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Diagramação
ais Miyabe Ueda
Produção editorial
Eliane de Abreu Santoro
Preparação
Huendel Viana
Revisão
Eliane de Abreu Santoro
Luciano Helena Comide
Simone Zaccarias
Produção gráfica
Sidnei Simonelli
ePub
TocaDigital
1ª edição 2008
2ª edição 2009
1ª reimpressão 2010
Impressão Vangraf
Todos os direitos desta edição no Brasil reservados à
Martins Editora Livraria Ltda.
R. Prof. Laerte Ramos de Carvalho, 163
01325-030 São Paulo, SP, Brasil
Tel.: (11) 3116.0000 Fax: (11) 3115.10 72
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Para Franz,
do besouro que um dia
acordou transformado em menino.
Sumário
— Olá.
A menina parou de gritar, mas não de chorar. Levantou a cabeça e deu
com ele. Tomada pelo desespero, nem tinha visto aquele homem se aproximar.
Seus olhos eram dois lagos transbordantes, e os rios que fluíam deles formavam
duas torrentes que escorriam pelo rosto até o vão aberto sob o queixo.
Fez dois, três sonoros beicinhos antes de responder:
— Olá.
— O que aconteceu?
Ela não o olhou com medo. Pura inocência. Quando a vida floresce, tudo
são janelas e portas abertas. Em seus olhos, o que havia, sim, era dor, sofrimen-
to, tristeza e uma emoção contida que deixava sua sensibilidade à flor da pele.
— Você se perdeu? — perguntou Franz Kafka diante de seu silêncio.
— Eu não.
Estranhou a resposta. “Eu não.” Em vez de dizer “Não”, dissera “Eu não”.
— Onde você mora?
A menina apontou de forma imprecisa para a esquerda, na direção das ca-
sas recortadas por entre as copas das árvores. Um alívio para o salvador de me-
ninas chorosas, pois isso provava que ela não estava perdida.
— Alguém machucou você? — ele sabia que não havia ninguém por per-
to, mas era uma pergunta obrigatória, ainda mais naqueles segundos decisivos
em que procurava ganhar sua confiança.
Ela negou com a cabeça.
“Eu não.”
Era evidente que quem tinha se perdido era seu irmão mais novo.
Como é que uma mãe responsável, por mais alerta ou atenta que estives-
se, podia deixar os filhos brincarem sozinhos no parque, mesmo sendo tão
tranquilo e bonito como o Steglitz?
E se ele fosse um monstro, um assassino de meninas?
— Quer dizer que você não se perdeu — quis deixar claro.
— Eu não, já disse — suspirou a pequena.
— Quem então?
— Minha boneca.
As lágrimas, que haviam cessado momentaneamente, reapareceram nos
olhos de sua dona. Lembrar de sua boneca tornou a mergulhá-la na mais pro-
funda amargura. Franz Kafka tentou evitar que ela desse aquele passo atrás.
— Sua boneca? — repetiu estupidamente.
— É.
Boneca ou não, irmão ou não, eram as lágrimas mais sinceras e dolorosas
que já tinha visto. Lágrimas de uma angústia suprema e de uma tristeza inson-
dável.
O que podia fazer agora?
Não tinha a menor ideia.
Ir embora? Estava preso no invisível círculo da traumatizada protagonista
da cena. Mas ficar... Para quê?
Não sabia o que dizer a uma menina.
E muito menos a uma menina que chorava porque acabara de perder a
boneca.
— Onde você a viu pela última vez?
— Naquele banco.
— E você, onde estava?
— Estava lá, brincando — apontou para uma área em que algumas crian-
ças brincavam.
— E ficou lá muito tempo?
— Não sei.
Aquelas eram, sem dúvida, as perguntas que um policial faria diante de
um crime, mas aquilo não era um crime, nem ele era um policial. O protago-
nista do incidente nem sequer era um adulto. Isso o perturbou ainda mais. O
insólito do fato o envolvia sem escapatória. Queria ir embora, mas não conse-
guia. Aquela menina e o abismo de seus olhos chorosos o detinham.
Bastaria uma desculpa, um “sinto muito”. De volta a seu lar. Ou uma re-
comendação: “Vá para casa, menina”. Simples.
Por que a dor infantil é tão poderosa?
A situação era real. A relação de uma menina com sua boneca é das mais
fortes do universo. Uma força descomunal movida por uma tremenda energia.
