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Kiera Cass
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Epílogo
Agradecimentos
Kiera Cass

A Coroa
The Selection

Marcador
Capítulo 1

— Lamento imenso — disse eu, preparando-me para a inevitável


reação. Quando comecei a minha Seleção imaginei-a a terminar assim, com
dezenas dos meus candidatos a irem embora ao mesmo tempo, muitos deles
nada preparados para o facto de o seu momento sob os holofotes ter
chegado ao fim. Mas depois das últimas semanas, depois de descobrir quão
gentis, inteligentes e generosos muitos deles eram, a eliminação coletiva
deixava-me quase de coração partido.
Eles tinham sido justos comigo e agora eu tinha de ser muito injusta
com eles.
— Eu sei que é repentino, mas, dada a condição precária da minha
mãe, o meu pai pediu-me para assumir mais responsabilidades e acho que o
único modo de lidar com isso é reduzindo a competição.
— Como está a rainha? — perguntou o Ivan, engolindo em seco.
Suspirei.
— Ela parece... parece estar muito mal.
O meu pai hesitara em deixar-me visitá-la, mas eu tinha-o finalmente
vencido. Compreendi a relutância dele assim que a vi, a dormir, com o
batimento cardíaco a marcar o tempo no monitor. Tinha acabado de sair de
uma cirurgia, na qual os médicos tiveram de lhe tirar uma veia da perna
para substituir a do peito que trabalhara até se esgotar.
Um dos médicos disse que a tinham perdido por um instante, mas que
tinham conseguido trazê-la de volta. Sentei-me ao lado dela, segurando-lhe
na mão. Ainda que parecesse uma tolice, encurvei-me na cadeira, certa de
que isso faria com que ela acordasse e corrigisse a minha postura. Não
aconteceu.
— Mas está viva. E o meu pai... ele está...
O Raoul colocou uma mão reconfortante no meu ombro.
— Está tudo bem, Vossa Alteza. Nós compreendemos.
Deixei o meu olhar sobrevoar o espaço, pousando por um instante em
cada um dos meus pretendentes, enquanto memorizava os seus rostos.
— Só para saberem, vocês aterrorizavam-me — confessei. Houve
algumas risadinhas em redor da sala. — Muito obrigada por aproveitarem
esta oportunidade e por serem tão amáveis comigo.
Um guarda entrou, aclarando a garganta para anunciar a sua presença.
— Perdão, minha senhora. Está quase na hora da transmissão. A
equipa queria verificar, hum — ele fez um gesto hesitante com a mão o
cabelo e essas coisas.
Assenti com a cabeça.
— Obrigada. Estarei pronta num instante.
Ele saiu e eu voltei a minha atenção para os rapazes.
— Espero que me desculpem por este adeus coletivo. Desejo-vos a
todos a melhor das sortes no futuro.
Houve um coro de despedidas murmuradas à medida que saíam. Assim
que me encontrei do lado de fora do Salão dos Homens, respirei fundo e
preparei-me para o que estava para vir. És a Eadlyn Schreave e ninguém —
literalmente, ninguém — é tão poderoso como tu.
O palácio estava assustadoramente silencioso sem a minha mãe e as
suas damas de companhia, a correrem de um lado para o outro, e sem o riso
do Ahren a preencher os corredores. Não há nada que nos faça ter mais
consciência da presença de uma pessoa do que a sua perda.
Mantive-me de cabeça erguida enquanto me dirigia ao estúdio.
— Vossa Alteza. — Várias pessoas cumprimentaram-me quando
entrei, fazendo vénias e afastando-se do meu caminho, mas evitando
sempre o meu olhar. Não consegui perceber se era por simpatia ou se por já
saberem.
— Oh — disse eu ao ver-me ao espelho. — A minha pele está um
pouco brilhante. Podia...?
— Claro, Vossa Alteza. — Uma rapariga retocou habilmente a minha
pele, cobrindo-me com pó.
Endireitei a gola alta de renda do meu vestido. Quando me vestira de
manhã, o preto parecera-me apropriado, considerando o estado de espírito
geral do palácio, mas agora tinha dúvidas.
— Pareço demasiado séria — preocupei-me em voz alta. — Não um
sério respeitável, mas um sério preocupado. Está tudo mal.
— Está linda, minha senhora. — A rapariga da maquilhagem reavivou
a cor dos meus lábios. — Parece a sua mãe.
— Não, não pareço — lamentei. — Não tenho nada do cabelo dela, da
pele ou dos olhos.
— Não foi isso o que quis dizer. — A rapariga, calorosa e redonda,
com tufos de caracóis a cair sobre a testa, colocou-se ao meu lado e olhou
para o meu reflexo. — Veja — disse, apontando para os meus olhos. — Não
são da mesma cor, mas têm a mesma determinação. E os seus lábios têm o
mesmo sorriso esperançoso. Sei que é parecida com a sua avó, mas é filha
da sua mãe em todos os pormenores.
