Sua mãe me
pediu que a salvasse, mas Frankie Antonelli não abria mão da menina. Então eu disse a ela que
esquecesse aquele assunto, mas ela não esqueceu. Ela não podia. Só percebi o que estava fazendo
quando já era tarde demais. Eu demorei demais.
Tudo aquilo afetou profundamente Carmine e ele piscou rapidamente para se livrar das lágrimas.
– Ela descobriu o segredo? Foi por isso que a mataram?
– Ela estava no caminho certo; havia inclusive contratado um detetive particular para investigar o
caso, mas não acredito que tenha tido tempo suficiente para juntar as peças do quebra-cabeça. Mas
teria conseguido. Era apenas uma questão de tempo.
– E você culpa Haven por tudo isso.
– Não é culpa da menina. – disse Vincent – Ela era apenas uma criança.
Carmine sorriu de um jeito amargo.
– Acha que eu não sei disso? É claro que não é culpa dela. Mas isso não significa que você não a
culpe, não é?
Vincent respirou fundo.
– Às vezes enfrentamos uma perda e tentamos encontrar um único culpado. É o que se chama de
responsabilidade desproporcional. Torna-se mais fácil lidar com a situação quando se encontra um
canal; um ponto tangível.
– Por favor, pare com essa baboseira científica. O nome disso é bode expiatório.
– Bode expiatório. – repetiu Vincent – Você está certo. Eu consegui me conformar, pelo menos na
maior parte, e é por isso que achei que seria seguro trazê-la para cá. Mas, a verdade é que ainda há
momentos em que volto ao passado e desejo que essa jovem não existisse.
Carmine podia sentir o desgosto na voz do pai.
– Foi o Frankie que a matou?
Vincent confirmou com a cabeça.
– Há alguns anos, Sal me contou que Frankie entrou em pânico quando sua mãe começou a fazer
perguntas. Ele disse que era porque o filho dos Antonelli era o pai da menina. Ele não queria que
aquele segredinho sujo se espalhasse. No mundo em que vivemos, filho, as coisas são simples: mate
ou morra.
Carmine podia sentir a bebida percorrendo suas veias. Ele passou a mão nos cabelos, se
contorcendo ao sentir a dor. O pai franziu a testa.
– Você deve ter socado alguma coisa com muita força.
– Só tive uma discussão com o espelho.
– Deveria ir até o hospital para tirar um raio-x.
Carmine ergueu sua garrafa e disse.
– Tenho todo o medicamento de que preciso aqui mesmo. – em seguida tomou mais um gole.
– Tenho pena do seu fígado; aos dezessete anos e a caminho de uma cirrose. Isso irá matá-lo se não
parar.
– Todos nós vamos morrer algum dia, pai. – ele retrucou – Pelo menos quero que isso aconteça por
alguém que eu ame.
Ele levou a garrafa à boca mais uma vez e quando o líquido escorreu pela sua garganta ele
finalmente percebeu o que havia dito. Foi exatamente o que fizera sua mãe.

Referência à 5ª Emenda da Constinuição Norte-Americana que, quando evocada, permite que a


pessoa se recuse a responder. (N. T.)
Capítulo 31

O sinal tocou na sala de aula e todos os alunos começaram a reunir suas coisas antes de sair. Com
certa dificuldade, Carmine fechou seu livro de ciências com a mão esquerda, uma vez que o pulso
direito estava enfaixado. Ele o havia torcido no incidente com o espelho na noite anterior.
– Não se esqueçam de estudar, pessoal! – disse o professor de biologia, senhor Landon, alertando
a turma – Teremos um teste amanhã!
Carmine pegou sua mochila antes de caminhar até a mesa do professor. Este apagava a lousa e, no
momento em que se virou, ficou surpreso em se deparar com o rapaz.
– Há algo em que possa ajudá-lo?
– Eu estava imaginando se o senhor poderia me explicar mais sobre DNA mitocondrial.
O senhor Landon entortou os lábios e respondeu.
– Vimos isso no começo do semestre.
– É, eu sei, mas ainda estou um pouco confuso.
Na verdade ele não costumava prestar nenhuma atenção às aulas. Apenas contava com a sorte e o
bom senso para passar em todas as provas e, na maioria das vezes, tinha as duas qualidades em
quantidade suficiente para seguir adiante.
– Bem, diferentemente do que acontece no caso do DNA nuclear, o DNA mitocondrial não é único de
um ser humano. Cada um de nós o compartilha com a própria mãe.
– Então, o meu DNA mitocondrial seria o mesmo que o da minha mãe?
– Sim, do mesmo modo como o dela seria o mesmo que o da mãe dela e, por conseguinte, o de sua
avó seria igual ao de sua bisavó.
– Mas seria possível rastrear um homem por meio desse tipo de teste? Digo, se o meu DNA
mitocondrial fosse testado, ele se combinaria com o de quem?
– Com o de pessoas relacionadas à sua mãe. Qualquer que seja seu DNA mitocondrial, ele foi
herdado diretamente do lado materno.
Carmine ficou chocado. Até então ele assumira que o teste estava relacionado ao pai de Haven e
suas conexões com a máfia, mas jamais considerou que tivesse a ver com a mãe de Haven.
– Há algo mais de que precise?
– Sim. – ele hesitou – Bem, na verdade não. O senhor entende alguma coisa sobre GPS?
– O que exatamente gostaria de saber?
– Há algum jeito de desativar um sinal?
– Bem, existem meios de bloqueá-lo. – respondeu – Os chips de GPS precisam manter uma linha
direta de visão com o satélite que os rastreiam, portanto, qualquer grande obstrução impedirá que o
sinal seja visto. Além disso, materiais refletivos como água e metal podem fazer com que o sinal não
atinja o alvo e seja devolvido.
– E funciona da mesma maneira quando se rastreia chips em seres humanos?
O professor Landon sorriu.
– Isso é ficção científica. Chips de rastreamento para pessoas não existem.
Baboseira. Só porque não constava dos livros de ciências não significava que eles já não
existissem.
– Tudo bem, mas, falando de modo hipotético, se uma pessoa tivesse um implantado sob a pele,
haveria um jeito de impedir que ela fosse achada?
– Somente se permanecesse em um quarto sem janelas ou aprendesse a respirar debaixo d’água.
De outro modo, o chip se conectaria ao satélite assim que o indivíduo deixasse essa proteção.
– Então, se tornar um prisioneiro ou se afogar seriam as duas únicas maneiras de bloquear o sinal.
– É, acho que sim. Não há como ter certeza, entretanto, uma vez que é algo completamente
hipotético…
– Obrigado, professor.
Ele se virou para sair quando o professor Landon o chamou pelo nome.
– Sua curiosidade me faz ter alguma esperança em você, rapaz. Continue assim.
Carmine sorriu para si mesmo ao sair da sala. Embora o professor estivesse orgulhoso de seu
aluno, Vincent ficaria horrorizado se soubesse que seu filho havia feito aquelas perguntas.

Vincent reduziu a velocidade ao se aproximar da casa de tijolos, fazendo uma curva fechada e
estacionando na garagem. Ele parou ao lado de um conversível vermelho, saiu, fechou o carro e
acionou o alarme.
Aquele bairro de Chicago era bom para se viver; não havia muitos crimes naquela parte da cidade.
Ele também não se preocupava com nenhum dos moradores da região, uma vez que seriam tolos em
se meter com a propriedade alheia. Todos ali sabiam muito bem que a famiglia controlava aquelas
ruas; e todos também estavam cientes da posição de autoridade e do poder de Vincent DeMarco, e o
respeitavam por isso. O que não significava que gostassem dele, mas isso não tirava seu sono.
No momento em que Vincent pisava naquelas ruas suas emoções deixavam de existir. Ele não tinha
nenhuma compaixão, simpatia, empatia ou qualquer remorso. Ele não podia se dar esse luxo. E o fato
é que quanto mais tempo ficava em Chicago, mais insensível se tornava.
Era uma daquelas noites quentes da primavera de que Maura tanto gostava, quando podia abrir
todas as janelas e deixar a brisa entrar pela casa. Vincent costumava reclamar, dizendo que o lugar
ficava muito quente. Ele costumava ser temperamental e, muitas vezes, gostaria de poder voltar no
tempo e apagar as palavras duras que dissera à sua esposa.
Del senno di poi son piene le fosse.10 Agora ele entendia. E se arrependia.
Ele caminhou até a porta da frente e tocou a campainha, antes de arregaçar as mangas de sua
camisa azul. O som de salto alto ecoou dentro do hall antes que a porta se abrisse. Uma mulher parou
de pé à sua frente, com um sorriso enorme em seus lábios vermelhos e brilhantes.
– Olá, Vincent. Já faz algum tempo, não é mesmo?
Ela logo saiu do caminho para permitir sua entrada. Sem dizer uma única palavra ele seguiu até a
sala de estar e se sentou em um sofá de couro preto. Ela se juntou a ele, segurando uma taça de vinho
tinto. Ele a pegou e levou próximo ao nariz, inalando o perfume, sentindo o aroma. Maura costumava
adorar vinho tinto.
– Então, quanto tempo pretende ficar na cidade dessa vez? – ela perguntou, tomando um gole de
sua bebida, enquanto ele apenas segurava a dele. DeMarco não bebia mais, e já fazia muito tempo.
– Até que esteja liberado.
Ela conhecia bem aquele estilo de vida; nascera dentro dele. Era como uma Principessa della
Mafia. Ela também sabia que ele não podia falar sobre o que fazia, portanto, o diálogo entre eles era
mínimo, livre de ilusões e ideias equivocadas.
– Está com fome? – ela perguntou. Ele olhou para ela e seus olhos percorreram seu corpo,
admirando seu vestido preto justo e suas meias sensuais. A pele da mulher era bronzeada, seus
cabelos tinham um tom marrom escuro e os olhos eram cor de avelã, com pequenas manchas verdes
no interior. Aquele verde o fazia lembrar dos olhos que tanto admirara por vários anos.
Ele desviou o olhar e respondeu.
– Sim.
Os dois jantaram enquanto ela falava e terminava com a garrafa de vinho. Vincent só ouvia e
acenava com a cabeça nos momentos certos. Depois do jantar, ele foi até a janela e ficou olhando
para fora enquanto ela organizava tudo. A luz das estrelas e da lua iluminava o jardim nos fundos.
Mais uma vez ele ouviu o barulho dos saltos. Ela parou bem atrás dele, que logo viu a imagem
dela refletida no vidro. Ela sorriu de um jeito provocativo e passou as mãos em suas costas;
massageou seus ombros com firmeza.
– Você está sempre tão tenso, Vincent.
Ele deixou escapar um leve suspiro.
– E é por isso que venho até aqui. Você sabe do que preciso.
Ela apenas assentiu com a cabeça e enfiou as mãos sob a camisa dele, arranhando levemente sua
pele com as unhas longas e bem feitas. Maura nunca tivera unhas compridas; sempre as mastigava até
que restassem apenas pequenos tocos. Seus dedos chegavam a sangrar às vezes.
Ela desabotoou a camisa e pressionou suavemente os lábios contra o pescoço dele. A respiração
daquela mulher era quente; seu beijo, grudento por causa do gloss que usava na boca.
– Acho que sei do que você precisa agora.

Sem dizer uma só palavra, Vincent voltou a se vestir cerca de uma hora depois.
Era em momentos como esse, em que Vincent supostamente deveria relaxar, que ele sentia sobre o
peito todo o peso do mundo em que vivia. Se ele pudesse voltar no passado, tantas coisas seriam tão
diferentes. Porém, tudo o que podia fazer agora era seguir em frente e se certificar de que o que
acontecera com ele não se repetiria com Carmine. Ele precisava ter certeza de que dali a vinte anos
seu próprio filho não estaria em seu lugar, transando com mulheres que nada significavam e cujos
nomes não importavam, apenas tentando se manter firme quando o que mais desejava na vida era
abandonar tudo.
O relógio do carro marcava meia noite quando Vincent saiu da garagem e pegou a rodovia 290.
Ele dirigiu por cerca de trinta minutos antes de entrar numa estradinha longa e sinuosa que cortava as
montanhas, até parar no portão principal do cemitério Mount Carmel.
Ele desligou o carro, saiu e caminhou pela grama, passando pelos túmulos daqueles que haviam
vivido sua vida e então morrido. Os Capones estavam enterrados naquela área, assim como dezenas
de outros mafiosi. Ele também acabaria ali algum dia, ao lado de sua esposa.
Seus passos falharam quando ele localizou o túmulo; seu peito ficou apertado. Ele se ajoelhou e
deslizou os dedos sobre o nome gravado na lápide.

MAURA DEMARCO
ABRIL 1965-OUTUBRO 1996
“AMA, RIDI, SOGNA – E VAI DORMIRE”

– Minha doce Maura. – ele disse – Sei que já faz meses desde a última vez, mas não sentia que
merecia visitá-la. Você deve estar muito desapontada comigo.
Ele então se sentou na grama, olhando para a última frase na lápide.
– Ama, ridi, sogna – e vai dormire. – ele repetiu. Sua voz mais parecia um sussurro na escuridão –
Ame, ria, sonhe – e vá dormir. – ele traduziu – Foi assim que você viveu toda sua vida e eu estou
tentando seguir seus passos. Eu a peguei, sabe? Finalmente eu a consegui para você, mas você não
está mais aqui para vê-la.
Ele riu de um jeito cínico conforme as lágrimas deslizavam pelos cantos dos olhos.
– Você provavelmente ficou brava comigo quando eu a tranquei no quarto. Aliás, deve ter ficado
tão zangada quanto se mostrou naquele dia, há tantos anos, quando eu… quando eu… – ele
interrompeu a frase – Você sabe o que eu quase fiz, o que tentei fazer naquela noite… na noite em que
os matei. Sei que estava olhando e foi você que me impediu de continuar. É, mesmo morta você ainda
a continua protegendo. Eu podia até vê-la ali parada com a testa enrugada, como costumava olhar
quando estava muito irritada. Eu detestava desapontá-la. O que eu não daria para poder olhar seu
rosto novamente.
Ele interrompeu mais uma vez, balançando negativamente a cabeça.
– A garota está bem, eu acho. Todos estão bem por enquanto. Estou tentando imaginar um meio de
nos mantermos seguros. Ela está crescendo, se transformando numa mulher, e me faz lembrar você.
Isso é muito mais difícil do que você poderia imaginar.
Ele secou os olhos com as costas das mãos, afastando as lágrimas e permanecendo ali sentado,
apreciando o silêncio. Ver o nome dela, algo tangível para lembrá-lo de que sua mulher fora real, o
acalmava e, por alguns momentos, ele quase se sentia em paz.
Depois de alguns minutos ele se levantou, retirou a grama de suas calças.
– Não demorarei tanto para voltar dessa vez. Eu te amo.
DeMarco caminhou de volta até seu carro. As lágrimas secaram e seu coração se tornou mais uma
vez insensível enquanto retornava para Chicago.
No momento em que cruzou os limites da cidade, ele já havia recobrado sua frieza habitual.

Provérbio italiano que significa “sabendo o que aconteceu depois”. É usado em um contexto de
tomada de decisão, que se revela errônea ou pouco sábia. (N.E.)
Capítulo 32

Haven ficou de pé na porta do quarto, silenciosamente observando Carmine enquanto ele fazia sua
lição de casa. Ele estava sentado à escrivaninha com a cabeça apoiada na mão esquerda e olhando
fixamente para o notebook. Ele não percebeu sua presença, ou, se percebeu, preferiu não dar atenção
a ela.
Carmine resmungou.
– O que diabos o alfabeto grego tem a ver com matemática?
Ela disse de onde estava em voz baixa.
– Pi?
Ele deu um pulo ao escutar a voz dela.
– Você me perguntou se eu quero pizza?
– Não, Pi é parte do alfabeto grego e, hum… alguma coisa matemática.
Ele a encarou por um momento antes de processar o que havia dito.
– Bem, acho que tenho que agradecer ao apresentador do Jeopardy por essa. Você provavelmente
poderia fazer toda minha lição de casa e me evitar muitos problemas, sabia?
Ela ficou vermelha.
– É, mas se eu fizesse, como você iria aprender?
– Não me vejo precisando de nenhuma dessas merdas. – ele disse, balançando negativamente a
cabeça – Mas, de qualquer modo, você precisa de alguma coisa?
– Eu deveria ir à casa de Dia, lembra?
Ela não sabia como ele poderia ter esquecido, afinal, aquela fora uma ideia dele.
– Ah, sim, claro. – ele respondeu, procurando as chaves do carro na escrivaninha. Haven esperava
que ele fosse se levantar e a acompanhar, mas, em vez disso, ele apenas entregou-lhe as chaves.
Ela olhou para as chaves.
– Você não vai me levar?
– Você já sabe dirigir. – ele disse, balançando o chaveiro – Não tenho tempo para bancar o taxista,
tesoro. Tenho um monte de lição de casa pra fazer e assuntos urgentes pra resolver.
Ela franziu a testa.
– E como pretende resolver seus assuntos urgentes sem o seu carro?
– Eu vou sair com o Dom. – ele respondeu – Você se lembra de como chegar na casa da Dia,
certo? É uma linha reta. Eu te levei lá quando você foi comprar seu vestido.
– Ah, sim, mas…
– Ah, e na volta, pare no supermercado e compre refrigerante para mim, ok? É na rua paralela.
Deve ter dinheiro no porta-luvas.
Ela hesitou por um instante.
– Mas… seu carro. Eu não sei dirigir ele.
Ele bufou impaciente.
– E por quê não?
– Porque eu só dirigi o carro do seu pai, e você estava comigo daquela vez.
– O meu funciona do mesmo jeito. E, se achar melhor, faça de conta que estou no banco do
passageiro. Solte alguns palavrões e será como se eu realmente estivesse lá.
Ele se virou, encerrando o assunto.
Era meados de maio e aquele dia seria o baile da escola de Durante. Três semanas antes, Carmine
comentara isso, dizendo que ela precisava comprar um vestido. Na ocasião, Dia se ofereceu para ir
com ela ao shopping, onde Haven adquiriu um vestido azul com detalhes dourados.
Aquelas últimas semanas, entretanto, haviam sido confusas para Haven. Havia momentos bons e
ruins, mas as mudanças de humor eram às vezes tão abruptas que era praticamente impossível prevê-
las. A expectativa e a excitação sempre estavam lá, sob a superfície, mas também existia certo medo;
um medo do desconhecido, de mergulhar de cabeça.
Nem sempre era ruim. Carmine ainda perdia a paciência com frequência, mas havia também
momentos como aquele no quarto, em que ele agia de um jeito totalmente diferente do rapaz que ela
conhecera há alguns meses. Ele tinha ciúmes de seu carro, mas ainda assim entregou-lhe as chaves
sem pensar duas vezes, mesmo sabendo que ela não tinha uma carteira de motorista.

A família Harper vivia em uma casa de um andar no centro da cidade. Era uma residência
modesta, mas grande o suficiente para os quatro. Dia e Tess compartilhavam um quarto, sendo essa
proximidade a razão mais frequente das brigas de irmãs. Haven percebeu isso logo que chegou e viu
uma fita colorida dividindo o quarto em duas partes. O lado esquerdo era organizado e decorado em
tons de rosa, com pôsteres de astros de cinema; o lado direito era uma bagunça, com centenas de
fotografia cobrindo as paredes.
– Sente. – Dia convidou, apontando para uma cadeira próxima à escrivaninha. Haven sentou-se na
beirada da cadeira e olhou para a bagunça, controlando seu ímpeto de fazer uma bela limpeza – E aí,
está animada?
– Sim, claro. – respondeu Haven, embora sua ansiedade fosse maior que a excitação.
Dia olhou para Haven de um jeito peculiar enquanto tentava dar um jeito nos cabelos da jovem,
mais alvoroçados do que nunca.
– Está nervosa, não é? É que sua resposta me pareceu meio automática.
– Estou entusiasmada. – ela disse – É só que nunca fui a um baile na minha vida.
– Nem eu. – Dia complementou – Aliás, a única razão para eu ir neste é a foto da turma que vai
para o livro da escola. Senão, ficaria em casa.
– Você não tem um namorado?
Ela balançou negativamente a cabeça.
– A administração da escola provavelmente teria um enfarte se eu aparecesse com alguém.
– Por quê?
Dia olhou surpresa para ela.
– Nem todo mundo aceita bem.
– E por que eles não te aceitariam bem?
– É que não curto meninos. – Dia explicou, sendo cuidadosa com as palavras – Ninguém nunca te
disse isso?
– Bem, Carmine certa vez disse que não tinha o equipamento certo pra você. – disse Haven,
ficando vermelha como um tomate quando percebeu o que ele tentara lhe dizer – Ah, ele quis dizer
que…
– Eu não curto essas coisas…. Digo… pênis, pinto, pau, ou qualquer outro nome que queira dar.
Haven olhou para a porta quando uma voz as interrompeu. Tess entrou no quarto, atirando um
cabide com um plástico protetor e abrindo-o para exibir o vestido vermelho-sangue que usaria na
festa.
Dia revirou os olhos.
– Pura classe.
– Só estou sendo eu mesma. – Tess retrucou, tirando a blusa. Haven se afastou um pouco enquanto
ela se vestia, então a jovem olhou para sua expressão e riu, parando na frente dela só de calcinha e
sutiã.
– Ei, não tenho vergonha.
Dia soltou uma gargalhada.
– Nem modéstia.
Tess deu de ombros, sem retrucar dessa vez. Em seguida pegou o vestido e o deslizou pelo corpo,
antes de pegar um par de salto alto no armário e calçá-lo. Depois caminhou até o closet e olhou seu
reflexo no espelho com vaidade, ajeitando o cabelo e passando batom. Ela fez tudo aquilo de um
jeito tão casual, rápido e automático, que Haven ficou admirada.
Enquanto isso, Dia continuava a mexer nos cabelos de Haven, puxando e enrolando de todas as
maneiras possíveis, mas ela não entendia o que a amiga estava tentando fazer. A mesma dúvida era
compartilhada por Tess, que se virou e perguntou.
– Ei, o que você está tentando fazer na cabeça dessa pobre menina?
– Estou tentando fazer uma trança embutida.
– Trança embutida? O quê, acha que ela tem doze anos? – depois de perguntar, Tess pegou uma
chapinha e ligou na tomada. Em seguida tirou a irmã do caminho, desfez a tal trança e deslizou o
aparelho pelos cabelos de Haven, cacho por cacho, domesticando os fios. Em seguida, desligou o
aparelho e voltou para o seu lado do quarto.
Dia indicou o banheiro para que Haven pudesse se vestir. Ao olhar-se no espelho, não reconheceu
seu próprio reflexo. Seus cabelos jamais estiveram tão lisos e brilhantes. O vestido, por sua vez,
apertava nos lugares certos, acentuando suas curvas recém-descobertas.
Curvas. Ela beliscou seu quadril admirada, imaginando de onde elas teriam vindo e porque não as
havia notado antes.
Ela então retornou para o quarto, parando na porta. Tess olhou novamente para o espelho,
aplicando mais uma camada de batom, enquanto Dia calçava um par de coturnos.
– Você não tem que se vestir? – perguntou Haven ao receber das mãos de Dia um par de sapatilhas
douradas.
– Estou vestida.
Haven calçou os sapatos e observou as roupas usadas por Dia: saia preta, regata azul e meia-calça
listrada nas cores do arco-íris.
– Está?
– Ela está. – confirmou Tess – Para minha irmã isso é um traje de gala.
Os pelos de sua nuca se levantaram quando ela entrou na mercearia sozinha. Sentia como se
estivesse sendo observada por todos. Intimidada, ela abaixou a cabeça e seguiu direto para o
corredor de bebidas. Ao abaixar para pegar um engradado de Coca-Cola, sentiu alguém se
aproximar. Ela ficou arrepiada.
– O que foi que o livro de Matemática disse ao livro de História?
– Não tenho certeza, Nicholas. – ela respondeu, pegando a caixa de refrigerantes e se virando para
ele, surpresa ao encontrá-lo com um terno preto. Era a primeira vez que o via sem que estivesse
usando shorts e chinelos.
– Não me venha com histórias, pois já estou cheio de problemas. Entendeu? Livro de História…
histórias… Matemática… problemas…
No momento em que caiu a ficha ela deu risada.
– Essa foi boa.
Ele sorriu diante de sua delicadeza.
– Boa. Meu tipo de garota.
Ela ficou vermelha.
– Obrigada. Vejo que está vestido para ir a uma festa.
– Claro que estou. Hoje é o baile.
– Vai ao baile? Você não frequenta a escola daqui, não é?
– Nem você.
– Mas fui convidada para acompanhar uma pessoa.
Ele suspirou de um jeito dramático.
– Sei… Bem, eu também. Talvez eu não seja tão bonitão quanto Carmine, mas ainda consigo atrair
algumas garotas. Ah, e falando sobre o seu namorado…
– Por favor, não comece.
Ele ergueu a mão só para se defender e completou.
– Ei, só ia dizer que estou surpreso que ele tenha deixado você sair sozinha em público.
– E por que ele não deixaria? Eu posso ir a uma mercearia sozinha.
– Pode? – a seriedade no tom da voz do rapaz a deixou nervosa. Será que podia? Considerando
que aquela era a primeira vez que o estava fazendo, ela não sabia como responder.
– Claro. – ela disse, olhando para ele desconfiada. O coração dela batia forte; ele não podia saber
a verdade. Carmine a teria avisado sobre isso.
– Que ótimo. – ele falou – Sabe de uma coisa? Acho seu sotaque fascinante.
Haven ficou surpresa pela mudança brusca de assunto.
– Eu tenho um sotaque? Acho que você tem sotaque.
Ele riu.
– Eu falo como qualquer pessoa daqui, mas nunca ouvi ninguém com um sotaque como o seu. Onde
você cresceu?
– Califórnia.
– Em que região?
Ela hesitou.
– No deserto da Califórnia.
Ele acenou com a cabeça.
– Não me surpreende que jamais o tenha ouvido. Você é a primeira californiana nativa com quem
já falei. Você nasceu lá, certo?
Ela confirmou, ficando um pouco incomodada com o rumo daquela conversa.
– Bem, Haven, já que eu estou enganado e você pode ir aonde quiser sozinha, você deveria me
visitar algum dia.
Os olhos dela se estreitaram diante daquele convite.
– Por que está tão interessado em conversar comigo?
– Você parece ser uma garota legal. – ele respondeu – Não há mal nenhum em sermos amigos.
– E você quer ser meu amigo para me conhecer melhor ou apenas para irritar Carmine? Porque eu
não poderia começar uma amizade com alguém que deseja machucar ele.
Ela disse aquelas palavras sem atentar para o que significavam até que fosse tarde demais. Elas já
haviam escapado de sua boca e agora pairavam no ar.
– Não sou esse tipo de pessoa. – ele disse.
– E como eu posso saber?
– Terá de confiar em mim.
– Não posso. – ela retrucou – Não confio nas pessoas.
– Mas confia em Carmine?
– Sim, confio. – respondeu – E nada do que disser mudará isso.
– Muito bem, mas isso não significa que não possa confiar em mim também.
Ela o encarou. Será que podia mesmo confiar nele?
– Eu preciso ir.
Ela se afastou, desacelerando brevemente quando ele a chamou pelo nome.
– Haven? Você está linda. Carmine pode ser um imbecil, mas é um imbecil sortudo.
Ela sorriu.
– Obrigada, mas acho que sou eu a sortuda.

Depois de pagar pelo refrigerante, Haven dirigiu de volta para a casa dos DeMarco e encontrou
um lindo carro esporte parado à frente. Tendo aberto a porta da frente da casa, estava prestes a
chamar Carmine quando ouviu um barulho na cozinha.
– Por que diabos demorou tanto?
Sem se preocupar em responder, ela deu um suspiro ao olhar para ele. Ela ficou deslumbrada ao
vê-lo trajando um terno preto com uma gravata azul e um par de Nike preto. Carmine se virou para
ela e seus olhos imediatamente percorreram o corpo da jovem, enquanto ela colocava a caixa de
refrigerantes no balcão. Ele a analisou cuidadosamente, sem jamais desviar os olhos.
Bastante nervosa, ela se virou para sair da cozinha, mas Carmine agarrou seu braço e a impediu.
– Você está deslumbrante.
Os olhos dele encararam os lábios da jovem e ele a beijou de um jeito doce e delicado. Ela abriu
os lábios, permitindo que ele fosse mais fundo, mas, em vez disso, ele se afastou. Aquilo se tornara
comum nas últimas semanas, e decorria de um retorno do rapaz ao velho comportamento.
Ele se virou de costas para ela e colocou gelo no copo; ela seguiu para a sala de estar, sentou-se
no sofá e colocou as mãos sobre as pernas para esperar por ele. Carmine apareceu depois de um
minuto e colocou seu copo na mesa. Ele tinha uma caixinha plástica em sua outra mão e, de dentro
dela, retirou uma flor azul e dourada, colocando-a no pulso de Haven.
– É um corsage.
– É lindo. – ela disse, olhando para o arranjo.
A porta da frente se abriu novamente e o doutor DeMarco entrou na sala.
– É um belíssimo carro lá fora. – ele disse, sem se lembrar dos cumprimentos.
Carmine respirou fundo e respondeu.
– Não se preocupe, eu aluguei. Será devolvido amanhã.
Dominic e Tess apareceram alguns minutos depois, acompanhados por Dia, que parecia bastante
irritada. Todos saíram para tirar algumas fotos. Depois de alguns flashes, Carmine pegou na mão de
Haven e a puxou de lado. Ele hesitou um pouco antes de se aproximar do carro, procurando algum
defeito antes de seguir para o automóvel alugado.
– Sempre quis ter um Vanquish. Eu me sinto como o James Bond dirigindo um desses.
– James Bond?
– É, você sabe, o agente secreto 007?
Ela meneou com cabeça, monstrando que não sabia quem era, e ele suspirou.
– É um filme.
– Desculpe – ela disse –, mas nunca assisti.
– Não importa. – ele disse, acenando para que ela entrasse. Ela queria acreditar nele, mas sua
expressão frustrada lhe dizia que importava.
O trajeto até o restaurante foi tranquilo. Os nervos de Haven estavam à flor da pele. Depois de uns
trinta minutos, ela já não suportava o silêncio e tentou conversar.
– Esse carro é bem bonito. Por que não troca o seu por um desses?
Ele riu com indiferença.
– Esse carro custa seis vezes mais que o meu Mazda. Meu pai jamais investiria mais que duzentos
mil dólares num carro. A única coisa em que aplicaria tanto dinheiro seria numa casa. – ele fez uma
pausa – Ou, quem sabe, em você. Afinal não faço ideia de quanto ele pagou pra trazer você pra casa.
Aquelas palavras a feriram profundamente. Ela piscou algumas vezes, tentando impedir que sua
mágoa se tornasse aparente, então se virou para a janela.
– Mas eu acho esse carro bem bonito, se é que se pode chamar um carro assim.
Haven não disse mais nada pelo resto do trajeto.
Eles chegaram ao restaurante e Carmine a levou até onde os outros os esperavam. Ocasionalmente
ele dizia algo indelicado enquanto jantavam, mas alguém logo mudava de assunto para que as coisas
não piorassem. Haven não gostava daquela faceta de Carmine. Era uma parte dele que não conhecia
muito bem… e que certamente não desejava conhecer.
A garçonete sempre retornava à mesa para se certificar que de não faltava nada, mas seus olhos
sempre se demoravam mais em Carmine. Ele a ignorava, como sempre fazia, mas Tess não deixou
isso passar em branco.
– Ela está vendo sua namorada sentada bem ao seu lado. Será que não ela não se toca?
Carmine deu de ombros.
– Vadias não conseguem controlar isso.
Tess olhou para ele surpresa. Aquela não era a resposta que esperava ouvir.
– Mas o que há de errado com você?
Carmine franziu a testa.
– Mas do que você está falando, afinal?
– Sua atitude, é óbvio. É vergonhoso também. E eu quase gostei de você por alguns momentos.
– Bom, na verdade, eu nunca gostei de você, minha cara.
Haven ficou nervosa diante de toda aquela hostilidade, até que Dominic bateu com a mão na mesa.
– Chega disso! Não sei qual é o seu problema, Carmine, mas é melhor resolver de uma vez. Está
faltando bem pouco para eu te dar uma porrada.
Carmine olhou para o irmão.
– Mas o que foi que eu fiz?
– Não escuta o que fala? Está agindo cada vez mais como o velho Carmine.
– Não estou. – retrucou.
– Sim, está. – Dominic insistiu – E estou te dizendo agora para dar um jeito nisso. Haven não
merece o modo como você a vem tratando.
Haven olhou para Carmine com cautela enquanto ele encarava o irmão. A tensão à mesa era
visível e ela começou a entrar em pânico.
– Desculpe… Eu preciso ir ao banheiro.
Ela se levantou e Dia se colocou de pé para mostrar o caminho. A jovem deu um suspiro de alívio
quando se viu sozinha, e ficou no toalete até se acalmar. De repente ouviu alguém bater à porta.
Haven esperava que fosse Dia do lado de fora, mas deu de cara com Carmine.
– Podemos conversar, tesoro? – ela concordou com a cabeça e ambos seguiram até o carro.
Carmine colocou a chave na ignição – Eu não percebi que estava sendo um idiota. Estou com muitas
coisas rolando na minha cabeça.
– Quer falar sobre isso?
Ele respirou fundo, dedilhando no volante.
– Não, acho que não. Isso provavelmente me torna mais ainda um idiota, mas eu apenas… Será
que podemos começar de novo? Você finalmente tem a chance de vivenciar as coisas normais da vida
de uma adolescente, e eu estou estragando tudo. Eu devia estar de joelhos aos seus pés, te
agradecendo por me dar essa chance. Você não deveria me amar, mas me ama, e não faz ideia do
quanto aprecio ter você em minha vida.
Surpresa, ela olhou para ele e disse:
– Essa foi a coisa mais bonita que você me disse nos últimos tempos… Talvez desde que nos
conhecemos. Também estou feliz por você estar comigo.
– Que bom. – ele disse, ligando o carro e vendo Haven colocar o cinto – Ah, e me desculpe por
estar usando um Nike.
– Eu gosto deles.
Ele olhou para a jovem e sorriu. Aquele foi o primeiro sorriso genuíno que ela viu em seus lábios
havia um bom tempo.

O ginásio da escola estava decorado nas cores branco e dourado, com luzes brilhantes penduradas
por todo o teto. Um arco de balões fora colocado na entrada e havia cordões decorativos e glitter em
cima de tudo. Carmine desdenhou da decoração barata, mas Haven ficou hipnotizada com tudo
aquilo.
– Está lindo! – ela disse. Suas palavras mal podiam ser ouvidas por causa do som alto.
Ele riu do entusiasmo da moça.
– Quer dançar?
– Eu, bem… – ela olhou para a multidão na pista de dança – Eu nunca dancei antes.
– Isso não é verdade. – ele disse, empurrando-a para o salão com as mãos no quadril da jovem –
Nós dançamos no Halloween, lembra?
– Aquilo foi diferente. – ela disse – Você apenas me fez rodar em círculos e, bem, não tinha
ninguém olhando.
– E ninguém está olhando agora. – ele estava mentindo, uma vez que todos os olhos do ginásio se
voltaram para o casal – Além disso, a única maneira de aprender a dançar é dançando, e acho que
estou me tornando melhor nesse negócio de ensinar.
Eles pararam no limite entre a pista de dança e a multidão e ele a puxou para perto, balançando o
corpo ao ritmo da música. Carmine encostou os lábios na orelha dela e cantou com a música,
fazendo-a relaxar um pouco.
Moveu o quadril da jovem até que ela pegasse o ritmo por si mesma. Ela percebeu os curiosos
reparando nos dois, mas o calor do jovem a deixava segura. Dançaram algumas músicas e então ele a
levou para uma mesa, para pegar dois copos plásticos e enchê-los com ponche.
Eles se misturaram aos colegas por algum tempo. Logo ela percebeu a presença de Nicholas no
salão e, para sua surpresa, ele estava de braços dados com Lisa. Haven evitou o contato visual com o
rapaz, concentrando-se em Carmine, mas sentia que Nicholas não tirava os olhos dela.
Ela acabou se sentindo desconfortável com aquela sensação, então, pediu licença e foi ao
banheiro. Haven estava lavando as mãos quando a porta se abriu. Um ar de hostilidade preenchia
aquele espaço confinado, e não havia como sair sem passar por Lisa. Haven fechou a torneira,
respirou fundo, secou as mãos e deu alguns passos na direção da moça.
– Com licença. – ela disse, esperando que Lisa a deixasse passar sem criar problemas, mas a
jovem não se moveu um milímetro – Eu gostaria de sair.
– É, eu também gostaria que você saísse. – retrucou Lisa – Que você saísse dessa cidade e
deixasse o Carmine em paz.
O modo como Lisa falou, sentindo prazer em provocar dor, a fez lembrar-se de Katrina e de todas
as vezes que aquela mulher havia se esmerado em feri-la com palavras, mesmo quando Haven já se
encontrava em uma situação deplorável. Naquela época não havia nada que pudesse fazer sobre isso,
mas agora as coisas haviam mudado. Isso não aconteceria novamente; não aqui, não agora. Ela não
abaixaria a cabeça para pessoas que só queriam machucá-la.
– Eu estou pedindo licença. – disse Haven, dando mais um passo à frente, mas Lisa ficou parada.
Irritada, Haven deu um tranco na jovem e colocou a mão na maçaneta, abriu a porta e estava saindo
do banheiro, quando Lisa a pegou pelo ombro. Haven se virou a tempo de ver que ela estava prestes
a lhe dar um soco.
Porém, antes que Lisa pudesse atacá-la, Haven foi puxada para o lado e Nicholas acabou
absorvendo o impacto em seu peito.
– Vai com calma, Laila Ali, olha o que está fazendo!
Lisa fez uma careta para ele.
– Do que você me chamou?
– Ela é uma boxeadora. – respondeu Haven – Filha de Muhammad Ali.
– E por que você está falando? – Lisa perguntou, dando um passo em direção a ela – Ninguém aqui
te perguntou nada.
– Ei, vocês duas. – disse Nicholas, tentando se colocar entre ambas. Infelizmente ele não foi
rápido o suficiente: Lisa pegou no braço de Haven e arrancou o corsage de seu pulso, atirando-o no
chão. Nicholas interveio pela segunda vez e Lisa saiu furiosa. O jovem se abaixou e pegou a pulseira
de flores no chão.
Ela a segurou com cuidado e ele sorriu, mas algo estava errado na expressão dele, alguma coisa
que aumentou a ansiedade de Haven.
– Algo errado? – ela perguntou.
– Eu já conheço os DeMarco há muito tempo, sabe? – ele disse – Costumávamos ser muito
próximos e, quando você passa muito tempo com as pessoas, você aprende coisas sobre elas. Como,
por exemplo, algumas coisas que a família faz.
Ela franziu a testa.
– Não sei do que você está falando, Nicholas.
– Não sou idiota, Haven. – ele disse em voz baixa – Não tenho a intenção de morrer em breve,
com certeza. Sei manter minha boca fechada, mas não posso segurar isso mais tempo. Você me disse
que era da Califórnia, quando há pouco tempo Carmine me falou que você viera de Chicago. E, que
saber, eles não são o tipo de gente que convida pessoas para viver na casa deles. Eles não permitem
que ninguém se aproxime a menos que possam controlar esse indivíduo de alguma maneira. Eu fico
apreensivo só de pensar no que isso pode significar no seu caso.
Ela se sentiu constrangida.
– O que quer dizer com isso?
– Que você não é uma amiga da família. Acho que não teve escolha ao ser trazida para cá.
– Eu tive uma escolha. – ela retrucou, lembrando-se das palavras de DeMarco no primeiro dia –
Sempre se tem uma escolha.
– Escute, não é que eu possa fazer nada a respeito. Sou só um adolescente, e não conheço sua
situação. Pelo que sei, você pode ter sido sequestrada e estar sendo mantida como refém à espera do
pagamento de um resgate, ou, quem sabe, talvez esteja se escondendo de alguém. Eu não sei, mas isso
não significa que eu não me sinta péssimo em saber que você está presa numa armadilha.
Ela estava nervosa em falar sobre aquilo em público.
– Eles são muito legais comigo.
– Tenho certeza de que sim, mas isso não muda em nada a situação. Fico enjoado com o fato de
Carmine tirar vantagem de você.
Ela pressionou as unhas contra as palmas das mãos, como se tentasse se controlar sem reagir.
– Carmine me ama.
– Quer saber, acho muito difícil acreditar que ele consiga amar alguém.
– Eu o amo.
– Deixe eu adivinhar, ele é a primeira pessoa a tratá-la dessa maneira? Ele sorri pra você e
sussurra palavras bonitas nos seus ouvidos. Ele fala italiano e te deixa hipnotizada? Sim, ele já fez
isso em algum momento com todas as garotas que estão nesse prédio. É assim que ele age.
– Nada vai mudar minha maneira de pensar.
– Muito bem, mas, como eu disse, isso não quer dizer que não possamos ser amigos. Se precisar
conversar, estarei por perto.
– Por que se importa tanto?
– Porque alguém deveria.
Ela abriu a boca para dizer que Carmine se importava, porém, antes de dizê-lo foi surpreendida
pela voz do rapaz bem atrás dos dois.
– Deixa ele em paz!
– Nicholas só estava me ajudando, Carmine. – Haven interveio imediatamente, sem querer que o
namorado tivesse uma impressão equivocada.
Carmine colocou o braço na cintura da jovem e olhou para Nicholas.
– Te ajudando com o quê?
– Lisa encurralou ela, então eu fiz o que qualquer pessoa normal teria feito. – disse Nicholas –
Bem, na verdade, acho que a maioria adoraria ver duas garotas se batendo, mas não queria que Lisa
acabasse levando um belo chute no traseiro bem na formatura. Ainda tenho planos para essa noite.
Carmine olhou para Haven.
– Lisa tentou agredir ela? De novo?
– Vejo que essa não foi a primeira vez. – disse Nicholas.
Haven ergueu o corsage.
– Ela o arrancou do meu braço.
Carmine o pegou de suas mãos e praguejou em voz baixa, puxando-a dali. Foi então que a voz de
Nicholas soou novamente.
– Toque, toque?
Sentindo-se culpada, ela olhou de volta e completou.
– Quem bate?
Carmine parou por um momento, nada feliz com aquela interação.
– É o obrigado. – disse Nicholas.
– Obrigado a quê? – ela perguntou, demorando um pouco para compreender a brincadeira que o
jovem tentava fazer.
– Ah, entendi… Obrigada, Nicholas.
– De nada, Haven.
Uma música suave começou a tocar e as pessoas começaram a formar pares. Carmine colocou as
mãos no quadril de Haven e a puxou contra ele.
– Você está bem, tesoro? Ela não te machucou, não é?
Colocando os braços em torno do pescoço dele, ela o olhou.
– Não, Nicholas impediu.
– Nicholas. – Carmine retrucou, olhando diretamente para o local onde sabia que iria encontrá-lo
– Ele está sempre se envolvendo em confusão.
– Bem, estou grata a ele. – disse Haven – Afinal, Lisa acertou o soco nele e não em mim.
Aquelas palavras provocaram um sorriso no rosto de Carmine.
– Isso é ótimo.
Haven fechou os olhos no momento em que Carmine deslizou seus lábios sobre os dela, beijando-a
lentamente enquanto a música tocava. O amor cresceu ainda mais dentro dela. Aquele era o Carmine
que ela conhecia; aquele que não tinha medo de baixar a guarda e permitir que ela entrasse em seu
coração. No meio de um salão lotado, não existia mais ninguém além deles. Ela somente tinha olhos
para ele; percebia apenas sua presença, seu rosto, cheiro, calor e amor.
De repente ela se viu tão emocionada que lágrimas ameaçaram escorrer de seus olhos. A música
diminuiu e os dois ficaram parados no centro da pista, olhando um para o outro.
– Será que poderíamos…?
– Sim – ele respondeu –, vamos voltar pra casa.

No momento em que os dois chegaram ao terceiro andar da casa, Carmine pressionou firmemente
Haven contra o seu corpo e capturou os lábios da jovem com um beijo avassalador. Já fazia algum
tempo desde a última vez que ele a beijara daquele jeito, como se, para respirar, ele precisasse sugar
todo o ar que a moça trazia nos pulmões.
– Carmine, nós deveríamos… – ela disse, trêmula, enquanto os lábios dele deslizaram pelo seu
pescoço – Acho realmente que nós deveríamos… – ela soltou um suspiro no momento em que ele
mordiscou sua pele – É só que eu…
Ela não fazia ideia do que estava dizendo, do que tinha em mente ou do que tentava dizer. Haven
não conseguia pensar de maneira clara. Cada célula de seu corpo precisava dele e apreciava o toque
de suas mãos, mesmo assim as palavras continuaram tentando escapar de sua boca.
– Talvez nós devêssemos apenas, você sabe…
Carmine resmungou algo, uma mistura de desejo e frustração.
– Eu preciso de você.
Era tudo o que ela precisava ouvir. Aquela declaração a fez deixar de lado qualquer hesitação que
tivesse em sua mente e substituí-la pela certeza de que sentia o mesmo em relação a ele.
– Também preciso de você.
– Já faz muito tempo. – ele sussurrou enquanto ambos cruzavam a biblioteca em direção ao quarto
– Eu preciso te sentir novamente. Preciso estar com você, em cima de você. Caralho, eu preciso estar
dentro de você.
Um gemido selvagem vibrou no peito da jovem ao ouvir aquelas palavras; um gemido que ela
jamais imaginara ser capaz de produzir. Eles mal tiveram tempo de entrar no quarto e fechar a porta
antes que começassem a despir um ao outro. Ela deixou o vestido cair no chão e se livrou dele com
os pés enquanto Carmine chutava os tênis para os lados. As roupas foram ficando sobre o carpete e a
única luz do quarto era a que brilhava pela janela. Carmine tateou a parede tentando encontrar o
interruptor, mas logo desistiu.
Haven soltou um grito de surpresa quando ele a segurou pelas coxas e a levantou, colocando as
pernas dela ao redor de sua cintura. À medida que ele a pressionava contra seu corpo, arrepios
tomavam conta do corpo dela, dominando seus músculos. Ela segurou no pescoço dele, beijando-o
de maneira febril conforme ele caminhava por sobre as peças de roupa.
Ela se afastou por um segundo de seus lábios.
– Não me deixe cair.
– Nunca. – ele disse, quase sem fôlego, no mesmo instante em que a soltou e a derrubou sobre o
colchão. Ela deu risada.
– Nunca, não é?
– Fiz isso de propósito, tesoro. – ele disse em tom de brincadeira, rindo enquanto escorregava por
cima dela.
Os dois corpos se encaixaram com facilidade, de maneira perfeita, como se sempre tivessem
pertencido um ao outro. No momento em que suas almas se encontravam, era possível sentir a
eletricidade que se formava; os raios e os trovões que só eles conseguiam ouvir. Tudo ficara para
trás quando ambos se entregaram a suas necessidades mais carnais; cada carinho era mais longo,
profundo e violento; os gemidos, sussurros e gritos se tornavam cada vez mais altos.
Ambos só interromperam os movimentos quando já não tinham mais força para continuar, cobertos
de suor e quase sem conseguir respirar. Haven sentou-se sobre ele e colocou a cabeça sobre o peito
do rapaz, sentindo o corpo dele debaixo do dela e tentando acalmar a acelerada pulsação.
Ele acariciou o corpo da jovem, suas coxas, desenhando com as pontas dos dedos padrões sobre a
pele arrepiada. Ela ficou imaginando no que ele estaria pensando; o que estaria desenhando, mas uma
parte de Haven tinha medo de perguntar.
– Sinto muito. – ele finalmente falou – Tenho me mostrado hesitante e acho que isso não é justo
com você. Sei que sou um pé no saco, mas, você, Haven, é a única coisa boa que tenho na vida.
– Você não deveria se desculpar. – ela disse. Em seguida ele pediu que ela o perdoasse por algo
que ela própria vinha fazendo consigo mesma. Embora ele tivesse dado tudo para ela; a levado em
sua formatura, possibilitado que ela vestisse algo belíssimo e dançasse com um cara
devastadoramente lindo e soubesse que tudo aquilo era um sonho que ela jamais imaginara poder
realizar, ele sabia que, às vezes, ela se sentia inadequada e permitia que suas inseguranças a
devorassem por dentro. Mas agora… nesse momento, ela não sentia que isso estivesse ocorrendo. –
Carmine, tenho que te contar uma coisa.
Ele parou com os dedos sobre o abdômen da jovem.
– O quê?
– Acho que o Nicholas sabe sobre mim.
Carmine sentou-se rapidamente na cama.
– Do que você está falando?
– Ele sabe que eu sou … que eu sou uma escrav….
Os olhos dele escureceram.
– Ele te chamou assim?
– Não, ele apenas sabe, ou suspeita que eu… não esteja aqui por vontade própria.
– Como?
– Não sei. Ele disse que queria que fôssemos amigos, porque achava que eu poderia precisar de
um.
– Ah, então ele quer ser seu amigo? Tá, é claro. Aquele filho da puta quer tudo o que eu tenho. Ele
quer tirar tudo de mim! Não vê isso?
Ela ergueu os ombros. Haven já não tinha certeza de nada.

Aquele último mês fora um dos mais complicados na vida de Carmine; o amor e o ódio que sentia
o tempo todo estavam sempre em absoluto conflito. Uma batalha épica se desenrolava dentro dele.
Ambos os lados lutavam para assumir o controle de seu coração e de sua mente. Tudo o tirava do
prumo, e aquilo que Haven lhe dissera não o ajudava a manter a calma.
Depois que ela dormiu, ele vestiu uma roupa qualquer e desceu as escadas. A luz do escritório do
pai estava acesa, então ele tentou bater à porta, esperando um segundo antes de abri-la. Vincent olhou
para ele detrás da escrivaninha.
– Você era a última pessoa que esperava ver.
– Por quê? – o jovem perguntou, sentando-se de frente para o pai.
– Porque você bateu. E isso é uma novidade no seu caso.
– É… Bem, acho que não estou me conhecendo mais, então, acho que sou capaz de qualquer coisa
nesse momento.
O pai balançou a cabeça.
– E está conseguindo lidar bem com aquela sua obsessão?
– Já superei isso.
– Eu não acreditaria nisso nem por um segundo. – retrucou Vincent – Passaram-se anos até que eu
conseguisse me conformar com essa situação.
– Bem, eu não tenho anos pra me conformar. Aliás, não quero nem pensar mais sobre isso, e muito
menos discutir esse assunto.
– Muito bem. – disse Vincent, olhando de um jeito peculiar para o filho – E há alguma outra razão
para ter descido até aqui?
– Sim, é sobre essa noite. Eu…
– Como foi o baile? Vocês se divertiram?
Carmine bufou, irritado pela interrupção.
– Foi tudo ótimo, pai. Agora será que posso terminar a frase?
Vincent acenou com a mão.
– Nós encontramos com o Nicholas… e ele disse uma coisa. Ele disse que sabia a verdade a
respeito de Haven.
Carmine percebeu a expressão do pai se transformar. Seu rosto foi encoberto por uma máscara
indecifrável. Cada segundo de silêncio deixava o filho mais nervoso. Afinal, por que o pai
continuava apenas sentado, imóvel?
– É, é possível que ele saiba mais do que deveria.
Carmine se inclinou para frente.
– Então meus inimigos conhecem a verdade e você nunca se incomodou em me dizer isso?
– Ele não é seu inimigo, Carmine. Eu sei o que é um inimigo. Sei exatamente as ameaças que
representam. Nicholas não sabe nada a mais do que Tess ou Dia. Não posso matá-lo por isso, do
mesmo modo como não posso dar cabo das duas garotas. Ou será que é isso que está sugerindo, que
eu me livre de todos que talvez saibam alguma coisa? Não é assim que conseguirá ter um bom
começo com essa jovem, filho. Não se pode fugir da verdade.
– Mas como podemos confiar nele se ele já me traiu uma vez?
– Porque se ele quisesse falar já o teria feito. – respondeu Vincent – Não vou matar um garoto de
dezessete anos porque você acha que isso o fará se sentir melhor. Você ainda teria de encarar essa
culpa para o resto de sua vida, e já tenho pessoas demais com as quais me preocupar no momento.
Carmine olhou para o pai.
– Como ele?
– Sim, como ele.
– Então, ainda não encontrou um meio de resolver essa situação?
– Estou apenas adiando o que é inevitável, e esperando que quando a hora chegar eu consiga fazer
a coisa certa… Seja ela qual for.
– Sabe, eu provavelmente poderia adivinhar de quem….
– Nem pense nisso, Carmine Marcello. – retrucou o pai – E não vou repetir isso.
Carmine acenou com a cabeça, mas não havia jeito de ele parar de pensar a respeito do problema.
– É, mas existem bem poucas pessoas de quem você teria medo.
Vincent perdeu a paciência e se levantou, empurrando a cadeira para trás e apontando para a porta.
– Saia.
Mesmo sem querer, Carmine se levantou e saiu, seguindo para o terceiro andar e dando de cara
com Haven no topo da escada.
– Uau! Aonde estava indo?
– Bem, eu não sabia aonde você tinha ido. – ela disse.
– Não importa aonde eu fui. O que importa é onde estou agora. – ele disse, olhando-a de cima a
baixo. A jovem vestira calças de flanela e uma camiseta de futebol. Eram exatamente as mesmas
roupas que ela usara na primeira vez que se encontraram na cozinha. – Sabe de uma coisa, você fica
bem com as minhas roupas, mas que tal eu te ajudar a se livrar delas de novo?
Ela suspirou quando ele a puxou de volta para o quarto dele.
– Bem, bom-dia então.
– É, com certeza será uma ótima manhã. – ele disse em tom de brincadeira – E será também uma
ótima tarde e, se eu tiver sorte, uma noite fantástica.
Os dois passaram a tarde fazendo amor, mas com cuidado para não serem ouvidos. Depois de
algum tempo ela espalhou seu corpo ao lado dele, dormindo tranquilamente de bruços. O cobertor
mal cobria a parte abaixo de sua cintura, o que deixava suas costas à mostra. Ele olhou para a pele
dela, desejando que ela jamais tivesse aquelas cicatrizes; que nunca tivesse experimentado toda
aquela dor. Carmine odiava aquelas marcas. Em contrapartida, elas faziam parte de quem ela era e,
para ele, não havia nada de feio naquele corpo.
Ela merecia muito mais do que tinha, e Carmine mal podia esperar para lhe dar tudo; para lhe
oferecer uma vida de verdade, em que ela pudesse ser totalmente livre; em que conseguisse se livrar
daquelas algemas imaginárias, daquela dor no coração, do perigo que a rondava. Enfim, apenas se
sentir libertada.
Com o dedo indicador ele desenhou a palavra livre em cima das cicatrizes. Aquilo era tudo o que
importava para ele.
Capítulo 33

– Você vai morrer.


Aquelas três palavras interromperam o silêncio que reinava na sala. Vincent controlou seu desejo
de responder, mantendo-se calmo. De fato aquilo não era algo em que ele próprio não tivesse
pensado dezenas de vezes, mas ouvir aquelas palavras pronunciadas num tom de voz frio e sem
qualquer emoção tornava a coisa bem mais real.
Ele se virou na direção da voz e se deparou com os olhos de Corrado, tão escuros que era
praticamente impossível distinguir entre as pupilas e as íris. Eram os mesmos olhos para os quais
muitos já haviam olhado em seus últimos momentos de vida; olhos capazes de destruir até os homens
mais fortes e poderosos. Eles pertenciam a um assassino; um homem que poderia enfiar a mão em seu
casaco, sacar sua pistola calibre.22 e enfiar uma bala na cabeça de Vincent antes que ele soubesse o
que havia acontecido. E, mais importante, eram os olhos de alguém que não hesitaria nem um segundo
se achasse aquilo necessário.
– Eu sei. – respondeu Vincent, mantendo a voz calma a despeito de sua ansiedade.