E então, de repente, Franz Kafka se acalmou.
A solução era tão simples...
Pelo menos para sua mente de escritor.
— Espere um pouco, que bobagem a minha! Qual o nome da sua bone-
ca?
— Brígida.
— Brígida? Claro! — soltou uma risada das mais convincentes. — É ela,
lógico! Desculpe, não me lembrava do nome! Às vezes sou tão avoado! Com
tanto trabalho!
A menina arregalou os olhos.
— Sua boneca não se perdeu — disse Franz Kafka alegremente. — Ela
foi viajar!
c
Ele a viu afastar-se pela esquerda, sem pressa, passo a passo, de cabeça bai-
xa, pequena e frágil. Um sopro de vida.
Mas muito poderoso.
Elsi foi ficando minúscula. Primeiro foi devorada pela lonjura, depois pe-
la passagem de outras pessoas que a engoliram, ocultando-a dos olhos dele, e fi-
nalmente pela distância.
Desapareceu.
Não de sua mente.
Só então Franz Kafka reagiu.
— Céus! — levou as duas mãos ao rosto.
Acabava de se meter numa tremenda confusão.
Não tinha medo de nada nem de ninguém, mas sim de uma menininha
que não tinha nem um metro de altura e era capaz daquele choro rasgado e de
olhar para ele com a intensidade daqueles olhos. Medo de uma força devasta-
dora como a do coração de sua nova amiga. Da marca profunda que o ocorrido
podia deixar nele.
— Com criança não se brinca — exagerou.
Sem aquela carta, Elsi cresceria com o pior dos traumas: o de ser abando-
nada por sua boneca. Se ele fizesse algo errado, Elsi poderia desenvolver em sua
alma a mágoa da rejeição. Se ele não cumprisse com a palavra, e comparecesse
ao encontro do dia seguinte sem a carta prometida, Elsi nunca voltaria a acre-
ditar na natureza humana.
Estava em jogo uma esperança.
O que há de mais sagrado na vida.
Franz Kafka sentiu o formigamento nas mãos, o nascimento das asas de
Ícaro que o elevavam até aqueles mundos possíveis apenas em sua mente inqui-
eta e inquietante, quando se debruçava sobre o papel empunhando a caneta e
entrelaçava as histórias mais extraordinárias já concebidas.
Era escritor.
Mas nunca havia escrito uma carta de uma boneca viajante para a menina
que fora sua dona até o momento da separação.
Tomado pelo nervosismo, literalmente febril, ele se levantou do banco.
Por via das dúvidas, resolveu dar uma volta pelo parque, observando to-
das as meninas com bonecas. Ele nem sabia como era Brígida. Um erro. Como
deixara passar esse detalhe? Mas nenhuma daquelas crianças parecia ter rouba-
do a boneca que carregava no colo com tanto amor ou com que brincava des-
lumbrada. E nenhum adulto estava levando uma no bolso ou correndo para es-
conder o fruto de seu roubo.
Saiu do parque Steglitz muito depois da hora habitual. Apesar disso e do
motor que acabava de arrancar em seu corpo, não correu, não se precipitou.
Sua cabeça fervilhava. Pensava em Brígida, em Elsi, no primeiro lugar em que a
boneca teria desembarcado, na forma como escreveria para sua dona.
Chegou a sua rua, a sua casa, tomado pela mesma febre.
Havia criado um singular e misterioso enigma: a boneca viajante.
Segunda fantasia: as cartas de Brígida
f
Naquela manhã, Elsi chegou pelo menos dois minutos antes do combina-
do. Não teve importância, porque fazia pelo menos dez que ele estava lá, no
mesmo banco, à sombra, esperando impaciente, enquanto as outras pessoas
perseguiam o tímido sol que brincava de esconde-esconde com as nuvens que
semeavam de maus presságios o céu.
No dia anterior, ela havia chegado séria, ansiosa. Agora, justamente o
contrário.
Sorria.
Interrompeu sua corrida através do parque e repetiu um dos gestos mais
característicos de sua jovem personalidade: fixar nos olhos dele aqueles seus
olhos firmes e dotados de uma intensidade especial.
Olhos livres de qualquer contaminação, limpos e puros.
— Tem carta hoje?
— Tem.
Seu olhar se iluminou ainda mais.
— De onde é?
— De Paris.
— Paris! — repetiu com um prazer sublime, uma espécie de canto.
— Você sabe onde fica Paris?