Fitei o meu reflexo. Quase podia ver o que ela queria dizer. Neste
momento extremamente isolado, senti-me um pouco menos sozinha.
— Obrigada. Isso significa imenso para mim.
— Estamos todos a rezar por ela, minha senhora. É rija.
Soltei uma gargalhadinha, apesar do meu humor.
— É mesmo.
— Dois minutos! — indicou o diretor de cena. Aproximei-me do
cenário atapetado, alisando o meu vestido e o cabelo. O estúdio estava mais
frio do que o habitual, mesmo sob as luzes, e senti arrepios na pele
enquanto ocupava o meu lugar atrás do palanque solitário.
O Gavril, com uma roupa ligeiramente mais informal, mas ainda
bastante elegante, sorriu-me com simpatia enquanto se aproximava.
— Tem a certeza de que quer fazer isto? Terei todo o gosto em dar as
notícias por si.
— Obrigada, mas acho que tenho de ser eu a fazê-lo.
— Muito bem. Como é que a sua mãe está?
— Estava bem, há cerca de uma hora. Os médicos estão a mantê-la a
dormir para poder recuperar, mas parece tão maltratada. — Fechei os olhos
por um momento, acalmando-me. — Desculpe. Isto deixou-me um pouco
sensível. Mas, pelo menos, estou a aguentar-me melhor do que o meu pai.
Ele abanou a cabeça.
— Não consigo imaginar ninguém a reagir pior do que ele. Todo o seu
mundo gira em torno dela, desde que se conheceram.
Lembrei-me da noite anterior, do mural de fotos no quarto deles, e
pensei em todos os pormenores, que só recentemente me tinham contado,
sobre como tinham ficado juntos. Ainda não conseguia ver nenhum sentido
em lutarmos contra inúmeros obstáculos por amor, apenas para acabarmos
tão impotentes no final.
— O senhor esteve lá, Gavril. Viu a Seleção deles. — Engoli em seco,
ainda insegura. — Funciona mesmo? Como?
Ele encolheu os ombros.
— A sua é a terceira que acompanho e não lhe sei dizer como
funciona, como é que um sorteio pode trazer uma alma gémea. Mas deixe-
me dizer-lhe uma coisa: o seu avô não era exatamente um homem que eu
admirasse, mas tratava a sua rainha como se ela fosse a pessoa mais
importante neste planeta. Onde era severo com os outros, era generoso com
ela. A rainha teve o melhor dele, coisa que não posso dizer sobre... Bem, ele
encontrou a mulher certa.
Semicerrei os olhos, curiosa sobre o que ele estaria a omitir. Sabia que
o meu avô tinha sido um rei muito rígido, mas, pensando nisso, esse era o
único aspeto dele que conhecia. O meu pai não falava muito sobre ele como
marido ou pai e eu sempre tivera muito mais interesse em ouvir falar da
minha avó.
— E o seu pai? Não creio que ele soubesse o que estava à procura. E,
honestamente, acho que a sua mãe também não. Mas ela era a pessoa
perfeita para ele em todos os aspetos. Todos os que os rodeavam
conseguiam vê-lo, muito antes de eles o perceberem.
— A sério? — perguntei. — Eles não sabiam?
Ele fez uma careta.
— Sinceramente, era mais a sua mãe que não sabia. — Ele lançou-me
um olhar acusador. — Um traço de família, parece.
— Gavril, o senhor é uma das poucas pessoas a quem posso confessar
isto. Não é que eu não saiba o que procuro. Não estava era pronta para
procurar.
— Ah. Tinha-me questionado sobre isso.
— Mas agora estou aqui.
— E sozinha, receio. Se decidir continuar com isto, e depois de ontem
ninguém a culpará se não o fizer, só a princesa pode fazer uma escolha tão
importante.
Acenei com a cabeça.
— Eu sei. É por isso que é tão assustador.
— Dez segundos — indicou o diretor de cena.
O Gavril deu-me uma palmadinha no ombro.
— Estou aqui de todos os modos possíveis, Vossa Alteza.
— Obrigada.
Endireitei os ombros diante da câmara, tentando parecer calma quando
a luz vermelha começou a brilhar.
— Bom dia, povo de Illéa. Eu, a princesa Eadlyn Schreave, estou aqui
para vos falar de alguns eventos recentes que tiveram lugar na família real.
Mencionarei primeiro as boas notícias. — Tentei sorrir, mesmo, mas tudo
em que conseguia pensar era no quão abandonada me sentia.
— O meu amado irmão, o príncipe Ahren Schreave, casou-se com a
princesa Camille de Sauveterre, de França. Apesar de o momento desse
casamento ter sido um pouco inesperado, isso de modo algum diminui a
nossa alegria pelo feliz casal. Espero que se juntem a mim para lhes desejar
o mais feliz dos casamentos.