Era primeiro de junho e, no dia seguinte, Dominic receberia seu diploma do ensino médio. De tudo
que Vincent fizera em sua vida, Dominic parecia ter sido sua maior realização. Apenas o fato de ele
ter sobrevivido intacto e estar seguindo por um caminho que em nada se assemelhava ao do pai, já
fazia com que Vincent acreditasse que fizera algo de bom em sua existência. Ali estava uma vida que
ele não destruíra nem arruinara.
Porém, seu momento de orgulho foi interrompido pela lembrança de outro evento importante; algo
que o faria quebrar o silêncio. Em apenas dois dias, Carmine completaria dezoito anos. Seu filho
mais jovem estava prestes a se tornar um adulto perante a lei, e forças externas ameaçavam sua vida.
O Chefe exigiria seu Principe; uma mera marionete a qual pudesse transformar num de seus soldados
carniceiros. Sal não pensaria duas vezes antes de se valer da manipulação e Vincent temia o que ele
estaria disposto a fazer para atrair seu filho.
Corrado e Celia viajaram para a casa dos DeMarco para a formatura de Dominic e a celebração
do aniversário de Carmine. Os rapazes haviam acordado de madrugada para passar a tarde em
Asheville. Celia optou por ficar no andar de cima e deixar algum espaço aos dois homens.
– Ela não se parece com uma Principessa. – disse Corrado.
– Pensava exatamente o mesmo.
– Mas você tem certeza disso?
– Absoluta.
– Sempre suspeitei que havia algo a mais sobre essa garota. – disse Corrado – Nunca fez sentido
para mim que Frankie Antonelli tivesse assassinado sua esposa porque ela estivesse interessada em
adotar a neta dele. É claro que ele tratou a garota de um jeito horrível, mas não teria valido a pena
chegar a tal extremo para encobrir um deslize do filho. Mas isso… isso é um motivo bom o suficiente
para matar.
Vincent contraiu os músculos. Corrado percebeu sua reação e foi se esclarecendo.
– Não estou dizendo que Maura deveria ter morrido. Até hoje ainda me culpo por não ter feito
mais para impedir, mas nunca imaginei que os Antonelli pudessem ser tão odiosos.
– Ninguém imaginou.
Corrado desviou o olhar por um momento.
– É difícil acreditar que ela seja uma de nós. Depois de todos esses anos é surreal descobrir que
aquela garotinha mantida como escrava seja a neta de Joseph e Federica. Então, o bebê deles
sobreviveu e acabou indo parar nas mãos dos Antonelli. Quais as chances de eles terem alguma
relação com…?
– Salvatore. – disse Vincent.
– Então, ele ainda tem pelo menos um membro da família vivo.
Tantas pessoas morreram no caos dos anos 1970; muitos corpos sequer foram recuperados. Tudo
começara com um único homem fazendo grande alarde sobre aquele estilo de vida, mas acabou
tomando uma enorme proporção e se alastrando para o país inteiro. Tudo passou a girar em torno de
vingança e derramamento de sangue; homens passaram a ir de encontro a tudo que a organização
defendia; e tudo em nome de pura vingança. As mesmas famílias que haviam jurado proteger
mulheres e crianças se tornaram cegas pelo ódio e acabaram descontando em inocentes.
O corpo de Joseph Russo fora descoberto enterrado em um milharal anos mais tarde. Antonio, que
na época era o Chefão, mandou vários homens procurarem Federica, na expectativa de que ela
tivesse conseguido se esconder com o bebê. Porém, um pacote fora entregue em sua casa certa noite:
ossos humanos embrulhados em um cobertorzinho rosa. Não havia testes de DNA na época, mas todos
acreditaram que Federica e a menina estivessem mortas.
Estavam errados, entretanto. A criança sobreviveu e, com o nome de Miranda, viveu o tempo todo
debaixo do nariz de toda aquela gente.
– Eu sabia que você estava escondendo alguma coisa, mas nunca imaginei que pudesse ser algo
assim. – disse Corrado – A probabilidade de essa mulher que supostamente ainda vive como escrava
no rancho de Michael ser a sobrinha de Sal é praticamente a mesma de Jimmy Hoffa aparecer vivo
amanhã, perambulando na esquina da Lincoln com a Orchard.
– Estou começando a acreditar que qualquer coisa seja possível agora.
– É verdade. – concordou Corrado – Ambos desapareceram na mesma época. Ficarei de olho pra
ver se não encontro o Hoffa andando pela vizinhança.
O tom de sua voz era tão sério que Vincent não tinha certeza de que estivesse realmente fazendo
uma piada. Em geral nunca se podia ter certeza de nada em relação a Corrado, e Vincent não ousaria
rir daquilo.
– Então, quem quer que os tenha matado entregou o bebê para os Antonelli, e Frankie pegou a
criança sabendo exatamente quem ela era. Então, ordenou que a esposa do colega mafioso fosse
morta para que o segredo permanecesse guardado, pois sabia que aquilo seria sua sentença de morte.
– Corrado concluiu, resumindo em apenas alguns segundos o que havia levado uma hora para Vincent
tentar explicar.
– E o mesmo teria acontecido comigo.
– Claro.
– Você compreende a razão para eu ter feito o que fiz, certo? – Vincent perguntou – Entende o
motivo pelo qual não pude entregar a garota a ele?
– Não estaríamos sentados aqui se pelo menos uma parte de mim não entendesse. – respondeu
Corrado – Os efeitos colaterais teriam sido desastrosos. Não apenas você já teria sido morto, mas a
vida dela também estaria em perigo. Squint tem certeza de que herdará a posição de Sal, acreditando
no fato de que ele é o que de mais próximo o Chefe tem de um ente familiar. Carmine também está em
perigo por causa do interesse de Sal por ele. Acrescentar a jovem a essa equação transformaria
ambos em alvos fáceis.
– Isso sem mencionar o que tudo isso significaria para a organização. – completou Vincent –
Nunca se conseguiu descobrir quem matou Joseph e Federica, ou o que foi feito do corpo dela. Sal
certamente decretaria uma caça às bruxas e, nesse momento, já temos problemas suficientes.
– Ele iniciaria uma nova guerra. – afirmou Corrado – Todos nós estaríamos em perigo.
– Eu sei. Mas não estou preocupado comigo. Só não quero que as crianças sejam penalizadas por
tudo isso.
– Certo, então você quer que o Principe e a Principessa montem em seus cavalos brancos, partam
rumo ao belo pôr do sol e sejam felizes para sempre, como num filme antigo? Não acha que isso é
pedir demais? – ele disse, em tom de chacota – Bem, eu detesto lhe dizer isso, Vincent, mas vivemos
num mundo real. Tenho uma chance melhor de tirar você dessa enrascada do que de manter esses
jovens seguros. Honestamente não sei o que espera de mim.
– Não estou lhe pedindo que faça nada. Apenas…
Corrado o interrompeu.
– Você está amolecendo. Não sei o que aconteceu com você, mas não gosto nada disso. Você diz
que não quer me envolver, mas fez isso desde o primeiro dia ao enfiar minha esposa nessa história.
– Eu não pretendia…
– Claro, tenho certeza de que não pretendia, mas achei que entre todas as pessoas do mundo você
fosse o primeiro a entender. Você perdeu sua esposa por causa disso e agora está me colocando na
mesma situação! Para alguém que sofreu tanto com essa perda, você não hesitou em me colocar nessa
sinuca. Que saber, tudo o que mais quero agora é recusar seu pedido… mas não posso. Tenho que
ajudá-lo, mesmo esse ato sendo contrário a tudo aquilo que jurei em minha vida. Até porque, essa é a
única maneira de proteger Celia. – Corrado o encarou com seriedade – É melhor que essa menina
valha a pena, Vincent.
– Ela valia muito para Maura.
Frustrado, Corrado esfregou o rosto com as mãos.
– As coisas que não fazemos por causa das mulheres. O que deu em você para pensar num teste de
DNA, afinal? Você já sabia perfeitamente quem eram os pais dela.
Vincent respirou fundo.
– Eu precisava de um green card para a menina.
– Um green card? – ele perguntou, incrédulo.
– Sabia que seria arriscado demais tentar conseguir uma certidão de nascimento para ela, então
pensei que seria uma boa ideia conseguir estabelecê-la legalmente aqui. Já que seu pai é um cidadão
americano, ela conseguiria facilmente a aprovação, desde que a relação pudesse ser estabelecida.
Sei que Michael não conco rdaria facilmente, então imaginei que apresentar-lhe um teste de DNA
seria capaz de convencê-lo.
– E não podia ter me perguntado?
– Eu lhe disse, não queria envolvê-lo.
Corrado balançou a cabeça em reprovação.
– Acha que Michael Antonelli sabe de quem a menina é parente?
– Duvido. Ele não teria concordado tão fácil em abrir mão dela. Com certeza teria pedido muito
mais. Também tenho certeza de que ele não soube de nada quando… quando aquilo tudo aconteceu.
Corrado o olhou intensamente.
– Já se passaram cinco anos, não é?
– Exatamente hoje, cinco anos.
Primeiro de junho, aniversário do dia em que Vincent DeMarco chegou ao fundo do posso. A
maioria das pessoas acreditaria que seu pior momento tivesse sido a morte de sua esposa, ou o ano
seguinte em que sequer conseguira encarar seus próprios filhos, mas o pior viria anos depois…
Fechando os olhos ele ainda podia sentir o ar quente soprando em seu rosto, enquanto acelerava
por aquela estrada desolada. As mãos dele tremiam, seu corpo precisava urgentemente de descanso,
mas não havia como parar. Chegara longe demais para desistir.
O celular tocou alto no banco do passageiro; a luz verde iluminando a escuridão. Seu coração
bateu mais forte ao ouvir aquele som; a adrenalina fluiu pelo seu corpo. E como fizera nas últimas
dez vezes em que o telefone tocara, ele novamente ignorou a chamada.
Ele estivera dirigindo por vinte e seis horas, desrespeitando abertamente o código. Naquele
momento não se preocupava com o futuro. Ele só queria vingança. Ele estivera na noite anterior na
casa em Lincoln Park e ficara de pé diante do homem que controlava sua vida, de quem ouviu as
cinco palavras que o impulsionariam ao longo de todo o caminho: Frankie Antonelli foi o
responsável.
Frankie Antonelli foi o responsável.
Quanto mais Vincent se aproximava do rancho escondido no meio do deserto, mais nervoso ficava.
Porém, poucos quilômetros antes da entrada que levava à propriedade, viu as luzes de outro carro
vindo em sua direção. Vincent diminuiu e observou enquanto o veículo familiar passou. Ele ficou
furioso.
Frankie Antonelli foi o responsável.
Vincent fez a volta e acelerou rapidamente para alcançá-lo. As luzes vermelhas do freio se
acenderam quando o motorista do carro da frente percebeu a aproximação. Frankie poderia
facilmente ter escapado, mas quando percebeu o que de fato estava acontecendo já era tarde demais.
Girando rapidamente o volante, atirou o carro contra o dele, batendo na parte traseira. Ele sentiu um
forte impacto no peito com a batida; sua visão ficou turva e ele mal conseguia respirar.
O carro de Frankie derrapou e chocou-se contra uma grande pedra que ladeava a estrada,
capotando algumas vezes no deserto. Vincent conseguiu girar o volante antes de parar na direção
oposta. Seu carro estava praticamente intacto sobre as quatro rodas, mas a fumaça e o pó levantados
pela colisão fizeram seus olhos lacrimejarem. Ele esfregou o rosto para tentar clarear a visão e
respirou fundo. Pegou a pistola no painel e deixou o carro, caminhando com as pernas trêmulas.
Frankie Antonelli foi o responsável.
O carro de Frankie estava completamente destruído; a parte da frente já não existia por causa do
impacto. Quando Vincent se aproximou, ouviu um barulho vindo do lado do motorista. O vidro estava
estilhaçado no chão. As pernas de Frankie estavam esmagadas sob as ferragens; Monica, a esposa
dele, estava desfalecida no banco do passageiro, com sangue escorrendo do ouvido. Encarando
Frankie, Vincent pôde ver lágrimas em seus olhos, então ele se aproximou e disse com a voz
estranhamente calma.
– Frankie Antonelli foi o responsável.
Frankie ainda tentou se proteger, mas Vincent, tomado pela ira, se abaixou e o espancou
violentamente com a coronha de sua arma.
Quando recobrou o controle, o corpo no assento do motorista estava completamente irreconhecível
e as mãos de Vincent, tingidas de vermelho.
Ele respirou algumas vezes, tentando ignorar a dor no peito enquanto retornava ao seu carro. O
cheiro de gasolina que vazava dos destroços era forte. Vincent procurou nos bolsos e encontrou um
maço amassado com apenas um cigarro dentro dele. Ele o acendeu, deixando que a fumaça queimasse
seus pulmões e a nicotina acalmasse seus nervos.
Depois de algumas tragadas, ele simplesmente atirou a bituca ainda acesa na direção do carro
destruído, incendiando-o na hora.
Vincent entrou novamente em seu carro e dirigiu até o rancho dos Antonelli, estacionando na
entrada. O lugar parecia desabitado, mas não estava. Havia pessoas ali, e ele sabia exatamente onde
encontrá-las.
Sem pensar muito, Vincent foi direto para o estábulo para pegar a garota. Ele o faria por Maura.
Salvaria a vida daquela criança, resgatando-a de toda aquela imundície.
Ele parou ao vê-la deitada no canto de uma cocheira, sobre um colchão velho e sujo. O cheiro de
esterco era forte. Deu alguns passos em direção à menina para olhá-la melhor e viu que ela segurava
um livro nos braços. Tão pequena, tão frágil; ela parecia tão indefesa, mas Vincent não se deixou
enganar.
O desespero voltou a tomar conta dele. Ele levantou a arma e, sem hesitar, apontou para a cabeça
da criança e puxou o gatilho. Vincent ficou confuso quando nada aconteceu: nenhum som; nenhum
grito; nenhum sangue.
Seu revólver Smith & Wesson nunca havia falhado antes.
O som da voz de Corrado o trouxe de volta ao presente, afastando-o daquelas lembranças
terríveis.
– E essa foi a última vez que você matou alguém?
Vincent suspirou e respondeu.
– Sim.
– Bem, desde que perceba que terá de matar novamente, não haverá problemas.
– Obrigado. – disse Vincent enquanto Corrado se preparava para sair.
– Não me agradeça. Você ainda pode morrer.
Capítulo 34

No momento em que entrou pela porta, Carmine logo percebeu a presença do tio. Corrado olhou
para ele, observando-o da cabeça aos pés, como sempre fazia. Haven abaixou a cabeça e se
concentrou no piso de madeira. Carmine a protegeu instintivamente, abraçando-a.
– Olá, Corrado – disse Carmine, acenando com a cabeça.
O tio devolveu o cumprimento.
– Olá, Carmine.
O rapaz podia sentir a jovem tremendo; sua respiração estava ofegante. Ele suspirou e se inclinou
na direção dela, buscando desesperadamente pelas palavras que deveria dizer. O que poderia
colocar um fim no medo que surgira após ter sido torturada durante tantos anos e ver diante de si o
homem que se abstivera de ajudá-la?
– Ele é um cara decente. – disse Carmine – Quer dizer, tirando os assassinatos que tem nas costas.
Sim, mas aquele não era o problema.
Haven agarrou o braço de Carmine e cravou as unhas em sua pele.
– Essa é minha namorada, Haven. – disse Carmine – Não sei se você chegou a conhecê-la.
Todos olharam para ele, mas Carmine sentiu Haven mais relaxada em seus braços. A jovem
afrouxou assim que Corrado se virou para ela.
– Não, ainda não tive o prazer.
Haven permaneceu em silêncio por um momento antes de falar, com a voz trêmula:
– Prazer em conhecê-lo, senhor.
Ela esticou a mão e cumprimentou Corrado. Carmine ficou surpreso ao testemunhar aquele gesto:
ela estendera sua mão para o homem que jamais se preocupara em ajudá-la.
Corrado pareceu tão atônito quanto Carmine ao retribuir gentilmente o cumprimento.
– Digo o mesmo, senhorita. Bem, se vocês me dão licença, vou subir e descansar.
Ele subiu as escadas e Carmine sorriu quando Haven olhou para ele. Os olhos dela estavam cheios
de curiosidade.
– Sua namorada? Ele sabe perfeitamente o que eu sou.
Ele balançou negativamente a cabeça.
– O que você é, Haven, é minha namorada.
– Mas…
– Não tem nenhum “mas”. Pare de pensar em si mesma dessa maneira. São apenas detalhes
técnicos. – ela sorriu ao ouvi-lo usar aquela palavra – São rótulos que as pessoas nos dão. Mas eles
não nos tornam quem somos. Se você é uma escrava, então tudo o que eu sou é um Principe. É isso o
que sou pra você? Um Príncipe da Máfia?
– Claro que não.
– Foi isso o que pensei. – ele disse – Só porque algumas pessoas nos veem dessa maneira, não
significa que sejamos assim. Superaremos juntos nossos rótulos. Eles não nos transformam no que
não somos; nós nos transformamos no que queremos ser. Quero que todos esses filhos da puta se
fodam.
Ela riu.
– Ei, quando foi que você se tornou assim tão sabido?
– Tesoro, eu sempre fui sabido e esperto. – ele brincou – Sou apenas preguiçoso demais para
demonstrar minha inteligência com mais frequência.

O clima estava pesado durante o jantar naquela noite. Haven parecia desconfortável, então
Carmine colocou a mão em sua perna e fez um carinho.
Ao término do jantar, cada um foi para o seu lado e Haven seguiu para a cozinha para lavar a
louça. Celia foi atrás dela. Carmine parou na porta e ficou observando, sem se intrometer. Ele estava
encostado no batente, vendo enquanto ela colocava tudo na máquina de lavar, quando ouviu uma voz
atrás dele.
– Preciso vê-lo em meu escritório. – disse Vincent.
Carmine olhou para o pai para se certificar de que não havia feito nada que seu pai lhe dissera
para não fazer, mas logo percebeu que esse não era o caso.
– Tudo bem, subirei num minuto.
Depois de se certificar de que Haven estava bem, subiu as escadas e entrou no escritório do pai.
Ele hesitou por um momento na porta ao perceber a presença do tio.
– Ele alguma vez bate à porta? – perguntou Corrado.
– Digamos que ele está se acostumando aos poucos. – respondeu Vincent.
Carmine resmungou ao sentar à mesa.
– Vocês me chamaram aqui para me dar uma lição de etiqueta?
– Não, mas é importante ter boas maneiras. – retrucou Corrado – Isso me faz lembrar quando
minha mãe nos perguntava se havíamos crescido em um estábulo quando esquecíamos nosso lugar.
– Certo, mas sabe de uma coisa, sua mãe é uma cadela. – as palavras saíram antes que Carmine as
tivesse registrado – Merda, o que eu quis dizer é que algumas pessoas são de fato criadas em
estábulos. O que não é exatamente um exemplo de boas maneiras.
Corrado o encarou com um olhar tão severo que Carmine começou a suar. Vincent apenas sorriu,
se divertindo com a situação. Carmine queria dizer ao pai que não havia nada de engraçado naquela
situação, mas não ousou abrir a boca. Era óbvio que era capaz de dizer coisas que não deveria.
– Acho que era exatamente isso que estava tentando lhe dizer quando você me interrompeu com
esse comentário sobre minha mãe. – disse Corrado – Corrija-me se eu estiver errado, mas a sua
namorada é uma daquelas pessoas e, mesmo assim, é mais educada que você.
– Você aprende a fingir respeito pelas pessoas quando elas ameaçam sua vida, querendo ou não ser
educado. – Carmine retrucou – Eu me arriscaria a dizer que a metade das vezes em que Haven diz
“sim, senhor” por dentro ela está gritando “foda-se, seu filho da puta!”
– Você quer ser iniciado nessa vida algum dia, Carmine? – Corrado perguntou.
A súbita mudança de tópico pegou o rapaz de surpresa.
– O que disse?
– Protelar é desnecessário. Você reage de maneira impulsiva, então apenas responda. Quer ser
iniciado nessa vida?
– Eu não penso…
Corrado o interrompeu com a voz afiada.
– É isso mesmo, você não pensa. E está prestes a despertar para uma realidade bem ruim se
pretende se engajar nessa vida, pois tudo o que acabou de dizer sobre ser forçado a respeitar pessoas
que preferiria não respeitar por causa do controle que elas exercem sobre sua vida, tudo isso se
aplica a todos nós aqui. Se esquecermos nosso lugar levamos uma bala na cabeça. Ponto. Então, se a
resposta para a minha pergunta for “sim”, aconselho você a aprender algumas coisas com aquela
jovem que foi criada num estábulo e pelo menos agir de maneira respeitosa diante daqueles por
quem não tem nenhum respeito.
– Não. – Carmine respondeu. Os olhos de Corrado se estreitaram diante daquela resposta. Ele
soava como se estivesse deliberadamente tentando ser duro – Eu quis dizer que a resposta para sua
primeira pergunta é não.
Corrado caminhou em direção a Vincent.
– Agora você continua.
Vincent respirou fundo.
– Precisamos conversar sobre o que viu no cofre.
Carmine não tinha certeza de que queria mesmo ouvir a verdade em voz alta, mas sinalizou para
que o pai continuasse. Pelos vinte minutos seguintes, Vincent discorreu sobre as guerras do submundo
e todas as vidas que haviam sido destruídas; falou sobre a evidente devastação depois que toda a
poeira havia baixado. Embora Carmine não ficasse surpreso, aquelas palavras ainda o deixaram
preocupado.
– Então, ela faz parte da realeza da Máfia?
Vincent confirmou com a cabeça.
– Agora você compreende a seriedade da situação? – perguntou Corrado – Embora a intenção de
seu pai tenha sido boa, ele está fazendo exatamente o que Frankie fez – mantendo sangue real da
Máfia em sua posse. Farei de tudo para abafar isso, mas há uma chance de que a verdade venha à
tona. E quando isso acontecer, todos nós estaremos em perigo. Especialmente você e ela.
– Por que nós dois especificamente?
– Porque seu pai e eu seríamos mortos, Carmine. – explicou Corrado – E vocês dois se tornariam
peões num jogo de xadrez.
Carmine ficou em silêncio, tentando compreender tudo aquilo.
– Algo não faz sentido para mim. Por que Frankie arriscaria a vida dele mantendo aquela criança?
E por que ele não vendeu Haven? Ele não ligava pra ela.
– Não temos como saber com certeza. – disse Corrado – Mas Monica Antonelli não era uma
mulher mentalmente estável. Ela era, ah… – ele gesticulou como se tentasse pensar numa palavra –
Fuori come um balcone… completamente pazza, maluca. Foi por essa razão que eles se mudaram
para o deserto. Para que ela descansasse, se reabilitasse de seu colapso nervoso. Mas isso jamais
aconteceu. Acredito que Frankie tenha se aproveitado dessa situação infeliz para tentar ajudar sua
esposa a melhorar. Ninguém jamais suspeitaria, afinal eles viviam tão longe que ela jamais seria
vista por alguém que a conhecesse.
– Além disso, ninguém mantém bebês como escravos. – Vincent acrescentou. Não se pode colocar
uma fedelha de fraldas para lavar pratos ou cozinhar. E justamente por causa disso, ninguém teria
considerado que ela tivesse sido vendida em vez de assassinada. Crianças escravas terminam sempre
no mesmo lugar. Eles podem ter quebrado as regras de conduta e matado inocentes, mas alguns
limites jamais seriam cruzados, por nenhum de nós.
Carmine respirou fundo. Havia muito em que pensar.
– Isso é tudo? Posso ir agora?
Corrado sorriu.
– É, ele pode até invadir o lugar sem bater, mas tem bom senso o suficiente para esperar até ser
liberado.
– Nem sempre. – disse Vincent – Às vezes ele simplesmente se levanta e sai.

Na manhã seguinte, Haven preparava o café da manhã enquanto Carmine a observava a distância.
Havia momentos em que ela agia como uma garota normal, rindo e brincando, mas assim que
Corrado se aproximava, ela se afastava rapidamente.
Aquilo fazia Carmine se lembrar da mãe, o que não servia para melhorar seu humor. Sentindo-se
nostálgico, a tristeza e a saudade tomaram conta dele. Aquela não era sua formatura e ele se sentia
chateado.
O rapaz encheu um frasco de vodca antes de todos irem para a escola. Pouco depois, ele
estacionou o Mazda e saiu do carro enquanto Haven olhava nervosa ao seu redor.
– Relaxe, beija-flor. Só estamos aqui para ajudar meu irmão a dizer adeus a essa escola.
– Só não quero constranger ele.
Ele colocou o braço ao redor dela.
– Você nunca me constrangiria.
– Mas e se eu rolar escala abaixo na frente de todo mundo?
– Você não terá de descer nenhuma escada.
– Bem, não preciso de escadas. E se eu apenas tropeçar e cair?
– Você não vai cair. Eu a segurarei.
– E se eu cair e ainda levar você comigo?
– Ah, você acha que consegue me derrubar? – ele perguntou brincando – Então acho que vou cair
com você. Detesto ter de concordar com você, mas isso também não me deixará sem graça.
– Mas e se…
Quando Haven finalmente terminou de fazer suposições trágicas, todos já estavam sentados em
seus lugares e seguros no fundo do auditório montado no jardim da escola. A cerimônia teve início e
a classe que se formava fez sua entrada triunfante. Haven assistiu a tudo com os olhos arregalados.
Apesar de tudo aquilo parecer um tanto ridículo para Carmine, soava bastante significativo para a
jovem. Ela jamais tivera a oportunidade de frequentar uma escola.
Carmine não sabia o que dizer, então, ficou ali sentado ao lado dela, apreciando em silêncio
enquanto o diretor Rutledge falava sobre quão orgulhoso estava. Em geral, Carmine não prestava
atenção àquilo que ele considerava um monte de baboseiras e cujo intuito era inspirar os formandos.
Haven, porém, ouvia com tamanha paixão que isso o fez prestar atenção e ouvir o que ela estava
escutando.
– Parem por um minuto e imaginem seu futuro. – disse o orador depois de subir ao palco –
Imaginem sua vida: seu emprego, sua esposa, seus filhos, mas não pensem apenas no futuro que os
aguarda. Esqueçam todas as expectativas e concentrem-se apenas naquilo que vocês querem de
verdade. Visualizem a estrada que os levará até lá. Esse é o caminho a seguir. É nele que precisam se
focar.
Carmine puxou Haven para perto dele, beijando seus cabelos quando ela deitou a cabeça em seu
ombro.
– Nenhum homem verdadeiramente grandioso chegou ao topo fazendo o que achava que era
obrigado a fazer. Se Isaac Newton tivesse se tornado um farmacêutico como queria a mãe dele, ou se
Elvis tivesse ouvido o conselho para continuar dirigindo caminhões, hoje não conheceríamos nenhum
dos dois.
O discurso seguiu em frente e Haven absorveu cada palavra.
A turma atirou os capelos para o alto e todos começaram a se dispersar. Haven parou ao lado de
Tess e Dia num jardim e Carmine se sentou na mureta que ficava a distância. Ele a observou em
silêncio, admirando cada sorriso.
Dominic se sentou ao lado dele, ainda vestindo sua beca azul.
– Parabéns! – disse Carmine, tomando um longo gole da bebida antes de oferecer o frasco ao
irmão.
– Obrigado. – disse Dominic ao aceitar a bebida – Sabe, Haven parece feliz.
Carmine concordou com a cabeça, ainda olhando para a jovem. Ela estava rindo de alguma coisa.
– É, de fato ela parece feliz.
– Ela mudou pra caramba nesses últimos nove meses. Não é mais aquela garota assustada que um
dia apareceu em casa. E ela é esperta também. Estou me formando e no outro dia ela me corrigiu
quando disse uma palavra errada. Eu disse que me sentia nauseoso e ela se virou e disse que a
palavra que eu queria era nauseado. Caramba, mano, eu nem sabia que o sentido era diferente.
Carmine sorriu.
– É, acho que isso é bem a cara dela.
– E ela também não dá mais aqueles pulos e se contrai assustada.
– É, eu também detestava quando ela fazia aquilo.
Os irmãos revezaram a bebida mais uma vez, antes de Dominic falar novamente.
– Foi por causa dela, não foi? – Carmine confirmou com a cabeça e o irmão suspirou, devolvendo
o frasco – É, eu imaginei. Você estava com aquela cara durante a nossa reunião de família, como se
ela tivesse estraçalhado seu carro ou algo do tipo. Era a única coisa que fazia sentido.
Carmine respirou fundo, sentindo-se culpado por tê-la responsabilizado pela morte da mãe. Ainda
havia momentos em que a verdade era difícil de ser encarada. Sempre iria doer, mas era uma dor
com a qual teria de se acostumar.
– Acho que a mamãe teria ficado feliz em ver ela. – comentou Dominic – Digo, para ver o quanto
ela mudou. Acho que era exatamente isso que ela queria, e você fez no lugar dela.
– Eu não fiz nada.
Dominic soltou uma gargalhada.
– O caralho que não fez. Acha que tudo isso foi um feito do papai? Ele trouxe ela para cá, mas foi
você quem fez a diferença. A mamãe sempre disse que você faria coisas maravilhosas na vida, e hoje
eu vejo isso, porque independentemente do que fizer amanhã, Carmine, o que importa é o que fez
hoje.
Carmine olhou para Haven enquanto pensava sobre as palavras do irmão. Ela parecia tão
relaxada, tão confortável, tão normal perto das outras garotas. Só de olhar para ela, rindo e
conversando, era difícil imaginar que ela havia passado por tudo o que passou.
– Tudo o que eu fiz foi amar Haven.
– Já parou pra pensar que talvez fosse disso que ela precisasse? Às vezes a gente não tem que
fazer nada especial, apenas sermos nós mesmos e estarmos presentes.
Os dois continuaram lá até que a bebida chegasse ao fim. Carmine colocou o frasco no bolso e
Dominic se levantou.
– Sabe o que é meio engraçado? Bem, não exatamente engraçado, mas talvez irônico? Ela tem
vivido com a gente há nove meses, e leva nove meses para se criar uma vida. É como se ela tivesse
renascido.
Dominic deu alguns passos, então parou e franziu o cenho.
– Na verdade, não acho que isso seja irônico. É bem provável que Haven me corrigisse novamente
e dissesse que a palavra correta seria “simbólico.”
Carmine deu risada.
– Ou “metafórico.”
Capítulo 35

Um arrepio correu pelo corpo de Carmine, fazendo com que seus músculos ficassem cada vez mais
tensos. Haven o encarou enquanto dormia, observando o movimento no peito do jovem. Ela sentiu
algo dentro de si; um calor surgiu em seu peito, o que a assustou e a fez sentir como se estivesse
flutuando no ar.
Aquilo era esperança.
Haven pegou o cobertor e cobriu Carmine antes de sair da cama. Ela se vestiu, olhando para ele
uma última vez antes de descer para a cozinha. Retirou do armário todos os ingredientes para
preparar um bolo de creme italiano e já estava com a massa pronta quando ouviu passos fora da
cozinha. Eles pararam, como se alguém estivesse tentando passar despercebido.
Mas Haven percebeu.
Suas mãos começaram a tremer conforme ela despejava a massa em fôrmas e tentava ignorar
aquela presença. Ela então colocou tudo no forno e ligou o timer. Um calafrio desceu pela espinha da
jovem quando Corrado finalmente abriu a boca, falando com a voz tranquila e sem emoção.
– Bom dia.
– Bom dia, senhor Moretti. – ela disse, virando-se para olhar para ele. Ele estava vestido com um
terno preto. O paletó estava aberto e as mãos, no bolso – Posso lhe servir alguma coisa?
Ele não se moveu; de fato ele parecia tanto uma estátua que por um momento Haven imaginou se
ele estaria respirando.
– Não. – ele finalmente respondeu. Aquela palavra ecoou no tenso silêncio que se formara.
Ela terminou de preparar a cobertura e ele se moveu em direção a ela. Em uma reação instintiva, a
jovem deu um passo para trás. Se Katrina havia lhe ensinado algo, era ficar fora do caminho sempre
que possível.
Corrado pegou uma garrafa de água e deu um passo para o lado, observando um pouco mais.
Nesse momento, o doutor DeMarco entrou e olhou de modo curioso para Corrado, antes de se voltar
para Haven e cumprimentá-la:
– Bom dia, dolcezza.
Ela soltou um suspiro de alívio diante da gentileza em sua voz.
– Bom dia, senhor.
– Estou surpreso em vê-la de pé tão cedo hoje. – ele comentou – Suponho que Carmine ainda
esteja dormindo.
– Sim, senhor.
O timer do forno tocou e Haven logo retirou as duas formas de bolo do forno. DeMarco manteve-
se de pé ao lado dela, olhando pela janela com uma expressão ansiosa. O sol já estava nascendo e
iluminava a parte da frente da casa, assim como a floresta que cercava a propriedade.
– Eles logo estarão aqui. – ele disse, voltando sua atenção para o bolo – Bolo de creme italiano.
– Eu preparei para o aniversário de Carmine.
Uma expressão de irritação surgiu no rosto de DeMarco.
– É fascinante, não é mesmo? – perguntou Corrado – Nunca antes tive uma sensação tão forte de
déjà vu.
DeMarco cerrou os dentes, voltando-se novamente para fora.
– Quando terminar, criança, preciso que se certifique de que Carmine esteja acordado. Eu faria
pessoalmente, mas algo me diz que ele provavelmente não está em trajes decentes.
Ele enfatizou a palavra “decentes”, e Haven ficou vermelha.
– Sim, senhor.
Corrado deu risada.
– Tenho certeza de que este é um daqueles momentos aos quais Carmine se referia, Vincent.
DeMarco acenou negativamente a cabeça e saiu da cozinha, enquanto Corrado o seguiu lentamente.
– Quando acordar Carmine, diga a ele que o padrinho dele logo estará aqui. – ele disse,
sussurrando enquanto saía – Tale il padre, tale il figlio. Tal pai, tal filho.

Teresa Capozzi apreciava as coisas boas da vida: os carros importados mais velozes, os casacos
de pele mais pesados e os vinhos Dom Perignon das melhores safras. Um ar de pura superioridade
exalava de cada um de seus poros; o comportamento dela se baseava em pura ambição. Todos sabiam
que a senhora Capozzi só se preocupava com ela mesma e sua próxima bebida. Ninguém gostava
dela, nem o seu marido, com quem já estava casada há quarenta anos, mas isso não importava. Teresa
Capozzi não queria que ninguém gostasse dela; queria que as pessoas a invejassem.
Da janela da cozinha, Haven observou quando a mulher saiu do banco do passageiro do Porsche
alugado e ajeitou seu vestido preto apertado. Em seguida, desfilou em direção à casa com seus
sapatos de salto alto, ignorando Salvatore quando este tentou lhe dar o braço.
Quanto mais Teresa se aproximava, melhor Haven conseguia enxergar a mulher, que mais parecia
feita de plástico; o rosto dela não esboçava nenhuma expressão e estava coberto por uma pesada
maquiagem. O corpo dela era desproporcional e cada parte dela parecendo ter sido esticada ou
preenchida artificialmente.
O doutor DeMarco cumprimentou o casal e Celia preparou as bebidas, ignorando Haven quando
ela lhe disse que poderia cuidar de tudo. A jovem então preparou uma Coca-Cola com cereja para
Carmine, completando o copo com um pouquinho de vodca. Ambas levaram os copos até a sala de
estar, com a ansiedade de Haven aumentando à medida que se aproximava das visitas. Ela então
esticou a mão trêmula e ofereceu o copo de uísque a Salvatore.
– É bom revê-la. – ele disse.
– Digo o mesmo, senhor – respondeu, evitando encará-lo. Em seguida ela ofereceu um copo de
licor de laranja à esposa dele.
– Aqui está, senhora.
Teresa o pegou e o levou ao nariz.
– Isto aqui não foi feito corretamente. – ela disse, devolvendo o copo à jovem com um tranco e
derrubando um pouco do líquido no chão.
– Sinto muito. – disse Haven, pegando o copo. Ela então se virou e quase deu de cara com Celia,
que imediatamente tomou o copo de sua mão.
– Imagine, devo estar perdendo a prática. Pensei que estivesse perfeito.
Teresa olhou para Celia e Haven.
– Devo ter me enganado. – ela disse, esticando a mão, pegando o copo e tomando um gole – Está
perfeito, Celia, como sempre.
– Eu imaginei que sim. – Celia respondeu, com um tom de prazer na voz – Todos nos enganamos às
vezes, não é?
A expressão no rosto de Teresa mostrava que ela não compartilhava da mesma opinião.
Celia se sentou do outro lado da sala e Corrado se acomodou no braço da poltrona. Haven
entregou a bebida a Carmine e começou a se afastar, mas ele a puxou e a sentou no seu colo,
colocando o braço ao redor da jovem para protegê-la. Teresa tossiu ao engasgar com a bebida. Ela
então encarou DeMarco e soltou um riso amargo.
– Teresa. – Salvatore alertou, mas ela simplesmente sorriu enquanto ele voltava sua atenção para
Carmine – É uma pena que não possamos ficar muito tempo, Principe. Temos um voo marcado;
vamos passar as férias na Flórida. Mas não podia deixar de passar aqui para cumprimentá-lo.
– Obrigado. – disse Carmine – Não esperava te ver hoje.
– Mas não é todo dia que meu afilhado completa dezoito anos. Essa é uma data muito importante.
– Não me parece tão importante.
Salvatore deu risada.
– Mas é. Tem planos para esse verão?
Carmine segurou Haven com mais força, mas respondeu com a voz tranquila.
– Tenho uma viagem com o time de futebol da escola. Fora isso, acho que vamos apenas curtir um
pouco antes de meu irmão viajar.
– E depois que o verão terminar?
– Bem, acho que o último ano na escola será um pouco puxado.
Salvatore ergueu as sobrancelhas.
– E depois que terminar a escola?
Carmine ficou em silêncio por um momento, então disse.
– Acho que vou pra faculdade.
O sorriso de Salvatore se tornou mais discreto. Ele olhou para DeMarco como se esperasse que
ele dissesse alguma coisa, mas ele permaneceu em silêncio.
– E a garota? – perguntou Salvatore, voltando o olhar para Haven – Estou curioso quanto ao que
sua família pretende fazer com ela. Considerando a situação, imagino que não pretenda permitir que
ela seja vendida.
Os olhos de Carmine se estreitaram.
– Claro que não.
– Claro que não. – Salvatore repetiu – Mas acho que depois que você partir para a faculdade, seu
pai não se sentiria confortável em viver aqui sozinho com a jovem. Pense nas fofocas. Tenho certeza
de que os rumores e boatos já começaram.
DeMarco pigarreou e disse.
– Aos poucos eu venho deixando que ela se acostume ao mundo lá fora, para que possa viver nele.
– Isso é muito nobre de sua parte, Vincent, mas não tenho certeza de que seja algo inteligente a
fazer. – retrucou Salvatore – Ela deve saber de muita coisa. Como poderemos ter certeza de que não
sairá por aí falando o que viu e ouviu?
DeMarco olhou para a jovem e disse.
– Eu respondo por ela.
Salvatore respondeu com uma risada maldosa.
– Depois do que aconteceu quando… Bem, você sabe… Não acho que sua opinião possa ser
considerada neste caso.
– A situação é bem diferente. – retrucou DeMarco.
– Sim, é verdade, Vincent. Você conhece perfeitamente os perigos e riscos. Você não poderá soltá-
la para o mundo sem que alguém responda pelas ações dela, e não acho que esteja em condições de
fazê-lo.
Haven sentiu-se nauseada ao ver seu destino sendo discutido como se ela não estivesse presente,
mas igualmente chocada pelo fato de o doutor DeMarco pretender deixá-la ir. Ela não compreendia a
razão pela qual aquele homem tivera o trabalho de pagar por ela se planejava deixá-la livre.
– Talvez ela pudesse vir comigo. – disse Salvatore – Eu mesmo tomaria conta dela em minha casa.
– De jeito nenhum. – retrucou Carmine – Se precisa que alguém responda pelos atos dela, eu
mesmo o farei.
Salvatore balançou a cabeça, em reprovação.
– Você não pode responder por ela, uma vez que não faz parte da organização. Além disso, tenho
certeza de que levá-la para minha casa é o melhor a fazer.
Todos se encontravam num impasse quando outra voz se pronunciou, calma e firme
– Eu o farei.
A atenção de todos se voltou para Corrado.
– O quê? – perguntou Salvatore.
– Eu disse que responderei pela garota. – repetiu.
Salvatore o encarou como se um golpe o tivesse acertado.
– Tem certeza de que deseja fazer isso?
– Não se trata de querer. – respondeu Corrado – Se é algo necessário, eu o farei. Confio em
Vincent quando ele diz que ela não falará e, se ela o fizer, eu mesmo cuidarei dela. É tudo muito
simples.

As visitas se foram por volta das seis da tarde, e Carmine abriu os presentes que ganhara de sua
família. Sentindo-se desconfortável por não ter lhe comprado nada, Haven assistiu enquanto os
outros o bombardeavam com uma infinidade de pacotes. Depois disso, todos resolveram assistir a
um filme, mas Haven não conseguia se concentrar na tela.
Depois de algum tempo, ela disse a Carmine que iria subir e ficar um pouco sozinha. Foi direto
para o quarto dela, agarrou um travesseiro e dormiu. Foi acordada mais tarde, quando sentiu um
movimento no colchão. Piscou algumas vezes, ajustando os olhos à escuridão.
Carmine se deitara ao lado dela.
– Oi.
– Oi. – ela disse, sonolenta – Que horas são?
– Meia-noite. – ele disse, no momento em que ela o abraçou. O corpo dele estava quente e exalava
uma mistura de colônia e fumaça – Nós assistimos Scarface. Imagine só.
– Legal. – ela disse, embora aquele título soasse como um filme de terror para ela, fazendo-a se
lembrar de monstros deformados. Foi então que alguns de seus próprios fantasmas surgiram em sua
mente e ela apertou os olhos para fazê-los desaparecer – Eu sinto muito por não ter lhe dado nada de
presente de aniversário.
– Tenho tudo de que preciso, Haven. Agora nós dois podemos ficar juntos.
– Eles realmente quiseram dizer aquilo a meu respeito?
Carmine enfiou o rosto nos cabelos da jovem.
– Sim.
A confirmação mexeu com as emoções de Haven.
– Mas é assim tão fácil?
Ele suspirou.
– Eu não chamaria de fácil. O mais difícil ainda está por vir. Mas, a partir de agora, você poderá
fazer o que quiser: frequentar a escola, casar comigo, encher a casa de crianças, se for isso o que
desejar, é claro. Você também poderia me dar um chute na bunda, se preferir.
Ela ficou surpresa por ele pensar naquilo.
– Eu jamais deixarei você.
– É muito bom ouvir isso, beija-flor. Mas só estou dizendo que você poderia, se quisesse.
– O que quer dizer quando alguém responde por você?
Em princípio ele ficou em silêncio e ela quase caiu no sono imaginando que ele não estava em
condições de responder. Mas ele finalmente falou, em voz baixa:
– Quer dizer que essa pessoa se coloca como garantia de sua fidelidade. Os escravos não são os
únicos que pagam pelos erros dos outros, Haven. Corrado se comprometeu com Salvatore; ele jurou
que se você cometesse um erro, ele pagaria por ele com a própria vida.
Ela empalideceu.
– Mas eu não quero que ninguém se machuque por minha causa.
– Corrado sabe o que está fazendo. – ele respondeu – Você pode não confiar neles, mas precisa
confiar em mim quando lhe digo que essa é a única saída, doçura. É o único jeito de você poder ser
livre.
Livre. Certa vez ela olhara o significado daquela palavra no dicionário que Carmine lhe dera de
presente, e memorizou os sinônimos que apareciam na página: independente, liberto, solto, autônomo,
soberano, anistiado, inocentado, desimpedido, irrestrito… Já os antônimos eram: preso, encarcerado,
escravizado… Aquela última palavra definira sua vida até aquele momento, mas agora já não se
aplicava mais. Hoje, por causa de Carmine, ela sabia o significado da palavra “livre” e logo, ele
percebeu, também saberia como era a sensação de liberdade.
Capítulo 36

Carmine ainda estava tonto quando tentava se arrastar para fora da cama na manhã seguinte.
Depois de tomar um banho, ele se olhou no espelho e percebeu que precisava urgentemente cortar o
cabelo e fazer a barba. Fora isso, ele se parecia com o Carmine DeMarco de sempre. A mesma
pessoa que vira cada dia de sua vida. Entretanto, ele já não se sentia o mesmo. Não que ele tivesse se
tornado mais velho ou experiente, longe disso. Era por causa dela.
Ele se arrumou, saiu do quarto e sorriu ao se deparar com Haven na biblioteca. Com as pontas dos
dedos ela tocava nas lombadas dos livros. Então retirou um deles da estante e franziu a testa ao
admirar a capa. Ele riu de sua expressão séria e ela se voltou para ele.
– Não ouvi você sair do quarto.
– Você não é a única que sabe andar sem fazer barulho, ninja.
Ela recolocou o livro na estante.
– Hum, bem, talvez eu deva te arrumar um sino.
– Ei, pelo menos eu não faço as pessoas quase terem um ataque cardíaco. Você costumava me
assustar, sabia? Em algumas ocasiões eu achei que precisaria de respiração boca a boca.
Ela ergueu as sobrancelhas.
– Não tenha tanta certeza. Você faz meu coração acelerar cada vez que se aproxima.
Ele caminhou até onde ela estava e se inclinou para lhe dar um beijo, pressionando a palma da
mão contra o peito da jovem.
– E como está o coração agora?
– Parece que vai explodir.
– Mas não vai. – ele disse – Ele é forte; não vai se partir.
O sorriso no rosto dela diminuiu.
– Você promete?
Carmine a encarou, confuso com a repentina mudança em seu comportamento.
– Prometo. Farei o que for preciso para que ele continue batendo.
– Que bom.
– Muito bem, mas o que você está fazendo aqui na biblioteca?
Ela se virou e olhou mais uma vez para os livros.
– Estava procurando algo para ler. Sinto que deveria aprender alguma coisa.
– Eu acabo de sair em férias escolares e você decide que é hora de aprender alguma coisa? Isso
não faz sentido.
– Eu sei, mas se vou ser uma pessoa livre, não deveria continuar sendo estúpida.
– Você não é estúpida, mas não há nada de errado em aprender. E se você quer aprender, tudo bem,
estou plenamente a favor. Aliás, sabe de uma coisa? Tenho uma ideia.
Ele então pegou na mão dela e a puxou escada abaixo. Já no segundo andar, Carmine hesitou diante
do escritório do pai e resolveu bater à porta. Corrado a abriu, saindo da frente para que o casal
passasse. Haven ficou tensa ao se sentar à mesa, e olhava nervosa para Carmine enquanto Corrado se
movia para o outro lado da sala.
– Vocês precisam de alguma coisa? – perguntou Vincent por detrás de sua escrivaninha, com os
dedos ainda no teclado do notebook.
– Bem, eu estava imaginando se seria muito difícil conseguir um DEG para a Haven.
Vincent se encostou à cadeira, ajeitou os óculos no lugar e perguntou.
– Agora?
– Bem, não exatamente nesse minuto, mas o quanto antes.
– Isso depende de para que você o deseja. – respondeu Vincent – Poderíamos mandar fazer um
para ela, mas talvez percebam que é falsificado.
– Mas que vantagem isso teria se ela não aprendesse nada? Estou falando em ajudar ela a
conseguir tirar um diploma de verdade.
– Ah, entendo. Bem, suponho que não seja assim tão difícil. Ela precisará de alguns documentos e
uma carteira de motorista como prova de identidade, mas acho que posso mexer uns pauzinhos e
conseguir isso para ela. Tudo o que teria de fazer é prepará-la para a prova.
– Fala sério? É assim tão simples? Se eu soubesse disso antes.
– Não comece a ter ideias mirabolantes, filho. – disse Vincent – Você já chegou até aqui e pode
perfeitamente terminar o colégio. Ela não teve essa oportunidade, mas não há razão para não se
inscrever para o DEG se quiser.
Haven olhou para os dois.
– DEG?
– Quer dizer Diploma de Educação Geral – explicou Carmine –, ou Diploma de Equivalência
Geral. Ah, sei lá.
Corrado balançou a cabeça e disse.
– Desenvolvimento Educacional Geral.
– Ah, isso não importa, poderia significar até Distúrbio Endócrino Generalizado.
Vincent soltou uma gargalhada.
– É Transtorno Endócrino, filho, e você acabou de desejar que sua namorada sofresse de
deficiência hormonal.
– Não, não quero isso pra ela. – respondeu Carmine – Eu estou falando de um diploma.
Haven ergueu a cabeça.
– Um diploma?
– Sim. – ele disse – É só um pedaço de papel, mas significa que sabe o suficiente para ir para o
ensino médio. Depois você poderá até entrar numa faculdade.
Os olhos dela se arregalaram.
– E eu posso conseguir um desses diplomas? Esse DEG?
– Sim, tesoro. – respondeu o rapaz.
– Se quiser ter um – Vincent completou –, a decisão é sua.
Os olhos de Haven se encheram de lágrimas. O homem que controlava sua vida, seu mestre,
acabara de lhe dizer que a decisão caberia a ela. Ela tentou falar, mas nenhum som saiu de sua boca,
então ela apenas acenou afirmativamente.
– Então está decidido. – disse Vincent – Tenho certeza de que encontrarão materiais disponíveis
on-line. Mas para ir em frente precisarão aguardar pelos documentos.
Vincent voltou a se concentrar no notebook. A conversa estava encerrada.
No momento em que os dois pisaram no hall, Haven se atirou para cima do rapaz, que quase
perdeu o equilíbrio, mas conseguiu segurá-la firme e erguê-la para que colocasse as pernas ao redor
do corpo dele.
Haven enfiou o rosto no pescoço do namorado e os dedos por entre os cachos. Carmine ficou
surpreso e em silêncio, sem conseguir fazer nada além de ficar ali e abraçá-la.

Quando chegaram à cozinha, Carmine tirou o bolo da geladeira e Haven ficou observando
enquanto ele pegava uma fatia.
– Então, gostou do bolo?
Ele pegou um garfo.
– Bolo de creme italiano sempre foi o meu favorito.
– É mesmo?
Ele sorriu, enfiando uma garfada na boca.
– Bem, agora definitivamente é.
Haven riu no momento em que Dominic entrou na cozinha.
– Ei, não acredito que esteja comendo sozinho. Isso é trapaça.
Dando de ombros, Carmine sentou-se no balcão enquanto Domimic cortava uma enorme fatia de
bolo para ele. Logo o resto da família se juntou, Corrado e Celia também pegaram suas fatias e se
colocaram ao lado. DeMarco foi à geladeira e pegou uma garrafa de água. Ao virar-se, viu que todos
estavam comendo e se voltou para o bolo.
– Já experimentou, pai? – perguntou Dominic.
– Não.
Dominic cortou outra fatia e a colocou num pratinho, entregando-o ao pai.
– Deveria.
– Acho que não. – disse Vincent, olhando para o bolo com certo desgosto.
Dominic ergueu os ombros.
– Você não sabe o que está perdendo. Este é o melhor bolo que já provei. Ela é uma ótima
cozinheira.
– É verdade. – disse Carmine – É provável que seja o espírito italiano dentro dela.
Ele ficou tenso ao perceber o que havia dito e reparou que seu pai tivera a mesma reação. Vincent
abriu sua garrafa de água e tomou um gole, enquanto Carmine tentava achar algo para dizer e mudar
de assunto. Porém, antes que encontrasse as palavras, Dominic caiu na risada e disse:
– É, só pode ser. Todo mundo aqui sabe o quanto Carmine tem se dedicado a colocar seu espírito
italiano dentro dela.
Vincent engasgou com a água e começou a tossir. Celia levou a mão à boca tentando conter o riso,
mas Dominic não se importou e caiu na gargalhada. Porém, o riso acabou quando Vincent olhou para
o filho mais velho com reprovação. Carmine esperou que ele dissesse alguma coisa, mas ele apenas
saiu.
Depois que ele já havia se afastado, todos começaram a rir novamente. Haven olhou para Carmine,
confusa.
– Pensei que sua origem fosse parcialmente irlandesa.
Carmine tentou abrir a boca para responder, mas a fechou novamente, balançando negativamente a
cabeça. Não havia como explicar aquilo sem embaraçá-la na frente de todos.

A noite caiu e a casa ficou tão silenciosa como um cemitério. Vincent estava em seu escritório,
olhando para o prato que havia sobre a escrivaninha. A pequena fatia de bolo era suficiente para que
ele provasse, mas a ideia de fazê-lo o deixava nauseado.
Maura costumava fazer bolo de creme italiano. Era sua sobremesa favorita.
Vincent pegou na pequena aliança que trazia pendurada no pescoço; ela não entrava nem até a
metade de seu dedo mindinho. O metal estava frio sobre a pele, mas nem tanto quanto ele se sentia
internamente.
Depois de olhar para o bolo por mais um minuto ele pegou o prato e o atirou na lixeira, fazendo
um barulho seco ao tocar na lata vazia. Vincent não pensou mais naquilo. Voltou a colocar a corrente
por dentro da camisa, escondendo a lembrança da esposa, então pegou uma pilha de papéis que
estava na escrivaninha.
Exames de raio-X, laudos laboratoriais, doenças, alergias, infecções, vírus. Era um diagnóstico
ruim atrás do outro, mas Vincent preferia aquilo aos pensamentos que não saíam de sua cabeça.
Apesar das tantas vidas que ele destruíra, do número de pessoas que ele vira morrer, também
havia muita gente que ele salvara. E, por mais cansado que estivesse, em algum lugar naquela pilha
de papéis deveria haver algum paciente que ele pudesse ajudar. Mesmo que temporariamente.
Capítulo 37

O calor suave de junho deu lugar ao verão de julho. Temperaturas elevadas varriam a região,
provocando chuvas intermitentes ao longo do dia e algumas tempestades mais fortes. Os vaga-lumes
voltaram a aparecer, brilhando no escuro. Uma sensação de felicidade se apossou de Haven.
Todas as noites ela caminhava descalça pelo jardim ao lado de Carmine. A jovem subia nas
árvores e tentava pegar os insetos; colhia flores e corria por entre os borrifadores de água. Carmine
não tirava os olhos dela. O apoio dele se tornara inestimável para Haven, que não conseguia sequer
imaginar passar um único dia longe dele. Entretanto, ela teria de aprender, e ambos sabiam disso.
– Não vai se atrasar, cara? – perguntou Dominic ao entrar na sala de estar, onde ambos já estavam
sentados. Haven suspirou, tendo feito a mesma pergunta há apenas alguns segundos. Ela estivera
tentando convencer Carmine a sair pelos últimos trinta minutos, mas ele não se movia.
Carmine escorregou no sofá.
– Eu não vou.
Dominic sorriu.
– Está com medinho de se machucar?
– Não estou com medo. – retrucou Carmine.
– Então pare de choramingar e vá logo.
Carmine resmungou algo ininteligível, sem demonstrar a menor intenção de se mover. Ele havia
planejado passar uma semana treinando futebol em Chapel Hill. Mostrara-se sempre muito
entusiasmado com a ideia e sempre falava sobre o que faria ao chegar lá. Haven ouvira todos os
planos dele, embora não entendesse praticamente nada do vocabulário que ele usava quando falava
do esporte. Ela apenas ficava feliz por ele compartilhar com ela.
Todavia, naquela manhã, quando Haven abriu os olhos, não havia nenhum sorriso nos lábios do
namorado. O entusiasmo desaparecera. Tudo o que ela viu foi a própria ansiedade refletida no rosto
dele.
– Você tem que ir. – ela repetiu.
Ele por sua vez continuava a dizer a mesma coisa que estava a dizer desde que havia acordado.
– Eu não vou!
Foi então que ele começou a fingir estar interessado na TV, mas ela podia perceber seus olhos
desviando na direção do relógio. O tempo estava passando. Ele deveria estar na Universidade da
Carolina do Norte até as cinco da tarde, para se apresentar ao grupo, e já passava da uma hora da
tarde.
– Eu ainda estarei aqui quando você voltar.
Ele desviou o olhar para ela e disse:
– Mas é claro que vai. Onde mais você estaria?
Ela suspirou; aquela não era a coisa certa a dizer.
– Não se preocupe com ela, cara. – disse Dominic, parando atrás dos dois – Tenho planos para a
sua namorada para a semana toda. Ela ficará tão ocupada que nem perceberá que você não está aqui.
Haven sorriu, mas Carmine não acreditou naquelas palavras.
– Você a colocará em mais enrascadas do que ela conseguiria se meter sozinha. – respondeu
Carmine – E talvez seja justamente por isso que eu não deva ir.
Dominic riu.
– Bem, se não vai, acho que é porque não deve confiar muito nela.
Carmine ficou furioso.
– Você não sabe o que está dizendo.
– Está com medo de que ela não sobreviva sem você?
– Eu sei que ela consegue.
– Então, por que não vai?
Carmine encarou o irmão, mas não respondeu.
De repente a porta da frente se abriu e DeMarco parou no hall de entrada.
– Pensei que a essa hora já tivesse partido. – ele disse, concentrando-se em Carmine – Não vai se
atrasar?
Carmine fez um bico.
– Será que vocês podem largar do meu pé? Eu já vou, num minuto.
DeMarco saiu da sala e Dominic deu um tapinha no ombro do irmão.
– É isso aí, cara! Quanto antes sair, mais rápido eu e Haven começaremos a nos divertir.
Carmine esfregou o braço, mas preferiu não responder ao irmão. Dominic saiu da sala e Carmine
puxou Haven para perto dele.
– Eu a esconderia em minha mochila se pudesse.
– Não se preocupe. Vá até lá e faça uns gols bem bonitos e também uns passes corridos e tudo
mais.
– Eu sou zagueiro, tesoro. Não faço gols. E, aliás, não é passes corridos que se fala, é passes
curtos.
– Ah, tudo bem, então vá em frente, zagueiro.
Ele sorriu e a soltou.
– Não deixe que aquele cafone a force a fazer nada que não queira, hein?
– Ok. Mas será apenas por uma semana, ficarei bem. – ela não tinha certeza de quem realmente ela
estava tentando convencer com aquelas palavras, Carmine ou ela mesma.
Ele deslizou as pontas dos dedos sobre o rosto dela e a beijou antes de se levantar.
– Vejo você em poucos dias.
– Até mais, Carmine. – ela disse, deixando-o ainda mais tenso. Ele então se abaixou, pegou suas
coisas e com os passos trêmulos seguiu em direção à porta. Ela imaginou que ele ainda fosse se virar
e dizer algo, mas ele apenas acenou com a cabeça. Haven se sentou na sala de estar e o observou
enquanto saía.
– Você definitivamente irá se atrasar. – comentou DeMarco.
– Eu estou indo. Isso já não é o suficiente?

Naquela noite, o quarto de Carmine estava silencioso sem a presença do rapaz. Na ponta dos pés,
Haven entrou e surrupiou o travesseiro favorito do rapaz antes de correr de volta para seu quarto,
onde pulou na cama. Ela dormiu abraçada com ele, sentindo seu perfume e um pouquinho da presença
dele.
Haven fechou os olhos e rezou para o sono vir rapidamente.
Na manhã seguinte, ela ouviu alguém batendo firme na porta e deu um pulo da cama. Logo ela
ouviu a voz entusiasmada de Dominic.
– Levante e se anime!
A jovem olhou para o relógio. Era pouco mais de sete da manhã. Ela abriu a porta no momento em
que Dominic já se preparava para bater novamente, e ele sorriu feliz, erguendo as sobrancelhas.
– Cansada demais pra trocar de roupas ontem à noite?
Ela olhou para si mesma e percebeu que ainda vestia as mesmas roupas do dia anterior.
– Eu nem me lembrei disso. Por que se levantou tão cedo?
– Porque estou faminto! Preciso tomar café.
– Quer que eu lhe prepare algo?
Ele riu.
– Claro que não. Ei, garota, tem certeza de que já acordou? Realmente achou que eu a tiraria da
cama pra cozinhar pra mim? Vamos sair pra tomar café… Você e eu.

A lanchonete estava lotada quando eles chegaram e, para o desalento dos que aguardavam na fila,
Dominic conseguiu uma mesa imediatamente. Olhando no cardápio, Haven pediu rabanadas, enquanto
Dominic listou uma série de itens: ovos, bacon, linguiça, panquecas, frutas e torradas. Ela não ficou
surpresa, pois estava acostumada a cozinhar para ele, mas sorriu de qualquer jeito.
– O que posso dizer? Estou em fase de crescimento.
– Acho que essa fase já passou, Dom.
Ele riu, levantando a manga da camisa e flexionando seus músculos modestos.
– Preciso de combustível. Essas são as únicas armas que carrego e elas não surgem do nada,
maninha.
– Maninha. – ela disse, repetindo as palavras do rapaz.
– Claro – ele disse –, afinal algum dia você pode tornar isso oficial se casando com o cabeçudo
do meu irmão.
Ela sorriu imaginando a possibilidade.
A garçonete voltou com a bandeja e os dois comeram. A despeito de o lugar estar cheio e
tumultuado, um silêncio confortável pairava naquela mesa.
– Você alguma vez imaginou que as coisas sairiam assim? – perguntou Dominic depois de alguns
minutos.
– Assim como?
Ele acenou com o garfo na mão, referindo-se a tudo o que havia acontecido.
– Dessa maneira: vir pra cá; ter uma vida nova, uma família; conhecer Carmine. Tudo isso.
Alguma vez imaginou que isso pudesse acontecer?
Ela contemplou a pergunta enquanto ele enfiava mais uma garfada na boca.
– Minha mãe dizia que um dia eu acabaria num lugar como esse, mas no fundo eu imaginava que
aquela era a vida que me fora dada e, portanto, eu teria de me acostumar com ela.
– Eu entendo o que quer dizer. – disse Dominic – Sabia que eu fui adotado?
Ela não esperava por aquilo.
– Não.
– Eu fui. Minha mãe biológica… Bem, não me refiro a Maura, embora Maura tenha sido uma mãe
fantástica em todos os aspectos. Mas a mulher que me deu à luz foi estuprada, e daí eu nasci.
Haven ficou boquiaberta.
– Eu também nasci por causa de um estupro.
– Eu imaginei. – ele disse – Viu, afinal não somos assim tão diferentes. No fundo, ninguém é
diferente. A única diferença é que minha mãe adotiva tropeçou em mim na hora e no momento certos
e me salvou do que poderia ter sido um desastre. Eu fico pensando o tempo todo onde eu estaria se
eles não tivessem me adotado.
– Você teve sorte.
– Tive sim. – ele concordou – Você e Carmine também não são diferentes. Meu irmãozinho é um
garoto mimado, e é por isso que é enjoado. Todo mundo sempre deu tudo o que ele queria. Não estou
dizendo que eu tenha sido negligenciado, porque não fui, mas Carmine recebeu o tipo de atenção com
a qual nunca tive de lidar.
– Que tipo de atenção?
– Que tipo de atenção? Bem, atenção dos amigos do meu pai. – ele olhou para os lados para se
certificar de que ninguém os estivesse escutando – No meu batizado, quando eu era criança, tinha
pouco mais de vinte convidados. Foi uma festa tranquila; um almoço caseiro. O batizado de Carmine
aconteceu poucos meses depois do meu, e centenas de pessoas compareceram. O evento teve de
acontecer num salão grande, com garçons e coisas do tipo.
Haven franziu a testa.
– Isso é horrível.
– Não, de jeito nenhum. – ele disse – Tenho certeza de que fiquei com ciúmes na época, mas não
invejo meu irmão. Antes mesmo de ele saber falar ou andar, as pessoas já planejavam seu futuro. Sou
grato por jamais ter sofrido esse tipo de pressão.
– E por que ele? – ela perguntou – Por que não você?
– Porque ele é filho do meu pai; é um DeMarco, e é isso o que importa: o sangue italiano. – ele fez
uma pausa – Ou pelo menos era com isso que eles costumavam se importar. Já não tenho certeza.
Mas, de qualquer modo, em relação ao que estava dizendo: Carmine é mimado, mas, lá no fundo, não
passa de um garoto aterrorizado, tentando encontrar seu lugar, assim como você. Ambos estão em
busca da mesma coisa.
– Acha mesmo?
– Tenho certeza. – ele respondeu – E minha mãe teria chamado a isso de destino.

Depois de sair da lanchonete, Dominic parou na casa dos Harper para pegar Tess. Ela atirou uma
mochila no banco de trás do carro e cruzou os braços no peito, ostentando o bico de sempre ao se
sentar no banco de trás, em completo silêncio.
Depois que chegaram à casa, Tess jogou uma sacola na mão de Haven.
– É um maiô.
Haven ficou surpresa. Um presente?
– Obrigada, mas não preciso de um.
Tess achou graça e retrucou.
– Se você vai ao lago comigo, querida, vai precisar de um.
– Lago? – Haven perguntou – Que lago?
– Vamos passar o dia no Lago Aurora. – respondeu Dominic – Será incrível.
Haven olhou para a sacolinha.
– E eu devo usar isso?
Tess confirmou com a cabeça.
– Sim.
Haven subiu até o quarto, tirou as roupas e vestiu o maiô preto, prendendo-o atrás do pescoço. O
corte da parte de baixo era como shorts. A jovem se arrumou o melhor que pôde, tentando não deixar
nada à vista.

