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Sumário

Ciclo 1
Ciclo 2
Ciclo 3
Ciclo 220
Ciclo 221
Laura
Copyright © 2020 Rafael Weschenfelder
Edição: Mariana Dal Chico
Revisão: Graziela Reis
Capa: Marcus Pallas
Diagramação: Deborah Silva
Quando presenteio Laura com a casquinha de sorvete que
trazia escondida atrás das costas, percebo que metade da bola
derreteu na minha mão.
Ela torce o nariz.
— Esse é seu pedido de desculpas por chegar atrasado?
— O Uber cancelou três vezes — digo, coçando a cabeça. —
Espero que não esteja esperando há muito tempo.
— Uber? Tem certeza de que não cou jogando Call of Duty
até amanhecer e ignorou o despertador?
— É tão fácil perceber? — pergunto, sem graça.
— É, seu viciadinho!
Laura dá uma risada melódica, gostosa de ouvir. Em seguida
ajeita a alça da mochila e, como uma bússola, vira em direção ao
lago. Observa as águas por alguns segundos.
— Quer dar uma caminhada?
Aguardamos duas garotas passarem de bicicleta pela
ciclofaixa e seguimos pelo gramado. A sensação é boa… Não é
todo dia que se pisa em algo que não seja asfalto ou cimento
quando se mora em São Paulo.
Ergo os braços e me espreguiço para soar casual.
— Você disse que precisava conversar comigo.
— Sim, disse.
— Sobre o quê?
Seus lábios se fecham num sorriso misterioso. Olho para
baixo e reparo que está esfregando o polegar na palma da mão,
uma mania sua quando está nervosa.
Ela não é a única.
Estamos quase na beirada do lago quando paramos.
— Essa aqui é a minha árvore de estimação — diz, tocando os
galhos com sentimentalismo.
Examino o tronco cascudo, coberto de assinaturas e entalhes
bregas em formato de coração.
— Parece que é a árvore de estimação de muita gente. Qual
deles é o seu?
— Nenhum. — Ela dá de ombros. — Eu não a machucaria.
Quer dizer que Laura me chamou até o Parque Ibirapuera
para… me mostrar uma árvore? Considerando as minhocas que
passaram pela minha cabeça, é um alívio.
— Por que essa e não as outras? Parecem todas iguais para
mim.
— Porque essa tem a vista mais bonita do parque.
Sigo seu olhar até o horizonte, onde o céu sem nuvens, a
silhueta irregular dos prédios e o bosque se misturam em
perspectiva. “Bonita mesmo” penso, “ideal para…”
Quando percebo aonde Laura quer chegar, engulo em seco.
Demoro alguns segundos para destravar.
— Você vinha aqui para desenhar?
Ela não diz nada, mas a resposta esbarra em nós como um
elefante invisível e desengonçado.
Enxugo as mãos suadas na bermuda.
— Não é certo ngir que esse assunto não existe — sussurro,
quase querendo que ela não me escute —, mas continuo fazendo
isso.
— Eu também…
— Não, Lau, o primeiro passo tinha que partir de mim. Mas
faltou coragem. — Resisto à vontade de desviar o olhar. — Só
não me diga que… que é tarde demais.
Mas ela não tem tempo de responder.
Um borrão marrom invade meu campo de visão. Galhos
arranham meu rosto, e, então, um estrondo. Tampo os olhos e
sinto o sangue escorrer pelos nós dos meus dedos.
Um burburinho se forma ao redor.
Pessoas gritando, pedindo ajuda.
Meus olhos ardem, mas os abro mesmo assim. Três homens
se esforçam para erguer a árvore. Mais dois chegam. A cabeça de
Laura está grudada no chão, não vejo seu corpo.
Tento me aproximar, mas o mundo começa a rodopiar feito
um carrossel que saiu dos trilhos. Uma mulher surge na minha
frente e segura meus ombros.
Sei que está fazendo perguntas, mas suas palavras não
chegam até mim.
Relanceio o rosto de Laura uma última vez antes de apagar.
Eu me ergo da cama com um pulo e levo a mão ao rosto,
procurando os arranhões, mas não encontro.
Agoniado, olho ao redor.
Os poucos raios de sol que penetram pelas cortinas de
blackout revelam os pôsteres do Hulk e os troféus de Jiu Jitsu no
topo da estante. Imediatamente, sei que estou no meu quarto.
Um pesadelo...
Fecho os olhos e respiro fundo. Em seguida, pego o celular.

Domingo
17 de maio
13:23

Só mesmo eu para estar atrasado no sonho e na vida real.


Sem perder tempo, jogo uma água na cara e visto o primeiro
conjunto camiseta-short que encontro no guarda-roupa. Meu
estômago reclama, mas não dou ouvidos. Passo direto pela
cozinha em direção à porta.
Enquanto espero o Uber, mando mensagem para Laura
avisando que atrasarei dez minutos. Assim que o carro encosta e
espio a previsão de chegada no Waze, corrijo:

Mensagens de Whatsapp não são boas em transmitir


emoções, ainda mais se a pessoa não ajuda com emojis ou
“haha”s.
Foi o caso de Laura, ontem à noite.

Parece uma mensagem brava para mim.


Peço para o motorista sintonizar na Rádio Mix enquanto
cruzamos a Zona Sul. Num gesto automático, pego o celular e
começo a caçar memes, mas as tirinhas do Faustão e da Nazaré
Confusa, por mais que sejam hilárias, não acalmam meu
nervosismo.
Sem prestar atenção no caminho, sou resgatado de volta para
o mundo de carne e osso pelo Obelisco do Ibirapuera. Através da
janela, ele se ergue do centro do parque como um palito de dente
gigante.
Estacionamos em frente ao portão cinco.
— Até mais, sangue bom, cinco estrelas para você! — diz o
motorista.
Achando graça na despedida, retribuo com um sorriso antes
de pegar a pista em direção ao planetário. Como esperado de um
domingo ensolarado, grupos de dança ensaiam coreogra as
esquisitas sob a marquise e garotos com pinta de skatista
andam sem camisa, exibindo seus tanquinhos para quem quiser
ver.
De longe, avisto Laura ao lado da barraquinha de água de
coco. Percebendo minha aproximação, ela dá um tchauzinho.
Faço o mesmo, mas o aceno morre no ar quando as imagens do
pesadelo grudam no meu cérebro.
Seu corpo esmagado...
Os olhos fechados…
O rosto sem vida…
Não manjo nada desse lance de interpretação de sonhos, mas
esse é mole.
Não é de hoje que estou com “umas coisinhas” entaladas na
garganta que preciso dizer a Laura, e acho que matá-la foi um
jeito — um tanto radical — do meu subconsciente avisar:
“Desembucha, cara, antes que seja tarde demais”.
Não, não tem nada a ver com “eu te amo” ou “pensando bem,
somos almas gêmeas”.
Antes fosse. Não estaria tão nervoso.
“Daniel Carvalho e Laura Lins se conheceram no começo do
ano, quando ele se mudou para o colégio dela”. Se nossos colegas
escrevessem uma história sobre nós, é provável que a primeira
linha fosse assim.
O que eles não sabem é que essa é a versão falsa.
A verdadeira é outra, mais antiga.
E mais sombria, também.

Eu e Laura fomos da mesma sala no 3º ano do fundamental.