Fiz uma pausa. Tu consegues, Eadlyn.
— Passando para as notícias mais tristes, a minha mãe, America
Schreave, rainha de Illéa, sofreu um grave ataque cardíaco.
Parei. Parecia que as palavras tinham criado uma barreira na minha
garganta, fazendo com que me fosse cada vez mais difícil falar.
— O seu estado é crítico e ela está sob supervisão médica constante.
Por favor, re...
Levei a mão à boca. Ia chorar. Ia perder o controlo na televisão e,
considerando tudo o que o Ahren me tinha dito sobre o que as pessoas
achavam de mim, parecer fraca era a última coisa de que precisava.
Olhei para baixo. A minha mãe precisava de mim. O meu pai
precisava de mim. Talvez, de certa forma, até o país precisasse de mim. Não
os podia desapontar. Limpando as lágrimas, continuei.
— Por favor, rezem para que ela recupere depressa, já que todos a
adoramos e ainda dependemos da sua orientação.
Respirei. Era o único modo de passar de um momento para o seguinte.
Inspirar, expirar.
— A minha mãe tem um grande respeito pela Seleção, o que, como
todos sabem, levou ao casamento longo e feliz dos meus pais. Como tal,
decidi honrar aquele que sei ser o seu desejo mais profundo e continuar com
a minha Seleção.
»Devido ao stresse que se instalou na nossa casa nas últimas vinte e
quatro horas, penso que o mais sensato será reduzir os meus pretendentes ao
grupo da Elite. O meu pai reduziu o seu grupo a seis, em vez de dez, devido
a circunstâncias excecionais e eu fiz o mesmo. Os seis cavalheiros seguintes
foram convidados a permanecer na Seleção: Sir Gunner Croft, Sir Kile
Woodwork, Sir Ean Cabel, Sir Hale Garner, Sir Fox Wesley e Sir Henri
Jaakoppi.
Estes nomes eram estranhamente reconfortantes, como se eu soubesse
o orgulho que eles tinham neste momento e pudesse sentir o seu calor, ainda
que à distância.
Estava quase no fim. Eles sabiam que o Ahren se tinha ido embora,
que a minha mãe podia morrer e que a Seleção ia continuar. Agora vinha a
notícia que me apavorava dar. Graças à carta do Ahren, eu sabia exatamente
o que o meu povo pensava de mim. Que tipo de resposta receberia?
— Com a minha mãe num estado tão delicado, o meu pai, o rei Maxon
Schreave, decidiu permanecer ao seu lado. — Aqui vai. — Assim, ele
nomeou-me regente até se sentir apto para retomar as suas funções. Tomarei
todas as decisões de Estado até nova indicação. É com pesar no coração que
assumo este papel, mas é um grande contentamento poder trazer um pouco
de paz aos meus pais.
»Serão dadas mais atualizações sobre todos estes assuntos, assim que
estiverem disponíveis. Obrigada pelo vosso tempo e tenham um bom dia.
As câmaras pararam de filmar e afastei-me para um dos lados do
palco, sentando-me numa das cadeiras normalmente reservadas para a
minha família. Sentia-me enjoada e, se pudesse, teria permanecido ali
sentada durante horas, tentando recuperar a compostura, mas havia muito a
ser feito. A primeira coisa da lista era ver os meus pais novamente e depois
iria trabalhar. A certa altura do dia também teria de me encontrar com a
Elite.
Parei abruptamente quando ia a sair do estúdio. O meu caminho estava
bloqueado por uma fila de cavalheiros. O primeiro rosto que vi foi o do
Hale. A sua expressão iluminou-se ao estender-me uma flor.
— Para si.
Olhei para a fila e vi que todos tinham flores na mão, algumas com as
raízes ainda visíveis. Apenas podia calcular que tinham ouvido os seus
nomes no anúncio, saído a correr para o jardim e depois vindo até aqui
abaixo.
— Seus idiotas — suspirei. — Obrigada.
Agarrei a flor do Hale e abracei-o.
— Eu sei que disse uma coisa todos os dias — murmurou ele —, mas
avise-me se precisar que sejam duas, está bem?
Apertei-o com um pouco mais de força.
— Obrigada.
O Ean foi o próximo e, apesar de apenas nos termos tocado durante as
fotos encenadas do nosso encontro, não pude deixar de o abraçar.
— Tenho a sensação de que foi forçado a fazer isto — murmurei.
— Tirei a minha de um vaso no corredor. Não diga aos empregados.
Dei-lhe palmadinhas nas costas e ele fez-me o mesmo.
— Ela vai ficar bem — prometeu ele. — Vocês todos vão.
O Kile tinha picado o dedo num espinho e manteve desajeitadamente a
mão que sangrava longe da minha roupa enquanto nos abraçávamos, o que
me fez rir e foi perfeito.