— Claro, na França! Meus pais estiveram lá! Tem uma torre muita alta,
de ferro!
Já estava sentada ao lado dele, esperando. Franz Kafka tirou do bolso do
casaco a segunda carta de Brígida. Também desta vez não faltava o menor deta-
lhe. O selo era francês e foi descolado de um envelope postado na França. Com
a mesma letra clara e bonita, lia-se o nome do destinatário: “Senhor carteiro de
bonecas, esta carta é para Elsi”.
Elsi virou-a.
É
— “Champs Élysées, Paris” — leu.
— Que sorte sua boneca pensar tanto em você e escrever! — observou
Franz Kafka.
— Brígida é uma boneca muito boa.
— É, sim.
Elsi abriu o envelope e tirou as duas folhas de papel. Duas. O secreto au-
tor do texto sorriu para si mesmo. A verdade é que, agora, se sentia à vontade.
A pena voara com muito mais liberdade e as palavras tinham se encadeado co-
mo uma longa tranca de emoções e sentimentos.
Brígida estava dentro de sua cabeça.
— O senhor pode ler para mim?
— Claro.
Nenhuma pergunta comprometedora sobre a espantosa rapidez com que
as cartas chegavam de qualquer lugar até Berlim. Nenhuma dúvida nem questi-
onamento. Pelo menos essa era a parte do encanto infantil mais bem aproveita-
da pelos adultos: a credulidade.
Bastava ser convincente.
— “Querida Elsi” — tinha pensado muito sobre a melhor forma de co-
meçar a carta, e estava certo de que aquela era a mais adequada. — “Você sabia
que o céu de Paris é da cor de seus olhos quando você sorri e que as nuvens são
como os pêssegos que se formam no seu rosto? Pois é assim mesmo. Estou em
Paris! Acredita? Nesta segunda etapa da minha viagem, eu resolvi navegar pelo
Sena, ver o museu do Louvre, passear pelos Champs Élysées e subir na torre
Eiffel”. — Fez uma pausa para explicar: — A tal torre de ferro. — E continu-
ou: — “Espero que você não se canse com minhas aventuras, porque vou lhe
contar tudo o que tenho feito. Quer saber?”
— Quero — disse Elsi respondendo à pergunta da carta.
Franz Kafka continuou lendo.
Não sentia mais o medo nem a inquietação do dia anterior. Não experi-
mentava nada que não fosse serenidade e emoção. Ele havia escrito aquelas pa-
lavras tomado pelo magnetismo da história, entregue a cada sentimento que
experimentava, e agora conseguia lê-las com a mesma devoção. O fundamental
numa relação como aquela era a cumplicidade.
Elsi e ele eram cúmplices.
Lia e lia, marcando cada inflexão, criando mistérios na narração, aprovei-
tando o tom e a fascinação de cada nova experiencia. Brígida era muito especi-
al. Gostava não apenas de cultura, como atestava sua visita ao museu do Lou-
vre, mas também de descobrir a animada vida noturna parisiense. A sapeca ti-
nha ido a nada menos que o Moulin Rouge, para ver um espetáculo de dança.
E, a julgar pelo entusiasmo de sua descrição, se esbaldou. Além disso, seu dia e
suas horas pareciam elásticos. Subir na torre Eiffel, passear pelo Bois de Bou-
logne, navegar pelo Sena, percorrer as pontes que o atravessam e fazer compras
tomaram-lhe um tempo mínimo. Também jantou no Maxim’s, foi à ópera e
dormiu no melhor quarto do hotel George V. Uma maravilha.
A descrição da última moda parisiense também aparecia em seu relato.
Dora estava a par.
O trecho final da carta era, segundo seu critério, outro achado:
— “Espero que o senhor carteiro que lhe entrega minhas cartas seja uma
pessoa amável e boa, como todos os carteiros de bonecas” — notou que Elsi as-
sentia com a cabeça. — “E espero que você esteja se comportando muito bem
agora que já não estou aí, que coma tudo direitinho e não aborreça a...”
— Está parecendo minha mãe — suspirou a menina.
Franz Kafka mordeu o lábio inferior. Talvez tivesse exagerado um pouco.
— “Com muito amor, sua amiga Brígida” — resolveu se despedir.
A pequena continuou tal e qual, feliz e orgulhosa, mas ainda com aquela
ponta de tristeza que às vezes aflorava em seu rosto. Por ela, a carta podia ter
dez páginas.
