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Quinhentos Anos de Medo e Amor – capitulo I do livro - Colonialismo, Modernidade e Política


de Partha Chatterjee

A chegada de Vasco da Gama em Calicute em 1498 e todos os processos de vastas


conseqüências nos séculos subseqüentes que este evento teria supostamente inaugurado
constituem um verdadeiro campo minado ideológico. É claro, há algumas rotas seguras através
desse campo que foram plotadas e percorridas pelo menos desde o período da descolonização
em meados do século XX. Aqueles que desejam fazê-lo de forma segura falam da humanidade
e da fraternidade universal, da falsidade das distinções entre oriente e ocidente, da história
como progresso indubitável do atraso em direção à modernidade, do acesso universal aos
benefícios da ciência e da tecnologia modernas e, em anos mais recentes, da entrada
desembaraçada na terra dos sonhos do consumo universal no milênio da globalização. Não
querendo ameaçar essa rota segura, o autor dessa comunicação volta-se para alguns dos
aspectos morais e políticos colocados pela história das relações entre Europa e Ásia meridional
nos últimos quinhentos anos.

Quando Vasco da Gama chegou na costa Malabar em 1498 com quatro embarcações
relativamente pequenas, ele estava, como se costuma dizer, "procurando cristãos e
especiarias”. O último motivo nos parece óbvio agora, por tudo o que sabemos sobre a
importância do comércio para a busca européia por rotas marítimas e novos continentes na
chamada era dos descobrimentos. De fato, nos primeiros anos do século XVI, logo após a
abertura da rota do Cabo para a Ásia, a composição da carga de torna-viagem para Lisboa
mostra a preponderância esmagadora de itens como pimenta, gengibre, canela e cravo,
embora essa composição fosse mudar muito rapidamente.' Em relação ao outro objetivo da
visita, entretanto, podemos bem nos perguntar por que alguém enfrentaria os perigos de
navegar através de mares não mapeados e perigosos para procurar cristãos na índia. Aqui,
temos de nos recordar do mundo ideológico habitado por homens como Gama. Nossas idéias
atuais que associam a expansão européia a uma atividade econômica racional e a um governo
moderno passam por cima do fato de que essa conexão só surgiu gradualmente ao longo dos
quinhentos anos de que estamos falando, e que não se aplica à primeira parte deste período
da mesma forma que poderia se aplicar à última. Efetivamente, um motivo importante para as
expedições portuguesas à índia foi conformado pelas lendas e rumores acerca de um certo
Preste João, um governante cristão supostamente vivendo em algum lugar do oriente, que
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diziam estar ávido para unir suas forças às dos reis da Europa em sua cruzada contra o Islã. Em
uma atmosfera carregada com as memórias da recente “reconquista" da península ibérica das
mãos dos chamados mouros e uma situação estratégica em que governantes e mercadores
muçulmanos ao longo das costas da África, Arábia e Pérsia eram vistos como os principais
obstáculos para a expansão européia na região do Oceano Índico, seria compreensível o
motivo de que a busca por um aliado cristão no oriente parecesse tão premente aos grupos
dominantes em Lisboa. De fato, historiadores recentes nos alertaram para o fato de que os
motivos do comércio e da religião não operaram da mesma maneira nem com a mesma força
em todos os setores influentes da corte portuguesa e que há um relato político muito mais
complexo de como Vasco da Gama foi finalmente escolhido para liderar a expedição para a
índia.2 De toda forma, os dois motivos de fato explicam muitos aspectos curiosos dos
acontecimentos no decurso da jornada do argonauta. Os navios de Vasco da Gama ancoraram
ao largo da costa de Calicute no domingo, vinte de maio de 1498. O primeiro português a
desembarcar no dia seguinte relatou o seguinte: Esta cidade de Calicute é de cristãos, os quais
são homens baços. E andam [parte] deles com barbas grandes e os cabelos da cabeça
compridos, e outros trazem as cabeças rapadas e outros tosquiadas; e trazem em a moleira
uns topetes, por sinal que são cristãos; e nas barbas bigodes. E trazem as orelhas furadas, e
nos buracos delas muito ouro. E andam nus da cinta para cima, e para baixo trazem uns panos
de algodão muito delgados; e estes que andam vestidos são os mais honrados, que os outros
trajam-se como podem.3 Nos dias seguintes, os portugueses obviamente tornaram-se uma
grande curiosidade na cidade, uma vez que eram seguidos por grandes multidões que incluíam
mulheres e crianças. Eles viram um grande edifício que pensaram ser uma igreja. Ele tinha um
grande tanque a seu lado, e um pilar na entrada com a figura de um pássaro. Pequenos sinos
estavam pendurados no pórtico que levava a uma câmara interna dentro da qual, os visitantes
relataram, “havia uma pequena imagem que eles [os locais] disseram ser Nossa Senhora”. Não
foi permitida a entrada dos portugueses nessa câmara e eles tiveram de dizer suas preces de
fora, após o quê alguns homens usando colares de contas aspergiram sobre eles água benta e
uma cinza branca, a qual, os visitantes notaram, “os cristãos desta terra têm o hábito de
colocar em suas frontes, e corpos, e ao redor do pescoço e nos seus antebraços”. O relatório
menciona que Vasco da Gama tomou a cinza oferecida a ele mas conseguiu evitar que fosse
colocada em seu corpo.4 Conto essa história para levantar uma questão que está
inextrincavelmente conectada às relações entre a Europa e a (India nos últimos cinco séculos -
a questão da incompreensão cultural. Nesse caso, o erro é óbvio, até ridiculamente óbvio. A
explicação, também, não precisa ser buscada muito longe. Como nos diz Sanjay
Subrahmanyam, o mais recente biógrafo de Gama, os portugueses esperavam encontrar no
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oriente cristãos cujas práticas fossem diferentes das suas próprias. “Como estavam
convencidos de que estavam em terras de algum tipo de cristãos desviantes, qualquer coisa
que não fosse explicitamente islâmica parecia, por eliminação, ser cristã”.'’ À medida que os
contatos foram se tornando mais regulares e íntimos ao longo dos séculos subseqüentes,
houve, é claro, um grande acúmulo de conhecimento europeu sobre a índia. De fato, da época
do lluminismo em diante, os estudiosos e administradores europeus passariam a reclamar uma
posição distintamente privilegiada como os intérpretes cientificamente autorizados das
informações sobre os recursos naturais e a vida social na índia. Desnecessário dizer, os novos
peritos não cometeriam os mesmos erros que os primeiros visitantes portugueses. E contudo,
a questão ainda está em aberto: de que forma as suposições culturais preconcebidas e não
examinadas dos europeus sobre a índia modelaram e talvez distorceram até mesmo o
entendimento supostamente científico da índia nas disciplinas modernas do conhecimento
social? Para prosseguir com o exemplo provido pelo relato do primeiro português a visitar
Calicute, embora nenhuma pessoa bem informada vá cometer hoje o engano de identificar
como cristãos sacerdotes usando cinzas brancas em suas frontes e colares sagrados ao redor
de seus torsos, qual a validade de supor que o que aqueles homens representavam era uma
religião? Poderia ser um mero preconceito da Europa esclarecida a suposição de que a religião
é um universal cultural? Por que assumimos que todas as sociedades humanas, ou em
qualquer medida sociedades com um certo grau de complexidade civilizacional, devem ter algo
que responda ao conceito de “religião”?6 O caso é mais sério do que um mero erro de
identificação. É possível rirmo-nos do engano cometido pelos homens de Vasco da Gama. E o
que diríamos se acontecesse que, após serem educados por umas poucas gerações nas
