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Laura
Copyright © 2020 Rafael Weschenfelder
Edição: Mariana Dal Chico
Revisão: Graziela Reis
Capa: Marcus Pallas
Diagramação: Deborah Silva
Quando presenteio Laura com a casquinha de sorvete que
trazia escondida atrás das costas, percebo que metade da bola
derreteu na minha mão.
Ela torce o nariz.
— Esse é seu pedido de desculpas por chegar atrasado?
— O Uber cancelou três vezes — digo, coçando a cabeça. —
Espero que não esteja esperando há muito tempo.
— Uber? Tem certeza de que não cou jogando Call of Duty
até amanhecer e ignorou o despertador?
— É tão fácil perceber? — pergunto, sem graça.
— É, seu viciadinho!
Laura dá uma risada melódica, gostosa de ouvir. Em seguida
ajeita a alça da mochila e, como uma bússola, vira em direção ao
lago. Observa as águas por alguns segundos.
— Quer dar uma caminhada?
Aguardamos duas garotas passarem de bicicleta pela
ciclofaixa e seguimos pelo gramado. A sensação é boa… Não é
todo dia que se pisa em algo que não seja asfalto ou cimento
quando se mora em São Paulo.
Ergo os braços e me espreguiço para soar casual.
— Você disse que precisava conversar comigo.
— Sim, disse.
— Sobre o quê?
Seus lábios se fecham num sorriso misterioso. Olho para
baixo e reparo que está esfregando o polegar na palma da mão,
uma mania sua quando está nervosa.
Ela não é a única.
Estamos quase na beirada do lago quando paramos.
— Essa aqui é a minha árvore de estimação — diz, tocando os
galhos com sentimentalismo.
Examino o tronco cascudo, coberto de assinaturas e entalhes
bregas em formato de coração.
— Parece que é a árvore de estimação de muita gente. Qual
deles é o seu?
— Nenhum. — Ela dá de ombros. — Eu não a machucaria.
Quer dizer que Laura me chamou até o Parque Ibirapuera
para… me mostrar uma árvore? Considerando as minhocas que
passaram pela minha cabeça, é um alívio.
— Por que essa e não as outras? Parecem todas iguais para
mim.
— Porque essa tem a vista mais bonita do parque.
Sigo seu olhar até o horizonte, onde o céu sem nuvens, a
silhueta irregular dos prédios e o bosque se misturam em
perspectiva. “Bonita mesmo” penso, “ideal para…”
Quando percebo aonde Laura quer chegar, engulo em seco.
Demoro alguns segundos para destravar.
— Você vinha aqui para desenhar?
Ela não diz nada, mas a resposta esbarra em nós como um
elefante invisível e desengonçado.
Enxugo as mãos suadas na bermuda.
— Não é certo ngir que esse assunto não existe — sussurro,
quase querendo que ela não me escute —, mas continuo fazendo
isso.
— Eu também…
— Não, Lau, o primeiro passo tinha que partir de mim. Mas
faltou coragem. — Resisto à vontade de desviar o olhar. — Só
não me diga que… que é tarde demais.
Mas ela não tem tempo de responder.
Um borrão marrom invade meu campo de visão. Galhos
arranham meu rosto, e, então, um estrondo. Tampo os olhos e
sinto o sangue escorrer pelos nós dos meus dedos.
Um burburinho se forma ao redor.
Pessoas gritando, pedindo ajuda.
Meus olhos ardem, mas os abro mesmo assim. Três homens
se esforçam para erguer a árvore. Mais dois chegam. A cabeça de
Laura está grudada no chão, não vejo seu corpo.
Tento me aproximar, mas o mundo começa a rodopiar feito
um carrossel que saiu dos trilhos. Uma mulher surge na minha
frente e segura meus ombros.
Sei que está fazendo perguntas, mas suas palavras não
chegam até mim.
Relanceio o rosto de Laura uma última vez antes de apagar.
Eu me ergo da cama com um pulo e levo a mão ao rosto,
procurando os arranhões, mas não encontro.
Agoniado, olho ao redor.
Os poucos raios de sol que penetram pelas cortinas de
blackout revelam os pôsteres do Hulk e os troféus de Jiu Jitsu no
topo da estante. Imediatamente, sei que estou no meu quarto.
Um pesadelo...
Fecho os olhos e respiro fundo. Em seguida, pego o celular.
Domingo
17 de maio
13:23
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Segunda-feira
18 de maio
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Segunda-feira
18 de maio
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