O Lago Aurora ficava num vale a dez minutos dos limites de Durante. A comunidade de lá contava
com apenas algumas centenas de moradores e todos viviam espalhados pelos quarenta e três
quilômetros de sua costa. Embora fosse um lago artificial, a maior parte das terras estava intocada no
seu entorno.
Haven saiu do carro e pôde avistar a água de longe. Ela quase não conseguia ver o outro lado, mas
podia perceber que árvores bem altas o cercavam por todos os lados. Apesar de ser enorme, algo no
lugar a deixou tranquila. Um pouco além do gramado onde tinham estacionado havia areia escura, o
que lhe lembrou o solo do deserto em que vivera na infância.
– Bem-vinda ao paraíso… ou pelo menos ao mais próximo que temos dele por aqui. – disse
Dominic, já colocando algumas cadeiras de praia debaixo do braço.
Todos caminharam em direção à água, escolhendo um lugar na areia que tivesse alguma sombra.
Não havia uma única nuvem no céu e a brisa quente do verão era deliciosa.
Dominic logo entrou na água; Tess tirou as roupas que cobriam seu biquíni e correu atrás do
namorado. Haven também tirou seus shorts, mas preferiu se sentar e observar as poucas pessoas que
se divertiam no lago. Depois de alguns minutos, um grupo começou a jogar vôlei. Dominic e Tess se
juntaram aos demais jogadores, enquanto Haven continuou sentada tomando sol.
Não demorou muito para que a temperatura subisse e o suor começasse a escorrer de seu rosto.
Ela pegou uma garrafa d’água do cooler e tomou um gole. Foi então que ouviu uma voz familiar por
perto, fazendo um comentário que a fez tossir e engasgar.
– O que disse? – ela esbravejou, se virando e dando de cara com Nicholas. Ela respirou fundo e
repetiu – O que foi que você disse?
Ele olhou para ela e se sentou na cadeira de Tess, chutando os chinelos e se posicionando
confortavelmente.
– Eu disse que nunca pensei que Carmine fosse deixar você vir aqui.
Ela cerrou os olhos.
– Já falamos sobre isso. Ele não me diz o que devo ou não devo fazer.
– Ok. – ele disse – Então estou surpreso por você estar aqui, já que ele não pôde vir. Você sabe,
pelo fato de ele ter tentado me matar e toda essa história.
Aquilo jamais passara por sua mente.
– É aqui que você mora?
Nicholas apontou para uma casa branca de dois andares a cerca de duzentos metros de distância de
onde estavam.
– Aquela é a minha casa, portanto, tecnicamente você está no meu quintal.
– Ah, ele não tentou te matar. Tudo não passou de um mal-entendido.
Ele riu secamente.
– Um mal-entendido? Ele com certeza conseguiu confundir seu julgamento.
– Não, é o seu julgamento que está confuso. Carmine cometeu erros, mas ele é uma boa pessoa.
Não deveria sentar aí e se fingir de inocente. É estúpido de sua parte! Eu não estava lá, mas sei que
vocês dois estão agindo de um jeito ridículo… com toda essa rivalidade. Então, acho melhor você
superar isso, porque não quero que fale mal dele pra mim. Eu o amo.
Ela se levantou e saiu andando.
– Haven, espere. – Nicholas a chamou quando ela se dirigiu até a água. Ela o ouviu gritar, mas não
deu atenção – Escute, é que é difícil eu acreditar que ele se importe com alguém. Não gosto da ideia
de ver ele se aproveitar da sua situação.
Ela o encarou quando ele parou ao lado dela.
– Você não sabe nada a respeito da minha situação! Carmine me apoia, então, como você ousa
julgar quando ele é mais corajoso do que você jamais será?
Nicholas olhou para o lago.
– Bem, ah…
– Não quero mais falar sobre isso. – ela disse – Não diga mais nada a respeito de Carmine.
– Eu não ia falar sobre Carmine. – disse Nicholas – Só ia perguntar se planejava entrar na água.
– Ah… Não.
– Por que não?
– Não sei nadar.
– Não precisa saber nadar para molhar os pés. – disse Nicholas, tirando a camiseta e atirando-a na
areia. Ele deu alguns passos em direção ao lago e parou para olhar pra ela quando a água já batia em
seus joelhos – O que está esperando?
– Não sei se devo.
– Confie em mim. – ela soltou um riso afiado e cínico no momento em que aquelas palavras saíram
da boca dele, e ele imediatamente recuou – Tudo bem, não confie então. Mas acha mesmo que eu
seria estúpido o suficiente para deixar que se machucasse? Eu já disse, você é legal e tudo mais, mas
não planejo morrer por sua causa. E eu te garanto que se você se afogar, eles me matam.
Haven ficou parada por mais alguns segundos até que decidiu dar mais alguns passos em direção
ao lago, enfiando seus pés na areia macia. Ela parou antes que a água chegasse à sua cintura.
– Então, o que foi que o número zero disse para o número oito? – perguntou Nicholas, desfazendo
a tensão.
Ela colocou as mãos na superfície da água.
– Eu não sei. O quê?
– Que bela cinturinha você tem. – ele sorriu – Você entendeu? O oito é como o zero, só que tem
cintura.
– Eu entendi.
– Mas não riu. Você nunca ri.
– Não foi uma piada engraçada.
Ele suspirou.
– O que é preciso para reunir os Beatles? – ela ergueu os ombros e ele mesmo respondeu – Duas
balas… É que dois deles já morreram, então…
– E matar os outros dois?
– Isso! Qual a diferença entre um político e um cachorro atropelado? – mais uma vez ela deu de
ombros e ele veio com a resposta – É que pelo menos no cachorro há marcas de freada – ele passou
a mão sobre o rosto e disse – É difícil fazer você relaxar, não é? Todo mundo sempre ri das minhas
piadas. Eu podia ter lhe perguntado: por que a galinha atravessou a rua?
– E por que foi que a galinha atravessou a rua?
– Pra chegar do outro lado, é claro – ela finalmente sorriu e ele ergueu os braços para o céu – Não
acredito. Você nunca tinha ouvido essa antes?
– Não.
– Precisa de mais comédia em sua vida. Carmine drenou todo o seu senso de humor.
Antes que ela pudesse retrucar, o jovem desapareceu dentro da água e uma pequena onda veio em
sua direção. Ele voltou à superfície e ela rosnou.
– Isso não foi engraçado.
Nicholas saiu da água e pegou a camiseta.
– Bem, aparentemente nada do que eu diga ou faça é engraçado.
Haven hesitou, mas foi atrás dele, não querendo ficar sozinha na água. Ambos caminharam até as
cadeiras. Ela pegou uma toalha enquanto ele se sentava.
– Então, quer dizer que vocês dois estão realmente apaixonados? Digo, não é conversa fiada?
– Estamos apaixonados.
Nicholas pegou a bolsa de Tess. Haven observou chocada enquanto ele a remexia à procura de
algo. Então, pegou uma caneta e um pedaço de papel e escreveu algo.
– Aqui está o número do meu telefone. – ele disse, entregando o papel na mão dela – Pode me
ligar se em algum momento precisar de alguma coisa. Prometo não dizer mais nada de ruim sobre o
seu namorado… Pelo menos, não muito.
Ela pegou o papel e leu o número: 5555-0121
– Ok.
– Não é crime conversar com as pessoas. – ele disse, pondo-se de pé – A gente se vê por aí,
Haven.

Mais uma vez Haven acordou com Dominic batendo à sua porta de modo insistente. Ela se
levantou, abriu a porta e se deparou com um sorriso.
– Ei, Pé de Valsa. Fico feliz por ter se lembrado de vestir o pijama.
As atividades se repetiram durante toda aquela semana: o café da manhã na lanchonete, as tardes
passeando com Dominic e Tess. De vez em quando, Dia também aparecia para jogar ou assistir TV.
Durante as noites, Haven ficava na biblioteca, lendo sob a luz do luar. Ela estudou sem parar para as
provas do DEG, fazendo todos os simulados que Carmine havia imprimido para ela antes de viajar.
Ela trabalhou bem pouco naqueles dias; tirando alguns sanduíches no jantar e a lavagem de pratos,
praticamente não cozinhou nem limpou a casa. Ela se sentia mal por deixar suas tarefas de lado, mas
sempre que tentava fazer alguma coisa, Dominic a arrastava para fazer outra coisa. Ela temia que o
doutor DeMarco ficasse bravo, mas ele nem pareceu notar.
Era a tarde do sexto dia quando Haven se sentou na sala de estar ao lado de Dominic, olhando
para o relógio na parede. Ela contava os segundos, pois sabia que cada um deles significava que
Carmine estaria mais perto.

– Merda!
Carmine sentiu uma forte dor no pulso e seus dedos ficaram dormentes. Ele abanou a mão, tentando
se livrar do formigamento, quando o treinador berrou para ele:
– Flexione os dedos, DeMarco!
Carmine resmungou, uma vez que já os estava flexionando. O que pareceu que ele estava fazendo?
Dizer que a semana fora ruim seria atenuar a verdade. Carmine estava fora de forma, seu pulso
estava machucado e metade do time demonstrava algum tipo de ressentimento em relação a ele. Tudo
o que queria fazer era jogar futebol e voltar pra casa, mas aquele carma parecia finalmente tê-lo
abatido.
E carma era pior que Tess Harper.
Finalmente o último dia de treinamento havia chegado, e o treinador Woods não largou de seu pé
desde o momento em que Carmine pisou no campo. Ele estava a ponto de erguer o dedo do meio e
mandar todos para o inferno. Estava à beira de colocar para fora toda sua irritação.
Enfim, o apito final soou e Carmine se preparou para pegar a bola. Dando alguns passos para trás,
ele olhou para o grandão que iria recebê-la, mas conseguiu desviá-la antes do atacante, sorrindo
diante da perfeita espiral que a bola fez no ar.
– Tire esse sorriso da cara, Carmine. Não há espaço pro seu ego dentro do campo. – disse o
treinador Woods.
A partida foi uma sucessão de erros: bolas perdidas, toques errados e tudo isso por mais vezes do
que Carmine conseguia registrar. Ele foi substituído mais de uma vez, sentindo dores irradiarem
pelas costas. O treinador não parava de gritar diante da incompetência da equipe. Depois do apito
final, que marcava o final do treinamento, o técnico chamou Carmine e deu um tapinha no ombro
dele.
– Jogou bem hoje, rapaz.
Carmine ficou parado sem dizer nada. Ele não esperava escutar aquelas palavras.
– Sou duro com você porque conheço seu potencial. – disse o treinador – Talvez não seja
apropriado lhe dizer isso, mas os treinadores da Universidade da Carolina do Norte demonstraram
algum interesse em você.
O rapaz ficou boquiaberto e perguntou.
– Tá de zoeira? Que porra é essa? – em vez de chamar a atenção de Carmine pelas palavras
grosseiras, o treinador deu risadas – Não estou “de zoeira”, DeMarco, mas aviso desde já que eles
não gostam de quem tem pavio curto. Aliás, ninguém gosta disso.

Já era tarde da noite quando Carmine chegou a Durante. Ele estacionou na frente da casa e saiu do
carro, alongando as costas doloridas. De repente a porta da frente se abriu e Haven veio correndo,
saltando em seus braços a partir da varanda. Os corpos dos jovens colidiram e Carmine quase
perdeu o equilíbrio quando ela enterrou seu rosto no peito dele. Ele a abraçou firme, enquanto ela o
olhava com verdadeira adoração, ao mesmo tempo que com uma pitada de preocupação nos olhos.
– Seu rosto. – ela disse, passando os dedos gentilmente em cima de um hematoma na bochecha – O
que aconteceu?
Ele deu um sorriso amarelo e respondeu.
– Caí.
Revirando os olhos, ela ficou na pontinha dos pés e pressionou os lábios contra os dele, colocando
as mãos sobre os cabelos do rapaz. Quando ela se afastou para poder respirar, Carmine deu risadas.
– Se é assim que serei recebido de volta, acho que vou viajar mais vezes.
– De jeito nenhum! Não vou permitir!
– Tudo bem, então. – ele disse, pressionando-a com mais força – Como senti sua falta, beija-flor.
Haven agarrou seu braço e o puxou para dentro da casa. Carmine passou direto pelo escritório do
pai e pelo quarto do irmão, adiando os cumprimentos para o dia seguinte.
– E aí, você fez algo interessante enquanto eu estava fora? – ele perguntou, enquanto ajeitava suas
coisas no quarto.
Ela deu de ombros.
– Apenas o normal.
O normal. Nunca ele imaginara ouvir aquelas palavras da boca de Haven, nem em seus sonhos
mais elaborados.
Sentando-se na cama, Carmine esfregou as costas doloridas e Haven o olhou sem entender. Ela
tirou a mão do rapaz e passou a massageá-lo, fazendo com que murmurasse involuntariamente ao
sentir o toque da jovem.
– Você é boa demais pra mim, tesoro.
– Você sempre diz isso, mas tocar seu corpo não é exatamente uma experiência agonizante, sabia?
– ela retrucou – E aí, você foi assolado alguma vez?
Ele riu.
– Assolado?
– É, não é assim que se fala quando outro jogador derruba você no solo?
– Quando os atacantes são impedidos de passar, eles são obstruídos. Quando os outros jogadores o
fazem, eu sou derrubado. São duas coisas diferentes. – ele murmurou quando ela pressionou seus
músculos doloridos – Eu me machuquei pra caramba durante toda essa semana, mas consegui
impressionar alguns dos treinadores que assistiam. Eles disseram algo sobre eu entrar para o time da
universidade depois de me formar no colégio. Não sei se vou querer estudar lá, mas é bom saber que
tenho opções.
Ela continuou a massageá-lo.
– Para onde você deseja ir?
– Para onde você quiser ir. – ele respondeu – Essa decisão será sua.
Capítulo 38

Haven estava parada de pé num canto da sala e lutava para segurar as lágrimas que ameaçavam
brotar de seus olhos. Todos estavam reunidos no hall e conversavam animadamente. O entusiasmo de
Dominic era evidente pelas gargalhadas. Aquele barulho se infiltrava nos ouvidos da jovem e a fazia
estremecer.
Era uma tarde de domingo em fins de agosto. O verão estava chegando ao fim enquanto, para
Haven, era como se tivesse apenas começado. O último mês e meio havia sido bastante
movimentado: galerias de arte, museus, aquários e zoológicos. Ela dirigiu pela região e leu bastante;
riu e se divertiu; amou e aprendeu. E, na correria da vida, todo o resto se dissipou de sua memória.
Carmine de vez em quando tinha treino e a levava com ele. Havia outras pessoas que também
acompanhavam, como familiares, amigos e namoradas, todos reunidos em grupos, mas Haven ficava
sempre afastada nas arquibancadas, assistindo sozinha. Ele era confiante e agressivo no campo; ela
lhe dissera em certa ocasião que ele a deixava orgulhosa, mas ele erguera os ombros, explicando que
aquilo não era grande coisa. Mas ela sabia que era; representava o futuro do jovem… o futuro de
ambos. Algo que de repente lhe parecia mais real.
As malas de Dominic estavam prontas e colocadas no porta-malas da Mercedes. Em algumas
horas, ele e Tess pegariam um voo e o doutor DeMarco viajaria com os dois para ajudá-los a se
acomodar.
Ambos estavam entusiasmados com as mudanças que ocorreriam em suas vidas, mas Haven temia
dizer adeus. Com a ajuda de Carmine, ela olhara a localização da Universidade de Notre Dame no
mapa e, embora no papel, apenas alguns centímetros separassem Indiana de Durante, ela sabia que na
verdade a distância era grande.
– Bem, é melhor partirmos de uma vez. – disse DeMarco – Afinal, não queremos perder o avião.
Antes mesmo de ouvir as palavras do pai, Dominic agarrou Haven pela cintura, a ergueu e a girou.
– Sentirei sua falta, garota.
Ela sorriu e o abraçou.
– Obrigada por tudo… especialmente por aquele sanduíche.
Ele a colocou de volta no chão e enfiou a mão no bolso, retirando de lá seu chaveiro e soltando
uma das chaves. Ele a colocou na mão dela, apertando firme.
– Mantenha meu carro seguro para mim, ok?
Ela olhou para ele.
– O quê?
– Não posso levar ele comigo, então você pode muito bem dirigir.
Todos se despediram e Haven sentiu as lágrimas escorrerem pelo rosto quando saíram pela porta.
Apenas alguns segundos depois, Dominic abriu a porta novamente e disse.
– Ah, Pé de Valsa, e boa sorte em seu exame amanhã!
Na manhã seguinte, o trajeto até a cidade levou uma hora. Carmine falou sem parar, mas Haven não
ouviu nada do que ele disse. Tudo o que conseguia escutar era o batimento acelerado do próprio
coração. Com alguma antecedência, finalmente chegaram ao colégio público local, e Haven entrou
sozinha, sua visão se escurecendo à medida que se esforçava para manter a calma.
As fortes luzes fluorescentes do teto irritavam seus olhos. Haven ficou de pé à porta, observando
as cadeiras plásticas azuis. Ela nunca estivera em uma sala de aula em sua vida. Outras pessoas se
chocavam contra ela sem sequer se preocuparem em se desculpar. De um modo hesitante, ela
caminhou até a grande mesa que ficava na frente e sorriu educadamente para o instrutor, embora
achasse que fosse vomitar.
– Sou Haven Antonelli.
Ele verificou o nome dela na lista, coletou os documentos e apontou a cadeira em que deveria se
sentar. O exame começou às oito da manhã em ponto. Haven terminou rapidamente as cinquenta
perguntas sobre gramática e pontuação, mas a segunda parte a deixou preocupada. Apesar de ter
praticado muito nos cadernos que tinha em casa, ela jamais havia escrito nada para outra pessoa ler.
O instrutor avisou que todos teriam quarenta e cinco minutos, e Haven se concentrou no tema da
redação.

O QUE É PRECISO PARA SER UM BOM PAI/UMA BOA MÃE?


EM SUA REDAÇÃO, DESCREVA AS CARACTERÍSTICAS DE UM BOM PAI/UMA BOA MÃE. UTILIZE SUAS
OBSERVAÇÕES PESSOAIS, SUAS EXPERIÊNCIAS E SEU CONHECIMENTO.

Os demais alunos logo se puseram a escrever, mas Haven apenas continuou olhando para o tema.
O que era preciso? Seu pai era um homem abusivo e maldoso que se recusara a reconhecer a
paternidade. Ela sofreu anos de tortura sob o julgo daquele sujeito antes que ele simplesmente a
vendesse, sem pensar duas vezes. Se o doutor DeMarco não tivesse aparecido em sua vida, ela
acabaria sendo leiloada, vendida como escrava sexual, em troca de dinheiro para comprar uísque e
charutos cubanos.
O ódio de Haven aumentou e ela mordeu o lábio inferior. Embora a mãe dela tivesse as melhores
intenções, nada podia fazer para ajudá-la. Ela a escondia para protegê-la e nunca falhou em manter a
única coisa que até mesmo Haven havia perdido ao longo dos anos: esperança.
Haven começou a chorar à medida que as memórias do passado tomaram sua mente. Vinte minutos
já haviam transcorrido, então, ela respirou fundo e começou a escrever. Foi colocando no papel tudo
o que surgiu em sua mente ao pensar em sua mãe, revelando como, em sua opinião, um bom pai e uma
boa mãe jamais desistiriam dos filhos e sempre os encorajariam a sonhar.
O instrutor encerrou aquela fase no momento em que Haven colocava o ponto final na redação. O
restante do teste transcorreu normalmente, e todos foram liberados por volta das três da tarde. O
Mazda já a esperava na faixa exclusiva para caminhões de bombeiro e ambulâncias, com o som no
volume no máximo. Haven entrou no carro em silêncio.
Carmine abaixou o volume e ligou o carro.
– E aí, como foi?
Ela sorriu suavemente enquanto ele lhe estendeu sua mão.
– Tudo bem.
Nenhum dos dois disse nada ao longo do trajeto de volta a Durante. Quando chegaram à casa, ela
foi direto para a cozinha preparar algo para comer. Carmine se sentou no balcão ao lado do fogão,
observando-a enquanto cozinhava.
– Está preparando enchiladas?
Ela confirmou com a cabeça.
– É o prato fav… Minha mãe gostava delas.
– Parece muito bom. – comentou Carmine.
– Obrigada.
– Podemos comer enquanto assistimos a um filme ou algo assim.
– Tudo bem.
– Ou quem sabe podemos jogar um jogo.
– Tudo bem.
– Quer saber, estou cansado, acho que vou direto pra cama.
– Tudo bem.
– E é provável que eu nem coma nada.
– Ok, tudo bem.
O local ficou em silêncio e Carmine olhou atentamente para Haven. Sua mudança de
comportamento a assustou.
– Você está bem?
– Eu estou bem. – respondeu – Mas não tenho muita certeza quanto a você. Desde que te peguei na
escola você mal falou uma dúzia de palavras, e metade delas foi “tudo bem”. Aconteceu alguma
coisa?
– Não.
– Você não foi bem? – ele perguntou, erguendo as sobrancelhas – Você entrou em pânico ou algo
assim?
– Não, eu acho que foi tudo bem. – ela respondeu, involuntariamente contraindo os músculos ao
repetir a mesma expressão.
– Então, o que está errado?
– Só estou pensando na minha mãe.
– Quer conversar sobre ela? – perguntou, com a voz tranquila e genuinamente interessada; todos os
sinais de frustração desapareceram – Não precisa guardar isso para si mesma.
– Eu sei disso, mas não sei o que dizer. Sinto falta dela e é provável que jamais veja ela
novamente. Nunca tive a oportunidade de me despedir ou dizer que a amava. Machuca pensar sobre
isso, porque eu costumava imaginar se nós sequer gostávamos uma da outra, mas hoje eu percebi que
a minha mãe me amava de verdade. E eu também a amo, mas nunca disse isso.
– Nunca?
– Nunca. – ela sussurrou, no momento em que Carmine pulou do balcão para abraçá-la – Eu não
deveria estar reclamando disso pra você; afinal, você tem mais razão pra se sentir assim do que eu.
Minha mãe está viva; a sua está….
Ele contraiu os músculos antes que pudesse dizer alguma coisa. Ela se afastou dos braços do
jovem e tentou se desculpar, mas ele não deixou, colocando o dedo indicador sobre os lábios de
Haven.
– Minha mãe viveu a vida dela, Haven. Ela era livre para fazer suas escolhas, e foi exatamente
isso que ela fez. Ela tomou decisões erradas e estúpidas, e morreu por causa disso. Sua mãe nunca
teve a chance de tomar uma decisão, então, eu acho que você tem mais motivo pra sofrer do que eu.
Oaks Manor estava tudo, menos ensolarada naquele dia. Uma tempestade despencava e fortes
rajadas de vento faziam com que as árvores se envergassem no entorno da propriedade. Trovões
caíam e raios iluminavam o céu escuro daquela tarde, fazendo com que o dia mais parecesse uma
noite.
Vincent estava de pé no apartamento de sua mãe, olhando para a ambulância estacionada do lado
de fora. Os paramédicos, em seus uniformes amarelos, colocavam um corpo na parte de trás. Em
silêncio, ele fez o sinal da cruz e sussurrou uma prece.
– Não reze por aquela velha idiota. – alfinetou Gia, de algum modo ouvindo ele rezar, mesmo sem
os aparelhos de ouvido – Ela morreu por culpa dela mesma.
– Como assim, mãe? O pessoal que trabalha aqui disse que Gertrude morreu dormindo e em paz.
– Oras, ela deixou a janela aberta na semana passada. Tentei avisá-la, mas ela não ouvia. Aquele
pássaro preto voou para dentro do quarto e tomou conta do lugar.
Vincent suspirou.
– Não acho que tenha sido o pássaro, mamãe.
Gia acenou com a mão.
– Ah, você não sabe de nada.
– Bem, eu sou médico.
– Hum, vocês doutores nunca sabem do que estão falando. – ela retrucou – Vocês sempre querem
dar pílulas para as pessoas e tirarem o sangue delas quando é totalmente desnecessário. Deus não
comete erros, Vincenzo. As pessoas morrem quando merecem morrer. Você sabe disso.
Vincent cerrou o punho ao ouvir aquela provocação em relação a Maura.
– E quanto ao papai? Ele também mereceu morrer?
– Com o tanto de goomahs que seu pai possuía? Fico surpresa que o coração dele tenha aguentado
tantas amantes.
Vincent jamais compreenderia a dureza e a falta de simpatia de sua mãe. Às vezes ele se
perguntava se devia se incomodar em visitá-la, considerando que obviamente ela não apreciava sua
companhia.
A ambulância foi embora e Vincent a seguiu com os olhos até a esquina. Seu olhar permaneceu ali
ainda por algum momento; então sentiu um frio no estômago ao perceber uma SUV escura parada a
menos de um quarteirão. Ele esperava estar apenas imaginando coisas, mas seus instintos lhe diziam
que aquilo não era uma coincidência. Ele só brincara ao sugerir que alguém o estivesse observando,
mas agora percebia que estava certo. De fato ele estava sendo seguido.
– Ei, você está me ouvindo?
– Não. – Vincent admitiu, virando-se para a mãe – O que foi que disse?
– Não vou repetir o que já disse. – retrucou Gia – Isso apenas sugaria ar dos meus pulmões e
reduziria meu tempo de vida. Mas isso é provavelmente o que você deseja, não é? Que eu morra. Daí
eu não seria mais um fardo para você carregar. Sua própria mãe… Você me trata como lixo.
Vincent respirou fundo.
– O que quer de mim, mãe?
– Nada, Vincenzo. Não quero nada.
Ele então olhou para o relógio, já impaciente.
– Tenho de ir. Dominic e Tess estão me esperando.
Gia estreitou os olhos.
– Quem são eles?
– Você sabe quem é Dominic. – ele respondeu, tentando manter a calma, mas já cansado de
aguentar aquilo – Ele é seu neto, e Tess é a namorada dele.
– Ela é italiana?
– Não, é americana. De origem escocesa.
– Escocesa? Bem, pelo menos é melhor que irlandesa. E aquele seu outro filho? Ele arrumou uma
namorada italiana?
Vincent caminhou até a mãe e a beijou na testa. Em seguida saiu sem responder.

A semana passou rapidamente. Haven e Carmine estavam sozinhos, portanto, era fácil para eles se
esquecerem dos obstáculos que ainda teriam pela frente. Tudo parecia muito simples e a vida de
ambos fluía tranquila dentro daquela casa; porém, do lado de fora o mundo estava se fechando
rapidamente ao redor deles. Uma nuvem negra pairava a distância, ameaçando despencar a qualquer
momento. O problema é que ninguém sabia nem quando nem onde isso aconteceria, tampouco de que
modo. Poderia ser uma garoa inconveniente ou um tornado capaz de destruir tudo que aparecesse
pela frente. Não havia como se preparar para algo cuja forma não se podia prever.
Era tarde de sexta-feira e os dois estavam em casa assistindo a um filme, abraçados no sofá e com
as pernas entrelaçadas. Os lábios dele deslizavam pelo rosto dela e a boca sugava-lhe o pescoço.
O som dos murmúrios de Haven foi interrompido abruptamente quando os dois ouviram o som do
alarme e a forte batida na porta da frente. Em pânico, Carmine se sentou no momento em que o pai
entrou na sala de estar. De modo instintivo, ele colocou seu corpo na frente de Haven, com o objetivo
de protegê-la. Vincent cerrou os punhos e gritou:
– Para o meu escritório, agora!
– Quem? – perguntou Carmine enquanto o pai se afastava.
– Você!
Carmine ficou de pé e se virou para Haven.
– Vá para o seu quarto e fique lá até eu descobrir o que está acontecendo.
Haven o seguiu pelas escadas, mas ficou para trás, uma vez que os passos dele eram mais largos.
Carmine entrou direto no escritório do pai, escancarando a porta sem bater. Vincent estava olhando
para seu notebook, digitando furiosamente.
– Eles estão vindo.
Carmine franziu as sobrancelhas ao ouvir aquela afirmação vaga.
– Quem?
– D’Artagnan e o três mosqueteiros. Quem você acha que está vindo?
O tom sarcástico o pegou desprevenido.
– Os Federais?
– Antes fosse. – Vincent balançou negativamente a cabeça – É provável que seja apenas uma
questão de tempo até que batam à porta, mas não… Hoje não teremos tanta sorte. Recebi uma ligação
há poucos minutos. Parece que Sal pegou um avião e está vindo para cá sem aviso prévio. Não sei
por que, e também não faço ideia do que querem.
– O que isso quer dizer?
– Não sei. – Vincent abriu as gavetas da escrivaninha e remexeu os arquivos – Espero que sejam
assuntos inesperados, mas ele também pode estar atrás de um de vocês, portanto, preciso que estejam
fora daqui o mais rápido possível. Corrado não acha que vocês deveriam ir a lugar algum sem
proteção.
– Eu tenho uma arma. – respondeu Carmine.
Vincent ergueu a cabeça.
– Que vantagem se pode ter sozinho com uma arma? Eles poderiam matá-lo e ninguém ficaria
sabendo, a menos que um de nós estivesse ao seu lado.
O celular de Vincent vibrou sobre a escrivaninha, e ele ergueu a mão para silenciar Carmine. Ele
respondeu a ligação com um tom formal, e a voz mais tranquila possível.
– DeMarco falando… Sim, senhor… Estarei lá. – Vincent desligou o aparelho e olhou para o filho
de um jeito peculiar – Arrume as malas. Precisamos agir rápido.

Haven andava de um lado para o outro no quarto de Carmine, tentando escutar algo do andar
inferior, mas não havia som algum. Nem gritaria, nem berros, nem qualquer tipo de comoção.
Aquilo só alimentava sua imaginação, e ela construía diante de seus olhos os piores cenários. As
mãos dela tremiam; ela ficou aterrorizada quando ouviu a porta bater no segundo andar. Passos
correram pelas escadas; seu coração estava a ponto de explodir. Ela estava tão nervosa que
conseguia sentir o sangue correndo pelas veias.
A porta se abriu de repente, batendo contra a parede e Carmine invadiu o quarto. Ele foi direto
para o armário e começou a atirar coisas para todos os lados. Em seguida jogou duas mochilas sobre
a cama.
– Pegue algumas roupas.
Ela não se moveu.
– O quê?
– Precisamos sair daqui, Haven.
Haven ficou zonza. Ela queria perguntar o que estava acontecendo; precisava desesperadamente
que ele lhe explicasse, mas sabia que a resposta a deixaria aterrorizada. Ela cambaleou até a cama e
se sentou, enquanto Carmine corria até o quarto dela. As palavras de DeMarco ecoavam em sua
mente. Ela prometera que jamais fugiria novamente. Ela jurou que não seguiria Carmine de olhos
fechados.
– Por que ainda está sentada aí? – perguntou Carmine ao retornar com os braços cheios de roupas.
Os pensamentos faziam sua cabeça girar enquanto ele enchia as mochilas. Ele esticou a mão para ela
– Vamos!
No momento em que aquelas palavras saíram dos lábios dele, ela se decidiu. Não importavam as
consequências, ela teria de ir com ele.
Ambos correram até o andar térreo e Carmine a puxou para a varanda, sem se preocupar em fechar
a porta na correria. Ele destrancou o carro, atirou as mochilas no banco de trás e fez sinal para que
ela entrasse. Assim que tudo estava ajeitado, Carmine ligou o carro e saiu cantando pneus, afastando-
se da casa.
– O que está acontecendo? – Haven perguntou assim que os dois pegaram a rodovia. Sua voz
estava falha e seu estômago, revirando – Por que estamos fugindo? Aconteceu alguma coisa?
– Precisamos sair daqui antes de eles chegarem.
Ela olhou para ele quando os dois pararam no sinal vermelho, já na cidade.
– Antes que quem apareça, Carmine?
Ele olhou diretamente para frente.
– Eles.
Sem compreender, Haven desviou os olhos e se deparou com quatro sedãs pretos parados no
mesmo sinal no sentido oposto.
– Eles são…? – ela começou a frase sem conseguir terminá-la. Ela já havia visto aqueles carros
anteriormente.
– La Cosa Nostra. – disse Carmine. Embora aquelas palavras em italiano soassem bem, o
significado delas provocou calafrios em Haven. Monstros.
A luz ficou verde e Carmine seguiu com o carro.
– Fique o mais confortável que conseguir, pois a viagem até a Califórnia é longa.
Ela ficou nervosa e quase perdeu a respiração.
– Califórnia?
Ele fez um gesto confirmando.
– Somos esperados em Blackburn.
Capítulo 39

Carmine olhou para Haven no banco do passageiro, preocupando-se com o ângulo em que estava o
pescoço da jovem. Ela estava torta naquele pequeno espaço e usava o cinto de segurança. Esticando
a mão, ele retirou alguns fios de cabelo do rosto dela e os prendeu atrás da orelha. Em seguida
deslizou a parte de trás de sua mão por sobre o rosto da jovem, sentindo o inchaço provocado pelo
choro intenso. Ela não havia dito nada sobre o lugar para onde estavam indo, mas as lágrimas já
diziam tudo.
Eles já estavam viajando há três dias, parando ocasionalmente para dormir um pouco, mas
passando a maior parte do tempo naquele carro apertado. O céu estava nublado e o tempo piorava a
cada quilômetro. A chuva fraca e constante se transformou numa tempestade. Carmine dirigia
lentamente no tráfego intenso; seus nervos estavam à flor da pele e ele segurava firme no volante.
Haven percebeu seu humor volátil quando acordou e esperou que ele iniciasse alguma conversa.
– Estamos quase chegando no estado da Califórnia. – ele disse em voz baixa.
Ela olhou pela janela embaçada.
– Já esteve alguma vez na Califórnia?
– Não que eu me lembre, mas sempre tive vontade de conhecer.
– Existem faculdades aqui?
– Claro.
– Alguma que eu possa frequentar?
– Claro que sim. – ele respondeu – E o que você gostaria de estudar?
– Artes, talvez. – ela disse – Não sei se sou boa o suficiente para…
Ele a interrompeu.
– Você é boa o suficiente. E sim, tem inúmeras escolas de arte por aqui.
Pela primeira vez em todos aqueles dias, algo além de tristeza e preocupação estampou seus olhos.
– Jura?
Ele riu.
– Juro, mas, me diga uma coisa, por que a Califórnia?
Ela ergueu os ombros.
– Gosto das palmeiras.
O tom sério que ela usou o pegou desprevinido. A maioria das pessoas passava meses analisando
onde iriam estudar, escolhendo lugares conforme a proporção de alunos por professor, reputação da
entidade, equipes esportivas, mas ela estava escolhendo o lugar por causa do cenário. Ele achou
aquilo engraçado, mas não ficou surpreso. As pequenas coisas da vida voltavam a importar.
– Elas existem também em Nova York?
– Palmeiras?
Ela riu.
– Não, escolas de arte.
– Ah, sim. É claro. Existem escolas de artes em todos os lugares.
– Já esteve lá?
– Algumas vezes quando era criança. Meu pai costumava viajar para Nova York a negócios.
– Eu vi no Jeopardy! É a cidade que nunca dorme.
Ele sorriu.
– Algumas pessoas também a apelidam de “a cidade dos sonhos”.
Ela olhou para ele.
– Talvez pudéssemos ir para lá e seguir nossos sonhos.
– Quem sabe. – ele riu – Mas tenho certeza de que lá não existem palmeiras.

A placa que sinalizava o limite da cidade de Blackburn estava velha e desbotada; a tinta verde, já
descolorida pela areia, estava agora cinza. Carmine olhou duas vezes quando passaram por ela.
– Por acaso aquela placa dizia “população: dezessete habitantes”?
– Não achava que fossem tantos. – disse Haven – Eu corri por várias horas.
De fato, às margens da estrada não havia nada além de um deserto inabitado e desolado.
– Eu acredito. Há quilômetros que não vemos nada nos arredores.
Eles dirigiram por mais alguns minutos antes que ele localizasse algo a distância. Reduziu a
velocidade, na expectativa de que fosse um posto de gasolina, já que o tanque estava quase vazio.
Um hotel também seria uma boa opção; os olhos dele queimavam de sono e cansaço. Porém, à
medida que se aproximou das estruturas, perdeu as esperanças. As paredes em ruínas de uma
construção abandonada pareciam prestes a cair, mesmo com um sopro suave de vento. Os cabelos em
sua nuca ficaram de pé quando eles passaram pelo local; uma sensação estranha tomou conta dos
dois.
– Essa é uma cidade fantasma. – ele disse – Onde estão todas as pessoas?
– Talvez tenham se mudado.
Ele sorriu com sarcasmo.
– Ou então todos morreram.
– Alguns morreram. – ela disse.
Sua voz embargada lhe dizia que havia uma história por trás daquelas palavras, mas aquele não
era o momento de fazer perguntas. Ela parecia estar à beira de um ataque de nervos e ele não queria
arriscar provocá-lo.
Carmine continuou a dirigir, passando por outra placa que sinalizava o término da cidade. Eles
cruzaram toda a região sem ver uma única alma. A cidade era uma enorme prisão, embora não
houvesse barras de ferro ou correntes, tampouco nenhuma restrição física; era apenas uma terra de
ninguém desconectada do resto do mundo. Não havia pessoas, carros, lojas, casas… Não havia
nenhuma cor no lugar.
Era como se o tal lugar não existisse.
De repente, a ficha caiu e Carmine pensou. Ela crescera isolada, mas conhecer e ter acesso são
duas coisas totalmente distintas. Tudo o que ele queria naquele momento era parar o carro e abraçá-
la. Agora ela se comunicava, dirigia e tinha até feito os exames para começar a estudar. Ela se abrira
para o mundo, tendo saído de um lugar onde literalmente não tinha nada.
Nada.
Na cidade seguinte eles encontraram um pequeno motel. Carmine pagou em dinheiro ao velho
recepcionista e pegou a chave, sem muita conversa. Ele se encolheu ao ver as péssimas condições do
lugar, mas Haven deu de ombros.
– Já estive em lugares bem piores.
De fato, e agora ele compreendia aquilo.

Carmine acordou assustado ao ouvir o telefone tocar pela manhã. O barulho fez seu coração
disparar. Sentando-se na cama, ele esfregou os olhos e pegou o aparelho do criado-mudo ao lado da
cama.
– Sim? – ele atendeu sem olhar quem estava estava ligando, imaginando que fosse seu pai com
alguma novidade.
– Já chegaram?
Corrado.
– Sim. – Carmine respondeu, bocejando no meio da fala.
– Estarei na casa dos Antonelli hoje. – disse Corrado – Temos alguns assuntos para resolver. Pode
trazer a jovem?
Olhando para o lado na cama, Carmine se deparou com os olhos apreensivos de Haven.
– Sim.
– Sim? – Corrado repetiu, soltando um suspiro – Essa é a única palavra que conhece?
O lado sarcástico de Carmine queria poder responder “sim” novamente, mas sabia que não seria
inteligente provocar alguém tão perigoso.
– Não, senhor.
Corrado passou o endereço dos Antonelli, e Carmine buscou rapidamente algo para escrever. Ele
encontrou um lápis numa gaveta e pegou a Bíblia que estava próxima à cabeceira da cama. Ele
rasgou uma página. Haven sentou e olhou para ele enquanto tomava nota.
– Não acredito que você rasgou uma página da Bíblia, Carmine!
Ele revirou os olhos.
– Você acha mesmo que alguém que vem aqui está interessado em ler isso? – ele perguntou,
segurando a Bíblia – Pessoas que vem aqui estão longe de serem santas.
– Nós viemos aqui.
– Como eu disse, também estamos longe de ser santos. – ele riu – Mas, não importa. Não rasguei
nenhuma página escrita, só aquela que dizia “Bíblia Sagrada”.
– Não deixa de ser errado. – ela retrucou.
– Talvez, mas eu precisava escrever o endereço dos Antonelli.
Ela ficou petrificada; entrou em pânico.
– Por quê?
Sentando-se perto dela, ele retirou alguns fios de cabelo de seu rosto. Ela parecia tão vulnerável.
Tudo o que ele queria era corrigir todos os males e tornar o mundo melhor para a jovem.
– Você quer ver sua mãe, não quer?
Ela piscou várias vezes.
– Eu posso?
Ele passou as pontas dos dedos pelo rosto dela.
– Eu me certificarei disso.
Os olhos dela se encheram de lágrimas e ela se atirou contra ele, derrubando-o sobre o colchão.

Carmine digitou o endereço no sistema de navegação do carro, o que fez com que eles retornassem
à mesma estrada desolada da noite anterior. Depois de alguns quilômetros, o sistema indicou um
caminho que cortava pelo deserto, e Haven ficou nervosa pouco antes de o GPS anunciar que haviam
chegado ao destino. Ela logo reconheceu o lugar, ele percebeu. Ela podia sentir aquilo, mesmo
estando no meio do nada.
Haven tremia enquanto eles seguiam pela trilha; o medo dela era tão grande que ele podia senti-lo.
O rancho logo apareceu à frente, e ela respirou fundo quando Carmine estacionou atrás do carro
alugado de Corrado.
– Não sei se consigo fazer isso. – disse Haven, balançando de maneira rápida e negativa a cabeça,
deixando-o tonto.
Carmine segurou suas mãos.
– Ouça e preste atenção, tesoro. Você pode querer correr para o mais longe que puder desse lugar,
mas não é possível. Já não dá mais. Você não pode permitir que eles te controlem. Não pode deixar
que eles te vençam. Você é forte, Haven. Esses filhos da puta tentaram destruir você, mas isso não
aconteceu porque você se reconstruiu. Você é uma força a ser respeitada. Você é durona e
apaixonada, portanto, não pode deixar que essa gente afete você. É isso o que eles querem.
A ansiedade na expressão da jovem foi substituída por algo diferente; um olhar que Carmine
conhecia muito bem: de determinação.
– Nós vamos sair desse carro, entrar naquela casa e dizer àquelas pessoas que se ajoelhem diante
de nós, porque ninguém ali pode nos tocar. E você vai encontrar sua mãe e dizer a ela que a ama,
porque você merece ter essa chance.
Depois de dizer tudo o que podia, Carmine saiu do carro. Ele resmungou por causa do calor; o sol
forte quase o cegava. Pegando seus óculos escuros, ele os colocou e desabotoou as mangas longas de
sua camisa verde.
– Puta que pariu, está muito quente.
Haven saiu do carro de maneira tímida.
– Eu lembro que costumava ser mais quente.
– Caramba, estou quase virando uma torrada. – ele disse – Isso aqui é quente como o inferno.
– Isso aqui é o inferno
Ele olhou para ela surpreso.
– Você disse um palavrão.
– “Inferno” não é um palavrão.
– Claro que é.
Ela discordou com a cabeça.
– Está na Bíblia, Carmine. Se passasse mais tempo lendo esse livro e menos rasgando as páginas
dele, talvez você soubesse disso.
Ele riu, mas a batida de uma porta interrompeu o momento. Haven enrijeceu-se enquanto Carmine
olhou para o homem de pé na varanda. Aquele tom de marrom escuro já era bastante familiar.
– Se isso aqui é o inferno – disse Carmine –, então isso não faz dele o diabo?
Capítulo 40

Michael Antonelli estava de pé na varanda da casa, com um copo de uísque na mão esquerda e um
charuto na direita. Ele estava em silêncio; não piscava e até parecia não estar respirando.
Haven o encarou, surpresa em ver o quanto ele não havia mudado em nada. Quase um ano havia se
passado, mas ver seu velho mestre em suas calças cáqui e camiseta polo, bastante apertada em torno
da barriga, a fez sentir como se o tempo não tivesse passado.
O silêncio tenso e desconfortável diminuiu quando a porta se abriu atrás de Michael, trazendo-o de
volta à vida. Piscando rapidamente, ele saiu do caminho para que Corrado também saísse na
varanda.
– Carmine, Haven… É bom ver vocês. Estão apreciando a viagem?
O modo frio e tranquilo como ele perguntou surpreendeu Haven, mas Carmine não parecia abalado
ao responder.
– Foi de boa, exceto pelo fato de eu me sentir como se estivesse sendo assado vivo.
Haven sorriu sem querer diante de sua reclamação, e Corrado olhou para Michael.
– Vai convidá-los para entrar, Antonelli, ou pretende deixar meu sobrinho entrar em combustão?
Pensei que ainda se lembrasse de como ser hospitaleiro.
– Ah, claro! – Michael enfiou o charuto na boca e abriu a porta de tela – Entrem.
Carmine pegou a mão de Haven, levando-a para dentro da casa, e ambos foram seguidos por
Corrado até um corredor que levava a um escritório atulhado. Haven hesitou um pouco, observando
as paredes cheias. Durante todo o tempo em que vivera naquela propriedade, presa e forçada a
trabalhar como escrava, ela nunca havia entrado naquele lugar. Michael dizia que era um espaço
privado; seu santuário.
Michael entrou e se sentou atrás de uma escrivaninha de mogno; Corrado ficou de pé com os
braços cruzados sobre o peito.
– Ainda temos de esperar mais uma pessoa.
Depois de alguns minutos, alguém bateu na porta da frente e o próprio Corrado foi atender,
retornando com outro homem, que trazia consigo uma maleta. Michael ficou nervoso ao olhar para o
sujeito, piscando rapidamente.
– O que é que…? O que faz o advogado aqui?
– Vamos acabar com isso de uma vez. – disse Corrado, ignorando a pergunta. Haven se sentou
numa cadeira no canto, evitando chamar a atenção. Michael a encarava do outro lado da sala e um
silêncio incômodo tomou conta do ambiente; era como se uma parede invisível ou um campo de força
separasse os dois.
O advogado discorreu sobre naturalização e cidadania, mas nada daquilo fazia o menor sentido
para ela. Ele preencheu a papelada enquanto falava, mas hesitou em um dos documentos, olhando
para Haven.
– Senhorita, qual sua data de nascimento?
O coração dela disparou.
– Não tenho certeza. Minha mãe dizia que era no outono.
O homem franziu o cenho e se voltou para Michael.
– Senhor Antonelli? A data do nascimento da jovem?
Michael resmungou, mas não disse nada coerente. Corrado deu uma bufada e respondeu:
– 10 de setembro de 1988.
O advogado anotou e Haven olhou para Corrado. Ela se perguntava como ele sabia. De qualquer
modo, a data ficou em sua mente: 10 de setembro… faltavam apenas duas semanas.
Ao terminar, o advogado entregou a papelada para Corrado, que a colocou sobre a mesa na frente
de Michael.
– Assine. – ordenou.
Com indiferença, Michael assinou tudo e empurrou a pilha de papéis na direção de Haven. Ela
podia perceber os olhos dele sobre ela quando pegou a caneta. Ela pegou os documentos sem olhar
para ele. Analisando os papéis, localizou as linhas em branco ao lado da assinatura dele. Sua mão
estava trêmula quando escreveu seu nome.
Por um momento ela imaginou se ele ficara surpreso pelo fato de ela saber escrever. Toma essa,
idiota.
– É isso. – disse Corrado – Está feito.
O que estava feito? Haven não tinha certeza, mas Michael não parecia nada feliz com tudo aquilo.

Haven saiu pela porta da frente em direção à varanda, tentando respirar em meio àquele deserto
escaldante. Ela estava enjoada; seus nervos estavam no limite. Necessitava de espaço; tinha de se
afastar daquelas pessoas. Ela precisava urgentemente de Carmine.
Chamou pelo nome dele, mas um som de comoção a interrompeu antes que pudesse se virar.
Surpresa, ela girou lentamente e encontrou a mãe parada do lado da casa, com uma pilha de
instrumentos de metal a seus pés.
Ao contrário de Michael, ela parecia diferente. Seus cabelos escuros agora tinham fios grisalhos, e
havia muitas rugas em seu rosto. Uma camiseta imunda cobria sua estrutura esquelética e um par de
shorts expunha as pernas magras. A mãe de Haven sempre fora magricela, mas agora parecia uma
sombra do passado.
– Haven?
O som daquela voz parecia ferro quente marcando o peito da jovem. Ela correu para os braços de
sua mãe e as duas se abraçaram e caíram no chão. Apesar da fragilidade, o abraço da mãe era forte e
suas mãos acariciaram as costas e os cabelos de Haven.
– Minha garotinha! Você está aqui!
– Sim. – ela falou – Estou bem aqui.
Sua mãe se afastou dela e perguntou:
– Mas o que está fazendo aqui? Você tem que ir embora, fugir.
– Está tudo bem, mãe. – Haven disse – Ninguém vai me machucar.
– Você não pode ter certeza disso! Sabe como eles são!
Haven tentou sorrir apesar das lágrimas.
– Estou aqui para te ver.
As mãos de Miranda exploraram cada milímetro do rosto da filha.
– Não entendo. Não faz sentido.
– Carmine me trouxe aqui. Ele… ele é o filho do meu mestre. Eu o amo, mamãe.
– Você o ama? – ela perguntou com os olhos arregalados e piscando – Isso é ruim. Você não pode
deixar que ele descubra!
– Pare com isso! – o pânico de sua mãe fazia aumentar sua ansiedade – Ele já sabe, e também me
ama.
– Como assim? – ela balançou negativamente a cabeça – Haven, ele é…
– Maravilhoso, mamãe. – ela a interrompeu, sabendo que o que quer que a mãe dissesse, estaria
errado – Ele me trata como um tesouro, e está me oferecendo uma vida… o tipo de vida que você
sempre quis que eu tivesse.
Ambas se sentaram no chão por alguns minutos, sem verbalizar nada depois do que havia sido
dito. O pânico de sua mãe diminuiu e o olhar com o qual a jovem se acostumara a conviver voltou a
brilhar: esperança.
Por fim, Haven se levantou e ajudou sua mãe a ficar de pé.
– Essas roupas são bonitas. – disse a mãe, dando-lhe uma boa olhada dos pés à cabeça – Espero
que não fiquem bravos pelo fato de você ter se sujado.
Haven interrompeu as mãos de sua mãe enquanto ela tentava retirar a poeira.
– Não importa. Eles são diferentes.
Lágrimas encheram os olhos de sua mãe quando ela disse aquilo, mas uma batida na porta
interrompeu o diálogo. Michael parou na varanda e olhou para as duas.
– Miranda.
Nada de bom poderia acontecer depois de ser chamada pelo mestre. Nervosa, a mulher se abaixou
e pegou as ferramentas que havia derrubado.
– Desculpe, senhor. Eu vou cuidar do jardim.
Michael a interrompeu e Haven e a mãe ficaram assustadas diante daquele movimento.
– Não me interrompa. A garota está aqui conosco e, ah… ela é uma visita, então o trabalho pode
esperar por enquanto.
A mãe olhou para a filha depois que Michael entrou.
– Visita?
Haven sorriu.
– Acho que deveria começar pelo começo, certo?

Ambas passaram as horas seguintes caminhando pela propriedade. Haven contou à mãe sobre sua
vida na Carolina do Norte. Ela falou sobre a celebração do Natal, os fogos de artifício e o fato de ter
ido a um baile. Quanto mais ela falava, mais o rosto de sua mãe se iluminava. A vida parecia ter
retornado ao corpo daquela mulher e, pouco a pouco, a culpa de Haven diminuía.
Elas estavam ao lado do jardim quando sua mãe chutou um pouco de terra contra os pés descalços
da filha, arrancando algumas ervas daninhas do chão. Ela não conseguia parar de trabalhar mesmo
quando lhe diziam para não fazê-lo.
– Família DeMarco. Esse nome soa familiar.
– Eles estiveram aqui antes. – Haven falou – Eu costumava achar que a esposa dele fosse um anjo.
A mãe olhou para ela.
– Seu anjo?
Haven confirmou com a cabeça.
– Eu achei que eu mesma tivesse inventado, mas no final ela era real.
Os olhos de sua mãe avistaram alguém por sobre o ombro da filha; a jovem se virou e viu Carmine
se aproximando.
– Falando do diabo.
– Ei, achei que tivéssemos dito que o bundão dentro da casa fosse o diabo. – disse Carmine,
balançando a cabeça – Caramba, o sujeito é desprezível. Pensei que Corrado fosse me dar um chute
na bunda por dizer algumas coisas na cara dele.
Ela suspirou, sabendo que ele não tinha papas na língua.
– E o que foi que você disse?
– Sei lá, falei um monte. Ele é um inútil, sabia? Ele costuma foder com os que estão abaixo dele,
mas não é capaz de enfrentar gente do mesmo nível ou superior. – os olhos dele se arregalaram – Não
estou dizendo que você seja menos que ele ou coisa do tipo, ou que eu seja melhor que você, porque
não sou. Você é muito melhor que ele. Caralho, você é melhor que eu, e eu digo…
Haven colocou o dedo sobre os lábios do rapaz para que ele parasse de tagarelar, e a mãe dela
respirou fundo. Olhando para Miranda, Haven retirou a mão da boca de Carmine, como num reflexo,
mas ele imediatamente colocou os braços em sua cintura antes que ela pudesse se mover.
– Acho que deveria nos apresentar, tesoro.
Ela sorriu.
– Mamãe, este é Carmine. Carmine, essa é a minha mãe.
– Estou feliz em finalmente conhecê-la. – ele disse educadamente, esticando a mão.
Miranda hesitou um pouco antes de esticar a dela, olhando diretamente para o rapaz.
A voz de Corrado interrompeu a interação quando ele saiu da casa e disse:
– O almoço está pronto. Achei que gostariam de saber, já que Carmine não parou de reclamar que
iria morrer de fome.
Haven revirou os olhos e Carmine sorriu.
– O quê? Eu ainda não comi nada hoje.
– Vá comer se estiver com fome. – ela disse.
– Você não vem? Também não comeu nada ainda.
Haven balançou negativamente a cabeça.
– Não vou comer, já que ela não pode.
A mãe suspirou.
– Se eles vão permitir, vá lá e coma, Haven. Eu estarei bem aqui quando você terminar.
– Não.
Carmine franziu a testa.
– E por que ela não pode comer?
– O mestre nos alimenta à noite, mas nunca durante o dia… e, com certeza, nunca à mesa com eles.
–Ah, eu tinha me esquecido disso. – disse Carmine – Essa baboseira. Você deveria comer quando
tem fome, oras.
– Está tudo bem.
Carmine se afastou de Haven e foi em direção à casa.
– Não, não está tudo bem. Esperem aqui. Vou dar um jeito nisso.
Pouco tempo depois a porta voltou a bater e Carmine saiu trazendo dois pratos nas mãos. Haven
sorriu ao vê-lo se aproximar.
– Você é tão generoso comigo.
– Espera aí, essa frase é minha. – ele disse brincando, entregando um prato nas mãos de Haven – E
pare de roubar minhas falas, viu?
O outro prato ele entregou nas mãos de sua mãe, que não teve coragem de pegá-lo. Haven o pegou
em seu lugar. Ela olhou para os sanduíches e percebeu o pão amassado e com marcas de dedos no
meio.
– Foi você quem preparou?
– Sim. – respondeu Carmine – Eu sei fazer um sanduíche, sabia?
Sorrindo orgulhosa, Haven entregou o segundo prato a sua mãe.
– Coma, mãe!
Miranda o pegou com as mãos trêmulas.
– Obrigada.
– Não tem de quê. – disse Carmine – Agora sentem em algum lugar e comam. – Haven se sentou
exatamente no lugar onde estava, mas Carmine segurou seu braço – Não pode se sentar em um lugar
menos sujo?
Ignorando o que ele disse, ela se abaixou.
– Já estou suja.
Carmine balançou a cabeça quando uma pequena nuvem de poeira se espalhou no ar.
– Agora você me deixou sujo.
– Bem, a menos que você esteja planejando cuidar de sua própria roupa, não tem do que reclamar.
Ele riu.
– Eu não seria eu mesmo se não reclamasse. Aproveitem seus sanduíches. Foi o melhor que
consegui fazer. Sabe, não sei cozinhar, mas uma coisa eu sei: eu te amo. – ele a beijou antes de voltar
para casa. Só então a mãe se sentou ao lado da filha. A fragilidade e a exaustão eram evidentes em
seu rosto, mas ela parecia em paz.

Carmine estava de pé à janela, observando Haven no quintal enquanto o tempo passava. O sol já
se escondia no horizonte e o céu ganhava a cor de carvão.
Pelo canto dos olhos, o jovem podia sentir o olhar penetrante e enfadonho de Michael, tragando
seu terceiro charuto. O cheiro de fumaça fazia o estômago de Carmine revirar. O sujeito fazia um
sibilo cada vez que respirava, como se estivesse constantemente tentando dizer alguma coisa, mas
nenhuma palavra saíra de sua boca nas últimas duas horas. Covarde filho da mãe.
Corrado caminhou até Carmine e ambos se concentraram na visão do lado de fora.
– Você precisa ajudar ela. – disse Carmine, sentindo-se horrível por ter de separá-las novamente.
Corrado continuou a olhar para fora.
– Lembra-se de quando seu avô faleceu?
– Vagamente – ele disse –, só tinha seis anos na época.
– Depois do funeral, eu estava de pé do lado de fora da casa e sua mãe se sentou ao meu lado.
Maura… Ela jamais gostou de se aproximar de mim, portanto, para que ela o fizesse o assunto era
grave. – ele fez uma pausa – Quando finalmente teve coragem de falar, ela disse exatamente essas
mesmas palavras: Você precisa ajudá-la.
Carmine o olhou espantado:
– Haven?
Corrado balançou a cabeça, confirmando.
– Eu disse à sua mãe que aquilo não cabia a mim, mas eu deveria ter tentado. Eu lhe devia isso.
– Você lhe devia isso?
– Sim. Mas o motivo não vem ao caso agora. A única coisa que realmente importa é que jamais
retribuí o que ela fez por mim.
– Isso quer dizer que irá me ajudar?
Corrado se virou para o jovem.
– Eu disse que responderia por ela, não foi?
– Sim, você disse, mas… – Carmine respondeu, voltando a olhar para Haven – Mas e quanto à
mãe dela? Não tem nada que possa fazer por ela?
– Não posso ajudar todo mundo. Sempre haverá alguém, em algum lugar, que precisa de ajuda.
– Eu sei, mas não se trata de qualquer um. – retrucou Carmine – Essa é a família dela; do mesmo
modo como nós formamos uma família.
O olhar de Corrado foi intenso.
– Ah, agora você pretende se utilizar dos recursos de que dispõe.
– Eu, ah… – Carmine hesitou, mas não havia como negar sua intenção – Sim.
– E tem certeza de que realmente quer fazer isso?
O tom de Corrado fez com que Carmine se questionasse por um momento. Será que ele tinha essa
certeza?
– Sim, eu tenho.
Virando-se novamente para a janela, Corrado acenou a cabeça.
– O máximo que posso fazer é permitir que ela viva em minha casa. É um grande risco, mas,
honestamente, depois de afirmar que responderia por sua namorada, acho impossível me enfiar em
alguma enrascada pior. Se eu morrer, rapaz, será por causa disso. Nada mais importará. – Corrado se
voltou para Michael, que ainda estava sentado em silêncio em sua poltrona – Alguma objeção,
Antonelli?
Michael gaguejou. Ele não prestara atenção na conversa dos dois.
– Bem, eu… eu não tenho certeza.
Corrado ergueu uma sobrancelha; o olhar dele foi suficiente para que Carmine interferisse.
– O que quer dizer com “não tem certeza”?
– Quero dizer que… – ele oscilou a cabeça – É claro, sem problemas.
Corrado se virou novamente para o rapaz.
– Bem, então cuidaremos disso esta noite. Leve Haven de volta para o hotel e retorne aqui. Tudo já
estará resolvido quando chegar.

