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© 2006 Jordi Sierra i Fabra

© Pep Montserrat (ilustrações)


© 2006 Ediciones Siruela
© 2008 Martins Editora Livraria Ltda., São Paulo, para a presente edição.

Diagramação
ais Miyabe Ueda

Produção editorial
Eliane de Abreu Santoro

Preparação
Huendel Viana

Revisão
Eliane de Abreu Santoro
Luciano Helena Comide
Simone Zaccarias

Produção gráfica
Sidnei Simonelli

ePub
TocaDigital

1ª edição 2008
2ª edição 2009
1ª reimpressão 2010
Impressão Vangraf
Todos os direitos desta edição no Brasil reservados à
Martins Editora Livraria Ltda.
R. Prof. Laerte Ramos de Carvalho, 163
01325-030 São Paulo, SP, Brasil
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Para Franz,
do besouro que um dia
acordou transformado em menino.
Sumário

Primeiro sonho: a boneca perdida


a
b
c
d
e
Segunda fantasia: as cartas de Brígida
f
g
h
i
j
k
Terceira ilusão: o longo trajeto da boneca viajante
l
m
n
o
p
Quarto sorriso: o presente
q
r
s
t
u, v, w, x, y, z...
Como surgiu esta história
Agradecimentos
Sobre autor e ilustrador
Primeiro sonho: a boneca perdida
a

Os passeios pelo parque Steglitz eram um bálsamo.


E as manhãs, tão doces...
Casais precoces, casais parados no tempo, casais que ainda não sabiam
que eram casais, velhos e velhas com mãos cheias de histórias e rugas cheias de
passado procurando cantos de sol, soldados com galas de distinção, criadas de
uniforme impecável, babás com meninos e meninas vestidos com esmero, ca-
sais com filhos recém-nascidos, casais com sonhos recém-destruídos, solteiros e
solteiras de olhar esquivo, solteiros e solteiras de olhar insinuante, guardas, jar-
dineiros, ambulantes...
O parque Steglitz transpirava vida naquele início de verão.
Um presente.
E Franz Kafka a absorvia, como uma esponja, viajando com os olhos,
atraindo energias com a alma, perseguindo sorrisos por entre as árvores. Era
mais um entre tantos, solitário, com seus passos perdidos sob o manto da ma-
nhã. Sua mente voava livre de costas para o tempo, que ali se embalava com a
languidez da calma e se balançava alegre no coração das pessoas.
Que silêncio...
Rompido apenas pelas brincadeiras das crianças, pelas vozes das mães
chamando, insistindo, advertindo, pelas palavras tranquilas dos mais próximos
e pouco mais.
Que silêncio...
O choro da menina, alto, convulso, repentino, fez Franz Kafka parar.
Estava muito perto dele, a poucos passos, e não havia mais ninguém em
volta. Não se tratava, portanto, de uma briga de criança, nem de um castigo de
mãe, nem sequer de um acidente, pois não parecia que a menina tivesse levado
um tombo.
Ela chorava em pé, desconsolada, tão angustiada que parecia trazer no
rosto toda a dor e a aflição do mundo.
Franz Kafka olhou para um lado e para o outro.
Ninguém notava a menina.
Estava sozinha.
Não sabia o que fazer. As crianças eram um completo mistério, seres de
alta periculosidade, um conjunto de risadas e lágrimas alternadas, nervos e
energia à flor da pele, perguntas sem fim e exaustão absoluta.
Não por acaso, ele não tinha filhos.
Mas todo aquele sentimento...
A menina devia ter poucos anos. Era difícil calcular quantos. A idade das
meninas pequenas era um mistério. Sim, era isto: justo aquela idade indefinível
em que continuam sendo o que são mesmo já estando com um pé no passo se-
guinte. Estava vestida com esmero, com botinhas, culotes, blusa com gola de
renda e uma bata que deixava ver uma saia cheia de babados. Tinha o cabelo
comprido, preto e preso em duas primorosas tranças. Era bonita, como todas as
meninas pequenas. Bonita como a primavera da vida.
Se bem que agora as lágrimas transformavam o rosto dela numa careta
horrível.
Franz Kafka permaneceu imóvel.
Que fazia uma menina tão pequena ali sozinha? Tinha se perdido? Nesse
caso, teria que pegar na mão dela, tentar acalmá-la, e juntos procurarem um
guarda que a pudesse acompanhar. Mas como a menina iria se acalmar se um
estranho falasse com ela, pegasse na sua mão e começasse a andar a seu lado?
Não seria pior?
Não, pior seria ir embora, irresponsavelmente, e abandoná-la no meio do
parque.
Imprevisíveis crianças.
O choro era tão, mas tão dramático...
Nunca tinha visto nem ouvido alguém chorar daquele jeito.
Por fim se conformou, porque muitas vezes a vida não nos deixa escolha.
Era ela que traçava o caminho. Então deu o primeiro passo em direção à pe-
quena, tirou o chapéu para parecer menos sério e iluminou o rosto com seu
melhor sorriso.
Apesar de tudo, devia estar com cara de dor de estômago, mas isso era ir-
remediável e não tinha importância.
Franz Kafka parou diante da menina.
b

— Olá.
A menina parou de gritar, mas não de chorar. Levantou a cabeça e deu
com ele. Tomada pelo desespero, nem tinha visto aquele homem se aproximar.
Seus olhos eram dois lagos transbordantes, e os rios que fluíam deles formavam
duas torrentes que escorriam pelo rosto até o vão aberto sob o queixo.
Fez dois, três sonoros beicinhos antes de responder:
— Olá.
— O que aconteceu?
Ela não o olhou com medo. Pura inocência. Quando a vida floresce, tudo
são janelas e portas abertas. Em seus olhos, o que havia, sim, era dor, sofrimen-
to, tristeza e uma emoção contida que deixava sua sensibilidade à flor da pele.
— Você se perdeu? — perguntou Franz Kafka diante de seu silêncio.
— Eu não.
Estranhou a resposta. “Eu não.” Em vez de dizer “Não”, dissera “Eu não”.
— Onde você mora?
A menina apontou de forma imprecisa para a esquerda, na direção das ca-
sas recortadas por entre as copas das árvores. Um alívio para o salvador de me-
ninas chorosas, pois isso provava que ela não estava perdida.
— Alguém machucou você? — ele sabia que não havia ninguém por per-
to, mas era uma pergunta obrigatória, ainda mais naqueles segundos decisivos
em que procurava ganhar sua confiança.
Ela negou com a cabeça.
“Eu não.”
Era evidente que quem tinha se perdido era seu irmão mais novo.
Como é que uma mãe responsável, por mais alerta ou atenta que estives-
se, podia deixar os filhos brincarem sozinhos no parque, mesmo sendo tão
tranquilo e bonito como o Steglitz?
E se ele fosse um monstro, um assassino de meninas?
— Quer dizer que você não se perdeu — quis deixar claro.
— Eu não, já disse — suspirou a pequena.
— Quem então?
— Minha boneca.
As lágrimas, que haviam cessado momentaneamente, reapareceram nos
olhos de sua dona. Lembrar de sua boneca tornou a mergulhá-la na mais pro-
funda amargura. Franz Kafka tentou evitar que ela desse aquele passo atrás.
— Sua boneca? — repetiu estupidamente.
— É.
Boneca ou não, irmão ou não, eram as lágrimas mais sinceras e dolorosas
que já tinha visto. Lágrimas de uma angústia suprema e de uma tristeza inson-
dável.
O que podia fazer agora?
Não tinha a menor ideia.
Ir embora? Estava preso no invisível círculo da traumatizada protagonista
da cena. Mas ficar... Para quê?
Não sabia o que dizer a uma menina.
E muito menos a uma menina que chorava porque acabara de perder a
boneca.
— Onde você a viu pela última vez?
— Naquele banco.
— E você, onde estava?
— Estava lá, brincando — apontou para uma área em que algumas crian-
ças brincavam.
— E ficou lá muito tempo?
— Não sei.
Aquelas eram, sem dúvida, as perguntas que um policial faria diante de
um crime, mas aquilo não era um crime, nem ele era um policial. O protago-
nista do incidente nem sequer era um adulto. Isso o perturbou ainda mais. O
insólito do fato o envolvia sem escapatória. Queria ir embora, mas não conse-
guia. Aquela menina e o abismo de seus olhos chorosos o detinham.
Bastaria uma desculpa, um “sinto muito”. De volta a seu lar. Ou uma re-
comendação: “Vá para casa, menina”. Simples.
Por que a dor infantil é tão poderosa?
A situação era real. A relação de uma menina com sua boneca é das mais
fortes do universo. Uma força descomunal movida por uma tremenda energia.
E então, de repente, Franz Kafka se acalmou.
A solução era tão simples...
Pelo menos para sua mente de escritor.
— Espere um pouco, que bobagem a minha! Qual o nome da sua bone-
ca?
— Brígida.
— Brígida? Claro! — soltou uma risada das mais convincentes. — É ela,
lógico! Desculpe, não me lembrava do nome! Às vezes sou tão avoado! Com
tanto trabalho!
A menina arregalou os olhos.
— Sua boneca não se perdeu — disse Franz Kafka alegremente. — Ela
foi viajar!
c

O olhar foi de incredulidade. A surpresa completa. Mas era uma menina.


Os pequenos querem acreditar. Precisam acreditar. Em seu mundo, a desconfi-
ança humana ainda não existe. É um universo de sois e luas, de dias encadea-
dos, cheios de paz, amores e carinhos.
Pelo menos ali, no parque Steglitz, em plena Berlim.
E em 1923.
Franz Kafka sustentou aquele olhar com sua melhor cara de jogador ima-
ginário, coisa que nunca tinha sido. A chave de tudo, além da inocência da me-
nina, estava na sua convicção, na sua segurança, na forma como contaria aque-
le absurdo que acabava de nascer em sua cabeça.
— Viajar?... — balbuciou ela.
— Isso mesmo! — cada segundo que ganhava era um tempo precioso pa-
ra construir a história em sua mente.
— Para onde?
— Venha, vamos sentar — apontou o banco mais próximo, desocupado
porque ficava na sombra de algumas árvores. — Eu me canso muito, sabe?
Tinha quarenta anos, portanto era um velho para a menina. E, com sua
saúde frágil, talvez fosse mesmo. Como não seria um velho precoce alguém que
já estava afastado do mundo e aposentado havia um ano devido à tuberculose?
Sentaram-se no banco, e de imediato ele sentiu um grande alívio ao comprovar
que conseguira deter as lágrimas de sua companheira. Nem as pessoas mais
próximas olhavam para eles. Estavam a salvo.
O resto dependia...
— Seu nome é...? — fingiu distração.
— Elsi.
— Elsi, claro! Lógico que era sua boneca, porque a carta é para você!
— Que carta?
— A que ela escreveu, explicando por que foi embora tão de repente.
Mas, com a pressa, eu acabei por deixá-la em casa. Amanhã eu trago para você
ler, combinado?
Não sabia se ela estava acreditando. Ignorava se seu tom era adequado,
convincente e categórico, e ao mesmo tempo jovial e despreocupado. Aqueles
segundos eram decisivos. A menina podia tomá-lo por louco. Mas também po-
dia aferrar-se à esperança.
E a esperança era mais necessária que a realidade.
— Por que a Brígida foi viajar sem mim? — perguntou, fazendo um bico
de contrariedade.
Ele já esperava essa pergunta. Sentiu-se orgulhoso de poder se antecipar,
nem que fosse só por um segundo, à reação de sua companheira.
— Há quanto tempo ela era sua boneca?
— Ela sempre foi minha boneca.
— A vida inteira?
— É.
— Então foi por isso.
— Por quê?
— Você tem irmãos ou irmãs mais velhos?
— Tenho.
— Algum se casou?
— Não.
— Ah, puxa.
— Mas minha prima Ute sim.
— E ela não deixou a casa dos pais?
— Deixou.
— Então, a Brígida fez a mesma coisa. Ela está na idade em que as bone-
cas precisam se emancipar — não tinha certeza se sua linguagem era compre-
ensível para a menina, mas não conhecia outra. — Quero dizer que para todo
mundo chega a hora de deixar a casa dos pais, para viajar, conhecer a vida, o
mundo, talvez um futuro maravilhoso...
— Ela nunca me disse isso — Elsi continuava com um bico enorme, bei-
rando a recaída no desconsolo.
— Vai ver ela se esqueceu, ou você não entendeu. — As meninas falavam
com suas bonecas? Sim, sem dúvida. Acreditavam que as bonecas falavam com
elas? Também. Não podia pôr a intrépida Brígida num papel tão ingrato, nem
dizer a Elsi que a vida era assim mesmo. Não seria um comentário apropriado
para sua idade. — E por isso escreveu a carta.
Elsi pesou aquelas palavras. Uma a uma. Avaliou pausadamente, com sua
lógica, a nova realidade de sua vida. Franz Kafka permaneceu imóvel. Mas bas-
tava ver aqueles olhinhos cheios de lágrimas contidas para saber que estava con-
seguindo seu intento.
Tinha sido muito convincente.
O maior absurdo depende da sinceridade com que é contado.
— E por que minha boneca escreveu para o senhor?
Era a segunda pergunta-chave.
E também estava preparado para ela.
— Porque eu sou carteiro de bonecas — disse sem pestanejar.
d

O rosto de Elsi era uma máscara.