— Para sorrisos — disse o Henri e eu juntei a sua flor ao meu ramo
desorganizado.
— Bom, bom — respondi e ele riu-se para mim.
Até o Erik me tinha apanhado uma flor. Sorri-lhe ligeiramente ao
pegar-lhe.
— É um dente-de-leão — disse-lhe.
Ele encolheu os ombros.
— Eu sei. Alguns veem uma erva daninha, outros uma flor. Perspetiva.
Coloquei os braços à volta dele e consegui senti-lo a olhar para os
outros enquanto eu o segurava, parecendo desconfortável por receber o
mesmo tratamento que eles.
O Gunner engoliu em seco, sem conseguir dizer grande coisa, mas
abraçou-me gentilmente antes de eu seguir para o próximo.
O Fox tinha três flores na mão.
— Não consegui escolher.
Sorri.
— São todas lindas. Obrigada.
O abraço do Fox foi apertado, como se precisasse do apoio mais do
que os outros. Abracei-o enquanto olhava para a minha Elite.
Não, este processo não fazia sentido nenhum, mas conseguia perceber
como as coisas aconteciam, como o coração podia ser arrebatado no
processo. E essa era a minha esperança agora: que, de alguma forma, o
amor e o dever se pudessem unir e eu acabasse feliz no meio de tudo.
Capítulo 2

As mãos da minha mãe eram macias, quase como papel, de certo


modo. A sensação fez-me pensar em como a água suavizava as
extremidades de uma pedra. Sorri, pensando que ela devia ter sido uma
pedra muito áspera em tempos.
— Costumavas cometer erros? — perguntei. — Dizer as palavras
erradas, fazer as coisas erradas?
Esperei por uma resposta, mas nada surgiu além do zumbido do
equipamento e da batida do monitor.
— Bem, tu e o pai discutiam bastante, portanto deves ter estado errada
algumas vezes.
Segurei a mão dela com mais força, tentando aquecê-la na minha.
— Fiz todos os anúncios. Agora todos sabem que o Ahren se casou e
que tu estás um pouco... indisposta no momento. Reduzi os rapazes a seis.
Sei que é um corte grande, mas o pai disse que estava bem e que ele fez o
mesmo quando foi a vez dele, portanto ninguém pode ficar aborrecido. —
Suspirei. — De qualquer modo, tenho a sensação de que as pessoas vão
encontrar uma forma de ficarem aborrecidas comigo na mesma.
Pestanejei para afastar as lágrimas, receando que ela sentisse como eu
estava assustada. Os médicos achavam que o choque da partida do Ahren
tinha sido o catalisador do seu estado atual, embora eu não conseguisse
deixar de me perguntar se tinha contribuído para o seu stresse diário, como
gotas de veneno tão pequenas que ninguém percebe que ingeriu algo de
perigoso até ficar completamente subjugado.
— Enfim, vou para a minha primeira reunião do conselho assim que o
pai voltar. Ele diz que não deve ser muito difícil. Sinceramente, acho que o
general Leger teve o trabalho mais difícil de todos hoje, o de tentar fazer o
pai comer, porque ele lutou imenso para ficar aqui contigo. Mas o general
insistiu e o pai acabou por ceder. Estou feliz por ele estar aqui. O general
Leger, quero dizer. É um pouco como ter um pai de reserva.
Segurei na mão dela com um pouco mais de força e inclinei-me para
mais perto, sussurrando:
— Por favor, não me faças precisar de uma mãe de reserva, está bem?
Ainda preciso de ti. Os rapazes ainda precisam de ti. E o pai... ele parece
capaz de se desfazer em pedaços se partires. Portanto, quando for altura de
acordares, tens de voltar, está bem?
Esperei que a boca dela se contraísse ou que os seus dedos se
movessem, qualquer coisa que provasse que ela me conseguia ouvir. Nada.
Nesse momento, o meu pai irrompeu pela porta com o general Leger
no seu encalço. Limpei as lágrimas do rosto, esperando que ninguém
notasse.
— Vês — disse o general Leger. — Ela está estável. Os médicos
viriam a correr se algo mudasse.
— Mesmo assim, prefiro ficar aqui — disse o meu pai com firmeza.
— Pai, não estiveste longe nem dez minutos. Chegaste a comer?
— Comi. Diz-lhe, Aspen.
O general Leger suspirou.
— Vamos dizer que sim.
O meu pai lançou-lhe um olhar que poderia ser ameaçador para alguns,
mas que apenas fez o general sorrir.
— Vou ver se posso trazer alguma comida para aqui para não teres de
sair.
O meu pai assentiu:
— Cuida da minha menina.
— Claro. — O general Leger piscou-me o olho e eu levantei-me e
segui-o para fora do quarto, olhando para a minha mãe só para confirmar.