Carmine finalmente saiu da casa. No momento em que Haven o viu, uma sensação de medo se
instalou em seu coração. Ele parou e disse.
– Eu darei a você mais um minuto.
A mãe de Haven a abraçou com firmeza, enquanto lágrimas escorriam de seus olhos. Seus lábios,
no entanto, ostentavam um sorriso radiante.
– Não faz ideia do que significa para mim ver como está. Minha garotinha, com o mundo todo ao
alcance das próprias mãos.
Haven a abraçou com força.
– Eu te amo, mamãe.
– Eu também te amo. Sempre te amei. Quero que siga em frente e viva sua vida.
O coração de Haven se apertou ao ter de abandonar a mãe mais uma vez.
– Sinto muito a sua falta.
– Eu também, mas o mundo se torna melhor com você participando dele. – disse a mãe, afastando-
se um pouco – Agora saia desse lugar. Estou muito feliz em rever você, mas ficarei ainda mais
contente sabendo que está vivendo em segurança.
– Mas não posso deixar você aqui, mamãe. Não pela segunda vez.
– Silêncio. – ela disse com severidade – Não se preocupe comigo.
Haven ainda tentou dizer alguma coisa, tentando se opor, mas sua mãe não lhe deu te a chance.
– Vá. – ela falou – Você encontrou seu lugar no mundo. Não permita que eu te afaste dele.
Haven cobriu a boca com as mãos enquanto lágrimas encobriam sua visão. Dando alguns passos
para trás, ela olhou pela última vez para a mãe antes de correr em direção ao carro.
Capítulo 41

Já estava totalmente escuro quando Carmine retornou ao rancho naquela noite. O ar do deserto
ainda era escaldante. Ele seguiu em direção à casa, irritado e incomodado, mas ficou petrificado ao
ver a porta da frente se abrir: Miranda saiu correndo, com os olhos arregalados. Mesmo no escuro
Carmine conseguiu identificar a marca de uma mão em sua garganta.
– Quem fez isso com você? – Carmine perguntou – Eu vou matar ele.
Miranda estampou no rosto uma expressão de pânico.
– Por favor, não faça nada.
O jovem tentou controlar o temperamento.
– Mas isso é errado.
– Eu sei, mas… Por favor. – ela saiu para o quintal, extremamente nervosa. Temia que estivesse
sendo observada – Eu me lembro de quando sua mãe nos visitou. Ela costumava falar de um mundo
lá fora para minha filha. Ela disse que Haven era especial.
Ouvir aquelas palavras fez com que Carmine sentisse uma dor no peito, provocada pela saudade.
– Ela é.
– Significa demais para mim ouvir você dizer essas palavras. Quase não reconheci minha filha,
sabia? Ela ainda é a mesma garota doce que eu criei, mas está feliz. Ela está bem melhor afastada de
tudo isso. – ela deu alguns passos e então parou – Certa vez ouvi alguém falar sobre lugares seguros
para pessoas como nós; sobre a maneira como eles ajudavam pessoas a se tornarem livres. Eram
chamados de havens, ou abrigos. Eu dei esse nome à minha filha porque ela era meu porto seguro;
meu abrigo. Quando ela nasceu, eu tive uma razão para continuar vivendo. Minha Haven, ou meu
porto seguro, precisava de proteção. Já fiz tudo que podia, então lhe peço que cuide dela lá fora.
Mantenha Haven distante de pessoas como essas. Pode fazer isso?
Carmine ficou surpreso com a confiança que ela depositou nele.
– Sim.
– Obrigada – ela disse –, agora posso descansar em paz.
A porta da frente se abriu e Miranda correu para os estábulos, antes que ele pudesse dizer uma
única palavra. Carmine olhou para a varanda e viu Corrado, com as sobrancelhas erguidas.
– Contou a ela?
– Não, você a assustou antes que eu pudesse contar.
Um som alto veio de dentro da casa. Eles ouviram passos no piso da cozinha enquanto a voz de
uma mulher ecoava no ar.
– O quê? Meu irmão disse que responderia por aquela vadia?
Revoltado, Carmine subiu os degraus, mas Corrado o segurou pela camisa para impedi-lo.
– Não diga nada!
A porta da frente se abriu e Katrina saiu da casa. Ela vacilou ao ver Carmine, mas se controlou e
se voltou para o irmão.
– Não acredito nisso, Corrado! O que fez meu marido assinar essa manhã?
– Ele assinou o que era necessário. – ele respondeu, sem deixar que sua expressão revelasse a
fúria que sentia internamente.
Katrina soltou um riso ferino.
– Necessário? Nada disso é necessário! Você está libertando aquela maldita garota e ainda
querendo levar a mãe dela? O que deu em você? É por causa dela? É por causa dela, não é?
Os olhos de Corrado pareciam em chamas e ele perdeu a paciência.
– Chega!
O coração de Carmine disparou, mas Katrina continuou provocando.
– É isso, não é? Está tentando consertar o erro do passado, não é? Mas ele não pode ser
consertado!
– Não vou repetir, Katrina.
– Não tenho medo de você. – ela disse, aproximando-se ainda mais dos dois – Está arruinando
minha vida por causa disso! Por que essas pessoas importam tanto? Só porque esses estúpidos
DeMarco se…
Corrado esticou o braço e segurou a irmã pela garganta, impedindo-a de continuar. Ela começou a
sufocar e cravou as unhas bem cuidadas nas costas dele, tentando arrancar suas mãos. Mesmo quando
ela o fez sangrar, Corrado não a soltou.
– Você já acabou de falar? – ele perguntou, retomando sua frieza habitual. Katrina lutava para
conseguir respirar e falar – Queima, não é mesmo? Imagine como elas se sentem quando você as
tortura. Pense em como ela se sentiu naquele dia, Kat, quando aqueles sujeitos a sufocaram e a
violentaram e você não fez nada para impedi-los.
Corrado continuou a olhar para a irmã, sem dar qualquer indicação de que pretendesse soltá-la.
Foi então que Michael saiu pela porta e falou:
– Pare! Vai matar ela.
Os olhos de Corrado se voltaram para Michael. Não havia qualquer expressão nos olhos dele,
apenas escuridão. Aquele era o Corrado que Carmine tanto temia.
Antes que pudesse raciocinar, um barulho forte veio dos estábulos e os cavalos relinchavam sem
parar, assustados com alguma coisa. Corrado soltou Katrina, olhou para Carmine e desceu correndo
os degraus. Carmine saltou da varanda e saiu em disparada atrás dele.
– Essa mulher não é aquela. – gritou Katrina – Só porque ele está fazendo a mesma coisa que o pai
fez não quer dizer que elas sejam a mesma pessoa!
Aquelas palavras pegaram Carmine de surpresa. Ele se virou e olhou para Katrina, sem prestar
atenção para onde estava indo. De repente ele se chocou contra as costas de Corrado, quando este
parou na porta do estábulo. Corrado empurrou Carmine para dentro e ele ficou horrorizado. O rapaz
quase parou de respirar e sentiu vontade de vomitar, quando seu peito foi tomado pela amargura.
Aquela imagem o deixou transtornado, sufocado e sua visão escureceu, quase o fazendo desmaiar.
Flashes de memória espocavam em sua mente; seus joelhos ficaram trêmulos. Os tiros, o sangue, o
terror, aquela figura de capuz apontando a arma para ele. Lá estava sua mãe, caída ao chão naquela
viela escura, sem vida, depois de gritar apavorada.
Corrado o chacoalhou para que voltasse à realidade.
– Controle-se, Carmine.
Um pequeno banco de madeira estava caído sobre uma pilha de feno, bem à frente dos dois. Um
par de pés descalços e sujos balançava a alguns centímetros acima dele. A figura frágil e agora tão
familiar estava pendurada como uma boneca de pano, enforcada com uma corda grossa, presa a uma
viga de sustentação.
Carmine deu um pulo e segurou as pernas de Miranda, gritando por ajuda. Corrado pegou uma
tesoura de jardim e cortou a corda. O corpo caiu sobre Carmine e ele se desequilibrou, dando alguns
passos para trás. Depois de colocá-la no chão, ele verificou o pulso da mulher, mas não havia
nenhum sinal de vida.
Katrina e Michael se aproximaram enquanto Carmine aplicava técnicas de ressuscitação,
pressionando o peito de Miranda e forçando ar em seus pulmões. O corpo dela ainda estava quente,
como se estivesse dormindo, mas os olhos arregalados e a cor azulada da pele diziam outra coisa.
Carmine ouviu Katrina gritar e a voz apressada de Michael, mas o som de sua própria respiração
acelerada o impedia de ouvir o que diziam.
Pânico. Tudo o que ele sentia era pânico.
Nada do que Carmine fez deu resultado. As costelas frágeis estalavam com a força dos
movimentos, sem que seu corpo absorvesse nenhum ar. Miranda estava morta no chão.
Corrado colocou a mão no ombro do rapaz.
– Ela está morta.
Carmine ainda tentou continuar.
– Não, não está! Temos de salvar ela!
– É tarde demais.
– Não, não é! – ele gritou histérico enquanto continuava a pressionar o peito da mulher – Por que
você fica aí parado?
– Não há mais nada a fazer.
– Ajude ela! Você me disse que iria ajudar, seu mentiroso!
Corrado agarrou o braço do jovem, afastando-o do corpo inerte de Miranda e colocando-o de pé
de frente para ele.
– Ela está morta!
– Como pode saber?
A expressão de Corrado era fria.
– Eu reconheço um cadáver quando olho para um.
Carmine se sentou no chão sujo; seus olhos cheios de lágrimas. Ele então olhou ao seu redor, na
expectativa de que tudo aquilo fosse um pesadelo do qual logo acordaria. Foi então que viu um
sorriso orgulhoso nos lábios de Katrina.
Aquela visão o fez perder o controle.
– Isso é tudo culpa de vocês! – ele gritou, olhando para ela e Michael – Vocês a mataram! Vocês a
forçaram a fazer isso!
– Quem se importa? – retrucou Katrina – Ela era apenas uma escrava!
No momento em que aquelas palavras chegaram aos ouvidos de Carmine, qualquer pensamento
lógico que ainda restasse em sua mente desapareceu.
– Não, ela não era uma escrava!
– Carmine! – Corrado alertou.
– Ela era uma Principessa! – ele disse, ignorando o tio – E Salvatore irá matar vocês quando
descobrir o que fizeram!
Pegando a podadeira que estava no chão, Carmine a empunhou contra Katrina, prendendo-a e
impedindo-a de escapar. Enlouquecida, ela pegou uma pá e partiu para cima do rapaz, erguendo-a
para atingi-lo na cabeça. Corrado reagiu rapidamente, sacando sua arma e atirando sem hesitação na
irmã. O som do tiro reverberou no ambiente fechado e Carmine se encolheu ao ouvir o barulho
ensurdecedor. Os cavalos relincharam, assustados pelo som da arma.
Katrina começou a arfar no momento em que a bala atravessou o seu peito. Ela parou e, mesmo
baleada, ainda conseguiu atingir a clavícula de Carmine com a pá. O jovem sentiu uma dor lancinante
do lado esquerdo do corpo. Katrina ainda tentava dizer algumas palavras, soltando a pá e levando as
mãos ao peito. Foi então que um segundo tiro a acertou bem no meio da cabeça e ela caiu ao chão.
Michael soltou um grito desesperado e se jogou para cima de Corrado, que mais uma vez reagiu
rápido. Abaixando-se, Carmine tampou os ouvidos quando um terceiro tiro atravessou o crânio do
sujeito. Ele caiu morto no chão, bem ao lado da esposa.
Carmine quase vomitou novamente quando viu Corrado disparar mais alguns tiros contra os
corpos. Sua frieza demonstrava que aquilo não significava nada para ele. Era como se não fossem
pessoas; como se não fossem parte de sua própria família.
Furioso, Corrado ergueu Carmine do chão, que cambaleou um pouco antes de conseguir ficar de
pé. O jovem se inclinou, tentando de algum modo registrar tudo o que acontecera, mas toda aquela
aniquilação o deixara paralisado.
Corrado recolocou a arma no casaco e pegou o celular. Carmine sentou-se num pequeno banco,
colocou a cabeça entre as pernas e cobriu o rosto com as mãos, respirando fundo. Seus ouvidos
zuniam e seu coração batia acelerado. Tentando se acalmar, o rapaz começou a contar até dez,
enquanto Corrado friamente falava ao telefone.
Um.
– Ocorreu um incidente.
Dois.
– Matei dois, senhor.
Três.
– A situação saiu de controle.
Quatro.
– Tive de agir.
Cinco.
– Minha irmã e o marido dela.
Seis.
– Assumo total responsabilidade.
Sete.
– Arrumarei um local apropriado.
Oito.
– E aceitarei quaisquer que forem as consequências…
Nove.
– … mesmo que isso signifique retirar o que disse sobre responder pela garota.
Dez.
Carmine olhou para o tio quando ele desligou.
– Retirar o que disse sobre responder por ela?
Corrado enfiou o telefone no bolso.
– Sim. E é melhor que reze para que Sal esteja disposto a me perdoar, pois acabei de quebrar
nosso código de conduta.
– Eu, ah…
– Não há nada mais a fazer, Carmine. O que está feito, está feito.
– Mas, ela… – a irritação no rosto de Corrado o assustou – Ela era sua irmã. Devemos sempre
proteger nossa família.
– Bem, você é meu sobrinho, correto? – Carmine concordou – E Katrina atacou você, correto? –
mais uma vez o rapaz concordou – Isso significa que eu protegi minha família. Minha irmã e meu
cunhado cavaram suas próprias sepulturas, e não é culpa de ninguém, exceto deles mesmos, se agora
irão repousar dentro delas.
Carmine não disse nada, temendo que fosse vomitar se tentasse. Ele jamais imaginara que as
coisas pudessem se desenrolar daquela maneira; nunca pensara que aquele dia terminaria com ele
coberto de sangue, o mesmo sangue que corria pelas veias de Haven, diante dos corpos das duas
pessoas que lhe deram vida.
– Está tudo terminado. – disse Corrado, olhando para os corpos – E não cabe a você lidar com
isso… É minha responsabilidade. Mas espero que isso lhe ensine uma lição e que finalmente perceba
que não sabe tudo da vida.

Haven acordou de sobressalto no quarto escuro do hotel. Com um vazio no peito e o estômago
embrulhado, ela se sentou na cama. A estática na TV ainda ligada iluminava levemente a figura de
Carmine, parado à porta. Uma sensação estranha invadiu seu corpo, e ela sentiu um calafrio que
irradiava de seu coração.
– Carmine?
Ele olhou para ela e, pelo brilho da TV, ela percebeu o pânico no rosto do rapaz. Os olhos dele
brilhavam com lágrimas de desespero e ela sabia que algo havia saído muito errado.
– O que foi que aconteceu? – ela perguntou – Está tudo bem?
Carmine deu um passo na direção dela e balançou a cabeça, num movimento lento e negativo.
Aquela reação a deixou aterrorizada. Quando ele se aproximou ainda mais da cama ela pôde ver as
manchas vermelhas em sua camisa. Ela já havia visto aquilo há vários anos, quando seu vestido azul
ficou todo respingado com o sangue da menina que caiu morta ao seu lado. Aquela era a marca da
desolação; a marca da morte.
– Ah meu Deus, você está bem? Está ferido?
– Eu não. – ele sussurrou, com o rosto tomado de agonia – Ela se foi.
Ela se foi. Haven conhecia bem aquelas palavras. Ele as dissera para ela em relação à própria
mãe.
A jovem sentiu o peito se contrair; seus pulmões pareciam ter parado de funcionar; suas entranhas
ardiam em chamas.
– Não!
A voz áspera de Haven ecoou desolada no momento em que ele esticou as mãos para tocá-la.
Haven o empurrou o mais que conseguiu.
– Pare! Você está enganado. Onde ela está, Carmine? O que aconteceu com a minha mãe?
Apesar de lutar para tentar se afastar, Carmine a segurou e a pressionou contra o peito. Ela tentou
se soltar, mas ele se manteve firme.
– Me solte! Diga onde ela está!
Com as lágrimas escorrendo pelo rosto e a voz trêmula, ele a fez parar de falar.
– Sinto muito, beija-flor, mas ela não vai voltar.
A profunda tristeza do rapaz destruiu qualquer esperança que ela ainda tivesse. Haven começou a
chorar e soluçar de maneira incontrolável, enquanto ela se lamentava e gritava que ele não sabia de
nada. Cerrando os punhos, ela o golpeou inúmeras vezes nas costas e ele aceitou cada um dos golpes,
mantendo-se firme.
– Eu sinto muito. – ele disse – Fiz tudo que pude, mas… ela se foi.
O pânico da jovem aumentou. Ela choramingava e murmurava a palavra “não” e então gritava de
maneira incoerente, dizendo a ele que precisava voltar lá e cuidar da mãe. Ela o culpava, uma vez
que ele não lhe oferecia nenhuma explicação. As palavras de conforto do rapaz apenas a
machucavam mais. Ele ignorou quando seu telefone tocou, assim como cada palavra dura e grito de
dor.
Cada “eu te odeio” que ecoava da boca de Haven era seguido de um “eu te amo” proferido pelo
jovem. A cada vez que ela implorava para que ele a deixasse, ele assegurava que ficaria ao seu lado
para sempre. Seu abraço era forte, seus braços, familiares, mas não conseguiam aplacar a dor da
garota.
– Ela não sofreu – ele sussurrou. – Foi escolha dela.

Haven quase não disse uma palavra por vários dias. Carmine explicou-lhe exatamente o que
acontecera; contou a ela tudo o que sabia, mas ela não reagiu; não disse nada. Eles permaneceram
naquele hotel na Califórnia pelo resto da semana, mas no sábado precisavam retornar para a Carolina
do Norte. A Máfia já havia ido embora e DeMarco permanecia vivo, depois de conseguir resolver
mais uma situação complicada. Na verdade, eles só foram até lá para limpar o porão da casa,
preocupados com a atenção da polícia em cima de Vincent.
A viagem de volta foi marcada pelo silêncio. Carmine parava várias vezes ao longo do dia para
descansar. Quando o final de semana chegou ao fim, eles já estavam chegando aos limites de Durante.
Ele estacionou ao lado da Mercedes do pai e saiu do carro, esticando o corpo. Haven entrou direto,
sem esperar por ele, que a seguiu mesmo assim. Ele se deparou com o pai logo que entrou no hall.
Vincent os olhou retornar com cautela.
– Olá, crianças.
– Olá. – respondeu Carmine.
– Doutor DeMarco – disse Haven –, o senhor me dá licença?
– É claro, dolcezza. Nem precisa perguntar.
Carmine franziu o cenho, observando enquanto ela desaparecia escada acima.
– Acho que vou pra cama.
O pai dele suspirou.
– Um dia de cada vez, Carmine.
Capítulo 42

As pilhas de livros se tornaram arranha-céus. Caminhando por entre elas, Haven ocasionalmente
puxava um volume e examinava a capa e a descrição no verso.
Eles já haviam retornado a Durante há alguns dias, pouco antes do início do último ano de
Carmine. Ele se dedicou totalmente nas aulas e também na prática de futebol, deixando que Haven
preenchesse os próprios dias sozinha. Ela cozinhava, limpava, mas ainda sobravam horas sem nada o
que fazer; sem ninguém para conversar.
Precisando de alguma distração, ela se voltava para a biblioteca, esperando se perder em algum
mundo diferente; ser absorvida por um lugar e um tempo fictício; encarnar a vida de outra pessoa.
Ela só queria esquecer tudo o que havia acontecido, evitar pensar nos últimos momentos de vida de
sua mãe. Haven se pegou imaginando o que ela estaria pensando. Será que ela ficou com medo? Será
que sentiu dor? Será que por um instante sequer ela se arrependeu de sua decisão?
Aquela sensação de fracasso a incomodava profundamente. Naquele dia, ela correra desesperada
pelo deserto de Blackburn, na expectativa de salvar sua mãe, mas havia esquecido aquilo. Agora era
tarde demais. Sua mãe se fora.
Haven passou os dedos sobre as lombadas dos livros e encontrou um que não tinha nome. Então
puxou a capa de couro e um pedaço de papel caiu no chão. Ela o pegou e desdobrou, franzindo o
cenho ao perceber que era uma carta.
Ela caminhou até a cadeira próxima à janela, sentou-se com o livro no colo e leu o papel
envelhecido.

8 de Outubro de 1997
Cara senhora DeMarco,
Depois de avaliar cuidadosamente a situação, decidi que já não posso fazer parte dessa
investigação. Na época em que assumi o caso, desconhecia todos os detalhes, do contrário, eu o
teria rejeitado. Para toda e qualquer finalidade, Haven Antonelli não existe, e imploro à senhora
que esqueça que a encontrou um dia. Juntamente dessa carta, encontrará a devolução total do
pagamento que me fez. Considere nosso contrato encerrado, e peço-lhe a gentileza de não voltar a
me procurar para falar sobre este assunto.
Arthur L. Brannigan
Investigador Particular

Assustada, Haven olhou mais uma vez para o papel, certa de que não havia compreendido
corretamente o conteúdo. Foi então que partes do quebra-cabeça começaram a se juntar, expondo um
quadro que a deixaria sem palavras. Seus olhos se encheram de lágrimas, seu estômago revirou
quando ela percebeu a data na parte de cima do papel: 8 de outubro de 1997, poucos dias antes de
Maura DeMarco ser assassinada.

Vincent batia levemente a caneta sobre a escrivaninha, rodeado por pilhas de arquivos. O trabalho
havia se acumulado, mas ele não conseguia se concentrar. Continuava perdendo o foco; seus
pensamentos e olhos se desviavam para a tela que ficava ao lado dele.
Duas semanas já haviam se passado desde que Carmine e Haven retornaram de Blackburn, e
aqueles dias se provaram os mais longos de toda a vida de DeMarco. O clima na casa estava tenso; o
silêncio que se instalara naqueles quinze dias era desconfortável. Sentado à escrivaninha, todas às
noites, ele via seu filho caminhar de um lado para outro no hall do segundo andar, a apenas alguns
centímetros da porta do escritório do pai, sempre com as mãos nos cabelos, repreendendo e culpando
a si mesmo pelo que acontecera.
Vincent não podia ouvi-lo, mas sabia exatamente o que o filho estava pensando. DeMarco digitou
alguns comandos no teclado e logo passou a ver o que acontecia na biblioteca. Logo ele viu a jovem,
encolhida na cadeira com um livro no colo. Era o mesmo lugar em que se acostumara a ficar sentada
no escuro, olhando para o jardim. Ela cada vez se fechava mais, mas Vincent estava muito cansado
para interferir.
Ele estava em apuros com la famiglia. Ele mentira, trapaceara, roubara e matara em nome deles,
mas de uma coisa ele sempre se orgulhou: sempre fora fiel. Vincent podia ser um criminoso, mas,
pelo menos, costumava se considerar um criminoso honrado. Todavia, a situação mudara nos últimos
tempos, e a organização estava ciente de seu comportamento. Aquilo ficara óbvio na última visita
que recebera. Todos da Cosa Nostra eram treinados para perceber qualquer ato incorreto… e
Vincent estava cansado de ser desonesto.
Maura lhe dissera certa vez que, embora nem todos vivessem, todos um dia morreriam, e com a
morte viria a libertação. De fato, a morte significava liberdade. Liberdade de todas as coisas que nos
mantêm presos e subjugados. Vincent costumava retrucar sempre que ela dizia aquilo, mas agora ele
a compreendia. Ele entendia exatamente o que era desejar encontrar a paz, sem entretanto conseguir,
porque seu trabalho ainda não estava terminado. Um homem tem de seguir em frente até que tenha
cumprido seu propósito. Vincent invejava os que já descansavam em paz. O que ele não daria para
tirar todo aquele peso de seus ombros…
Mais uma vez ele pressionou o teclado e percebeu que Carmine estava no mesmo lugar,
perambulando de um lado para outro enquanto olhava ora para o escritório, ora para as escadas que
o levariam ao terceiro andar. Vincent olhou no relógio: já passava das onze da noite. Geralmente
Carmine tomava sua decisão antes daquele horário e subia as escadas. A garota, então, saía correndo
da biblioteca antes que ele chegasse lá.
Essa noite, contudo, as coisas foram diferentes. Quando Carmine seguiu em direção ao escritório,
tudo o que Vincent sentiu foi alívio. O Dia do Julgamento havia chegado. Ele estava um passo mais
próximo de encontrar a paz.
A porta se abriu e Carmine entrou, fechando-a violentamente atrás de si. Feliz pelo filho ter
resolvido entrar, Vincent nem o repreendeu por entrar sem bater.
– Sente-se. – ele disse, pressionando as teclas e observando mais uma vez a situação na
biblioteca.
Carmine bufou e se sentou. Seus olhares se encontraram e Vincent percebeu toda a curiosidade e
todas as dúvidas que estampavam o rosto do jovem. Havia muito ressentimento escondido ali, mas
Vincent não o culpava por isso.
– Sua aparência está péssima. Parece que não dorme há anos. – disse Carmine – E, por Deus, você
tem se alimentado?
Vincent se recostou na cadeira.
– Quer discutir meu estado de saúde, Carmine?
A expressão do pai era séria.
– Claro, você está horrível.
– Bem, obrigado pelo elogio, mas algo me diz que você não passou a semana inteira
desperdiçando seu tempo do lado de fora do meu escritório só para tomar coragem para intervir na
maneira como estou me cuidando.
– Como sa…? – Carmine fez uma pausa – Ah, você estava assistindo pelas câmeras de segurança.
– Sim. – respondeu o pai – E já estava começando a me perguntar se você planejava mesmo entrar
em algum momento.
Carmine soltou um suspiro.
– Eu não sabia o que dizer. Não fazia sentindo entrar só pra olhar pra você, já que você parece em
frangalhos.
– Considerando o fato de você estar aqui agora, isso significa que já sabe o que dizer?
– Não, só fiquei cansado de perambular pelo hall.
– Ah, então achou melhor olhar para mim do que para aquelas paredes brancas. Que bom, pelo
menos isso.
Carmine esboçou um sorriso.
– Não, mas é bom saber que mais alguém nesta casa ainda se lembra de como fazer uma piada.
– Tale il padre, tale il figlio. – disse Vincent, arrependendo-se imediatamente das palavras que
deixou escapar. O sorriso de Carmine desapareceu e Vincent sabia exatamente o que o filho desejava
saber. Ele temera esse momento por muitos anos.
– Quando estávamos em Blackburn, Katrina disse uma coisa. – Carmine começou – Ela disse que
só porque estávamos fazendo a mesma coisa, isso não significava que nós fôssemos os mesmos…
que Haven não era ela. E não foi só isso. Ela falou outras merdas também. Então, pai, eu gostaria de
saber…
– Gostaria de saber como conheci sua mãe.
– Gostaria de saber a verdade.
A verdade. Vincent não poderia mais evitá-la.
A tarde estava muito quente quando um jovem parou de pé no jardim da mansão dos Moretti, em
Las Vegas. Ele ergueu a mão para bloquear a forte luz do sol enquanto caminhava pela lateral da
casa, em busca de alguma sombra. Assim que fez a volta atrás da casa, se deparou com alguém.
Soltando os braços, o rapaz piscou algumas vezes para a jovem que estava à sua frente. A pele pálida
da moça brilhava sob a luz do sol e contrastava com seus cabelos vermelhos. Aqueles olhos verdes o
encararam com cautela, enquanto ele olhava para eles hipnotizado. Ela disse alguma coisa, mas o
jovem sequer conseguiu ouvir. De repente seu estômago se contorceu; seu coração disparou.
Colpo di fulmine. Foi como um raio direto na cabeça: o rapaz estava apaixonado.
– Algum problema? – ela perguntou quando ele a puxou para debaixo de uma sombra.
– O único problema é que não sei o seu nome.
Ela sorriu e respondeu.
– É Maura.
Maura. Os cabelos ruivos da jovem escorriam pelos ombros e as sardas decoravam seu nariz. Ela
não era italiana, de jeito nenhum. Aliás, nenhum italiano que o rapaz encontrara em toda sua vida
tinha olhos daquela cor.
Aqueles olhos… Vincent nunca se cansava de olhar para eles. E conforme se concentrava no filho
caçula do outro lado da escrivaninha ele via aqueles mesmos olhos verdes, agora observando-o com
desconfiança.
– Nós nos encontramos na festa de noivado de Celia. – ele respondeu, com o olhar distante. Às
vezes ainda era difícil para Vincent falar sobre aquele assunto.
– E o que uma garota irlandesa estava fazendo numa festa para dois italianos?
Foi exatamente aquilo que Vincent pensara naquela tarde.
Ele e Maura se sentaram encostados na parede da casa; ele com as pernas esticadas, se abanando
por conta do calor. Os joelhos de Maura estavam recolhidos até o peito, e ela retirava a grama seca
do jardim.
Eles ficaram sentados ali quase uma hora.
– Não está com calor? – ele perguntou.
– Não, mas você pode entrar se quiser. O ar frio dentro da casa o fará sentir-se melhor.
– E por acaso você viria comigo?
– De jeito nenhum. – ela respondeu – Isso não seria nem um pouco apropriado.
O rapaz deu risada.
– Então, também não vou; ficarei bem aqui onde estou.
– Eles não irão reparar que você sumiu?
– Duvido que se lembrem de que estou vivo. – ele respondeu – Mas e quanto a você?
Antes que ela pudesse responder, seus olhos se concentraram na figura que aparecera atrás do
jovem. Ele se virou e resmungou ao ver Katrina parada ali, olhando para os dois.
– Desapareça, sua chata, não estou com saco pra te escutar.
– O que diabos pensa que está fazendo? – perguntou Katrina num tom severo.
Maura se colocou de pé imediatamente, abaixando os olhos enquanto tremia.
– Sinto muito, senhora.
Senhora. No momento em que ela pronunciou aquelas palavras, ele descobriu a verdade.
– Bem? – Carmine perguntou de modo impaciente, puxando Vincent de seus pensamentos – E o que
ela estava fazendo lá?
– Ela trabalhava na casa.
– Ela trabalhava na casa? – Carmine repetiu as palavras do pai – Como assim, ela era uma
empregada? Uma garçonete? Porque na época vocês tinham o quê, quinze anos? Não era idade
suficiente para que ela trabalhasse. Não que vocês sigam alguma lei trabalhista ou algo do tipo…
Vincent deu um suspiro.
– Ela não era empregada, nem ganhava um salário.
Carmine lançou o corpo para frente, aumentando o tom da voz.
– Isso é verdade? Está falando sério?
– Sim.
O filho se levantou abruptamente da cadeira, empurrando a mesa contra o pai. Vincent segurou o
notebook antes que o aparelho fosse ao chão e continuou ouvindo enquanto Carmine esbravejava.
– Como eu pude ser tão estúpido? Eu jamais teria imaginado que ela pudesse ter sido uma… Você
teria de… Meu Deus!
Vincent empurrou a escrivaninha de volta ao lugar certo.
– Você pode pronunciar a palavra.
– Eu sei – ele retrucou –, mas e quanto a você?
– Claro. É só uma palavra.
– Então diga. Pare com essa merda de “ela trabalhava na casa” e diga de uma vez.
– Escrava. – Vincent disse – Ou vítima de tráfico de pessoas. Não importa do que o chamemos, é
tudo a mesma coisa.
Carmine ficou ainda mais nervoso.
– E os Moretti eram os donos dela? É por isso que Corrado disse que deve algo a ela?
– Isso não cabe a mim responder. Terá de perguntar a ele.
– É claro que não cabe a você. – resmungou Carmine, batendo com as duas mãos na escrivaninha –
Mais uma vez recorre à velha tática do “isso não cabe a mim responder.” Ninguém quer me dizer
nada, então empurram o problema para outra pessoa. Não acredito que você tenha escondido isso de
mim! Depois de tudo que aconteceu, como pôde deixar de me contar isso?
Vincent empurrou as mãos de Carmine.
– É melhor você se acalmar. Se realmente deseja uma explicação, sente-se agora. Do contrário,
saia do meu escritório agora. A escolha é sua, mas não vou ficar aqui e permitir que se dirija a mim
como se fosse uma criança.
Carmine olhou furioso para o pai, contraindo o maxilar. Vincent sabia que o filho queria gritar
alguma coisa, mas Carmine era esperto o suficiente para saber que para conseguir respostas teria de
seguir as ordens do pai.
Soltando um suspiro, Carmine se sentou. Vincent organizou alguns papéis sobre a mesa e olhou
mais uma vez para o computador antes de se voltar para o filho.
– Quando você acha que teria sido o momento certo para lhe dizer? Quando tinha dois anos e
sequer sabia o significado de escravidão? Quando completou oito anos e acreditava que sua mãe era
sua heroína, infalível? Depois que ela morreu, quando já estava machucado demais? Nunca encontrei
o momento certo.
– Mas não acha que eu tinha o direito de saber o que a minha mãe era?
Aquela pergunta fez Vincent perder a paciência.
– A sua mãe não era aquilo! Quantas vezes eu o ouvi dizer à sua namorada que a escravidão não a
definia como ser humano? Quantas vezes, Carmine? E agora você tem a ousadia de dizer isso para
mim?
– Eu não tive a intenção…
– Não importa qual foi sua intenção. – respondeu Vincent – É por isso que nunca desejei que você
soubesse. Maura queria que as pessoas a vissem como uma esposa e mãe; como uma mulher, não
como uma vítima. Eu permiti que ela deixasse seu passado para trás e, talvez, isso tenha sido injusto
com você, filho, mas era a vida dela. A decisão era dela. Eu amava sua mãe e tivemos de enfrentar
um verdadeiro inferno para que pudéssemos permanecer juntos. Tentei tornar tudo o mais fácil
possível para você, assim talvez você pudesse aprender com os meus erros. Eu tive de aprender pela
tentativa e erro. Perdi a paciência com ela tantas vezes porque eu não a compreendia.
Carmine cobriu o rosto com as mãos tentando controlar suas emoções.
– Ela sempre pareceu tão bem ajustada.
– Essa sempre foi nossa intenção. – disse o pai – Não queríamos estimular sua percepção para as
coisas que ela fazia. Se soubesse a verdade, começaria a fazer mais e mais perguntas.
As lágrimas inundaram os olhos de Carmine.
– Então é por isso que ela estava tão desesperada para ajudar Haven.
Vincent sabia que havia abalado os alicerces de Carmine, então ele prosseguiu com cautela.
– Maura não nasceu escrava, mas sabia exatamente o que uma criança teria de enfrentar ao crescer.
Sua mãe queria salvá-la antes que aquilo se tornasse uma realidade. Quanto maior a idade em que se
tira uma pessoa dessa vida, menor a chance de ela se adaptar ao mundo exterior.
– É por isso que nunca vemos a vovó? Tinha medo de que ela nos contasse a verdade?
Uma gargalhada interrompeu o silêncio e demorou alguns segundos para que Vincent percebesse
que partira dele mesmo.
– Ah, minha mãe. – ele riu novamente – Digamos apenas que ela tem suas próprias convicções. Ser
uma escrava já era ruim o suficiente, mas uma escrava irlandesa era motivo de absoluto repúdio.
– Então, ela realmente era de origem irlandesa? Essa parte é verdade?
– Sim. O pai dela entrou numa encrenca com a máfia irlandesa. Eles sequestraram Maura como
garantia quando ela ainda tinha seis anos.
– Ela foi sequestrada? E ninguém procurou por ela?
– É claro que as pessoas procuraram por ela. Mas mais de duas mil crianças desaparecem todo dia
nesse país. Sua mãe sumiu antes do advento da internet; também não havia agências especializadas
em crianças desaparecidas, muito menos alertas de emergência no rádio e na TV para casos desse
tipo. Tudo com o que eles contavam na época era o boca a boca. Depois que todos pararam de falar
no assunto, foi como se ela jamais tivesse existido.
– Mas e quanto aos pais dela?
– Foram assassinados. – ele respondeu – Maura foi vendida algumas vezes e acabou nas mãos de
Erika Moretti.
– Quem a libertou? Quem assumiu sua tutela e respondeu por ela?
– Acho que posso dizer que fui eu. Seu avô me disse que se quisesse algo na vida, seria minha
responsabilidade correr atrás e consegui-lo. Foi então que fui iniciado nessa vida, e ainda estou
pagando o preço por isso. – ele fez uma pausa – É tudo o que queria saber? Porque estou exausto e
não tenho mais energia para esse tipo de conversa.
Carmine acenou positivamente, embora Vincent tivesse certeza de que o rapaz queria saber muito
mais.
– Eu conversarei com seu irmão sobre isso, mas a decisão de contar ou não a Haven é sua.
– Acho melhor não. Ela já tem muito na cabeça.
– É, imagino que sim. – disse Vincent, olhando novamente para o computador para ver se ele
continuava no mesmo lugar – A vida da mãe dela terminou exatamente quando a dela começou. Aliás,
falando nisso… – ele prosseguiu, abrindo a gaveta da direita, retirando de lá alguns arquivos e os
entregando a Carmine – Aqui está toda a papelada da jovem. Levará algum tempo até que seja feita a
partilha de bens, mas ninguém irá contestar a herança. Tecnicamente tudo iria para Corrado, de
qualquer modo, mas ele passará tudo para o nome dela quando as coisas estiverem terminadas…
Assim como lhe dará a liberdade, é claro.
– Esse é o melhor presente que alguém poderia lhe dar.
– Não é um presente, Carmine. É apenas algo a que ela sempre teve direito.

A chuva despencava do céu e batia forte contra a janela. Não havia sinal da lua, tampouco das
estrelas; não havia nada além de escuridão. Parecia ameaçador, mas apropriado… Era assim que
Haven se sentia por dentro.
Vazia.
Ela talvez estivesse absorvendo oxigênio em seus pulmões e seu coração devia estar enviando
sangue para seu corpo, porém, uma parte dela havia deixado de existir. Aquela fora uma morte lenta e
torturante, dolorosamente agonizante, principalmente por ela considerar tudo aquilo sua própria
culpa.
Olhando para o relógio na parede, Haven firmou os olhos para ver os números. Havia luz
suficiente para que ela percebesse que já havia passado da meia-noite; um novo dia havia acabado
de começar.
10 de setembro.
Ela observou a chuva por mais algum tempo, antes que uma sombra se movesse. Carmine estava
parado a alguns centímetros de distância, olhando para ela.
– Acho que deveríamos ir para a cama.
Pegando o livro que estava em seu colo, ela o colocou sobre a mesa e correu para o quarto antes
que ele pudesse dizer outra palavra. Carmine a seguiu e fechou a porta, puxando-a para perto de si ao
deitar na cama.
– Buon compleanno, mia bella ragazza – ele disse – Feliz aniversário.
Capítulo 43

Haven voltou-se para o outro lado do quarto com os olhos ainda embaçados e viu Carmine
próximo à porta, segurando um pequeno prato com uma rosca de canela. Uma única vela azul estava
colocada sobre ele. Haven soube imediatamente que a rosca havia acabado de sair do forno. O
cheiro de queimado também revelava quem o tinha feito.
– Você mesmo assou? – ela perguntou, surpresa.
Carmine olhou meio encabulado.
– Bem, eu não me arriscaria a fazer um bolo de verdade. Essa rosca já foi difícil pra caramba.
Levou um tempão até que eu descobrisse como abrir a caixa. Tive que ligar pra Dia e perguntar.
Haven sorriu quando ele se aproximou; seu coração estava tão repleto de amor que chegava a
doer. Apesar de tudo, ele ainda representava o mundo dela, seu único mundo. Parte dela podia se
sentir morta, mas havia outra que vivia exclusivamente para Carmine.
– Isso foi tão amável de sua parte. – ela disse, pegando o prato – Não tinha de fazer isso. Eu te
disse que…
– Eu sei o que você me disse – ele retrucou –, mas não podia ignorar seu aniversário. Você nunca o
celebrou antes. É algo muito especial, portanto, sem discussão. É rude reclamar quando as pessoas
querem fazer coisas pra você. É como aquele ditado: “Em cavalo dado não se dá um soco…” ou algo
assim.
Ela riu.
– Com cavalo dado, não se olham os dentes.
Revirando os olhos, ele procurou no bolso por um isqueiro e acendeu a vela.
– É. A caval donato no si guarda in bocca. Quer saber, apenas sorria e acabe logo com isso. – no
momento em que ele afastou a mão Haven soprou a vela – Mas que pressa, hein? Você fez o desejo?
Ela franziu a testa no momento em que Carmine retirou a vela de cima da rosca.
– Um desejo?
– Você tem que fazer um pedido antes de apagar a vela. – ele explicou – É pra isso que ela serve.
Não importa, pois terá uma segunda chance mais tarde.
Ela ficou nervosa.
– O quê?
– Nós vamos passar a noite em Charlotte, com a Dia, e celebrar seu aniversário. Caramba, você
realmente imaginou que se livraria dela? Somos praticamente seus únicos amigos.
Ele olhou para a jovem como se implorasse para que ela não discutisse.
Haven partiu a rosca em dois pedaços e o compartilhou com Carmine. A parte de baixo estava
toda queimada e difícil de mastigar, mas ela não reclamou e logo devorou sua parte. Depois de
Carmine terminar a dele, ele pegou uma pilha de papéis e entregou a ela.
– O que é isso? – ela perguntou.
– Isso, tesoro, é sua vida.
Haven olhou para o papel que estava em cima. Era um certificado de cidadania americana.
Lágrimas inundaram seus olhos quando ela viu seu nome escrito. Emocionada, começou a folhear o
restante da papelada, mas só ficou mais confusa. Testamentos, codicilo, tutoria, remanescente da
herança, conta fiduciária…
– Mas o que significa tudo isso?
– É sua herança. Levará alguns meses antes que consiga colocar as mãos nela. Na verdade, deveria
ter levado alguns meses pra que tudo estivesse pronto, mas de algum modo Corrado conseguiu
agilizar as coisas. Provavelmente extorquindo alguém.
Ela o encarou.
– Herança?
– Claro, a propriedade, o dinheiro e essa merda toda. Digo, eu imagino que não vá querer manter a
casa, mas você pode vender ela…
– O quê? – ela perguntou – Que casa?
Ele parou de falar e olhou para ela, surpreso.
– Ué, a casa em Blackburn.
– Está dizendo que aquela casa me pertence? – ela balançou a cabeça e piscou algumas vezes,
tentando absorver a informação – Não quero aquela propriedade. Não quero nada que tenha
pertencido àquela gente.
Franzindo a testa, Carmine pegou a mão da jovem.
– Escute, não pense nisso como se aquelas pessoas estivessem lhe dando nada. Mas, depois de
tudo o que passou, você merece. É como uma reparação. Não estou dizendo que qualquer quantia em
dinheiro seja capaz de compensar o que te aconteceu, porque não seria. Mas depois de tudo o que
perdeu, você pelo menos terá o direito a tudo o que era deles. Você entende o que estou dizendo?
– Sim.
– E o dinheiro te ajudará com essas coisas. – ele disse, pegando a papelada e reorganizando tudo
de modo que o certificado de cidadania ficasse no topo da pilha.
– E o que acontece comigo agora? Ainda estou aqui…
– Meu pai já me disse que você pode ficar aqui o tempo que quiser, mas não é obrigada.
– Mas, para onde eu iria?
– Para onde quisesse. – ele respondeu – E já te disse. Para a Califórnia, Nova York, Timbuktu,
Egito… ou qualquer outro lugar perdido nesse mundo. Você escolhe e nós vamos. Ou, se preferir,
pode ir sozinha. O que te parecer melhor.
Lágrimas escorreram de seus olhos e ela agarrou os papéis com as mãos trêmulas. Diante de toda
aquela comoção, Carmine a fez sentar na cama e a abraçou firmemente. Impressionada com tudo o
que ele dissera, ela nem sabia o que pensar.
– Não quero ir a lugar algum sem você, Carmine.
Eles olharam um para o outro e os olhos verdes do rapaz estavam repletos de emoção. O jovem
secou as lágrimas que escorriam pelo rosto dela, antes de deslizar os dedos sobre os lábios de
Haven. Ela soltou um suspiro tremido quando ele a beijou. Todos os documentos se espalharam pelo
chão. Ambos se deitaram e ela esfregou as mãos nos cabelos revoltos do namorado.
– Ti amo. – ele sussurrou contra a boca da jovem – La mia bella ragazza. Quero que você se case
comigo.
Ela se assustou.
– Me casar com você?
– Claro que não estou falando de nos casarmos hoje ou amanhã. Nem precisa ser esse ano ou no
próximo. Mas, algum dia, quando estiver pronta, prometa que irá passar o resto de sua vida ao meu
lado? – aquelas palavras provocaram um frio na barriga – Olha, eu sei que estou fazendo tudo isso da
maneira errada, mas…
– Tudo bem. – ela disse com a voz falhada – Sim.
Ele ficou parado.
– Sim?
– É claro que sim, Carmine!
O rosto dele se iluminou. O rapaz a beijou de modo ardente e ela, meio rindo, retribuiu o beijo. O
mundo exterior simplesmente desapareceu enquanto as mãos dele percorriam o corpo da jovem; as
pontas de seus dedos provocavam fagulhas em sua pele. Saber que estava livre e teria agora uma
vida inteira pela frente, e que apesar de tudo o que lhe acontecera no passado aquele rapaz ainda a
queria em seu futuro, tudo isso a incendiou por dentro.
Ainda não havia escurecido quando Carmine estacionou em frente ao prédio de tijolos encardidos
em Charlotte. O velho elevador tremia enquanto os levava ao sexto andar. Chegando lá, os dois
seguiram por um corredor até o apartamento 67.

Carmine se preparou para bater, mas a porta se abriu antes disso. Dia estava de pé à frente deles,
vestindo um par de jeans surrados e rasgados e uma regata azul; o cabelo dela era uma mistura de
camadas pretas e violetas.
– Feliz aniversário!
Dia os fez entrar e Haven congelou no momento em que entrou no primeiro cômodo. As paredes
eram cor de creme, mas era difícil ver a tinta por conta das centenas de fotografias penduradas em
todas elas. O resto do apartamento estava decorado em cores vibrantes, e os balões comemorativos
praticamente se mesclaram ao fundo. Havia presentes próximos aos enfeites e um pequeno bolo
redondo.
Gratidão e culpa lutavam para estabelecer o controle.
– Você não precisava…
– Ah, não. Não seja uma estraga prazeres. – Dia retrucou, puxando-a para a mesa. Haven sentou-se
enquanto Carmine se encostou à parede e ficou olhando para ela.
Dia colocou as velas sobre o bolo e as acendeu, afastando-se para cantar Parabéns a você. Haven
olhou para as luzes tremeluzentes, lembrando-se de fazer um desejo dessa vez.
– Por favor, meu Deus. – ela suplicou – Traga minha mãe de volta para mim.
Respirando fundo, a jovem apagou as velinhas e observou a fumaça que se formara. Dia as puxou
de cima do bolo antes de atirar-lhe um presente nas mãos, pegando-a de surpresa.
– Desculpe. – ela disse – É que não vejo a hora de você abrir isso.
Haven abriu o embrulho e viu uma pequena caixa de cobre com o tampo de vidro. Dentro dela
havia um trevo de quatro folhas, assim como corações vermelhos e continhas prateadas e brilhantes.
– É um relicário. – Dia explicou – Você deve guardar aí suas coisas favoritas.
Haven sorriu.
– Mas não acho que Carmine caberia aqui.
– Também não. – disse Carmine, rindo – Nem mesmo o meu pau caberia nessa caixinha.
Outros presentes foram abertos e, em seguida, os três comeram o bolo. Depois disso assistiram a
filmes e ouviram música a noite toda. Aquele encontro pareceu mais um dia comum do que uma
celebração. Haven se sentia ridícula por toda a ansiedade em relação ao evento, mas grata por ter a
possibilidade de relaxar ao lado de amigos.
Amigos. Ainda lhe parecia surreal a ideia de existirem pessoas em sua vida às quais ela podia
chamar de amigos.
– Mas e aí, vocês dois já pensaram no que irão fazer no ano que vem? – Dia perguntou – Imagino
que vocês não pretendam ficar em Durante muito mais tempo.
Haven olhou para Carmine, que apenas ergueu os ombros.
– Não importa pra mim. Se ela se casar comigo eu irei com ela até os quintos do inferno.
Dia estava tomando um refrigerante, mas, ao ouvir aquilo, acabou engasgando e a bebida se
espalhou por todo o lugar. Tossindo, ela levantou as mãos para o ar.
– Você disse se ela se casar com você?
– Disse.
– Você a pediu em casamento? – perguntou Dia, dando um pulo e agarrando a mão de Haven – Mas
cadê o anel?
Carmine resmungou.
– Eu não tinha um na hora.
– Você pelo menos se ajoelhou antes de pedir? – ela perguntou. Carmine apenas negou com a
cabeça, levando um soco da amiga no braço – Mas que tipo de pedido de casamento é esse?
– Não foi um pedido formal. – ele respondeu – Eu só perguntei se casaria comigo um dia.
– Isso é ainda pior! – Dia tentou socá-lo novamente, mas dessa vez ele se desviou.
– Droga, para de me bater. Não foi como se eu tivesse planejado. Apenas saiu.
Dia balançou a cabeça.
– Todo aquele planejamento mirabolante para o Dia dos Namorados e você estraga justamente o
pedido de casamento.
Ele abriu a boca para responder, mas Haven interrompeu antes que pudesse.
– Não preciso de nada daquilo.
Carmine deu um sorriso amarelo.
– Viu, Warhol? Eu não estraguei nada.
– Você ainda podia ter se ajoelhado.
Carmine deu risada.
– Bem, eu até que ajoelhei, mas foi ao lado das pernas dela, se é que me entende.
Revirando os olhos, Dia apenas se sentou.
– Tá, então vocês transaram. Tenho certeza de que foi muito romântico.
– Nós não transamos. – retrucou Carmine – Nós fizemos amor.

Durante as duas semanas seguintes a presença de Carmine foi escassa. Na verdade, eles se viam
menos do que da última vez. Ele costumava sair cedo para a escola, enquanto Haven ainda dormia, e
só retornava na hora do jantar, depois do treino. Depois que comiam, ambos subiam para o quarto.
Carmine fazia sua lição de casa e ia para a cama.
Eles sequer dormiam juntos na maioria das noites.
O embaraço de Haven aumentou com o passar dos dias e o comportamento de ambos mudou,
retornando aos velhos padrões. Ele voltou a mostrar um temperamento forte e explosivo. Haven, por
sua vez, deixava passar, apesar das palavras grosseiras.
Era noite de sexta-feira e o primeiro jogo da temporada para Carmine. As palmas das mãos da
jovem estavam suadas quando entrou no carro de Dominic, por volta das sete da noite. É por
Carmine, ela disse a si mesma. Não importava quantas pessoas haveria; isso não a impediria de estar
lá para lhe dar apoio.
Quando chegou à escola, pôde ouvir o barulho que vinha do estádio desde o estacionamento. A voz
do apresentador sobrepujava a de todos os presentes. Ela saiu do carro e ficou ali parada, tentando
juntar a coragem necessária para se mover. Foi então que alguém tocou em seu ombro. O coração
dela acelerou e ela se virou, já protegendo o rosto.
– Ei, calma, sou eu. – disse Nicholas.
Ela abaixou as mãos.
– E o que você quer?
– E eu preciso querer alguma coisa? Achei que seria uma boa acompanhar você até dentro do
estádio.
– Se está tentando magoar Carmine fazendo com que ele nos veja juntos, por favor vá embora.
– Honestamente, isso nem havia passado pela minha cabeça, mas agora que mencionou…
– Até logo, Nicholas. – sua frustração foi suficiente para que ela seguisse seu caminho. Porém,
antes que fosse muito longe, reparou num grupo de garotas bloqueando a entrada. Lisa estava bem no
centro.
– Achei que gostaria de uma escolta pra conseguir passar pelo pelotão de fuzilamento. – disse
Nicholas, que caminhava bem atrás dela – Mas se prefere ir sozinha…
– Não.
Soltando um suspiro, ele colocou a mão nas costas da jovem.
– Venha, então.
Ela continuou a caminhar, olhando para a multidão, então ouviu as risadas quando se aproximaram
do estádio.
– Está aproveitando os restos que Carmine sempre deixa por aí? – Lisa perguntou – Não tinha
percebido que estava assim tão… desesperado.
Nicholas balançou a cabeça.
– Você deveria ouvir a si mesma, Lisa. Você costumava ser a namorada dele. Se eu estivesse tão
desesperado estaria com você, não com ela.
Ele puxou Haven em direção à bilheteria e comprou seu ingresso, mas ela ficou ali parada, sem
saber o que fazer. Ela não havia considerado que precisaria de dinheiro para entrar.
– Eu. Ah… Eu nem me lembrei…
Ele franziu as sobrancelhas e pegou a carteira novamente, comprando um segundo ingresso e
entregando na mão dela. Ela tentou recusar, sem querer que ele lhe pagasse nada, mas não havia outro
jeito de assistir ao jogo.
Nicholas a acompanhou até as arquibancadas. Ele mais parecia um guarda-costas: mãos enfiadas
nos bolsos, ombros caídos, e boné enfiado na cabeça, escondendo parcialmente seus olhos. Haven
parou para observar a multidão e logo encontrou Dia sentada na parte central.
Porém, antes mesmo que pudesse agradecer Nicholas, ele já havia desaparecido. Haven então
subiu nas arquibancadas e sentou-se ao lado da amiga. Assim que viu Carmine de pé na lateral do
campo, acenou para ele, mas ele apenas olhou para ela, sem qualquer expressão. Ela não ficou
surpresa. Era apenas seu atual estado de humor, ela imaginou. Aquilo já não era uma novidade.
Foi então que o técnico gritou o nome dele, chamando sua atenção para que entrasse em campo.
Ele não voltou a olhar para ela depois disso.

O público era tão barulhento quanto Haven se lembrava no ano anterior, mas, dessa vez, ela se
sentia mais confortável no meio da multidão. Ela se sentiu entusiasmada quando o jogo chegou ao fim
e Carmine correu para o vestiário. As pessoas começaram a descer em direção ao campo.
Haven e Dia seguiram até uma elevação no gramado para esperar por ele. Ela parou perto da cerca
de arame e Dia aproveitou para tirar fotos.
A jovem ouviu alguém pigarrear atrás dela e viu Nicholas se encostar na cerca, ao lado dela.
– Já sei, “você de novo?” Esqueci de te contar uma piada.
– Tá, então conte a piada.
– Você sabe o que…
Antes mesmo que ele pudesse terminar a frase, a voz áspera de Carmine chamou pelo nome de
Nicholas. O jovem se aproximava rapidamente. Um frio passou pela espinha de Haven; seu estômago
embrulhou quando viu os punhos cerrados dele. Nicholas deu um passo para trás.
– Escute, cara, eu não estou procurando encrenca.
Carmine sorriu de um jeito amargo, empurrando-o.
– Se não quisesse encrenca não estaria aqui.
– Eu só estava conversando com ela, cara.
– E que direito você tem de fazer isso, hein? Pare de usar ela pra me irritar.
Nicholas olhou para ele e disse.
– Se alguém a está usando aqui é você! É doentio o que está fazendo! Você a engana fazendo com
que acredite que se importa!
Naquele momento o punho de Carmine acertou em cheio o maxilar de Nicholas. A cabeça dele se
deslocou para o lado com o golpe, e a boca começou a sangrar. Ele limpou o rosto com a parte de
trás da mão, enquanto Carmine berrava.
– Fique longe dela! Ela é minha, e não vou permitir que você tire ela de mim!
– Seu desgraçado possessivo! Se você amasse ela de verdade não diria esse tipo de coisa!
Aquilo fez com que Carmine perdesse de vez o controle. Ele deu outro soco e atirou Nicholas
contra o solo. Haven se agarrou à cerca e gritou por socorro. Um grupo de rapazes interveio ao
perceber a confusão, separando os dois. Dia forçou passagem entre a multidão e olhou para os dois
lados.
– Mas o que foi que aconteceu?
Carmine ignorou a pergunta e se voltou para Haven.
– Entre todos os caras do planeta, por que você escolheu justamente ele? Está tentando me
magoar? É isso que está tentando fazer?
Ela piscou algumas vezes, surpresa pela ira do rapaz.
– O quê?
– Você me ouviu. Eu te dou espaço, imaginando que é isso o que você quer. E eu te entendo,
Haven. Eu juro que te entendo. Você está ferida. Mas, apesar disso, você consegue conversar com
ele, sorrir pra ele. O problema sou eu? Não quer ficar mais comigo, então diga logo de uma vez.
– Eu quero. – ela disse, apesar de extremamente ressentida pelas palavras do rapaz – Eu te amo!
– Mas você tem um jeito muito estranho de demonstrar isso. – ele retrucou – Eu mudei minha vida
por sua causa. Eu seria capaz de matar por você. Merda! Eu seria capaz de morrer por você! Me diga
o que está errado. Me diga o que fazer.
– Não sei. – ela disse, balançando negativamente a cabeça – Não posso.
– Não pode? – ele perguntou sem acreditar – Você não entende, não é? Não faz ideia do que eu
abri mão para ficar com você. Não sabe o que eu perdi por sua causa.
Aquelas palavras afetaram-na profundamente. Ela arfou e sentiu sua vista escurecer ao esticar o
braço e dar-lhe um tapa no rosto. Ele levou a mão à face. O choque da reação da jovem acalmou sua
raiva.
Haven cobriu a boca antes de sair correndo. Ela precisava pensar; precisava se afastar dele para
poder compreender o que havia feito.
Ela havia batido nele. Nele. Ela sentia que ia vomitar.
Passando por entre as pessoas, ela correu para fora do estádio já procurando pela chave em seu
bolso. Haven entrou no carro e saiu com rapidez. Uma buzina a assustou e ela pisou nos freios, quase
batendo o carro. As mãos dela tremiam intensamente. As lágrimas obstruíam sua visão enquanto ela
pegava a estrada e acelerava o quanto podia pelas ruas cheias.
Ela dirigiu diretamente para a casa dos DeMarco, mas estava assustada demais para parar lá.
Estava apavorada com a ideia de perdê-lo. Passou pela entrada e seguiu em frente, continuando pela
estrada escura. De repente, ela se deu conta de onde aquela estrada iria levá-la. Sentiu-se ainda mais
envergonhada quando passou pela placa que dizia “Bem-Vindos ao Lago Aurora”.
A jovem estacionou numa pequena área e ficou sentada em silêncio por um momento, lutando para
respirar. Era como se ela tivesse sido sugada por um ciclone; o mundo todo girava ao seu redor
enquanto ela tremia sem parar. Saiu do carro, imaginando que iria vomitar. Forçando o ar para dentro
dos pulmões, saiu caminhando pela areia.
Logo chegou a uma doca e caminhou por ela, olhando para o lago, para o reflexo da lua sobre a
água negra. Aquela escuridão a deixou mais calma.
Ela ouviu passos se aproximando.
– Por favor, não pule. Detestaria ter de pular atrás de você. É provável que a água esteja gelada.
Ela sorriu diante do jeito despreocupado do rapaz.
– Não vou pular.
– Ótimo. – ele disse ao parar ao lado dela. O lábio dele tinha um corte e o rosto já tinha algumas
marcas roxas.
Haven franziu a testa ao olhar para ele.
– Sinto muito que ele tenha batido em você por falar comigo.
Ele fez um gesto com a mão.
– Ele jamais se desculparia, então, não faça isso por ele.
Ela ficou em silêncio, olhando para a água.
Nicholas deu um suspiro.
– Estou surpreso em ver você aqui.
– Eu não deveria ter vindo pra cá.
– Mas veio.
– É, eu vim. – a jovem ficou em silêncio por um momento, imaginando o que dizer – Foi o meu
aniversário.
– Jura? Bem, então feliz aniversário.
Ela esboçou um sorriso triste antes de dizer as palavras que há muito tempo abrigava dentro de si;
aquelas mesmas palavras que guardava para si sempre que Carmine estava por perto.
– Não há nada de feliz sobre o dia em que nasci.
Capítulo 44

Carmine olhava para a casa escura, com o celular na orelha. Ele imaginara que ela tivesse voltado
para casa, mas obviamente estava errado.
– Ela não está aqui.
Dia soltou um suspiro.
– Ela provavelmente está assustada.
– Acha que não sei disso? Ela está com medo de mim, Dia. De mim.
Ele não conseguia esquecer a imagem que se formara em sua mente, o medo estampado nos olhos
dela quando saiu correndo.
– Será que ela não percebe que eu sei exatamente como ela se sente? – ele perguntou – Eu também
perdi a minha mãe.
– É, o problema é que você se torna irracional quando o assunto é a morte de sua mãe.
Aquelas palavras o deixaram irritado.
– Vaffanculo.
– Você só está provando que estou certa. – Dia retrucou – Olha, eu te ligo de volta. Quero checar
uma coisa.
Ela desligou antes de esperar pela resposta dele.
Carmine ficou ali parado até o momento em que Dia retornou a ligação.
– Conseguiu alguma coisa?
– Ela está segura.
Ele sentiu uma sensação tão forte de alívio que quase caiu.
– Onde você a encontrou?
– Ela está no lago.
Ele se deteve, segurando-se no capô do carro ao sentir as pernas falharem. Com certeza, iria cair.
– O que quer dizer com “ela está no lago”? – Dia não respondeu, e seu silêncio era tudo de que ele
precisava para registrar a verdade – Nicholas.
– Acalme-se. – ela disse antes que ele tivesse a oportunidade de ficar mais nervoso. Ela o
conhecia bem, o que também queria dizer que suas palavras não iriam funcionar.
Carmine perdeu completamente o controle.
– Me acalmar? Estou cheio dessa merda. Se é assim que ela quer, eles podem ficar juntos.
– Carmine…
– É por isso que nunca quis me apaixonar.
– Você não quer dizer isso.
– Não me diga o que eu quero dizer ou não! – aquela traição alimentou sua ira, e ele atirou o
telefone no carro, xingando no momento em que sentiu um nó na garganta. Sua visão ficou desfocada
e ele cerrou o punho mais uma vez, mas dessa vez a vítima foi o vidro do passageiro, que se
estilhaçou com o choque. Tamanho era o desconsolo do rapaz que ele repetiu o golpe outras vezes,
até que seu punho atravessasse o vidro. Os nós dos dedos doíam por causa dos pedaços de vidro
cravados em sua pele.
Ele respirou fundo e entrou na casa, encontrando o pai no hall. O sorriso no rosto de Vincent
desapareceu ao reparar na expressão de Carmine e em sua mão ensanguentada.
– O que foi que aconteceu?
– O Nicholas aconteceu.
Vincent rosnou.
– Quantas vezes teremos de passar por isso, Carmine?
– Não importa. O carro levou uma surra maior que o Nicholas.
– Seu carro? O que foi que aconteceu esta noite? Onde está a garota?
– Eu já te disse. Nicholas atravessou meu caminho. – ele cuspiu as palavras – E o nome dela é
Haven. Haven. Use ele às vezes.
Vincent o encarou, desconcertado.
– E se você quer saber onde Haven está, procure pelo Nicholas. Eles estão em algum lugar no
lago. – uma ideia atravessou sua cabeça no instante que disse isso – Você vai buscar ela, não vai?
Vincent cutucou a ponta do nariz com os dedos.
– Ela tem uma vida própria agora, Carmine. Ela pode ter amigos, e você devia respeitar isso.
– Depois do que ele fez comigo você ainda espera que eu respeite ele? Que eu goste dessa
situação?
– Não disse em nenhum momento que você teria de gostar disso, nem que deveria respeitá-lo, mas
precisa respeitar o direito dela de fazer suas próprias escolhas, goste ou não delas.
– Eu respeito. – ele disse – Não sou tão idiota assim. Eu digo isso a ela a todo momento, que tome
suas próprias decisões.
– Bem, então você deveria encarar isso como se ela já o estivesse fazendo.
Resmungando, Carmine passou pelo pai, dirigindo-se às escadas.
– Por que ninguém está do meu lado nessa história?
Vincent deu risada e aquilo deixou Carmine possesso.
– Não se trata de escolher lados. Eu lhe disse que algum dia o mundo real chegaria até vocês.
– Ah, eu sei disso. – o rapaz respondeu – Eu soube disso no momento em que ela me deu um tapa
na cara.
Vincent sorriu.
– Ela deu um tapa em você?
– O que há de tão engraçado nisso?
– Estou positivamente surpreso. – ele respondeu – Não, não estou dizendo que ela deveria ter lhe
dado um tapa, mas estou chocado pelo fato de ela ter se defendido. No final das contas, acho que ela
sobreviverá lá fora.