disciplinas científicas modernas, os descendentes dos homens com colares sagrados fossem
agora cuidar de suas vidas com a sincera convicção de que o que eles têm, ou melhor, do que
eles devem ter, é uma religião? O problema é central para a complexidade das relações entre
Europa e índia, e teremos ocasião de voltar a ele mais tarde. Como os indianos reagiram ao
encontro com os primeiros visitantes europeus através dos mares? Não sou um historiador
desse período e é possível que existam fontes que respondam a essa questão. A literatura
secundária que tenho visto, entretanto, parece ser inteiramente baseada nas avaliações
portuguesas. O que pode ser inferido por elas é que os visitantes foram saudados inicialmente
com uma curiosidade emocionada, seguida por uma precaução crescente à medida que os
portugueses, alarmados pelo medo de cair em alguma abominável armadilha oriental,
começaram a agir com grande suspeita e obstinação, culminando em uma sensação de ultraje
quando os portugueses começaram a apresar cativos e a bombardear a costa e as outras
embarcações. Deve ter demorado algum tempo para que a verdade emergisse e para que se
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compreendesse que este era o alvorecer de uma nova era sobre os mares indianos - à qual um
historiador recente denominou até delicadamente de era do “comércio hostil".7 K. N.
Chauduri resume as mudanças da seguinte forma: “A chegada dos portugueses no Oceano
Índico pôs abruptamente um fim no sistema de navegação transoceânica pacífica que tanto
havia caracterizado a região... A importação pelos portugueses do estilo mediterrâneo de
comércio e de guerra, por terra e por mar, era uma violação das convenções estabelecidas e
certamente uma nova experiência”.8 Na primeira década após a primeira visita de Vasco da
Gama, os portugueses procuraram exercer pela força algum tipo de monopólio sobre o
comércio no Oceano Índico e obrigar os outros a navegar apenas com sua permissão.9 Por
volta da década de 1580, Zain alDin Ma’bari escrevia longamente sobre as “proezas infames”
dos portugueses, que haviam trazido a ruína sobre a sociedade malabar o incêndio de cidades
e mesquitas, a interrupção do “hajj” e o assassinato de nobres e homens instruídos. Sua
resposta era inspirar os muçulmanos do Malabar a lançarem uma “jihad” contra esses “vis e
odiosos infiéis”.10 No extremo oriental do litoral indiano, ao longo da baía de Bengala, onde a
presença portuguesa era mais proeminente na forma de comerciantes privados e
aventureiros, duas palavras entraram para o vocabulário benqati como sinônimos populares
para pirata do mar - “harmad” (de “armada”) e “bombete” (de “bombardeiro”). Resumindo as
reações naquela parte da índia à chegada portuguesa, um historiador nacionalista de Bengala
escreveu: “com uma consistência estranha e perversa, os portugueses continuaram a ferir as
suscetibilidades de uma sociedade civilizada e de uma corte culta, com seu fracasso em se
conformar aos mais altos padrões de conduta internacional prevalentes na índia”.11 Pode ser
feita a pergunta: como os europeus justificavam, já bem adentrado o século XVII, a continuada
disrupção violenta de uma região de comércio marítimo relativamente pacífico quando na
própria Europa os esforços já eram no sentido de assegurar algum tipo de “lei dos mares”
pactuada? A resposta é fornecida por João de Barros, um estudioso português. Escrevendo em
1552, ele afirma bem claramente: Porque ainda que por direito comum os mares são comuns,
e patentes aos navegantes... esta lei há lugar somente em toda a Europa, acerca do povo
cristão; que como por fé, e baptismo está metido no grémio da igreja romana, assim no
governo da sua política se rege pelo Direito romano.... Porém, acerca dos mouros e gentios,
que estão fora da lei de Cristo Jesus, que é a verdadeira que todo o homem é obrigado ter, e
guardar, sob pena de ser condenado, a parte que ela anima não pode ser privilegiada nos
benèficios das nossas leis, pois não são membros da congregação evangélica, posto que sejam
próximos por racionais, e estão, enquanto vivem, em potência, e caminho para poderem
entrar nela”.'7 Hoje, poderia parecer que essas palavras foram escritas por algum fanático
monge guerreiro medieval, mas o historiador Charles Boxer nos assegura que Barros era um
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humanista e um destacado membro da algo abortada Renascença portuguesa do século XVI.13


Não acho isso estranho ou contraditório. Antes, vejo nessa justificação da agressiva expansão
ultramarina um exemplo precoce da estrutura argumentativa produzida pelo que chamei em
outro lugar de “regra da diferença colonial”.14 Ela ocorre quando se defende que uma
proposição normativa de suposta validade universal (e muitas dessas proposições seriam
enunciadas nos séculos que nos separam das primeiras expedições portuguesas) não se aplica
à colônia em razão de alguma deficiência moral inerente a esta. Assim, apesar de os direitos do
homem terem sido declarados em Paris em 1789, a revolta em São Domingos (hoje Haiti) seria
reprimida porque aqueles direitos não poderiam se aplicar a escravos negros. John Stuart Mill
exporia com grande eloqüência e precisão seus argumentos que estabeleciam o governo
representativo como o melhor governo possível, mas imediatamente acrescentaria que isso
não se aplicava à índia. A exceção não invalidaria a universalidade da proposição; ao contrário,
ao especificar as normas pelas quais a humanidade universal deveria ser reconhecida, ela
fortaleceria seu poder moral. No caso das expedições portuguesas a norma era dada pela
religião. Mais tarde, seria fornecida pelas teorias biológicas do caráter racial ou pelas teorias
históricas da realização civilizacional ou pelas teorias sócio-econômicas de desenvolvimento
institucional, cada caso, a colônia seria tornada a fronteira do universo moral da humanidade
normal; além dela, as normas universais poderiam ser mantidas em suspensão. Eu me referi
mais cedo ao mundo ideológico dos homens das primeiras expedições portuguesas. Há um
entendimento geral que trata esse mundo como mais marcado por uma tradição medieval
européia de fanatismo religioso que por sua ética moderna de inovação racional e
lucratividade. Em concordância com isso, é feita uma distinção entre a primeira fase da
expansão ultramarina européia, caracterizada pelo banditismo, intolerância e crueldade dos
portugueses que, por causa de seu atraso, não estavam aptos a estabelecer um império
extenso e durável no Oriente, e uma fase posterior de colonialismo holandês, inglês e francês,
cujos efeitos duradouros, distribuídos por mais de duzentos anos, foram supostamente a
disseminação do capitalismo, do progresso tecnológico e da governança moderna. Sanjay
Subrahmanyam argumentou recentemente contra essa proposição.16 Se o atraso cultural foi
responsável pelo fracasso dos portugueses em estabelecer colônias extensas na Ásia, como
poderiam os mesmos portugueses no mesmo período se capazes de fazê-lo nas Américas? Se
eles se viram frente a uma resistência superior oferecida pelos poderes locais na índia, então,
certamente, o que lhes faltou não foi alguma ética misteriosa de organização racional e
inovação técnica, mas antes a capacidade de mobilizar uma força militar suficiente. Esse ponto
necessita ser mais estendido porque constitui mais um elemento de continuidade na história
da presença européia no sul da Ásia nos últimos cinco séculos. Seja na fase inicial ou na
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posterior, a força militar sempre foi um elemento constitutivo dessa presença. Não foi o único
elemento, mas foi uma parte fundamental e necessária do colonialismo europeu na índia.