Lutava contra a dor tentando digerir a nova realidade. Ainda não estava
certa de que tudo estivesse tão bem como ele dizia.
— Os carteiros não entregam as cartas nas casas?
— Os carteiros normais entregam, mas não os carteiros de bonecas. As
cartas das bonecas são especiais, porque são diferentes. Têm de ser entregues às
suas destinatárias em mãos. Não acha que seus pais ficariam surpresos se você,
sendo tão pequena, recebesse uma carta? E se eles preferissem ler antes, por cu-
riosidade? Será que você iria gostar?
— Não.
— Então.
— Eu ainda não sei ler muito bem.
— Está vendo? — aferrou-se à nova situação. — Isso acontece com muita
frequência. As meninas que recebem as cartas não conseguem ler, então eu leio
para elas, em voz alta. Para isso serve o carteiro de bonecas. É um trabalho
muito importante.
Tinha conseguido que Elsi parasse de chorar. A menina passou o antebra-
ço pelos olhos para enxugar as últimas lágrimas. De vez em quando, olhava pa-
ra o chão, mas era sempre para retomar o caminho que a levava ao rosto do
carteiro de bonecas.
A tristeza era o último baluarte de sua aflição.
— Por que o senhor não vai pegar a carta?
— Sinto muito, ficou tarde. Meu horário de trabalho terminou agora há
pouco, e você também tem que ir para casa logo, não é mesmo?
Elsi olhou o relógio da torre.
— Os ponteiros ainda não estão juntos — apontou. — Mas falta pouco
mesmo. A que horas o senhor começa a trabalhar amanhã?
— A que horas você vem ao parque?
— Quando os dois ponteiros estão assim — pôs os dedos indicadores das
duas mãos num determinado ângulo para que ele visse.
— Ah, que bom! — ele exclamou. — Bem na hora que eu começo. Ama-
nhã você vai ser a primeira.
— Vai me trazer a carta de Brígida?
Por nada neste mundo, por mais criança que fosse, ela esqueceria a carta.
Chegaria em casa e passaria o resto do dia pensando nela. Almoçaria, jantaria e
iria dormir sem tirá-la da cabeça. Não havia mais nada. Sem Brígida, só lhe res-
tava a carta. Um pequeno grande mundo. Franz Kafka tinha certeza de que pe-
la manhã ela acordaria e faria tudo o que devia, brincar, estudar, ir à escola ou
qualquer outra coisa a que estivesse acostumada, mas, quando chegasse a hora,
correria até o parque Steglitz a sua procura.
Tinha um encontro.
O mais inesperado.
— Claro que vou trazer a carta da sua boneca. Pode confiar em mim.
Elsi pulou do banco e ficou em pé na frente dele. Parecia não saber o que
fazer. Finalmente venceu o passo que a separava de seu novo amigo e lhe deu
um beijo no rosto.
O suave toque de uma borboleta.
— Então até amanhã — despediu-se.
— Combinado — sussurrou um comovido Franz Kafka.
e

Ele a viu afastar-se pela esquerda, sem pressa, passo a passo, de cabeça bai-
xa, pequena e frágil. Um sopro de vida.
Mas muito poderoso.
Elsi foi ficando minúscula. Primeiro foi devorada pela lonjura, depois pe-
la passagem de outras pessoas que a engoliram, ocultando-a dos olhos dele, e fi-
nalmente pela distância.
Desapareceu.
Não de sua mente.
Só então Franz Kafka reagiu.
— Céus! — levou as duas mãos ao rosto.
Acabava de se meter numa tremenda confusão.
Não tinha medo de nada nem de ninguém, mas sim de uma menininha
que não tinha nem um metro de altura e era capaz daquele choro rasgado e de
olhar para ele com a intensidade daqueles olhos. Medo de uma força devasta-
dora como a do coração de sua nova amiga. Da marca profunda que o ocorrido
podia deixar nele.
— Com criança não se brinca — exagerou.
Sem aquela carta, Elsi cresceria com o pior dos traumas: o de ser abando-
nada por sua boneca. Se ele fizesse algo errado, Elsi poderia desenvolver em sua
alma a mágoa da rejeição. Se ele não cumprisse com a palavra, e comparecesse
ao encontro do dia seguinte sem a carta prometida, Elsi nunca voltaria a acre-
ditar na natureza humana.
Estava em jogo uma esperança.
O que há de mais sagrado na vida.
Franz Kafka sentiu o formigamento nas mãos, o nascimento das asas de
Ícaro que o elevavam até aqueles mundos possíveis apenas em sua mente inqui-
eta e inquietante, quando se debruçava sobre o papel empunhando a caneta e
entrelaçava as histórias mais extraordinárias já concebidas.
Era escritor.
Mas nunca havia escrito uma carta de uma boneca viajante para a menina
que fora sua dona até o momento da separação.
Tomado pelo nervosismo, literalmente febril, ele se levantou do banco.
Por via das dúvidas, resolveu dar uma volta pelo parque, observando to-
das as meninas com bonecas. Ele nem sabia como era Brígida. Um erro. Como
deixara passar esse detalhe? Mas nenhuma daquelas crianças parecia ter rouba-
do a boneca que carregava no colo com tanto amor ou com que brincava des-
lumbrada. E nenhum adulto estava levando uma no bolso ou correndo para es-
conder o fruto de seu roubo.
Saiu do parque Steglitz muito depois da hora habitual. Apesar disso e do
motor que acabava de arrancar em seu corpo, não correu, não se precipitou.
Sua cabeça fervilhava. Pensava em Brígida, em Elsi, no primeiro lugar em que a
boneca teria desembarcado, na forma como escreveria para sua dona.
Chegou a sua rua, a sua casa, tomado pela mesma febre.
Havia criado um singular e misterioso enigma: a boneca viajante.
Segunda fantasia: as cartas de Brígida
f

A senhora Hermann tinha uma filha da idade de Elsi.


Franz parou no andar dela antes de subir até seu apartamento e bateu à
porta. A espera foi breve. A própria senhora Hermann atendeu depois de per-
guntar quem era. Seus olhos de mulher cansada não demonstraram simpatia, e
sim curiosidade. Era a primeira vez que seu vizinho a visitava ou queria falar
com ela. No prédio, sabia-se que o estranho senhor Kafka não trabalhava, esta-
va doente e ia para o hospital com uma frequência cada vez maior.
— Bom dia, senhora Hermann. — Olhou o relógio e mudou o cumpri-
mento. — Ou boa tarde. — Seu sorriso não conseguiu alterar o ar sério da
mulher. — Sua filha está em casa?
— Não.
Era um inconveniente, quase um contratempo.
— Desculpe o incomodo e o absurdo de meu pedido, mas... a senhora te-
ria alguma boneca de sua filha para me emprestar por um minuto?
Conseguiu surpreendê-la.
— Uma boneca?
— É, de qualquer tipo, de pano, de porcelana... Uma boneca.
— Mas para quê?
— Para observá-la, só isso. Tenho que escrever sobre o tema e mal lembro
como eram as bonecas das minhas três irmãs. Se não for incomodar muito...
A senhora Hermann continuou apoiada no batente da porta. Às vezes ela
falava com Dora Dymant, a moça que morava com ele. Dora e Franz Kafka
haviam chegado ao modesto e humilde edifício fazia pouco tempo. E certa-
mente não eram casados. Dizia-se que o pai dela não aprovava o casamento,
talvez por causa da doença dele, talvez porque era um simples funcionário de
uma companhia de seguros, embora tivesse certa importância como escritor.
— Não posso deixar que a leve. Minha filha está para voltar e, se der pela
falta da boneca, vai abrir um berreiro de derrubar a casa.
— Não faz mal, eu a examino aqui mesmo.
Venceu a tênue resistência da senhora.
— Espere — respondeu conformada.
Franz Kafka esperou no corredor. Dora devia estar impaciente, preocupa-
da com a demora. Ela cuidava dele e o protegia. Talvez devesse ter avisado, em-
bora fosse uma questão de minutos.
A senhora Hermann reapareceu à porta do apartamento, emergindo da
penumbra do corredor, de paredes sobrecarregadas com uma escura forração
vermelha. Trazia uma boneca velha e surrada que sem dúvida não devia ser a
preferida da filha. No máximo, uma entre muitas guardadas no fundo de um
armário ou de um baú qualquer. Mas para ele estava bom. Não tinhia do que
reclamar. Só queria observá-la, pegá-la nas mãos, sentir aquela sensação desco-
nhecida.
— Tome — entregou-a a dona da casa.
— Obrigado, muita gentileza a sua.
Tinha só um olho, uma perna estava solta; o cabelo, que saía de uma infi-
nidade de pontos da cabeça, estava imundo, assim como a roupa esverdeada.
Primeiro a observou muito fixo: seu ar eternamente sorridente, o narizinho mi-
núsculo e os lindos lábios rosados. Depois a estudou com mais atenção: as
mãos, os pés, sua forma, o corpo.
Quando ele levantou a saia para olhar por baixo, a senhora Hermann er-
gueu uma sobrancelha, desconfiada.
Uma boneca.
Só isso.
— Sua filha conversa com as bonecas, senhora Hermann?
— Sim, como toda menina, brinca e fala com elas.
Tinha mais algumas perguntas, mas preferia fazê-las à pequena, não à des-
confiada mãe. No entanto, por causa de sua bendita doença, duvidava que a
mulher o deixasse chegar tão perto de sua prole.
— Ela a chama de Karla, e é sua irmãzinha — a vizinha foi um pouco
mais comunicativa.
— Interessante.
O exame havia terminado. Não tinha sentido continuar ali. A luz era tão
mortiça que seus olhos doíam.
— Já me ajudou muito — disse, devolvendo a desconjuntada boneca. —
De verdade, obrigado.
— Não há de quê — iniciou o recuo que terminou com a porta fechada.
Franz Kafka continuou subindo as escadas até seu andar. Não precisou
usar a chave, pois Dora apareceu assim que ouviu o som de seus passos. Rece-
beu-o com a doçura de um sorriso e o afeto de seus braços abertos.
— Achei que você estava falando com alguém.
— Estava, sim, com a senhora Hermann.
— Puxa, que sociável.
— Eu queria... — contaria a ela que havia parado no caminho para exa-
minar uma boneca?
Depois. Agora a única coisa que ele queria de verdade era fechar-se em
seu escritório e começar aquela carta insólita.
A mais difícil de sua vida.
— Como foi o passeio? Demorou mais que nos outros dias — disse Do-
ra.
— Depois eu conto, pode ser?
— Aonde você vai?
— Escrever um pouco.
— Agora?
Franz Kafka lhe deu um beijo no canto da boca. Era muito complicado
explicar, e Dora poderia rir dele, ou achar que era um louco samaritano de me-
ninas que perdiam bonecas nos parques de Berlim. Preferia fazer cada coisa a
seu tempo. E aquele era o tempo de satisfazer sua ansiedade.
— Preciso escrever.
Essa explicação bastava. Era um homem de febres e rompantes. Ela sabia
muito bem disso.
— Está certo.
— Obrigado.
— Chamo você para o almoço?
— Sim.
— Vai almoçar?
— Vou.
Ela não acreditava muito. Conhecia aquela expressão alucinada.
Franz Kafka entrou em seu escritório e fechou a porta. Tirou o paletó,
pendurou-o no cabide, sentou em sua cadeira e apanhou a caneta. As folhas em
branco estavam sempre à espera, sobre a mesa.
— Vamos lá, Brígida — suspirou antes de começar a escrever.
g