Escola Floquinho de Neve. “Flóqui”, para os íntimos. Eu não era
uma criança fácil. Além de bagunceiro, costumava usar meu
tamanho para intimidar meus colegas. Bolinhas de papel — que
eu lambuzava com cola dependendo do meu humor — eram
minha especialidade, embora bilhetinhos com xingamentos e
apelidos constrangedores também zessem parte do arsenal.
Já Laura era, bem… ela andava pelos corredores com um par
de tênis pisca-pisca e um ar de perdida que a tornavam uma
forte candidata ao grupo dos “esquisitos”.
E também um alvo fácil para Daniel Trombadinha. Se não
fossem… suas habilidades mágicas com o lápis.
Digamos que Laura desenhava tão bem que fazia o resto de
nós parecer neandertais rabiscando as paredes de uma caverna.
E, cara, eu me amarrava na arte dela! Uns desenhos abstratos,
surrealistas, que ela deixava ainda mais doidos pintando com
tinta aquarela. Cheguei a jurar que, se um dia zesse uma
tatuagem, seria com algum deles.
Claro, eu só admitiria uma coisa dessas se ameaçassem dar
descarga em todos os meus jogos de Playstation. E quando
alguém pedia para folhear seu precioso caderno de desenhos da
Turma da Mônica — o que acontecia pelo menos duas vezes por
dia, no intervalo entre as aulas —, minha única reação era torcer
o nariz em reprovação.
“Onde já se viu valentões gostarem dessas frescuras?”
Sim, eu era um babaca.
E não demorou para que minha babaquice desse as caras.
Laura estava sentada num dos banquinhos do pátio fazendo
o que sabia fazer de melhor quando a gangue dos malas do 4º
ano se aproximou, roubou seu caderno e começou a jogá-lo de
um para o outro, como se brincassem de bobinho.
Desesperada, Laura avançou sobre eles. “Devolve meu
caderno! Devolve meu caderno!”
Eu, que estava a poucos metros daquele show de horrores,
desviei o olhar. Se fosse com outra pessoa, teria rido.
Mas não com Laura.
— Dan! — Antes que eu erguesse o rosto para ver quem era, o
caderno veio voando na minha direção.
— Joga lá — disse Cauê, apontando para a poça d’água ao meu
lado. Com um sorriso sádico de orelha a orelha, ele era o líder da
gangue dos malas.
— O caderno? — perguntei, nervoso.
— Claro, seu imbecil!
Laura desistiu de tentar recuperar seu tesouro à força e cou
plantada no chão, me tando com uma carinha de choro que
suplicava: “Pelo amor de Deus, não faça isso”.
Indecisos, meus olhos saltaram da minha desenhista
preferida para o garoto mais escroto da escola.
Uma escolha fácil, você pode pensar.
Mas não para Daniel Trombadinha.
A gangue dos malas era temida por todo o ensino
fundamental. Eu era louco para andar com os caras, só que eles
não costumavam recrutar os mais novos.
Aquela podia ser a chance que eu estava esperando.
Mas será que Cauê sabia que todos os desenhos de Laura
estavam naquele caderno?
Todos os desenhos irados que ela fez?
Aquilo parecia errado.
— E aí, Dan, vai amarelar?
Não tem nada que me envergonhe mais do que ter destruído
aquele caderno. Lembro de Laura na diretoria, só catarro e
lágrimas, se recusando a olhar para mim. Me sentindo um lixo,
abracei toda a culpa, sem jogá-la em Cauê ou nos outros garotos
da gangue dos malas.
Vendo que meu histórico de infrações ultrapassava uma
página, a diretora chamou meus pais para uma reunião e,
“gentilmente”, me convidou a me retirar da escola.
Depois de tomar uma das maiores surras da minha vida, pedi
para minha mãe me levar até a casa de Laura. Comprei um
caderno novo, e até passei do meu horário de dormir ensaiando
o pedido de desculpas em frente ao espelho. Mas, na manhã
seguinte, tudo que recebi foi um olhar de desprezo da mãe de
Laura e uma portada na cara.
Só então percebi...
O estrago estava feito, e não tinha conserto.
Teria sido difícil no Flóqui, mas o anonimato da escola nova
me deu o empurrãozinho que eu precisava para abandonar o
rótulo de valentão. Seis anos se passaram sem que visse ou
ouvisse falar em Laura, e ela estava quase se transformando
num fantasma do meu passado quando, contra todas as
probabilidades, nossos caminhos voltaram a se cruzar.
Eu estava rolando o feed do Instagram quando dei de cara
com o desenho do gato. Usando headphones e óculos escuros,
seu corpo se confundia com uma nuvem que pairava sobre a
cidade. E, para dar um tempero a mais àquela esquisitice,
pintura em aquarela.
Com o coração a mil, acessei o per l do usuário @magaly05,
procurando o nome da desenhista na bio, ou fotos pessoais.
Mas só encontrei mais desenhos.
Como sabia que era Laura? Difícil explicar. Sua arte tinha
uma identidade própria. Uma… alma, saca? E eu podia ver essa
mesma alma nos desenhos de @magaly05.
O despertador programado para as seis da manhã não me
impediu de passar a madrugada viajando naqueles cenários
urbanos com cores psicodélicas. No dia seguinte, pensei em
deixar para lá, não cutucar a ferida, mas interpretei o gato como
um sinal do destino e criei o per l fake @neymartop456 para
acompanhar as postagens. Curtia todas as suas publicações e,
quando ela postava um desenho novo, era o primeiro a
comentar.
Não demorou para que começássemos a trocar directs.
Descobri que Laura andava desanimada. Quer dizer, ser
desenhista era seu sonho, mas o apoio quase zero dos pais, que
diziam para ela se dedicar a “assuntos mais sérios”, e a chuva de
haters não ajudavam.
Eu não podia brigar com seus pais. Já os haters…
“Com esses rabiscos aí sem pé nem cabeça daqui a pouco te
chamam pra fazer uma exposição lá em Marte”, comentou um
deles, cuspindo veneno. Xinguei até a décima geração do cara
por direct, embora minha resposta no post do desenho tenha
sido mais elegante:

Dessa treta nasceu nossa primeira piada interna, e sempre


que @magaly05 fazia um desenho mais modernoso, diferentão,
eu comentava: “Por esse aí viajo até Marte”.
Eu sabia que não era certo esconder minha identidade de
Laura, mas o que diria? “Então, além de seu maior fã, sou o cara
que destruiu todos os desenhos da sua infância. Lembra de
mim?”
Para resolver esse pepino, criei um plano mirabolante: eu me
mudaria para o colégio de Laura, conquistaria sua con ança e
contaria que sou @neymartop456.
As chances de dar merda eram grandes, mas, como dizem,
melhor que car parado.
Três meses se passaram, e apesar da descon ança que
cintilou em seus olhos quando me reconheceu, nos tornamos
amigos. Mas quem acha que meu plano deu certo, se enganou.
Por algum motivo, ainda não revelei minha identidade. Não
conversamos sobre o passado, e muito menos sobre seus
desenhos.
E é por isso que nosso encontro no Parque Ibirapuera me
preocupa.
Porque sinto que o momento chegou.