Houve muitos estados indianos anteriores fundados na conquista, mas nenhum foi mantido
como colônia. Quando aqueles impérios entraram em colapso, não houve uma
"descolonização” como ocorreu em meados do século XX. Há dessa forma algum significado
histórico no fato de que quando a última colônia européia em solo indiano foi derrubada, em
Goa em 1961, foi necessária a mobilização de uma força militar,-ainda que fosse uma força
relativamente pequena pelos padrões de nosso século crivado de guerras. Não vejo o terror e
a violência das primeiras expedições portuguesas como uma ressaca medieval que logo seria
obliterada pelo comércio civilizado e pela educação moderna. Vejo-as como a enunciação em
termos algo grosseiros e brutais de uma condição da hegemonia da Europa no mundo
moderno.

II

Apesar das tentativas de tempos em tempos de pressionar para obter maiores territórios,
baseadas no modelo da Espanha na América, a presença portuguesa na índia permaneceu
confinada principalmente a seu poder sobre as rotas marítimas, exercido desde uns poucos
centros fortificados nas costas do mar da Arábia e da baía de Bengala. Já na década de 1540,
nos contam os historiadores, houve uma “crise” no empreendimento português na índia. A
segunda metade do século XVI viu a ascensão e a consolidação de um grande império
territorial - o dos Mughal - que, embora baseado primariamente na economia agrária, de
forma alguma se desinteressava pelo comércio marítimo. Após a incorporação do Gujarat e ae
Bengaia ao império, os Mughal tornaram-se uma barreira intransponível para as ambições
portuguesas, que estavam agora reduzidos à esperança imaginosa de que os jesuítas
convidados à corte de Agra pudessem conseguir converter o imperador Akbar ao cristianismo.
Logo, mesmo a hegemonia portuguesa sobre os mares foi ameaçada pela entradas das
companhias de comércio holandesas e inglesas. Na década de 1660, os holandeses
conseguiram desalojar os portugueses de suas bases no Sri Lanka, em Cochim e em Cananor, e
se estabelecer como o poder hegemônico nos mares indianos. Daí em diante, o relato da
Europa na índia é um relato da rivalidade marítima entre as potências européias, seu
envolvimento na política local e a fundação, em meados do século XVIII, do império britânico
na índia. Todos nós conhecemos essa história, porque ela foi contada várias vezes, muito
embora alguns historiadores recentes tenham levantado algumas novas questões sobre ela.
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Na versão imperialista da história, os ingleses, inicialmente interessados em nada mais que


numa boa chance de lucros comerciais, quase acidentalmente foram enredados nas intrigas
dos governantes indianos e suas cortes decadentes, e terminaram tendo de chamar a si a
responsabilidade de estabelecer a justiça e o domínio da lei. O que eles construíram foi uma
nova ordem, caracterizada pela economia modernas e pelas instituições da governança
moderna. Na versão nacionalista de mesma história, os ingleses se apropriaram do poder dos
governantes indianos através da força e do ardil, destruíram as velhas instituições da produção
econômica e da ordem social e, ao aprofundar os processos de exploração colonial,
perpetuaram a pobreza e fecharam as possibilidades de desenvolvimento industrial.
Historiadores recentes, como Burton Stein, Muzaffar Alam, Sanjay Subrahmanyam, e Chris
Bayly, entre outros, questionaram, antes de mais nada, a suposição de um declínio geral da
economia e da política indianas no século XVIII. Eles argumentam que, pelo contrário, esse foi
um período de considerável dinamismo econômico com novas regras, novas fontes de capital,
novos métodos de extração de tributos, aumento no uso de chnhtlfo «intensificação do
controle sobre o trabalho. Em segundo lugar, enteragiram nessa época diversos regimes
regionais que eram militaristas, seguindo políticas mercantilistas que dependiam grandemente
do comércio exterior e de métodos bancários avançados. Em terceiro lugar, por volta do
século XVII, as companhias de comércio européias eram jogadores importantes na política que
circundava essas economias regionais por causa de seu controle sobre o fluxo de metais
preciosos que chegava do exterior. Em quarto lugar, a Companhia das índias Orientais
conseguiu sobrepujar esses reinos regionais no século XVIII por causa de sua hegemonia sobre
as rotas marítimas e sua capacidade superior de financiar o esforço de guerra. Em quinto lugar,
em decorrência da tomada do poder, a companhia inglesa também herdou as instituições e
práticas nas quais se baseavam os regimes anteriores, tornando-se, na verdade, mais um
regime indígena: nas palavras de Chris Bayly, "a companhia tornou-se um mercador asiático,
um governante asiático e um coletor de tributos asiático”..16 Para resumir, como esses
historiadores argumentam, o rompimento radical que se supunha caracterizar o advento do
domínio britânico foi superestimado; houve mais continuidade que descontinuidade na
transição do século XVIII.17 Não desejo entrar nos detalhes empíricos desse debate aqui. Mas
eu realmente quero argumentar que há motivos para discordar dessa sugestão revisionista em
um sentido muito importante. Entretanto, antes que eu possa construir esse argumento,
preciso trazer para o meu relato mais um exemplo da Europa do século XVI: uma pessoa que
tinha a mesma idade que Vasco da Gama, mas que, tanto quanto eu saiba, não teve
absolutamente nada a ver com a índia.18
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III

Nicolau Maquiavel, assim como Vasco da Gama, nasceu em 1469. Em 1513, enquanto Afonso
de Albuquerque estava consolidando o império português na índia e Gama estava passando o
tempo em seus chamados “anos ermos”, em algum lugar próximo à fronteira hispano-
portuguesa, o florentino estava escrevendo um manual de governo para seu príncipe. Ali,
entre muitos outros tópicos que lhe renderiam ovações e notoriedade por muitos séculos,
Maquiavel considerou a questão: é melhor para o príncipe ser mais amado ,que temido ou
mais temido que amado? Sua resposta foi: ...deve-se ser tanto amado quando temido, mas
como é difícil que as duas coisas andem juntas, é muito mais seguro ser temido que ser
amado, se uma das duas coisas tem de ser preferida. Pois pode ser dito dos homens em geral
que... enquanto você os beneficia, eles são inteiramente seus... [Mas] os homens têm menos
escrúpulos em ofender a quem se faz amado que a quem se faz temido; pois o amor é mantido
por uma cadeia de obrigações que, sendo os homens egoístas, é quebrada toda vez que isso
interessa a seus propósitos; mas o medo é mantido pelo receio da punição que nunca falha.