O tempo tinha passado lento ao longo daquela última hora, como se os


ponteiros estivessem parados, em greve, incapazes de se mexer e de avançar. Ca-
da vez que ele olhava o relógio, parecia que, em vez de avançar, brincava com
sua paciência. Chegou a contar mentalmente até sessenta, devagar, para ter cer-
teza de que passava um minuto.
Na sua cabeça, ainda ecoavam as palavras de Dora.
— Você é incrível! Tudo isso por uma menina desconhecida!
— Desconhecida não, ela se chama Elsi.
— Não sei se você é um santo ou está louco, querido.
Às vezes pensava que as duas coisas.
Estava na hora. No longínquo relógio que servia de guia para Elsi, os
ponteiros finalmente formavam a figura que ela tinha desenhado com os dedos
no dia anterior. Faltava a última espera, a pior, a da incerteza.
E se a mãe dela, depois do incidente da boneca perdida, não a deixasse
sair? E se sua filha lhe tivesse contado a curiosa conversa que tivera com o car-
teiro de bonecas, e a mulher, em vez de encarar a história como uma brincadei-
ra ou um jogo, a considerasse suspeita? E se a mãe aparecesse com dois robus-
tos policiais dispostos a verificar se as intenções dele eram boas?
Franz Kafka tinha os olhos fixos no ponto em que no dia anterior vira El-
si desaparecer.
A manhã estava cálida e agradável, uma bela e harmoniosa conjunção de
placidez e temperatura amena. O parque estava ainda mais esplendoroso do
que vinte e quatro horas antes, como se o bairro inteiro estivesse lá passeando,
entregue a um lânguido ócio. Por sorte, o banco que ocupava continuava vazio,
porque o sol não incidia diretamente sobre ele. Quando Elsi chegasse, estariam
a sós.
Sentia-se bem.
Muito bem. Melhor do que nunca. O trabalho febril de toda a tarde ante-
rior o mergulhara num estado de tensão nervosa que agora se transformava em
serena complacência. Aquela agitação, aquele paroxismo...
A hora.
Não teve que esperar muito mais nem olhar o relógio de novo. Elsi apare-
ceu ao longe, e seu pequeno vulto aumentou e ganhou corpo no espaço, cor-
rendo na direção dele. Vinha sozinha, decidida. Estava vestida diferente, embo-
ra calçasse as mesmas botinhas e os culotes fossem iguais. A bata se transfor-
mou num agasalho de primavera e a camisa com gola de renda deu lugar a uma
blusa primorosamente bordada. Também não usava tranças, mas o cabelo com-
prido e preto solto sob um casquete azul.
Franz Kafka sorriu.
Como descrever sua expressão? Feliz, contente?
Paternal?
Elsi não diminuiu a corrida ao vê-lo sentado no banco. Seu rosto também
não expressou nenhuma mudança. Para a mente infantil, a realidade era sem-
pre uma, sem paliativos ou alternativas. Seu carteiro devia estar lá, e lá estava.
Ponto. Parou na frente dele, observando-o muito fixo, e, ofegante, fez a única
pergunta que lhe interessava:
— O senhor trouxe a carta?
— Trouxe, sim.
Não demonstrou alívio nem contentamento, apenas a seriedade de qual-
quer pessoa adulta diante de algo situado dentro da mais absoluta normalidade.
Sentou-se no banco, à direita dele, e sem afastar os olhos esperou que o carteiro
fizesse o que se supunha que devia fazer: mostrar-lhe a tão esperada carta.
Pela primeira vez, Franz Kafka sentiu-se um pouco ridículo.
Se alguém o visse, ou soubesse daquela história insólita...
Mas o mundo girava impassível ao redor deles. Estavam longe de ser alvo
de qualquer atenção. Ninguém reparava neles, um homem e uma menina sen-
tados num banco do parque.
Tirou a carta do bolso do casaco e mostrou a ela.
— Está vendo? — apontou o endereço. — “Senhor carteiro de bonecas,
esta carta é para Elsi.”
A menina a segurou nas mãos como se a acalentasse. Depois, virou-a e
olhou o remetente.
— “Brígida. West End. Londres” — disse Franz Kafka.
Não faltava nem mesmo o detalhe do selo. Afinal tinha alguma serventia
guardar tudo, como, por exemplo, os selos estrangeiros. Ele o descolou com
cuidado do seu envelope e o colou no de Brígida. Um autêntico selo britânico.
— Brígida está em Londres?
— Isso mesmo, na capital da Inglaterra.
— Fica muito longe?
— Bastante, do outro lado do Canal da Mancha.
— O que ela está fazendo lá?
— Não sei. Não li a carta.
— Posso abrir?
— Claro. É sua.
Ela abriu zelosamente o envelope, como se temesse rasgar o conteúdo se o
fizesse com muita força. Usou dois dedos de cada mão, o polegar e o indicador,
para separar a aba e tirar a folha de papel escrita à mão com letra suficiente-
mente clara para que ela pudesse ler.
Mas, depois de tentar um bocado, a menina acabou entregando a folha
de papel a seu companheiro.
— Tome — disse. — Leia o senhor.
— Está bem — Kafka pegou a missiva e pigarreou duas ou três vezes para
limpar a garganta. — Posso começar?
— Pode.
— Bom, então... Diz o seguinte: “Querida Elsi, antes de mais nada, me
desculpe por ter ido embora tão de repente, sem me despedir. Sinto muito e es-
pero que não esteja zangada. Às vezes fazemos coisas sem perceber, ou reagimos
inesperadamente diante do que nosso instinto nos diz, e magoamos quem não
queremos. Com você e a mamãe também acontece assim, não é mesmo? É que
as despedidas são tristes, e eu não queria que você chorasse nem tentasse me
convencer a ficar mais um pouco. Temia que você não me deixasse ir, e eu pre-
cisava fazer isso. Espero que você compreenda. Eu te amo tanto, Elsi, tanto,
que não suportaria vê-la chorar ou que você me visse chorar.” — Olhou de sos-
laio a menina. Elsi escutava atentamente, com os olhos fixos no chão, então ele
continuou: — “Agora sei que vai ficar mais tranquila e, sabendo que estou
bem, vai se alegrar por nós duas”.
Fez uma pausa um pouco mais longa.
— Acabou? — Elsi lhe mostrou sua carinha de incredulidade.
— Oh, não, desculpe — exclamou. — É muito mais longa, claro.
— Continue — pediu.
— “Elsi, você deve saber que viver é seguir sempre em frente, aproveitar
cada momento, cada oportunidade e cada necessidade. Você também vai fazer
a mesma coisa daqui a alguns anos. As pessoas e as bonecas são feitas de senti-
mentos e emoções que é preciso ir usando aos poucos. São nossa energia vital.
Depois desses anos a seu lado, sou a boneca mais feliz que existe, cheia de ener-
gia. Quero que fique contente, e muito, porque tudo que sou devo a você. Vo-
cê cuidou de mim, me ensinou muitas coisas, me amou e me fez ser uma boa
boneca. Agora que me preparo para iniciar uma nova vida, a partida foi triste
por deixá-la, mas bonita porque graças a você sou livre para fazer isso.”
— Ela não vai voltar — interrompeu Elsi.
Franz Kafka escolheu as palavras com cuidado, e mais ainda o tom com
que as pronunciou.
— Receio que não, porque ela parece estar muito contente...
— É — aceitou convencida.
— Por isso ela ficou tanto tempo com você.
A menina olhou a carta. Seu interlocutor retomou a leitura:
— “Londres é uma cidade linda, para mim foi maravilhoso descobri-la.
Agora mesmo, escrevo do coração dela, Picadilly Circus, depois de passear de
barco pelo Tâmisa e caminhar um pouco pela Trafalgar Square. Hoje à noite,
vou assistir a uma peça de teatro no Soho...”
Continuou lendo.
Londres, as idas e vindas de Brígida.
A boneca mais ativa e rápida do mundo.
Elsi não perdia um detalhe da longa, longuíssima carta escrita por Brígi-
da, para que não ficasse triste nem voltasse a chorar quando se lembrasse dela.
h

Quando acabou de ler a carta, Franz Kafka pensou como, de repente, o


resultado parecia efêmero, comparado às muitas horas investidas naquela sim-
ples redação.
Agora tudo dependia de Elsi.
A menina continuava olhando para o chão.
— E então? — perguntou mais relaxado.
— Tudo bem — inclinou a cabeça mostrando a ambiguidade que a inva-
dia.
Continuava lutando entre o despeito e a tristeza, o conformismo e a re-
beldia provocados por sentir-se vítima de tão injusta situação.
— Tome — entregou-lhe a carta.
Elsi a segurou nas mãos.
— Ela parece feliz — acabou aceitando.
— Muito.
— E contente.
— Por que não haveria de estar?
— Porque está sem mim...
Franz Kafka mordeu o lábio inferior. Não entendia nada de psicologia in-
fantil. A única coisa que sabia, por intuição, era que as crianças destilavam
egoísmo. Fazia parte de sua própria inocência. Egoísmo por precaução, por
senso de sobrevivência, por necessidade. Queriam tudo, amor, carinho, aten-
ção. Ser o centro do Universo e que o mundo girasse a seu redor era tão natural
quanto a comida aparecer na mesa todos os dias com um passe de mágica.
— Você ouviu, não? O mais importante é que ela é feliz graças a você.
— Não entendo — reconheceu a menina.
— Na minha larga experiência como carteiro... — mais uma vez procu-
rou as palavras adequadas à situação. — Sabe, sei de bonecas que nunca fazem
sua viagem. Têm medo. Ficam com suas meninas, mas não por amor a elas, ao
contrário: ficam por medo. E o medo é uma coisa ruim e perversa que limita a
liberdade. Quem tem medo não vive, agoniza. Brígida teve em você a melhor
professora. Você a ensinou a não ter medo e a enfrentar a vida quando foi pre-
ciso. Por isso acho que deveria se sentir muito orgulhosa.
— E estou — confirmou com toda a veemência.
— Pois não parece — lamentou o insólito fabulador.
— É que ainda não consigo acreditar que ela não está mais comigo. —
Elsi falava devagar, abrindo o coração. — Ontem à noite, quando me deitei,
senti muito sua falta, porque costumava dormir abraçada a ela. E hoje de ma-
nhã também não pudemos brincar juntas. Além disso, não sei por quê, sinto
que é um segredo meu e não contei nada para a mamãe. Não sei se está certo.
Foi mamãe que me deu a Brígida de presente quando eu nasci.
— As mães não costumam estar dispostas a acreditar na gente.
— O senhor também tem mãe?
— Claro, e três irmãs. Também tive dois irmãos, mas morreram muito
pequenos. Eu sou o mais velho.
— Também teve uma boneca que foi viajar?
Puxou da memória.
— Tive um soldadinho de chumbo.
— Então ele foi para a guerra.
— Não, não, ele foi viajar. Explorou muitos lugares, o Polo Norte, o Polo
Sul, o Alasca... A última carta dele vinha de algum lugar da China.
— Senhor carteiro...
Deparou com aquele olhar limpo que o atravessava.
— Diga, Elsi.
— Eu posso escrever para a Brígida?
A angústia tomou conta dele.
Não tinha pensado nisso.
Prova de que com as crianças ninguém podia, e às vezes elas estavam mui-
to à frente dos adultos.
— Receio... que não — manteve seu lado mais imperturbável.
— Por quê?
— Porque, sendo uma boneca viajante, ela não vai ficar em Londres.
— E como a gente sabe que ela é uma boneca viajante?
— Porque foi para Londres em vez de ficar morando aqui.
— Ah. — Piscou. — E aonde ela vai depois?
— Não sei — reconheceu.
— Mas amanhã ela vai me contar na carta, não é?
Franz Kafka ficou com a mente em branco e o coração apertado. A carta
tinha sido um parto. Com dor. Um parto carregado de espinhos com a melhor
das intenções: devolver a paz à alma de uma menina ferida.
Agora, o que ela pedia era...
Os olhos de Elsi continuavam fixos nele. Uns olhos límpidos, belos, chei-
os de sincera entrega. A menina acreditava. Ele havia se transformado no car-
teiro de bonecas. Ela acreditava, e isso era mais do que muitos adultos podiam
esperar das crianças.
Amanhã.
Outra carta.
— Sim, Elsi — passou uma mão impetuosa e doce pela cabeça dela. —
Claro que amanhã vai chegar outra carta de Brígida, contando onde está e co-
mo vai em sua nova vida.
i

Voltou para casa novamente angustiado.