— Acho que o bloquinho de carnaval ca do outro lado da rua


— diz Laura.
Olho para baixo e percebo que fui traído pelo meu guarda-
roupa: bermuda com estampa de abacaxi e camiseta amarela.
— É a mais nova moda no São Paulo Fashion Week, não
sabia?
Ela revira os olhos de maneira teatral e me dá um
empurrãozinho.
— Quer uma? — pergunta, indicando a barraquinha de água
de coco.
— Quem sabe depois de transpirar um pouco.
Laura sai da pista em direção ao gramado. Vou atrás dela.
— Sonhei com você hoje — digo por impulso.
— Jura? Foi um sonho bom?
— Hã… Mais ou menos.
— Resposta errada. Se foi comigo foi bom.
Dou um risinho nervoso e, para o meu alívio, ela muda de
assunto. Seu bom humor me faz esquecer momentaneamente o
pesadelo. Conversamos sobre uma palestra do Maurício de Sousa
que ela estava pensando em assistir, as últimas fofocas da escola
e o trabalho de matemática. Ela diz que terminou o seu e está
revisando os exercícios de geometria pela segunda vez. Dou de
ombros e confesso que nem comecei. Ela solta uma gargalhada.
Mas aquele clima descontraído ca nublado assim que ergo
os olhos e avisto a árvore, uns vinte metros à frente.
Minhas pernas petri cam e paro de caminhar. Laura avança
mais alguns passos, falando sozinha, então dá meia-volta e me
encara com perplexidade.
— Eu… eu pensei melhor, e acho que quero uma água de coco
— digo.
— Sério?
— Sim, estou morrendo de sede. Não sei como não notei
antes. Será que a gente pode voltar?
Ela faz biquinho
— Claro, seu avoado.
Refazemos nossos passos até a barraquinha. Laura tenta
puxar assunto, mas minhas respostas são vazias e
monossilábicas.
— Você está nervoso. — Ela aponta para a minha bochecha.
— Sempre contrai o maxilar quando está nervoso.
— E você ca esfregando o polegar na palma da mão.
— Ora, ora, temos um Xeroque Rolmes aqui — brinca, mas
logo volta a car séria. — O que está te incomodando?
— Nada, bobeira minha.
— Aposto que tem a ver com a nossa conver...
Mas o estrondo que se segue rouba as palavras da sua boca.
As pessoas param o que estão fazendo e giram o pescoço
rumo ao barulho. Os primeiros curiosos começam a se mover.
Laura me puxa pelo braço, mas não saio do lugar.
— Vamos embora — digo, sentindo a pressão baixar.
— Não quer saber o que aconteceu?
— Não estou me sentindo bem. Podemos ir, por favor?
— Ok...
Com a cara fechada, começo a caminhar em direção ao
portão dez. Laura vem logo atrás de mim.
Como fã de Rick and Morty e Discovery Channel, me
considero um homem da ciência. E isso signi ca que não
acredito em premonições.
Mas aquele déjà vu bizarro faria até Einstein balançar.
— Ficou assustado? — ela pergunta assim que saímos do
parque.
— Sim… mas… não é tão simples.
— Não precisa explicar se não quiser. — Seus lábios se
fundem numa linha tensa. — Para onde vamos?
Abro a boca, mas não sei a resposta.
— Só quero dar o fora daqui.
Nos tamos por um instante, seus olhos se enchendo de
preocupação.
— Já sei! — Laura ergue o indicador com uma expressão
astuta. Então começa a atravessar a rua. — Me segue.
Seu jeito fofo interrompe a espiral de pensamentos
angustiantes na qual eu tinha me en ado. Aliviado, sorrio.
Percebendo que eu continuava plantado na calçada, ela para
no meio da faixa de pedestres e se vira.
— Não vem?
— Clar...
De repente, o som de pneus derrapando rasga o ar. Um furgão
surge na esquina, as rodas girando como num vídeo em
velocidade dobrada.
Sequer tenho tempo de pisar no asfalto antes que o para-
choque atinja Laura. Uma descarga elétrica percorre minha
espinha e corro em direção ao corpo, arremessado a vários
metros de distância.
O sangue que escorre da cabeça de Laura forma um
travesseiro vermelho e reluzente sobre o asfalto. Suas pálpebras
estão fechadas. Chamo seu nome, tento acordá-la. Abaixo o
rosto para ouvir sua respiração.
Mas ela não está lá.
O trânsito parou. Alguns motoristas abandonam seus carros
no meio da rua e se aproximam.
— O que aconteceu?
— Chamou a ambulância?
Minha consciência está fraca. Os rostos embaçam, se
confundem, começam a girar.
Sem conseguir me manter em pé, desmaio.
Acordo no meu quarto e estendo a mão em direção à mesa de
cabeceira para pegar o celular.