– Já ouviu falar em Síndrome de Estocolmo?


Haven olhou para Nicholas com cautela. As pernas dele balançavam na beirada do cais. As calças
estavam enroladas e os pés na água. Ela se sentou de pernas cruzadas ao lado dele, tendo atirado os
sapatos sobre a plataforma.
– Não, o que é?
– É quando alguém se apaixona pela pessoa que a sequestra.
Ela soltou um suspiro ao perceber aonde ele queria chegar com aquela conversa.
– Eu não fui sequestrada.
– Então, quer dizer que o bom doutor DeMarco não recortou letras de revisas e as colou em um
pedaço de papel, exigindo um resgate?
– Não.
– Interessante. – ele disse – Bem, não precisa ser necessariamente um sequestro. Também serve no
caso de um refém que passa a ter sentimentos por quem a mantém prisioneira.
– É o mesmo que disse antes. Além disso, Carmine não está me mantendo presa como uma refém.
– Mas está presa naquela casa, não está?
– Eu não disse isso.
– Também não disse o contrário. – ele retrucou – E, às vezes, pessoas nessas situações passam por
uma espécie de lavagem cerebral.
– Eu não passei por nenhuma lavagem cerebral.
– Como sabe? Porque dizer “eu não passei por nenhuma lavagem cerebral” parece algo típico de
quem passou por uma.
Ela balançou a cabeça.
– Você simplesmente se nega a acreditar que Carmine é uma pessoa diferente agora, não é?
– Isso – ele disse –, mas pare de mudar de assunto. Estamos falando sobre você ter sido
sequestrada.
– Eu já te disse: eu não fui sequestrada.
– Tá, eu já entendi. Eu tinha certeza de que havia sido. Podia apostar que seus pais a estivessem
procurando em todos os lugares.
Ela sentiu um aperto no peito ao ouvir aquelas palavras.
– Meus pais estão mortos.
Ela pôde sentir o olhar intenso do rapaz sobre ela, mas não ousou se virar. Depois de algum tempo
ele se virou e voltou a chutar a água.
– Minha mãe também morreu, quando eu ainda era novo. Ainda tenho meu pai, mas não nos damos
bem. Ele sempre espera o pior de mim, então eu comecei a achar que não valia a pena me esforçar
para acertar se ele nunca veria isso. Mas agora tenho dezoito anos, então já posso sair de casa.
Começar minha vida em algum outro lugar, onde as pessoas não ouçam o nome Nicholas Barlow e
pensem automaticamente num “imbecil degenerado”.
– Você acha que as pessoas o veem assim?
– Eu sei que elas me veem assim. – ele retrucou – E as coisas só pioraram agora que Carmine…
– Agora que Carmine o quê? – ela perguntou quando ele não terminou a frase – Agora que ele
mudou?
Nicholas não respondeu e isso era o suficiente para ela. Um sorriso surgiu em seus lábios. Talvez
houvesse a esperança de uma amizade, afinal.
Tudo estava quieto; o único som era da água batendo contra o cais e os grilos a distância. Nicholas
limpou a garganta depois de alguns minutos.
– Já te contei a da pizza?
– Pizza?
– Quando compro pizza, dou uma mordida; o Leonardo Da Vinci. – ele disse, olhando para ela.
– E o que tem demais em esse tal Leonardo dar vinte mordidas?
Balançando a cabeça, ele olhou para longe.
– Mesmo que seja a última coisa que eu faça na vida, eu juro que ainda farei você rir de alguma
das minhas piadas.

Carmine parou de pé na biblioteca, bem ao lado da janela. Olhou para o jardim e começou a
imaginar quais seriam os pensamentos de Haven quando ela se sentava ali todas as noites. Quem sabe
a mente da jovem estivesse tão vazia quanto a própria escuridão lá fora. Naquele momento ele
começou a se lembrar dos meses que se seguiram à morte de sua mãe, quando seu coração estava tão
partido que tinha de se esforçar muito para conversar. Era como se a vida lhe tivesse sido sugada.
Seu corpo tornou-se um poço sem fundo de tristeza e saudade.
De repente ele viu o livro que repousava sobre a pequena mesa e o pegou, admirando a capa vazia
antes de abri-lo. Ele se deparou com páginas escritas à mão e, no mesmo momento, ficou confuso ao
perceber que se tratava de um diário. Seu estômago se contraiu quando ele voltou ao início e viu o
nome Maura DeMarco escrito num canto na parte interna da capa. Voltou a fechar o livro e quase
perdeu a respiração. Depois de tudo o que fizera para proteger Haven da verdade, ela conseguira
encontrá-la.
Naquele instante ele saiu correndo da biblioteca, já procurando as chaves do carro no bolso. Ao
passar pelo segundo andar, seu pai saiu do escritório, atraído pela correria do jovem.
– Carmine, espere! – alertou Vincent indo em direção ao filho, mas Carmine não parou. Ele saiu
pela porta da frente e destrancou o automóvel, enquanto via seu pai parado na varanda – Não vá até
lá!
Carmine ainda hesitou antes de ligar o carro. Haven estava fora há mais de uma hora e de modo
algum ele poderia deixar que se passasse sequer um minuto a mais.
Acelerando o carro em meio à escuridão, ele prendeu a respiração ao passar pela placa do Lago
Aurora, sabendo que havia chegado a um ponto sem volta. Então desviou da estrada principal e pisou
nos freios ao ver o familiar Audi de seu irmão. Estacionou ao lado do carro, saiu e seguiu em direção
à água. O jovem ficou parado por alguns segundos à procura de algum sinal de Haven, até que os
localizou sentados no cais.
Os olhos de Nicholas se cruzaram com os de Carmine no momento em que ele se aproximou.
Haven também percebeu e se virou para o rapaz, dando um pulo e um salto para trás e se
aproximando perigosamente da beirada. O pé dela chegou a escorregar, mas Nicholas a segurou pelo
braço antes que ela caísse.
– Ei, o que foi que eu te disse, hein? Não vou pular nessa água gelada pra te salvar.
Carmine ergueu as mãos.
– Não estou aqui pra brigar.
Nicholas o olhou desconfiado.
– O que faz aqui? Sabe que não tem permissão.
– Eu sei. – ele disse – Você pode me denunciar se quiser, mas preciso falar com ela.
– Se ela estivesse a fim de falar com você o teria procurado. Não é capaz de dar a Haven um
pouco de espaço?
Frustrado, Carmine passou as mãos no rosto.
– É muito importante. Eu irei embora, sairei daqui o mais rápido possível, mas preciso conversar
com ela primeiro. – ele disse, concentrando-se em Haven – Por favor, beija-flor?
Ela concordou com a cabeça.
– Tudo bem.
– Você não tem que ir. – Nicholas disse – Você não é obrigada a fazer nada que não queira.
Carmine o encarou, mas se manteve de boca fechada no momento em que Haven respondeu.
– Eu sei disso.
Nicholas olhou para os dois, tocou gentilmente no braço de Haven e disse.
– Tome cuidado. Sabe como me encontrar se precisar.
Nervosa depois de se despedir de Nicholas, os olhos de Haven se fixaram nos de Carmine. Foi
então que o rapaz caminhou em direção a ela.
– Eu já sei o que você encontrou.
Uma expressão de puro horror tomou conta do rosto da jovem.
– Meu Deus.
Ela parecia disposta a correr dele novamente, então ele se apressou e a pegou pelo braço.
– Eu já sabia que era você. Eu soube disso há algum tempo.
– E não me disse nada?
– Estava tentando te proteger. Não vi razão para te contar.
– Sua mãe morreu por minha causa e você não viu razão para me dizer isso? Eu destruí sua vida,
Carmine!
– Por Deus, Haven, você era somente uma criança. Não fez nada de errado.
Lágrimas começaram a escorrer no rosto dela.
– Eu afastei sua mãe de você.
– Não, você não fez isso. Quem fez foi a pessoa que apertou o gatilho.
– Você está enganado. – ela disse, tentando enxugar as lágrimas – Como pode sequer olhar pra
mim? Como pode me amar depois de tudo isso?
– Como posso não te amar? Eu morreria por você; como poderia culpá-la pelo fato de minha
própria mãe sentir o mesmo?
– Isso não deveria ter acontecido. – ela disse – Eu não valho tanto assim.
– Não diga isso. Não pode se fechar e se afastar de tudo.
– Mas você disse…
Carmine a interrompeu antes que ela pudesse repetir as coisas que ele lhe havia dito antes.
– Eu estava com raiva. Todos nós fazermos merda e dizemos besteiras quando estamos irritados.
Já perdi coisas demais, e não quero te perder também. – ela segurou o choro no momento em que ele
a puxou para perto dele – Caramba, tesoro. Não faço ideia de como vamos superar tudo isso, mas
precisamos encontrar um jeito. Sem você eu não sou nada.
Ele a segurou carinhosamente, sentindo-se reconfortado por tê-la novamente em seus braços. Ela
se afastou dele quando conseguiu parar de chorar e o encarou.
– Eu sinto muito se o magoei ao conversar com o Nicholas. É só que… Independentemente dos
motivos, tudo o que ele fez foi tentar me fazer sorrir, dar risada.
Enquanto Carmine questionava os motivos de Nicholas, ele percebeu naquele momento que todos
estavam corretos. Ele precisava respeitar as decisões de Haven; precisava deixar que cometesse
seus próprios erros.
– Você sabe que ele me odeia, não é?
– Ele está bravo com você, mas não te odeia. Acho que ele sente sua falta.
Carmine deu risada.
– Ele fala mal de mim o tempo todo.
– É, ele fala, mas como você mesmo disse, dizemos coisas que não queremos quando estamos
machucados. Vocês dois costumavam ser amigos próximos e agora você tem a mim, mas quem o
Nicholas tem como amigo? Eu compreendo o porquê de ele não aceitar que você tenha mudado. É
que ele não mudou. Ele não quer acreditar que você já não seja o mesmo, porque isso significaria
que ele estaria completamente sozinho. Ele perdeu o único amigo que tinha.

Pilhas de papéis se acumulavam ao redor de Vincent. Há horas ele estava sentado à sua mesa
tentando dar conta de tudo aquilo, mas não conseguia se concentrar. Estava exausto e tudo parecia
estar prestes a entrar em colapso.
De repente, quando Vincent lia pela quinta vez o mesmo parágrafo, a porta do escritório se abriu e
o filho entrou como um furacão.
– Você está transformando minha noite em um inferno, Carmine. Tem sorte de não ter sido preso.
– Tenho algo a dizer que pode tornar as coisas melhores… Ou, apenas, tornar sua vida um pouco
pior.
O rapaz colocou um livro sobre a pilha de papéis, fazendo com que Vincent soltasse a caneta e
suspirasse.
– O que é isso?
– Não reconhece o diário da minha mãe? – perguntou – Haven o encontrou na biblioteca.
Ele se recostou na cadeira, olhando para o livro como se estivesse hipnotizado. – Suspeitava que
sua mãe mantivesse um diário, mas nunca me passou pela cabeça que ele pudesse estar junto dos
outros livros, quando Celia empacotou tudo para mim em Chicago. Devo tê-lo enfiado na estante sem
perceber o que era.
– Bem, era lá que ele estava guardado. Fique com ele.
Depois que Carmine saiu, Vincent passou a mão sobre a capa envelhecida antes de abri-lo; sua
curiosidade o impelia enquanto folheava o diário. A letra familiar o fez sentir como se alguém
tivesse enfiado a mão em seu peito e apertado seu coração com toda a força, esmagando-o.
Ao perceber a data de 12 de outubro de 1997, ele se concentrou em uma passagem que fora escrita
justamente no dia em que ela morrera.

A porta do closet no quarto de Carmine estava emperrada. Tive de forçá-la para conseguir abri-la, e a maçaneta se
quebrou. Outro item para acrescentar à lista. O piso do último degrau está solto; as janelas da cozinha não abrem na maioria
das vezes; o balanço de pneu despencou da árvore; e a porta da frente precisa desesperadamente de uma nova pintura.
Pequenas coisas, uma atrás da outra. Todas parecem tão fáceis de consertar, mas não é assim que me sinto. Na verdade, é
como se tudo ao meu redor estivesse se desfazendo; o mundo parece desmoronar enquanto estou aqui, sem fazer nada. Acho
que não há mais tempo; não digo para ela, mas para mim. Deparei com uma muralha e agora é tarde demais para recuar. Não
que eu pretendesse recuar, mesmo que pudesse. Vincent não compreende ainda, mas um dia verá o mesmo que vejo. Um dia
ele compreenderá por que eu não podia abrir mão dela. Talvez quando isso acontecer, ele volte a pendurar o balanço de pneu.
Quem sabe as janelas sejam substituídas, o piso fixado e a porta pintada. Dessa vez eu optaria por azul no lugar do vermelho.
Estou cansada de tanto vermelho. Talvez aí consigamos alcançar a paz. Quem sabe nessa ocasião ela já esteja livre. Acho que
quando isso acontecer, o mundo deixará de desmoronar.

Vincent fechou o diário. O mundo dele ainda estava desmoronando.


Haven estava de pé junto à janela da cozinha, olhando para o Mazda, cujo vidro do passageiro
estava destruído. Mesmo daquela distância ela conseguia ver vestígios de sangue do rapaz.
– Acordei sozinho. – disse uma voz alegre atrás da jovem, interrompendo imediatamente seus
pensamentos. Ela então se virou e viu Carmine parado à porta.
– Você parecia tão tranquilo que não quis incomodá-lo. – ela disse.
Então ela olhou para a mão do rapaz e viu os ferimentos e as marcas roxas em seus dedos.
– Está tudo bem. – ele disse, percebendo para onde ela olhava. Ele flexionou os dedos para provar
que dizia a verdade, mas seu maxilar se manteve rígido enquanto tentava evitar uma careta. Era óbvio
que a mão dele não estava nada bem, mas ela não discutiu.
Ambos se olharam em silêncio. Havia tanto a dizer, mas Haven não tinha ideia de como começar.
Tudo aquilo parecia tão avassalador. Os olhos da jovem se encheram de lágrimas e ambos falaram ao
mesmo tempo.
– Sinto muito.
O tom dos dois era de angústia.
Ele franziu a testa.
– E por que você sente muito?
– Você está machucado. – ela respondeu.
– Eu já te disse que está tudo bem com a minha mão.
– Não estou falando só de sua mão. – ela retrucou – Você. Eu machuquei você, mas não tive a
intenção de isso.
– É, você me machucou. – ele disse – Mas eu fiz exatamente o mesmo que você. Seria hipócrita de
minha parte culpá-la. Eu podia ter terminado com tudo isso antes mesmo que tivesse começado, mas
não o fiz. E é por isso que eu sinto muito.
Ela se virou de costas para ele. Aquele pedido de desculpas a fazia sentir-se ainda pior. Ele a
estava apoiando quando, na verdade, era ele próprio quem precisava ser confortado. Ele merecia que
aquele fardo fosse retirado se seus ombros, porém, de maneira um pouco egoísta, ela preferiu se
manter em silêncio, sem encontrar as palavras certas para aliviar sua dor.
Com os pés descalços sobre o piso duro e frio, ele caminhou até ela, mas parou diante da janela.
– Jesus, olha o meu carro.
– Sinto muito. – ela repetiu.
– Ei, você tem que parar de se desculpar por tudo. – ele disse, pegando-a de surpresa ao tocar em
seu quadril – Tudo bem, aconteceu, foi uma merda, mas já acabou. Ficar discutindo quem feriu quem
não vai resolver nada. Não se pode guardar ressentimento das coisas e esperar que tudo melhore,
porque isso não acontece.
– Foi isso o que você fez? Guardar ressentimentos?
– Tenho feito isso há muitos anos, sempre tentando entender por que minha vida era uma merda.
Estou cansado de repetir sempre os mesmos erros. É hora de esquecer tudo o que aconteceu e
perdoar.
Ela ficou surpresa com aquela repentina explosão de maturidade, considerando que há menos de
doze horas ele havia perdido o controle e se mostrado tão volátil. Era como se ele estivesse exausto
e derrotado em sua batalha, a ponto de não querer mais brigar.
– E isso significa perdoar o Nicholas também?
Ele se mostrou receoso.
– O que ele tem a ver com isso?
– Você disse que nada melhoraria enquanto guardasse ressentimentos, então eu imaginei que…
– Imaginou errado. Isso é diferente.
– De que maneira? – ela perguntou – Você mesmo disse que ficar remoendo o que passou não
ajudaria em nada. Aconteceu, mas já passou, então é hora de seguir em frente. Certo?
Ele olhou para ela.
– Mas ele é um idiota, Haven. Ele destrói tudo o que toca.
– É o mesmo que ele diz a seu respeito. Ele está errado, e eu disse isso a ele, mas, talvez, você
também esteja.
– Não estou.
– Ok. Só estou dizendo que talvez vocês dois não sejam assim tão diferentes; e que se você
conseguisse deixar isso de lado, vocês dois poderiam…
– Eu sei o que você está dizendo, e há muitos “quem sabe” nessa história. Mas isso não irá
acontecer, portanto, não vale a pena falar sobre isso. Aliás, não quero nunca mais tocar nesse
assunto.
Ele parou de falar. O tom de sua voz lhe dissera que o assunto estava encerrado. A tensão voltou a
crescer no ambiente, e ela combateu o desejo de se desculpar por tê-lo irritado.
– Il tempo guarisce tutti i mali. – disse Carmine, esfregando o peito no local onde aquelas
palavras estavam tatuadas e traduzindo-as em seguida – O tempo cura todos os males. Quando
mandei escrever isso eu não acreditava totalmente nessas palavras, mas agora acredito. É possível
superar tudo no tempo certo. Não sei quanto irá demorar até que eu consiga deixar isso pra trás, mas
tenho todo o tempo do mundo pra você.
Carmine colocou os braços ao redor dela e a jovem fechou os olhos ao sentir seu abraço.
– Se não acreditava nas palavras, por que as tatuou?
– Era algo que minha mãe costumava dizer. – ele respondeu, deixando escapar um riso de
curiosidade – O que me faz lembrar de você e sua mania de assistir programas e aprender coisas
inúteis. Não sei como demorei tanto a perceber as similaridades. Deveria ter sido óbvio desde o
princípio que minha mãe havia crescido como você.
Haven se afastou dele.
– O que foi que disse?
Ele olhou para ela.
– Que parte?
– Sua mãe era como eu? Você quer dizer… uma escrava?
Ele se contraiu ao ouvir aquela palavra, mas confirmou com a cabeça.
– Pensei que você soubesse. Você viu o diário dela.
Ela fez que não com a cabeça.
– Só li um pedaço de papel que caiu de dentro dele, Carmine.
Os olhos dele se arregalaram.
– Pensei que tivesse lido a coisa toda. Caramba, eu teria lido, mas entreguei ao meu pai para não
me sentir tentado a ler.
– Então, o doutor DeMarco também sabe?
– É claro que sim. – ele disse – Ele sempre soube. Não é uma coincidência que você tenha vindo
parar aqui.
De repente toda a névoa pareceu desaparecer de seus olhos e tudo se tornava mais claro. A razão
para ele tê-la trazido para aquela casa; para que ele a libertasse. Mestres supostamente tiravam a
vida das pessoas, porém, ele havia feito tudo em seu poder para lhe dar uma vida nova… e fizera
tudo aquilo em nome da mulher que amava.
Aquela descoberta fez com que ela se sentisse como se o chão estivesse se movendo sob seus pés.

Haven estava em seu quarto naquela tarde quando Carmine entrou, trazendo consigo um grande
envelope branco.
– Correspondência pra você, tesoro.
Ela olhou para ele com cautela enquanto ele se sentava na beirada da cama e lhe entregava o
envelope. O remetente registrado no verso era: Faculdade Comunitária da Carolina do Norte.
– Isso aqui é o…?
– O resultado das provas.
Ela olhou para o envelope e deslizou o dedo sobre a borda lacrada.
– Ei, você vai abrir ou não?
O entusiasmo na voz de Carmine a deixou preocupada. Aquela fora a primeira vez em que a jovem
se expusera para o mundo, e imaginar a possibilidade de ter fracassado a assustava.
– Será que poderia abrir pra mim?
Ele se negou com a cabeça.
– É você quem deve abrir.
Com cuidado, ela rasgou a borda do envelope e retirou de dentro dele um papel. As notas nada
significavam para ela, então ela foi direto ao certificado preso ao relatório, onde estavam escritas as
seguintes palavras: Diploma de Equivalência ao Curso Fundamental II. No topo havia um selo
dourado.
– Eu passei? – ela perguntou, tentando controlar a excitação que ameaçava explodir por todos os
seus poros, mas a emoção foi mais forte que ela e a jovem se atirou contra Carmine, derrubando-o
sobre a cama antes mesmo que ele pudesse dizer uma palavra – Eu passei!
– Passou – ele disse –, e não posso dizer que esteja surpreso. Sabia que conseguiria.
Ele a beijou de um jeito lento e suave. Pura paixão emanava dos lábios dele. Embora fosse um
beijo inocente, significava muito mais. Era um beijo de redenção, de perdão e orgulho. Era um beijo
que atestava que, independentemente do que ocorrera no passado, ainda havia esperança para o
futuro.
Esperança. Aquele era um sentimento do qual ela já não tinha mais medo e que agora só lhe trazia
alegria.
– Obrigada por acreditar em mim. – ela sussurrou contra os lábios do rapaz.
– Não tem que me agradecer. – ele respondeu, afastando-se com um sorriso – E não se preocupe,
porque tudo vai dar certo. Estamos um passo mais perto. Você agora já pode ir pra faculdade.
– E você? Quando fará o seu teste?
– Em breve. – ele respondeu – Na verdade, eu me inscrevi para os exames antes de nós irmos para
a Califórnia.
– Está entusiasmado?
Ele riu.
– Eu não diria que a ideia de fazer as provas finais me anime muito, tesoro. Apenas acho que estou
pronto para terminar logo com tudo isso. Preciso ainda preencher alguns formulários para as
faculdades, portanto precisamos decidir para onde queremos ir, principalmente se eu tiver planos de
jogar futebol. Califórnia? Nova York? Camelot? Cidade das Esmeraldas? Você escolhe.
Ela não fazia ideia de onde ficava metade dos lugares mencionados.
– Eu não sei.
– Bem, então comece a pensar sobre isso, ok? Mas não hoje. Porque hoje nós não vamos pensar,
apenas celebrar. Pense em onde estava há um ano e onde está agora. Você é uma mulher livre, tem um
diploma, estamos apaixonados e vamos superar tudo isso, mesmo que isso nos mate. – ele disse,
fazendo uma pausa e franzindo o cenho enquanto ela ria – É, eu sei, o que eu disse não fez o menor
sentido, mas acho que você entendeu. Bem, não tivemos nenhum motivo para celebrar nos últimos
tempos, então, levante-se, troque de roupa. Vamos esquecer tudo isso por enquanto e viver o
momento. Não temos feito isso ultimamente.
Ela olhou para as calças pretas e a camiseta do time de futebol da escola de Durante e perguntou.
– Mas o que há de errado com as minhas roupas?
– De tudo o que eu disse, a única coisa que você entendeu foi que trocasse de roupas? – ele
perguntou, achando graça e colocando-a de pé – Eu disse pra você mudar suas roupas, não mudar a si
mesma. Não quero que você mude jamais, mas confesso que estou um pouco cansado de olhar pra
essa camiseta.
– Eu gosto dessa camiseta. – ela disse, em tom defensivo enquanto ele soltava uma gargalhada e
saía do quarto.
Capítulo 45

Haven se mantinha ocupada nos dias em que Carmine ficava na escola, mas era difícil para ela
pensar em tudo aquilo quando estava sozinha. Um sentimento de culpa ainda continuava a atormentá-
la.
No terceiro sábado do mês de setembro, ela acordou no momento em que Carmine saía do banho.
Ela permaneceu imóvel na cama enquanto o rapaz se esforçava para não incomodá-la. Ele ficou
parado diante do closet e, mesmo no quarto ainda escuro, ela conseguia ver seus músculos bem
definidos e as linhas de suas tatuagens. A pele dele brilhava sob a luz suave que vinha da porta do
banheiro, deixando-a fascinada. Mesmo a cicatriz que trazia no corpo parecia perfeita enquanto ele a
tocava com os dedos sem nem perceber.
Se havia uma imagem de Carmine DeMarco que ela jamais desejaria esquecer era aquela: de um
homem exposto e vulnerável, se movendo cuidadosamente no escuro em seu próprio quarto. Era algo
em que poucas pessoas iriam reparar, mas uma visão que ela não podia se arriscar a perder. A
maioria das pessoas conhecia o garoto egoísta, mimado e irresponsável, mas ela tinha a sorte de
conhecer quem ele realmente era. No fundo, apesar de um exterior cheio de cicatrizes, ele não
passava de uma alma gentil.
O contentamento silêncioso que ele exalou quando pensou que ninguém estivesse olhando, tirou o
fôlego da jovem. Ela o amava com cada célula de seu corpo, e somente o fato de, depois de tudo o
que acontecera, ele ainda conseguira se expor diante de seus olhos como realmente era, já lhe dizia o
suficiente sobre ele.
Ele soltou um suspiro e vestiu suas roupas antes de pegar um par de Nike no armário. Deu um
chute no pé da cama enquanto caminhava, mas, apesar da dor, guardou o palavrão para si mesmo.
Haven tentou conter o riso, mas não conseguiu. Ele logo olhou na direção dela quando a ouviu.
– Há quanto tempo você está acordada? – perguntou, sentando-se para calçar os tênis.
– Só alguns minutos.
– Ah, então você estava aí acordada assistindo enquanto eu me vestia? – ele perguntou, cutucando-
a suavemente com o cotovelo. Ela ficou vermelha, mas torceu para que ele não conseguisse perceber
no escuro. Todavia, nada escapava àqueles olhos – É, você estava, danadinha.
– Não pude evitar. Você é bonito demais para eu não olhar.
– Tá, e você ainda está meio sonolenta, por isso não sabe o que está dizendo. – ele retrucou,
beijando-a ao se levantar – Tenho que ir ou chegarei atrasado nessa maldita prova.
– Boa sorte.
– Obrigado, tesoro. Nos vemos em algumas horas.
Ela escutou seus passos descendo as escadas e, naquele momento, uma sensação estranha a deixou
desconfortável. Era como se toda a alegria tivesse sido sugada daquele quarto.
Haven já havia descido para a cozinha e se servido um copo de suco quando ouviu uma porta se
fechar em algum lugar do primeiro andar. Ela ficou um pouco tensa ao ouvir passos em sua direção.
Relaxe, ela disse a si mesma. É só o doutor DeMarco.
– Bom dia. – ele disse ao entrar na cozinha.
Aquelas eram as únicas palavras que ele havia dito a ela em vários dias.
– Bom dia, senhor.
Ele estava despenteado e seus olhos fundos ostentavam círculos escuros ao redor. Aquele homem
estava cansado e envelhecido pela vida. Ao encará-lo com mais cuidado, Haven imaginou quanto
daquele estado seria por causa dela.
– Estou viajando para Chicago. Precisa de algo antes que eu vá?
O Mazda estava na funilaria, então Carmine estava usando o Audi para se locomover.
– Não senhor, está tudo bem, obrigada.
DeMarco partiu alguns minutos depois. Haven passou a manhã tirando o pó das mesmas coisas que
havia limpado todas as manhãs anteriores. Era um pouco depois das onze da manhã, e ela estava
organizando a despensa, quando ouviu o som de um carro. Caminhando até a janela, Haven não
reconheceu o veículo azul.
A porta do motorista se abriu e Jen, a enfermeira do hospital, saiu de dentro do carro. Haven
caminhou até o hall, mas o som da campainha por alguma razão a paralisou. Ela sentiu um frio na
espinha e aquilo se irradiou pelo resto do corpo. Achou que iria vomitar. Algo não parecia estar
certo, e ela podia sentir aquilo.
Ela pegou o telefone na sala de estar e hesitou antes de pressionar a tecla que a colocaria em
contato com o doutor DeMarco. Em seguida, se encostou à parede e esperou que ele atendesse.
– Algo errado por aí? – perguntou DeMarco. Ela jamais ligara para ele até então. Nunca pensou
que precisaria fazê-lo – O que está havendo?
A campainha tocou novamente, fazendo com que ela se contraísse.
– Não tenho certeza, senhor.
– Esse barulho foi a campainha? Tem alguém aí?
– É a enfermeira que trabalha com o senhor. Eu ia atender, mas…
– Não! – ele respondeu com firmeza. Seu tom a deixou assustada e em silêncio. A campainha
voltou a tocar mais algumas vezes antes que Jen resolvesse bater à porta – Não atenda, criança. Ligue
para Carmine. Não quero você sozinha neste momento.
Algo estava definitivamente errado se o próprio doutor DeMarco tinha aquela mesma impressão.
– Ligue o alarme. O código é 6-2-3-7-3.
Haven já sabia, mas obviamente não iria dizer.
Depois de desligar, a jovem colocou o telefone na mesa e caminhou na ponta dos pés até a porta,
acionando imediatamente o alarme. Depois de algum tempo, Jen parou de bater e começou a falar
com alguém. Haven colocou o ouvido na porta e escutou a voz abafada da enfermeira.
– O que quer que eu faça? Ela não atende… Sim, eu tenho certeza de que ela está em casa…
DeMarco saiu essa manhã como já era previsto.
Houve uma pausa e o coração de Haven disparou. Eles estavam atrás dela.
– Não, ela não está com ele. Carmine está fazendo a prova, lembra? – Jen continuou e a aflição em
sua voz era alarmante – Eu sei, mas, por favor, não fique bravo! Eu prometo que farei o trabalho. Sei
o que significa para você.
Os joelhos de Haven quase se dobraram quando Jen voltou a bater. – Olá? Você está aí?
Haven correu para o outro lado, escondendo-se num canto enquanto ligava para Carmine, mas a
ligação caiu na caixa postal e Haven soltou um suspiro trêmulo.
– Vou invadir essa casa se não abrir a porta! – Jen gritou. Ela agora agia de modo diferente, e já
não demonstrava aflição, mas raiva – Não pense que eu vou deixá-la arruinar isso pra mim!
Jen começou a bater nas janelas e Haven olhou de volta para o telefone. Sem hesitar ela discou o
único número que lhe veio à cabeça: 5555-0121.
Ela olhara para aquele papel tantas vezes que o havia decorado. O telefone começou a chamar e
foram quatro longos toques antes que alguém o atendesse.
– Alô?
– Nicholas. – ela falou o mais baixo que conseguiu – É a Haven.
– Haven? Você está bem?
– Sim. Bem, pelo menos acho que estou, mas preciso de ajuda e não sei mais a quem pedir. O
doutor DeMarco me mandou ligar para Carmine, mas o telefone dele está desligado. Acho que está
quebrado.
– Então, você está me chamando no lugar dele?
– Sim. – ela disse. – Para que você encontre ele.
– Espera aí, você quer que eu vá atrás do seu namorado?
Ela soltou um suspiro.
– Sim, eu preciso que ele venha pra casa imediatamente.
– E você acha que essa é uma boa ideia? Sem ofensa, mas não estou a fim de outra briga.
– Eu sei, mas é importante. Por favor? Ele está fazendo uma prova na escola.
– Jesus, então você não quer apenas que eu diga a Carmine o que fazer, mas que invada a escola e
o retire à força no meio da prova? Ele vai me matar. É, com certeza, hoje eu morro.
– Ele entenderá. – ela disse, enquanto Jen forçava a maçaneta da porta da frente.

Olhando para a prova à sua frente, Carmine lia pela vigésima vez a última questão de matemática,
mas não se achava mais perto da resposta que há cinco minutos atrás.
Ele resmungou ao se esticar na cadeira de plástico, mudando de posição para se sentir mais
confortável. A jovem ao lado olhou para ele incomodada, e ele inclinou a sobrancelha para ela,
desafiando-a a reclamar de novo. Ela bufou de um jeito dramático antes de se concentrar novamente
no próprio teste.
Em seguida ele olhou para ela, sem conseguir lembrar seu nome. Michelle? Mandy? Monique?
Não conseguia se recordar.
Sentindo o olhar do jovem, ela se virou novamente para ele e perguntou.
– O que você quer?
– Nada. – ele respondeu, voltando-se para a prova. Ele não estava nem aí pra ela. Aliás, agora ele
praticamente não reparava em mais ninguém. Todas aquelas jovens pareciam iguais e nenhuma delas
seria capaz de fazer nada por ele. Haven era tudo o que ele desejava; era a razão para ele estar
sentado naquela sala fazendo aquela prova ridícula. Só assim ele poderia levá-la daquele lugar e
começar uma nova vida.
O monitor anunciou que restavam apenas cinco minutos e Carmine suspirou alto ao ler mais uma
vez a última pergunta. Ele tentou fazer analogias com outras fórmulas, mas não tinha a menor ideia do
que a metade das palavras do enunciado significava. Desistiu e abaixou o lápis, sem se preocupar em
responder. A única analogia que importava naquele momento era “a maconha está para o fumo como
a boceta está para o sexo.” Afinal, aquelas eram as únicas coisas que acalmariam seus nervos
naquele dia.
Depois que as provas foram recolhidas, Carmine seguiu a caminho da saída, girando o pescoço
para aliviar a tensão. Ele chegou ao estacionamento juntamente de seus colegas e foi atraído pelo
som de pneus cantando. Ele olhou para a velha caminhonete e franziu o cenho, confuso diante da
situação.
– Não é o Nicholas?
Carmine se contraiu ao ouvir Lisa atrás dele. Nicholas parou o carro e saiu rapidamente, olhando
para todos os lados como se estivesse com pressa. Ele então olhou na direção de Carmine,
murmurando algumas palavras enquanto se aproximava.
– Carmine, eu preciso falar com você sobre a Haven. Ela…
O rapaz sequer teve tempo de terminar a frase quando Carmine lhe deu um soco. A cabeça de
Nicholas quase entortou para o lado por causa do murro. Dando alguns passos para trás, Nicholas o
encarou.
– Mas o que há de errado com você? Eu disse pra ela que isso aconteceria se eu viesse atrás de
você!
– Como é que é? – perguntou Carmine, segurando-o pela camisa – E quando foi que você falou
com ela?
Nicholas conseguiu soltar as mãos e empurrar Carmine.
– Há vinte minutos quando ela me ligou.
Aquelas palavras levaram Carmine à loucura.
– O que quer dizer com “quando ela me ligou”?
– Eu quero dizer: trimmmm, trimmmm. Ela me ligou. – ele disse – O que mais “quando ela me
ligou” poderia significar?
Carmine partiu para cima dele, mas dessa vez Nicholas estava preparado. Ele desviou e devolveu
o golpe, acertando Carmine nas costelas, que parou diante da atitude inesperada. E antes que
Carmine conseguisse se recuperar, Nicholas também o acertou no nariz. A visão de Carmine ficou
embaçada por causa da dor em seu rosto. Sangue começou a escorrer no mesmo instante. Alguém
segurou seu braço antes que ele pudesse devolver o golpe e então ele reparou na multidão que se
formara.
Carmine limpou o rosto com a mão, espalhando sangue por todo o corpo. Ele pegou a barra de sua
camisa e pressionou o nariz, tentando parar o sangramento.
– Sabe, achei que você demonstraria alguma gratidão. Afinal, eu não tinha que ter vindo aqui.
– E por que veio? Está perdendo seu tempo.
– Talvez eu esteja mesmo, mas eu vim porque Haven me pediu. Ela não tinha mais ninguém para
quem ligar e precisava que você voltasse pra casa. Eu tento fazer um favor pra ela e, em vez de me
ouvir, você prefere brigar.
– Por que ela te pediu pra vir atrás de mim?
– Acho que tinha alguém lá ou algo assim.
Carmine ficou assustado.
– E como sabe disso?
– Sei lá, ouvi a campainha tocando no fundo.
Carmine passou correndo por Nicholas em direção ao carro. O pai dele estava deixando a cidade,
portanto, não deveria haver ninguém na casa. Ele ligou o carro e acelerou o máximo que pôde,
tentando imaginar quem poderia ser. Salvatore? Será que o pessoal da Máfia havia retornado?
Quando finalmente chegou à casa, percebeu marcas de derrapagem no solo; pedaços de raízes
também estavam sobre a trilha, mas não havia nenhum carro estacionado ali.
Parando próximo da varanda, Carmine saiu do carro e olhou para os lados, mas não encontrou
nada que levantasse suspeitas. Ele desarmou o alarme e destrancou a porta. O rapaz sentiu um
calafrio ao ver o telefone caído no hall. Olhando para os lados, ele logo suspeitou que algo estivesse
errado. Tentando manter a calma, subiu as escadas, indo direto para o terceiro andar. Mas não
encontrou nenhum sinal de Haven ali, então entrou no seu quarto e pegou a arma que havia guardado
no closet. Ele a havia escondido ali antes de levar o carro para ser consertado, imaginando que não
seria uma boa ideia carregá-lo no carro do irmão. Depois de checar e ver que a arma estava
carregada, colocou a pistola na cintura e desceu até o térreo.
Ele podia ouvir seus próprios passos na casa ao caminhar até a cozinha, parando ao chegar à
porta. Haven estava de pé do outro lado da ilha central, com os braços para trás, segurando um rolo
de macarrão. De onde ele estava Carmine pôde ver que ela tremia.
Se não estivesse tão confuso até poderia ter achado a situação engraçada.
– Você está bem, tesoro?
Ela fez um sinal afirmativo com a cabeça.
– E você?
– Claro, por que não estaria?
Ela piscou algumas vezes e continuou a encará-lo.
– O que houve?
– Acho que eu deveria te fazer essa pergunta.
– É, mas o seu nariz…
Carmine levou a mão ao rosto, fazendo uma careta. Ele se esquecera do ferimento.
– Eu e o Nicholas tivemos uma pequena discussão.
Ela respirou fundo.
– Você não machucou ele, não é?
– Não, foi ele quem me pegou dessa vez. – ele disse, sem querer admitir a verdade – Mas por que
você o chamou?
– Jen esteve aqui. O doutor DeMarco mandou que eu ligasse pra você, mas seu telefone não
atendeu. Ela ficou irritada porque eu não abri a porta, então eu liguei para ele.
De fato, o celular dele não funcionava desde que ele o atirara contra o próprio carro.
– Então, a Jen desistiu?
– Não sei. Ela me ameaçou e disse que…
– Ela te ameaçou?
– Sim, mas depois foi embora, e…
– Mas, afinal, o que ela queria?
– Não sei. Eu olhei para fora e… – suas palavras falharam quando ouviu um carro se
aproximando. Carmine foi até a janela e viu uma caminhonete estacionando na frente da casa.
– É o Nicholas.
O rapaz seguiu em direção à casa enquanto Carmine abria a porta.
– Está tudo bem? – perguntou Nicholas, parando a alguns passos da varanda.
– Está tudo bem! – Carmine respondeu – Você já pode ir embora.
– Carmine. – disse Haven, repreendendo-o por sua atitude. Em seguida ela olhou para os lados,
desceu da varanda e abraçou Nicholas – Obrigada. A maioria das pessoas não teria feito o que você
fez por mim.
Nicholas ficou paralisado antes de delicadamente dar um tapinha nas costas dela.
– Ah, não foi nada demais. – ele disse, embora aquilo tivesse representado muito. Carmine quase
se sentiu arrependido por tê-lo agredido, mas o soco que levara no nariz não lhe permitia demonstrá-
lo – Bem, então o problema foi resolvido e está tudo bem?
– Foi a Jen. – Carmine disse – Meu pai deve ter dado um chute na bunda dela. Sabe como essas
vagabundas se comportam quando são deixadas de lado.
– Eu não acho que… – Haven tentou interromper.
– Ela sempre me pareceu meio suspeita. – comentou Nicholas. – Nunca entendi por que seu pai
gostava daquela vagabunda. Nem eu tocaria naquela vadia.
– Conversa fiada. – retrucou Carmine – Você transou com ela.
– Não, eu não transei.
– Transou sim. Nós estávamos no hospital no ano passado e eu desafiei você a levar ela pra cama.
– Você está se esquecendo de que tentou me matar naquele final de semana? Nunca tive a chance
de tentar me aproximar dela!
– Eu não tentei te matar. Aliás, se eu quisesse te matar, já teria feito. Eu só enlouqueci porque você
me enfiou uma faca pelas costas.
Nicholas olhou para ele e, quando finalmente falou, disse a última coisa que Carmine esperava
ouvir.
– É, você tem razão.
Carmine ergueu as sobrancelhas.
– O que foi que disse?
– Eu disse que você está certo. Eu não deveria ter dito o que eu disse, e sinto muito por isso, mas
você também me fodeu.
Aquela era a primeira vez em que Nicholas reconhecia que havia agido errado com o amigo, e
aquilo pegou o rapaz desprevenido.
– É, tá certo, eu também não deveria ter ficado com a sua irmã. Sou tão… Ah, merda, deixa pra lá.
Haven olhou para os dois em choque.
– Uau, vocês estão…?
– De qualquer modo. – interrompeu Carmine, antes que ela começasse a achar que tudo voltara ao
normal – Está tudo bem agora. Além do mais, Haven podia perfeitamente ter dado conta da situação.
Ela tinha um rolo de macarrão na mão e estava prontinha para golpear a cabeça do primeiro idiota
que entrasse na casa.
Naquele momento o telefone tocou dentro da casa e Carmine entrou para atender a ligação. Ele
pegou o aparelho e saiu novamente na varanda.
– Alô?
– Carmine? – a voz de Vincent estava falhando um pouco – Consegue me ouvir?
– Ah, sim.
Enquanto isso, Nicholas se voltou para Haven e disse.
– Então, tenho uma piada pra você. – Carmine revirou os olhos e ouviu quando seu pai disse algo
sobre o aeroporto, mas a ligação estava ruim e a voz de Nicholas o atrapalhou – Por que a roda do
trem é de ferro e não de borracha?
– Não sei, Nicholas, por quê?
Um estampido foi ouvido a distância. Carmine acidentalmente derrubou o telefone e soltou um
palavrão, abaixando-se de novo para pegá-lo. Foi então que ouviu um grito agudo. Carmine sentiu os
pelos de seus braços se levantarem ao se virar e ver Nicholas caindo de joelhos, com uma mancha
vermelha na camisa branca. Segurando o peito, ele abriu a boca para dizer alguma coisa, mas não
conseguiu. Em segundos, ele estava caído de bruços no chão.
Haven gritou novamente, tão alto que os ouvidos de Carmine zuniram.
Tudo parecia estar acontecendo em câmera lenta. Ele saltou da varanda e pulou sobre Haven, no
momento em que ouro tiro atravessou o jardim. Carmine a segurou no chão, atrás do carro, e o peso
do seu corpo forçava todo o ar do peito da jovem.
– Preste atenção. – ele disse, segurando o corpo trêmulo da jovem enquanto ela lutava para
respirar – Vou contar até três e começar a atirar de volta. Preciso que você corra e entre no carro,
entendeu?
Ela não conseguia responder e, nesse momento, outro tiro foi disparado na direção deles. Carmine
se contraiu quando a bala acertou o carro.
– Meu Deus, Haven, você precisa me ouvir. Você tem que fazer o que estou te dizendo, você
consegue?
A voz dela tremia tanto quanto seu corpo.
– Acho que sim.
Carmine ergueu a mão e abriu a porta do passageiro.
– Tudo ficará bem.
Outro disparo pôde ser ouvido. Ele fechou os olhos com o som alto e respirou fundo. Finalmente
percebera que estavam brincando com os dois. Quem quer que fosse já poderia tê-los matado.
Ele começou a contar, mas os olhos de Haven se arregalaram no momento em que ela pegou no
braço dele.
– Espere!
– Meu Deus, Haven, não temos tempo a perder.
– Eu te amo. – aquelas palavras estavam presas na garganta da jovem e saíram como um choro.
Aquilo doeu como se ela o tivesse cravado uma faca no peito.
– Não aja como se não fôssemos nos ver daqui a trinta segundos. – ele retrucou, pegando sua arma
da cintura – Entre no maldito carro, querida. Três!
Carmine se levantou e disparou várias vezes na direção dos tiros. Correndo para o lado do
motorista, ele praguejou ao tropeçar no corpo de Nicholas. Ele se sentiu envergonhado e lágrimas se
formaram em seus olhos, mas fez de tudo para manter o controle e salvar Haven.
Mais balas foram disparadas na direção dele, que conseguiu entrar e se abaixar no banco do
motorista. Haven estava encolhida, chorando. Ele então colocou a arma entre os dois e finalmente
conseguiu ligar o carro.
Carmine pisou fundo no acelerador e saiu com tudo em direção à estrada. Em seguida ele esticou a
mão e retirou os cabelos do rosto de Haven, para ver se ela estava bem.
Ela se contorceu quando ele a tocou.
– Nicholas! Não podemos deixar ele para trás.
– Nós precisamos, querida. – disse Carmine – É tarde demais pra ele.
Histérica, ela balançou a cabeça sem acreditar.
– Mas ele só estava nos ajudando!
– Eu sei, beija-flor. – ele respondeu, sem ter mais o que dizer – Eu sei. – Carmine tentava se
concentrar na estrada, mas algo chamou sua atenção no espelho retrovisor. Um carro preto acelerava
atrás deles – Merda!
Haven olhou para trás.
– Meu Deus!
– Coloque o cinto de segurança. – ele disse. Ela congelou por um segundo, antes de seguir as
ordens do rapaz. Carmine queria dizer algo que a confortasse, mas não sabia se alguma palavra seria
capaz de fazê-lo. O veículo se aproximava rapidamente e os tiros continuavam, atingindo a parte de
trás do carro. De repente o pneu direito traseiro estourou, mas Carmine conseguiu controlar o carro.
Entretanto, um minuto depois foi a vez do pneu esquerdo. O barulho da roda tocando direto no chão
abafava o som dos projéteis. O jovem entrou em pânico ao perceber que seria impossível escapar.
Ele segurou firme o volante para se proteger e olhou para Haven. Seus olhos jamais haviam
esboçado tamanha devastação.
– Carmine. – ela disse. O som do seu nome nos lábios dela fez com que seu peito se enchesse de
amor, apesar do medo. Nada em momento algum seria capaz de ofuscar o que eles sentiam um pelo
outro.
– Eu também te amo. – ele respondeu, lutando para controlar suas emoções e não assustá-la ainda
mais – Sempre.
No momento em que ele disse aquela palavra, o sedã preto os atingiu com tudo. Carmine perdeu a
direção e o carro rodopiou, indo contra as árvores. O jovem instintivamente esticou os braços para
proteger Haven, sabendo que era tarde demais para conseguir parar. Ele se projetou para a frente e
bateu com o peito no volante. A dor intensa se espalhou pelo seu corpo e o ar pareceu desaparecer de
seus pulmões. Ele perdeu os sentidos imediatamente.
Capítulo 46

O airbag foi acionado automaticamente, silenciando os gritos de Haven. O cinto de segurança


protegeu-a do choque, mas ela sentia dificuldades para respirar até que, por fim, depois de socar o
equipamento com as mãos, ele desinflou. Naquele momento, seus olhos se voltaram para o lado do
motorista. Ela sentiu seu peito em chamas e logo desatou o cinto que a prendia. O corpo de Carmine
estava caído para frente; o airbag do rapaz estava manchado com o sangue que escorria de seu rosto.
Haven gritou o nome dele, o chacoalhou, tentando encontrar algum sinal de vida. A jovem só ficou
aliviada quando ouviu uma respiração trêmula.
Porém, a aproximação de outro carro a deixou apavorada. O sedã preto estava parado na estrada e
os quatro homens que estavam dentro dele, todos com máscaras pretas, agora caminhavam na direção
dos dois.
Ela estava em pânico; sua visão, embaçada. A chegada iminente a deixara aterrorizada e fora de
controle. Ela considerou a possibilidade de correr, mas não podia deixar Carmine naquele estado,
incapaz de se defender.
– Carmine, acorde, eu preciso de você! Por favor!
Seu desespero foi aumentando à medida que os homens chegavam mais perto e suas vozes
abafavam quaisquer outros sons. Olhando para a parte da frente do carro, ela localizou a arma de
Carmine no assoalho. A cabeça da jovem latejava e ela chegou a hesitar por um segundo antes de
pegá-la.
Alguém apareceu ao lado do motorista e, num reflexo, Haven puxou o gatinho. Aquilo soou como
uma explosão naquele espaço confinado, e ela gritou, lembrando-se de manter o controle da arma
para que ela não saltasse de sua mão. A bala destruiu o vidro do lado de Carmine e passou raspando
pelo rosto do sujeito, atingindo, entretanto, outro membro do grupo, que estava logo atrás,
derrubando-o.
O primeiro sujeito retirou a máscara e olhou para os lados. Haven gritou ao reconhecer o homem:
era Nunzio. Ele ergueu sua pistola e enfiou a mão dentro do carro, segurando Carmine pelo cabelo,
puxando a cabeça do rapaz para trás e apontando a arma para sua têmpora. Nesse instante, a porta do
passageiro se abriu e outra arma foi pressionada contra a cabeça de Haven.
Com um sotaque diferente e bem acentuado, o homem atrás dela disse calmamente.
– Solte essa arma, doçura.
Ela a soltou imediatamente e o sujeito a agarrou pelo braço, puxando-a para fora do carro e
atirando-a ao chão. Em seguida ele pegou a arma e olhou enquanto, com extrema violência, Nunzio
batia a cabeça de Carmine contra o volante.
– Pelo amor de Deus. – ela gritava, sentindo-se péssima conforme as palavras saíam de sua boca –
Por favor, não machuque ele!
– Cale a boca. – Nunzio falou. Nesse momento o outro sujeito entregou a ele a arma de Carmine –
Então, seu namorado a ensinou a usar isso? Nunca entendi o que Sal via nesse moleque. Principe
della Mafia, o futuro da organização. Ele não tem cérebro pra isso.
Ele olhou novamente para Haven e um silêncio assustador pairou entre eles. Nunzio guardou a
arma do rapaz em seu casaco.
– Levante ela. Não temos tempo a perder.
O sujeito ergueu Haven e a colocou de pé, empurrando-a até o carro preto. Ela mal conseguia
respirar e tentava desesperadamente encontrar um meio de escapar.
– E quanto a ele? – perguntou um terceiro homem, olhando para o companheiro caído ao chão. A
voz dele também tinha um sotaque pesado.
– Deixe ele aí mesmo. Eu teria matado ele de qualquer jeito.
– E o rapaz? DeMarco?
O coração de Haven quase parou de bater ao ouvir aquelas palavras; a dor irradiava por cada
centímetro de seu corpo. Ela gritou e tentou se soltar, mas o medo fazia seus joelhos tremerem. O
homem a soltou e ela caiu ao chão, chorando.
– Por favor, não mate ele! Eu irei com vocês, eu irei! Não vou dificultar as coisas! Apenas não
mate ele!
Haven se sentiu devastada ao ver o homem apontar mais uma vez a arma para a cabeça de
Carmine. Ela soltou um grito, e aquele som que partia de sua alma reverberou em seus ouvidos.
Ambos os sujeitos que estavam próximos a ela se contraíram ao ouvir aquele clamor e foi então que
algo atingiu a parte de trás da cabeça da jovem, silenciando-a.
– Cala essa boca! – disse o homem com sotaque pesado, que a golpeou novamente, atirando-a para
a frente.
– Por favor! – ela ainda conseguiu pronunciar, a despeito da dor, sem se importar com o que
aconteceria a ela, desde que não tocassem em Carmine. Ele ainda estava vivo e ela precisava que ele
ficasse assim – Eu farei qualquer coisa! Não atire nele!
O homem que estava ao lado dela lhe deu um chute e ela se contraiu, tentando recuperar o fôlego.
– Chega! – exclamou Nunzio – Precisamos dela viva e inteira. Deixe o moleque aí antes que ela
me dê ainda mais dor de cabeça.
O sujeito abaixou a arma enquanto Nunzio a colocou de pé, encarando-a de um jeito que fez sua
pele ficar arrepiada. Ele então a puxou para si e se inclinou em sua direção, colocando o nariz no
rosto da jovem. Ela pôde sentir o cheiro de sangue no rosto dele, quando ele o esfregou no dela.
– Ele morrerá logo, de qualquer jeito.
Revoltada e aterrorizada, ela prendeu a respiração e caiu no chão.
– Coloque-a no carro. – disse Nunzio, saindo do local. Alguém a pegou pela cintura e a arrastou
pela estrada. Ela ainda conseguia ver o corpo de Carmine caído sobre o volante. Aquela visão
terrível a fez perder as esperanças. Mesmo assim, ela ainda gritou o nome do namorado, na
expectativa de que ele a ouvisse e despertasse.
O homem tampou sua boca e a silenciou. Em pânico, ela o mordeu, rasgando-lhe a carne e sentindo
o gosto repulsivo do sangue do sujeito. Ele se afastou o suficiente para que ela tivesse a chance de se
soltar e correr para o carro, mas foi dominada assim que chegou à janela do motorista.
– Pensei que iria ser boazinha. – disse Nunzio, arrastando-a de volta para o carro preto. Ele a
enfiou no banco de trás enquanto os outros dois se acomodavam. Em seguida, o veículo saiu cantando
pneus.
Nunzio pegou uma pequena bolsa e abriu o zíper, retirando de lá uma seringa contendo um líquido
claro.
– É uma pena que eu tenha de fazer isso, docinho.
Ela se debateu conforme a mão dele a segurou pela garganta. Haven lutou o quanto pôde, batendo
com os punhos no peito dele com toda força que tinha e tentando tirar a seringa da mão do sujeito,
mas ele conseguiu aplicar a injeção em sua coxa e a segurou firme por um minuto, até que ela
perdesse os sentidos.

– Carmine?
O som de alguém pronunciando seu nome finalmente foi registrado pelo jovem, mas a voz, embora
familiar, parecia abafada e distante. Ele se forçou a ouvi-la.
– Carmine, abra os olhos.
Tudo estava escuro e embaçado, como se ele estivesse submerso na água turva ou em meio a uma
forte neblina.
– Vamos lá. – disse a voz, cada vez mais clara. Ele então reconheceu quem o chamava. Era seu
pai, e ele tentou responder, mas não conseguia falar por causa da forte dor no peito. – Acorde, filho.
– Vincent disse mais uma vez – É importante.
Carmine se forçou a abrir os olhos, mas contorcia o rosto por causa da dor que irradiava a partir
de sua cabeça. Ele gemia ao se mover, e sentia como se alguém o estivesse esfaqueando a cada nova
tentativa. Sua visão distorcida deixava tudo confuso.
Ele ainda estava no carro, cuja parte da frente estava cravada em algumas árvores e totalmente
destruída. Fumaça e calor ainda saíam do capô, portanto ele não podia ter estado inconsciente por
muito tempo. Ele viu o pai de pé ao lado da porta do motorista e fez uma tentativa de sair, mas
Vincent o impediu.
– Não deve se mover, filho, você está machucado.
– Eu estou bem. – retrucou Carmine, sem muita certeza do que estava falando. Ele saiu e segurou
no carro para se equilibrar; suas pernas estavam bambas. Imediatamente se sentiu mal, dobrou-se e
vomitou.
– Você tem uma concussão séria. – disse Vincent – É provável que algumas costelas estejam
fraturadas. Além disso, me parece que seu nariz esteja quebrado e …
– Pare de me diagnosticar. – ele disse – Cadê a Haven?
– Eu esperava que você pudesse me dizer. Já estava a caminho de casa quando vi o carro fora da
estrada.
Carmine entrou em pânico.
– Eu, ah… Ela estava comigo. Estávamos em casa e alguém começou a atirar na gente. Nicholas
foi atingido.
– Nicholas? Onde ele está?
– Ainda está na casa. Tive de deixar para trás e fugir. – ele explicou, tentando combater o
sentimento de culpa, sem saber o que doía mais, a angústia emocional ou seu estado físico – Nós
estávamos tentando escapar, mas um carro colidiu com o nosso e aqui estamos nós. Merda, aqui estou
eu. Onde está Haven?
– Nós a encontraremos. – disse Vincent. Carmine imaginava como ele conseguia se manter calmo e
frio naquela situação. Foi então que algo a alguns metros chamou sua atenção. Seu coração bateu
mais forte quando percebeu que era uma pessoa.
O pai dele olhou na mesma direção.
– É Johnny.
– Johnny? Quem diabos é o Johnny?
– Ninguém importante. Nem tenho certeza de que esse seja o nome dele. Ela faz parte da turma do
Giovanni.
– Um dos seus?
– Ele levou um tiro no abdômen, mas não acho que seja necessariamente fatal. – disse Vincent – A
bala não atingiu órgãos vitais, mas algo me diz que chegou à medula.
– Não me parece que foi intencional. Pensei que você só atirasse pra matar.
– Eu não atirei nele. – disse Vincent, balançando a cabeça – Achei que você pudesse me dizer
quem foi.
– Foi você quem o encontrou ali? – perguntou o jovem olhando para o pai, antes de se virar para o
carro. A porta do lado do passageiro estava escancarada e o cinto solto sobre o banco, portanto ele
não achou que Haven estivesse ferida. Não havia nenhum sangue no lado dela – Talvez ela tenha ido
procurar ajuda. – ele disse, atirando as coisas para os lados – Onde está minha arma?
No momento em que Carmine disse aquelas palavras, ele também localizou o cartucho calibre 45
no piso do carro. Ele o pegou e saiu novamente do carro, olhando para o pai enquanto este respirava
fundo.
– Eu tinha um pressentimento de que algo desse tipo pudesse acontecer, mesmo antes de saber
sobre o parentesco dela com Sal. Depois de tudo o que já perdi, sabia que salvá-la não seria fácil.
Todos sabiam o quanto ela importava para mim. Temi que alguém a levasse para fazer algum tipo de
chantagem. Eu deveria ter previsto que seria ele.
As pernas de Carmine vacilaram.
– Nunzio?
Vincent confirmou com a cabeça.
– Ninguém ouve falar dele já há alguns dias. Ele foi convocado para uma reunião, mas não
apareceu. Essa era justamente a razão pela qual eu estava indo a Chicago neste final de semana.
Carmine sentiu-se furioso ao pensar naquela possibilidade. Imaginar que ela pudesse estar em
algum lugar nas mãos de Nunzio o fazia querer vomitar novamente. Ele sequer conseguia conjecturar
sobre o que ela estaria passando.
– Eu vou matar ele. – disse Carmine – Ele vai pagar caro por isso.
– É, ele vai. – concordou Vincent – Mas nesse momento precisamos nos preocupar mais em
encontrá-la.