Uma carta representava quase uma aventura. Outra carta marcava um ca-
minho, uma trilha perigosa que, se ele tomasse, beiraria o perigo.
Aquela segunda carta era uma ponte.
De quantas cartas Elsi precisaria para ser feliz?
E Brígida, de quantas para se libertar?
Se não a escrevesse, nunca poderia voltar ao parque Steglitz. Como seria
capaz de encontrar Elsi dias ou semanas depois, fingindo indiferença, ou envol-
to numa dolorosa mentira? Não ia conseguir encarar sua nova amiga com a paz
e a serenidade necessárias. Teria falhado com ela.
Mas, se escrevesse, ele se meteria numa areia movediça que o engoliria
muito lentamente.
Chegou a seu prédio, entrou no saguão. Por um capricho do acaso, topou
com a senhora Hermann e sua filha descendo as escadas. Cumprimentou-a
educadamente, inclinando a cabeça. Tinha tirado o chapéu assim que chegara
da rua, portanto não forçou o gesto. A mulher respondeu ao cumprimento
olhando-o da mesma forma desconfiada que no dia anterior. A menina, de
mãos dadas com a mãe, era uma cópia loira do anjo do parque Steglitz. Não le-
vava nenhuma boneca.
O contato foi rápido.
Enquanto subia as escadas, ouviu, alta e clara, a voz da pequena já na por-
ta da rua:
— Ele é esquisito, não é, mamãe?
— Psiu!... — repreendeu-a. — Ele vai ouvir você!
Contou os degraus. Costumava fazer isso. Cada vez se cansava mais. Des-
ta vez, no entanto, a angústia não vinha da tuberculose, mas daquele novo de-
safio.
A segunda carta de Brígida.
Lembrou a despedida de Elsi, no parque, alguns minutos antes. Ele a viu
sorrir pela primeira vez. Um verdadeiro presente.
— Obrigada, senhor carteiro.
— Não há de quê, Elsi.
— Até amanhã.
A primeira carta, tinha certeza, era um modelo de perfeição. Tivera muito
trabalho para escrevê-la, por isso sentia orgulho dela. Fizera muitos rascunhos,
estudara o tom, mudara palavras, calculara a intensidade, procurara uma lin-
guagem simples e compreensível...
— Franz, você está falando sério? — parou no patamar, preocupado.
Sim, estava falando sério.
— Vai continuar com isso?
Ia continuar.
Ele, um homem adulto, escritor complexo, escrevendo cartas de uma bo-
neca para sua dona.
Estava metido até o pescoço numa armadilha da qual não sabia como es-
capar e tinha iniciado um jogo que não podia abandonar no meio. Se não apa-
recesse no parque no dia seguinte, seria pior.
Chegou a seu andar, abriu a porta e encontrou Dora a sua espera.
— Como foi?
— Oh, bem.
— Ela gostou?
— Sim, muito.
— Bom, pelo menos você a fez feliz — Dora o abraçou pelo pescoço e
lhe deu um beijo na boca. — Você é um louco maravilhoso, e eu adoro isso.
Não sabia se devia contar a ela, mas tinha que fazê-lo. Tornou a sentir
aquela febre.
— Tem um problema.
— Qual? — sua companheira arregalou os olhos.
— Vou ter que escrever outra carta.
— Por quê? — Dora questionou, sem disfarçar o espanto.
— Porque Brígida é uma boneca viajante, não pode receber cartas de Elsi,
mas Elsi espera notícias dela, do seu novo destino.
— Franz!
— Eu sei — aceitou o desafio de sustentar seu olhar. — Mas o que você
queria que eu fizesse? Ela confia em mim.
Confiar.
— Você nem sequer a conhece, nem ela a você.
— Não faz mal, é uma criança. A única coisa que interessa é isso. O as-
sunto virou uma responsabilidade pessoal.
— Achei que você ia continuar seu livro...
— Como você quer que eu pense em escrever qualquer outra coisa agora?
Dora cruzou os braços. Fazia pouco tempo que estavam juntos, mas ela o
conhecia muito bem. Os problemas, os de sua saúde e os outros, só faziam uni-
los mais e mais. Conhecia aquele olhar, aquela determinação, a intensidade da
energia que parecia transbordar de sua alma quando tomava conta dele.
— Então você vai se enfiar no escritório — suspirou.
— Vou.
— E de onde Brunilda vai escrever?...
— Brígida.
— Tanto faz, de onde Brígida vai escrever desta vez?
Franz Kafka pensou por alguns segundos.
Depois sorriu.
— Que tal Paris?
j

Naquela manhã, Elsi chegou pelo menos dois minutos antes do combina-
do. Não teve importância, porque fazia pelo menos dez que ele estava lá, no
mesmo banco, à sombra, esperando impaciente, enquanto as outras pessoas
perseguiam o tímido sol que brincava de esconde-esconde com as nuvens que
semeavam de maus presságios o céu.
No dia anterior, ela havia chegado séria, ansiosa. Agora, justamente o
contrário.
Sorria.
Interrompeu sua corrida através do parque e repetiu um dos gestos mais
característicos de sua jovem personalidade: fixar nos olhos dele aqueles seus
olhos firmes e dotados de uma intensidade especial.
Olhos livres de qualquer contaminação, limpos e puros.
— Tem carta hoje?
— Tem.
Seu olhar se iluminou ainda mais.
— De onde é?
— De Paris.
— Paris! — repetiu com um prazer sublime, uma espécie de canto.
— Você sabe onde fica Paris?
— Claro, na França! Meus pais estiveram lá! Tem uma torre muita alta,
de ferro!
Já estava sentada ao lado dele, esperando. Franz Kafka tirou do bolso do
casaco a segunda carta de Brígida. Também desta vez não faltava o menor deta-
lhe. O selo era francês e foi descolado de um envelope postado na França. Com
a mesma letra clara e bonita, lia-se o nome do destinatário: “Senhor carteiro de
bonecas, esta carta é para Elsi”.
Elsi virou-a.

É
— “Champs Élysées, Paris” — leu.
— Que sorte sua boneca pensar tanto em você e escrever! — observou
Franz Kafka.
— Brígida é uma boneca muito boa.
— É, sim.
Elsi abriu o envelope e tirou as duas folhas de papel. Duas. O secreto au-
tor do texto sorriu para si mesmo. A verdade é que, agora, se sentia à vontade.
A pena voara com muito mais liberdade e as palavras tinham se encadeado co-
mo uma longa tranca de emoções e sentimentos.
Brígida estava dentro de sua cabeça.
— O senhor pode ler para mim?
— Claro.
Nenhuma pergunta comprometedora sobre a espantosa rapidez com que
as cartas chegavam de qualquer lugar até Berlim. Nenhuma dúvida nem questi-
onamento. Pelo menos essa era a parte do encanto infantil mais bem aproveita-
da pelos adultos: a credulidade.
Bastava ser convincente.
— “Querida Elsi” — tinha pensado muito sobre a melhor forma de co-
meçar a carta, e estava certo de que aquela era a mais adequada. — “Você sabia
que o céu de Paris é da cor de seus olhos quando você sorri e que as nuvens são
como os pêssegos que se formam no seu rosto? Pois é assim mesmo. Estou em
Paris! Acredita? Nesta segunda etapa da minha viagem, eu resolvi navegar pelo
Sena, ver o museu do Louvre, passear pelos Champs Élysées e subir na torre
Eiffel”. — Fez uma pausa para explicar: — A tal torre de ferro. — E continu-
ou: — “Espero que você não se canse com minhas aventuras, porque vou lhe
contar tudo o que tenho feito. Quer saber?”
— Quero — disse Elsi respondendo à pergunta da carta.
Franz Kafka continuou lendo.
Não sentia mais o medo nem a inquietação do dia anterior. Não experi-
mentava nada que não fosse serenidade e emoção. Ele havia escrito aquelas pa-
lavras tomado pelo magnetismo da história, entregue a cada sentimento que
experimentava, e agora conseguia lê-las com a mesma devoção. O fundamental
numa relação como aquela era a cumplicidade.
Elsi e ele eram cúmplices.
Lia e lia, marcando cada inflexão, criando mistérios na narração, aprovei-
tando o tom e a fascinação de cada nova experiencia. Brígida era muito especi-
al. Gostava não apenas de cultura, como atestava sua visita ao museu do Lou-
vre, mas também de descobrir a animada vida noturna parisiense. A sapeca ti-
nha ido a nada menos que o Moulin Rouge, para ver um espetáculo de dança.
E, a julgar pelo entusiasmo de sua descrição, se esbaldou. Além disso, seu dia e
suas horas pareciam elásticos. Subir na torre Eiffel, passear pelo Bois de Bou-
logne, navegar pelo Sena, percorrer as pontes que o atravessam e fazer compras
tomaram-lhe um tempo mínimo. Também jantou no Maxim’s, foi à ópera e
dormiu no melhor quarto do hotel George V. Uma maravilha.
A descrição da última moda parisiense também aparecia em seu relato.
Dora estava a par.
O trecho final da carta era, segundo seu critério, outro achado:
— “Espero que o senhor carteiro que lhe entrega minhas cartas seja uma
pessoa amável e boa, como todos os carteiros de bonecas” — notou que Elsi as-
sentia com a cabeça. — “E espero que você esteja se comportando muito bem
agora que já não estou aí, que coma tudo direitinho e não aborreça a...”
— Está parecendo minha mãe — suspirou a menina.
Franz Kafka mordeu o lábio inferior. Talvez tivesse exagerado um pouco.
— “Com muito amor, sua amiga Brígida” — resolveu se despedir.
A pequena continuou tal e qual, feliz e orgulhosa, mas ainda com aquela
ponta de tristeza que às vezes aflorava em seu rosto. Por ela, a carta podia ter
dez páginas.
Olhou para a menina que passava na frente deles nesse momento, empur-
rando um carrinho com uma boneca. Uma mulher com jeito de babá velava
por sua segurança.
— Que sorte poder viajar — murmurou Elsi.
— Você também vai viajar um dia, se quiser — disse Franz Kafka.
— O senhor já viajou?
— Um pouco — pensou nos hospitais e casas de repouso que visitara nos
últimos tempos por causa de sua doença, diagnosticada quase seis anos antes:
Matliary, Spindlelmühle, Planá, Müritz... E lhe falaram de sanatórios muito
bons, o de Wiener Wald, o Kierling, a clínica Hajek. — Um pouco, sim.
— Por causa do seu trabalho de carteiro?
— Não, antes disso.
— E o que o senhor fazia?
Pensou por alguns segundos. Um carteiro de bonecas não podia trabalhar
numa companhia de seguros, o Instituto de Seguros para Acidentes de Traba-
lho. Um carteiro de bonecas que recebia cartas de uma boneca viajante chama-
da Brígida deveria ter sido, no mínimo...
— Era maquinista de trem.
— É mesmo? — Os olhos de Elsi viraram duas luas.
— É, sim. Eu dirigia uma extraordinária máquina a vapor — anunciou
orgulhoso. — Tocava o apito em todos os povoados e cidades, na chegada e na
partida.
— Era emocionante?
— Até que era.
— E por que o senhor deixou esse trabalho?
— Por causa da fumaça. Essa tossezinha que eu tenho vem daquele tem-
po. E também porque, com o passar dos anos, já estava enjoando. Sempre pelo
mesmo caminho, sobre os trilhos. A vida tem muitos caminhos, Elsi.
— Brígida viaja de trem, de navio, de carro... não é?
— Esse é o espírito da aventura.
Pararam de falar um com o outro. Uma menina da mesma idade de Elsi,
ou poucos meses mais velha, chegou correndo pela direita. Nem sequer reparou
nele.
— Você vem brincar?
Elsi guardou a carta no bolso do casaco.
— Preciso ir — disse a seu amigo, o carteiro.
— Claro.
— Até amanhã.
— Até amanhã.
Brígida tinha todo um mundo pela frente.
k