Domingo
17 de maio
13:23

“Que merda é essa?”, a pergunta martela minha cabeça


enquanto me arrumo com rapidez e chamo o Uber.
Passo a viagem em transe, tentando entender o que está
rolando. Lembro daquele lme do Leonardo DiCaprio, “A
Origem”, e me imagino num sonho dentro de um sonho.
Me belisco com força.
Dói para caralho!
Já passa das duas quando encostamos ao lado do portão
cinco.
— Até mais, sangue bom, cinco estrelas para você — diz o
motorista assim que abro a porta.
Com as tripas congeladas, assisto ao carro sumir pela
avenida. “Até mais, sangue bom, cinco estrelas para você”. Foi
como o Uber da vez passada se despediu.
— Da vez passada… — sussurro.
Entro no parque e corro em direção ao lago. Encontro Laura
junto à barraquinha de água de coco.
— Olha quem resolveu aparecer.
— Vem comigo.
Não espero a resposta de Laura. Seguro sua mão e começo a
guiá-la rumo à saída.
— Não quer dar uma volta no lago?
— Hoje não, Lau.
Caminho a passos rápidos, desviando dos visitantes. Sei que
estou agindo de forma estranha. Alguns viram o rosto e olham
para nós, mas não ligo.
Assim que damos o fora do parque, relanceio o cruzamento
em que o acidente aconteceu. Mesmo sabendo que o furgão
ainda demoraria a passar, não arrisco. Vou até a próxima
esquina e só coloco o pé na faixa de pedestres quando não vejo
carros em nenhum dos lados.
— Para onde estamos indo?
— Para o shopping — respondo, imaginando que os
seguranças, as câmeras e as paredes sólidas das lojas nos
protegeriam.
Deixamos a avenida para trás e nos embrenhamos por um
bairro de calçadas largas e sobrados chiques. A rua é pouco
movimentada, e não há árvores à vista.
— Pode parar. — Ela desenrosca a mão da minha. — Não vou
dar mais um passo enquanto você não contar o que está
acontecendo.
Pela primeira vez desde que saímos do Ibira, encaro Laura.
Talvez seja minha imaginação, mas seus olhos parecem os
mesmos de quando os meninos da gangue dos malas
começaram a provocá-la, no pátio, segundos antes de
arrancarem o caderno de desenhos da Turma da Mônica de suas
mãos.
Olhos de medo, que me apunhalam feito echas amejantes.
— Você não acreditaria se eu dissesse. Nós… nós estamos em
perigo. Temos que vazar daqui.
— Perigo? Como assim, Dan? Você está me assustando.
Um garoto um pouco mais velho que nós passa atrás de
Laura, e não teria chamado minha atenção se seus dedos não
escorregassem pelo bolso lateral de sua mochila.
Quando me toco que seria melhor ngir demência, é tarde
demais.
Laura gira o tronco e, num re exo, agarra a mão do garoto.
— Ei, devolve meu celular!
Meu sangue congela quando o vejo puxar um objeto prateado
de dentro do shorts. Sem pensar duas vezes, avanço para cima
dele.
Rolamos no chão, brigando pelo revólver.
O chute que tomo na barriga expulsa todo o ar dos meus
pulmões, mas resisto e jogo meu peso contra o garoto, cando
por cima. Uso meu joelho como alavanca para puxar seu braço
para trás, tentando quebrá-lo. Ele faz força no sentido contrário,
as veias saltando do pescoço. Seus pés se agitam no ar.
Então, puxa o gatilho: uma, duas, três vezes. Um ato de
desespero antes que seu cotovelo estrale num gemido de dor.
O barulho dos tiros me faz vacilar por um instante. O garoto
se aproveita para empurrar minha cabeça e se ergue com um
impulso. Enrijeço os músculos, me preparando para o segundo
round, mas ele percebe a desvantagem e começa a correr.
Desaparece ao dobrar a esquina.
Quando me viro para trás, meu coração para.
Laura está caída no chão, perdendo sangue por um buraco no
peito. Me agacho e tento estancar a hemorragia.
— Fica comigo, Lau! Vou chamar ajuda.
Olho para o lado e vejo uma mulher nos observando através
das grades do portão.
— O que está esperando?! Liga para o SAMU!
Ela tem um sobressalto, mas concorda e volta para dentro da
casa.
— Dan, eu… — Em vez de palavras, Laura cospe um jato de
sangue.
— Não se esforce — digo, as lágrimas encharcando meu
rosto. — O resgate já vai chegar. Aguente só mais um pouco.
Continuo com a mão pressionada sobre o ferimento. Tento
forçá-la a car acordada, manter contato visual.
“Por quê?!”, grito no pensamento, “Por que essa merda está
acontecendo?!”
Moradores e transeuntes formam um círculo ao nosso redor.
Alguém se agacha ao meu lado e diz alguma coisa, mas não
presto atenção.
Laura respira com di culdade, inspirações ligeiras e
entrecortadas que se tornam progressivamente mais lentas. Os
olhos começam a fechar.
Os movimentos somem.
Está morta.
Assim que acordo, caminho até a escrivaninha, pego a caneta
Bic e escrevo “220” no dorso da mão.
Depois de tantos desmaios e despertares, ca difícil lembrar
de cabeça. Lá pela décima vez comecei a me embananar, e
anotar o número do ciclo pareceu uma solução inteligente.
Demorou um pouco para que a cha caísse e eu percebesse
que estava preso numa espécie de loop temporal. Eternamente
dezessete de maio. É como um jogo de videogame, em que a fase
recomeça quando o jogador morre.
Só que, nesse jogo, quem morre é Laura.
Foram 219 vezes até agora, e ela se esqueceu de todas. Está
sempre me esperando na barraquinha de água de coco com um
sorriso e uma piadinha esperta.
Regra número 1: Laura não se lembra de suas mortes.
Descobri essa e outras regras quando, após o trigésimo
quarto fracasso, comecei a usar os ciclos como testes. E a
primeira coisa que me passou pela cabeça foi que nosso
encontro no Ibira era o grande responsável pela tragédia.
Então, no ciclo 35, resolvi não sair de casa. Roendo as unhas
enquanto acompanhava o horário no celular, comecei a car
tonto às 14:42.
A árvore… Ela cai às 14:40, o que nos leva à próxima regra:
Regra número 2: entre a morte de Laura e o mundo resetar,
tenho dois minutos.
Imaginando que o culpado fosse o parque, mandei
mensagem desmarcando o encontro. Para garantir que não
saísse de casa, quei falando com Laura pelo celular, tirando
assunto não sei de onde para não deixar a conversa morrer. Às
14:42, o plano corria bem, e senti uma chama de esperança
aquecendo meu peito.
Mas ela logo se apagou.
Às 14:49, escutei-a tropeçar do outro lado da linha. E então,
silêncio…
Regra número 3: Laura é atraída para a morte.
Minha imagem mental dela é a de uma marionete presa a os
invisíveis. Não sei quem os controla, mas é alguém sádico, que
sempre faz questão de colocar minha amiga no caminho de um
motorista bêbado ou de uma bala perdida. Acidentes comuns,
desses que o Datena anuncia no Brasil Urgente.
Não, nem todos são fatais. É possível evitá-los, ou, ainda…
enfrentá-los. Alguns são fáceis. No ciclo 54, me z de bobo
quando o garoto furtou o celular de Laura. Ela chorou baldes,
esgoelando que seu pai iria matá-la — com certeza o pior verbo
que poderia usar —, mas pelo menos não levou um tiro na
barriga. Já no 72, o jogo complicou: caímos no meio de uma
briga entre as torcidas organizadas do Palmeiras e do
Corinthians, e tive que me desdobrar para que ela não fosse
atingida por um soco inglês e um coquetel molotov.
Até que descobri algumas coisas interessantes:
Regra número 4: ENFRENTAR um acidente garante alguns
minutos, ou até horas, de tranquilidade. Quanto mais difícil,
maior o tempo.
Regra número 5: EVITAR um acidente cria uma bola de neve,
fazendo com que os próximos sejam mais graves e difíceis de
evitar.
Mais de uma vez, tentei abrir o jogo para Laura. Sua primeira
reação foi rir da minha cara, dizer que minha história daria um
ótimo mangá. E eram necessários dez minutos de blá-blá-blá
para que ela percebesse que eu não estava zoando. A partir daí,
era sempre o mesmo papo sobre drogas e procurar um
psicólogo.
Viver várias vezes o mesmo dia rendia informações valiosas,
mas também esgotava minhas baterias. Sem energias, a saída
era recarregá-las na base da raiva.
Aproveitando que meus ossos se regeneravam, passei uns
bons ciclos esmurrando as paredes do meu quarto. Não nego
que quei com raiva de Laura. Querendo ou não, é por causa
dela que estou preso nesse maldito loop. Mas o sentimento ia
embora rápido, deixando um rastro de vergonha e
arrependimento, bem como a certeza de que eu era o cara mais
babaca do mundo.
Laura não tem culpa. É tão vítima quanto eu.
Então quem tem?
Deus, talvez. O cara lá de cima só pode estar de sacanagem. O
que zemos para merecer isso? “Eu” até dá para entender, mas
“ela”, que na fase mais sussa e inocente da vida teve o azar de
cruzar o caminho desse protótipo mirim de valentão...
O universo é injusto para caralho!
E o que mais me deixa puto é que, além de injusto, ele é
contraditório. Porra! Se Deus quer ceifar a vida de Laura, por que
me fazer voltar no tempo toda vez que ela morre? Sim, “para
salvá-la”. Caso contrário, era só deixá-la ser esmagada pela
árvore e pronto.
Mas
Como
Eu
Faria
Para
Salvá-la?
A pergunta de um milhão de dólares.
Finalmente, lá pelo ciclo 150, uma luzinha se acendeu em
algum canto do meu cérebro.
Se é para o dia dezessete de maio que retorno toda vez que
falho, será que a sentença de morte de Laura não está ligada a
esse dia? E se, contra todas as possibilidades, eu conseguisse
mantê-la viva até o dia dezoito? Quebraria a maldição?
No começo, rejeitei a ideia, disse a mim mesmo que era
abobrinha. Porém, quanto mais eu tentava varrê-la para baixo
do tapete, mais eu tropeçava nela.
Até que desisti de ignorá-la.
Do ciclo 150 ao 210, dei início à corrida para prolongar a vida
de Laura: cataloguei cada um dos acidentes, memorizei seus
horários, arquitetei planos complexos para evitá-los e calculei
quanto tempo ganharia se os enfrentasse.
Quase consegui no 206.
Hoje, no 220, estou cansado. Não sicamente, claro. Nesse
jogo, é a mente que ca com as cicatrizes mais profundas.
Ao contrário dos meus ossos, elas não se regeneram. E não
falta muito para que me façam quebrar de vez.
Prestes a abrir a porta da sala, olho para cima e faço força
para ampli car o pensamento:
“Dessa vez te derroto, velho”.
Estendo o braço e giro a maçaneta.