Ainda a dormir.
No corredor, ele ofereceu-me o braço.
— Estás pronta, minha ainda-não rainha?
Aceitei o braço e sorri.
— Não. Vamos lá.
Enquanto nos dirigíamos para a sala de reuniões, quase pedi ao general
Leger para me levar a dar mais uma volta pelo andar. O dia já estava a ser
tão avassalador que não tinha a certeza se ia conseguir fazer isto.
Tolice, disse para mim mesma. Já participaste nestas reuniões dezenas
de vezes. Pensaste quase sempre as mesmas coisas que o teu pai disse. Sim,
esta é a tua primeira vez na liderança, mas esse foi sempre o teu destino. E
ninguém vai ser severo contigo hoje, por amor de Deus; a tua mãe acabou
de ter um ataque cardíaco.
Abri as portas com determinação, com o general Leger logo atrás de
mim. Fiz questão de acenar com a cabeça para todos os cavalheiros,
enquanto passava. O Sir Andrews, o Sir Coddly, o Sr. Rasmus e um
punhado de outros homens, que conhecia há anos, estavam sentados a
organizar as suas canetas e papéis. A Lady Brice pareceu orgulhosa por me
ver dar a volta até ao lugar do meu pai, assim como o general, que se sentou
ao lado dela.
— Bom dia. — Assumi o meu lugar à cabeceira da mesa, olhando para
a fina pasta diante de mim. Graças a Deus que hoje a agenda parecia leve.
— Como está a sua mãe? — perguntou a Lady Brice solenemente.
Devia ter escrito a resposta num cartaz para poder parar de a repetir.
— Ainda está a dormir. Não tenho a certeza de quão grave é o seu
estado neste momento, mas o meu pai está ao lado dela e faremos questão
de informar toda a gente se houver alguma mudança.
A Lady Brice sorriu, tristemente.
— Tenho a certeza de que ela vai ficar bem. Sempre foi muito forte.
Tentei esconder a minha surpresa, pois não tinha percebido que a Lady
Brice conhecia a minha mãe assim tão bem. Na realidade, eu própria não
sabia grande coisa sobre a Lady Brice, mas o seu tom de voz era sincero.
Fiquei feliz por a ter ao meu lado, no momento.
Assenti com a cabeça.
— Vamos fazer o nosso trabalho para lhe poder dizer que o meu
primeiro dia de trabalho foi, pelo menos, ligeiramente produtivo.
Ouviram-se alguns risinhos leves na sala, em resposta ao meu
comentário, mas o meu sorriso desvaneceu-se rapidamente quando li a
primeira página que me fora dada.
— Espero que isto seja uma piada — disse, secamente.
— Não, Vossa Alteza.
Voltei o olhar para o Sir Coddly.
— Achamos que esta foi uma ação deliberada para debilitar Illéa e,
visto que nem o rei nem a rainha deram o seu consentimento, a França
essencialmente roubou o seu irmão. Este casamento é uma traição, portanto
não nos resta outra opção a não ser declarar guerra.
— Senhor, posso garantir que isto não foi uma traição. A Camille é
uma rapariga sensata. — Revirei os olhos, odiando ter de o admitir.
— O Ahren é que é o romântico e tenho a certeza de que ela foi
empurrada para isto e não o contrário.
Amarfanhei a declaração de guerra, não querendo pensar naquilo nem
mais um instante.
— Minha senhora, não pode fazer isso — insistiu o Sir Andrew.
— As relações entre Illéa e a França são tensas há anos.
— Isto é uma situação mais pessoal do que política — sugeriu a Lady
Brice.
O Sir Coddly agitou a mão no ar.
— O que torna tudo muito pior. A rainha Daphne está a causar mais
sofrimento emocional à família real sob a pretensão de que não reagiremos.
Desta vez, temos de o fazer. Diga-lhe, general!
A Lady Brice abanou a cabeça frustrada enquanto o general Leger
falava.
—Tudo o que posso dizer, Vossa Alteza, é que podemos colocar as
tropas no céu e em terra em vinte e quatro horas, se assim o ordenar.
Contudo, eu certamente não a aconselharia a dar essa ordem.
O Andrews bufou.
— Leger, diga-lhe quais são os perigos que ela está a enfrentar.
Ele encolheu os ombros.
— Não vejo nenhum perigo aqui. O irmão dela casou-se.
— Pelo contrário — questionei —, não deveria um casamento
aproximar ainda mais os nossos dois países? Não era por isso que as
princesas eram entregues em casamento durante anos?
— Mas esses eram planeados — afirmou o Coddly num tom que
implicava que eu era um pouco ingénua demais para a conversa em questão.
— Tal como este — retorqui. — Todos sabíamos que o Ahren e a
Camille se iriam casar um dia. Apenas aconteceu mais depressa do que o
esperado.
— Ela não entende — murmurou ele para o Andrews.