De noite, na cama, ele logo viu que não ia ser fácil pegar no sono.
A culpa não era só da carta escrita ao longo do dia, mas também daquele
beijo.
Levou a mão ao rosto.
Por que os beijos das crianças tinham sabor?
Elsi havia lhe dado um, antes de sair correndo com sua amiga, repetindo
o gesto da primeira vez, rápido e afetuoso. Um beijo carinhoso, doce, de afeto
sincero.
Um beijo conquistado com suor.
E quem faz por merecer um beijo...
Rolou na cama pela enésima vez.
— Não está conseguindo dormir? — escutou a voz de Dora a seu lado.
— Ah, me desculpe, está difícil.
— Quer tomar alguma coisa?
— Na verdade, não.
— Um chá?
— Durma, deixe de bobagem.
— Não seria você se não mergulhasse de cabeça, querido — murmurou a
sonolenta voz de sua companheira.
De cabeça.
Não seria nada mau um chá, ou um calmante. Quando custava a dormir,
ele se sentia presa de uma aflição maior que a da insônia propriamente dita.
“Ah, as crianças são traidoras!”, pensou. “Surpreendem com o melhor e mais
puro de si mesmas! Conseguem dar afeto com uma facilidade que chega a as-
sustar!” E, num mundo sempre a ponto de naufragar, que se movia no fio do
egoísmo, da incerteza e da crueldade humana, todos sabiam que isso era peri-
goso. Uma criança tanto podia matar com sua sinceridade como atravessar com
seu desembaraço os espessos muros da consciência.
Abriu os olhos e os fixou na escuridão.
Ninguém enxergava no escuro, mas ele sim.
A escuridão era uma tela, como a dos cinemas.
Meses antes, tinha pedido a seu amigo Max Brod que, quando morresse,
destruísse toda sua obra, todas aquelas páginas escritas e nunca publicadas. E só
agora se dava conta de que as cartas de Brígida para Elsi ficariam a salvo dessas
chamas.
Que tolice.
Que importância tinha isso?
Não era ele que escrevia, mas Brígida.
A terceira chegava de Viena. Talvez tivesse saído menos vital, menos entu-
siasmada que a de Paris ou até que a de Londres. Claro que Viena era uma ci-
dade séria e pragmática, nobre e chata. Esquecera alguma coisa? Podia se levan-
tar para dar uma última olhada, ou reescrevê-la pela manhã, antes de seu en-
contro no parque Steglitz. A simples ideia de enfrentar de novo o papel em
branco o fez desistir. Não, nem pensar. A carta ficaria como estava. A seguinte
viria... de Veneza, isso mesmo, maravilhoso, uma cidade perfeita para deixar a
imaginação voar. Brígida na praça de São Marcos, Brígida andando de vaporet-
to, Brígida de gôndola. Fascinante. Ficaria hospedada no lugar mais bonito, o
hotel Danieli. As fotos deviam estar em algum lugar. E no dia seguinte... Mos-
cou! Sem dúvida, um grande contraste. Depois seguiria para a Espanha, a Gré-
cia, a Hungria... Mas só o Velho Continente? Não, para que se limitar? Brígida
cruzaria o mar. Os mistérios da África, o exotismo asiático, a fascinante Améri-
ca, de norte a sul.
Por que estava tão agitado? Acabara de enlouquecer? Sim, completamen-
te! Se alguém soubesse de sua história com Elsi, ele nem precisaria morrer de
tuberculose. Seria internado diretamente num manicômio.
E rolou na cama de novo.
Um gemido de Dora.
— Vou preparar um chá — resmungou ela.
— Não, desculpe, sinto muito...
Sua companheira já caminhava para a cozinha como uma sonâmbula, en-
volta em sua sonolência.
Terceira ilusão: o longo trajeto da boneca via-
jante
l

Duas semanas.
Catorze cartas.
Brígida percorria o mundo numa velocidade estonteante e suas aventuras
eram cada vez mais insólitas, mais bonitas, mais dignas de uma fascinante odis-
seia de boneca e da fantasia de um escritor do que da realidade, por mais estra-
nha que fosse. E o mais incrível, o que mais maravilhava Franz Kafka, era a for-
ma como Elsi ouvia a narração dessas experiências, emocionada, plenamente
identificada, cada vez mais cúmplice dos singularíssimos alardes de sua querida
Brígida.
Brígida cruzou o extenso deserto do Saara numa caravana de camelos, ex-
plorou a Índia, percorreu a grande muralha da China, nadou no mar Morto,
escalou os altos picos do Himalaia, voou de balão... Brígida esteve em Pequim,
em Tóquio, em Nova Iorque, em Bogotá, no México, em Havana, em Hong
Kong...
Brígida era famosa. Pulava de um continente a outro num abrir e fechar
de olhos. Não importava mais nenhuma lógica. Em suas mãos e sua imagina-
ção, a boneca fizera o mundo ficar pequeno. Nem Júlio Verne a criaria mais fa-
bulosa, e em menos de oitenta dias o mundo se deixaria abraçar por ela.
Duas semanas.
Catorze cartas.
Franz Kafka estava impressionado.
Tivera de comprar selos usados numa filatélica e visitar um colecionador
para manter com dignidade a longa viagem de Brígida. Ou a gente faz as coisas
direito, ou não faz. Dora estava entre fascinada e aborrecida. Desde que Elsi
entrara na vida de Franz, ele só fazia escrever aquelas cartas, com uma energia e
uma dedicação que ela preferiria ver aplicadas em seus contos ou romances. O
aborrecimento de Dora se devia a sua catártica concentração em proveito da-
quela correspondência unilateral. O fascínio devia-se à perseverança que ele de-
positava em seu empenho. Sua companheira reconhecia seu valor.
À noite, quando o abraçava na cama, sussurrava:
— Só você poderia pensar uma coisa dessas, querido. Te amo.
Salvar uma menina não era salvar o mundo?
A primeira dor costuma ser dura e amarga. O primeiro choque com a rea-
lidade, o despertar. Elsi nunca esqueceria a perda de sua boneca. Agora, pelo
contrário, brotava nela aquele orgulho...
Incansável.
Ou não?
Porque, de repente, naquela manhã...
Franz Kafka olhou de novo o seu relógio e o da torre. Não havia engano.
Passavam dez minutos da hora habitual em que Elsi aparecia correndo do outro
lado do parque, à sua esquerda. Dez minutos, o maior dos atrasos. Isso signifi-
cava que seu interesse acabara de repente? E se estivesse doente? O que faria
Brígida nesse caso, continuar escrevendo dia após dia para quando ela sarasse?
Duas semanas, catorze cartas, e aqueles dez minutos bastavam para con-
frontá-lo com uma certeza até então desconhecida.
Até quando ele seria o carteiro de bonecas?
Até quando escreveria a tão viajada Brígida?
Onze minutos, doze.
Franz Kafka baixou a cabeça. Sentiu-se mais triste e desiludido do que El-
si na manhã da irreparável perda. Recordou cada detalhe da cena que os dois
haviam protagonizado vinte e quatro horas antes, sem achar na menina nada
que levasse a suspeitar de cansaço. Ela se divertira muito ao saber que Brígida
navegara pelo Nilo e explorara com valentia e audácia as galerias secretas das
pirâmides. Tanto quanto ele ao escrever. De fato, sentiu uma vontade enorme
de visitar o Egito.
Quinze minutos.
Conformou-se com o inevitável. Caso se tratasse de um resfriado, a coita-
dinha estaria passando tão mal quanto ele, sem ter como avisá-lo. Se, ao con-
trário, fosse cansaço, desinteresse... Pelo menos teria cumprido sua tarefa, im-
pedindo que uma enorme ferida marcasse a vida de Elsi por causa da perda de
Brígida. Já fizera muito sendo fiel por duas semanas inteiras.
— Agora você pode voltar a escrever alguma coisa de útil — disse para si
mesmo.
E por acaso a correspondência de Brígida não era útil?
Talvez valesse mais do que qualquer uma daquelas páginas que nunca pu-
blicaria e que estavam condenadas ao fogo e ao esquecimento, quando Max
Brod cumprisse sua vontade depois de sua morte.
Sentia-se triste.
Desapontado.
Vinte minutos.
Por que continuava esperando? Ninguém menos que ele, Franz Kafka,
um adulto, esperando uma menina mal saída das fraldas...
Já ia se levantando.
Então a viu, como sempre, correndo do outro lado do parque, mais veloz
e esfogueada que das outras vezes. Correndo como se aquilo fosse a coisa mais
importante de sua curta vida.
Nenhum esquecimento.
Ali estava Elsi.
Franz Kafka sorriu aliviado.
— Oh, eu sinto muito mesmo, senhor carteiro! — A menina quase se ati-
rou em cima dele ao chegar a seu lado. — Minha mãe passou mal e tive que...
Mas o senhor está aqui, não foi embora! — Seus olhos brilhavam intensos. —
De onde é a carta de hoje?
m

O mapa-múndi, de repente, parecia muito pequeno.


Examinou-o com atenção. Países, cidades, maravilhas. As ilusões não ti-
nham limites. No mundo das bonecas não existiam fronteiras, nem raças, nem
problemas com as diversas línguas. No mundo das bonecas, Brígida era rainha
por obra e graça de sua liberdade e pelo empenho de sua dona, sempre pronta a
imaginá-la feliz.
Uma extensão de si mesma.
Dora abraçou-o por trás e beijou sua cabeça, por entre o cabelo emara-
nhado. Franz Kafka sentiu a carícia e o sussurro daquela voz falando quase ao
seu ouvido.
— Amanhã vou ao parque com você para conhecer essa menina.
— Não, prefiro que não.
— Não quer dividi-la com mais ninguém?
— Não é isso.
— Tem certeza de que ela é tão menina assim?
Agarrou-a pelos pulsos e a fez dar a volta até colocá-la a seu lado. Então se
afastou da mesa e a sentou sobre seus joelhos. Dora era linda. Às vezes ele a
comparava com as duas prometidas anteriores, Felice Bauer e Julie Wohryzek, e
também com aquela jovem de dezoito anos com quem tivera um breve roman-
ce no sanatório de Hartungen, onde tratava a tuberculose, ou com Milena Je-
senská, sua doce Milena, sua melhor confidente, mas não havia comparação
possível. Talvez porque Dora era a última, a que estava agora a seu lado, en-
quanto as demais só existiam na lembrança.
Uma professora de hebraico dedicada a ele de corpo e alma no mais duro
de sua descida para a morte.
— Quando crescer, ela vai arrebatar muitos corações — profetizou ele.
— Já está arrebatando — Dora afagou seus cabelos.
— Sou o carteiro dela, não se esqueça.
Ela lhe fez a pergunta mais temida.
E inevitável.
— Até quando?
Franz Kafka ficou pensativo. A demora daquela manhã o fizera perceber
algumas coisas. Tivera tempo para pensar. Elsi nunca se cansaria. Brígida era
sua boneca, e cada carta era um maravilhoso jogo e a possibilidade de continu-
ar a seu lado, unidas, compartilhando os dias felizes de sua existência. O final
não viria por conta dela, mas dele mesmo.
E não podia se prolongar demais.
O inverno talvez fosse muito rigoroso.
— Você não pode passar a vida desse jeito — continuou Dora diante da-
quele silêncio.
— Eu sei.
— Então?
— Eu me sinto bem, sabe? É uma coisa muito estranha.
— É sempre bonito buscar a felicidade alheia.
— É mais do que vê-la contente. Eu só me meti em toda essa confusão
para que aquele dia não fosse tão triste. Depois a coisa foi se complicando.
— Você vê nela a filha que não tem.
— Não, não é isso.
— Assumiu um compromisso e pretende levá-lo até as últimas con-
sequências.
— Quanto tempo uma menina demora para crescer? — sorriu.
— Não sei — Dora o acompanhou em seu sorriso. — Acho que eu já era
assim poucos dias depois de nascer.
— Sabe o que ela me perguntou hoje de manhã?
— Não.
— Onde estavam as outras cartas que supostamente eu devia entregar.
— E o que você disse?
— Que era uma época de pouco trabalho e que eu só recebia a carta dela
de manhã e a de outra menina chamada Renata à tarde. — Deu um longo sus-
piro. — Mas o xis da questão não é esse, e sim o fato de ela estar começando a
fazer perguntas difíceis de responder. Qualquer dia vai querer saber de onde
Brígida tira o dinheiro para viajar.
— E o que você vai dizer?
— Que achou ouro?
— Por que você não faz a Brígida se casar?
Franz Kafka fitou-a em silêncio.
Eles também haviam falado em se casar. Viver juntos era motivo de ru-
mores e comentários maldosos, não só na vizinhança. Mas o pai de Dora nunca
aceitaria que sua filha se condenasse junto a um escritor que havia um ano fora
aposentado antecipadamente por causa de sua doença, detectada pela primeira
vez na noite de 12 para 13 de agosto de 1917, quase seis anos antes, quando te-
ve seu primeiro ataque de hemoptise, sintoma de tuberculose.
— As bonecas se casam? — perguntou.
— Brígida é capaz de tudo, é só você querer.
Uma brecha. Uma janela aberta.
Era escritor, portanto precisava encontrar um final para a história da bo-
neca viajante.
Abraçou Dora, apoiou a cabeça em seu peito e ficou lá sentado, com ela
no regaço, por muito tempo, aconchegado a seu amor, em silêncio.
n