Mais ainda, um príncipe deveria se fazer temido de uma forma tal que, se não ganha amor, de
toda forma evita o ódio; pois o medo e a ausência de ódio podem bem andar juntos... Eu
concluo, portanto, quanto ao fato de ser amado ou temido, que os homens amam segundo
sua própria livre vontade, mas temem segundo a vontade do príncipe, e que um príncipe sábio
deve se sustentar sobre aquilo que está em seu próprio poder e não naquilo que está no poder
de outros...19 O conselho acima é, é claro, parte de uma análise de Maquiavel da estratégia e
das técnicas de poder cuja relevância para o desenvolvimento do Estado na Europa pós-
Renascimento foi objeto de muita controvérsia. Uma das leituras mais perspicazes desses
manuais de governo que surgiram na Europa entre os séculos XVI e XVIII, alguns
maquiavelianos e outros declaradamente anti-maquiavelianos, foi proposta pelo filósofo
francês Michel Foucault.20 Ele afirma que, ao mesmo tempo em que o propósito ostensivo
desses textos era o de aconselhar o soberano sobre a forma de reter a possessão sobre seu
território, havia uma preocupação completamente diferente que também animava essa
discussão - que era desenvolver a arte de governar. Esta preocupação não é sobre a soberania
sobre o território, mas mais propriamente sobre a disposição apropriada de pessoas e coisas
para produzir uma gama de efeitos desejados. Foucault mostra como a noção de “economia",
originada na ideia do gerenciamento apropriado da unidade doméstica, começa a permear as
discussões sobre o governo, e como ela permanece entrançada ao modelo limitado da família
até que ocorre, na economia política do começo do século XIX, a ascensão do conceito de
população. População emerge como uma categoria descritiva e empírica, distinta da idéia
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moral de cidadãos portadores de direitos que compartilham a soberania popular que é


supostamente a base para a nova noção de Estado legítimo. O conhecimento crescente sobre
as populações revelava seus aspectos característicos e suas regularidades - os padrões
agregados de nascimentos e óbitos, os ciclos de crescimento e de escassez, os movimentos de
trabalho e de saúde, e, acima de tudo, as maneiras pelas quais, intervindo em um ou mais
desses pontos, um conjunto de “políticas públicas” ou a arte do governo poderia produzir uma
constelação específica de efeitos econômicos.21 A população gradualmente se tornou “o fim
último do governo” - seu bem-estar, a melhoria de suas condições - o que deveria ser
produzido através da atuação sobre a população, induzindo-a através de políticas públicas
adequadas a se comportar de acordo com suas próprias necessidades e inclinações, mas assim
mesmo produzindo, no conjunto, os efeitos desejados. Foucault traçou a genealogia da
moderna arte de governar até as práticas do pastor cristão na Europa, buscando o bem-estar
espiritual e material de seu rebanho e atentando aos mínimos detalhes de suas vidas
cotidianas e mesmo íntimas. Esse “poder pastoral”, se o julgarmos de acordo com os termos
de Maquiavel, tem mais a ver com amor do que com medo. É possível, estou certo, encontrar
idéias similares sobre um governante ser amado por seus súditos em muitas outras tradições
do reinado paternalista, sejam hindus, budistas ou islâmicas, que circularam pelo sul da Ásia
durante séculos. Mas esses antecedentes genealógicos devem ser distintos das formas que
seriam elaboradas na Europa desde o início do século XIX até os modernos regimes
governamentais que Foucault descreve. E é nesse contexto que gostaria de avançar na
hipótese de que, na formação da moderna arte de governar - o gerenciamento de populações
através de políticas públicas em lugar da representação da soberania dos cidadãos - os teatros
coloniais da África e da Ásia foram ao menos tão importantes quanto os próprios territórios
metropolitanos como locais de experimentação e teorização. A idéia reconstituída do poder
pastoral foi, acredito fortemente, um tema persistente do moderno projeto colonial europeu,
e mais exemplarmente no caso do domínio britânico na índia. E é por isso que argumentarei
que o que há de novo nos governantes ingleses da índia, que os distingue dos regimes
indígenas anteriores, é sua necessidade, patente desde o final do século XVIII, de serem
amados por seus súditos estrangeiros indianos. Essa então é a segunda parte de meu relato
sobre a Europa e o sul da Ásia nos últimos quinhentos anos. A primeira parte foi sobre a
dominação do medo através do exercício de uma força superior. Insisti no fato de que este é
um elemento que não desaparece do relacionamento entre a Europa e o sul da Ásia ao longo
de todo o período, mesmo após as formas de poder supostamente mais racionais e modernas
terem sido introduzidas pelos britânicos. O novo elemento - amor - chega junto com o domínio
britânico. Ele não nasce na índia, e é por isso que não vai ser encontrado se for procurado nos
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arquivos da história indiana do século XVIII. Sua genealogia repousa em certas maneiras
radicalmente novas de pensar a sociedade e o poder na Europa do fim do século XVIII. Isto
afeta a índia porque o novo projeto imperial deve daí por diante ser pensado em termos
europeus, e muito freqüentemente na própria Europa. É claro, o que é projetado nem sempre
chega a acontecer, o que faz com que pareça ao historiador do domínio colonial que os
grandes desígnios dos estadistas e filósofos europeus foram em última análise irrelevantes
uma vez que o que de fato aconteceu na índia carrega a estampa inconfundível do artifício
nativo - os produtos finais foram transitórios, periclitantes e imperfeitos. Digo isto para afirmar
que, ao mesmo tempo em que o desejo de ser amado pelos colonizados permaneceu sempre
como o objetivo moral ansiado pelo projeto colonial, outras normas menos exaltadas foram
aceitas nesse Ínterim - “se [o príncipe]”, para lembrar Maquiavel, “não ganha amor, de toda
forma evita o ódio”. Usando uma linguagem gramsciana, podemos dizer com Rajanit Guhà que
o que foi construído pelo poder colonial foi uma “hegemonia espúria”.22 Tanto a vontade de
hegemonia quanto seu substituto espúrio são importantes para compreender a história
colonial. Sem eles, \ não saberíamos porque o domínio britânico na índia, diferente de
qualquer um de seus precursores indígenas, foi uma “dominação sem hegemonia”: nenhum
regime anterior havia sentido a necessidade de pensar sobre o fundamento moral de seu
domínio como hegemônico nesse sentido. Sem eles, mais uma vez, não descobriríamos outro
segredo - o motivo pelo qual nós, os já colonizados, continuamos até hoje a sentir uma
necessidade aparentemente insaciável de amar a Europa.