Estou repassando o roteiro na cabeça pela décima segunda


vez quando avisto Laura em frente à barraquinha de água de
coco.
— Acabei de receber uma ligação do Lucas — digo, com uma
pitada de ranço. — Ele viajou e esqueceu de deixar comida para
o Toquinho. Adivinha para quem sobrou?
— Meu Deus! O bichinho deve estar faminto.
— Bora comigo? Podemos conversar lá.
Depois de 219 ciclos, é a melhor desculpa que consigo bolar
para convencê-la a ir embora do parque. Toquinho é o gato
rajado do Lucas, e basta uma conversa de cinco minutos com
Laura para sacar que ela tem um fraco por felinos.
Além do mais, ela não sabe onde Lucas mora, o que signi ca
que sua casa pode car em qualquer lugar que eu quiser.
— Será que posso fazer carinho nele?
— Se você conseguir se aproximar daquele gato rabugento...
Dou um pulo na lanchonete e peço um espetinho de frango
para a viagem. Sem perder tempo, pegamos a pista em direção
ao portão dez. Deixamos o parque antes da árvore cair.
— Vamos a pé? — Laura pergunta assim que atravessamos o
cruzamento.
— Só até o metrô.
— Fica meio longe, não?
“Dois quilômetros e quatrocentos metros”, penso, mas não
quero parecer bitolado.
— Um pouco.
Ela estreita os olhos.
— Alguém tomou chá de secura hoje.
— Estou preocupado com Toquinho.
Laura parece entender minha “secura” como um sinal de que
não estou para conversa, pois só volta a me al netar dali a
quinze minutos:
— O espetinho vai esfriar.
— Está com um cheiro estranho. — Sabendo que um clima
tenso poderia prejudicar a missão, acrescento: — Não quero car
com caganeira.
— Eu acharia hilário. — Ela dá uma risadinha. — Me faz
lembrar daquela vez que o Matheus…
Mas já não a escuto.
Ele está no meio da quadra, caminhando no sentido
contrário ao nosso. O dono é forte, desses que comem frango
com batata doce e assistem ao canal do Leo Stronda no
YouTube. Parece irritado e distraído enquanto fala no celular.
Cerro os punhos, esperando que Laura faça contato visual
com o cachorro.
E não demora a acontecer.
O polegar enrolado na coleira não é su ciente para segurá-lo,
e ele dispara em nossa direção.
Num gesto rápido, agarro o pulso de Laura.
— Não se mexe.
O cão para a menos de um metro de nós. Trinta quilos de
músculos empelotados e um par de caninos que faz meu corpo
parecer macio feito algodão.
Pressentindo o primeiro latido, meus dedos se fecham com
mais força.
— Não se mexe, Lau — repito, quando ela dá um passo para
trás. — E não olha nos olhos dele.
Não é difícil imaginar o que aconteceu das outras vezes.
Laura se desesperou, correu, mas não conseguiu nem chegar à
esquina antes que o bicho enfurecido abocanhasse seu pescoço.
Passei cinco ciclos pesquisando “como sobreviver a ataques
de cachorros”, mas as informações eram contraditórias, como se
os blogueiros tirassem as informações da cabeça deles. “Não
emita sons”, instruía o site “Meu Amigo Quatro Patas”, enquanto
o “Feliz para Cachorro” dizia “projete seu corpo para frente e
grite o mais alto que puder”.
Até que encontrei o ouro numa matéria da
Superinteressante.
Com passos de tartaruga, me aproximo do cão, que para de
prestar atenção em Laura e se concentra em mim. Evitando
movimentos bruscos, tiro o espetinho do embrulho. Ele late
mais duas vezes, descon ado, até que ergue o focinho e fareja o
ar, se rendendo ao cheiro do frango.
Nesse momento, o dono chega e cata a coleira, ofegante.
Tenho vontade de socá-lo, mas aceito seu pedido malfeito de
desculpas.
— Vocês não vão me processar, né?
— Se você não der o fora daqui agora, sim.
O babaca se afasta me olhando torto, mas não dou a mínima.
Coloco a mão no ombro de Laura e pergunto se está bem.
— Foi só um susto.
— Quer sentar um pouco?
— Não, não precisa. — Ela fecha os olhos e respira fundo.
Quando volta a abri-los, parece melhor, embora as pernas ainda
tremam. — Só acho que ele devia estar usando uma focinheira.
Espero Laura voltar a caminhar e sigo ao seu lado, sem
apressá-la. Mais duas quadras e chegamos à escadaria da
Estação Paraíso.
Sabendo que uma sucessão de acidentes trágicos nos espera
se embarcarmos antes das cinco, esfrego as mãos no rosto e
g
digo:
— Depois dessa aventura acho que estou a m de comer
antes de pegar o metrô.
— Você não almoçou antes de sair de casa?
— Não deu tempo — respondo, na defensiva.
Ela balança repetidamente a cabeça, como uma professora
decepcionada com um aluno teimoso. Então, num gesto ligeiro,
cutuca minha bochecha.
— Dorminhoco!
Numa das raras vezes em que sou surpreendido por Laura,
co sem graça e sorrio para disfarçar. Ela parece perceber, pois
me encara com uma expressão de “te peguei!” e solta uma de
suas risadas musicais.
Mas aquele oásis de fofura dura pouco.
Sem pedir permissão, o Homem do Casaco Verde invade
meus pensamentos.
Daqui a exatamente oito horas e quinze minutos, ele virá até
nós.
E só de pensar começo a tremer.