Sua voz fluía como um murmúrio, mal rompendo o ar ao redor. Um ria-


cho que serpenteava pelos meandros da atenção de Elsi, recostada com lângui-
da preguiça a seu lado. Qualquer um pensaria, ao vê-los, que ele lhe contava
uma bela história. E não era uma história. Era a carta, pessoal e emocionada,
de uma boneca extraordinária, escrita de um remoto lugar bem no coração da
África.
Porque Brígida estava num safári na Tanzânia.
— “... quanto a mim, seria incapaz de matar um leão ou um elefante. To-
talmente incapaz. Para que destruir uma vida? Esses animais selvagens são tão
lindos, Elsi. Tão lindos e nobres em sua liberdade. A natureza é tão pródiga
com seus filhos. Às vezes percebo que o mundo é o lugar mais bonito que exis-
te, e vejo a imensa sorte que temos de viver nele. Precisamos cuidar dele e pro-
tegê-lo, para deixá-lo aos nossos descendentes, da mesma forma que um dia o
recebemos de nossos pais. Somos apenas hóspedes momentâneos de sua gene-
rosa grandiosidade.”
Fez uma pausa para pigarrear. Isso o obrigou a tossir. Virou a cabeça para
o outro lado e teve muito cuidado para preservar Elsi. Tinha chovido, a umida-
de pairava no ambiente, impregnando tudo, saturando seus pulmões. Por isso
segurava a carta numa das mãos e o lenço na outra.
As nuvens eram muito negras e se apertavam umas contra as outras.
Tornaria a chover.
Mas na Tanzânia o sol brilhava.
— “Não sei se você percebeu, Elsi, mas com esta já são dezessete cartas
que mandei de todos os lugares em que estive. Quando olho para trás, vejo que
foi como um sonho, não acha? Imagino você com seu amigo carteiro, sentada
num banco do parque Steglitz, deixando sua imaginação voar para me acompa-
nhar em minhas peripécias em busca de meus sonhos. Acontece que os sonhos
são a base da vida. Sem sonhos, somos apenas corpos perdidos vagando na roti-
na. Nunca se esqueça de que sou livre porque você foi livre e me transmitiu es-
sa felicidade. Um dia, quando eu deixar de lhe escrever...”
— Por que ela vai deixar de me escrever? — reagiu Elsi.
— Não sei, deixe-me continuar.
— Ela está triste — murmurou com o rosto marcado por um ricto de se-
riedade.
— Eu não acho.
— Mas está — insistiu a menina.
— Por que você acha isso?
— Fala de coisas diferentes.
Era uma bela carta. Das mais bonitas que havia escrito. E seguia o plano
imaginado para pôr um ponto final na correspondência de Brígida.
No entanto... Bom, talvez sim.
Exalava o prematuro aroma do adeus.
E ela o captara.
— Nem sempre a pessoa tem vontade de rir, ou de cantar. Às vezes para e,
simplesmente, se sente em paz. Eu não disse, no começo, que ela está no meio
da savana africana, rodeada por essa imensa terra selvagem e maravilhosa? É co-
mo se você a ouvisse suspirar, não acha? Eu acho que é uma carta muito bonita.
— É, sim, mas diferente.
— Acho que a Brígida está crescendo — disse com cautela. — E você
também, se é capaz de perceber essa diferença.
— E o que acontece quando as meninas e as bonecas crescem?
“Esquecem que um dia foram meninas e bonecas”, pensou.
Mas não disse.
— O bonito de crescer é que a cada dia acontecem coisas novas, e a vida é
um presente — sacudiu as folhas de papel. — É o que a Brígida está dizendo.
— Nunca imaginei que a Brígida fosse ficar mais velha — replicou cheia
de solenidade.
— E você?
— Mamãe diz que eu já sou — levantou o queixo com orgulho.
— Então vai entender de verdade o que sua boneca está contando.
Elsi tornou a se recostar ao lado dele. Pegou seu braço com as duas mãos
e apoiou a cabeça nele. Olhou a folha cheia de cuidadosas palavras e letras en-
trelaçadas com primor, convidando-o a prosseguir.
— “Um dia, quando eu deixar de lhe escrever” — continuou Franz Kafka
—, “nós duas vamos saber que nunca chegaríamos tão longe uma sem a outra.
Viveremos cada uma na memória da outra, e isso é a eternidade, Elsi, porque o
tempo não existe para além do amor. Sei que você chorou quando eu fui em-
bora. Mas quero que ria e cante e sempre pense que o futuro não é um proble-
ma a resolver, mas um mistério a descobrir. Há lugares no mundo que transfor-
mam as pessoas, e a África é um deles. Espero que as pessoas nunca cheguem a
mudar esses lugares. Do fundo do meu coração, nesta noite estrelada, penso
muito em você e invejo o que a espera...”
Pelo rabo do olho, viu Elsi sorrir.
“Muito bem!”, gritou sua alma.
Faltavam apenas algumas linhas, então continuou a leitura antes que as
primeiras gotas de chuva borrassem a maravilhosa carta que Brígida enviara da
Tanzânia.
o

Naquela manhã quem chegou atrasado foi ele.


Quase quinze minutos.
O dia anterior tinha sido complicado. Mal-estar, pouca concentração, a
urgência de uma saída para acompanhar Dora... E outra noite de insônia parci-
al. Nada bom para sua saúde. Terminara a carta apenas alguns minutos antes,
febril como sempre, e, embora fosse mais curta que as outras, revelava uma in-
disfarçável alegria, a compensação justa.
Elsi o esperava em pé. Permaneceu imóvel ao vê-lo aparecer e não se sen-
tou até que ele o fizesse. Deu desculpas banais. A menina nunca perguntava na-
da sobre ele. Que importava? Os pequenos imaginam que a vida alheia é como
sua própria vida. O essencial para ela eram as cartas. Viu o envelope aparecen-
do no bolso do casaco de seu carteiro e isso bastava. A manhã estava muito ale-
gre, sem nuvens, e o calor aumentava. Seu vestido azul com rendas brancas a
transformava em uma graciosa mulher em miniatura.
Como sempre, Elsi recebeu com emoção a carta e conferiu o remetente.
— Ela continua na Tanzânia — comentou com estranheza.
— É mesmo, que curioso — concordou ele.
— Nunca ficou dois dias seguidos num mesmo lugar.
Elsi abriu o envelope, tirou a solitária folha de papel e a entregou a ele, se-
guindo o ritual de todos os dias. Franz Kafka começou a ler, tentando não per-
der de vista as reações de sua companheira.
— “Querida Elsi, hoje estou muito feliz, radiante, como se meu corpo es-
tivesse em festa e uma banda de música tocasse na minha cabeça. Queria que
esta carta fosse sonora, para você escutar minha voz e as batidas do meu cora-
ção, para dançar comigo. Tenho tanta coisa para lhe dizer, e é tão intenso o que
estou sentindo, que nem sei por onde começar.”
— Ontem ela estava triste — lembrou a menina.
— “E por que estou assim?” — continuou o leitor. — “Porque me apai-
xonei! Oh, sim, Elsi! Acredita? Me apaixonei!” — lançou um rápido olhar bem
a tempo de ver a forma como sua amiga reagia levantando as sobrancelhas di-
ante da notícia, mas sem deixar de ler aquelas linhas exultantes. — “Foi tudo
tão rápido, tão lindo e fascinante que nem eu mesma sei explicar o que aconte-
ceu! Ontem eu observava minha vida com a paz e a serenidade da passagem do
tempo, e hoje parece que da Brígida que eu era há apenas um dia só restou
uma lembrança perdida na minha própria memória. Mas o essencial não é a
mudança em si, e sim a descoberta do amor, porque, sem você, notava que
uma parte da minha alma estava vazia. Você me deu todo o amor que tive na
vida, o único que conheci, e não sabia o quanto me fazia falta até ele aparecer.
Por isso me sinto completa de novo.”
Franz Kafka parou de ler por um instante.
Elsi exibia um sorriso parecido ao da misteriosa Mona Lisa.
— Que surpresa, não? — sondou o terreno.
— Agora sim ela é uma mulher de verdade — disse a menina.
— Está contente?
— Claro. — Cravou-lhe as pedras negras de seus olhos. — Eu a ensinei a
ser feliz.
Ele ocultou seu próprio sorriso. Também reprimiu o gesto de acariciá-la.
Se tivesse tido uma filha, gostaria que fosse como Elsi. Aqueles contos de fadas
escritos tempos atrás fariam mais sentido.
— Ela diz quem é ele? — perguntou.
— Oh, sim, agora vem essa parte. — Concentrou-se na carta: — “Conti-
nuo na Tanzânia, na cratera do Ngorongoro, que é também a mais fabulosa re-
serva de animais selvagens que existe, porque Gustav é explorador, sem dúvida
nenhuma o homem mais fascinante que conheci. Viajou pela África inteira, se-
guindo o curso de seus rios, escalando seus picos, explorando terras virgens,
deixando seu rastro por onde passava. Os nativos o amam e o respeitam. Você
deve estar se perguntando como o conheci, e eu mesma acho que foi da forma
mais romanesca: eu estava andando com meus carregadores por um atalho,
quando um velho elefante, que sem dúvida se dirigia a seu cemitério para mor-
rer, cruzou nosso caminho. Os carregadores se assustaram tanto que começa-
ram a correr, e eu, sozinha e morta de medo, achava que tinha chegado a mi-
nha hora, quando ele apareceu, a cavalo. Não só me colocou na garupa com
uma facilidade espantosa, como também afugentou o elefante. Ele é alto e bo-
nito, Elsi. Seus olhos são límpidos como o céu africano, e sua alma tão nobre
como a das estrelas que de noite nos iluminam. Passamos horas conversando,
até que de repente nos calamos, nos olhamos nos olhos e...”
— E o quê? — insistiu a menina.
— Não diz.
— Ah, não?
— Bem, quando uma pessoa não termina uma frase é porque acha que a
outra capta seu sentido e não é preciso dizer com palavras.
— Eles se beijaram? — o rostinho de Elsi brilhava.
— Parece que sim.
— Então agora sim ela é muito, muito feliz — assentiu categórica.
— Você é uma romântica.
Ela encolheu os ombros.
A carta continuava com a delirante fantasia de Brígida diante da aparição
de seu amor, mas agora não havia pressa para concluí-la. Elsi saboreava o prazer
daquela alegria.
Sua boneca havia se apaixonado.
Quem podia dizer que a vida não era perfeita?
p

Elsi tinha ido embora alguns minutos antes.