Olhou para a menina que passava na frente deles nesse momento, empur-
rando um carrinho com uma boneca. Uma mulher com jeito de babá velava
por sua segurança.
— Que sorte poder viajar — murmurou Elsi.
— Você também vai viajar um dia, se quiser — disse Franz Kafka.
— O senhor já viajou?
— Um pouco — pensou nos hospitais e casas de repouso que visitara nos
últimos tempos por causa de sua doença, diagnosticada quase seis anos antes:
Matliary, Spindlelmühle, Planá, Müritz... E lhe falaram de sanatórios muito
bons, o de Wiener Wald, o Kierling, a clínica Hajek. — Um pouco, sim.
— Por causa do seu trabalho de carteiro?
— Não, antes disso.
— E o que o senhor fazia?
Pensou por alguns segundos. Um carteiro de bonecas não podia trabalhar
numa companhia de seguros, o Instituto de Seguros para Acidentes de Traba-
lho. Um carteiro de bonecas que recebia cartas de uma boneca viajante chama-
da Brígida deveria ter sido, no mínimo...
— Era maquinista de trem.
— É mesmo? — Os olhos de Elsi viraram duas luas.
— É, sim. Eu dirigia uma extraordinária máquina a vapor — anunciou
orgulhoso. — Tocava o apito em todos os povoados e cidades, na chegada e na
partida.
— Era emocionante?
— Até que era.
— E por que o senhor deixou esse trabalho?
— Por causa da fumaça. Essa tossezinha que eu tenho vem daquele tem-
po. E também porque, com o passar dos anos, já estava enjoando. Sempre pelo
mesmo caminho, sobre os trilhos. A vida tem muitos caminhos, Elsi.
— Brígida viaja de trem, de navio, de carro... não é?
— Esse é o espírito da aventura.
Pararam de falar um com o outro. Uma menina da mesma idade de Elsi,
ou poucos meses mais velha, chegou correndo pela direita. Nem sequer reparou
nele.
— Você vem brincar?
Elsi guardou a carta no bolso do casaco.
— Preciso ir — disse a seu amigo, o carteiro.
— Claro.
— Até amanhã.
— Até amanhã.
Brígida tinha todo um mundo pela frente.
k
De noite, na cama, ele logo viu que não ia ser fácil pegar no sono.
A culpa não era só da carta escrita ao longo do dia, mas também daquele
beijo.
Levou a mão ao rosto.
Por que os beijos das crianças tinham sabor?
Elsi havia lhe dado um, antes de sair correndo com sua amiga, repetindo
o gesto da primeira vez, rápido e afetuoso. Um beijo carinhoso, doce, de afeto
sincero.
Um beijo conquistado com suor.
E quem faz por merecer um beijo...
Rolou na cama pela enésima vez.
— Não está conseguindo dormir? — escutou a voz de Dora a seu lado.
— Ah, me desculpe, está difícil.
— Quer tomar alguma coisa?
— Na verdade, não.
— Um chá?
— Durma, deixe de bobagem.
— Não seria você se não mergulhasse de cabeça, querido — murmurou a
sonolenta voz de sua companheira.
De cabeça.
Não seria nada mau um chá, ou um calmante. Quando custava a dormir,
ele se sentia presa de uma aflição maior que a da insônia propriamente dita.
“Ah, as crianças são traidoras!”, pensou. “Surpreendem com o melhor e mais
puro de si mesmas! Conseguem dar afeto com uma facilidade que chega a as-
sustar!” E, num mundo sempre a ponto de naufragar, que se movia no fio do
egoísmo, da incerteza e da crueldade humana, todos sabiam que isso era peri-
goso. Uma criança tanto podia matar com sua sinceridade como atravessar com
seu desembaraço os espessos muros da consciência.
Abriu os olhos e os fixou na escuridão.
Ninguém enxergava no escuro, mas ele sim.
A escuridão era uma tela, como a dos cinemas.
Meses antes, tinha pedido a seu amigo Max Brod que, quando morresse,
destruísse toda sua obra, todas aquelas páginas escritas e nunca publicadas. E só
agora se dava conta de que as cartas de Brígida para Elsi ficariam a salvo dessas
chamas.
Que tolice.
Que importância tinha isso?
Não era ele que escrevia, mas Brígida.