A noite estava fria, um temporal se formava a oeste, o que tornava as águas do Lago Aurora ainda
mais turbulentas que o normal. Vincent se pôs de pé no cais, a apenas alguns quilômetros da
residência dos Barlow, agarrando-se ao casaco e tentando se proteger dos ventos gelados.
Vincent conseguia se lembrar claramente do dia em que conheceu Nicholas. Era um dia quente de
outono e eles estavam na escola primária. Carmine havia acabado de completar dez anos e era a
primeira vez em que o pai conseguia assistir a um jogo do filho. Era difícil para DeMarco dar conta
de todas as tarefas no hospital e ainda administrar seu trabalho com a famiglia; sobrava pouco tempo
para se dedicar aos filhos.
Entretanto, naquele dia específico ela decidira sair mais cedo do trabalho para prestigiar Carmine.
Lá pela metade do jogo, um garoto mirrado de pele bronzeada levou um tombo feio e a chuteira de
alguém fez um corte em seu rosto. Foi um ferimento superficial, então Vincent pegou sua maleta no
carro e fez um curativo ali mesmo, evitando que o menino tivesse de ser levado ao pronto-socorro.
– Obrigado, Doc. – ele disse – O que foi que o médico disse quando o homem invisível pediu a
ele uma consulta?
– Não tenho certeza.
– Sinto muito, mas hoje eu não posso ver você. – o menino riu histericamente da própria piada – O
senhor entendeu? Não posso ver você? Você sabe, porque era o homem invisível!
Vincent sorriu.
– Sim, eu entendi.
O intervalo começou e o médico terminou o curativo. Foi então que Carmine se aproximou.
– Pai! Você veio!
Naquele instante Vincent se sentiu culpado.
– É, eu vim.
Carmine colocou os braços nos ombros do menino e disse.
– Esse é o meu melhor amigo, o Nicholas.
Aquelas palavras pegaram Vincent de surpresa. Todos os professores de Carmine costumavam
dizer a mesma coisa: ele era fechado e introvertido. Na maioria das vezes era como se nem estivesse
na sala.
Naquele instante o pager de Vincent tocou e o momento mágico se perdeu. O brilho nos olhos de
Carmine se dissipou; aquela criança silenciosa com a qual Vincent se acostumara voltou a reinar, sem
que uma palavra fosse dita entre os dois.
Mas nem toda a esperança estava perdida, Vincent percebeu, pois Carmine tinha alguém. Uma
pessoa com a qual o jovem podia ser ele mesmo: um garoto inocente atormentado por demônios que
ninguém mais conseguia ver.
Depois de uma discussão, ele viu seu filho pouco a pouco perder totalmente o controle. Ele
começara a trilhar os passos do pai e a se aproximar de um destino do qual Vincent o queria longe:
Chicago.
Foi então que ela surgiu na vida dele. Uma jovem que jamais tivera o controle sobre sua própria
vida conseguira ensinar àquele garoto, que já tinha tudo nas mãos, o verdadeiro significado da vida.
Mais uma vez, Carmine não estava mais sozinho.
Nicholas, em contrapartida, estava só.
Vincent jamais esqueceu a singela piada que ele lhe contara naquele primeiro dia, pois Nicholas
era muito parecido com um homem invisível. Ele vivia a vida sem ser notado pela maioria das
pessoas. Vincent, porém, conseguia vê-lo, mesmo que não pudesse ajudá-lo. E quando parou naquele
cais em plena escuridão, ele desejou ter feito mais para ajudar o pobre garoto.
DeMarco olhou para a água, fixando-se no exato lugar onde o corpo do rapaz desaparecera
minutos antes, e sentiu apenas um profundo desgosto. Ele vira aquele garoto crescer e agora tivera de
atirá-lo sem vida dentro da água, assim como já havia feito com vários inimigos.
– Oggi uccidiamo, domani moriremo. – ele disse, fazendo o sinal da cruz com a mão enluvada.
Hoje matamos, amanhã, morremos.
Vincent caminhou até o carro estacionado atrás das árvores e saiu do Lago Aurora sem olhar para
trás. Ele já havia limpado a casa, lavado a garagem e espalhado pedras para esconder qualquer traço
do incidente, mas agora tinha problemas maiores com os quais teria de lidar.
Logo que Vincent chegou à casa, foi direto para o escritório que ficava sob a escada, descendo em
seguida rumo ao porão. O lugar estava limpo; as caixas haviam sido levadas para outro lugar, então
era fácil caminhar pelo cômodo. Ele chegou a uma grande estante nos fundos e abriu um painel
elétrico feito de metal que estava ao lado dela. Vincent deslizou uma parte desse painel, revelando
um pequeno teclado, onde digitou os números 62373.
Ele ouviu um clique e, enquanto fechava o painel, a estante deslizou alguns centímetros para o
lado. A porta levava a um quarto secreto de segurança, ou àquilo a que seu filho caçula se referia
como masmorra. O cômodo, que não era muito maior que uma cela de prisão, possuía paredes
reforçadas com aço e camadas de Kevlar, uma fibra à prova de balas.
Era o tipo de quarto em que poucos homens entravam, e do qual um número ainda menor saía vivo.
Ele ligou o interruptor que ficava ao lado e luzes fluorescente tomaram o espaço. Ele piscou,
tentando bloquear a luz forte com a palma da mão. Murmúrios vinham do canto onde Johnny estava
deitado sobre uma mesa de concreto e preso com correntes.
– Vincent. – disse uma voz quase inaudível – Me ajude.
– Eu o ajudarei – Vincent respondeu –, mas primeiro você irá me ajudar.
– Não posso me mover; não consigo mexer as minhas pernas.
– É, eu sei. A bala atingiu sua medula.
– Uma bala? Estou paralisado! Meu Deus, minhas pernas.
Vincent suspirou, irritado.
– Comporte-se como um homem!
– O que aconteceu? – perguntou Johnny, lutando para se mover – Minhas malditas pernas.
– O que aconteceu é que recebi uma ligação e fiquei sabendo que havia alguém em minha casa,
então eu voltei para investigar e encontrei meu filho inconsciente e a namorada dele havia
desaparecido. Ah, e havia também um jovem inocente morto bem no meu jardim, e você, ferido.
Você, bem no meio de uma cena em que uma família foi atacada. Então, que tal você me dizer o que
aconteceu?
– Eu, ah… Eu não sei… Eu levei um tiro e não sei quem atirou nem como…
Vincent se encostou na mesa e cruzou os braços, dizendo:
– Eu compreendo como é essa vida. Somos sugados para dentro de situações que fogem ao nosso
controle, mas ainda não é tarde demais para consertar a situação. Quero que você me diga o que
Nunzio quer com aquela garota.
– Não posso.
Vincent podia sentir que o homem estava apavorado e tentou se manter calmo para não assustá-lo
ainda mais.
– Bem, isso deve estar doendo bastante; além disso, precisa que o ferimento seja limpo antes que
infeccione. É sua única opção.
– Não posso te dizer nada. – ele falou – Eu não sei de nada.
– Você está mentindo. – disse Vincent – Não participaria de algo sem saber o porquê. Para onde
ele a levou?
– Você tem de acreditar em mim, Vincent. Não posso te dizer.
– Ah, você pode me dizer, mas não quer! Há uma grande diferença. Aliás, tão grande quanto a que
separa a vida da morte.
– Por favor!
Vincent acenou com a cabeça.
– Não implore! Isso é humilhante para você.
– Você precisa entender…
– Não, é você quem precisa entender. Eles levaram algo importante para mim e não vou parar até
encontrá-la. Se quer ter uma pequena chance de sair daqui vivo, você me dirá o que preciso saber.
– Se eu te contar qualquer coisa eles me matarão.
– E se você não me contar, eu o matarei. – respondeu – E saiba que não terei nenhuma compaixão
por você. Cada minuto em que ela estiver longe dessa casa, você irá sofrer aqui dentro, e não vou
interromper esse sofrimento até que ela esteja de volta. Compreendeu?

A tensão era tão palpável no ambiente que era quase possível cortá-la com uma faca. Carmine
já ouvira aquela frase muitas vezes, mas, somente naquele momento, sentando naquele veículo branco
e imaculado e lutando para suportar a náusea por causa do cheiro de couro fresco, que ele finalmente
entendeu o que tudo aquilo significava. Era sufocante; a hostilidade exalada pelo homem ao lado dele
era forte demais para suportar.
Carmine tinha uma costela fraturada, o nariz quebrado e um pulso levemente torcido, além, é claro
de uma concussão. Vincent pedira a ajuda de um colega, que concordou em cuidar do filho sem
alarde. Apesar da insistência do filho em dizer que não precisava de cuidados médicos, Vincent
exigiu que ele fosse tratado. E quando Vincent DeMarco exigia algo, nem mesmo Carmine se opunha
às suas ordens. Então, quando Corrado chegou à cidade, ambos foram até a clínica enquanto seu pai
permaneceu na casa para lidar com a confusão.
– Você não vai matar o médico que eu vi, vai? – Carmine perguntou, completamente zonzo por
causa da alta dose de morfina em seu corpo.
Corrado não respondeu nada, e Carmine não tinha certeza se aquilo era um sinal bom ou ruim.
– Não acho que deveria. – o rapaz disse – Ele é só um médico.
– Carmine?
– Sim?
– Cale a boca.
Naquele momento, Carmine decidiu que se calar provavelmente seria o melhor a fazer.
Um pouco desorientado, ele olhou para o relógio no painel e viu que já era meia-noite. Haven
estava desaparecida há doze horas, e os minutos continuavam passando, como se nada importasse.
Ele deu um suspiro; a tensão naquele carro só aumentava.
Carmine se sentiu como se mais uma vez não pudesse respirar quando eles chegaram à casa e se
afastaram um do outro. Ele seguiu para dentro de casa e deu de cara com o pai saindo do escritório
sob a escada. Corrado também entrou e fechou a porta.
– Ele falou?
– Não. – respondeu Vincent – Ele não me deu nenhuma informação.
Corrado passou por Carmine e olhou para Vincent de um jeito peculiar, antes de desaparecer rumo
ao escritório. Vincent resmungou algo em voz baixa, recusando-se a olhar diretamente para Carmine.
Este caminhou até as escadas, sentou-se num degrau e colocou a cabeça entre as pernas, balançando
para frente e para trás. Em seguida, levantou-se e se pôs a andar de um lado para o outro. À medida
que a morfina desaparecia de seu corpo, o mesmo ocorria com sua paciência.
Por fim ele ouviu passos e viu que seu pai se aproximara, ao mesmo tempo em que Corrado saía
do escritório. Ambos pararam no hall e Carmine olhou para os dois, já quase perdendo o controle.
– Por que vocês dois só ficam aí parados? Não tem nada que possam fazer? Qualquer coisa? Pelo
amor…
Antes que Carmine pudesse verbalizar a última frase, Corrado o pegou pelo colarinho e o
empurrou violentamente contra a parede. O rapaz perdeu a respiração no momento em que Corrado
enfiou uma arma em cima de sua costela fraturada.
– Será que você ainda não aprendeu sua lição? Será que um de nós dois terá de morrer antes que
você perceba que isso não é um jogo? Você está colocando nossas vidas em risco e, entenda de uma
vez, rapaz, eu não vou mais tolerar que você piore as coisas! E não dou a mínima para quem é o seu
pai.
O coração de Carmine batia aceleradamente. Ele não tinha a menor dúvida de que tio atiraria nele.
– Corrado. – disse Vincent – Solte-o.
Corrado liberou Carmine e se virou, apontando a arma para Vincent. O jovem respirou fundo ao
testemunhar aquela situação. Vincent se manteve tão imóvel como uma estátua, sem nem piscar,
olhando para o tambor do revólver.
– Você continua me arrastando cada vez mais para o fundo, Vincent. – disse Corrado, abaixando a
arma.
– Eu sei. – respondeu DeMarco.
Corrado se virou novamente para Carmine.
– Essa sua boca ainda vai acabar matando todos nós. Se não consegue fechá-la por si mesmo, eu a
fecharei pra você.

O dia já havia amanhecido quando Carmine subiu até o terceiro andar. Seu peito ficou apertado no
momento em que abriu a porta de seu quarto. Ele se sentou na beirada da cama e segurou um
travesseiro, abraçando-o com firmeza enquanto lágrimas se formavam em seus olhos.
Cada partícula de autocontrole que lhe restava desapareceu no momento em que inalou o perfume
de Haven que ainda estava na fronha. A tristeza o engoliu e se recusou a deixá-lo. Já estava no meio
da tarde quando seu pai entrou no quarto.
– Partiremos para Chicago em pouco tempo.
Carmine colocou o travesseiro de lado e secou as lágrimas, olhando para suas roupas rasgadas e
ensanguentadas.
– Acho que vou me trocar.
– Prefiro que fique aqui para o caso de ela voltar.
Carmine sorriu de um jeito amargo.
– Ela não é um cão perdido. Ela não saiu caminhando pelo jardim e se perdeu no meio da floresta.
– Entendo, filho, mas você deveria reconsiderar. É perigoso e…
– Eu vou. – disse Carmine, interrompendo o pai – Se não quiser que eu o acompanhe, tudo bem,
mas estarei no próximo voo, quer você goste disso ou não.
– Muito bem, mas precisará tomar cuidado. Você não pode simplesmente se meter nisso como se
fosse um justiceiro. Não poderei me concentrar em trazê-la de volta se você sair por aí fazendo o que
lhe der na cabeça e contrariando minhas ações.
– Eu sei. Manterei minha boca fechada e deixarei que faça o que tem que fazer. Não sou ingênuo,
pai. Sei o que pode estar acontecendo com ela, mas preciso estar lá, de qualquer jeito.
Vincent pinçou a ponta do nariz com os dedos, franzindo a testa.
– Muito bem. Eu e Corrado vamos acabar o que começamos e então partiremos.
Carmine olhou para o pai.
– O que começaram? Está falando, ah… Você sabe, sobre aquele sujeito e…
Ele não conseguiu concluir seu raciocínio, mas nem precisava. Vincent compreendeu
perfeitamente.
– Johnny está no porão. Ele não disse muito até agora, mas eu injetei nele uma dose de tiopentato
de sódio há alguns minutos.
– O quê de sódio?
– Tiopentato de sódio. É um barbitúrico. Ele suprime as funções corticais no cérebro; já que
mentir é um processo complexo, torna-se mais difícil para ele…
– Poderia falar minha língua, por favor?
– Soro da verdade. – respondeu Vincent – Pelo menos é assim que as pessoas o chamam.
Carmine acenou com a cabeça.
– Pai… e o Nicholas?
Vincent olhou para o filho. Seu olhar era a única resposta de que Carmine precisava. Mesmo do
outro lado do cômodo, ele percebeu a tristeza no rosto do pai.
– Não pude fazer nada por ele.

A manhã já havia nascido e Vincent estava de pé no cômodo lacrado, mais uma vez interrogando
Johnny, que sofria.
– Diga-me onde ela está e isso acabará.
– Não posso. – ele disse, pelo que parecia a centésima vez. Mesmo com o soro da verdade
correndo em suas veias, ele ainda jurava que não sabia de nada.
Corrado se aproximou. Seus olhos estavam cheios de ódio. Não era algo que Vincent via com
frequência, mas um sinal de que alguém estava prestes a morrer.
Violentamente.
Vincent abriu caminho e Corrado foi direto para o armário na parede. Depois de remexê-lo, retirou
de lá algumas facas e alicates, distribuindo-os metodicamente sobre a mesa de aço na lateral.
Olhando para Johnny, ele disse:
– Bem, enquanto ainda está vivo, vamos brincar de “uni, duni, tê”.
Sem estômago para suportar o que estava prestes a acontecer, Vincent saiu do cômodo. Um grito de
pavor e agonia ecoou pelo porão antes que ele chegasse à escada.
Logo Johnny estaria deixando aquele lugar… em pedaços.

Corrado retornou cerca de uma hora depois, ensopado por causa da chuva e com as roupas
imundas de sangue. Ele saíra pela porta externa do porão e, como de costume, sua expressão era
indecifrável.
– Foram os russos.
Aquela única palavra quase fez com que o coração de Vincent parasse de bater.
– Ela está com os russos? Por quê?
– Porque é uma de nós. Já não é razão suficiente?
– Eles sabem?
– É possível que tenham descoberto antes de nós. – respondeu Corrado – Isso está saindo fora de
controle. Até agora, Vincent, você se sentou no banco de trás, mas isso já não é mais possível. Essa
coisa não vai acabar.
Vincent sabia disso, mesmo que não quisesse admitir.
– Onde eles a estão mantendo?
– Joey não soube dizer.
Vincent franziu o cenho
– Pensei que o nome dele fosse Johnny.
– Joey, Johnny… Que diferença faz? – Corrado começou a se afastar – Já cuidei do corpo, agora
você limpa a sujeira.
Vincent seguiu novamente em direção ao porão, tomando cuidado ao entrar no quarto secreto. O
piso de concreto estava ensopado de sangue, mas também havia manchas no teto. Ele não fazia ideia
de como Corrado havia conseguido aquela façanha, mas não tinha a intenção de perguntar.
Há muito tempo ele aprendera a nunca perguntar pelos detalhes.

A chuva estava tão forte que Carmine mal conseguia enxergar as árvores a apenas algumas
centenas de metros da casa. Ele estava tão hipnotizado olhando pela janela da sala de estar que
sequer percebeu os passos se aproximando. De repente ele viu o reflexo de Corrado no vidro e levou
a mão ao peito, dando um passo para trás.
– Caramba, você me assustou.
Corrado desabotoou a camisa arruinada.
– Você não é muito observador.
– E você é muito furtivo, como um ninja.
Ninja. No momento em que Carmine disse aquela palavra ele sentiu como se tivesse levado um
soco. Lágrimas se formaram novamente em seus olhos, mas ele se conteve para não derramá-las na
frente do tio.
– Você assiste muito à televisão. – disse Corrado – A marca de um assassino bem-sucedido é o
fato de o alvo jamais suspeitar quem o acertou.
Carmine olhou para ele.
– Não sou um alvo… Ou pelo menos espero que não seja.
Corrado curvou os lábios formando um pequeno sorriso enquanto acendia a lareira. Depois que o
fogo pegou, ele atirou a camisa e a viu queimar.
– Eu me lembro de quando você e sua mãe desapareceram. Alguns de nós estavam em sua casa, e
vocês estavam atrasados. Vincent enviou um carro, mas ele voltou vazio. O motorista disse que vocês
já haviam saído. Apesar do medo que tomou conta de seu pai naquela noite, ele fez o que tinha de
fazer. Ele aprendeu a usar aquela máscara de tranquilidade e frieza muito bem, mas eu o conhecia
melhor que ninguém.
Ele ainda ficou atiçando o fogo mesmo depois de a camisa já ter desaparecido.
– Você e ele são iguaizinhos: demasiadamente emocionais, ligados demais à vida exterior, e isso
pode ser perigoso. As pessoas irão explorar essa paixão para exercerem o controle, e você dois
compartilham de uma mesma fraqueza.
– E qual é?
Corrado olhou para ele como se aquela fosse uma pergunta estúpida.
– Suas mulheres, Carmine.
– Mas esse não é um problema de todo mundo?
Corrado discordou com a cabeça.
– A maioria é incapaz de amar alguém. As esposas são como os carros que dirigem e as casas que
usam. Eles acham que são donos delas, então cuidam delas, as exibem por aí, mas na hora do aperto,
eles as entregariam de bandeja para salvar a própria vida.
– É assim que você se sente? – perguntou Carmine – Sempre achei que você e a tia Celia… Você
sabe…
– Eu amo a Celia. – respondeu Corrado – A diferença aqui é que eu não posso ser manipulado.
Eles usaram Maura para forçar seu pai a fazer o que eles queriam, assim como Haven será usada
para que você faça o que eles desejam.
– Você acha que é por isso que eles me deixaram vivo?
– Tenho certeza absoluta. Somos peões em um tabuleiro, Carmine, e se não formos cuidadosos,
acabaremos nas mãos deles. Exposição não é algo muito bom no mundo em que nós vivemos. Eu
espero que, já que você é tão parecido com Vincent, você aprenda a colocar essa máscara. Já o
ajudei a enterrar Maura. Não quero passar por isso novamente. – ele se preparou para sair, mas antes
se virou e disse – E faça uma mala, pelo amor de Deus. É suspeito alguém embarcar num avião sem
bagagem.

Eles aterrissaram em Chicago quando já começava a escurecer e levaram vinte minutos para
chegar à casa dos Moretti. O trajeto foi feito todo em silêncio. Carmine olhava pela janela como se
estivesse dopado. Fazia anos que ele não pisava naquela cidade, mas o lugar parecia o mesmo. Eles
passaram pela pizzaria de Tarullo e Carmine fechou os olhos, sem conseguir olhar à medida que se
aproximaram da viela em que sua vida virou de cabeça para baixo.
Corrado estacionou o carro na frente da grande casa de tijolos. Celia parecia desgastada ao
esperá-lo à porta e Corrado quase nem olhou para ela ao entrar. Ela ofereceu um sorriso empático a
Vincent. Carmine, por sua vez, tentou passar direto, mas ela o agarrou e o abraçou.
Ele se afastou dela.
– Isso tudo é minha culpa.
Acenando negativamente a cabeça, ela colocou a mão no queixo do jovem e disse:
– Você não provocou isso, criança. Você jamais faria nada para machucá-la. Ela é uma de nós…
Ela faz parte da família. Nós iremos encontrá-la.
– Espero que esteja certa. – ele disse, derrubando sua mala no chão. Então seguiu para a sala de
estar e logo viu o irmão sentado ao sofá. Dominic estava com a cabeça abaixada e suas mãos
cobriam seu rosto. Tess estava sentada ao lado dele e olhou para Carmine, com os olhos arregalados.
Ela cutucou Dominic.
– Dom.
Dominic ergueu a cabeça, boquiaberto.
– Olhe pra você, mano.
– Parece pior do que é. – ele mentiu, sentando-se em frente aos dois. A dor era insuportável, tanto
dentro como fora – Ela é tudo o que importa nesse momento.
Ninguém disse mais nada até que Vincent entrasse na sala e colocasse seu notebook sobre a mesa
de café. Ele olhou para Dominic e disse com a voz austera.
– Preciso que você a localize para mim, por meio do chip.
Carmine empalideceu.
– Você mesmo não consegue localizar ela?
– Não está conectando.
Quando ele saiu, um silêncio desconfortável pairou no ar. Tess respirou fundo e começou a andar
de um lado para outro, mexendo nas coisas para se manter ocupada, enquanto Dominic se voltava
para o notebook. Seus dedos digitavam furiosamente, sem que nada daquilo fizesse qualquer sentido
para Carmine.
O som da digitação foi tomando cada vez mais espaço na mente do rapaz. Ele estava à beira de um
colapso mental. Já tinham se passado quase quarenta horas sem que ele tivesse pregado os olhos. A
cabeça parecia pesada demais sobre o corpo, seus olhos vermelhos queimavam de exaustão.
Passando a mão pelos cabelos, ele os puxou com firmeza enquanto se balançava para frente e para
trás na poltrona. O tique-taque do relógio se mesclava à digitação rápida de Dominic; tudo parecia
tirar o rapaz dos eixos. Cada tique era mais um segundo sem ela, mais um segundo de incerteza. Tess
continuava a andar pela sala com seus saltos altos e aquele som repetitivo o estava enlouquecendo.
Toc, tique, clique, toc, clique, taque, toc, tique, clique, toc… Carmine estava perdendo o controle
de sua própria mente.
Nesse momento, Celia entrou na sala com alguns sanduíches e colocou um prato bem à frente dele.
– Você precisa comer alguma coisa, meu querido.
– Você acha que ela está comendo? – ele perguntou com a voz falha. Será que ela estava
comendo? Será que estavam cuidando bem dela? Será que ela estava aquecida? Jesus, onde ela
está? Sua respiração começou a falhar à medida que o pavor foi tomando conta dele. Será que ela
ainda está viva?
Celia passou a mão nas costas dele, mas ele se afastou da tia ao mesmo tempo em que Tess bufou,
demonstrando certa impaciência.
– Você tem algo a dizer, Tess? – Carmine perguntou, levantando-se – Há algo que queira jogar na
minha cara, Senhorita Perfeitinha? Aquela que sempre sabe mais que qualquer outra pessoa. Você
nunca gostou de Haven e provavelmente está feliz pelo fato de ela ter sumido.
Tess arfou e cobriu a boca com as mãos. Dominic deu um salto, parecendo querer dar um soco no
irmão caçula. Por um momento, Carmine desejou que ele o tivesse feito.
– Acho que você precisa dormir. – disse Dominic – Haven é como uma irmã pra mim. Também
estou preocupado, então, não aja como se você fosse o único que se importa aqui.
Carmine tentou se controlar.
– Eu não estou pensando direito.
– Sei que não está. – disse Dominic, voltando a se sentar e a se concentrar no notebook – E se acha
que conseguirá ajudar em alguma coisa na condição em que se encontra, está errado. Então, coma o
seu sanduíche, feche os olhos e descanse.
A construção cinza e igual a todas as demais ficava bem no meio de um bairro abandonado.
Ferrugem cobria a porta de ferro preta; pichações elaboradas recobriam toda a parte de fora. O
interior do prédio era igualmente negligenciado: o piso de concreto ostentava rachaduras e as
paredes eram cobertas de sujeira. Ainda havia eletricidade no lugar, mas as luzes piscavam. Um
velho ventilador de metal preso ao teto girava sem parar.
No centro da sala havia uma grande mesa de jogos, rodeada de homens sentados em cadeiras
dobráveis. Havia milhares de dólares sobre a mesa, além de garrafas vazias de cerveja espalhadas
por todos os lados. Cada homem segurava um conjunto de cartas. Todos conversavam animados,
discutindo e rindo enquanto o jogo de pôquer adentrava a noite.
Aquelas pessoas pareciam nem reparar na jovem encolhida no canto sobre um colchão rasgado e
manchado. Haven também não estava interessada neles e respirava superficialmente. O barulho de
vez em quando invadia a escuridão em que se encontrava; palavras incoerentes e abafadas eram
proferidas por vozes que ela desconhecia.
Pouco a pouco, recobrou a consciência e, com ela, veio a dor. O vozerio se tornou mais alto
quando ela tentou se sentar. Sua cabeça girava e ela se sentia desorientada. A jovem entrou em
pânico quando viu a porta se abrir a distância. Uma mulher entrou no cômodo e caminhou em direção
aos homens, mas se deteve ao olhar na direção de Haven.
– Por que não me disseram que a garota estava acordada?
Ela tinha um sotaque estrangeiro, que pareceu familiar para Haven. Flashes do acidente voltavam
à sua cabeça, o que a fez se lembrar do homem que havia apontado uma arma para a cabeça dela.
Todos pararam de falar e olharam para Haven. Nesse momento, um par de olhos bem familiares se
concentrou nos dela. Aquela visão fez seu estômago revirar. Nunzio deu um sorriso sarcástico antes
de se virar para a mesa de jogos; os demais fizeram o mesmo.
A mulher pegou uma garrafa em um grande refrigerador ao lado da mesa e colocou um pouco de
água em um copo plástico, antes de atravessar o cômodo e se aproximar dela. Haven pôde finalmente
olhar para ela: uma jovem de cabelos grossos e longos, tão claros que eram quase brancos, mas as
raízes eram bem escuras. Seus olhos eram grandes e azuis; seu rosto, redondo e rechonchudo. Ela
parecia uma boneca de porcelana.
– Estou surpresa em vê-la se mover. – ela disse, sendo gentil ao esticar a mão com o copo. Haven
resistiu e a mulher sorriu – É só água, minha linda garotinha. Beba.
Haven estava confusa; parte dela a alertava para que não confiasse naquela mulher, porém, ela
estava desesperada para aceitar a bebida. Depois de alguns instantes de incerteza, ela acabou
reconsiderando. O líquido gelado deslizou por sua garganta, aliviando seu peito em chamas.
– Achei que ele a havia colocado para dormir para sempre. – ela falou – Eu disse que a dose era
alta demais. Não sei por que ele nunca me dá ouvidos.
A mulher mexeu na bolsa e pegou um pacote de bolachas.
– É melhor você comê-las. Não há como saber quando terá uma nova chance.
Embora não confiasse na mulher, Haven não queria que sua teimosia arruinasse sua chance de
manter-se forte. Seu estômago roncava, trazendo de volta a lembrança dos dias de fome. Ela pegou o
pacote de bolachas e começou a comer.
De repente suas pálpebras ficaram pesadas. Ela tentou combater o sono, mas não conseguiu.
Sentiu-se leve e voltou a se deitar enquanto a mulher sorria.
– Sinto muito – ela disse, com a voz se transformando num sussurro –, mas se estiver dormindo,
Nunzio não irá incomodá-la.
Quando as dores amenizaram e os sons voltaram a ficar abafados, Haven percebeu que fora
drogada novamente.
Capítulo 47

Carmine despertou e ainda estava um pouco tonto ao deslizar os olhos pelo quarto de hóspedes.
De repente sua vista alcançou um relógio na parede. Demorou alguns segundos para que ele
registrasse o horário: eram quase oito da manhã. Ele deu um pulo da cama e sentiu dores por todo o
corpo. Com dificuldades, vestiu-se, saiu do quarto e desceu as escadas.
Na sala de estar tudo parecia exatamente como no dia anterior, a despeito de terem se passado
quase doze horas. Dominic ainda digitava no notebook e Tess continuava andando de um lado para o
outro da sala.
Celia saiu da cozinha ao ouvir os passos do sobrinho. Assim como os demais, ela também parecia
exausta.
– Como está se sentindo hoje, criança?
Como ela achava que ele estaria se sentindo? Estava ferido, por dentro e por fora. Toda sua vida
se transformara num caos. Será que ele deveria dizer para ela que se sentia como se a morte fosse um
alívio? Será que aquilo a faria se sentir melhor?
– Me sinto um completo inútil, tia. – ele respondeu, passando a mão nos cabelos – É como se eu
estivesse deitado numa cama esperando que o vizinho de cima finalmente atirasse o segundo pé do
sapato no chão, mas ele nunca o faz. Odeio essa sensação.
Celia abriu a boca para responder, mas uma comoção se deflagrou antes que ela pudesse
pronunciar qualquer coisa.
Dominic deu um pulo.
– Está conectando!
Carmine sentiu uma forte dor de cabeça quando a porta no final do corredor se abriu com
violência, atingindo a parede. Naquele momento, Carmine imaginou que eles tivessem escutado as
palavras de Dominic, mas todas as suas esperanças logo desapareceram quando ele olhou para
Corrado, que se concentrava na porta da frente, atrás do rapaz. A pele normalmente bronzeada de seu
tio parecia totalmente pálida.
Carmine sentiu um forte calafrio. Algo estava terrivelmente errado, mas nem mesmo por um
instante ele teria previsto o que estava prestes a acontecer.
– FBI! Mandado de busca! Todos para o chão! Agora!
A gritaria vinha do lado de fora. Várias vozes falavam ao mesmo tempo. Incrédulo, o jovem se
virou para a porta da frente enquanto os federais tentavam arrombá-la. Ele enrijeceu o corpo ao
perceber a mesma movimentação nos fundos da casa. Num movimento instintivo, ele cobriu os
ouvidos no momento em que uma rajada de tiros ricocheteou no piso sob a escada. As luzes claras o
ofuscaram no instante em que as lanternas da polícia invadiram a casa.
Vários homens vestidos com uniformes da SWAT entraram pelas portas, ordenando que todos se
abaixassem. Tess gritava na sala de estar enquanto Dominic soltava um palavrão, mas as vozes deles
pareciam abafadas nos ouvidos de Carmine. Tudo aconteceu rápido demais, e os pés do rapaz
pareciam presos ao chão. Celia se deitou no chão e colocou as mãos sobre a cabeça.
– Para o chão! – gritou um oficial, apontando a arma diretamente para Carmine, mas ele
simplesmente não conseguia se mover; ele sequer conseguia pensar. Celia colocou a mão na perna do
rapaz e a chacoalhou. Ele caiu de joelhos e, em seguida, um oficial forçou o rosto do jovem contra o
piso e seus braços foram puxados até as costas. Ele gritou, tentando se soltar à medida que eles o
algemavam.
– Não resista. – disse Celia – Eles precisam nos algemar para a segurança deles.
O jovem relaxou os braços e permitiu que algemas fossem colocadas. O oficial quase cortou sua
circulação ao apertá-las.
– Vincenzo Roman DeMarco, você está preso sob a acusação de violação da Lei de Combate a
Organizações Corruptas e Influenciadas pelo Crime Organizado, Título 18 do Código dos Estados
Unidos da América, Seção de 1961. – declarou um oficial ao levar Vincent em direção à porta da
frente – Você tem o direito a permanecer calado. Qualquer coisa que disser poderá e será usada
contra você no tribunal. Você tem direito de contar com um advogado presente durante os
interrogatórios e, se não puder arcar com um, um defensor público será determinado para atendê-lo.
Carmine ficou desesperado ao ver que os homens se aproximavam dele.
– Pai!
– Fique de boca fechada, Carmine. – disse Vincent, sendo levado para fora. Oficiais retiraram
Corrado do outro cômodo e o algemaram, enquanto liam os direitos dele.
– Chame os advogados, Celia. – disse Corrado, com a voz tranquila – Não quero nenhum deles
levando nada sem a presença de um aqui.
– Eu chamarei. – ela disse, com a voz um pouco trêmula – Mantenha-se firme.
– Não se preocupe comigo. – respondeu Corrado – Eu ficarei bem.
Um oficial ajudou Celia a se levantar e a revistou antes de se afastar; outros tiraram Tess e
Dominic da sala de estar, enquanto um terceiro grupo colocou Carmine de pé e o empurrou contra a
parede, revistando-o de modo veemente e retirando tudo o que o rapaz trazia nos bolsos.
Depois que perceberam que ele não estava armado, eles o levaram pela porta da frente. A rua
estava bloqueada e coberta por carros da polícia; dezenas de agentes do FBI e oficiais locais lotavam
as imediações. Carmine olhou e viu quando colocaram seu pai e seu tio em duas SUVs pretas e não
identificadas; suas pernas fraquejaram ao se deparar com a realidade.
– Ande. – ordenou o oficial, empurrando-o para frente.
Aos trancos, Carmine desceu os degraus e se contorceu no momento em que ele foi violentamente
empurrado e colocado ao lado da tia.
– Ei, calma aí, caralho! Não tá vendo que estou todo machucado?
– Precisa de um médico, filho? – disse um policial mais velho ao caminhar na direção dele.
Carmine cerrou os olhos e leu o que estava escrito em letras amarelas no colete do oficial: Agente
Especial do Departamento de Justiça dos EUA.
– Não sou seu filho. – o rapaz respondeu – E o que eu preciso é que me deixem em paz!
– Um pouco de paciência seria ótimo, rapaz. Sou o Agente Especial Donald Cerone, chefe da
divisão de crimes organizados.
Carmine ergueu uma sobrancelha ao ouvir o sobrenome italiano.
– Cerone? Deve ser uma nova gíria pra traidor.
O agente sorriu e fez um movimento para que o outro oficial lhe entregasse os pertences de
Carmine. Este suspirou ao vê-lo abrir sua carteira, sabendo de antemão o que iriam encontrar.
– Ah, mas o que é isso? – ele perguntou – Carmine Marcello DeMarco. Diga-me, filho, em que ano
você nasceu? Temos dois documentos diferentes aqui, e com datas diferentes.
– Vaffanculo.
– Carmine. – Celia o alertou – Pare de provocar o homem.
O agente Cerone apenas riu.
Uma agente do sexo feminino libertou Celia de suas algemas e deu a ela um telefone celular para
que ligasse para os advogados. Eles também lhe entregaram a documentação, explicando o que
estavam fazendo. Tess e Dominic foram libertados. Carmine tentou se manter o mais calmo possível,
mas sua paciência estava por um fio.
– Ei, não vai tirar as minhas algemas também? – ele perguntou – Isso é pura sacanagem, Cerone.
O agente ignorou os pedidos de Carmine e começou a interrogá-lo ali mesmo, mas o rapaz o
ignorou, recusando-se a dizer uma só palavra. Com dores, ele mudava constantemente de posição e,
ao fazê-lo, vários agentes se mobilizavam, imaginando que ele tentaria escapar.
E, se pudesse correr, ele certamente o faria.
Os oficiais trouxeram caixas e sacos de dentro da casa, todos etiquetados como evidências.
Carmine se apoiou na parede com os cotovelos e passou a olhar para o chão. Logo um agente o puxou
e o colocou de pé novamente.
O agente Cerone balançou a cabeça e disse:
– Leve-o para a central.
– Por quê? – Carmine perguntou – Eu não fiz nada, caralho!
O mesmo sorriso retornou aos lábios do agente.
– Foi um grande prazer, Carmine Marcello DeMarco. Tenho certeza de que voltaremos a nos
encontrar.

Quando Haven recobrou a consciência pela segunda vez, ela sentiu a luz do sol passando pelos
buracos ao redor do ventilador. Tentou evitar a dor que sentia enquanto olhava para o lado e via a
mesma mulher de antes.
– Bom dia, minha linda garota.
Mais uma vez todos pararam de falar e se voltaram para ela. O coração da jovem acelerou ao
identificar Nunzio. Com a luz do dia, ela podia ver que ele tinha um curativo na face.
– Ah, então a Bela Adormecida está acordada? – disse um homem ao se levantar de uma das
cadeiras. Ele era alto e musculoso; seu rosto tinha linhas bem definidas, como se tivesse sido
esculpido numa rocha. Os cabelos eram praticamente grisalhos e seu nariz, grande demais para o
rosto. Ele também tinha um forte sotaque.
Nunzio deu risada
– E nem precisou de um beijo de seu príncipe para acordar.
– Como se sente? – perguntou o homem, ignorando o comentário de Nunzio. Ele puxou uma cadeira
e se sentou de frente para Haven. Ela pôde ver as rugas em seu rosto – Consegue falar, Princzessa?
Ela não compreendeu a palavra e franziu as sobrancelhas.
– Ah, está confusa? Sente-se mais confortável com os italianos. Nunzy, qual é a palavra?
– Principessa.
– Ah, essa você conhece, não é? – ele disse, erguendo as sobrancelhas e esperando alguma
resposta. Haven acenou, mas sentiu dores no pescoço – Está sentindo alguma dor? Ei, você pode
falar. Somos amigos.
Ela o olhou sem acreditar no que dizia, e a mulher deu risada.
– Não acho que ela acredite em você, Papa.
– É o que parece. – ele respondeu, olhando novamente para ela com curiosidade – Mas também
não posso te culpar. Você não deveria mesmo confiar nas pessoas, em especial naquelas com as quais
tem andado; eu jamais a enganarei como eles.
A voz de Haven parecia rouca.
– Do que você está falando?
– Ah, ela fala! – sua expressão dura deu lugar a entusiasmo – O que estou dizendo é que aqueles
seus amigos italianos não foram honestos com você, tampouco a trataram com justiça, Principessa.
O sujeito a deixou confusa.
– Por que você fica me chamando desse jeito?
– Você prefere que eu a chame pelo seu nome de escrava?
– Eu, ah… – Será que preferia? – Eu não sei.
Ele riu.
– Não posso acreditar que você ainda não saiba.
– Eu te disse. – Nunzio interrompeu – Ela não faz ideia.
O homem se inclinou na direção dela e juntou as duas mãos à sua frente. Haven se contraiu o mais
que conseguiu, pressionando as costas no canto. A proximidade daquele sujeito era assustadora.
– É provável que esteja imaginando o que faz aqui. – ele disse, em tom sério – Eu serei franco com
você. Não desejo machucá-la, mas o farei se me forçar; portanto, só lhe peço que coopere. Sei que é
uma guerreira, considerando que já feriu meu filho duas vezes.
Ela o olhou quando ele se virou para Nunzio. Filho?
– Bem, acho que deveria explicar. – ele disse – Meu nome é Ivan Volkov e já conheço os DeMarco
há muitos anos. Vincent era uma criança quando nos vimos pela primeira vez. Era um idiota
pretensioso, bem parecido com o que ouço dizer sobre seu filho mais novo.
Ele riu, assim como Nunzio, e Haven sentiu lágrimas se formarem em seus olhos ao ouvir aquela
menção ao nome de Carmine.
– Será que toquei no seu ponto fraco, Principessa? – ele perguntou – Ouvi dizer que você se
importa bastante com o garoto. Seria uma pena que algo acontecesse a ele, não acha? Então, vamos
esperar que não tenhamos de chegar a esse ponto.
– Não. – ela sussurrou – Por favor, não…
– Não quero machucá-lo. Aliás, se a faz se sentir melhor, não ouvi nada sobre a morte do jovem,
portanto, provavelmente ele está bem.
A voz dele a assustava e, embora tentasse segurar as lágrimas, aquilo foi demais para Haven.
– Ah, não chore. – ele esticou a mão, mas ela se contraiu. O homem abaixou a mão sem tocá-la –
Hum, onde é que eu estava mesmo?
– Você estava falando do quão idiota e arrogante é o DeMarco. – Nunzio disse.
– Ah, claro. Isso foi antes de ele encontrar a esposa, é claro. Uma tragédia o que aconteceu com
ela. Acho que deveria me sentir culpado, mas foi culpa dela. – ele balançou afirmativamente a
cabeça – Aquela cadela intrometida.
– Foi você? Você a matou?
– Acho que podemos dizer que conduzi aquela bela sinfonia.
– Não entendo. – disse Haven – O que tenho a ver com tudo isso?
– Você tem o poder de derrotar meu inimigo, e é exatamente isso o que vai fazer.
Ela ficou apreensiva e, de repente, lembrou-se das palavras que Carmine lhe dissera há semanas.
Já nasci com inimigos. Só o meu sobrenome já pesa o suficiente.
– Eu preparei todo o terreno ao redor de Chicago, assumindo os negócios. – ele continuou –
Acabamos com praticamente toda a concorrência, exceto os italianos. As pessoas são leais a eles, e
eles já se mostraram poderosos. Não gosto que me digam onde posso ou não entrar. Já consegui me
infiltrar aos poucos e trazer alguns deles para o nosso lado, mas preciso de algo maior, de alguém
cuja posição seja mais elevada. Preciso chegar até os cabeças, e Nunzy arrumou um jeito. Até agora
eles se mantiveram unidos, mas agora as coisas são diferentes. Agora eu tenho você.
– Eu? Mas eu sou apenas… Não sou ninguém…
– Ah, você definitivamente é alguém. – ele insistiu – Você é o meu bilhete premiado. Se eu tivesse
sequestrado o rapaz, os italianos apareceriam aqui armados até os dentes. Mas com você as coisas
mudam. Salvatore não terá problemas em vê-la desaparecer, afinal, as complicações estariam
removidas, mas os outros não desistirão. E não há nada que eu aprecie mais que vê-los lutando uns
contra os outros. E quando o jovem DeMarco exigir que algo seja feito, alguém finalmente dirá ao
padrinho dele a verdade sobre quem você é, imaginando que Salvatore irá querer ajudar.
Ivan caiu na gargalhada, como se aquilo fosse a coisa mais engraçada que já tivesse dito.
– Quem sou eu? – ela perguntou, arrependendo-se imediatamente de questionar, mas já era tarde
para voltar atrás.
– Estou tentando lhe dizer. Você é um tesouro escondido, aquele que Salvatore jamais imaginou
que poderia ser encontrado, mas eu a achei. – ele disse, esticando a mão e fazendo um X na testa da
jovem com seu dedo áspero. – Quando a poeira abaixar e eles já tiverem se matado uns aos outros,
tudo ficará em minhas mãos… inclusive você.
Ele finalmente se levantou e se voltou para a mulher loira.
– Dê à jovem um pouco de água e algo para comer, Natalia. E a deixe descansar. Você e seu irmão
ficarão de vigia esta noite.

Haven se manteve o mais imóvel possível. Seus olhos arregalados acompanharam enquanto todos
saíram, deixando-a sozinha com Nunzio. Ele caminhou até ela, se ajoelhou e colocou a mão em seu
joelho.
Ela tentou controlar o calafrio enquanto a mão dele subia por sua perna, repousando sobre sua
coxa. Nunzio a apertou com força, deixando marcas em sua pele e ela se debateu conforme ele foi se
inclinando sobre ela. Aproximando os lábios do ouvido da jovem, ele perguntou.
– Sentiu minha falta?
Um frio passou pela espinha da jovem quando o sujeito enfiou a língua na orelha dela e começou a
lambê-la. Em pânico, ela o empurrou com força. Ele se desequilibrou, mas conseguiu se erguer e dar
alguns passos para trás. Quando tentou reagir, ela ergueu a perna e chutou-lhe a virilha. Ele tentou se
curvar sobre a menina, mas ela se colocou de pé, um pouco tonta por causa do movimento repentino,
e tentou correr para a porta de metal, mas não conseguiu ir muito longe. Nunzio a agarrou por trás.
– Gosto quando você luta. – disse Nunzio, sem fôlego. Ela gritou por ajuda enquanto ele a
arrastava pelo quarto, pegando um rolo de fita de cima da mesa de jogos.
Ela balançou negativamente a cabeça ao ver aquilo.
– Não!
Ele sorriu e retrucou.
– Sim.
A jovem tentou se livrar dele, empurrando-o, mas ele a segurou pelo pulso e a puxou de volta. Ela
sentiu uma forte dor no ombro por causa da força por ele empregada e tudo escureceu. Ele a atirou
sobre o colchão e a prendeu com o corpo.
Ela cravou suas unhas no rosto dele, puxando o curativo e arrancando os pontos que estavam sob a
bandagem. Sangue começou a escorrer do ferimento e atingiu o braço dela.
Erguendo o punho, Nunzio desferiu um golpe forte no rosto dela, que ficou completamente zonza.
Ele então aproveitou para cortar um pedaço da fita e cobrir a boca da jovem. Depois de abafar os
gritos, ele a deitou de bruços. A dor irradiava por todo seu corpo à medida que ele forçava os braços
dela para trás, prendendo seus braços e tornozelos. Ele então passou a mão no rosto e olhou para o
sangue que escorria, antes de sair irritado.
Natalia retornou com comida e se sentou no colchão ao lado dela. Ela a desamarrou e gentilmente
puxou a fita que cobria sua boca, alimentando-a até que Haven recusasse. O estômago da garota se
contraiu quando Natalia tocou em sua cabeça e disse.
– Você não deveria deixá-lo zangado. Isso não é muito inteligente de sua parte.
No final, Haven acabou desmaiando de exaustão, apenas para acordar mais tarde com Ivan
ajoelhado de frente para ela.
– Pensei que ia ser boazinha, Principessa.
– Eu, ah, ele ia me….
– Não preciso dos detalhes. – ele disse – Só quero cooperação.
Antes que ela pudesse dizer qualquer outra coisa, ele lhe aplicou outra injeção.
– Assim será mais fácil.

As celas na Cook County Jail pareciam pequenos currais superlotados separados por telas de fios
de aço. O cheiro azedo e pútrido dentro delas já era suficiente para queimar as narinas. Carmine
ficou sentado num canto com a cabeça baixa, cercado por dezenas de assassinos, viciados e ladrões.
Muitos brigavam entre si; havia rixas entre detentos de gangues rivais. Já no limite, ele tentava se
manter forte, mas estava bem perto de perder o controle.
A noite já havia caído quando eles o ficharam, então o rapaz foi levado para uma sala pequena e se
sentou de frente para uma mulher que lhe fez várias perguntas. Ele não tinha a menor vontade de
respondê-las, então restringiu-se ao básico, como nome e idade. Quando ela perguntou a ele como se
sentia e se tinha desejos suicidas, ele permaneceu em silêncio.
O amor de sua vida desaparecera, assim como qualquer possibilidade que ele tivesse de ajudá-la.
Em vez de estar nas ruas procurando por ela, via-se preso naquela sala com aquela vaca curiosa lhe
perguntado se estava sentindo raiva. É claro que ele estava com raiva. Não deveria estar?
Ela desistiu e o mandou sair, depois de escrever um número de identificação com tinta permanente
em seu braço, tirar suas digitais e fotos. Ele olhou o tempo todo para o número, sentindo-se péssimo.
Agora eles o haviam despido do próprio nome e dado a ele apenas um número: 2006-0903201.
Um carcereiro fotografou as tatuagens de Carmine enquanto ele continuava a olhar para o número.
– Você é afiliado a alguma gangue?
– Não.
– Tem certeza? A LCN é considerada uma gangue.
– LCN?
– Você sabe do que estou falando. A Máfia.
Carmine o encarou e disse:
– Não existe Máfia nenhuma.
O oficial escreveu algo na ficha dele antes de enviá-lo para que fosse despido e revistado. No
momento em que vestiu o macacão laranja para ser enviado para a custódia, ele imaginou que
estivesse definitivamente perdido.
Eles o levaram para a divisão nove, colocando-o numa pequena cela no andar de cima. O lugar era
fechado e sufocante. Não havia barras nem janelas. Apenas uma porta de aço espessa, toda entalhada
com palavras. Tudo que ele tinha ali era uma lâmpada e um cobertor em frangalhos. O colchão
parecia massa de pizza, de tão fino.
Horas se passaram enquanto Carmine ficou deitado ali, olhando para o teto. Ele ouvia outros
detentos gritarem ao seu redor, assim como sirenes que disparavam e faziam os guardas passarem
correndo na frente da porta. Mal conseguiu pregar os olhos; passou a noite se virando de um lado
para o outro, em profunda agonia.
Na manhã seguinte, o carcereiro trouxe uma bandeja com o café da manhã, mas ele se recusou a
comer aquela comida e exigiu a presença de seu advogado. O mesmo se repetiu na hora do almoço e,
mais uma vez, ele ignorou a comida e teve seu pedido também ignorado. Ele já estava furioso na hora
do jantar; exausto, não parava de andar de um lado ao outro da cela. Quando ouviu alguém se
aproximar, já esperava que outra bandeja fosse enfiada pela abertura da cela; entretanto, para sua
surpresa, a porta foi destrancada e um agente correcional lhe disse:
– Você tem uma visita.
Outro oficial o revistou e algemou antes de levá-lo até uma sala fechada. Um homem atarracado e
careca o esperava sentado à mesa, com uma maleta aberta à sua frente. Ele olhou para Carmine no
momento em que ele entrou e fez um movimento para que se sentasse. Os oficiais se certificaram de
que Carmine estava preso antes de deixá-los sozinhos.
– Meu nome é Rocco Borza, advogado. Celia Moretti me contratou para defendê-lo. – em seguida
ele retirou alguns documentos da maleta e os colocou sobre a mesa, com uma caneta – Preciso que
você assine isso, concordando que eu o represente, e tudo o que me disser será confidencial.
Carmine olhou os papéis e, meio sem jeito, assinou no campo designado o melhor que pôde, uma
vez que suas mãos estavam presas com algemas.
– Em primeiro lugar, preciso saber se você falou com alguém. – ele disse, recolocando os papéis
em sua maleta – Eles tentaram interrogá-lo?
– Não. – ele respondeu – Também não se deram ao trabalho de me explicar por que estou aqui.
– Eles o enquadraram por posse de documento falsificado. – ele disse – É um delito de nível 4,
mas facilmente derrubado se alegarmos mau comportamento. Você já deveria ter uma audiência
marcada em poucas horas e até ter sido solto sob fiança.
– Então o que é que estou fazendo naquela bosta de cela?
– Eles têm o direito de detê-lo por mais tempo se quiserem. – respondeu Borza – Mas, se quer a
verdade, está sendo mantido aqui por ser filho de Vincenzo Roman DeMarco, sobrinho de Corrado
Alphonse Moretti e afilhado de Salvatore Gerardo Capozzi. Eu diria que é impossível alguém se
tornar mais notório do que isso.
– Isso é baboseira. – disse Carmine – Não tenho nada a ver com os negócios deles.
– É o que chamam de culpado por associação. – respondeu o advogado – Tirá-lo daqui é minha
prioridade número um agora. Você tem sorte, pois isso não levará mais que alguns dias.
– Dias? Então eu vou ter que ficar nesse lugar ainda por alguns dias?
– Infelizmente sim. Eu solicitarei uma audiência, mas irá demorar um pouco para colocá-lo na
frente de um juiz.
Depois dessas palavras, Borza saiu da sala e os oficiais revistaram Carmine mais uma vez, antes
de levá-lo de volta para sua cela, onde outra bandeja de comida o aguardava. Ele acabou se
rendendo à fome, pegando o recipiente e sentando-se naquele projeto de cama.

O segundo dia na prisão foi bastante similar ao primeiro. No final da tarde, um oficial veio até a
cela para dizer a ele que tinha outra visita. Ele logo imaginou que fosse Borza com boas notícias, e
ficou aliviado. Porém, o rosto familiar que o esperava era de outra pessoa.
– Carmine DeMarco. – disse o Agente Especial Cerone – Sente-se.
– Não tenho nada a dizer a você.
– Mas nem sabe o que estou fazendo aqui.
Ele soltou um riso seco.
– Nem quero saber. Não tenho nada a dizer.
– Tudo bem. Você conhece seus direitos e pode retornar para sua cela. – Carmine já se preparava
para sair quando o agente deu um forte suspiro – Só queria conversar sobre uma garota chamada
Haven.
O coração de Carmine bateu mais forte quando ele disse aquele nome; a dor em seu peito ficou
mais intensa.
– Por quê?
– O nome dela apareceu algumas vezes durante nossa investigação. – ele respondeu – Tentamos
localizá-la, mas praticamente não há evidência de que ela sequer exista. É como se ela fosse um
fantasma.
Carmine hesitou diante daquela palavra.
– E por que está perguntando isso pra mim?
– Imaginei que se você me ajudasse eu também poderia ajudá-lo.
– Não preciso de sua ajuda. – ele disse – Não há nada que eu possa te dizer.
– Então, você não pode me dizer quem ela é?
– Não. – ele respondeu, apesar de estar desesperado para poder contar ao oficial.
– Estranho. Fizemos uma pequena viagem à sua cidade ontem e as pessoas de lá tinham a nítida
impressão de que ela era sua namorada. Veja, eu até encontrei isso quando estive lá – ele disse,
retirando de sua valise uma folha de papel. As pernas do jovem quase se dobraram ao ver que se
tratava do desenho que Haven fizera para ele, com o nome dela escrito claramente num canto – Isso
refresca sua memória?
– Vai se foder.
– Onde ela está? – Cerone perguntou – Ela não está em Durante e tampouco estava com você em
Chicago. Parece que o único rapaz com quem essa jovem conversa é Nicholas Barlow, que, por
coincidência, também desapareceu.
– Não sei do que está falando.
O agente não se deteve.
– Algo aconteceu com sua namorada? Você pode me dizer. Estou aqui para ajudar…
– Você não está aqui pra me ajudar. Não dá a mínima pra mim.
– Ela fugiu com esse tal Nicholas? – ele perguntou – Ela o escolheu em vez de você?
– Isso é ridículo.
– Ela está morta?
Carmine se contraiu diante daquela afirmação.
– Não.
– E quanto a Nicholas, ele está morto?
– Está me acusando de alguma coisa?
Ele negou com a cabeça.
– Como já lhe disse, só quero ajudá-lo.
– Não tem nada que possa fazer por mim.
– Se ela estiver desaparecida ou machucada…
– Quero meu advogado.
– Muito bem. – Cerone enfiou o desenho novamente em sua valise – Sabe garoto, a verdade
sempre aparece. No final do dia, a verdade é o que liberta.
Capítulo 48

O tempo passava como uma forte névoa; caracóis de fumaça se formavam ao redor da jovem. Ela
acordava e encontrava alguma comida. Então, comia o que conseguia segurar no estômago e voltava
a dormir. Jen apareceu algumas vezes ao lado de Nunzio, para checar o estado de saúde da moça,
mas não disse uma única palavra. Na verdade, sempre havia pessoas entrando e saindo daquele
prédio, mas ninguém dava a mínima para ela, exceto Natalia. Ela lhe trazia roupas limpas e oferecia
algumas palavras de encorajamento, ajudando-a a ir ao banheiro sempre que precisava.
Cada dia se tornava pior. As forças de Haven diminuíam e seu corpo passou a rejeitar tudo que lhe
ofereciam. Ela vomitava muito toda vez que tentava engolir a comida; sua pele estava pálida e suada.
Sua cabeça latejava e era difícil conseguir se concentrar; tudo parecia nebuloso.
Foi então que ela começou a ter alucinações, a ouvir vozes e a ver rostos que ela não tinha certeza
se realmente existiam ou estavam lá. Os pesadelos se tornaram fortes demais, repletos de memórias
em repetições inconsistentes. DeMarco a perseguia com um olhar de puro ódio, como o que ela
testemunhara aquele dia no quarto. Ela podia sentir a arma pressionada contra a garganta. Seu peito
vibrava e ela gritava de pavor.
Os momentos de lucidez tornaram-se cada vez mais raros. Pessoas que não lhe pareciam familiar
ficavam de pé à frente dela, dizendo coisas estranhas, que não faziam nenhum sentido. Aquele mostro
voltou a aparecer; o rosto disforme parecia estar derretendo. Ele não dizia nada, apenas a olhava
enquanto a jovem sentia suas entranhas queimarem.

O Centro Correcional Metropolitano era uma construção triangular no centro de Chicago; não
havia cerca de arame farpado, nem guardas armados em torres de vigilância. Com sua superfície
plana e janelas verticais estreitas, a frente do prédio fazia lembrar um cartão de ponto perfurado. O
lugar parecia inofensivo, comum, apesar de abrigar algumas das pessoas mais perigosas do mundo.
Vincent estava sentado em uma pequena cela no vigésimo andar, bem perto de onde Corrado estava
preso. A neve na janela impedia a visão do mundo exterior, então, tudo o que tinha para olhar eram as
paredes cinzas ao seu redor.
Todos os dias eram iguais: três refeições, contagens frequentes, sirenes disparando ocasionalmente
e pouca conversa. Os guardas observavam cada movimento daqueles homens; chamadas telefônicas e
visitas eram monitoradas, portanto, nenhum deles poderia se arriscar a dizer nada.
Certa manhã, ele estava sentado na cama, logo depois da contagem, quando alguns carcereiros se
aproximaram. Eles colocaram algemas e o levaram para uma sala onde o agente Cerone já o
esperava sentado à mesa.
– Vincenzo DeMarco. – ele disse, fazendo um movimento em direção a outra cadeira – Sente-se.
Vincent se sentou, grato por ter saído um pouco daquela cela sombria. Os oficiais tentaram prendê-
lo à mesa, mas o agente os interrompeu.
– Isso é desnecessário. Somos ambos homens civilizados.
Os oficiais o olharam com certa descrença, mas saíram da sala, deixando Vincent solto. O agente
cruzou as mãos sobre a mesa.
– Provavelmente você está se perguntando quem…
Vincent o interrompeu.
– Doutor.
O sorriso no rosto de Cerone esvaneceu.
– Doutor?
– E, a menos que seja minha mãe ou meu padre, não me chame de Vincenzo. É doutor Vincent
DeMarco.
O agente olhou para ele antes de balançar a cabeça.
– Certo. E eu sou o Agente Especial Donald Cerone. Trabalho para o Departamento de Justiça…
Sou chefe do setor de crime organizado.
Exasperado, Vincent soltou um suspiro.
– Não tenho nada a lhe dizer.
– É, eu imaginei isso. Você não teria ido tão longe como foi se não fosse bastante astuto. Mas, para
falar a verdade, não estou aqui para discutir seu caso. Eu só esperava que pudéssemos discutir algo
que encontramos. – o agente enfiou a mão em sua valise e retirou de lá um caderno preto – Você o
reconhece?
Vincent não respondeu, demonstrando que não tinha qualquer intenção de dizer mais nada àquele
homem.
– Bem, assumirei a falta de resposta como um não. – disse o agente – Encontramos isso em um
quarto, no terceiro andar de sua residência.
Ele o abriu e Vincent pôde ver que as páginas estavam cobertas por letras juvenis e pouco
legíveis. Logo percebeu que aquilo pertencia a Haven. Ficou tenso e preocupado com o tipo de
informação que poderia estar contida naquelas páginas, mas não se deixou abalar.
– A coisa toda é muito interessante, mas algumas páginas me pareceram particularmente
intrigantes. Pensei em compartilhar o conteúdo com o senhor. – então ele abriu o caderno numa
página previamente marcada e começou a deslizar o dedo à medida que lia o que estava escrito em
voz alta.