IV A história do amor pode ser contada desde o fim do século XVIII - desde William Jones e a
Sociedade Asiática e a descoberta européia da grandeza da civilização indiana. Para amar a
índia e ser amado pelo Indianos, deve-se primeiro conhecer a índia. Mas eu diria que a história
realmente começa em um nível muito mais mundano com os levantamentos de rendas da
terra e de produtos econômicos, e das características da população. “Estatística”, sabemos,
significa literalmente “a ciência do Estado”, e, já na virada do século, o termo estava sendo
usado na Índia colonial para descrever a coleta sistemática de dados em temas diversos que
poderiam ser de interesse para o Estado. Estranho como possa soar, poderíamos dizer que a
estatística era uma nova linguagem de amor entre governantes e governados, e conheço
poucos livros de amor mais notáveis que a gigantesca série de levantamentos estatístico-
etnográficos dos distritos da índia oriental conduzidos no início do século XIX por Francis
Buchanan Hamilton, filho do lluminismo escocês, médico, botânico e intrépido viajante. Ele foi
o primeiro de uma serie de estudiosos-administradores britânicos que construíram o massivo
edifício do conhecimento oficial sobre a índia, que permanece ainda como um dos mais
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valiosos arquivos para os estudos históricos. " Se amar era conhecer, para ser amado era
preciso fazer o bem para alguém: “enquanto você os beneficia”, dizia Maquiavel, “eles são
inteiramente seus”. Mesmo William Jones, que se apaixonou pelo imaginoso mundo do
oriente, achava que seu trabalho profissional nas cortes indianas como tinha feito “um bem
muito grande e extenso ; para muitos milhões de nativos indianos, que me vêem não apenas !
„como seu juiz, mas como seu legislador”.23 O termo mais comumente usado na Índia
britânica para descrever esse trabalho de beneficiar a população era “melhoramento”. Ele
aparece, como Rajanit Guha descreveu em seu primeiro livro, já nos primeiros debates sobre o
“estabelecimento permanente” em Bengala;24 de fato, segundo a conta de Guha, a palavra
“melhorar” aparece dezenove vezes nas duas breves minutas escritas por Cornwallis sobre
esse tema em 1789 e 1790.25 Novamente, William Jones não tinha dúvidas quanto ao
significado de seu trabalho de compilação das leis da índia; ele declarou: “os nativos estão
encantados com esse trabalho, e a idéia de tornar sua escravidão mais leve, dando a eles suas
próprias leis, é mais lisonjeiro para mim que os agradecimentos do rei [da Inglaterra] que me
foram transmitidos’’.26 Desde a época de Jones e de Cornwallis e durante os cento e
cinqüenta anos seguintes, através de muitas mudanças políticas, do zamindari para o ryotari,
deste para o utílitarianísmo, depois para a reforma liberal e daí para a política do bem-estar,
tornaria-se um lugar comum da retórica colonial afirmar que os britânicos estavam na índia
para melhorá-la, para civilizá-la, para torná-la adequada ao mundo moderno, para dar a ela o
Estado de direito e as estradas de ferro, Shakespeare e a ciência moderna, hospitais e
parlamentos, até que no fim, em uma virada quase ridícula da ironia histórica, fosse declarado
que os britânicos tinham estado na índia para tornar os indianos aptos para o auto-governo, o
que significa que eles tinham primeiro de ter sua autonomia roubada de forma a se
qualificarem a recebê-la de volta dos ladrões. E quanto aos indianos? Eles retribuíram o amor
que seus novos mestres tão generosamente despejavam sobre eles? Por amor à simplicidade,
dividirei os indianos em dois setores, muito embora, como também indicarei, as coisas fossem
mais complicadas que isso. Um setor consistia naqueles que colaboravam. É óbvio, mesmo que
alguns historiadores ainda achem necessário estender-se nesse fato com uma regularidade
monótona, que um punhado de oficiais e soldados britânicos não poderiam ter dominado a
índia por quase duzentos anos se os indianos, de fato muitos indianos, não houvessem
colaborado. Quem eram eles? No início do período da ascensão da Companhia das índias
Orientais ao poder, sabemos de príncipes, nobres e mercadores indianos que se aliaram aos
ingleses contra outros príncipes, nobres e mercadores. Devemos entender essas alianças
situando-as num contexto diplomático-militar - eram relações estratégicas cuja lógica
Maquiavel teria reconhecido instantaneamente, pois não estavam imbuídas de outro
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sentimento que o cálculo do interesse próprio. Por volta da década de 1830, quando o poder
britânico era praticamente supremo no subcontinente, a essas classes foi deixada pouca
escolha exceto colaborar ou perecer. Isso foi demonstrado com uma crueldade selvagem na
repressão à revolta de 1857. Os senhores de terra e mercadores que colaboravam com o
império colonial tardio, apesar de seu apego freqüentemente exagerado pelos artefatos
europeus de status, eram abjetos em sua subserviência política, e se fariam ainda mais
ridículos à medida que se tornavam cada vez mais irrelevantes para as novas formas de poder
político que emergiam no âmbito do movimento anti-colonial. Para esse grupo de
colaboradores, certamente, seria absurdo dizer que amavam os britânicos “por sua livre e
espontânea vontade”. Havia um outro grupo, entretanto, daqueles que colaboravam. Esse é
um grupo sobre o qual muito foi escrito, não poucas vezes por seus próprios membros. Estou
me referindo, é claro, às novas classes médias indianas, a nova classe letrada ou
“intelligentsia”, ou qualquer outra coisa de que se queira chamá-la. Uma longa linha de
estudos históricos identificou a introdução da educação inglesa na índia como o processo
crucial que criou essa classe, infundiu nela os valores da modernidade européia, assegurou a
tradução desses valores nas línguas vernaculares e dessa forma produziu os movimentos do
nacionalismo moderno que ao final reclamariam autogoverno para os indianos. Nem é preciso
dizer que esse argumento se encaixa perfeitamente no ponto de vista colonial segundo o qual
foi o próprio domínio ■britânico que preparou o solo para a independência indiana. Mas,
Estranhamente, ou, se pensarmos cuidadosamente, talvez não tão estranhamente assim, esse
é também o tema corrente de uma longa tradição da historiografia nacionalista liberal na
índia. Foi apenas nas últimas décadas que se fez uma tentativa séria, na historiografia
acadêmica do sul da Ásia, de questionar a suposta conexão entre a educação inglesa, a
ascensão das classes médias e os movimentos anticoloniais. Mas esse é um debate que ainda
está sendo travado, e no qual eu mesmo tive uma participação. Para evitar repetições,
portanto, abordarei esse tema das classes médias indianas e de seu papel colaboracionista,
examinando um corpo relativamente menos notado de textos - os escritos dos visitantes
indianos na Europa. Isso pode também estabelecer um contraste útil com o relato dos
primeiros visitantes portugueses à índia, com o qual comecei esse texto. Desde a celebrada
visita de Ramohan Roy à Inglaterra em 1831, muitos membros da nova intelligentsia indiana,
alguns ilustres e outros relativamente desconhecidos, visitaram a Europa no século XIX. Muitos
deles escreveram diários de viagem, para informar e educar seus compatriotas sobre a Europa
como eles a tinham visto. Farei algumas poucas observações sobre Bengala, com cujos escritos
tenho mais familiaridade.2'' Mas antes disso, deixem-me me referir a um par de diários de
viagem escritos por visitantes indianos à Europa no século XVIII - membros de uma classe
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letrada mais antiga, inteiramente não instruídos nas formas do mundo intelectual europeu.