Seguimos pela Avenida Paulista — o coração jovem de São


Paulo — até o Shopping Pátio Paulista. São quase quatro da tarde
quando nos sentamos na praça de alimentação com nossas
bandejas de comida vegana. Não curto plantinhas, mas Laura
ouviu falar sobre o tal “Restaurante Banana Madura” num
podcast, e insistiu que experimentássemos. Depois de tantos
ciclos, também, conheço o cardápio bem o su ciente para pedir
a lasanha de berinjela sem medo de ser feliz.
Na volta para o metrô, evito um assalto e dois
atropelamentos, embora o mais difícil seja explicar a Laura os
recortes aparentemente sem sentido no caminho. Pegamos a
linha azul e fazemos a baldeação para a rubi na Estação da Luz.
— Onde o Lucas mora?
— Em Jundiaí.
— Jundiaí? Fica no m do mundo!
— Pode apostar — respondo, com um suspiro indignado.
— Ele não tem nenhum amigo por lá para dar comida para o
Toquinho?
— Ninguém em quem con e. Tem medo que roubem as
coisas do apartamento.
— E como vamos entrar?
— Ele disse que tem uma chave reserva dentro do vaso.
Seu tom descon ado me preocupa.
É tiro e queda: basta ela começar a suspeitar de mim para a
operação-prolongar-a-vida-de-Laura ir por água abaixo. Minhas
mentiras são boas, foram ensaiadas, mas não fazem milagres.
Contar mais uma signi ca testar um novo limite.
Ciente de que chegar à Estação Pirituba antes das nove seria
perigoso, limpo a garganta e arrisco:
— Lucas acabou de mandar mensagem dizendo que tem
pouca ração no apartamento. Perguntou se podíamos passar
num petshop.
Laura torce o nariz e me analisa por um instante.
Meu coração dispara.
— Talvez devêssemos adotar Toquinho depois dessa saga.
— Não seria má ideia — concordo, comemorando
internamente.
Desembarcamos na Estação Água Branca e saímos para a rua.
Finjo consultar, no celular, o endereço do petshop mais
próximo, e aproveito que Laura não conhece o bairro para fazer
um desvio de rota. Se fôssemos em linha reta, a briga de um
casal no décimo quinto andar acabaria com uma televisão
caindo em sua cabeça como uma bigorna de desenho animado.
Já passa das seis e meia quando atravessamos a fachada do
“Bola de Pelo”. Não foi uma escolha ao acaso: a decoração
temática e os corredores com prateleiras repletas de brinquedos,
caminhas e arranhadores são uma perdição para amantes de
gatos. Além do mais, é o único petshop da região que ca aberto
até as nove.
Dando uma escapulida para “ligar para o Lucas”, deixo Laura
ser capturada pelos encantos da loja. Só volto a dar as caras
quando o moço do alto-falante expulsa os clientes que
sobraram, pedindo educadamente que “se dirijam ao caixa”.
Indeciso sobre qual ração comprar, ainda enrolo o vendedor por
dez minutos.
De volta à rua, con ro o relógio e descubro que faltam menos
de três horas para o dia dezoito. Mas não solto fogos de artifício.
Tento aproveitar a curta caminhada até o metrô, certo de que
seria meu último momento de tranquilidade ao lado de Laura.
O trem sentido Jundiaí chega quase vazio, e podemos
escolher os assentos. Laura caminha para o meio do vagão, mas
aponto para o fundo.
— Fica mais perto da escada rolante.
Quando me sento e abandono as sacolas no chão, sinto como
se estivesse carregando uma bomba relógio. Ignoro as
mensagens preocupadas da minha mãe e mexo no Twitter para
tentar me distrair, mas é inútil.
Tic…
Tac…
Tic…
Tac…
Uma hora e trinta e oito minutos depois, o maquinista
anuncia a próxima parada: “Estação Várzea Paulista”. Meu
sangue gela. Conto doze pessoas na plataforma de embarque,
mas não o vejo.
“Rápido”, mentalizo, querendo fazer o trem se mover.
Ouço o apito e levanto os olhos para as portas automáticas,
esperançoso.
Mas, antes que elas se fechem, ele entra.
O Homem do Casaco Verde.
Como da outra vez, ignora os assentos vagos e ca de pé,
segurando a barra de apoio. Está inquieto… Os dedos tremem
fora das mangas e os olhos piscam numa frequência incômoda,
irregular.
— Mandei mensagem para o meu pai enquanto estávamos no
petshop. Falei que dormiria na casa da Sara — diz Laura com um
ar de cumplicidade. — Não ia deixar você ir até Jundiaí sozinho.
Minha boca se mexe para dizer “valeu”, mas os olhos estão
grudados no Homem do Casaco Verde. Ele ergue as mãos e
massageia as têmporas em círculos. Quase posso ouvi-lo
sussurrando para seus próprios demônios: “Fiquem quietos”.
— Planeta Terra chamando. — Laura estala os dedos na
frente do meu nariz.
Trocamos olhares sem dizer nada e, de repente, sinto uma
súbita vontade de chorar.
Quantas vezes falhei em salvá-la?
De quantas formas diferentes a vi morrer?
Quando essa droga vai acabar?
Mas, antes que eu mergulhe de cabeça na bad, uma voz grave
rasga o silêncio do vagão.
A voz do Homem do Casaco Verde.
— Não quero incomodar a viagem de vocês, mas… não tenho
com quem conversar. — Ele para antes de prosseguir, surpreso
com a atenção que ganha. — É que… minha vida… minha vida
está uma bagunça. Uma merda! Não sei mais o que fazer.
— Ninguém liga, cara!
O dono da segunda voz está a duas leiras do Homem do
Casaco Verde. Com os braços cruzados em frente ao peito e um
risinho de deboche, parece uma versão crescida do garotinho
babaca que fazia bullying com os colegas no Flóqui.
— Mas eu...
— Todo mundo tem problemas, velho! Para de se vitimizar.
Senta aí e deixa as pessoas em paz!
Laura assiste ao espetáculo de olhos arregalados. Posso sentir
a apreensão emanando dela quando aproxima seu ombro do
meu.
Alguns passageiros riem da provocação. Outros começam a
lmar. Uma pausa tensa se segue antes que o Homem do Casaco
Verde abaixe a cabeça.
— Realmente, nessa cidade ninguém liga para ninguém.
Sabendo que minha hora de agir chegou, engulo o medo, me
levanto e caminho até eles.
— Mário?
Todas os rostos se viram para mim, inclusive o do Homem do
Casaco Verde.
— Como sabe meu nome?
— Não importa. O que importa é o que Vanessa me disse.
— Vanessa? Você conhece a minha lha? — Ele dá um passo
para trás. — Quem é você?!
O que eu diria a seguir poderia ser nosso passaporte para o
dia dezoito. Não só meu e de Laura, mas de todas as pessoas
naquele vagão.
A nal, o Homem do Casaco Verde não mata apenas minha
amiga.
Ele mata todo mundo.
Antes de sair por aí desabafando sobre seus problemas para
desconhecidos no metrô, Mário era um homem feliz. Ou, pelo
menos, um empresário bem-sucedido. Dono de uma montadora
de parafusos que abastecia todo o estado de São Paulo, não
resistiu quando uma multinacional gringa resolveu meter o
bedelho e roubar seus clientes. Falido, não mergulhou só em
dívidas, mas na bebida. E não demorou para que sua esposa
pedisse divórcio e casse com a casa em Alphaville e a guarda de
sua lhinha de oito anos.
Vanessa.
Passei vinte e um ciclos conversando com ela no parquinho.
Tínhamos apenas oito minutos antes da árvore cair e o dia
resetar. No começo, não me dava papo. Ficava com medo do
“moço estranho” fazendo perguntas e voltava para perto da
babá. Mas nada que a repetição — e um pirulito de caramelo
comprado na banca da esquina — não resolva. Quando, en m,
consegui que falasse do pai, descobri segredos cabeludos. Mário
acha que Vanessa prefere o padrasto, mas não passa de uma
mentira cruel de sua ex-esposa. A verdade é que Vanessa não se
dá bem com o namorado da mãe. E, de quebra, sente que está
sendo substituída por seu meio-irmão. A pobrezinha chorou,
dizendo que estava com saudades do pai, e me contou algo que
quase fez meu coração se partir. Há dois anos, Mário construiu
uma casinha na árvore para a lha. “Foi o melhor presente do
mundo”, ela disse, os olhinhos brilhando. “Dava para enxergar a
entrada do condomínio lá de cima e ver o carro do papai
chegando”.
A casinha tinha até um nome.
— Castelo das Tulipas — sussurro, e quando os olhos de
Mário se esvaziam, sei que me escutou.
— Como você… Não é possível!
— Vanessa ainda sobe todas as noites no Castelo das Tulipas
e ca esperando você voltar.
O tiro é certeiro.
Os braços de Mário despencam ao lado do tronco. Os lábios
tremem, e sinto que está prestes a chorar.
Um silêncio gélido preenche o vagão. A tensão é quase
palpável.
Eu havia conseguido?
— Tarde demais — diz, antes de sacar o revólver.
O caos começa assim que o disparo atinge o valentão. Por
instinto, ergo as mãos para proteger a cabeça e corro para o
fundo, trombando nas pessoas. Encontro Laura encolhida
embaixo do banco.
O trem para com um solavanco. Relanceio a janela e percebo
que estamos no meio do nada.
“Merda!”
Tampo os ouvidos para diminuir os berros. São monstruosos.
Os piores sons que escutei na vida. Cutuco Laura e coloco o
indicador em frente à boca, pedindo silêncio.
A nal, não peguei os últimos assentos à toa.
Faz parte do plano B.
Além de espaço su ciente para caber dois corpos deitados,
eles cam mais afastados. As balas acabariam antes que Mário
chegasse até nós.
Não sei se acabam. É uma teoria. Na primeira e única vez que
passei por essa chacina, estávamos no meio do vagão. Laura
morreu com um tiro na cabeça, mas o que perfurou meu peito
não me matou. Pelo menos, não imediatamente. Antes que
meus pulmões parassem de funcionar, o mundo resetou. Estava
de volta ao meu quarto.
Sim, tive sorte. Mas é como dizem: o raio não cai duas vezes
no mesmo lugar.
Espio por baixo do banco: os que correram ou reagiram estão
caídos no chão. Os que sobraram são como nós, ratos
encurralados. Vão sendo eliminados aos poucos.
Passos.
Gritos.
Tiros.
Silêncio.
Então o ciclo se repete, cada vez mais perto.
Conto vinte e dois disparos até agora. Estou delirando?
Não virei um expert em armas jogando Call of Duty, mas
aprendi o su ciente para saber que não existem revólveres de
vinte e duas balas.
Mário o está recarregando.
— Nós… nós vamos morrer — sussurra Laura.
Minha única reação é encostar minha testa na dela e fechar
os olhos.
Então, o som de ar descomprimindo, e as portas do trem se
abrem.
Quase posso ver o mutirão de policiais entrando, contendo o
Homem do Casaco Verde e nos escoltando até a delegacia.
Até o dia dezoito.
Mas a fantasia dura pouco.
Quando a cha cai e percebo que o socorro demoraria a
chegar, tomo uma decisão.
Engolindo em seco, agarro o pulso de Laura e aponto para a
porta aberta do outro lado do vagão. Nos desembaraçamos em
silêncio e camos de quatro, prontos para correr.
Minha boca se abre para a contagem regressiva:
Três...
Dois…
Mas, antes que chegue ao “um”, uma sombra se projeta sobre
nós.
Ergo o rosto e encontro a expressão vazia de Mário, a ponta
de seu casaco verde quase tocando meu ombro. Acuado, só
tenho tempo de fechar os olhos e cobrir o corpo de Laura com o
meu, esperando o tiro.
As coisas não terminaram da forma que eu esperava.
Elas nunca terminam.
Mas, pelo menos, eu estaria livre.
— Podem sair.
Abro os olhos, sem acreditar.
— Vocês dois. Podem sair.
Com medo que ele mude de ideia, rompo a imobilidade e
ajudo Laura a se levantar. O silêncio mortal me diz que somos os
únicos que restaram. Tento não olhar para o vagão, mas o cheiro
de sangue penetra minhas narinas. De mãos dadas, avançamos
em direção à porta, o tremor se propagando de um para o outro
como uma corrente elétrica.
Prestes a deixarmos o trem, me viro para Mário.
— Por quê?
Ele me analisa, os lábios se esticando num sorriso
melancólico.
— Às vezes a morte é a única solução.
Puxo Laura para fora antes que ele coloque o cano do revólver
na boca. Faço menção de olhar para trás quando o disparo ecoa,
mas ela me impede.
É difícil descer os trilhos. O terreno acidentado nos faz
tropeçar e ralar os joelhos nas pedras. Andamos até o que parece
ser o pátio de uma fábrica abandonada, ao lado da ferrovia.
Com as costas escoradas na parede do galpão, nossos
músculos pedem arrego e escorregamos até o piso de cimento.
Nos entreolhamos por um instante, sem dizer nada, então Laura
começa a chorar e a abraço.
Mesmo naquele estado, meu sensor de alerta se acende e
observo a escuridão, à procura da próxima ameaça. Em seguida,
saco o celular e ergo o braço por sobre o ombro de Laura para
conferir o horário.