A terceira chegava de Viena. Talvez tivesse saído menos vital, menos entu-
siasmada que a de Paris ou até que a de Londres. Claro que Viena era uma ci-
dade séria e pragmática, nobre e chata. Esquecera alguma coisa? Podia se levan-
tar para dar uma última olhada, ou reescrevê-la pela manhã, antes de seu en-
contro no parque Steglitz. A simples ideia de enfrentar de novo o papel em
branco o fez desistir. Não, nem pensar. A carta ficaria como estava. A seguinte
viria... de Veneza, isso mesmo, maravilhoso, uma cidade perfeita para deixar a
imaginação voar. Brígida na praça de São Marcos, Brígida andando de vaporet-
to, Brígida de gôndola. Fascinante. Ficaria hospedada no lugar mais bonito, o
hotel Danieli. As fotos deviam estar em algum lugar. E no dia seguinte... Mos-
cou! Sem dúvida, um grande contraste. Depois seguiria para a Espanha, a Gré-
cia, a Hungria... Mas só o Velho Continente? Não, para que se limitar? Brígida
cruzaria o mar. Os mistérios da África, o exotismo asiático, a fascinante Améri-
ca, de norte a sul.
Por que estava tão agitado? Acabara de enlouquecer? Sim, completamen-
te! Se alguém soubesse de sua história com Elsi, ele nem precisaria morrer de
tuberculose. Seria internado diretamente num manicômio.
E rolou na cama de novo.
Um gemido de Dora.
— Vou preparar um chá — resmungou ela.
— Não, desculpe, sinto muito...
Sua companheira já caminhava para a cozinha como uma sonâmbula, en-
volta em sua sonolência.
Terceira ilusão: o longo trajeto da boneca via-
jante
l
Duas semanas.
Catorze cartas.
Brígida percorria o mundo numa velocidade estonteante e suas aventuras
eram cada vez mais insólitas, mais bonitas, mais dignas de uma fascinante odis-
seia de boneca e da fantasia de um escritor do que da realidade, por mais estra-
nha que fosse. E o mais incrível, o que mais maravilhava Franz Kafka, era a for-
ma como Elsi ouvia a narração dessas experiências, emocionada, plenamente
identificada, cada vez mais cúmplice dos singularíssimos alardes de sua querida
Brígida.
Brígida cruzou o extenso deserto do Saara numa caravana de camelos, ex-
plorou a Índia, percorreu a grande muralha da China, nadou no mar Morto,
escalou os altos picos do Himalaia, voou de balão... Brígida esteve em Pequim,
em Tóquio, em Nova Iorque, em Bogotá, no México, em Havana, em Hong
Kong...
Brígida era famosa. Pulava de um continente a outro num abrir e fechar
de olhos. Não importava mais nenhuma lógica. Em suas mãos e sua imagina-
ção, a boneca fizera o mundo ficar pequeno. Nem Júlio Verne a criaria mais fa-
bulosa, e em menos de oitenta dias o mundo se deixaria abraçar por ela.
Duas semanas.
Catorze cartas.
Franz Kafka estava impressionado.
Tivera de comprar selos usados numa filatélica e visitar um colecionador
para manter com dignidade a longa viagem de Brígida. Ou a gente faz as coisas
direito, ou não faz. Dora estava entre fascinada e aborrecida. Desde que Elsi
entrara na vida de Franz, ele só fazia escrever aquelas cartas, com uma energia e
uma dedicação que ela preferiria ver aplicadas em seus contos ou romances. O
aborrecimento de Dora se devia a sua catártica concentração em proveito da-
quela correspondência unilateral. O fascínio devia-se à perseverança que ele de-
positava em seu empenho. Sua companheira reconhecia seu valor.
À noite, quando o abraçava na cama, sussurrava:
— Só você poderia pensar uma coisa dessas, querido. Te amo.
Salvar uma menina não era salvar o mundo?
A primeira dor costuma ser dura e amarga. O primeiro choque com a rea-
lidade, o despertar. Elsi nunca esqueceria a perda de sua boneca. Agora, pelo
contrário, brotava nela aquele orgulho...
Incansável.
Ou não?
Porque, de repente, naquela manhã...
Franz Kafka olhou de novo o seu relógio e o da torre. Não havia engano.
Passavam dez minutos da hora habitual em que Elsi aparecia correndo do outro
lado do parque, à sua esquerda. Dez minutos, o maior dos atrasos. Isso signifi-
cava que seu interesse acabara de repente? E se estivesse doente? O que faria
Brígida nesse caso, continuar escrevendo dia após dia para quando ela sarasse?