Mirza Shaikh Ihtisamuddin foi à Inglaterra com um grupo de emissários enviados pelo
imperador mughal Xá Alam ao rei da Inglaterra em 1765, época em que a Companhia das
índias Orientais havia estabelecido firmemente seu controle político sobre Bengala.
Ihtisamuddin ficou na Inglaterra por três anos e, muitos anos após seu retorno a Bengala,
escreveu um relato de suas viagens.28 Na virada do século, Mirza Abu Talib, de Lucknow,
visitou a Europa entre 1799 e 1803 e também escreveu sobre sua visita.29 Nenhum dos dois
conhecia o inglês nem qualquer outra língua européia quando partiram para a Inglaterra;
nenhum dos dois tinha um mapa mental prévio impresso em suas mentes que os dissesse
como a Inglaterra deveria ser vista. Digo isso porque os viajantes do século XIX teriam uma
orientação completamente diferente tanto para suas visitas quanto para a forma de descrevê-
las. O que é atordoante nas descrições de Ihtisamuddin e Abu Talib das “maravilhas e
curiosidades" que eles encontraram durante suas viagens é sua paixão em descobrir como as
coisas eram feitas e de que forma funcionavam. Ihtisamuddin começa com uma série de
descrições detalhadas de como a direção e a velocidade de um navio são reguladas, como
a.bússola é feita e suas funções, como um diário de bordo é mantido, como as velas são içadas
e baixadas,, como se lidam com os diferentes tipos de vento, todo o tempo tecendo
comparações com a forma como as coisas são feitas em barcos indianos. “As pessoas da
Inglaterra são extremamente hábeis na arte de navegar e trabalham muito duro para melhorar
suas habilidades ainda mais”.30 Em Londres ele ficou muito interessado em como os tetos de
madeira das casas eram construídos, em como a água encanada era fornecida, em que tipo de
plantas ele via nos jardins botânicos, nos animais e peixes empalhados exibidos nos museus e
na coleção de livros árabes, persas e turcos em uma faculdade de Oxford onde,
incidentalmente, ele encontrou um certo senhor Jones que estava interessado em ir para a
índia como juiz e que pediu sua ajuda para ler alguns difíceis manuscritos persas. (De fato,
Ihtisamuddin chega a sugerir que suas traduções foram mais tarde usadas pelo estudioso de
Oxford, que era, desnecessário dizer, nosso conhecido William Jones, em um livro com o qual
ele ganhou muito dinheiro.) Tanto Ihtisamuddin quanto Abu Talib apreciaram as muitas coisas
maravilhosas que os ingleses eram capazes de fazer ou construir, mas em nenhum lugar eles
dão a impressão de que essas coisas maravilhosas pudessem ser exemplos de uma cultura ou
civilização que houvesse alcançado um nível superior de perfeição. De fato, nenhum de nossos
viajantes foi muito persuadido por explicações teóricas. Quando o navio de Abu Talib estava se
aproximando das ilhas de Car Nicobar, na baía de Bengala, ele ficou aturdido com o fato de
poder ver a vegetação no horizonte, mas nenhuma terra. O capitão do navio tentou explicar-
lhe a esfericidade da superfície do mar e as propriedades de refração da luz através da água, e
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chegou a demonstrá-las deixando cair um anel em uma tina d’água, o que Abu Talib registrou
fielmente. Mas ficou convencido de que o telescópio do navio estava com defeito ou que os
tripulantes lhe haviam pregado uma peça.31 Comparem isso com um típico diário de viagem
da segunda metade do século XIX. O cavalheiro de Bengala que pisa no convés tem agora um
conceito de Europa firmemente plantado em sua mente. De fato, o navio é para ele o primeiro
lugar em que se encontra com a verdadeira Europa e o exercício de compará-la à sua Europa
conceituai começa de fato. A viagem adquire para ele o significado moral de um rito de
passagem: Em 12 de março de 1886, o vapor “Nepaul” deixou Bombaim em direção à
Inglaterra. Nunca um navio de correio havia sentido a pulsação de tantos corações hindus...