Segunda-feira
18 de maio
00:02

Não sei por quanto tempo camos abraçados, mas a onda de


alívio que preenche meu peito é quente e reconfortante. Algo
que nunca senti antes.
En m, Laura se afasta e me ta com seus olhos inchados.
— Você conhecia aquele homem, Dan?
Colocado contra a parede, torço o nariz.
Ela me viu chamando Mário pelo nome, falando sobre sua
lha.
Não faz sentido mentir.
— Sim, conhecia.
— Como?
Desvio o olhar.
— Desculpa, Lau, mas não posso dizer.
— Hoje, o dia todo foi… estranho. A forma como você agiu
durante o ataque do cachorro, o espetinho de frango… Sem falar
em todos os desvios no caminho. — Ela segura meu queixo e me
força a encará-la. — Lucas não deixou Toquinho sem comida no
apartamento, né?
— Não.
— Pode parecer loucura, mas é quase como… como se você
soubesse que esses acidentes horríveis iam acontecer.
Não digo nada, mas a resposta está escrita na minha testa.
Sei que esse papo de que caras não choram é lorota, mas… É
tudo culpa dessas séries de high school americanas, que en am
os estereótipos na nossa cabeça de um jeito que não saem mais.
Se bem que… Caralho! Viver a mesma tragédia 219 vezes e não
poder conversar com ninguém é demais até para Daniel
Trombadinha.
Choro tanto no colo de Laura que acho que vou desidratar. E
quando as lágrimas secam, dando lugar a soluços entrecortados,
ela mergulha fundo em meus olhos.
— Não sei o que está acontecendo, Dan, mas con o em você
— diz com sinceridade. — Ah, e isso me lembra por que te
chamei para ir ao parque, hoje.
Ergo as sobrancelhas, surpreso. E não é que tinha me
esquecido completamente? Tampouco criei uma brecha para
que Laura tocasse no assunto nos ciclos anteriores. Não é para
menos, também. Minha obsessão em salvá-la não deixava o
clima propício para esse tipo de conversa.
— Sabe, Dan, quando te vi entrando na sala no primeiro dia
de aula, quei nervosa. Não vou mentir. E você foi sentar justo
do meu lado! “Já faz tempo”, disse a mim mesma. “Não somos
mais crianças”. Mas será que as pessoas mudam mesmo?
Quando você virou para trás e começou a falar comigo, então?
Muita coisa passou pela minha cabeça. Algumas bem ruins.
Imaginei você se entrosando com os populares, voltando a me
zoar.
Minha vontade é en ar a cabeça no chão e não sair nunca
mais.
— Mas eu estava errada. Como estava! Você até se entrosou
com os populares, mas preferia passar o intervalo comigo.
Parando para pensar, parece coisa de lme, mas a verdade é que
viramos amigos. Melhores amigos. — Ela sorri com os lábios
fechados. Torço para que minhas bochechas não quem
vermelhas. — E, para mostrar que passei uma borracha nisso
tudo, tenho uma coisinha para te dar.
Em silêncio, observo Laura tirar uma pasta da mochila. Ela
puxa os elásticos para os lados e pega uma folha de dentro dela.
Com as mãos trêmulas, ergo o papel contra a lua para ver
melhor. A explosão de cores em aquarela salta em direção aos
meus olhos, os traços a lápis se entrelaçando de um jeito doido,
mas hipnotizante.
Formam o contorno de um garoto.
E esse garoto sou eu.
— Sei que não gosta dos meus desenhos, Dan, mas é o que
amo fazer.
— Não gosto dos seus desenhos? Eu?
Não há sinal ou aviso. Mas, de alguma forma, sei que chegou
a hora… A hora de contar a Laura que “gostar” é um termo fraco
demais para descrever o quanto sou vidrado nos desenhos dela.
A hora de contar que o rosto por trás de @neymartop456, seu fã
número um, é o meu.
A con ssão está prestes a sair quando um clarão desce do céu
e ilumina Laura, que, por um instante, parece uma personagem
de anime invocando um poder superior. Aterrorizado, abro a
boca, mas meu grito sai mudo.
O barulho do raio é ensurdecedor.
Sem reação, assisto ao corpo carbonizado de Laura tombar ao
meu lado.
Então quer dizer que eu estava…
Errado?
Esse tempo todo?
Não tem nada a ver com o dia dezessete.
Não tem a ver com nada!
Quase posso ouvir Deus rindo lá de cima.
Daniel, seu otário! Pensou que pudesse me vencer?
Pode rir.
Nem tenho forças para car bravo.
Não tenho forças para nada.
Quando a chuva começa a cair, trago o desenho de Laura para
junto do peito. Ao longe, as sirenes da polícia. Sempre tarde
demais.
Lembro de Mário, de seu olhar quando mencionei o Castelo
das Tulipas, de suas últimas palavras.
E, então…
É nesse momento que vem o estalo, como chaves abrindo
fechaduras ou peças de quebra-cabeça se encaixando. É “o” e não
“um” porque é diferente dos outros.
Não é um palpite.
É uma certeza.
Como não percebi antes?
A tontura não demora a chegar. A sensação é terrível. Nunca
me acostumo com ela.
Mas, mesmo assim, sorrio.
A nal, o próximo ciclo seria o último.
Contrariando o protocolo, não caminho até a escrivaninha ao
me levantar da cama, deixando a caneta bic intocada no porta-
lápis.
Eu me arrumo sem pressa e checo o celular, esperando dar
13:44 — horário em que o app escolhe “Até mais, sangue bom”
como meu motorista — para solicitar a viagem.
Fico feliz em encontrar seu carro na frente do prédio. Dos
sete ubers que me levam ao parque, ele é, de longe, o mais gente
boa, daqueles que conversam quando a gente puxa assunto e
permanecem em silêncio quando queremos car de boa.
No começo, preferia a segunda opção: sentava no banco de
trás e me isolava com meus fones de ouvido, criando mil e uma
teorias sobre viagens no tempo. Mas, com o passar dos ciclos,
percebi que sentia falta de jogar conversa fora.
Resultado: quei amigo de “Até mais, sangue bom”, embora o
contrário não seja verdadeiro, já que ele se esquecia de mim.
Não vamos direto para o parque dessa vez. Faço um desvio no
trajeto para comprar uma coisinha. De volta ao carro, explico
meu plano a “Até mais, sangue bom” e peço sua ajuda. Ele parece
se divertir com a ideia, e, quando termino, faz que sim com a
cabeça.
Dez minutos depois, estacionamos ao lado do portão cinco.
Deixo o embrulho com “Até mais, sangue bom” e faço um joinha
de “estamos entendidos?”
Não podendo ser diferente, ele responde:
— Conta comigo, sangue bom!
Correndo contra o relógio, entro no parque e pego a pista
sentido planetário. Como sempre, Laura me espera junto à
barraquinha de água de coco.
Sim, assisti àquela cena trocentas vezes. Mas, dessa vez,
Laura parece ainda mais bonita.
Acho que é por causa do desenho de aquarela que fez para
mim.
O meu desenho.
Cumprimentamos um ao outro com um beijo na bochecha, e
quando ela me convida para dar uma volta ao redor do lago,
aceito sem hesitar.
— Por que trouxe a mochila? — pergunto, como quem não
quer nada.
— Faz parte do look. Gostou?
— Estou achando que tem um presente para mim aí dentro.
Ela balança por um instante, mas não perde a pose.
— Convencido!
Enquanto andamos, conversamos sobre a palestra do
Maurício de Sousa, as últimas fofocas da escola e o trabalho de
matemática.
Não, não é a primeira vez que a escuto falar sobre essas
coisas.
Mas gosto mesmo assim.
Quanto mais nos aproximamos do lago, mais meus
batimentos aceleram. De repente, as palavras de Laura cam
distantes, se perdem. Tento forçar um sorriso, mas ele sai
plasti cado. Caímos no silêncio.
— Seu maxilar… Você está nervoso.
— Não dá para esconder nada de você, né?
Como uma peça xadrez posicionada cuidadosamente no
tabuleiro, ela detém o passo. Percebo que está prestes a falar
sobre a árvore, mas sou mais rápido:
— Quase não faz sombra a essa hora, né?
— Ah, sim… Devíamos ter vindo de boné.
— Já sei — digo, erguendo o indicador. — Vem cá.
Antes que Laura pergunte o que estou fazendo, me aproximo
e troco de lugar com ela. Os raios de luz fogem do seu rosto.
— Sempre achei que você tivesse cara de guarda-sol.
Con ro o celular.
14:37.
Minha caça ao tesouro com “Até mais, sangue bom” demorou
mais do que o esperado. Não tenho muito tempo.
Sentindo as palavras entalarem na garganta, engulo em seco.
— É difícil de acreditar, né? — pergunto.
— Acreditar no quê?
— Que, depois de oito anos, ainda não te pedi desculpas.
O rosto de Laura empalidece.
— Gestos são mais importantes que palavras, Dan.
— Talvez. Mas tem algo que preciso dizer, sobre… os seus
desenhos.
— Meus desenhos? — Ela leva a mão à mochila, insegura. —
Eles não fazem muito o seu estilo, né? Não tem problema.
Podemos ser amigos mesmo assim.
De novo esse papo.
Indignado, faço que não com a cabeça.
— Não diga besteiras, garota! Eu iria até Marte para ver seus
desenhos.
Por uma fração de segundo, ela me engole com seus olhos
negros. Então seus lábios se esticam num sorriso.
— É você!
Quando o som das raízes se desprendendo da terra nos
interrompe e vejo a expressão de terror se espalhar pelo rosto de
Laura, sei que acertei em car de costas para a árvore.
Cerro os punhos, me segurando para não correr.
Esse universo fdp quer uma vida? Tudo bem. Mas se acha que
vai levar minha melhor amiga, a desenhista de esquisitices
número um do Instagram, está enganado.
Pode parecer que só entendi meu papel nesse jogo depois que
o raio eletrocutou Laura, na noite passada, mas acho que, no
fundo, já sabia.
É que, porra… Não é fácil aceitar a morte.
Antes que digam, não sou herói. É isso ou car preso nesse
maldito loop até não ter mais espaço na minha pele para anotar
o número do ciclo. Além do mais, não daria minha vida por
qualquer mané. Sou um cara meio torto, mas ainda carrego
algumas migalhas de amor-próprio.
Quando a rajada de vento acaricia meus cabelos, sei que não
tem mais volta.
Mal tenho tempo de sorrir antes que o tronco esmague meu
crânio.
Acordo com alguém batendo na porta.
— Filha?
O ar está abafado, e a escuridão tão densa que não faz
diferença car com as pálpebras abertas ou fechadas.
Não fosse pela voz preocupada da minha mãe, eu poderia
estar no fundo do oceano, no espaço sideral, ou, ainda...
Em um sonho.
Agarrada a um ozinho de esperança, en o a mão embaixo
do travesseiro e cato o celular.