O Sir Andrews olhou para mim, abanando a cabeça.
— Vossa Alteza, isto é traição.
— Senhor, isto é amor.
O Coddly bateu com o punho na mesa.
— Ninguém a levará a sério se não agir com decisão.
Houve um momento de silêncio, assim que a voz dele parou de ecoar
pela sala, e a mesa inteira manteve-se imóvel.
— Muito bem — respondi calmamente. — O senhor está despedido.
O Coddly riu-se, olhando para os outros cavalheiros da mesa.
— Vossa Alteza não me pode despedir.
Inclinei a cabeça, olhando-o fixamente.
— Garanto-lhe que posso. Não há ninguém aqui que me seja superior
neste momento e o senhor é facilmente substituível.
Apesar de tentar ser discreta, vi a Lady Brice apertar os lábios,
claramente decidida a não se rir. Sim, eu tinha sem dúvida uma aliada nela.
— A princesa tem de lutar — insistiu ele.
— Não — respondi com firmeza. — Uma guerra acrescentaria uma
tensão desnecessária a um momento já bastante difícil e causaria o caos
entre nós e um país ao qual estamos agora unidos por casamento. Não
vamos lutar.
O Coddly baixou o queixo e semicerrou os olhos.
— Não acha que está a ser demasiado emotiva em relação a isto?
Pus-me de pé, fazendo a minha cadeira ranger atrás de mim com o
movimento.
— Vou assumir que o senhor não está a sugerir, com essa afirmação,
que estou, na realidade, a ser demasiado feminina sobre isto. Porque, sim,
estou a ser emotiva.
Marchei até ao lado oposto da mesa com os olhos fixos no Coddly.
— A minha mãe está numa cama com tubos enfiados pela garganta, o
meu irmão gémeo está agora noutro continente e o meu pai está preso por
um fio.
Parando diante dele, continuei:
— Tenho dois irmãos mais novos para manter calmos no meio de tudo
isto, um país para gerir e seis rapazes no andar de baixo à espera que eu
ofereça a minha mão a um deles. — O Coddly engoliu em seco e eu senti
apenas uma pequena ponta de culpa pela satisfação que aquilo me deu. —
Portanto, sim, estou a ser emotiva neste momento. Qualquer pessoa com
alma, na minha posição, estaria. E o senhor é um idiota. Como se atreve a
tentar forçar-me a fazer algo tão monumental com base em algo tão
pequeno? Para todos os efeitos, eu sou a rainha e o senhor não me vai
coagir a nada.
Voltei para a cabeceira da mesa.
— General Leger?
— Sim, Vossa Alteza?
— Existe alguma coisa nesta agenda que não possa esperar até
amanhã?
— Não, Vossa Alteza.
— Ótimo. Estão todos dispensados. E sugiro que se lembrem de quem
manda aqui antes de nos voltarmos a encontrar.
Assim que terminei de falar, todos, com exceção da Lady Brice e do
general Leger, levantaram-se e fizeram-me uma vénia, bastante profunda,
notei.
— A princesa foi maravilhosa — insistiu a Lady Brice, assim que
ficámos os três sozinhos.
— Fui? Olhe para a minha mão. — Levantei-a.
— Está a tremer.
Cerrei os dedos num punho, determinada a parar de tremer.
— Tudo o que eu disse era verdade, não era? Não me podem forçar a
assinar uma declaração de guerra, podem?
— Não — garantiu o general Leger. — Como sabes, houve sempre
alguns membros do conselho que achavam que devíamos colonizar a
Europa. Acho que viram isto como uma oportunidade para tirar proveito da
tua experiência limitada, mas agiste corretamente.
— O meu pai não ia querer uma guerra. A bandeira do seu reinado tem
sido a paz.
— Exatamente. — O general Leger sorriu. — Ele ficaria orgulhoso por
te teres mantido firme. Na verdade, acho que sou capaz de lhe ir dizer.
— Será que devo ir também? — perguntei, subitamente desesperada
por ouvir o pequeno monitor a anunciar que o coração da minha mãe ainda
estava ali, a tentar.
— Tens um país para gerir. Trago-te notícias assim que puder.
— Obrigada — disse-lhe, enquanto ele saía da sala.
A Lady Brice cruzou os braços sobre a mesa.
— Sente-se melhor?
Abanei a cabeça.
— Eu sabia que este cargo iria dar muito trabalho. Já participei nos
trabalhos e observei o meu pai a fazer dez vezes mais do que eu. Mas
esperava ter mais tempo para ficar pronta. Iniciar as novas funções agora,
porque a minha mãe pode morrer, é demasiado. E, cinco minutos depois de
começar, ter de tomar uma decisão sobre uma guerra? Não estou preparada
para isto.