Franz Kafka permaneceu no parque, saboreando aquela sensação tão curi-
osa. Por um lado, a felicidade pelo trabalho benfeito. Por outro, o prazer de seu
ofício muito bem entendido. Era um alquimista de palavras e emoções, um
mago da natureza humana, capaz de transformar aquela correspondência tão
peculiar em algo familiar e normal. Isso lhe proporcionava um grande otimis-
mo. Fora um longo percurso de quase três semanas, carta a carta, para curar
uma ferida e permitir que a vida se mantivesse harmoniosa. Melhor ainda: per-
mitir que fluísse como os rios africanos que Gustav, o explorador, percorria.
O toque preciso.
Ia se levantando, já mentalmente imerso na preparação da próxima carta
de Brígida, quando ela apareceu de repente.
Era uma mulher atraente, elegante embora discreta. Vestia-se com a sim-
plicidade de uma prudência que se refletia também em seus gestos e em suas
feições tranquilas. Tinha o cabelo recolhido na nuca e um chapeuzinho como
puro enfeite. Suas mãos eram muito bonitas e surgiam entre as rendas dos pu-
nhos. A roupa moldava sua figura de trintona generosa e no auge de sua femi-
nilidade.
Parecia-se tanto com Elsi...
— Cavalheiro...
Franz Kafka ficou em pé. Não sabia o que fazer ou dizer. Pego de surpre-
sa, deixou que ela prosseguisse.
— O senhor não me conhece — disse a mulher. — Sou a mãe de Elsi.
— Claro — sorriu inclinando a cabeça. — Muito prazer.
— O senhor é o carteiro de bonecas?
— Receio que sim. — Acentuou o sorriso cúmplice.
— Importa-se que falemos por uns segundos?
— Não, claro que não me importo. Olhe...
A mulher ergueu a mão direita para tranquilizá-lo.
— Peço-lhe que não se preocupe. Eu li as cartas.
Franz Kafka baixou os olhos ao passar por seu espírito uma ponta de ver-
gonha. Não era preciso muito mais, apenas uma explicação.
— No dia em que Elsi perdeu a boneca, e a vi chorando tão desconsola-
da... A forma que encontrei para confortá-la foi contar a história da viagem e
dessa primeira carta que Brígida havia lhe enviado. Depois tudo se complicou.
— Conheço minha filha — afirmou. — Ela é persuasiva.
— Tremendamente persuasiva. Um caráter forte.
— Meu nome é Bertha — estendeu a mão e ele a apertou.
— O meu é Kafka, Franz Kafka.
Sentaram-se no banco. Envolveu-os um silêncio delineado em sua primei-
ra calma. Era a vez de a mãe de Elsi falar.
— Ela não nos disse nada, nem nos dias seguintes à perda, mas, de vez
em quando, ao ouvi-la dizer que sua boneca estava em lugares dos quais era
quase impossível que tivesse ouvido falar... Bom, também não é que suspeitás-
semos de alguma coisa. Como imaginar algo tão fantástico? Minha filha é de
uma maravilhosa inocência.
— Então como soube?...
— Ontem ela comentou que Brígida estava triste e parecia preocupada.
Perguntei por quê, e ela me falou da Tanzânia, de que em sua carta... Fiquei as-
sustada. Pedi que me mostrasse a carta e, apesar de no início se fazer de desen-
tendida, por fim acabou deixando que eu a lesse. Imagine a minha surpresa.
Logo eu soube que havia mais, pelo que se deduzia da leitura e dos comentári-
os dela. Pouco a pouco, foi me dizendo a verdade, quer dizer, a sua verdade:
que Brígida tinha viajado e lhe mandava suas cartas pelo carteiro de bonecas.
— Deve ter pensado que era obra de um louco.
— Não. Quando minha filha se deitou, fiz o que qualquer mãe sensata fa-
ria: procurar as cartas e lê-las. Ao terminar essa maravilhosa experiência, não
me restava fazer outra coisa senão segui-la esta manhã e esperar que se despe-
disse do senhor.
— Minha intenção era...
— Eu sei — ela o deteve. — Suas cartas são belíssimas, senhor.
— Obrigado.
— O que faz? Quem é o senhor?
— Eu? Sou carteiro de bonecas — afirmou categórico.
Talvez aquilo fosse muito mais estranho do que ser funcionário de uma
companhia de seguros, doente ou escritor.
— Não brinque, por favor.
— Não estou brincando — foi sincero. — Acho que é o melhor trabalho
que tenho em muitos anos, e o mais importante. Nunca escrevi nada com tan-
to sentido.
— O senhor é escritor?
Demorou um longo segundo para responder:
— Sou.
— Mas são quase três semanas dessa insólita correspondência. É algo...
sem dúvida espantoso.
— Brígida é uma boneca muito ativa.
— Como isso vai terminar?
— Ainda não sei bem, mas no momento já tenho um plano.
— Não poderá enganá-la para sempre nem fazer isso durar muito mais.
— Eu sei.
A mãe de Elsi estudou seus traços, o halo amarelado de sua palidez, a
sombra minguante de seu corpo. Deve ter percebido sua tragédia interior, seu
mundo oculto e pessoal. Parecia uma mulher perspicaz.
— O senhor tem filhos, senhor Kafka?
— Não.
— Mas essas cartas são encantadoramente ternas.
— Não são as cartas — ele disse. — É Brígida, e, claro, Elsi. A senhora
tem uma filha extraordinária.
— Obrigada.
— Hoje nossa boneca viajante se apaixonou — anunciou.
Bertha recebeu a notícia com alegria, como se fosse um presente.
— Final feliz?
— Sim — disse Franz Kafka. — Embora, como sabe, caso se lembre de
sua infância, as bonecas costumem ser volúveis.
Quarto sorriso: o presente
q

Franz Kafka olhou seus manuscritos.


A construção, em que estava trabalhando quando encontrou Elsi, ainda
por terminar. O processo, O castelo, O desaparecido... Sua obra não publicada,
seu legado. Tão efêmero como seria sua vida.
Por que não destruía tudo agora?
Por que esperar?
Por que deixar nas mãos de Max Brod, se ele mesmo podia condenar tu-
do às brasas, como já fizera em 1899, aos dezesseis anos, com seus primeiros es-
critos?
Tocou as páginas. Acariciou as folhas de papel cheias de palavras correta-
mente escritas com sua letra bonita e miúda. Ele estava ali. De corpo e alma. O
coração nu de qualquer escritor. E, no entanto, de repente, a única coisa que ti-
nha alguma lógica nas últimas semanas eram as cartas de Brígida para Elsi.
Aqueles romances que nunca veriam a luz, que nunca seriam lidos, careciam de
outro sentido que não fosse o testemunhal, o de sua passagem pela vida e pelo
mundo.
Sem ele, quando Max Brod os queimasse, virariam cinzas e cairiam no es-
quecimento eterno.
Sem ele.
A morte era amarga.
Tao áspera e dura...
Virou a cabeça e olhou Dora, dormindo tranquila a seu lado. Não eram
bons tempos aqueles. A herança da Grande Guerra se fazia sentir na Alemanha.
Os cinco anos transcorridos desde o fim do confronto que havia arrasado a Eu-
ropa foram angustiantes, e o futuro não se mostrava muito esperançoso.
A menos que os meninos e as meninas como Elsi crescessem livres e feli-
zes, saudáveis e fortes.
Com bonecas viajantes falando sobre mundos por descobrir e amores por
viver.
Levou a mão direita até o perfil de Dora e acariciou seu rosto. Teve vonta-
de de beijá-la, mas não queria atrapalhar seu sono. Aquele rosto era como uma
máscara branca na penumbra. O trago horizontal dos lábios levemente escuros,
as manchas das sobrancelhas e os cílios, o nariz pequeno quase invisível. Se não
fosse ela, não saberia o que fazer naqueles dias, semanas e meses tão difíceis.
Ouvi-la respirar, sentir seu peito subindo e descendo de forma compassada, es-
tar perto dela, era uma sorte e um privilégio. Dora era como Elsi. Sua doce
professora de hebraico exalava toda a vida que faltava a ele.
Que lhe escapava pouco a pouco por entre as mãos.
Franz Kafka guardou a imagem de Dora e fechou os olhos.
Seu melhor remédio.
A última carta estava escrita. A preparação dos dois dias anteriores levava
ao grande desenlace, ao momento mágico. Pela manhã, Brígida diria adeus a
Elsi.
Fim da história.
O melhor para o bem da menina.
Mas e ele?
r

— Esta é bem comprida — disse Elsi. — Três páginas.


— De fato. Parece que Brígida tem muito o que contar.
— Bom — suspirou a menina. — Gustav parece boa pessoa.
— Também acho — concordou o carteiro.
Entregou-lhe as três folhas. Habituara-se que fosse ele o leitor das intimi-
dades de sua boneca. O cúmplice perfeito. Como costumava fazer quase desde
o começo, ela pegou seu braço e apoiou a cabeça nele.
Franz Kafka sentiu seu perfume puro, aquela fragrância de primavera per-
pétua. Sabia a carta de cor, depois de escrevê-la e reescrevê-la uma centena de
vezes. Junto com a primeira, tinha sido a mais difícil. Tentou evitar que sua voz
o traísse.
—Tudo bem? — quis saber.
— Sim — disse a menina.
— “Querida Elsi, chegou o grande momento, o grande dia, e espero que
você compreenda como é importante para mim o que vou fazer. O que mais
desejo é compartilhar com você toda a felicidade que me invade. O que menos
quero é magoá-la. Mas sei que nestas três últimas semanas estivemos mais uni-
das e ligadas do que nunca. Não é verdade?"
Esperou sua amiguinha responder à pergunta.
Ela assentiu com a cabeça.
— “Portanto, se minha felicidade é sua felicidade e vice-versa, quero que
você cante e ria comigo quando souber que me casei.”
Fez uma pausa, mas Elsi permaneceu imóvel.
— “Gustav e eu já somos marido e mulher. A cerimônia foi maravilhosa,
em plena savana, com todos os membros da tribo dos massai como testemu-
nhas e uma infinidade de elefantes, girafas, gnus, gazelas, zebras e outros ani-
mais que estavam tão perto que dava a impressão de fazerem parte do cortejo.
Depois de você, Gustav é a pessoa mais extraordinária que conheci. Sei que,
depois de ter passado metade da minha vida a seu lado, vou passar a outra me-
tade ao lado dele, e um dia você também entregará seu coração a um jovem
com quem desejará compartilhar o futuro. Muito em breve, Gustav e eu quere-
mos ter filhos e filhas tão lindos como você. Sei que ficará feliz em saber que
minha primeira filha se chamará Elsi, em sua homenagem. Não conseguiria is-
so sem seu amor. Eu não poderia ser livre e feliz se você não tivesse me feito li-
vre e feliz. Você está e estará em meu coração para sempre.”
Fez uma pausa depois daquela longa confissão. Ouviu o suspiro da meni-
na. Ainda não sabia se ela iria chorar ou não, se ficaria triste ou não. Nos dias
anteriores, vinha preparando Elsi, mas mesmo assim...
Franz Kafka teve um último estremecimento.
— O que você acha? — quis saber.
— Estou muito contente.
Fechou os olhos. A onda de pânico passou.
— Mesmo?
— Agora sim ela é totalmente feliz — suspirou Elsi.
— Não faz mal que...
— Não — afirmou com uma doce energia. — Esta é a carta mais bonita
de todas, não acha?
— É muito especial, sim.
— O senhor deve entender muito disso. Não é a carta mais bonita que já
leu?
— Pode ter certeza — afirmou categórico.
— Brígida estava sozinha, agora não está mais. Sei que Gustav vai fazê-la
muito feliz. O jeito como fala dele, do que sente, do que quer dividir a seu la-
do...
Falava como uma pessoa adulta, equilibrada, com tal elegância que era
como se, em vez de estar no parque com ele, estivesse tomando chá com as
amigas num dos cafés centrais da Potsdamer Platz. Sua mãe, Bertha, sem dúvi-
da havia feito um bom trabalho.
Oxalá aqueles dias de inflação e deterioração social, política e econômica
acabassem logo. Oxalá não houvesse mais guerras naquela Europa castigada.
Oxalá o futuro fosse de Elsi e de todas as Elsis que cresciam cheias de esperan-
ça.
— O que o senhor tem? — perguntou a menina.
— Nada, desculpe.
— Por que está esfregando os olhos?
— Entrou um cisco e está coçando.
— Dói?
— Um pouco, porque, de tanto esfregar um, o outro ficou irritado.
— É, estão vermelhos e cheios de lágrimas.
— É.
— Vai continuar lendo a carta?
— Claro.
— Então continue — ajeitou-se de novo a seu lado e apertou seu braço
com toda a força.
Piscando para recuperar a visão, Franz Kafka procurou o ponto em que
tinha parado.
s

Sentia-se vazio.
Com a mente vazia, a cabeça oca e as sensações ricocheteando dentro dela
como bolas de borracha. Com a alma vazia, como uma videira seca e retorcida
que já não tivesse nem uma uva sequer, nem uma gota de vinho. Com o estô-
mago vazio, sem fome, com o corpo tão leve que só o sentia nessa leveza.
O que estava faltando?
Não a ele, mas à história.
Por que sua voz interior lhe gritava que parasse um segundo para pensar?
Por que seu instinto perturbava sua razão, avisando-o, como sempre costumava
fazer, com o alarme de seu sexto sentido? Por que se sentia como se tivessem
acabado de arrancar seu espírito?
— Então vocês se despediram?
— Sim.
— Como ela estava?
— Ela me abraçou, me deu um dos seus enormes beijos no rosto, disse
que nunca se esqueceria de mim e me desejou boa sorte.
— Ela disse isso?
— Disse.
— Queria ter conhecido essa menina.
— É só ir ao parque.
— Você deu vida a uma insólita fantasia, querido.
— Não, a única coisa que eu fiz foi recuperar um ser humano. Seria a coi-
sa mais triste Elsi crescer magoada por ter perdido sua boneca.
Queria contar a Dora que tinha chorado, mas não conseguia.
Sentia-se tão tolo...
Tão ridículo...
E ao mesmo tempo tão bem, apesar daquele vazio alertando-o de que fal-
tava encaixar a última peça na história.
— Você vai ter que ir ao parque em outro horário — comentou sua com-
panheira.
— Além de carteiro, sou amigo dela.
— Não é mais, e você sabe disso. Agora vai ser diferente.
— Por quê?
— Se ela vir você, se falar com você, vai se lembrar da Brígida. O que vo-
cê precisa é... não digo esquecê-la, mas deixá-la aí, em sua memória, o mais
tranquila possível, enquanto a vida continua.
— Você é uma autêntica intérprete da personalidade infantil.
— Sou mesmo — admitiu Dora. — Para dar aula, é preciso ter muita
perspicácia. Quase a mesma que para escrever.
— Você achou tudo isso divertido, não é?
— Fascinante — afirmou com segurança. — Nunca vi você trabalhar tão
enlouquecidamente e tão satisfeito.
Franz Kafka afundou um pouco mais na poltrona. Dora se inclinou sobre
ele e deu um beijo em sua testa. Depois saiu da sala, deixando-o a sós por um
momento.
Com seus pensamentos.
Os vazios.
— Vamos, pense — murmurou para si mesmo.
O final da história. O fecho.
Mas o que poderia haver além do casamento de Brígida?
As palavras de Elsi revoavam como borboletas de ferro em sua mente.
“Ela estava sozinha, agora não está mais”, “Está feliz, estou contente”, “Gustav
parece boa pessoa”.
Por que ele não encontrou um carteiro de bonecas quando era menino?
Por que sempre teve que enfrentar seu pai?
Por que não havia bonecas viajantes na vida real?
A infância é o tempo de acreditar em bonecas. É na infância que existem
os finais felizes. Mas são muito mais necessários na maturidade os carteiros ca-
pazes de receber cartas que só um louco é capaz de escrever.
Um louco.
Finais felizes.
— Você vai voltar ao manuscrito abandonado? — Ouviu a voz de Dora
pairando em algum lugar da casa.
“Os poetas fazem castelos no ar, os loucos moram neles, e alguém, na vida
real, cobra o aluguel.”
Às vezes se lembrava de frases que não sabia de onde saíam.
— Franz, você ouviu?
— Sim, Dora.
— Sim o quê? Você me ouviu ou vai voltar ao seu livro?
— As duas coisas.
Um louco.
Finais felizes.
Qual era o final feliz de uma história com uma boneca viajante e uma
menina que tinha recuperado a paz graças a três semanas de cartas maravilho-
sas?
— Qual é o final feliz de uma história com uma boneca viajante e uma
menina que recuperou a paz graças a três semanas de cartas mágicas? — exteri-
orizou seus próprios pensamentos em voz alta.
Dora reapareceu na porta da sala.
— Acho que você já descobriu. — Cruzou os braços ao ver que ele abria
um sorriso de orelha a orelha.
t