Segunda-feira
18 de maio
10:49

Não, não é um sonho.


Eu estou no meu quarto
E Dan está morto.
Fiquei pelo menos dois minutos sem conseguir me mexer
depois que minha árvore caiu. As pessoas correram para ajudar,
mas o tronco era pesado.
Não que zesse diferença. No momento em que meus olhos
encontraram o rosto deformado de Dan, soube que nem os
médicos de Grey’s Anatomy o trariam de volta.
Do parque, fui direito para a delegacia, mais por formalidade
do que por qualquer outra coisa. Não conseguia parar de chorar
durante o depoimento, e quando nalmente terminei de falar, o
delegado me devolveu uma expressão séria, quase paternal:
— Lamento que tenha passado por isso.
Meus pais também tentaram me consolar, no carro,
enquanto voltávamos para casa. Mas não dei ouvidos. Estava
anestesiada, incapaz de entender como algo tão terrível podia
ter acontecido.
Como podia ser real.
Minha mãe volta a bater, dessa vez mais forte.
— Filha?
Não respondo.
Não quero que ela entre.
Não quero que ninguém entre.
— Chegou uma encomenda para você. O Uber disse que…
que foi o Dan que pediu para entregar, ontem. Achei estranho,
mas ele não pareceu estar mentindo.
Meu coração acelera, mas permaneço deitada.
— Vou deixar aqui, caso você queira dar uma olhada. — E,
após uma pausa: — Se quiser conversar, ou só uma companhia
mesmo, vou estar na sala, ok?
Espero o ruído dos passos sumir pelo corredor antes de me
levantar. Em seguida, tateio o caminho até a porta, acendo a luz
e giro a chave devagarzinho, para não fazer barulho.
O embrulho é simples, desses de loja. Não tem cartão ou
assinatura identi cando o remetente.
Será que é mesmo do Dan?
Tranco a porta novamente e coloco a caixa em cima da cama.
Examino-a por um instante, quase com medo.
Suspiro fundo e começo a abri-la.
As lágrimas escorrem antes que eu termine de rasgar o papel.
Abro um sorriso e enxugo os olhos com a manga da camisa para
não molhar o presente.
Na minha frente, novinho em folha, um caderno de
desenhos da Turma da Mônica.
Sobre o Autor

Rafael Weschenfelder é paulista e estuda medicina na USP.


Obcecado desde criança por histórias com reviravoltas
engenhosas e nais-surpresa, decidiu ser escritor para criar as
suas. Quando não está no hospital ou em frente às páginas do
Word, pode ser encontrado jogando videogame e assistindo a
animes. Desde 2018, produz conteúdo literário e incentiva a
leitura no Instagram: @rafaweschenfelder.

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