— Muito bem, primeiro o mais importante. A Eadlyn não tem de ser
perfeita ainda. Isto é temporário. A sua mãe vai ficar melhor, o seu pai vai
voltar ao trabalho e você vai voltar a aprender, com a vantagem de já ter
tido esta grande experiência. Pense nisto como uma oportunidade.
Deixei escapar um longo suspiro. Temporário. Oportunidade. Certo.
— Além disso, as coisas não dependem completamente de si. É para
isso que os seus assessores existem. Admito, hoje não deram grande ajuda,
mas estamos aqui para não ter de navegar sem um mapa.
Mordi o lábio, pensando.
— Está bem. Então, o que faço agora?
— Em primeiro lugar, cumpra a sua decisão e demita o Coddly. Isso
vai mostrar aos outros que não diz as coisas em vão. Sinto-me um pouco
mal por ele, mas acho que o seu pai só o manteve como uma espécie de
advogado do diabo, para o ajudar a ver todos os lados de uma questão.
Acredite em mim, ele não vai deixar grandes saudades — confessou ela
secamente. — Em segundo lugar, considere este tempo como um período de
treino prático para o seu reinado. Comece por se cercar de pessoas em quem
sabe que pode confiar.
Suspirei.
— Sinto que todos me deixaram.
Ela abanou a cabeça.
— Olhe com mais atenção. Provavelmente, tem amigos em lugares
onde nunca esperou encontrá-los.
Mais uma vez, dei por mim a vê-la sob uma nova luz. Ela estava no
cargo há mais tempo do que qualquer um, sabia o que o meu pai iria decidir
na maioria das situações e era, no mínimo, mais uma mulher na sala.
A Lady Brice fitou-me, forçando-me a concentrar-me.
— Quem conhece que será sempre honesto consigo? Que estará ao seu
lado, não porque você é da realeza, mas porque é a pessoa que é?
Sorri, sabendo exatamente para onde iria quando saísse da sala.
Capítulo 3

— Eu?
— Você.
— Tem a certeza?
Agarrei a Neena pelos ombros.
— Você diz-me sempre a verdade, mesmo quando não a quero ouvir.
Tolera o meu pior e é demasiado inteligente para passar os dias a dobrar as
minhas roupas.
Ela fez um sorriso rasgado, pestanejando para reprimir as lágrimas.
— Dama de companhia... O que é que isso quer dizer?
— Bem, é uma mistura de acompanhante, o que já é, com alguém que
ajuda com o lado menos glamoroso do meu trabalho, como agendar
compromissos e garantir que eu me lembro de comer.
— Acho que consigo lidar com isso — disse ela, sorrindo.
— Oh, oh, oh, e — ergui as mãos, preparando-a para, provavelmente, a
parte mais emocionante do trabalho — isso significa que já não tem de usar
esse uniforme. Portanto, vá mudar de roupa.
A Neena soltou uma risadinha.
— Não sei se tenho alguma coisa adequada. Mas garanto que vou
arranjar algo para amanhã.
— Disparate. Basta ir ao meu armário.
Ela encarou-me boquiaberta.
— Não posso.
— Hum, pode e deve. — Apontei para as portas amplas. — Vista-se,
vá ter comigo ao escritório e resolveremos o que for surgindo, um dia de
cada vez.
Ela assentiu com a cabeça e, como se o tivéssemos feito um milhar de
vezes, abraçou-me.
— Obrigada.
— Obrigada eu — insisti.
— Não a vou desiludir.
Afastei-me, observando-a.
— Eu sei. A propósito, a sua primeira tarefa é escolher-me uma nova
aia.
— Não há problema.
— Excelente. Até breve.
Saí do quarto, sentindo-me melhor por saber que tinha pessoas ao meu
lado. O general Leger seria a minha ligação com a minha mãe e o meu pai,
a Lady Brice seria a minha conselheira principal e a Neena ia ajudar-me a
lidar com a carga de trabalho.
Tinha passado menos de um dia e já percebia por que razão a minha
mãe achara que eu ia precisar de um companheiro. Ainda tinha a intenção
de encontrar um. Só precisava de algum tempo para descobrir como.
***
Nessa tarde, esperei pelo Kile do lado de fora do Salão dos Homens,
enquanto caminhava preocupada de um lado para o outro. De todas as
minhas relações com os Selecionados, a nossa era a mais complicada e,
ainda assim, o lugar mais fácil por onde começar.
— Olá — disse ele, aproximando-se para me dar um abraço. Não pude
deixar de sorrir ao pensar que, se ele tivesse tentado fazer o mesmo há um
mês, eu teria chamado os guardas para o levarem. — Como estás?
Fiz uma pausa.
— É engraçado, foste o único que perguntou. — Separámo-nos. —
Estou bem, acho. Pelo menos, enquanto estou ocupada. Mas assim que as
coisas acalmam fico uma pilha de nervos. O meu pai está destroçado. E
sinto-me arrasada por o Ahren não ter voltado. Pensei que voltaria pela
minha mãe, mas nem sequer telefonou. Não devia, pelo menos, ter feito
isso?