Katrina às vezes me dizia que me mataria durante a noite. Ela dizia que eu deveria manter um olho sempre aberto
se quisesse viver. Eu fiquei acordada aquelas noites, para o caso de ela estar falando a verdade. Não tinha medo de
morrer, mas não queria deixar minha mãe sozinha. Não queria que o mestre Michael a machucasse ainda mais, e
achei que Katrina a mataria logo depois de me matar.

O agente foi para outra página, lendo outro trecho.

Chamei o mestre Michael de pai uma vez que ele visitou o rancho. Eu ouvi alguém dizer que ele era meu pai, mas
ele ficou furioso e me bateu. Mama implorou que não me matasse. Ele parou porque Frankie interrompeu. Frankie
bateu no Michael por causa disso, e eu me lembro de pensar que não éramos as únicas pessoas que eram punidas
naquele lugar. Eu devia ter ficado assustada, mas aquilo me fez imaginar que talvez Frankie não me odiasse tanto.
Ele bateu no filho, mas ainda amava ele, certo?

O agente Cerone encarou Vincent depois que terminou.


– Os Antonelli? Que tristeza que eles tenham morrido.
Vincent manteve-se imóvel, sem dar qualquer indicação de que estivesse em pânico por dentro.
Parece que as coisas estavam se desenrolando rapidamente.
– E que tal mais um trecho? – perguntou o agente Cerone, abrindo o caderno em outra página –
Imagino que achará essa parte especialmente fascinante.

Nunca esquecerei aquele olhar. Eu só estava tentando fazer o que ele me mandou, pois não queria ficar em
apuros por não escutar ele. Pensei que ele fosse me matar, mas ele fez algo ainda pior. Ele me deixou sozinha no
escuro. Ele era bom para mim, e eu não queria desapontar ele. Fico sonhando com o olhar em seu rosto no momento
em que ele se transformou num monstro. Gostaria de poder esquecer. Gostaria que o doutor DeMarco gostasse de
mim.

Vincent não mudou sua expressão, mas aquelas palavras o tocaram profundamente. O agente fechou
o caderno, balançando a cabeça.
– O que fez com a pobre garota? Por que não gosta dela?
– Ler o que está aí é invasão de privacidade. – respondeu Vincent – Conheço a lei e estou ciente
do que pode ou não ser confiscado com um mandado de busca e apreensão. E o diário de uma jovem
não faz parte dessa lista.
O agente especial Cerone guardou o diário em sua valise.
– Como eu disse, muito astuto. Bem, de qualquer modo, eu adoraria devolvê-lo. Sabe onde eu
poderia encontrá-la?
– Gostaria de conversar com meu advogado.
Cerone empurrou a cadeira para trás.
– Tenho certeza de que gostaria, Vincenzo. Sabe, é muito bom poder encontrá-lo pessoalmente
depois de passar tantos meses o monitorando a distância. E se decidir que quer conversar comigo,
acho que saberá como me chamar.

O macacão laranja tornava-se ainda mais vivo sob a luz fluorescente do tribunal cheio. Carmine
escutou atentamente enquanto seu advogado argumentava que não existia motivo para que o
mantivessem encarcerado. O juiz parecia entediado, e, assim que o doutor Borza terminou de falar,
ordenou que Carmine fosse liberado e que as acusações fossem retiradas.
Ele saiu da cadeia e logo se deparou com Celia esperando por ele.
– Obrigada por me tirar daqui, tia.
– Para começar, você nem deveria ter entrado aí. Vamos torcer para que o doutor Borza tenha a
mesma sorte com Vincent e Corrado.
– Como eles estão? Merda, onde eles estão?
– Eles estão detidos no Centro Correcional Metropolitano. Ambos, entretanto, têm audiências
marcadas na semana que vem, e os advogados estão confiantes de que poderão tirá-los de lá.
Carmine fez um movimento com a cabeça.
– Mais uma semana?
– Infelizmente.
Um silêncio de muita tensão se manteve ao longo do trajeto até a casa dos Moretti. Foi aí que
Carmine começou a pensar. Não seria nada fácil, e ele teria de se arriscar muito se quisesse salvar
Haven. Ele sempre dissera que sacrificaria a própria vida por ela, e era exatamente isso o que teria
de fazer agora.
Celia estacionou na frente da casa, mas Carmine permaneceu no carro. Quando percebeu que ele
não se movia, ela perguntou:
– Não vai entrar?
Ele podia sentir as lágrimas se formando em seus olhos.
– Não posso, tia. Preciso ir a um lugar.
– Carmine…
– Ouça, eu já cometi erros, mas jamais faria coisa alguma para machucar um de vocês.
– Muito bem. – ela disse, entregando-lhe as chaves – Mas tenha muito cuidado, criança.

Carmine foi direto para Lincoln Park e estacionou na frente da enorme mansão que ficava no topo
de uma colina. Ele respirou fundo e seguiu direto para a varanda, com os nervos à flor da pele.
Ele tocou a campainha e ouviu sons dentro da casa. A porta logo foi aberta. Na frente dele parou
Teresa Capozzi.
– Carmine DeMarco? Mas que surpresa! Pensei que estivesse preso com os demais.
– Eles me soltaram.
Ela levou a taça de vinho aos lábios e engoliu a bebida.
– Muito bem, então. Tenho certeza de que Salvatore ficará animado em vê-lo. Ele está lá em cima,
com Carlo. Você o conhece? Um homem muito amável. Segunda porta à direita.
Carmine passou por ela sem nem responder e subiu as escadas. Ele hesitou por um momento diante
da porta fechada, enquanto escutava uma discussão do lado de dentro. Não conseguia ouvir o que
estava sendo dito, mas Sal parecia furioso. Carmine reconsiderou por um instante, sem ter certeza de
como faria aquilo que havia planejado, mas, mesmo em dúvida, se forçou a bater. Ele não tinha
tempo a perder.
A briga cessou imediatamente. A porta se abriu e um Salvatore nitidamente irritado apareceu à sua
frente. O homem ficou petrificado e surpreso.
– Principe! Pensei que fosse a insuportável da minha mulher batendo e me interrompendo mais
uma vez. Entre.
Carmine passou por ele e entrou na sala enorme, encontrando um homem sentado numa cadeira na
lateral. O sujeito se levantou e se voltou para ele. Carmine ficou intimidado diante do rosto
desfigurado. O rapaz teve uma sensação estranha, no momento em que um frio percorreu sua coluna.
Muito amável? Carmine não pensava assim.
Carlo saiu sem dizer uma única palavra e Salvatore fechou a porta.
– Mas a que eu devo o prazer de sua visita? – ele perguntou, sentando-se à sua mesa, enquanto
Carmine se acomodava numa poltrona vazia.
– Acho que sabe muito bem por que estou aqui, então é melhor deixarmos essa baboseira de lado.
A expressão de Salvatore mudou.
– Sempre foi incisivo, garoto. A maioria das pessoas jamais ousaria vir até mim desse modo, mas
você tem coragem. Esse tipo de compromisso é raro nos dias de hoje.
– Preciso encontrá-la. – disse Carmine – Não importa como.
– Eu respeito isso. – respondeu Salvatore, pegando um charuto, acendendo-o e dando uma longa
tragada antes de continuar – E eu gostaria de poder ajudá-lo.
– Você gostaria de poder me ajudar? O que isso quer dizer?
– Quer dizer que por mais trágica que seja essa situação, tenho outros problemas mais sérios a
resolver nesse instante. Meus homens estão se vendendo mais rápido do que consigo contar. Tenho
homens sendo presos, suas casas sendo invadidas, propriedades confiscadas. Cada dia é uma
novidade. Não poderia dar conta de mais nada.
Carmine o encarou.
– Mas é da minha namorada de que estamos falando. Ela foi sequestrada por seus próprios homens
e você está me dizendo que não pode fazer nada?
– Posso lhe garantir que se existe alguém que deseja localizar Squint, essa pessoa sou eu. –
retrucou Sal – Tenho pessoas à procura dele e, quando for encontrado, enfrentará todas as
consequências. Mas não tenho nem os recursos, nem uma justificativa para me concentrar
exclusivamente nele quando toda a organização está sendo atacada. Eu tenho empatia por você,
Principe, porque já perdi pessoas que amava, mas Haven nada significa para mim.
Aquelas foram palavras duras de ouvir. O modo como elas foram pronunciadas, de maneira rude e
indiferente, fez o garoto explodir.
– Mas deveria significar. Ela faz parte da família!
Sal o olhou com escárnio.
– E como você chegou a essa conclusão?
Carmine hesitou por um segundo, mas precisava se proteger.
– Pensei que todos fôssemos uma família. Você fala em lealdade e compromisso, mas onde estão
essas qualidades em você? Também não significa nada pra você?
– Ei, você decidiu não fazer parte da minha família. – retrucou Salvatore – Sempre sentirei algo
especial por você, meu jovem, mas precisa compreender que a organização, la famiglia, é a minha
verdadeira família. Respeito sua escolha de não se envolver, mas isso é tudo o que tenho. Do mesmo
modo como se sacrificará para salvar aquilo que importa para você, farei o que for necessário para
salvar o que importa para mim. Temos o mesmo tipo de lealdade, apenas em relação a coisas
diferentes.
– Então, é assim?
– É, é assim.
– Então, é isso que você exigirá de mim. Você me forçará a…
– Não o forçarei a fazer nada. – interrompeu Salvatore – Você pode sair agora por essa porta, e eu
lhe desejarei toda a sorte do mundo lá fora, mas, se quer minha ajuda, se está mesmo me pedindo que
o auxilie, enfim, se está me pedindo lealdade, acho justo que você ofereça o mesmo em troca.
O ódio e o sentimento de coração partido se mesclaram naquele momento, mas não demorou muito
para que Carmine respondesse. No fundo, ele já sabia qual seria a resposta. Parte dele já sabia desde
o momento em que colocara os olhos naquela jovem na cozinha de sua casa.
– Muito bem. – ele respondeu – Que assim seja então.
Salvatore o encarou com seriedade.
– Tem certeza do que está fazendo?
– Ela é a única coisa sobre a qual já tive certeza em toda minha vida.
– Ótimo, então. – respondeu Salvatore, estendendo a mão. Carmine hesitou antes de beijar a mão
do padrinho em demonstração de obediência – Farei algumas ligações e verei o que posso fazer por
você, Principe.
Sonhos vívidos se transformavam em alucinações, lembranças se misturavam a pesadelos. Tudo
aquilo ardia em Haven como se ela estivesse em chamas. Tudo se fundia em lava. Ela tentava se
manter firme e lutava para sobreviver. Porém, cada vez mais a escuridão a tragava, cada vez mais
fundo. Até que enfim ela acabou se entregando. Era fim da tarde quando ela olhou para frente e viu
um anjo, que a envolveu por inteiro.
Haven tinha certeza de que estava morta, uma vez que, bem à sua frente estava um anjo em roupas
brancas.
Maura a pegou pela mão e a ajudou a se levantar dentro do galpão imundo. Ambas caminharam
juntas e as paredes foram se dissipando enquanto elas adentravam um campo de flores. A luz do sol
as iluminava, e Haven percebeu que elas estavam na clareira em Durante.
– Carmine me trouxe aqui. – ela disse – Acho que costumava vir aqui quando estava triste.
– Eu sei. – respondeu Maura – Estou sempre ao lado dele.
– Está?
– Claro. Sou a mãe dele; as mães nunca abandonam seus filhos. Elas vivem dentro deles, em seus
corações. Carmine não consegue me ver, mas sei que ele sente minha presença o tempo todo.
Aquele pensamento confortou Haven.
– A senhora acha que ele está bem?
Maura sorriu.
– Tenho certeza de que ficará bem.
Haven continuou andando pelo campo e apanhou uma flor, um dente-de-leão, e o soprou. As
pequenas sementes se soltaram no ar e se multiplicaram, transformando-se em centenas de pontos que
bailavam ao seu redor.
– Minha mãe também está comigo?
– Sim. – respondeu Maura – Você não a sente? Ela está bem aí.
Haven se virou tão rápido que sua visão ficou embaralhada. Quando ela conseguiu recobrar o
foco, as sementes do dente-de-leão haviam se transformado em flocos de neve, que caíam do céu
como pedacinhos de algodão. Eles recobriam tudo formando uma grossa camada de neve,
prejudicando a visão de sua mãe, que estava a poucos metros de distância. Ela estava girando; o som
do seu riso envolveu Haven como se fosse um manto de amor. Por um momento, enquanto via sua
mãe dançar, ela esqueceu que nada daquilo era real. Ela se esqueceu de que sua mãe estava morta.
Ela se esqueceu de que também já deveria estar.
Bastou apenas um segundo para que tudo voltasse à sua mente e, quando ela piscou, a imagem de
sua mãe começou a desaparecer.
Em pânico, Haven correu em direção a ela, mas a neve ficou mais forte, cegando-a naquela
imensidão branca. Haven correu o mais que pôde; seu peito doía e suas pernas estavam fracas
demais. Entretanto, não parecia que ela estivesse chegando a lugar algum. Exausta, caiu no chão,
chorando e se vendo novamente em Blackburn. O solo escaldante do deserto queimava seus pés.
Depois de um momento, uma voz surgiu atrás dela; a tranquilizante familiaridade cessou suas
lágrimas e deixou sua pele toda arrepiada.
– Ela se foi. – disse Carmine – Sinto muito, beija-flor, mas ela não vai voltar.
Haven se virou, desesperada para vê-lo, mas em vez do verde profundo, tudo o que enxergou
foram os gélidos olhos azuis. O estômago de Haven se contorceu quando a número 33 a olhou. A
etiqueta ainda estava pendurada na roupa da jovem.
– Jamais desista de lutar. – ela disse – Eu não desisti.
– Mas você também se foi. – disse Haven – Eu vi. Frankie te matou bem na minha frente.
– Algumas coisas na vida são piores que a morte. – respondeu a número 33 – Se eu tivesse
sobrevivido naquele dia, tudo isso estaria acontecendo comigo. Ele acabou com a minha vida, mas
não matou meu espírito. Não permita que eles a destruam. Não deixe que eles vençam. Lute como
puder. É o único modo de se libertar.
De repente, Haven sentiu um puxão e foi como se tudo ficasse escuro. Alguém a chacoalhava com
firmeza e a dor começou a se espalhar pelo seu corpo. Ela se forçou a abrir os olhos, e conseguiu ver
Ivan. A voz dele parecia abafada, como se os ouvidos dela estivessem tapados.
– Qual é o código de segurança da casa dos DeMarco?
– O quê? – ela balbuciou, sem que nenhum som saísse de sua boca. Sua garganta queimava.
– O código de segurança da casa dos DeMarco. – ele repetiu. Se não quiser morrer de
desidratação, diga agora o que quero saber.
Ela virou a cabeça, desejando que ele desaparecesse.
– Vá embora.
A desobediência da jovem o deixou furioso. Ele puxou uma faca e segurou a mão dela, torcendo-a
violentamente.
– Diga-me o código, ou cortarei seu dedo.
Cada célula de seu corpo implorava por um alívio. Ela fechou os olhos. A imagem do doutor
DeMarco voltou a aparecer em sua mente. Ela podia perceber o ódio, mas já não sentia mais o pavor
quando ele pressionava a arma contra sua garganta. Deitada ali, em agonia, ela compreendia o modo
como ele próprio se sentira. Ela quase desejou que Vincent tivesse de fato puxado o gatilho.
– Faça o que quiser.

A noite já havia caído há horas, mas o tempo já não fazia diferença para Carmine. Podia ser dez da
noite, ou, quem sabe, meia-noite, mas aqueles eram apenas números para ele. Seu objetivo era seguir
em frente, até que já não conseguisse mais, mas então, se forçaria a continuar caminhando. Ele já
havia passado a fase de exaustão e estava prestes a sofrer um colapso mental. O jovem dormia
somente quando seu corpo desistia de lutar; períodos de blackout em meio a uma batalha incansável.
Carmine nada sabia sobre Giovanni, além do fato de que era siciliano e havia quebrado as regras.
Eles só se encontraram poucas vezes, e o sujeito nunca fora amigável, mas, de repente, Carmine
passara a respeitá-lo. Os dois estavam num pequeno escritório na modesta residência de tijolos,
olhando para um mapa de Chicago. Fazia tantas horas que estavam debruçados sobre aquilo que
Carmine já não conseguia enxergar as letras menores, e contava com Giovanni para manter as coisas
caminhando.
– Tem certeza de que é esse o sujeito? – perguntou Carmine, pegando a pequena foto – Ele parece
mais um avô comum.
– Tenho certeza absoluta. – respondeu Giovanni – E não se deixe enganar. Ivan Volkov é perigoso.
Carmine olhou para a foto novamente, tentando se concentrar. Ele se lembrou de seu pai ter
mencionado há alguns meses que a organização estava tendo problemas com os russos. Giovanni
tentara explicar aquilo mais de uma vez, mas suas palavras se perderam em algum lugar entre o forte
sotaque do sujeito e a mente exausta de Carmine.
Ele colocou a foto na mesa e voltou a olhar o mapa. Giovanni estava no notebook em busca de
endereços associados à família Volkov. O mapa estava todo rabiscado com anotações, círculos
aleatórios e palavras soltas.
Carmine olhou para tudo aquilo, sentindo-se sufocado.
– Pensei que o seu pai tivesse implantado um microchip na garota. – disse Giovanni – Por que não
conseguem localizá-la por meio dele?
– Nós tentamos – respondeu Carmine –, mas o chip não está funcionando.
– E o que isso significa?
Carmine olhou para Giovanni.
– Significa que ela provavelmente está debaixo d’água ou em uma construção sem janelas.
– Então, talvez devêssemos circular o Lago Michigan?
Aquelas palavras mexeram profundamente com o jovem.
– Eu me recuso a pensar nisso.
– É, também não acredito nisso. – disse Giovanni – Volkov não a sequestraria apenas para matá-la.
A boa notícia é que podemos riscar todos os lugares cheios de janelas.
– Mas isso ainda nos deixa com uma dezena de propriedades. – retrucou Carmine – Como saber
para qual delas devemos ir?
– Começamos pelo topo. – explicou Giovanni, apontando para um local na região norte da cidade
– Vamos varrer tudo até encontrá-la.
Frustrado, Carmine suspirou e passou as mãos no rosto.
– Por que está me ajudando, afinal? Todos os outros disseram que era perda de tempo; uma missão
suicida.
– Eles não compreendem. – disse Giovanni em voz baixa ao sentar-se ao lado de Carmine – Eu os
alertei de que os russos estavam planejando alguma coisa, mas ninguém me deu ouvidos. Os russos
invadiram nossas ruas, e Sal não fez nada para impedi-los. Eles assediaram nossa gente, mas
Salvatore continuou sem mexer um dedo. Então, eles começaram a jogar os italianos uns contra os
outros, mas ainda assim Sal não se mexeu. Agora eles sequestram a garota. E o que é que ele está
fazendo?
– Nada. – disse Carmine – Absolutamente nada.
Giovanni concordou com a cabeça.
– Se ninguém fizer nada, eles matarão toda a nossa gente. Mesmo que seja para salvar apenas um,
não posso me sentar e deixar que isso aconteça.

O dia da audiência chegava, e o nível de estresse de Vincent era altíssimo. Os delegados federais
levaram-nos, ele e Corrado, em carros separados até o prédio da Polícia Federal de Dirksen, que
ficava nas proximidades. A equipe de advogados já esperava pelos dois quando ambos entraram no
tribunal. Logo foram levados aos lugares designados para os acusados. Corrado parecia tranquilo e
confiante em seu terno preto Armani. Era o oposto de como se sentia DeMarco. Embora fosse um
alívio estar livre daquele uniforme laranja, a camisa totalmente abotoada quase o asfixiava.
A promotoria também parecia confiante; aquela atitude lânguida deixava Vincent mais inquieto.
– Meritíssimo Senhor Juiz, estamos falando aqui de corrupção, jogatina, extorsão, fraude e
conspiração para cometer assassinatos. Cada um dos réus enfrenta 35 acusações. Soltá-los nas ruas
seria como autorizá-los a continuar atuando em nossa comunidade. As evidências claramente
sugerem que nenhum dos dois pretende parar.
Quando os promotores terminaram de expor seu caso, os advogados citaram a Quarta Emenda,
mencionando violações e buscas não fundamentadas. Disseram que as evidências eram extremamente
frágeis. Não havia gravações em vídeo, nenhuma confissão, nenhum DNA. Tudo o que eles tinham
eram rumores partindo de indivíduos infames, mas isso não era o suficiente para afastar um homem
de sua vida. Rocco Borza prosseguiu em uma apresentação passional sobre como a Lei de Combate a
Organizações Corruptas e Influenciadas pelo Crime Organizado estava sendo usada para acusar e
constranger indivíduos inocentes. Ele também se referiu à injustiça que estava ocorrendo naquele
caso, em que seus clientes estavam sendo mantidos atrás das grades sem motivo. Foi difícil para
Vincent conter o riso. Ele era totalmente culpado, e o homem ao lado dele, Corrado, também não era
santo.
Depois de ouvir acusação e defesa, o juiz soltou um suspiro e disse:
– Embora a acusação esteja correta, a Quinta Emenda garante que ninguém seja privado de sua
vida, liberdade, propriedade sem que sejam submetidos aos devidos processos da lei. Neste país,
todos somos inocentes até que se prove o contrário, e é preciso que ambos os réus sejam
devidamente responsabilizados por seus crimes. Não se pode justificar a detenção sem a
possibilidade de fiança somente porque você acha que eles irão cometer um crime no futuro.
Portanto, o pedido de fiança para os dois réus está concedido. A fiança estipulada é de U$ 50 mil
dólares.
– Meritíssimo. – disse o promotor, colocando-se de pé – Pedimos que os réus entreguem seus
passaportes e que a nenhum deles seja permitido deixar o estado.
Borza interferiu novamente.
– Um dos meus clientes é um proeminente médico na Carolina do Norte, Meritíssimo, onde, aliás,
mantém residência fixa. Exigir que ele permanecesse em Illinois não seria justo.
– Ambos os réus entregarão seus passaportes. – o juiz ordenou – Caso o Doutor DeMarco prefira
retornar para casa, ele usará um dispositivo eletrônico de monitoramento.
Celia pagou o valor referente à fiança e ambos foram liberados. Já era tarde naquela noite quando
Vincent saiu pela porta da frente da cadeia para se encontrar com a irmã, encostada na lateral do
carro. Seu rosto parecia ter envelhecido uma década por conta da preocupação.
– Ei, maninho – ela forçou um sorriso no rosto –, você parece péssimo.
– Olhe quem está falando. – ele retrucou – Está começando a se parecer com a mamãe.
Ela riu sem graça.
– Isso foi um golpe baixo e doeu. Aliás, falando da mamãe, você deveria ligar. Ela está muito
preocupada com você.
– Ah, aquela mulher me detesta. – disse Vincent – Ela só deve estar preocupada com a
possibilidade de eu desgraçar publicamente o nome dos DeMarco.
– Ela não detesta você. Ela só tem um jeito esquisito de demonstrar seu amor. Tive de convencê-la
a não ligar para o Departamento de Justiça para se certificar de que sua cama não estivesse com a
parte dos pés virada para a porta, já que isso seria má sorte. Ela temia que sua alma desaparecesse
enquanto você dormia.
Apesar do estresse, Vincent ainda conseguiu sorrir.
– Deve ter sido por isso que tive a sorte de ser liberado hoje. A porta estava virada para o outro
lado.
As coisas ficaram mais tensas à medida que ambos seguiam em silêncio para a casa da irmã.
– Corrado também foi libertado?
– Sim. – ela respondeu – Ele saiu uma hora antes que você.
Vincent se voltou para a janela. Ele queria perguntar a respeito de Carmine, mas aquela era uma
resposta que não estaria preparado para escutar. Já haviam se passado duas semanas desde que a
garota desaparecera, e DeMarco mal conseguia imaginar como seu filho caçula estava enfrentando
aquela situação.
Quando chegaram à residência dos Moretti, Celia entrou rapidamente, sem esperar por ele. Vincent
a seguiu, mas seus passos falharam ao ouvi-la cochichando desesperada com o marido no escritório.
– Não pude fazer. – ela disse – Como esperava que eu dissesse a ele?
– Você o conhece melhor que qualquer outra pessoa. – respondeu Corrado – Ele aceitará melhor se
vier de você.
– Não importa quem conte a ele. Ele irá enlouquecer.
– Pode ser verdade, mas alguém precisa contar a ele.
Vincent entrou no escritório.
– Contar o quê?
Celia gaguejou.
– Carmine estava preocupado. Ou melhor, ele ainda está preocupado demais. Não conseguiu ficar
sem fazer nada. Eu já suspeitava do que ele planejava fazer, mas não poderia impedi-lo. Nem sabia
se deveria. Ele é um homem adulto agora. Não é o que ela iria querer para ele, e eu sabia que você
ficaria irritado, mas é a vida dele. E ele estava aterrorizado, Vincent. Você estava preso, e ele não
sabia a quem mais apelar.
Todas aquelas frases pareciam desconexas, mas o significado foi rapidamente registrado.
– Você não está me dizendo que ele… Não, não é possível que ele tenha ido até eles depois de
tudo o que fiz para que isso não acontecesse.
– Ele foi.
– Você só pode estar errada, Celia! Ele não é tão estúpido.
Os olhos dela se encheram de lágrimas.
– Não estou errada.
– Então, talvez tenha entendido mal.
– Não entendi mal. – ela retrucou – Giovanni esteve aqui com ele.
– Giovanni? Você só pode estar brincando. Se ele…
– Vincent. – interrompeu Corrado com sua voz grave e rouca – Você sabe que há coisas que não
podemos nem devemos dizer como homens honrados, e você está muito próximo de dizer algo de que
se arrependerá profundamente no futuro.
– Mas estamos falando do meu filho. Estamos falando de Carmine!
– Sim, e ele fez a escolha dele. Ele faz parte da famiglia agora e nada poderá mudar isso.
– Tem de haver uma maneira! Carmine não está preparado para isso! Ele está atirando a vida dele
no lixo, Corrado, e para quê?
– Por ela. – ele disse, olhando-o de um jeito incrédulo – Como você esquece rápido as coisas.
Você também já foi um garoto de dezoito anos que se entregou à Máfia para salvar a mulher de sua
vida.
– Mas eu não consegui salvá-la! Ela está morta, e se eu jamais tivesse me envolvido em tudo isso,
ela…
– Ela o quê? – perguntou Corrado, interrompendo-o mais uma vez – Ela estaria viva? Nem você
pode realmente acreditar nisso! Ela ainda estaria morta, Vincent, mas teria morrido como uma
escrava. Você deu uma chance a ela. A vida dela foi interrompida, mas não foi por sua culpa,
tampouco foi um serviço da Cosa Nostra. Foi Maura quem sacrificou a própria vida. Você acha que
seu filho se parece muito com você, mas o que não percebe é o quanto ele se assemelha à própria
mãe. Não há nada de ingênuo na decisão que ele tomou.
Antes que Vincent pudesse responder, o telefone do escritório tocou. Corrado atendeu na frente
dele.
– Moretti. – ele fez uma pausa – Sim, estaremos lá.
Vincent suspirou ao vê-lo desligar o telefone.
– Salvatore.
– Ele quer nos ver.
– Carmine está em apuros. – disse Vincent – Ele não faz ideia do que está fazendo.
– Esperemos que você esteja equivocado. – disse Corrado, pegando as chaves – Quanto tempo até
que tenha de se apresentar à justiça?
– Quarenta e oito horas. – Vincent tinha dois dias para se apresentar e receber uma tornozeleira
eletrônica. Não seria prisão domiciliar, com horário de chegada em casa, tampouco aquilo
restringiria suas idas e vindas, apenas uma precaução para que ele não tentasse escapar. Aquilo
também significava que a justiça saberia todos os seus passos, o que o colocava em uma situação
precária dentro da organização.
– Acredito que isso signifique que só temos quarenta e oito horas, então.
Corrado seguiu em direção à porta, mas Celia o parou.
– É bom tê-lo de volta em casa, então, certifique-se de retornar.
Ele deslizou o dedo pelo rosto dela.
– Eu sempre volto, não é mesmo?

Vincent ficava cada vez mais furioso conforme seguiam para a mansão de Salvatore. Eles foram
direto para o esconderijo, onde Salvatore já os esperava com outros homens da organização. Os mais
jovens se levantaram demonstrando respeito, mas Vincent os ignorou e sentou-se no lugar de costume.
Ele também ignorou a dose de uísque que alguém tentou lhe oferecer.
– É bom voltar a vê-los. – disse Salvatore – Sei que ambos são homens honrados, portanto, não
temo quaisquer problemas futuros neste caso.
Vincent o encarou. Como de costume, a única preocupação de Salvatore era de que algo
respingasse nele. Ele esperava que todos mantivessem a boca fechada e aceitassem quaisquer que
fossem as punições, e a pior parte da história, pensou Vincent, era o fato de que aceitariam. Era o que
dizia o Omertà, o voto de silêncio entre os mafiosos.
– Bem, falando agora sobre um assunto mais leve. – disse Sal – Acredito que todos já estejam
sabendo das ótimas notícias.
– Está se referindo a Carmine? – Vincent cerrou o punho por debaixo da mesa. Não havia nada de
leve ou ótimo naquele assunto.
– É ótimo contar com a próxima geração dos DeMarco ao nosso lado. Você criou muito bem o seu
filho, Vincent. Deve se orgulhar.
Vincent limpou a garganta, tentando engolir o que realmente desejava dizer.
– Onde ele está agora?
– Ele está com Giovanni. – respondeu Salvatore – Eles estão tentando rastrear aquela pobre
menina. Que tragédia ainda não ter sido localizada.
– Eles já têm alguma informação?
A gargalhada de Salvatore tomou conta da sala.
– Vincent, você sabe que preferi não me envolver, portanto, terá de perguntar a eles.
– Mesmo assim? Por que o meu filho veio até você?
– O fato de Carmine ter escolhido esse caminho não tem nada a ver com essa situação. – ele
respondeu, com os lábios curvados, formando um sorriso sinistro – Giovanni se voluntariou para
essa pequena missão, e os dois terão todos os nossos recursos à sua disposição, é claro, mas isso
nada tem a ver comigo.
– Como pode dizer algo assim? Nossas mulheres têm de ser respeitadas; devemos protegê-las!
Isso faz parte de nosso juramento; é um de nossos mandamentos! Como pode dizer que isso não tem
nada a ver com você? É problema de todos nós!
O cômodo ficou em silêncio. O ambiente estava tenso e todos se voltaram para Vincent,
assustados. Corrado interferiu antes que as coisas ficassem piores.
– Se não se importa, Sal, acho que devemos ir atrás de Carmine.
– Sim, façam isso. – disse Salvatore – E usem o que for preciso.
Corrado se levantou.
– Vamos.
Vincent empurrou a cadeira para trás e seguiu Corrado. Sussurros começaram logo que ambos
saíram, mas Salvatore exigiu silêncio assim que os dois deixaram o ambiente. Vincent não deveria ter
reagido, mas estava tão desgostoso que não conseguiu evitar. Tudo o que fizera até então fora em vão;
uma perda de tempo e de energia, pois Carmine acabou exatamente no lugar de onde seu pai tanto
tentou afastá-lo.
E a jovem não havia sido salva.
– Você deve estar querendo morrer. – disse Corrado, caminhando pela casa – Falar com ele dessa
maneira fará com que ele o mate.
Corrado abriu a porta de uma sala nos fundos e entrou. Ele abriu armários e pegou armas,
entregando a Vincent dois revólveres calibre 45 Smith & Wessons, antes de pegar duas armas para si
mesmo e enfiá-las no bolso do casaco, com mais munição.

Giovanni não morava longe de Salvatore. A casa estava vazia quando Corrado e Vincent
chegaram, então Corrado foi pelos fundos e arrombou a porta com o pé. Os dois seguiram direto para
o escritório de Giovanni e começaram a olhar nas gavetas e nos arquivos, em busca de qualquer pista
que os dois pudessem ter encontrado.
Corrado encontrou um mapa de Chicago e o desdobrou sobre a mesa ao lado. Várias áreas
estavam circuladas e outras riscadas. Toda a extensão estava repleta de anotações. Vincent
reconheceu algumas delas como de seu filho; as palavras certamente foram escritas de maneira
frenética e por mãos nervosas.
– Eles assinalaram todas as propriedades de Ivan no mapa, mas de modo algum eles teriam levado
Haven para algum lugar que estivesse em seu nome. – disse Corrado – Ele é mais esperto que isso.
Ele buscaria um lugar próximo a uma propriedade, mas, ao mesmo tempo, longe o suficiente para
mantê-las separadas. Um lugar remoto onde não corressem o risco de serem encontrados, mas nem
tão remoto a ponto do tráfego contínuo chamar atenção de curiosos. Algum lugar em que as pessoas
cuidassem de suas próprias vidas.
– Você teria sido um ótimo detetive. – disse Vincent.
Corrado olhou para ele sem acreditar.
– Só porque compreendo a mente de um assassino não significa que seria um bom policial.
– É, talvez esteja certo. – Vincent respondeu, olhando no histórico do computador – Não duraria
um dia no serviço sem ser acusado de uso excessivo de força.
Corrado o encarou novamente em silêncio antes de se voltar para o mapa, enquanto Vincent se
concentrava no que aparecia no computador de Giovanni. Inúmeros endereços e nomes haviam sido
pesquisados, mas nada parecia saltar aos olhos.
Então, Corrado apontou para uma região do mapa que estava circulada a lápis.
– O que há nessa parte de Austin?
– Nada que eu saiba. – Vincent respondeu – Péssima vizinhança e muitas atividades de gangues. A
maior parte dos negócios foi tirada de lá, então existem vários prédios vazios.
– Foi exatamente nisso que pensei. – disse Corrado – É um lugar que não vale nada, mas Natalia
Volkov tem propriedades ali.
– A filha de Volkov? Ela não é uma adolescente?
– Acho que ela tem uns dezenove anos.
– Parece bem estranho.
– Sem dúvida. – concordou Corrado – Também parece um ótimo lugar para começarmos.
Capítulo 49

O sol já havia baixado e, aos poucos, a noite inundava Chicago. Vincent e Corrado dirigiam em
direção ao lado oeste da cidade sob a lua cheia, contornada por um anel iluminado, ao mesmo tempo
que parcialmente encoberta por algumas nuvens. O vento estava um pouco forte e fazia o carro vibrar
com as imprevisíveis rajadas.
A falta de comunicação preocupava Vincent. Ele não fazia ideia de quais eram os planos de seu
filho, da situação em que ele se encontrava, tampouco se o rapaz estava bem. Giovanni jamais dera a
Vincent razão para desconfiar dele, mas o fato de os soldati dele terem debandado para o outro lado
não caía bem em seus ombros. Eram homens que não possuíam a verdadeira lealdade, nem
demonstravam respeito pelas ordens.
A falta de civilidade daqueles sujeitos sempre irritara e preocupara Antonio. Ele detestava o fato
de eles usarem a palavra gângster e até se encolhia ao ouvir a definição deles de irmandade.
Vincent perdera a conta de quantas vezes seu pai havia reclamado sobre aquilo, orgulhando-se de que
dentro de sua organização prevalecia o respeito. Eles podiam ter cometido crimes hediondos, mas,
na mente de Antonio, todos eram plenamente justificáveis. Seu pai levava o juramento a sério e, até
seu último dia de vida, acreditara que todos formavam uma verdadeira família, la famiglia, cujos
laços eram mais fortes que o próprio sangue.
Vincent nunca imaginara que chegaria o dia em que ele próprio desejaria que seu pai ainda
estivesse no controle.
– Você está bem, Vincent? – perguntou Corrado – Não podemos nos dar ao luxo de ter dúvidas em
relação ao que vamos fazer.
– Não estou em dúvidas. – ele respondeu – Só estava imaginando o quão desgostoso meu pai
estaria diante de tudo isso.
– Nada disso estaria acontecendo se o seu pai ainda estivesse no comando. – retrucou Corrado –
Ele era um homem honrado, no sentido mais amplo que essa palavra representa em nosso mundo. A
organização era uma entidade totalmente coesa nas mãos dele.
– Hoje não somos melhores que os sujeitos que vivem nesses prédios.
– Eu não iria tão longe. Acho que a maioria de nós ainda é honrada. O que você fez por Haven,
depois de tudo o que ela custou a você, é um exemplo de honra. Não posso dizer que faria o mesmo
se estivesse em seu lugar. Se fosse minha esposa, eu teria matado a garota há muito tempo.
– Quase a matei. – ele respondeu – Eu queria tê-lo feito.
– Mas não matou. – retrucou Corrado – Em vez disso, está arriscando sua vida para encontrá-la, e
é justamente aí que está a sua honradez, Vincent. Às vezes é preciso olhar o quadro como um todo.
Vincent acenou a cabeça no momento em que Corrado estacionou o carro atrás de um prédio vazio,
deixando o automóvel parcialmente escondido ao lado de uma caçamba de lixo.
– Nunca imaginei que um dia esse tipo de alento e encorajamento partiria justamente de você.
– Bem, você ouviu a minha esposa. – ele disse ao desligar o carro – Ela ordenou que eu retornasse
pra casa, mas para que isso seja possível, preciso que sua cabeça esteja onde deve estar.
Eles saíram do carro e caminharam pela lateral de um prédio, mantendo-se fora do alcance da
visão. Corrado parou no momento em que chegou à extremidade da parede, e Vincent logo viu uma
Mercedes preta estacionada entre algumas árvores, do outro lado da rua.
– É o carro de Squint. – disse Corrado, buscando uma das armas em seu bolso – Vou dar uma
olhada, me dê cobertura.
Vincent puxou uma das armas e a destravou, enquanto Corrado seguiu com cuidado até o
automóvel. Ele olhou pelos vidros e tentou abrir as portas. Vincent, por sua vez, manteve-se alerta
para qualquer sinal de movimentação. Corrado continuou andando até se aproximar de um velho
estabelecimento comercial. Ele então passou com cuidado, verificando algumas janelas, antes de
retornar.
– Está vazio.
DeMarco ia começar a falar quando ouviu um barulho alto bem atrás dele, então ficou em silêncio.
Ele chegou a se virar e apontar a arma, mas Corrado o puxou para o outro lado do prédio. A
tranquilidade da noite foi interrompida por algumas vozes que falavam ao mesmo tempo. Vincent e
Corrado se esconderam ao lado da construção vazia e recém-examinada.
Três homens saíram do galpão e ficaram conversando de pé exatamente no lugar onde Vincent e
Corrado haviam passado pouco antes.
Vincent na mesma hora identificou Squint. Havia também um sujeito com cabelos loiros e
desarrumados segurando com certa indiferença uma AK-47. Era um dos capangas de Volkov, o
mesmo que estivera na pizzaria. O terceiro homem parecia vagamente familiar, mas DeMarco não foi
capaz de reconhecê-lo no escuro.
– É preciso ter cuidado. – disse Corrado – Corajosos e negligentes, uma combinação bastante
perigosa.
– Uns dementes, é isso o que eles são. – disse Vincent, enquanto Squint pegava um molho de
chaves e o atirava para o terceiro sujeito. Em seguida, ele e o cara com a AK-47 desapareceram
novamente dentro do prédio.
– Destrancada. – observou Corrado – Acho que podemos incluir “estúpidos” à lista de adjetivos.
Despreocupado, o terceiro sujeito correu pela estrada em direção ao carro de Squint. Corrado deu
a volta na construção e Vincent caminhou em direção à frente, permanecendo escondido nas sombras.
Ele chegou à esquina do prédio bem no momento em que Corrado rendia o sujeito, apontando sua
arma para a cabeça dele.
O sujeito levantou as mãos e deixou as chaves caírem.
– Corrado.
A voz soou bem familiar para Vincent e seu estômago se contorceu.
– Tarullo?
O sujeito se virou na direção de Corrado. O pavor estava estampado em seu rosto. Dean Tarullo, o
filho mais novo do homem que salvara a vida de Carmine.
– Ah, Vincent… Senhor… – ele disse – O que vocês estão fazendo aqui?
Antes que Vincent pudesse responder, Corrado atirou o rapaz contra a parede da construção e o
revistou. Em seguida, pressionando a arma contra a garganta do jovem, ele tocou levemente o gatilho.
–Você sabe por que estamos aqui. Quantas pessoas estão aí dentro?
– Umas cinco ou seis, eu acho. Talvez mais.
– Essa resposta não é boa o suficiente. Pense mais.
– Eu vi seis.
– Agora está melhor. – disse Corrado – Todos estão armados?
– Todos os que vi estavam armados.
– Quem são eles?
– Eu não sei.
– É melhor achar uma boa resposta pra me dar antes que eu te mate.
– Merda! Tudo bem! Só conheço o Nunzio. Foi ele quem me convenceu a entrar nisso. Eu não
sabia o que ele estava fazendo. Não fazia ideia de que ele fosse…
A conversa fiada foi logo interrompida quando Corrado apontou a arma para a cabeça do rapaz.
– Só quero saber os nomes.
– Nunzio… a garota… a enfermeira…
Vincent ficou furioso; seus músculos se retraíram.
– Jen?
– Isso, esse é o nome. Tem também outros caras que não conheço, mas um sujeito mais velho está
no comando. É Ivan, eu acho.
– E quanto à garota? – perguntou Corrado – Haven?
– Ah, eu sei que eles estão com ela, mas não vi. Só entrei aí duas vezes e nunca passei dessa
primeira porta.
– Não a viu em momento algum?
Corrado chacoalhou energicamente sua cabeça, mas, nesse momento, faróis de outro veículo
iluminaram brevemente o local onde estavam. Todos ficaram nervosos à medida que a BMW desceu
a rua. Com cautela, Vincent correu novamente para a frente do prédio e observou quando o carro
estacionou no quarteirão seguinte. A porta do passageiro se abriu e alguém saltou antes que o veículo
desaparecesse novamente.
Os olhos de Vincent arregalaram quando a pessoa passou sob a luz da rua e ele percebeu
claramente que se tratava do seu filho. Carmine se aproximava de maneira fortuita do prédio,
segurando uma arma em sua mão trêmula.
Corrado sussurrou:
– Dê um jeito de detê-lo.
Vincent mais uma vez correu para o outro lado da rua, no exato momento em que Carmine chegava
até a porta e tocava na maçaneta para abri-la. Foi então que Vincent o alcançou e o impediu de
continuar.
Carmine se virou na direção dele.
– Pa… – ele tentou dizer, mas Vincent o puxou de lá antes que ele pudesse reagir. O jovem
esbravejou e até tropeçou, quase caindo – Mas que merda…? Ela pode estar lá.
– Fale baixo. – disse Vincent – Você não pode simplesmente entrar lá.
– E o que mais eu deveria fazer? – ele perguntou, agitado – Tem ideia de quanto tempo já se
passou? Sabe há quanto tempo ela está desaparecida? Tenho que encontrar ela!
– Eu sei. E é justamente por causa disso que estamos aqui.
– Já era hora mesmo.
Rosnando, Vincent agarrou o braço do filho e o arrastou para o outro lado da rua. Carmine resistiu
no início, mas estava exausto demais para resistir. Vincent o levou até um local escuro, onde Corrado
já os esperava, mantendo Dean pressionado contra a parede.
– Acho que você não tem nenhum senso de autopreservação, não é? – disse Corrado.
– Que se ferre a minha vida. – retrucou Carmine – Vale a pena morrer por ela.
– E o que acontece se você morrer? – perguntou Corrado encarando-o com um olhar afiado – Sua
falta de cuidado acabará fazendo com que eles matem a jovem. Você está dentro da organização
agora, então precisa começar a pensar como um de nós.
Carmine olhou para o pai em pânico.
– Tá, seja lá como for, eu preciso salvar ela, é isso o que vou fazer. – extremamente cansado, o
rapaz se virou na direção de Dean – Quem é esse aí?
– Ele é um amigo. – disse Corrado – Embora seja mais um amigo de Nunzio, pelo que parece.
– Espera aí, ele faz parte disso? – Carmine deu um salto para frente e pegou no pescoço de Dean –
É melhor que ela não esteja machucada! O que fez com ela?
– Não fiz nada com ela! Eu nem a vi!
– O que quer dizer com “não a viu”? – Carmine perguntou, atirando o rapaz mais uma vez contra a
parede – Você levou a minha garota de mim, e eu quero ela de volta!
– Caramba, ele se parece tanto com você que chega a ser perturbador. – disse Corrado, olhando
para Vincent enquanto Carmine chutava as costelas de Dean.
– Ele irá matá-lo. – alertou Vincent.
Corrado agarrou o braço de Carmine e conseguiu afastá-lo do sujeito.
– Já é suficiente.
Vincent ajudou Dean a se levantar.
– Aonde você estava indo?
– Ah, comida. – ele respondeu – Eu estava indo buscar comida.
Um arbusto próximo se moveu. Precavidos, Carmine e Vincent pegaram suas armas, mas Corrado
não se moveu. Ele reconheceu o homem sem sequer se virar.
– Giovanni.
– Corrado, Vincent. – falou Giovanni, aproximando-se – É bom revê-los, rapazes.
Carmine olhou para o tio.
– Como você sabia que era ele?
– Sempre sei o que está ao meu redor. – respondeu Corrado, voltando-se mais uma vez para Dean
– Ouça com atenção. Se deseja que eu demonstre alguma compaixão por você, vai entrar novamente e
dizer que foi atacado quando entrava no carro. Diga que alguns bandidos da região o assaltaram,
levando seu dinheiro e as chaves do carro. Entendeu?
Dean caminhou com certa dificuldade enquanto os quatro homens se posicionaram na entrada.
Vincent puxou sua arma, enquanto Carmine parecia nervoso. A tensão do jovem era intensa e visível.
– Está furioso comigo, não está? Tive que fazer isso. Preciso encontrar ela. Preciso que ela fique
bem.
– Não vejo como atirar sua vida no lixo irá ajudar em alguma coisa, mas com certeza esse não é o
momento para discutirmos isso. – naquele momento ele precisava se manter calmo, portanto,
argumentar sobre o que o filho fizera só o deixaria mais nervoso – Vamos entrar e acabar com isso, e,
independentemente do que acharmos lá dentro, nós enfrentaremos juntos.
Em poucos segundos a porta se abriu e um russo loiro de aparência vagamente familiar saiu
correndo de lá. O sujeito congelou e ergueu a arma ao se deparar com Corrado e Giovanni, que
rapidamente se infiltraram no prédio. Sem pensar duas vezes, Vincent agiu rápido e atirou por trás,
acertando o meio da cabeça do sujeito e espalhando sangue por todos os lados. Em seguida,
empurrou a porta e entrou com cuidado atrás dos outros dois. Ele ficou momentaneamente atordoado
com o que viu. Pessoas clamando por suas vidas e tentando desviar das rajadas de balas; o som era
abafado por silenciadores. Carmine entrou logo atrás do pai, abaixando-se de um dos lados para se
proteger dos tiros.
Corrado estava de pé na porta da frente, disparando contra Ivan, totalmente acuado. Squint, por sua
vez, se escondeu atrás de uma mesa a apenas alguns centímetros de distância, enquanto recarregava
sua arma. Quanto ele se ergueu para revidar, Vincent disparou alguns tiros que quase o acertaram.
Squint se escondeu mais uma vez, mas, quando levantou, Vincent o acertou no peito. Um grito alto
escapou de sua boca no momento em que ele se dobrou para trás.
Algo nas proximidades atraiu a atenção de Vincent no momento em que uma bala o atingiu de
raspão no pescoço. Ele se contorceu por causa da dor, dando a Squint tempo suficiente para revidar.
Ele descarregou a arma, atingindo Vincent no ombro e desperdiçando o resto da munição. DeMarco
já não conseguia mover o braço e a dor se espalhou pelo seu corpo no momento em que ouviu seu
filho gritar.
Vincent se virou e viu Carmine pressionando seu braço direito e o sangue escorrendo pela camisa.
Carmine se recuperou e segurou firme sua arma. Vincent se virou mais uma vez para Squint…
O sujeito havia acabado de atingir seu filho. Furioso, Vincent caminhou de arma em punho em sua
direção e, estreitando os olhos por causa dos flashes de sua arma, disparou vários tiros. Três deles
perfuraram o coração do inimigo. Este ainda balbuciou algumas palavras, tentando respirar.
Vincent ficou de pé na frente de Squint e o observou enquanto ele, mesmo com o corpo já
incapacitado e com a vida se esvaindo rapidamente, ainda tentava pegar sua arma. Vincent mirou
direto para a cabeça dele e o encarou. Não havia sequer uma pitada de medo na expressão do sujeito.
Frio e cruel até o último minuto. Sem qualquer remorso pelo que fizera.
– Arrivederci. – disse Vincent, despedindo-se de Nunzio.
Os olhos de Squint flamejaram ao ouvir aquelas palavras e, embora ele tivesse conseguido
alcançar sua arma, foi Vincent quem atirou várias vezes contra a cabeça dele.
Numa reação automática, o dedo de Squint ainda conseguiu apertar o gatilho, mas a bala passou
longe. Vincent não parou até ficar completamente sem munição, deixando apenas uma forma
ensanguentada e irreconhecível no chão.
Ele, porém, não teve tempo de pensar antes que uma ensurdecedora AK-47 soasse dentro do
prédio. O som era mais alto que todas as demais armas. Vincent conseguiu se abaixar e pegar sua
segunda arma, acertando o sujeito na perna. O atirador cambaleou, mas continuou a atirar. Em meio
ao caos, outra bala atingiu Vincent de raspão.
Giovanni correu para se proteger, mas não foi rápido o suficiente e acabou sendo atingido. Antes
de cair, ele ainda disparou alguns tiros. Mais uma vez a arma de Vincent ficou sem munição e,
enquanto ele a recarregava, Carmine começou a atirar a alguns centímetros de distância do pai. Uma
das balas acertou o sujeito nas costas. Ele lutou para se manter de pé. Corrado desviou
momentaneamente seu foco de Ivan e disparou várias vezes contra a cabeça do atirador, sem qualquer
hesitação. O homem caiu mantendo o dedo no gatilho, disparando ainda várias vezes. Corrado deu
alguns passos para trás ao ser atingido na lateral, mas se manteve de pé e voltou sua atenção para
Ivan.
Uma grito feminino e agudo pôde ser ouvido naquele momento. Aquele som provocou um frio na
espinha de Vincent. Carmine imediatamente correu na direção da voz e Vincent foi atrás dele,
enquanto Corrado dava cobertura.
Sobre o colchão imundo num canto do prédio, repousava um corpo encolhido. De pé, com os olhos
arregalados e as mãos erguidas, Jen obstruía a visão dos dois.
– Sinto muito!
Um silêncio apavorante se fez presente, mas desapareceu tão rápido quanto surgiu. Carmine
pensou em reagir, mas Vincent foi mais rápido. Ele deu um passo à frente do rapaz, encobrindo-lhe a
visão, e puxou o gatilho, acertando a enfermeira entre os olhos. Tomado por um sentimento de
vergonha, manteve-se de pé diante dela e viu seu corpo cair ao chão.
Ele não podia permitir que seu filho carregasse aquilo em seus ombros.
Ivan, que também estava ferido, conseguiu colocar as mãos na AK-47 que estava no chão, num
último esforço para se salvar. Vincent se atirou sobre Carmine quando a arma foi disparada. Todos
revidaram e Ivan foi acertado de todos os lados. Horrorizado, Vincent viu quando Corrado foi
atingido novamente e caiu de joelhos. Tomado pela ira, Vincent se colocou de pé e atingiu o russo
com mais três tiros na cabeça. Em seguida, ele correu em direção ao cunhado, enquanto Ivan
desmoronava sobre uma cadeira de ferro. Vincent olhou com cautela para se certificar de que era
seguro abaixar a arma e se agachar ao lado de Corrado. Pálido e respirando com dificuldade, ele
levou a mão ao peito ensanguentado.
– Deixe-me ver o ferimento. – Vincent disse, retirando as mãos de Corrado e colocando-as ao
lado, abrindo a camisa e expondo três ferimentos de bala em seu peito – Isso não parece nada bom,
Corrado. Precisamos levá-lo para um hospital.
– Estou bem. – ele resmungou, empurrando Vincent para o lado e lutando para ficar de pé. Ele
cambaleou um pouco, mas conseguiu se levantar, recusando qualquer ajuda.
– Haven! – a voz de Carmine atraiu a atenção de Vincent. Ele prendeu a respiração ao ver seu filho
sentando na beirada do colchão e pegando o corpo da jovem nos braços.
Vincent se aproximou, temendo o pior. Ela estava quase irreconhecível se comparada à jovem que
vivia em sua casa até poucas semanas atrás. Na verdade, a moça se parecia mais com aquela que ele
salvara havia mais de um ano. Ela emagrecera bastante; sua pele estava manchada e os lábios, roxos.
DeMarco tomou o pulso da jovem, que estava bem fraco. As mãos dela estavam muito frias e seu
braço deslocado, numa posição estranha. Vincent percebeu que o peito da menina ainda se movia
com respirações curtas. Com febre, suas pupilas estavam contraídas; ela não apresentava nenhum
reflexo. Obviamente seu sistema neurológico não funcionava bem.
Em menos de um minuto, Vincent soube o que estava errado. O problema é que ele não tinha como
fazer nada.
– Ela está bem? – perguntou Carmine deslizando a mão sobre o rosto dela – Meu Deus, por que ela
não acorda?
– Imagino que ela tenha sido drogada.
– Mas ela ficará bem?
– Gostaria de saber a resposta.
– Você sempre fica bancando o médico comigo e na única vez em que te peço ajuda você me diz
isso? Gostaria de saber a resposta.
– Preciso levá-la a algum lugar onde possa avaliá-la. – ele retrucou – Ela está viva.
– E é melhor que ela continue viva. – disse Carmine – Haven, eu preciso que você acorde. Por
favor, querida. Você tem que acordar. Não poderei seguir adiante sem você.
O peito de Vincent doía ao perceber toda a emoção que transbordava de seu filho.
– Farei tudo o que eu puder por ela, Carmine.
– Se ela não sobreviver, eu matarei todos. Um por um.
A voz de Corrado soou ao lado dele.
– Tarde demais. Já estão todos mortos.
Carmine olhou para o tio.
– Bem, então teremos que ressuscitar esses filhos da puta.
Corrado tentou dar mais um passo, mas seus joelhos falharam. Vincent o segurou antes que ele
caísse.
– Preciso levá-lo imediatamente para um hospital.
O cunhado durão mais uma vez empurrou Vincent para o lado e disse em tom zombeteiro.
– Eu mesmo me levo pro hospital e invento alguma desculpa. Você precisa chamar alguns dos
nossos para limpar toda essa bagunça antes que todos sejamos presos.
Ele saiu mancando. Sua dor era visível em seus movimentos truncados, mas ele jamais verbalizou
o que sentia. Corrado ainda olhou para os corpos estirados no chão e parou ao lado de Giovanni.
– Che peccato.
– Eu sei, é mesmo uma pena. – disse Vincent, pegando seu celular enquanto Corrado saía pela
porta. Ele só observou, extremamente preocupado com a situação – Tem certeza quanto a isso? Está
perdendo muito sangue.
– Não seja imbecil, Vincent. – ele disse – Leve Haven para minha casa e cuide dela antes que o
seu filho decida mesmo ressuscitar esses vagabundos só para poder matá-los novamente.
Corrado mais uma vez fez uma pausa e pegou sua arma, virando-se para trás. Ele olhou para o
outro canto da sala, onde o jovem Dean estava sentado em estado de choque, e atirou três vezes no
garoto, assustando Carmine.
– Merda! Pensei que iria demonstrar alguma compaixão pelo cara!
Corrado soltou a arma.
– E demonstrei. A morte se tornou muito mais humana do que as coisas que iriam acontecer a ele
se ainda estivesse vivo quando Salvatore chegasse aqui.

Tudo o que Haven conseguia ver eram fogos de artifício.