Mais orgulhosa estava ela agora com o resultado da influência moral da Inglaterra sobre seu
vasto império na índia, que permitiu a tantos de seus filhos quebrar os grilhões de casta,
elevar-se acima dos velhos preconcietos e superstições e buscar a educação e o
esclarecimento na fonte principal da moderna civilização.32 Ao pôr os pés em solo inglês,
nosso cavalheiro declararia: “estou agora na grande Inglaterra, sobre a qual tenho lido desde a
minha infância, e entre o povo inglês, a quem a providência tão fortemente nos uniu”.33 Nem
tudo o que ele visse na Inglaterra mereceria necessariamente sua aprovação; de fato, com
freqüência ele ficaria desapontado porque a Inglaterra real algumas vezes não conseguiria
alcançar a medida de sua imagem conceitual. Mas, no conjunto, ele não teria dúvidas de que o
que ele estava experimentando, e o que ele precisaria levar de volta para seus compatriotas
era uma essência moral e civilizacional, expressas nas virtudes do moderno povo inglês tais
como o espírito de independência, auto-respeito e disciplina, seu amor pela arte, literatura e
esportes, e, acima de tudo, seu cultivo do conhecimento. Observando o sucesso da Exposição
colonial de 1886, nosso viajante de Bengala notaria que “As miríades de visitantes que
diariamente acorrem à exposição nos revelaram a grande causa misteriosa do progresso
europeu. É a constante procura por conhecimento e uma prontidão em aceitar um estado de
coisas melhor, quando quer que seja descoberto e compreendido”.34 É isso que repousa no
coração da civilização européia moderna e o que a coloca à parte e acima de países
colonizados tais como a índia. De fato, é o conhecimento que os europeus adquiriram sobre os
recursos naturais e sociais da índia que deram a eles o poder de governar sobre os “nativos”: A
desigualdade real entre os europeus e os nativos reside não no fato de que esses últimos
ocupem poucos postos importantes no país... O europeu sabe mais sobre nossas montanhas e
rios do que nós mesmos; ele sabe mais sobre as plantas que crescem ao nosso redor, seus
nomes, suas propriedades, até o tamanho e a forma de suas folhas; ele sabe mais sobre o que
está enterrado no fundo de nossa terra; ele sabe mais sobre as capacidades de nossos solos;
sobre todas as coisas ele sabe mais do que sabemos sobre o nosso próprio país. Então ele sabe
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melhor a forma de usar esse conhecimento para o benefício dos homens. Nós não sabemos
dessas coisas, por isso somos “nativos”.35 Apresento-lhes esse texto como uma das mais
sinceras declarações de amor feita por um indiano moderno à Europa moderna. Seu autor - o
cavalheiro bengali que temos seguido desde o momento em que embarcou em sua viagem
para a Inglaterra - foi Trailokyanath Mukherjee, curador de um museu em Calcutá, um
reconhecido perito em produtos agrícolas e manufaturados de diferentes partes da índia e um
destacado humorista no mundo da ficção bengali. Se ele não escreveu, como Ihtisamuddin um
século antes, sobre a bússola, as velas e as máquinas maravilhosas que os europeus tinham
inventado, não era porque ele não sabia como eram construídas ou como funcionavam. Antes,
ele sabia demais. Ele já tinha sido admitido no mundo do conhecimento europeu, convertido,
disciplinado e cheio de admiração. Para homens e mulheres como Trailokyanath, poderíamos
dizer sem medo de nos contradizermos que amavam a Europa “por sua livre e espontânea
vontade”, pois de fato suas vontades haviam sido adequadamente produzidas para fazer essa
escolha. Estaríamos certos se acrescentássemos, é claro, que muito embora Trailokyanath
tivesse sido admitido nesse mundo, ele de toda forma pisava apenas em suas margens,
agudamente consciente do fato de que ele e seus compatriotas teriam agora de aprender esse
novo conhecimento dos europeus, de fato aprender até mesmo sobre seu próprio país. Para
evitar qualquer confusão, deixem-me acrescentar que, politicamente, Trailokyanath era um
“lealista”. Ele não questionava o fato de que os britânicos haviam adquirido o direito de
governar a índia porque sabiam usar seu conhecimento em benefício dos indianos. Nem todos
os oriundos das classes médias, entretanto, permaneceriam "lealistas”, pelo menos não desde
a virada para o século XX. O que mudaria? Envio vocês de volta à discussão de Foucault sobre
os tratados antimaquiavelianos e sua distinção entre o poder soberano do governante sobre o
seu território e a arte de governar populações. Diferentemente , de Trailokyanath, muitos
indianos educados questionariam então, com ; a força da própria teoria política ocidental, a
legitimidade de um poder : estrangeiro que não era representativo do povo e que não estava
disposto a reconhecê-lo como um conjunto de cidadãos com direitos. Não apenas isso, alguns
argumentariam também que na realidade o povo não estava sendo tão beneficiado quanto
deveria, o que se dava pelo fato do governo não ser representativo: se a soberania fosse
passada para o povo indiano, a arte da governança moderna poderia ser utilizada para
conceder a ele benefícios muito maiores.36 Quando isso aconteceu, a oposição política ao
domínio britânico cresceu em força entre as classes médias indianas na primeira metade do
século XX. Nesse período, as classes médias construíram ligações com demandas anticoloniais
de outros setores do povo, especialmente camponeses e operários, e encabeçaram o processo
que finalmente levou à transferência do poder, e também à divisão do país, em 1947. Sua
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oposição ao domínio britânico de forma alguma diminuiu seu amor pelo conceito de Europa
que havia sido plantado em suas mentes - a Europa de Shakespeare e da máquina a vapor, da
Revolução Francesa e da mecânica quântica. Eles rejeitavam a soberania que os britânicos
reclamavam sobre a índia, mas não questionavam a superioridade da Europa no cultivo das
artes da modernidade. A sutileza desta atitude estava além da compreensão de muitos dos
últimos oficiais coloniais, que tomaram o clima de oposição política dos últimos dias do
domínio britânico como um sinal de perigo pairando sobre suas cabeças. Assim, o Marechal de
Campo Auchinleck ainda insistia em junho de 1947 que o exército britânico deveria
permanecer na índia até o ano seguinte para proteger vidas britânicas,37 não compreendendo
que, uma vez resolvida a questão da soberania, não haveria mais nenhuma razão para que os
indianos odiassem os europeus. Ainda não falei do outro setor dos indianos - aqueles que não
colaboraram. Sobre eles, serei breve. Acredito que a massa do povo indiano, aqueles que
foram sujeitos ao jugo britânico, seja na índia britânica ou nos Estados principescos, nunca
colaborou. Isso não quer dizer que eles não respeitassem a autoridade dos britânicos, ou não
obedecessem a eles, ou procurassem por eles em busca de justiça e proteção. Apesar de
muitas revoltas tribais e camponesas, grandes e pequenas, na índia britânica, é correto dizer
que, na maior parte das vezes, a rebelião foi mais a exceção que a regra. Mas a massa do povo
não deu aos britânicos o amor que eles tanto queriam - o amor que fluiria de suas próprias
livres vontades - porque, dentro da estrutura do domínio colonial, os britânicos nunca
puderam reconhecer esses súditos rebaixados como possuidores de vontades com aquele tipo
de predicado de livre racionalidade, de forma a poder investir sua aparente docilidade com a