Duas semanas, catorze cartas, e aqueles dez minutos bastavam para con-
frontá-lo com uma certeza até então desconhecida.
Até quando ele seria o carteiro de bonecas?
Até quando escreveria a tão viajada Brígida?
Onze minutos, doze.
Franz Kafka baixou a cabeça. Sentiu-se mais triste e desiludido do que El-
si na manhã da irreparável perda. Recordou cada detalhe da cena que os dois
haviam protagonizado vinte e quatro horas antes, sem achar na menina nada
que levasse a suspeitar de cansaço. Ela se divertira muito ao saber que Brígida
navegara pelo Nilo e explorara com valentia e audácia as galerias secretas das
pirâmides. Tanto quanto ele ao escrever. De fato, sentiu uma vontade enorme
de visitar o Egito.
Quinze minutos.
Conformou-se com o inevitável. Caso se tratasse de um resfriado, a coita-
dinha estaria passando tão mal quanto ele, sem ter como avisá-lo. Se, ao con-
trário, fosse cansaço, desinteresse... Pelo menos teria cumprido sua tarefa, im-
pedindo que uma enorme ferida marcasse a vida de Elsi por causa da perda de
Brígida. Já fizera muito sendo fiel por duas semanas inteiras.
— Agora você pode voltar a escrever alguma coisa de útil — disse para si
mesmo.
E por acaso a correspondência de Brígida não era útil?
Talvez valesse mais do que qualquer uma daquelas páginas que nunca pu-
blicaria e que estavam condenadas ao fogo e ao esquecimento, quando Max
Brod cumprisse sua vontade depois de sua morte.
Sentia-se triste.
Desapontado.
Vinte minutos.
Por que continuava esperando? Ninguém menos que ele, Franz Kafka,
um adulto, esperando uma menina mal saída das fraldas...
Já ia se levantando.
Então a viu, como sempre, correndo do outro lado do parque, mais veloz
e esfogueada que das outras vezes. Correndo como se aquilo fosse a coisa mais
importante de sua curta vida.
Nenhum esquecimento.
Ali estava Elsi.
Franz Kafka sorriu aliviado.
— Oh, eu sinto muito mesmo, senhor carteiro! — A menina quase se ati-
rou em cima dele ao chegar a seu lado. — Minha mãe passou mal e tive que...
Mas o senhor está aqui, não foi embora! — Seus olhos brilhavam intensos. —
De onde é a carta de hoje?
m
Sentia-se vazio.
Com a mente vazia, a cabeça oca e as sensações ricocheteando dentro dela
como bolas de borracha. Com a alma vazia, como uma videira seca e retorcida
que já não tivesse nem uma uva sequer, nem uma gota de vinho. Com o estô-
mago vazio, sem fome, com o corpo tão leve que só o sentia nessa leveza.
O que estava faltando?
Não a ele, mas à história.
Por que sua voz interior lhe gritava que parasse um segundo para pensar?
Por que seu instinto perturbava sua razão, avisando-o, como sempre costumava
fazer, com o alarme de seu sexto sentido? Por que se sentia como se tivessem
acabado de arrancar seu espírito?
— Então vocês se despediram?
— Sim.
— Como ela estava?
— Ela me abraçou, me deu um dos seus enormes beijos no rosto, disse
que nunca se esqueceria de mim e me desejou boa sorte.
— Ela disse isso?
— Disse.
— Queria ter conhecido essa menina.
— É só ir ao parque.
— Você deu vida a uma insólita fantasia, querido.
— Não, a única coisa que eu fiz foi recuperar um ser humano. Seria a coi-
sa mais triste Elsi crescer magoada por ter perdido sua boneca.
Queria contar a Dora que tinha chorado, mas não conseguia.
Sentia-se tão tolo...
Tão ridículo...
E ao mesmo tempo tão bem, apesar daquele vazio alertando-o de que fal-
tava encaixar a última peça na história.
— Você vai ter que ir ao parque em outro horário — comentou sua com-
panheira.
— Além de carteiro, sou amigo dela.
— Não é mais, e você sabe disso. Agora vai ser diferente.
— Por quê?
— Se ela vir você, se falar com você, vai se lembrar da Brígida. O que vo-
cê precisa é... não digo esquecê-la, mas deixá-la aí, em sua memória, o mais
tranquila possível, enquanto a vida continua.