Flashes de luz em meio à escuridão, sons altos a distância. Ela já não sabia o que era real, onde
estava nem o que se passava. A única coisa de que tinha certeza era de que o barulho era de fogos de
artifício. Aquilo a fez se lembrar do dia em que Carmine a levara na festa. Ela ainda podia sentir o
forte frio na barriga, como acontecera ao ver e escutar os fogos, ficando completamente assustada e
zonza.
– São apenas fogos de artifício, tesoro. Não há o que temer. – ele dissera – Eles não irão te
machucar.
Ela acreditava nele enquanto estava ali deitada, do mesmo modo como acreditara da primeira vez
que Carmine o dissera. Não sentiu nenhum medo e tinha certeza de que ninguém a iria machucar.
Nada seria capaz de fazê-lo. Carmine viria para salvá-la, porque era isso o que eles faziam um pelo
outro. Embora estivesse cada vez mais fraca e distante, ela sabia que tudo ficaria bem se ela não
desistisse. Eles jamais teriam seu espírito, pois ela não deixaria que aqueles homens a vencessem.
Então, ainda deitada na escuridão escutando os fogos, a jovem lutava para se manter viva com a
pouca força que ainda lhe restava.
De repente, os fogos silenciaram; aquele momento se perdeu, mas a voz suave do rapaz continuava
a ser registrada pelos ouvidos da jovem. Os pelos do braço dela se ergueram no momento em que sua
pele começou a formigar. A sensação era tão real que ela conseguia até mesmo sentir a colônia do
namorado. Aquilo a trouxe mais perto da superfície e ela percebeu tudo girando ao seu redor.
Imaginou se aquilo seria uma miragem, como de um homem sedento no meio do deserto quente e
seco, que enxergava um lago a distância. Estaria ela tão desesperada para vê-lo que seus próprios
sentidos a estariam enganando?
Sim, ela pensou. Certamente era apenas mais uma alucinação.
A luz se infiltrou por entre as pálpebras da jovem à medida que a voz de Carmine se tornava mais
alta. Ela se forçou a abrir os olhos ao ouvir aquele som, piscando rapidamente para clarear sua
visão. Tudo parecia nebuloso, mas ela reconheceu o rosto familiar; aquela visão quase fez seu
coração parar de bater. Na verdade, o órgão parecia nem querer mais insistir.
Carmine se voltou para ela e seus olhos se encontraram. Eles estavam mais claros do que qualquer
outra coisa. O verde se sobressaindo em meio a toda aquela névoa.
– Cacete! – ele disse, fazendo com que calafrios percorressem o corpo da jovem. A visão dela
ficou mais turva, e ela voltou a piscar, ansiosa para se manter consciente – Sua ninja maluca, você
quase me matou de susto!
– Carmine? – ela sussurrou, contraindo-se por casa da queimação na garganta.
– Sim, sou eu. Eu disse que te encontraria. Jamais desistiria de você. – a voz dele estava
embargada de emoção. Ele deslizava sua mão pelo rosto dela – Meu Deus, eu te amo demais.
Ela tentou esticar o braço e tocá-lo, mas não tinha nenhuma energia para fazê-lo. Tudo escureceu
novamente e sua mão despencou. Todos os sons se tornaram distantes como se ela mais uma vez
estivesse se afogando.
– Feliz Ano-Novo. – ela sussurrou no momento em que o rosto dele desapareceu.
Capítulo 50

Tendo permanecido dopada a maior parte do tempo, Haven não tinha como avaliar quanto tempo
havia se passado. Podia ter sido horas ou dias, quem sabe até meses antes que ela começasse a
recobrar alguma lucidez; eram momentos que sabia serem verdadeiros por causa da dor que sentia.
Durante um deles, pôde ouvir sons e se esforçou para ficar consciente. A jovem estava em um quarto
escuro, mas conseguiu reconhecer a silhueta de quem estava a apenas alguns centímetros.
– Doutor DeMarco?
– Sim, sou eu. – ele disse, pegando seu estetoscópio e pressionando-o contra o peito da jovem. Ela
deu pulo com o frio do metal e o movimento fez com que uma forte dor ricocheteasse pelo seu corpo
– Tente não se mover.
– Dói muito. – ela respondeu, com lágrimas escorrendo pelo rosto.
– Sei que dói – ele disse, colocando sua mão na testa da jovem. Ela se manteve o mais quieta
possível enquanto ele a examinava.
Tudo aquilo parecia um sonho.
– Você não é real.
DeMarco franziu a testa.
– Eu não sou real?
– O senhor não está realmente aqui. – ela disse – Estou sonhando novamente.
– Não, eu estou aqui de verdade. – ele disse, esboçando um pequeno sorriso – Pelo menos eu acho
que estou.
Ela tentou sorrir, mas estava fraca demais e não foi capaz.
– Não compreendo. Como o senhor chegou lá? Onde está Carmine? – o medo a paralisou – Nunzio
matou ele, não foi?
Mesmo com muita dor, a jovem tentou desesperadamente se sentar e olhar para os lados, mas
DeMarco a segurou.
– Acalme-se, criança.
– Não posso. – respondeu com a voz falhando – Onde ele está? Ele está ferido? É por isso que ele
não está aqui?
– Ele está bem. Só teve que sair para resolver uma pendência.
Ela desconfiou e cerrou os olhos, enquanto ele desviava o olhar.
– Que pendência?
– Isso não importa agora. – ele respondeu – Carmine logo estará de volta e ficará muito feliz em
vê-la acordada.
Nada parecia fazer sentido.
– Estou tão confusa.
– Eu imagino que esteja mesmo. – ele disse, olhando para Haven com cautela – Você foi drogada
enquanto estava nas mãos deles.
– Drogada. – flashes de memória voltaram. Um homem injetara alguma coisa nela algumas vezes;
sua voz não era familiar.
– Imagino que tenha sido o único meio que encontraram para mantê-la sob controle. É provável
que não se lembre de muita coisa, e é melhor mesmo que não se desgaste tentando recordar. – o tom
da voz dele indicava que ele estava falando sério – Você teve uma overdose por causa da medicação,
então, quando seu corpo foi privado da droga você sofreu uma crise de abstinência. Teria sido
melhor se a tivéssemos levado para um hospital, mas não haveria como explicar sua condição, muito
menos o tiopental e o fenobarbital em seu sangue.
– O que são essas drogas?
– São barbitúricos poderosos usados em hospitais. Imagino que essa tenha sido a razão para
chamarem Jen. O tiopental é… Bem… – ele se sentiu culpado – Foi a droga que lhe dei algumas
vezes, em doses bem baixas. Entretanto, em doses elevadas pode levar um paciente ao coma. O outro
é para desacelerar as funções cerebrais. Com os dois sendo aplicados ao mesmo tempo, ficaria
chocado se conseguisse se lembrar de qualquer coisa.
Ela começou a responder, mas parou abruptamente quando ele pegou uma seringa. Sua experiência
lhe dizia que não havia nada de bom quando se referia a agulhas.
– É apenas morfina para aliviar a dor. – ele explicou ao perceber a reação da jovem, pegando
gentilmente seu braço. Ela olhou para o dispositivo intravenoso que estava preso ao seu braço e
observou enquanto o médico injetava o medicamento – Você estava muito mal quando nós a
encontramos.
– Quanto tempo se passou? – ela perguntou.
– Hoje é 29 de outubro. – ele disse, olhando-a com cautela – Você desapareceu no dia 30 de
setembro.
Um mês havia se passado, e ela mal se lembrava de algo.
– Você ficou nas mãos deles por duas semanas – ele explicou –, o restante do tempo você passou
aqui, se recuperando.
– Onde é aqui? – ela logo começou a sentir uma moleza no corpo por conta da morfina.
– Estamos em Chicago, na casa de minha irmã.
– Chicago. – ela repetiu, lembrando-se vagamente de um homem já ter lhe dito a mesma coisa
antes. Entretanto, não tinha energia para compreender o que aquilo significava, tampouco para
lembrar o que ela própria queria dizer.

O corredor do hospital era escuro e tinha um forte cheiro de antisséptico. O odor sufocante do
sofrimento pairava no ar, ainda mais intenso que na noite anterior. A sensação de morte era mais
forte, assim como o desespero, ainda maior. Era algo com que Vincent ainda não havia se
acostumado.
Seus passos reverberavam pelas paredes esterilizadas do prédio à medida que ele se aproximava
do quarto 129. Abrindo a porta, foi direto para a UTI. Assim que seus olhos se ajustaram, viu a irmã
encolhida numa poltrona cinza. Os olhos dela estavam fechados e sua respiração, normal. Com
cuidado, ele pegou um cobertor no armário e a cobriu. Não havia por que acordá-la. Ela nunca
voltava para casa, mesmo que ele insistisse.
Ele então se virou para a cama e, com os olhos cansados, inspecionou os vários equipamentos. O
som contínuo do respirador abafava todos os demais, mas o tubo colocado na boca de Corrado nas
últimas duas semanas já não estava mais lá; ele passara por uma traqueostomia durante a noite e
agora tinha um tubo saindo direto de sua garganta. Aquela visão deixou Vincent preocupado.
Mais complicações, uma atrás da outra. Corrado não teve um minuto de paz desde que chegara ao
hospital, onde logo foi declarado morto. Todavia, a insistência de um jovem médico da emergência,
que se recusou a perder um paciente, fez com que seu coração voltasse a bater, e agora ele se
mantinha estável, mas em coma. Não havia nenhum sinal de que iria se recuperar.
Vincent o observou por algum tempo, sentindo-se inútil e inteiramente responsável. Ele sequer
conseguia imaginar o que aconteceria se Corrado jamais recobrasse a consciência. Além disso,
mesmo que isso acontecesse, Vincent ainda teria sobre os ombros a culpa pelos possíveis efeitos
colaterais, como graves danos cerebrais, ataques ou mesmo paralisia. Se ele acordasse do coma,
talvez jamais fosse o mesmo de antes.
Aquilo o aterrorizava ainda mais que a possibilidade daquele homem morrer.
Celia se mexeu e abriu os olhos, vendo o irmão no mesmo instante. Ela se sentou e esticou braços
e pernas.
– Há quanto tempo está aqui?
– Há apenas alguns minutos. – ele respondeu – Eu ia vir antes, mas a garota acordou.
Um ar otimista tomou conta de Celia, embora parecesse inadequado naquele local.
– Como ela está?
– Ela está viva. Mas sua recuperação será demorada.
– Aposto que Carmine está aliviado.
– Ele ainda não sabe. – Vincent respondeu – Ele está na casa de Sal.
Celia se contraiu.
– E como você explicou isso a ela?
– Não expliquei. Já é hora de Carmine lidar com os problemas sozinho. É hora de ele se portar
como um homem.
– Você falou exatamente como o papai. – Celia retrucou.
Dessa vez foi Vincent que contraiu os músculos, mas preferiu ficar em silêncio.
– Bem, já passa das sete da noite. Você deveria ir para casa e dormir um pouco.
– Ah, eu já dormi.
Mulher teimosa.
– Cochilar numa poltrona de hospital não conta como dormir. Se continuar fazendo isso acabará
em uma cama no andar de baixo, internada por exaustão.
Celia se levantou, deu um beijo na testa do marido e disse.
– Eu irei para casa quando ele puder ir comigo.
Vincent sentiu um aperto no peito, observando a irmã cuidar do marido, acariciando seus cabelos e
ajeitando a roupa que ele vestia.
– E se isso não acontecer?
Os ombros de Celia travaram.
– Não diga uma coisa dessas.
– Mas você precisa considerar essa possibilidade.
Os olhos dela se encheram de fúria.
– Ele vai acordar.
– Sim, mas… e se isso não acontecer? Corrado não iria querer passar o resto de seus dias deitado
numa cama como um vegetal.
– Ele desejaria viver, e ele vai viver. Ele está ficando mais forte a cada dia.
Celia parecia ter certeza do que dizia, mas Vincent possuía o conhecimento necessário para não se
deixar levar por aquelas palavras esperançosas.
– Quanto mais tempo ele ficar em coma, mais improvável que ele consiga… – Eu sei. – disse
Celia, interrompendo o irmão – Eu já ouvi os médicos, mas eles não conhecem Corrado como eu. Ele
sairá dessa.
– O que lhe dá tanta certeza?
– Ele me disse isso. Quando ele saiu de casa naquela noite, ele disse que retornaria para mim.
Corrado nunca quebrou uma promessa.

Haven acordou novamente em um quarto claro e logo estreitou os olhos ao ver a luz que vinha da
janela. Ela soltou um murmúrio no momento em que se virou de costas para a claridade, e sua mão
tocou no corpo de alguém deitado ao seu lado. Carmine estava dormindo; ela pôde ver o movimento
provocado pela respiração regular. O braço do rapaz estava enfaixado desde os dedos até o
cotovelo.
Contraindo os músculos da mandíbula, ela se segurou para não gritar quando sentiu um puxão em
seu braço. Era a agulha que estava presa ali e que a impedia de alcançar Carmine. Hesitou por um
instante, parando a apenas alguns centímetros do rosto dele, sem querer incomodá-lo, mas então
deslizou o dedo pelo nariz do rapaz. Havia ali uma pequena protuberância que não existia antes, e ela
sabia exatamente de que modo ela havia surgido.
Carmine se mexeu, murmurando algo incoerente antes que seus olhos se abrissem. Ele deu um pulo
e quase caiu da cama; assustada, ela retirou a mão rapidamente.
– Caralho, você tá acordada! – ele exclamou. Um sorriso se abriu no rosto dela ao ouvir a voz
dele. Ela tentou controlar a emoção, mas era forte demais. Lágrimas escorreram pelo rosto da jovem
e ele as secou com a mão – Você está bem? Está machucada? Espera, é claro que está machucada!
– Eu estou bem.
– Não, não está bem. – ele disse – Você está machucada, tesoro. Sabe o quanto você me deixou
apavorado? Pensei que fosse perder você! Quando acordei e não te encontrei do meu lado, imaginei
que minha vida tivesse acabado. Mas jurei que jamais desistiria de você, e não desisti. Não
conseguia nem pensar em continuar vivo caso você tivesse morrido.
– Não morri. – ela disse em meio às lágrimas.
– É, mas…
– Sem “mas”. – ela o interrompeu – Eu também pensei que fosse perdê-lo. Eu implorei a eles que
te deixassem vivo no carro.
– Você implorou?
– Eles iam matar você. – a voz dela saiu truncada ao se lembrar da cena – Então eu disse que iria
com eles, que não resistiria, contanto que eles te deixassem vivo. Eu teria feito qualquer coisa.
– Teria se sacrificado por mim? – ele perguntou, com a expressão séria – Você atiraria sua vida no
lixo se isso significasse salvar a minha?
– Claro. Você não faria o mesmo?
– Você sabe que sim.
Carmine tentou abraçá-la, mas os ferimentos de ambos tornavam as coisas difíceis. Ambos se
encolhiam e contorciam por causa das dores e a bandagem no braço do rapaz fez com que o abraço
não saísse como queria.
– Seu braço. – ela disse, encostando o nariz em seu peito.
– O tiro fraturou o osso, então eles tiveram que colocar uma tala.
Ela ficou nervosa.
– Você levou um tiro?
– Sim. Mas tudo bem, não foi nada tão sério.
– Não foi sério? Alguém atirou em você!
– É, foi o Nunzio.
Ela bufou, furiosa.
– Meus Deus, e onde ele está?
– Ele está morto. – Carmine respondeu – Aliás, ele e todo o resto da gangue.
– Eles estão mortos? Todos eles? E você continuou vivo?
– Sim para a primeira; sim para a segunda e, para a terceira, pelo menos até a última vez que
chequei, a resposta também é sim. – ele, então, pegou a mão dela e a levou até seu peito, colocando-a
sobre o coração – É, acho que ele ainda está batendo.
– É, está. – ela disse, olhando para os olhos de Carmine e pensando que, por um tempo, achou que
jamais o veria novamente – Senti tanto a sua falta.
– Mi sei mancata. – ele disse – Estou feliz que você esteja acordada agora.
– Onde você estava mais cedo?
Ele não respondeu imediatamente.
– Eu tive um compromisso.
– Que tipo de compromisso?
– Isso não importa agora.
– Foi o mesmo que o seu pai me disse quando lhe perguntei.
– Pois é, acho que deveríamos ouvir o que ele disse.
– Você sempre foi rebelde. – ela disse – Desde quando você dá ouvidos ao que seu pai fala?
– É, nunca dei mesmo, mas veja onde isso nos levou. Acho que é hora de começar. Até porque, ele
parece saber do que está falando. – ele fez uma pausa – Bem, pelo menos de vez em quando. Às
vezes eu ainda acho que ele fala merda.
Ela riu de sua resposta. Ambos ficaram deitados em silêncio, segurando a mão um do outro,
enquanto ela ainda tentava clarear a névoa que se instalara em sua mente. Suas lembranças eram
fragmentadas e ela logo começou a sentir a tensão se avolumar no quarto.
– Está tudo bem?
– Sim, por que não estaria? – ele perguntou.
– Não sei. Eu fiquei preocupada…
– Bem, então pare de se preocupar. – a voz dele pareceu firme – Você precisa se concentrar em sua
recuperação.
– Mais uma vez você soou exatamente como seu pai. – ela disse. A resposta evasiva do namorado
não ajudou a tranquilizá-la.
– Aparentemente, sou mais parecido com ele do que pensávamos.
– Não, você não é como ele – ela disse – Jamais será como ele.
– Eu não afirmaria isso com tanta certeza. – ela ficou imaginando o que ele realmente queria dizer
com aquilo, mas antes que pudesse perguntar, alguém bateu à porta. Era o doutor DeMarco, e logo
que entrou Carmine rosnou e disse:
– E falando no diabo!
DeMarco ergueu as sobrancelhas.
– Não é educado falar das pessoas pelas costas.
– Não é nada que eu não diria na sua cara, pai.
– É verdade, filho. Você nunca foi do tipo de segurar a língua.
– E isso não seria parte do meu charme?
– Bem, eu não chamaria de charme. – retrucou DeMarco – Digamos que sua boca o coloque em
encrencas com a mesma frequência que o tira delas.
– Haven nunca reclamou da minha boca. – disse Carmine, brincando. Ela ficou vermelha e deu um
cutucão na costela do rapaz. Mesmo que seu toque fosse leve, Carmine cerrou os dentes para abafar o
grito.
– Ele fraturou uma costela. – explicou Vincent ao percebê-la olhar para o jovem de um jeito
peculiar – Já estaria curado se ele aprendesse a ser mais cuidadoso.
Haven se sentiu culpada por machucá-lo.
– Sinto muito.
– Não peça desculpas. – disse Carmine, voltando sua atenção para o pai – Precisa de alguma
coisa?
– Acabei de retornar do hospital e pretendia examiná-la. – ele então pegou o pulso de Haven,
verificando se estava com febre.
– Como está se sentindo?
– Ainda um pouco confusa, mas estou melhor do que antes.
– Você se sentirá confusa por algum tempo, até que o seu corpo se recupere completamente. – ele
disse – Quero que tente comer alguma coisa. Carmine pode lhe trazer uma canja.
– Não precisa, posso pegar eu mesma. – disse Haven.
– De jeito nenhum, criança. Você está fraca demais para isso. – ele respondeu, reprovando com a
cabeça – De qualquer modo, tenho certeza de que vocês dois têm muito sobre o que falar, mas
descanse um pouco mais hoje. Carmine também pode lhe trazer algo para a dor. Estou certo de que
ele sabe onde ficam os analgésicos, considerando que há semanas ele os vem consumindo como se
fossem balas de goma.
Haven ficou olhando para a porta depois que o doutor DeMarco saiu.
– Ele parece estranho.
– É, eu também notei. – Carmine murmurou – Ele está decidido, como se tivesse algum plano para
salvar a todos nós.
– Precisamos ser salvos?
– Não precisamos sempre ser salvos?
Pergunta retórica. Era óbvio que precisavam.
– Ele está trabalhando no hospital daqui agora?
– Não, só está cuidando de um caso.
– Que caso?
Ele suspirou.
– Caramba, você está cheia de perguntas. Não é nada com que precise se preocupar.
– Mas não posso ficar aqui deitada imaginando o que pode estar acontecendo. Acabarei ficando
doente de tão preocupada e nunca irei melhorar.
– Tudo bem. – ele disse – Não acho que seja uma boa ideia lhe dizer isso, mas não vou discutir
com você.
Ela ouviu enquanto Carmine lhe contou sobre ter acordado no carro. Ele explicou o que houve em
Durante, e lágrimas escorreram dos olhos dela ao ouvir que Nicholas não havia sobrevivido. Sua
mente divagou por todos aqueles cenários, e ela acabou se perdendo em seus próprios pensamentos.
Carmine continuou falando até que uma palavra em especial atraiu a atenção da jovem.
– Preso?
Ele suspirou e ficou de pé, passando a mão nos cabelos despenteados. Era óbvio que ele não ia a
um barbeiro há mais de um mês. Alguns cachos já cobriam seu pescoço e caíam sobre a testa. Seus
cabelos ficavam ondulados quando compridos.
– É, e sem razão nenhuma. Os federais invadiram a casa com um mandado para prender meu pai e
Corrado, e um agente idiota e egocêntrico chamado Cerone me levou com eles.
– Não posso acreditar que você tenha sido preso. – ela disse – E como foi que me encontrou? Pelo
chip?
– Gostaria que tivesse sido por meio dele. – Carmine respondeu – Mas isso não iria funcionar, já
que eles estavam presos, tesoro. Eu sabia que ainda demoraria uma semana até que eles fossem
soltos, e não tinha certeza se você poderia esperar tanto. Eu tive de fazer alguma coisa.
– E o que você fez? – ela perguntou, desconfiada das palavras evasivas – O que quer que tenha
feito eu entenderei.
Ele fez um movimento negativo com a cabeça.
– Isso não importa.
– Por que continua me dizendo que isso e aquilo não importam?
– Por existem algumas coisas que você não deve saber agora.
– Você não está falando sério. – ela retrucou – Você disse que sempre contaríamos tudo um ao
outro.
– É, eu sei, mas as situações mudam. Tem certas coisas que não posso te dizer… Algumas coisas
que não poderei te contar. São coisas sobre as quais você irá preferir não saber, Haven.
– O que acha que não pode me dizer?
Ele começou a responder, mas o toque do seu celular o silenciou. Resmungando, ele o retirou do
bolso e olhou para ela nervoso ao atender.
– Sim… senhor? – a voz dele pareceu fria e seu comportamento mudou instantaneamente – Mas eu
não… Sim, tudo bem. Eu entendo. Eu estarei lá.
Ele soltou um suspiro e se sentou ao lado dela, pegando sua mão e a beijando.
– Nada é mais importante para mim que você, tesoro. Eu daria minha vida por você.
– Você está me assustando, Carmine.
– Não fique assustada. – ele disse – Eu estava desesperado, meu amor. Precisava saber que estava
viva e, agora que está segura, não posso me arrepender do que fiz.
– Não estou entendendo o que quer dizer.
– Não estou surpreso. – ele disse, soltando a mão dela – Tenho que ir agora.
– Ir?
– Sim, mas não vou demorar. Conversaremos mais quando eu retornar, mas não posso me atrasar.
– Não pode se atrasar para o quê? Me diga o que fez, Carmine!
Ele hesitou um pouco, respirou fundo e se virou para ela.
– Eu procurei Salvatore. Era isso que você queria escutar? Pedi a ele que me ajudasse, então
agora eu estou em dívida com ele.
Ela o encarou, tentando controlar o pânico.
– Que tipo de dívida?
– Minha lealdade.
Ela se sentou na cama, sentindo fortes dores pelo movimento brusco.
– Retire sua promessa.
– Não posso. – ele respondeu – É tarde demais.
– Mas não pode fazer isso! Não pode se tornar um deles! Não pode fazer as coisas que eles fazem.
Já conversamos sobre isso antes!
– E você acha que eu quero ser esse tipo de pessoa? Acha que eu quero fazer essas coisas? É
lógico que não quero!
– Então, por que fará? Como pôde concordar com isso?
– Não tive escolha. Eu entendo que esteja chateada e até irritada, mas o que está feito, está feito.
Carmine olhou para ela como que implorando para que ela o compreendesse, mas, naquele
momento, seria impossível. Ela desviou o olhar quando ele se aproximou para secar as lágrimas que
haviam escorrido pelo seu rosto.
– Sempre se tem uma escolha.
O toque do rapaz era gentil e deveria parecer reconfortante, mas não foi o suficiente para aplacar
seus medos.
– Escute, tudo ficará bem. – ele disse – Nada mudou!
O coração dela lutava para acreditar nas palavras dele, porém, ela não era ingênua. Não mais.
Aquela seria uma vida de crimes; seria um mundo de violência, em que o perigo estaria sempre à
espreita. Era uma realidade que transformava os homens em criaturas cínicas, capazes de cometer
atos inomináveis com os quais ela não poderia compactuar. Um mundo que havia privado ambos da
presença de suas mães e que quase os havia matado. Era algo do qual tentaram escapar, mas que
acabou os engolindo no final.
Definitivamente aquele não era o futuro que ela havia desejado para os dois. Tudo em que ela
conseguia pensar era os planos que haviam feito, juntos, e que agora pareciam se dissipar. Ir para
algum lugar em que ninguém os conhecesse; começar do zero em alguma cidade em que ele pudesse
ser apenas ele mesmo e ela, uma garota normal; onde nenhum dos dois jamais voltasse a ser
assombrado pelo passado, tampouco por rótulos que os infernizariam. Irem para alguma faculdade
onde ele pudesse se dedicar a jogar futebol e ela, ao estudo de Artes. Agora tudo aquilo parecia
apenas um sonho distante. Casar-se e ter uma família tornara-se apenas um sonho encoberto pela
realidade. Ela já não tinha certeza do que seria possível, do destino deles ou do que poderiam fazer.
Ele teria a permissão para ir à faculdade? Será que, nesse mundo, eles poderiam se arriscar a ter
filhos?
Mais importante, o que aconteceria com Carmine? Será que ele conseguiria viver aquela vida e
manter-se a mesma pessoa que ela tanto amava? Seria alguém capaz de fazer coisas ruins e, ainda
assim, não se tornar uma pessoa má? Depois de ser brutalizada ao longo de toda sua vida, como ela
poderia aceitar o fato de ele se tornar um deles?
Como Maura teria conseguido enfrentar aquilo?

Vincent estava de pé na parte da frente daquela igreja escura, olhando para a chama tremeluzente
da vela que acendera. Ela brilhava forte, iluminando sua mão ao fazer o sinal da cruz. Depois de um
momento, ouviu um som atrás dele. Vincent se virou e viu o Padre Alberto se aproximando, com uma
Bíblia nas mãos. Ele acenou com a cabeça.
– Padre.
– Como você está, meu filho?
– Estou bem.
O padre discordou com a cabeça.
– Há certas pessoas na vida às quais não se pode enganar, Vincenzo; e o seu padre é uma delas.
– E quem seriam as outras? – ele perguntou curioso – Minha mãe?
O velho padre, que normalmente era bastante contido, caiu na risada.
– Conheço sua mãe há décadas. Posso lhe dizer com total segurança que ela só vê e escuta o que
quer, e nada mais. No caso daquela mulher, é um dom divino.
Vincent sorriu.
– E o senhor deveria falar assim sobre as pessoas?
– Não sou eu que estou julgando. – ele retrucou – Estou apenas dizendo a verdade. É um ótimo
conceito. E, uma vez que você está em uma igreja, não gostaria de colocá-lo em prática?
– Claro.
– Então, por que não começamos de novo? Como você está, meu filho?
Vincent hesitou.
– Estou aterrorizado.
O padre não pareceu surpreso.
– E o que o está aterrorizando, Vincenzo?
– Corrado está no hospital.
– Eu fiquei sabendo. E ele está melhorando?
– Não que eu possa dizer. – ele respondeu – Celia, entretanto, acredita que ele logo irá acordar e
se recuperar, mas não vejo de que modo isso poderia acontecer. O cérebro dele ficou sem oxigênio
por tempo demais para que ele saia disso sem sequelas.
– E quanto tempo ele ficou sem oxigênio?
– Quase quatro minutos.
– E é impossível que alguém se recupere depois de ficar assim por quatro minutos?
– Impossível? Não. Mas eu diria que improvável.
– Um médico também diria que uma Concepção Imaculada seria improvável.
– Não, um médico diria que uma Concepção Imaculada seria impossível.
– Mas Nossa Senhora deu à luz Jesus.
– É, ela deu.
– Milagres acontecem. – o padre completou – Há uma razão para que você não veja o que Celia
está enxergando.
– O fato de eu ser um médico?
– Não, o fato de você ter perdido sua fé.
Vincent olhou para o padre com descrença.
– Se isso fosse verdade, eu não estaria aqui, não é?
– Pelo contrário, Vincenzo. Você vem aqui no intuito de reencontrar sua fé. Mas a Deus também
não se pode enganar. Ele sabe tudo, e tudo bem, pois Ele o perdoará. A pergunta é se você está
pronto para ser perdoado.
Vincent ficou em silêncio e se voltou para a vela que acendera.
– Eu estou.
– Então, peça.
Vincent respirou fundo antes de voltar a falar.
– Perdoe-me, Padre, pois eu pequei.
O padre continuou com a voz gentil.
– Prossiga. Você está seguro aqui.
A palavra seguro o fez hesitar por um instante. Pela primeira vez desde a sua juventude, quando
costumava entrar na igreja e sentir que fazia parte de tudo aquilo, ele realmente se sentia seguro ali.
– Na primeira vez que matei um homem, tinha dezenove anos. Eu dei um único tiro em sua direção.
No coração. Ele perdeu a consciência na hora, mas demorou exatamente um minuto e vinte e nove
segundos para que ele parasse de respirar. Eu contei. Pensando, agora, parece que foi tão rápido, mas
enquanto eu testemunhava aquilo, imaginei que ele jamais iria morrer. Fiquei parado ali o tempo
todo, e tudo em que conseguia pensar era no quão errado tudo aquilo parecia.
– Errado porque você não deveria tê-lo feito?
– Não, errado porque não havia sangue suficiente. Apenas uma pequena mancha na camisa; o nariz
dele também sangrou no momento em que ele engasgou, mas o lugar se manteve relativamente limpo.
A hemorragia foi interna. Imaginei que um tiro no coração provocaria uma enorme sujeira.
Padre Alberto se manteve em silêncio por um momento.
– E por que você o matou?
– Ele estuprou minha esposa. – disse Vincent. Sua voz era apenas um sussurro – Eu mesmo fui o
juiz, o júri e o executor.
– Não achou que Deus o faria pagar?
– Sim. – ele respondeu – Só me certifiquei de que ele encontrasse Deus mais rápido.
– Por quê?
Vincent franziu o cenho.
– Eu já lhe disse o porquê.
– Você me disse o que o homem fez de errado, o pecado que ele cometera, mas não me disse por
que o matou. Lembro-me de você aos dezoitos anos. Eu realizei o casamento de vocês quando tinham
dezoito anos. Você não era uma pessoa vingativa e Maura não teria aprovado esse ato.
O padre estava certo, é claro.
– Meu pai ordenou que eu o fizesse; ele se referiu àquela autorização como “um presente de
casamento”. Eu não queria, mas a questão não estava aberta a negociações. A permissão para matar
aquele homem foi a primeira ordem que recebi; meu primeiro teste. Ele achou que estivesse me
fazendo um favor.
– E que outros favores seu pai fez a você?
Vincent abanou a cabeça.
– Não acho que existam horas suficientes no dia para que eu lhe conte tudo.
– Tenho tempo. – o padre respondeu – Desde que você termine até o domingo pela manhã.
Vincent deu risada.
– Vamos lá. – disse o padre, indicando-lhe o confessionário – Faremos isso da maneira correta.
A vela ainda se mantinha acesa, e Vincent a olhou mais uma vez antes de seguir o padre. No
momento em que se sentou no confessionário, as palavras começaram a brotar de sua boca. Ele
contou tudo: cada pecado cometido; cada homem que matara; os lugares que roubara; as pessoas que
machucara. Cada ato vergonhoso que cometera e cada palavra insolente que pronunciara. Vincent não
parou até que tivesse revelado tudo.
– Como se sente? – perguntou o padre quando ele terminou.
Como ele se sentia? Ele se sentia aliviado. Estava em paz. Era como se um peso enorme tivesse
sido retirado de seus ombros; como se algo não pressionasse mais o seu peito. Ele se sentia mais
livre, mais leve. Ele se sentia perdoado. Em paz.
– Eu me sinto com vontade de pintar uma porta de azul, hoje.

Mudando de posição e sentindo-se desconfortável na cadeira, Haven observava o mundo do lado


de fora pela enorme janela. Era fim de tarde e muitas crianças caminhavam pelas ruas. Elas estavam
fantasiadas, traziam consigo seus potes e iam parando de casa em casa para pedir doces. Ela os
observou sentindo uma sensação de vazio dentro de si. Eram todos tão jovens e livres; tão alheios
aos perigos que os rondavam. A jovem jamais conhecera aquele tipo de inocência. Quando tinha a
idade deles, os monstros em sua vida eram reais.
– Olá, Pé de Valsa.
Ela se virou ao ouvir aquela voz inesperada e viu Dominic de pé à porta. Ele sorriu e deu alguns
passos na direção dela, retirando do bolso um pirulito no formato de abóbora e entregando a ela.
Nesse momento, Carmine, que estava na cama, soltou um rosnado. Ele não havia se afastado dela
desde a reunião que tivera com Salvatore, há vários dias.
– Ela mal consegue segurar uma sopa no estômago e você dá um pirulito pra ela?
Dominic revirou os olhos.
– Ei, desde quando você se tornou o guardião dela? Ela é dona de si mesma. Deixe que ela dê uma
lambida. Isso não irá matá-la.
– Tudo bem. – disse Carmine, levantando-se – Vou buscar algo de verdade para ela comer.
– Sim, faça isso, Martha Stewart…Vá tricotar um cachecol para ela. Talvez umas meias também. –
retrucou Dominic.
– Vaffanculo. – Carmine respondeu ao sair do quarto.
Dominic se virou para ela.
– Esse moleque precisa se acalmar antes que tenha um enfarte.
– Ele só está tentando ajudar. – ela o defendeu – Dê um tempo para ele.
– Sei que ele está tentando ajudar, mas isso não é motivo para negar doces a alguém em pleno
Halloween.
– Obrigada. – ela respondeu, retirando o plástico e dando uma lambida – Não havia percebido que
era Halloween até ver as crianças brincando de doces ou coberturas.
Ele se sentou no braço da cadeira em que ela estava e deu risada.
– É doces ou travessuras.
– Ah. – ela disse, voltando a olhar para as crianças fantasiadas – Eu não sabia direito a palavra.
Eu nunca… Eu não tive uma infância normal.
– Bem, “normal” é relativo. – ele respondeu – Além disso, nunca é tarde demais para sair por aí
fantasiada e perguntando “doces ou travessuras?” Talvez a gente faça isso no ano que vem.
Ela sorriu, sabendo que Dominic seria mesmo capaz de fazê-lo.
– Eu iria adorar.
– É muito bom ver você. Eu teria vindo antes, mas a Tess me fez prometer que a deixaria
descansar.
– Estou feliz que esteja aqui. É muito bom ver os amigos novamente.
Ele concordou com a cabeça.
– Mas, e aí, como está se sentindo? Não pode ser fácil para alguém perder um mês inteiro de sua
vida.
– Eu estou viva. – ela disse – E isso é mais do que se pode dizer de algumas pessoas.
– Nicholas. – ele disse em voz baixa – Ele não mereceu aquilo. Era um bom amigo, sempre com
uma piada pronta para quem quisesse ouvir.
– É verdade. – ela falou, com lágrimas nos olhos e um sentimento de culpa a engolindo por dentro
– É tão idiota, mas não consigo esquecer a última piada que ele me contou. Aliás, ele estava
justamente me contando quando levou o tiro; ele nunca teve a chance de me dizer a resposta.
– Hum… Mas qual foi a pergunta, afinal?
– Por que a roda do trem é de ferro e não de borracha?
Dominic riu novamente.
– Uma piada típica do Nicholas. Ele sempre arrumava uma resposta diferente para confundir as
pessoas, mas a resposta certa era: porque se fosse de borracha apagaria os trilhos.
– Ah… – ela ficou ali parada por um momento antes de rir da piada – Gostei dessa.
– Não é idiota pensar sobre isso. Ele ficaria honrado em ser lembrado por suas piadas. – ele
disse, tocando de leve a cabeça da jovem – Bem, estou feliz que esteja se recuperando. Todos
ficaram muito preocupados com você, mas nunca duvidei de que tudo acabaria bem.
– Eu gostaria de ter essa certeza.
– Haven, por mais difícil que seja, é preciso que mantenha a esperança. Você se lembra do que eu
lhe disse antes? O que meu irmão fez foi e é horrível, porém, se eu estivesse no lugar dele, teria feito
exatamente a mesma coisa. E sei que você também o teria feito. Então, talvez não seja somente eu que
precise dar um tempo a Carmine. Tenho certeza de que, de alguma maneira, vocês conseguirão
superar essa situação. Sei que não será um conto de fadas, mas, afinal, quando é que a vida funciona
assim? Em especial para vocês dois.
– Você está certo.
– Enfim, eu tenho que ir. – Dominic se levantou e se deteve de frente para a porta, pigarreando –
Caramba, isso é o que chamo de rapidez, mano. Você está parecendo um chefe profissional nesses
últimos dias.
– Eu não preparei a comida, idiota – disse Carmine, oferecendo uma tigela de sopa de legumes a
Haven –, eu só a servi.
– Bem, então você fez um ótimo trabalho servindo a sopa.
– Obrigado, bundão. – retrucou Carmine, fingindo irritação, mas esboçando um sorriso nos lábios
– Não tem alguma coisa pra destruir com uma espada ou algo do tipo? Afinal, hoje é Halloween.
– Ah, isso me faz lembrar de algo importante! Hoje faz um ano que vocês se beijaram pela
primeira vez, seus dois malucos.
Haven sorriu.
– É verdade. Foi o dia em que eu te beijei.
– Ainda não consigo acreditar que você tenha dado o primeiro passo. Imagino que esteja
arrependida dessa decisão agora, não é?
Olhando para Carmine, ela ergueu a cabeça e, com uma expressão solene, respondeu.
– Jamais me arrependerei do que fiz.
O rosto do rapaz se iluminou quando ele ouviu aquelas palavras e na hora ela ficou envergonhada
com seus próprios pensamentos. Ela ainda estava magoada e não tinha certeza em relação ao futuro,
mas de uma coisa ela sabia: Carmine jamais a abandonara. Ela ainda se lamentava pela vida que
considerava estar perdendo, entretanto, ela sequer teria sonhado em alcançá-la algum dia, não fosse
pela luta ferrenha do rapaz desde o início. Ele sacrificara sua vida pela dela; alterara seu próprio
futuro em definitivo para dar a ela uma chance de viver. Carmine merecia uma vida afastada de toda
e qualquer violência.
Como ela perdoaria a si mesma se isso não fosse possível?
Ela suspirou depois que Dominic saiu e colocou o prato de sopa na mesinha ao lado da poltrona.
Então, levantou-se, ainda se contraindo por causa das dores e da fraqueza nas pernas. Carmine correu
em direção a ela quando viu o que ela estava tentando fazer, mas ela ergueu a mão e o interrompeu,
dando alguns passos sozinha na direção dele.
– Eu te amo, Carmine DeMarco. – ela disse, enfiando o rosto no peito do rapaz. O ombro dela
doía na região em que fora deslocado e seus joelhos fraquejaram, mas a jovem se manteve firme e
ignorou todas aquelas sensações. Nada daquilo importava. Tudo o que acontecera se apagaria de sua
memória, mas o amor que ela sentia por Carmine jamais desapareceria.
Ele a abraçou e a puxou para mais perto, repousando a cabeça sobre a dela. O sorriso de Haven se
tornou ainda mais amplo. Apesar de tudo, ela ainda se sentia absolutamente segura nos braços dele.

Com o passar do tempo, Haven foi se tornando mais forte e seus ferimentos desapareceram. Sua
mente, entretanto, ainda lutava para esquecer tudo aquilo, enquanto dias se transformavam em
semanas. Ela ainda passava a maior parte do tempo repousando, mas, de vez em quando, se arriscava
a sair da casa com Carmine. Ele segurou a mão dela na primeira vez que caminharam pela rua,
indicando diferentes pontos que marcaram sua infância. Eles estavam a mais ou menos um quarteirão
da casa de Celia quando ela sentiu as pernas fraquejarem. Os dois pararam de frente para uma grande
casa branca. Carmine a ajudou até chegarem à varanda e se sentou.
– Não acho que você deveria se sentar na varanda da casa dos outros. – ela sussurrou – Eles
podem não gostar.
– Essa é nossa casa, tesoro – ele disse com um sorriso contido, puxando-a para que ela se sentasse
ao lado dele – Esta é a casa onde eu cresci, mas permaneceu vazia desde que minha mãe…
Desde que ela fora assassinada, Haven pensou, terminando a frase que ele ainda não conseguia
pronunciar. Ela então olhou para a porta recém-pintada de azul, que contrastava bastante com as
janelas vermelhas e envelhecidas.
– O que vamos fazer, Carmine? – ela perguntou – O que acontece agora?
– Nós retornamos a Durante. Sal vai me dar algum tempo antes de exigir que eu me mude para cá.
Fora isso, acho que teremos de ir aprendendo ao longo do caminho.

E foi exatamente isso o que ambos fizeram. Poucos dias depois, o doutor DeMarco alugou um
carro e os três pegaram a estrada rumo a Durante. Ela dormiu bastante, espalhada no banco de trás,
enquanto Vincent e Carmine se revezavam na direção. Eles pararam tantas vezes que demorou alguns
dias até que finalmente se deparassem com a velha placa marrom: Bem-vindos a Durante.
Uma sensação estranha se apossou de Haven quando eles deixaram a estrada principal e seguiram
para a antiga casa de fazenda. Não se tratava de dor ou pesar, mas de um profundo desconforto no
peito, que pressionava seu coração e lhe roubava a respiração.
Ela somente se deu conta do que estava acontecendo quando Carmine disse as palavras em voz
alta:
– Finalmente, lar doce lar.
Lar. Ela agora compreendia. Pela primeira vez em toda sua vida, ela podia chamar um lugar de lar.
Era o lugar em que ambos se encontraram pela primeira vez; o ninho onde descobriram o amor
verdadeiro.
Agora Haven compreendia o significado daquela palavra.
Capítulo 51

Acostumar-se novamente ao lugar não foi fácil. Haven se sentia assombrada pelas lembranças que
surgiam em seus sonhos e que continuavam a persegui-la mesmo quando acordada. Flashes de rostos,
gritos terríveis e palavras mordazes constantemente surgiam em sua cabeça, e a pior parte era não ter
certeza do que havia sido real.
Ela voltou a escrever nos cadernos e a desenhar as imagens que surgiam em sua mente. Seu
monstro retornara, assombrando-a com sua face sórdida e seus olhos maldosos. Aquilo a fazia
lembrar que, independentemente de onde fosse, aquela parte de sua vida jamais ficaria para trás.
Carmine também se mostrava distraído e pesadelos voltaram a atrapalhar seu sono. Ele começou a
sair da cama no meio da noite e, às vezes, ela o seguia e ouvia enquanto ele tocava a mesma música,
por horas a fio.
Eram duas crianças cujos corações estavam partidos; ambas desesperadas para se tornarem
completas mais uma vez. Os dois lutavam para conseguir encontrar equilíbrio em um mundo sobre o
qual não exerciam nenhum controle. Então, Haven se perguntava: Quem era Carmine agora? Uma
alma que fora violentamente cortada ao meio e que sangrava diante dos olhos de todos. O yin e o
yang; o bem e o mau; o amor e a dor num eterno confronto. Dois lados, dois mundos absolutamente
distintos, mas um dia eles se fundiriam como um só. Eles precisavam.
Il tempo guarisce tutti i mali. O tempo cura todas as feridas.

Algumas coisas na vida somente acontecem uma vez, mas as lembranças que provocam duram para
sempre. São momentos que mudam a pessoa por dentro, transformando-a em outra que jamais
considerou possível se tornar, mas que fazia parte de seu destino. Na vida não existe um botão
mágico que possa ser pressionado, fazendo com que tudo volte no tempo; não há como se arrepender
ou refazer as coisas que gostaria que fossem diferentes.
Se houvesse, Carmine retornaria aos oito anos de idade e pediria que sua mãe esperasse pelo
carro que os levaria para casa depois do recital. Eles não acabariam naquela viela, e a mãe teria
vivido para experimentar um novo dia.
Ele voltaria aos dezesseis e guardaria sua arma, em vez de colocá-la na cintura e dirigir até a casa
do seu melhor amigo, totalmente descontrolado. O passado ficaria no passado e haveria paz no lugar
de rivalidades, que acabavam por machucar a todos no final.
Ele estaria de volta à cozinha naquela noite, quando ainda tinha dezessete, limpando o suco
derramado, em vez de assustar Haven como fez. Ele não teria julgado aquela garota estranha e, com
isso, possivelmente teria descoberto o que era amor um pouco mais cedo.
De fato, havia vários lugares e momentos aos quais Carmine retornaria, muitas coisas que ele teria
feito diferente. Porém, havia um único ato do qual jamais se arrependeria: ter feito o que fez para
salvar a vida dela.
Sacrifício. Era algo que havia aprendido com sua mãe, quando ela deu a própria vida para salvar
aquela menina. Ele também o aprendera com seu pai, que fez um juramento para uma organização
criminosa, apenas para poder ficar com a mulher que amava. Até mesmo Corrado se arriscara por
ele, colocando em cheque a própria segurança para poupar-lhes mais dor.
Ele também tinha aprendido com Nicholas, que estendera a mão para ajudar uma estranha, mas
recebera em troca nada além de uma bala no peito, que encerrou sua vida tão precocemente.
Se Carmine pudesse retornar ao passado, ele teria realmente se desculpado com o amigo naquele
dia.
A vida é uma luta constante, e tudo seria mais fácil se ela viesse com uma borracha, mas esse não
é o caso. O que está feito, está feito, independentemente do quão difícil seja aceitá-lo.
Às vezes, entretanto, as pessoas ganham uma segunda chance. Elas têm a oportunidade de tentar
outras vezes. Já era tarde demais para muita gente, mas Carmine ainda era abençoado com mais
tempo. Tempo para que ele tentasse fazer as coisas certas.
– Carmine?
Carmine olhou para sua professora de História, a senhora Anderson, e sentiu um estranho senso de
déjà vu diante de seu olhar cheio de expectativa.
Ele havia sido reprovado no ano anterior em sua matéria e precisava assistir a suas aulas
paralelamente ao último ano do colégio para garantir sua graduação.
Não que ele esperasse por um diploma. Ele já havia perdido mais de um mês de aulas.
– Sim?
– É sua vez.
Soltando um suspiro, ele caminhou até a frente da sala e viu todos os olhos se voltarem para ele.
Todos esperavam um show, mas Carmine só tinha uma coisa em mente: Redenção.
– A Batalha de Gettysburg ocorreu em Gettysburg, na Pensilvânia, no ano de mil oitocentos e
alguma coisa. O ano não importa.
A senhora Anderson tentou interrompê-lo, mas fechou a boca e deixou que ele prosseguisse.
– Eles consideraram aquela batalha um evento decisivo naquela guerra, e o Presidente Lincoln
apareceu para fazer seu grande discurso. Quem se importa com o nome que se dá pra isso? Eu não me
importo. Depois que tudo já estava terminado e o Norte havia conseguido a vitória, o congresso
aprovou a 13ª emenda para libertar os escravos, o que tornava crime a prática de manter outra pessoa
como sua propriedade, e blá… blá… bla… Mas aquilo foi uma perda de tempo. Tudo aquilo.
– Carmine?
Ele mais uma vez ignorou a professora e continuou como se ela nada tivesse dito.
– Todas aquelas pessoas morreram e nada, absolutamente nada mudou, porque a coisa não
funciona se a lei não for aplicada. Eles dão as costas e dizem que não é problema deles, mas é. É
problema de todos. Eles podem dizer o quanto quiserem que a escravidão acabou, o que não faz
disso uma verdade. As pessoas mentem. Elas dirão a você o que acham que você quer ouvir, e você
vai acreditar. Aliás, você acreditará em qualquer coisa que o faça se sentir melhor em relação à sua
própria vida insignificante.
– Basta, Carmine.
– Então, seja lá como for. Continuem sendo ingênuos. Acreditem no que os livros de História
contam, se quiserem. Acreditem no que a senhora Anderson deseja que eu diga a vocês. Acreditem na
terra da liberdade, blá… blá… blá… e em toda essa merda que está escrita no hino dos Estados
Unidos. Acreditem que já não existam mais escravos, simplesmente porque um sujeito alto, com uma
cartola idiota, mais um bando de políticos assim o disseram. Mas eu não vou acreditar, porque se eu
também o fizer, todos nós estaremos errados, e alguém tem que manter a razão aqui.
A senhora Anderson ficou de pé e Carmine sorriu para si mesmo. Afinal, talvez eles tivessem
conseguido o show que esperavam.
Ele então pegou suas coisas e saiu da sala antes que ela tivesse a chance de expulsá-lo. O corredor
estava deserto e o prédio, todo em silêncio quando ele apareceu na frente da sala do diretor.
Rutledge se levantou e foi até o balcão da secretaria, olhando surpreso para Carmine quando ele
entrou.
– Meteu-se em encrencas outra vez?
– Eu? Claro que não.
O diretor suspirou.
– Já faz algum tempo.
– É, eu sei, mas não se preocupe… Esta é a última vez que terá de olhar pra minha cara.

Haven estava de pé na cozinha preparando algo para comer quando o doutor DeMarco entrou.
– Quando tiver um tempinho, poderia ir até o meu escritório?
Nervosa, ela acenou com a cabeça. Por que ele iria querer conversar com ela? Depois de perder o
apetite, ela resolveu embrulhar e guardar o sanduíche na geladeira. Embora ele raramente deixasse a
casa, depois que o hospital o despediu ao saber que ele fora preso em Chicago, há semanas ela e o
doutor DeMarco não trocavam mais que meros cumprimentos e amenidades.
Quando já não podia mais adiar o encontro, Haven se dirigiu até o escritório de DeMarco e bateu
à porta, abrindo-a quando ele a convidou a entrar.
– Sente-se. – ele disse, fazendo um movimento na direção da cadeira à sua frente. – Como você
está?
Ela se sentou e o observou com cautela.
– Estou bem, senhor.
– Está mesmo? – ele perguntou, erguendo as sobrancelhas – Você não me parece muito bem.
Ela o encarou, tentando encontrar um meio de responder.
– Estou tentando lidar com a situação.
– Está começando a se lembrar das coisas?
Ela estava ansiosa para saber aonde aquela conversa iria levá-los.
– Sim, mas não tenho certeza quanto às coisas em que posso acreditar. Eu tive muitas alucinações.
– Não quero pressioná-la para obter detalhes, mas, se tiver qualquer pergunta, eu as responderei.
Ela pensou na oferta dele.
– Sou mesmo uma Principessa?
Ele se recostou na cadeira e a olhou com interesse.
– Bem, tecnicamente, sim. Minha esposa chegou perto demais de descobrir isso e foi por isso que
a mataram.
Um sentimento de culpa a consumiu.
– Por minha causa.
– Não, não foi por sua causa. – ele respondeu, em tom sério – Foi por você.
– Existe alguma diferença?
– Sim. – ele disse – Eu mesmo costumava culpá-la. Eu acreditava que ela tivesse morrido por sua
causa e demorou muito até que eu percebesse que minha raiva era infundada. Na verdade, há algumas
pessoas que eu poderia culpar, sendo eu uma delas, inclusive. Mas não você. Se eu tivesse percebido
isso antes, talvez tivesse evitado muito sofrimento para nós dois.
Ela o encarou surpresa, e então ele continuou depois de uma breve pausa.
– O dia em que a encontramos em Chicago foi 12 de outubro. Eu estava tão envolvido com tudo o
que estava acontecendo que só percebi no dia seguinte que havia sido o aniversário da morte de
Maura. No ano passado, naquele dia, você não teve nenhuma chance. Independentemente do que
fizesse, eu a teria pego, porque não dizia respeito a você; dizia respeito a ela.
Ela sentiu um calafrio ao se lembrar daquela tarde.
– Quero que saiba que jamais a odiei. Eu não poderia odiá-la; sequer a conhecia. E eu não a
conhecia porque não queria gostar de você e me preocupar com você. Por nove anos eu passei cada
12 de outubro desejando poder puni-la, mas este ano, a única coisa em que conseguia pensar era em
resgatá-la. Ou seja, em fazer exatamente aquilo que minha esposa desejava e que acabaria por levá-
la à morte. – mais uma pausa – Estou andando em círculos, e não tenho certeza de que irá acreditar
em mim, mas quero que saiba que passei a gostar de você. E, em relação ao que fiz a você no ano
passado, não espero perdão, mas quero lhe dizer que sinto muito. Se eu pudesse voltar atrás, eu
certamente o faria.
Ele empurrou a cadeira para trás e caminhou até a jovem, erguendo a calça e mostrando-lhe a
tornozeleira eletrônica.
– Sabe o que é isso?
– Não.
– Isso é um dispositivo de monitoramento por GPS. Ele faz parte do acordo de fiança. – os olhos
dela se arregalaram, e ele riu da expressão da jovem – Engraçado, não é? Não se faz ideia do que é
ter todos os seus passos vigiados até que aconteça com você. Em algum lugar há um homem
verificando cada um dos meus movimentos, para se assegurar de que eu não tente fugir.
– É, soa familiar.
– Sim, tenho certeza de que soa. – ele disse – Tive minhas razões para colocar um chip em você, o
que não significa que o que fiz foi certo. Eu pedi um último favor a um colega, o mesmo que cuidou
de Carmine depois do acidente, e marquei um horário para você. Eu posso estar preso ao meu
dispositivo de monitoramento, mas isso não quer dizer que não possa livrá-la do seu.
Haven ficou boquiaberta enquanto tentava encontrar as palavras certas.
– Obrigada.
– De nada, mas não mereço sua gratidão. Nesse momento só estou tentando reparar meus erros. –
ele voltou a se sentar e viu lágrimas escorrerem pelo rosto de Haven – Enfim, há uma última coisa.
Quero lhe dar isso antes que nossos convidados cheguem. Este pode ser o último Natal que passo
com minha família, então gostaria que fosse perfeito. Tenho certeza de que irão me pegar mais cedo
ou mais tarde. – ele disse ao abrir a gaveta de cima de sua escrivaninha e retirar de lá um livro de
capa de couro preto, bastante familiar. Em seguida, colocou-o diante dela – Esse é o diário de minha
esposa. Acho que deveria guardá-lo com você.
– Eu? Por quê?
– Ela escreveu muito sobre como foi se ajustar a essa vida e também sobre os sentimentos
conflitantes que tinha em relação ao mundo ao qual eu pertencia. – ele explicou – Isso poderá ajudá-
la a seguir em frente.
Ela pegou o livro com cuidado.
– Tem certeza?
– Absoluta. Maura teria desejado isso.
Haven se levantou e seguiu em direção à porta, mas se deteve antes de alcançá-la.
– Não muito tempo depois de ter chegado aqui, o senhor me pediu que não o chamasse de Mestre,
porque isso fazia com que se sentisse igual ao meu pai. Michael Antonelli era um homem horrível, e,
apesar de tudo o que houve, o senhor foi muito mais generoso comigo do que ele. Portanto, eu o
perdoo por me machucar, porque o senhor me ajudou mais do que qualquer outra pessoa. O senhor é
um bom homem, Vincent, e acho que, às vezes, bons homens acabam fazendo coisas ruins.
A expressão de DeMarco permaneceu a mesma, mas, pela primeira vez desde que o conheceu, a
jovem viu os olhos daquele homem se encherem de lágrimas.
– Obrigado, Haven.
Haven. Ele finalmente pronunciara o nome dela, e a sensação não poderia ter sido mais estranha.
Ela enxugou as lágrimas e saiu, sabendo que não havia mais nada a dizer. No momento em que parou
no hall, ela encontrou Carmine vindo da escada. Ela o olhou de um jeito peculiar.
– Você chegou mais cedo.
– É, o colégio estava entediante. – ele retrucou, dando de ombros – E como você está hoje?
– Muito bem.
Ele ergueu a sobrancelha e perguntou.
– Muito bem? E esse “muito bem” quer dizer “estou em busca de uma janela para me atirar, mas
não vou lhe dizer isso para que não me impeça” ou seria um “muito bem” do tipo “Caramba,
Carmine, eu estou ótima, então vê se para de me perguntar a mesma coisa!”?
Ela deu risada.
– Eu só estou… muito bem. Principalmente agora que você está aqui.
Ele a beijou antes que os dois subissem para o terceiro andar. Acomodando-se nas poltronas da
biblioteca, Carmine pegou seu violão enquanto Haven olhava para a capa do diário de Maura.
– Ainda está lendo O Jardim Secreto? – ele perguntou.
– Não, terminei aquele livro há alguns meses.
– Verdade? E o que aconteceu na história?
Ele não parecia realmente interessado na resposta, e logo se concentrou em olhar para as cordas
enquanto dedilhava. Mesmo assim, ela sorriu pelo fato de ele ter perguntado.
– A garota chega à conclusão de que o homem mau com quem ela vivia não era de fato tão ruim
quanto pensava. Ele só estava sofrendo pela perda de sua esposa. Ela faz amizade com o filho dele,
um garoto para o qual o próprio pai não consegue olhar há muito tempo, simplesmente porque ele o
faz se lembrar da mulher amada que perdera.
Carmine parou de tocar de repente e olhou para Haven.
– Tá de brincadeira?
Ela balançou a cabeça e respondeu.
– Não.
– Destino! – ele disse, olhando para o livro nas mãos dela – É o diário de minha mãe.
– Sim, é ele. Seu pai o deu para mim.
Ele se voltou para o violão e começou a dedilhar novamente; a música logo preencheu o cômodo
enquanto um raio de sol atravessava a janela principal. Ela permaneceu em silêncio, observando o
rapaz, e seu peito transbordou de amor quando sua passagem favorita de O Jardim Secreto ressurgiu
em sua mente.
Uma das coisas mais estranhas de se viver no mundo é que só de vez em quando a gente tem certeza de que irá viver para
sempre… às vezes um som distante de música faz com isso que seja verdade; às vezes, um olhar nos olhos de alguém.

Sentada na biblioteca ao lado daquele jovem repleto de cicatrizes que roubara seu coração, Haven
sentiu exatamente o mesmo; os profundos olhos verdes do rapaz cintilavam enquanto ele dedilhava
uma bela canção.
Sempre. Independentemente do que acontecesse no instante seguinte, ou no dia seguinte, nada nem
ninguém jamais roubaria aquilo dos dois. A despeito de qualquer coisa, o amor entre eles era
verdadeiro e resistiria para sempre. Aquele momento ficaria gravado no tempo, transcendendo os
limites impostos pela própria vida. Pois, mesmo depois que partissem, e a vida continuasse, uma
parte deles sempre existiria em tudo e em todos que tivessem tocado em algum momento.
Ela então se voltou para o diário e o abriu, respirando fundo ao ler a primeira frase.

Hoje é o meu primeiro dia como uma mulher livre.


Agradecimentos

Embora o livro Sempre seja uma obra de ficção, o conceito da escravidão nos dias de hoje é
absolutamente real. Segundo estimativas, existem hoje 27 milhões de pessoas no mundo todo sendo
mantidas como escravas, forçadas a trabalhar ou prestar favores sexuais. A maioria delas é do sexo
feminino, sendo que a metade é composta por garotas jovens. Essas pessoas poderiam ser nossas
mães, nossos pais, nossas irmãs e nossos irmãos. Elas poderiam ser nossos amigos, nossos
parceiros, nossos vizinhos ou nossos filhos. Elas poderiam ser nós mesmos. Isso pode acontecer com
qualquer pessoa, até mesmo com você.
Torne-se um abolicionista. Se não lutarmos por eles, quem o fará?
Devo agradecer primeiramente à minha família. Eu não seria a pessoa que sou hoje sem o amor e o
apoio eternos demonstrados por eles. Mesmo quando enfrentei dificuldades e parecia ter perdido
meu rumo, meus familiares nunca desistiram de mim (mesmo quando eu mesmo já havia desistido).
Dedico este livro ao meu pai, de quem herdei não somente o amor pela leitura, mas também o livro
O Poderoso Chefão. Jamais poderia agradecê-lo o suficiente. Dedico-o também à minha mãe, que me
mostrou o significado da verdadeira resistência. Gostaria que vocês dois estivessem aqui para ler
esta obra.
Quero agradecer ainda ao meu agente rock star, o incomparável Frank Weimann, por se arriscar ao
me permitir escrever essa história, e por não ter se apavorado quando lhe enviei um manuscrito
extremamente longo. Agradeço também a Kiele Raymond, Lauren McKenna, Jen Bergstrom, Kristin
Dwyer, Jules Horbachevsky e a todos na Pocket Books/Simon & Schuster pelo apoio e trabalho
árduo. Jamais conseguiria expressar de modo adequado quão grato sou a todos vocês por me
ajudarem a transformar meus sonhos em realidade.
Agradeço também à minha professora de Inglês do primeiro ano do colegial, Melissa Agee, por ter
sido a primeira pessoa a dizer: “Você poderá se tornar uma escritora importante no futuro”. Você fez
com que eu acreditasse em mim mesmo. Também agradeço ao meu professor de escrita criativa do
primeiro ano da faculdade, cujo nome não irei mencionar. Certa vez, ele me disse que eu jamais
escreveria nada que valesse a pena publicar. Suas palavras me fizeram lutar e me esforçar para me
tornar uma escritora profissional.
Gostaria de agradecer a Traci Blackwook, que investiu um número incontável de horas ao meu
lado, revisando o roteiro e a estrutura dessa obra. Você, minha amiga, é uma pessoa mágica, e sua
ajuda foi inestimável. A Sarah Anderson, por sempre estar disposta a arregaçar as mangas quando me
via prestes a me fechar em mim mesmo. Ninguém fala “dedos tortos” como você. Não poderia
imaginar uma colega melhor para escrever. Agradeço também a todos os que leram essa história
desde o princípio e comentaram, revisaram, questionaram, me encorajaram (ou até zombaram do
conteúdo). Aprendi muito com cada um de vocês, tanto coisas boas quanto ruins. Agradeço ainda a
Vanessa Diaz. Acredito sinceramente que ela não tenha percebido o tamanho e a importância de sua
influência nesse trabalho. Contar com alguém que ame tanto as minhas palavras é um verdadeiro
sonho.
Existem tantas outras pessoas às quais gostaria de agradecer, mas isso ocuparia outras 500
páginas. Tenho certeza de que vocês sabem de quem estou falando. Grazie mille a todos. Um
agradecimento especial a Lion Shirdan, por ler o material e acreditar nele.
Por fim, quero agradecer a Stephenie Meyer, J. K. Rowling, L. Frank Baum, Mario Puzo e Richelle
Mead… Nunca tive o prazer de conhecer nenhum de vocês (e é bem provável que isso jamais
aconteça), mas todos tiveram um enorme impacto em minha vida, algo que seria impossível
descrever com palavras. Um abraço especial aos fãs da saga Crepúsculo. Com frequência alguém
pega no nosso pé por causa do nosso amor por um certo vampiro pálido e cintilante. Nem sempre nós
nos damos bem ou concordamos uns com os outros, mas ninguém pode negar que somos uma força a
ser reconhecida. Vocês sempre ocuparão um lugar em meu coração.

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