aura do amor. Eles eram, em resumo, ' incapazes de amar o conceito de Europa. Dos muitos
indianos que colaboraram com o domínio britânico ou reconheceram sua dominância,
portanto, apenas alguns se tornaram familiares com a gama completa de conhecimentos e
práticas que constituíam sua substância e aceitaram sua racionalidade. Mas eles , também
rejeitaram por fim a reivindicação colonial da dominância política enquanto conformavam,
eles mesmos, o projeto de construir um Estado e uma sociedade modernos. Mohandas
Karamchand Gandhi, com sua sagacidade característica, viu através da estratégia, o momento
de seu nascimento. Já em 1909, em “Hindj Swaraj”, ele descreveu esse projeto como querer
ter “a lei inglesa sem os ingleses”.38 Aqueles que seguem Gandhi acreditam que isso foi
exatamente o que os governantes da índia independente vêm tentando fazer nos últimos
cinqüenta anos. Chego agora à minha consideração final, que é sobre a Europa e o sul da Ásia
hoje. Uma transformação de importância que teve lugar na metade do século XX, em paralelo
ao colapso dos impérios coloniais europeus, foi o deslocamento decisivo da dominância
mundial da Europa para os Estados Unidos. Para a maior parte das pessoas na maior parte do
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sul da Ásia, o conceito de Europa hoje parece circunscrito pelo conceito de ocidente, do qual
os Estados Unidos são o foco dominante. Há pouca discussão acerca de que a força permanece
como um fundamento desse domínio, e muito embora um Maquiavel moderno possa dizer
que a ameaça do uso de uma força devastadora é uma garantia mais eficiente de domínio do
que seu uso efetivo, podemos apenas nos lembrar do espetáculo televisivo da Guerra do Golfo
para perceber o terror concentrado que pode ser desencadeado por aqueles que se
consideram os policiais do mundo. Enquanto isso, os governantes dos países recém-
independentes do sul da Ásia continuaram com seus projetos de construir Estados- Nação
modernos. Ganhar a soberania dos poderes coloniais liberou as molas do amor pelo conceito
de ocidente entre as classes médias em expansão. Não me refiro aqui à alegada paixão dos
jovens indianos por roupas de marca e música pop, que muitos sentem estar ameaçando nossa
tradição nacional. Minha compreensão da história do encontro colonial nos últimos dois
séculos me leva a crer que, se houver a importação de uma cultura coca-cola para este país,
ela rapidamente irá adquirir um caráter distintivamente indiano e se mesclar
imperceptivelmente à entidade em constante mutação chamada tradição indiana. Estou mais
preocupado com a invocação da modernidade ocidental que nos diz que, ao praticar as mais
recentes artes do gerenciar populações, estamos perdendo a corrida porque estamos atolados
na política. Há uma crescente impaciência entre as classes médias, que sentem que não
estamos alcançando o ocidente rápido o suficiente porque temos democracia demais. Ao
mesmo tempo, há uma tentativa renovada de impor um ramo particular da cultura de casta
alta bramânica modernizada como a verdadeira cultura nacional, baseando-se no fato de que
todas as grandes nações do ocidente foram construídas através de um processo de
homogeneização cultural. A mesma lógica leva os meios políticos de cada país do sul da Ásia a
considerar seus vizinhos como rivais e potenciais inimigos. E, desnecessário dizer, é a mesma
lógica que está levando esses meios políticos a uma corrida nuclear, fundada na crença de que
essa é a única maneira de se obter o respeito das grandes potências do ocidente. Com a
adequada deferência aos representantes de nossos meios políticos, possa eu afirmar que isso
não reflete a sabedoria do príncipe de Maquiavel. Antes, reflete a mentalidade do pequeno
batedor de carteiras que acha que o mundo é governado por grandes bandidos, e vive na
fantasia de que, imitando a sua bazófia e impetuosidade, um dia será convidado a entrar para
o seu clube. É uma paródia - uma paródia patética - do chauvinismo das grandes potências,
destinado a fazer com que nossas elites se sintam bem consigo mesmas, mas cujo preço, como
sempre, recairá sobre os pobres e sobre aqueles que não têm poder em nossa sociedade. Eu
disse antes que nosso amor pelo ocidente deriva de um conceito de ocidente. Esse conceito se
solidificou em nossas mentes durante os últimos quinhentos anos. Ele sobreviveu às
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brutalidades da armada portuguesa, às intrigas de fíobert Clive, aos vícios da contrainsurgência


em 1857-1858 e à desumanidade que causou grande fome de 1943 em Bengala. O fato de que
as guerras mais devastadoras da história da humanidade e que as atrocidades do nazismo, do
fascismo e do apartheid tiveram lugar no século XX e foram integrantes da dinâmica histórica
da Europa moderna não fez com que, para nós, esse conceito entrasse em crise. Largos setores
de nossas elites ainda têm fé suficiente nesse conceito para insistir que deveríamos nos
esforçar mais do que temos feito até agora para copiar aqueles velhos modelos da
modernidade para nosso próprio país. Acredito que o conceito de ocidente que temos tão
amorosamente nutrido está em profunda crise no próprio ocidente. As idéias de democracia
participativa e soberania popular ativa, que foram os fundamentos morais da política moderna
desde o tempo da Revolução Francesa, foram largamente erodidos pela doutrina
instrumentalista de que a escolha política diz respeito apenas a quanto benefício pode ser
alcançado para quantas pessoas a que custo. O consenso social ao redor do qual a idéia de
identidade nacional foi construída nos países da Europa e da América do Norte foi colocada
sob uma tensão severa com a entrada de novos imigrantes oriundos de outras culturas que
não eram parte do consenso anterior. E agora que a tempestade neoliberal dos anos de 1980
passou, deixou atrás de si uma ordem social capitalista com poucos recursos ideológicos para
lidar com o embaraço moral da desigualdade de oportunidades, desemprego, doença e
desamparo. Não creio que o colapso dos regimes socialistas na Europa oriental e na União
Soviética tenham significado o triunfo da ordem capitalista liberal que conhecemos tanto. Ao
contrário, vejo esse colapso como mais um sinal da crise no velho projeto da modernidade
inaugurado na Europa no século XVIII.

Cabe a nós, aqueles que ainda são marginais no mundo da modernidade, usar as
oportunidades que ainda temos para inventar formas novas para as modernas ordens sociais,
econômicas e políticas. Fizemos muitas experiências nos últimos cem anos mais ou menos.
Muitas das formas a que chegamos foram consideradas, por outros assim como por nós, como
adaptações imperfeitas do original - não terminadas, distorcidas, talvez até mesmo falsificadas.
Vale a pena considerar se muitas dessas formas supostamente distorcidas - de instituições
econômicas, leis, práticas culturais - não poderiam de fato conter a possibilidade de formas
inteiramente novas de organização econômica ou governança democrática, nunca imaginadas
pelas velhas formas da modernidade ocidental. Para isso, no entanto, temos de ter a coragem
de virar as costas para a história dos últimos quinhentos anos e nos defrontar com o futuro
com uma nova maturidade e autoconfiança, nascidas da convicção de que Vasco da Gama não
deve nunca aparecer em nossas costas novamente.

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