Chegou ao parque um pouco mais tarde; primeiro, porque a loja ficava


meio longe; segundo, porque a carta, embora muito, muito breve, havia surgi-
do de uma inspiraçâo final, apenas duas horas antes.
Seguiu pela trilha com o pacote embaixo do braço e perambulou por
aqueles recantos familiares, sem deixar de olhar para todos os lados, à procura
de seu objetivo. O banco em que Elsi e ele haviam se sentado dia após dia con-
tinuava vazio como sempre, sem sol, longe do interesse de quem o buscava co-
mo lagartixas necessitadas de seu calor.
Era um bom banco.
O melhor.
Franz Kafka se lembrou do passeio de três semanas atrás, naquela manhã
em que o choro de Elsi rompera seu equilíbrio, catapultando-o à história mais
incrível de sua vida. Rememorou as sensações, os ecos de seus pensamentos, o
efeito balsâmico de sua paz.
Casais precoces, casais parados no tempo, casais que ainda não sabiam
que eram casais, velhos e velhas com mãos cheias de histórias e rugas cheias de
passado procurando cantos de sol, soldados com galas de distinção, criadas de
uniforme impecável, babás com meninos e meninas vestidos com esmero, ca-
sais com filhos recém-nascidos, casais com sonhos recém-destruídos, solteiros e
solteiras de olhar esquivo, solteiros e solteiras de olhar insinuante, guardas, jar-
dineiros, ambulantes...
Um presente.
E ele absorvendo, como uma esponja, viajando com os olhos, atraindo
energias com a alma, perseguindo sorrisos por entre as árvores. Era mais um
entre tantos, solitário, com seus passos perdidos sob o manto da manhã. Sua
mente voava livre, de costas para o tempo, que lá se embalava com a languidez
da calma e se balançava alegre no coração das pessoas.
Tudo igual a três semanas atrás.
Igual, mas muito diferente.
Elsi estava na área em que as crianças brincavam, com duas amigas recon-
quistadas depois do parêntese das cartas. Não notou sua presença até que uma
de suas companheiras o avistou, surpresa por vê-lo tão imóvel. Só então ela vi-
rou a cabeça.
Os olhos da menina se iluminaram.
— Senhor carteiro!
Correu para ele, abandonando a brincadeira. Franz Kafka se agachou para
receber o abraço e deter o ímpeto da corrida. Fez isso com uma só mão, porque
a outra continuava segurando aquele embrulho de proporções regulares, envol-
to num brilhante papel colorido.
— Olá, Elsi.
— Olá! Veio trazer uma carta para alguém?
— Sim, para você.
— Para mim?
— Uma carta e este pacote. — Mostrou-o.
— O que tem dentro? — O rosto da pequena refletiu sua surpresa.
— Não sei. Chegou esta manhã.
— De quem é?
— Da Brígida.
Seu olhar voltou a brilhar, e ela abriu um sorriso. Pegou o pacote, grande
para suas mãos, e sentou-se ali mesmo, na grama. Franz Kafka se ajoelhou.
— Pensei que ela não fosse escrever mais — hesitou Elsi.
— Pois estava enganada.
— Que é que eu faço agora?
— Abra o pacote.
Rasgou o papel do embrulho. Seu companheiro tratou de recolher os res-
tos do afoito esfacelamento. Pouco a pouco aparecia uma caixa de papelão por
baixo do vistoso papel colorido. E impresso na caixa...
— Senhor carteiro! — balbuciou Elsi.
Era a boneca mais bonita que encontrara na loja.
De porcelana, cabelo loiro, olhos vivos, lábios de sonho e um primoroso
vestidinho vermelho.
— Puxa! — fingiu surpresa.
— É... linda — Elsi mal podia falar.
— É mesmo.
A cena se congelou por um instante. A menina olhando a bela boneca,
Franz Kafka olhando para ela. O tempo se deteve para acolhê-los.
Depois ele lhe entregou a carta.
A última carta de Brígida.
Agora sim.
— Eu seguro — fez um gesto para apanhar a boneca.
— Não. — Apertou-a contra si. — O senhor abre o envelope.
Ele abriu. Rasgou a aba com cuidado e tirou a folha de papel em que ha-
via apenas algumas linhas escritas. Deixou que um certo halo de mistério
acompanhasse aqueles segundos finais.
O final feliz digno de um louco.
— “Elsi, te amo muito” — leu. — “Obrigada por me dar a vida e a liber-
dade para vivê-la. Seja feliz.” Assinado: “Brígida”.
— Ela me deu de presente?
— Parece que sim.
O rosto de Elsi era um poema, uma canção. Toda a fascinação da infância
flutuava em seus traços e toda a inocência da sua idade, talvez a melhor, reben-
tava naquela sinfonia de cores e enorme alegria. Abraçou com força sua nova
boneca e lhe deu um primeiro beijo de amor, que assegurava também sua ex-
clusiva propriedade.
— Tem mais uma coisa — disse ele.
— O quê?
— Um P. S. que diz: “O nome dela é Dora”.
— Dora!
Mais alguns segundos e tudo acabaria. Mais alguns segundos e Elsi iria
embora para sempre, com Dora em sua vida. Mais alguns segundos e ele ficaria
sozinho.
Mais alguns segundos.
Às vezes o tempo era generoso.
u, v, w, x, y, z...

Por muitos dias, e algumas semanas, ele a viu de longe no parque Steglitz,
sempre com Dora, brincando, sem a perder de vista, tão feliz como naqueles
momentos em que as cartas de Brígida os uniram.
Às vezes seus olhos se encontravam. Às vezes ela lhe acenava com a mão.
Às vezes se sentiam cúmplices de um grande segredo. Às vezes ele procurava no
fundo de seus sonhos todas aquelas esperanças de que necessitava para se man-
ter em pé.
E Dora, sua própria Dora, de carne e osso, lhe fazia ver que as estrelas do
céu continuavam lá no alto, vivas para todos.
Depois chegou o outono, e o inverno.
E ele não a viu mais.
Seu último inverno.
Franz Kafka disse a Dora, já perto do Natal:
— Brígida está no Polo Norte.
— Como você sabe? — perguntou ela.
— Porque me escreveu uma carta desejando-nos um feliz 1924 — res-
pondeu ele. — Disse que este ano a neve vai ser verde e as nuvens muito ver-
melhas.
Como surgiu esta história

Franz Kafka morreu no sanatório Kierling, perto de Viena, um ano de-


pois desta história, em 3 de junho de 1924, aos 41 anos de idade. Nunca se
soube o nome da menina que perdeu a boneca, e as cartas que ele escreveu du-
rante três semanas nunca foram lidas nem encontradas por ninguém. Dora Dy-
mant, que na época vivia com o escritor, foi quem explicou os fatos: “Naquele
dia, ele entrou no mesmo estado de tensão nervosa que o tomava cada vez que
se sentava a sua escrivaninha, fosse para escrever uma carta ou um postal”. Kaf-
ka escreveu a primeira carta com absoluta seriedade e entrega, e depois todas as
demais, tão devotado a elas como teria estado a um de seus romances ou con-
tos. não se sabe por que ele proporcionou à chorosa menina tão incrível inven-
ção. Nem por que manteve tão singular história durante três semanas. Mas, co-
mo diz César Aira, “Kafka foi o maior descobridor de signos na vida moderna”,
e Richard Stach afirma: “Um escritor não deve apenas saber observar, mas pre-
cisa descobrir os signos ocultos naquilo que observa. A elogiada precisão cirúr-
gica do olhar de Kafka se fazia escritura na transmutação do visível em signo”.
Durante anos, Klaus Wagenbach, um estudioso de Kafka, procurou a me-
nina pelos arredores do parque, casa por casa, interrogou os vizinhos, colocou
anúncios nos jornais, tudo em vão. Nunca perdeu as esperanças, e continuou
indo ao parque por muitos anos, até hoje, sempre sonhando com o milagre de
encontrá-la e perguntar se guardara aquelas cartas, que constituíam um dos do-
cumentos mais importantes de um dos mais importantes artistas do século XX.
Uma obra de Kafka exclusiva para uma só pessoa, uma menina.
E talvez a mais bela e lúcida de suas incursões literárias.
Naquelas três semanas epistolares, a boneca enviava seu amor à menina
dia após dia, contava-lhe que suas viagens e aventuras no estrangeiro a manti-
nham longe. Ao final, seu namoro, noivado e casamento colocaram um fecho
de ouro em tão notável peripécia. Então, a menina já havia superado a perda de
sua boneca.
Também não se sabe se Kafka e ela continuaram se encontrando no par-
que até o precoce fim do escritor, meses mais tarde. Quando sobreveio o fatal
desenlace, o amigo Max Brod não cumpriu sua última vontade, de destruir to-
dos seus textos inéditos. Graças a ele, foram sendo publicados nos anos seguin-
tes (O processo em 1925, O castelo em 1926 e O desaparecido em 1927), e o
escritor se transformou numa das maiores referencias de seu século.
Quanto a mim, permiti-me a transgressão: inventar essas cartas, terminar
a história, dar-lhe um final imaginário. Pode ter sido este ou outro qualquer,
não acho que seja muito importante. O que aconteceu é tão belo em si mesmo
que o resto carece de importância. A única coisa evidente é que aquelas cartas
devem ter sido muito melhores e mais lúcidas que as recriadas por mim.
Agradecimentos

Em primeiro lugar, agradeço a César Aira, cujo artigo ‘‘La muñeca viaje-
ra”, publicado na última página do suplemento “Babelia” do jornal El País de 8
de maio de 2004, me levou a escrever esta história.
Em segundo lugar, agradeço à anônima menina e ao autor de A metamor-
fose por tão singular feito; a Dora Dymant (ou Diamant, segundo algumas
obras), que o contou; e a Klaus Wagenbach, que o transformou em lenda pro-
curando-a sem cessar; assim como a todos que o narraram até o presente.

JORDI SIERRA I FABRA,


Vallirana, agosto de 2004, nos 80 anos
da morte de Franz Kafka.
Sobre autor e ilustrador

JORDI SIERRA I FABRA (Espanha, 1947). Premiado escritor com mais de 300
obras publicadas de gêneros diversos. Criou a Fundação Jordi Sierra i Fabra,
em Barcelona, e a Fundação Taller de Letras Jordi Sierra i Fabra para a América
Latina, na Colômbia, que desenvolvem intenso trabalho com crianças e jovens
para estímulo à leitura e à criação literária.

PEP MONTSERRAT (Espanha, 1966). Ilustrador de diversos livros infantis e ju-


venis. Também trabalha como ilustrador para jornais como El País, na Espa-
nha, e e New York Times, nos Estados Unidos. Desde 1998 é professor na
escola de arte Massana de Barcelona.

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