— Você é uma autêntica intérprete da personalidade infantil.
— Sou mesmo — admitiu Dora. — Para dar aula, é preciso ter muita
perspicácia. Quase a mesma que para escrever.
— Você achou tudo isso divertido, não é?
— Fascinante — afirmou com segurança. — Nunca vi você trabalhar tão
enlouquecidamente e tão satisfeito.
Franz Kafka afundou um pouco mais na poltrona. Dora se inclinou sobre
ele e deu um beijo em sua testa. Depois saiu da sala, deixando-o a sós por um
momento.
Com seus pensamentos.
Os vazios.
— Vamos, pense — murmurou para si mesmo.
O final da história. O fecho.
Mas o que poderia haver além do casamento de Brígida?
As palavras de Elsi revoavam como borboletas de ferro em sua mente.
“Ela estava sozinha, agora não está mais”, “Está feliz, estou contente”, “Gustav
parece boa pessoa”.
Por que ele não encontrou um carteiro de bonecas quando era menino?
Por que sempre teve que enfrentar seu pai?
Por que não havia bonecas viajantes na vida real?
A infância é o tempo de acreditar em bonecas. É na infância que existem
os finais felizes. Mas são muito mais necessários na maturidade os carteiros ca-
pazes de receber cartas que só um louco é capaz de escrever.
Um louco.
Finais felizes.
— Você vai voltar ao manuscrito abandonado? — Ouviu a voz de Dora
pairando em algum lugar da casa.
“Os poetas fazem castelos no ar, os loucos moram neles, e alguém, na vida
real, cobra o aluguel.”
Às vezes se lembrava de frases que não sabia de onde saíam.
— Franz, você ouviu?
— Sim, Dora.
— Sim o quê? Você me ouviu ou vai voltar ao seu livro?
— As duas coisas.
Um louco.
Finais felizes.
Qual era o final feliz de uma história com uma boneca viajante e uma
menina que tinha recuperado a paz graças a três semanas de cartas maravilho-
sas?
— Qual é o final feliz de uma história com uma boneca viajante e uma
menina que recuperou a paz graças a três semanas de cartas mágicas? — exteri-
orizou seus próprios pensamentos em voz alta.
Dora reapareceu na porta da sala.
— Acho que você já descobriu. — Cruzou os braços ao ver que ele abria
um sorriso de orelha a orelha.
t
Por muitos dias, e algumas semanas, ele a viu de longe no parque Steglitz,
sempre com Dora, brincando, sem a perder de vista, tão feliz como naqueles
momentos em que as cartas de Brígida os uniram.
Às vezes seus olhos se encontravam. Às vezes ela lhe acenava com a mão.
Às vezes se sentiam cúmplices de um grande segredo. Às vezes ele procurava no
fundo de seus sonhos todas aquelas esperanças de que necessitava para se man-
ter em pé.
E Dora, sua própria Dora, de carne e osso, lhe fazia ver que as estrelas do
céu continuavam lá no alto, vivas para todos.
Depois chegou o outono, e o inverno.
E ele não a viu mais.
Seu último inverno.
Franz Kafka disse a Dora, já perto do Natal:
— Brígida está no Polo Norte.
— Como você sabe? — perguntou ela.
— Porque me escreveu uma carta desejando-nos um feliz 1924 — res-
pondeu ele. — Disse que este ano a neve vai ser verde e as nuvens muito ver-
melhas.
Como surgiu esta história
Em primeiro lugar, agradeço a César Aira, cujo artigo ‘‘La muñeca viaje-
ra”, publicado na última página do suplemento “Babelia” do jornal El País de 8
de maio de 2004, me levou a escrever esta história.
Em segundo lugar, agradeço à anônima menina e ao autor de A metamor-
fose por tão singular feito; a Dora Dymant (ou Diamant, segundo algumas
obras), que o contou; e a Klaus Wagenbach, que o transformou em lenda pro-
curando-a sem cessar; assim como a todos que o narraram até o presente.
JORDI SIERRA I FABRA (Espanha, 1947). Premiado escritor com mais de 300
obras publicadas de gêneros diversos. Criou a Fundação Jordi Sierra i Fabra,
em Barcelona, e a Fundação Taller de Letras Jordi Sierra i Fabra para a América
Latina, na Colômbia, que desenvolvem intenso trabalho com crianças e jovens
para estímulo à leitura e à criação literária.