Engoli em seco, sabendo que estava a ficar demasiado enervada.
O Kile agarrou-me na mão.
— Pronto, vamos pensar nisso. Ele foi para França e casou-se, tudo
num só dia. Deve haver uma tonelada de papelada oficial e outras coisas
para pôr em ordem. E há a hipótese de ele nem sequer ter sabido ainda o
que aconteceu.
Acenei com a cabeça.
— Tens razão. E eu sei que ele se importa. Deixou-me uma carta
demasiado honesta para eu duvidar disso.
— Vês, aí está. E ontem à noite o teu pai parecia prestes a precisar de
ser levado para o hospital também. Estar com a tua mãe e acompanhá-la dá-
lhe, provavelmente, uma sensação de controlo quando não há
absolutamente nenhum. Ela já ultrapassou o pior e sempre foi uma lutadora.
Lembras-te da visita daquele embaixador?
Fiz uma careta.
— Estás a falar daquele da União Paraguai-Argentina?
— Sim! — exclamou ele. — Ainda me lembro perfeitamente da
situação. Ele era tão rude com toda a gente, a cair de bêbado ao meio-dia
dois dias seguidos. Até que a tua mãe o agarrou finalmente pelas orelhas e o
atirou pela porta da frente.
Abanei a cabeça.
— Eu sei. Também me lembro dos intermináveis telefonemas que se
seguiram, para tentar acalmar as coisas com o presidente deles.
O Kile ignorou esse detalhe.
— Esquece isso. Lembra-te só que a tua mãe não deixa que as coisas
lhe aconteçam. Quando algo lhe tenta arruinar a vida, ela atira-o para a rua.
Sorri.
— É verdade.
Ficámos ali em silêncio por um momento e foi agradável e calmo.
Nunca me tinha sentido tão grata.
— Hoje estou ocupada no resto do dia, mas talvez pudéssemos passar
algum tempo juntos amanhã à noite?
Ele assentiu.
— Claro.
— Há muita coisa para conversar.
Ele franziu as sobrancelhas.
— Como o quê?
Virámo-nos ao mesmo tempo, notando a figura perto de nós.
— Desculpe-me, Vossa Alteza — disse o guarda com uma reverência
mas tem uma visita.
— Uma visita?
Ele acenou com a cabeça, não me dando qualquer informação sobre
quem poderia ser.
Suspirei.
— Muito bem. Falo contigo depois, está bem?
O Kile apertou-me rapidamente a mão.
— Claro. Avisa-me se precisares de alguma coisa.
Sorri enquanto me afastava, sabendo que ele falava a sério.
Subconscientemente, tinha a certeza de que, se eu precisasse deles, todos os
jovens daquela sala correriam para o meu lado, e isso era uma pequena
réstia de luz num dia bastante sombrio.
Contornei as escadas, tentando adivinhar quem estaria ali. Se fosse
alguém da família teria sido levado para uma sala e se fosse um governador,
ou algum outro visitante oficial, teria entregado um cartão. Quem era essa
pessoa tão importante que nem sequer podia ser anunciada?
Desci para o primeiro andar e a resposta à minha pergunta encontrava-
se ali, com um sorriso luminoso que fez com que me faltasse a respiração.
O Marid Illéa não colocava os pés no palácio há anos. A última vez
que o vira era um pré-adolescente desengonçado, que ainda não conseguia
manter uma conversa normal. Mas as suas bochechas redondas tinham-se
transformado num queixo bem definido e os seus braços e pernas de virar
tripas tinham ganho músculo, preenchendo o seu fato na perfeição. Ele
sustentou o meu olhar enquanto eu me aproximava e, embora as suas mãos
estivessem ocupadas a segurar um cesto atulhado de coisas, curvou-se e
sorriu como se estivesse completamente desimpedido.
— Vossa Alteza — disse ele. — Lamento ter vindo sem avisar, mas
assim que soubemos da sua mãe achámos que tínhamos de fazer alguma
coisa. Portanto...
Ele estendeu-me o cesto. Estava cheio de presentes. Flores, livros
finos, potes de sopa com fitas em volta das tampas e até alguns produtos de
padaria com tão bom aspeto que tive dificuldade em não agarrar num.
— Marid — disse eu em forma de saudação, pergunta e aviso, tudo ao
mesmo tempo. — Isto é muito mais do que o necessário, considerando as
circunstâncias.
Ele encolheu os ombros.
— Os desacordos não significam uma perda de compaixão. A nossa
rainha está doente e isto era o mínimo que podíamos fazer.
Sorri, comovida pela sua súbita aparição. Gesticulei para um guarda.
— Leve isto para a ala hospitalar, por favor.
Ele agarrou no cesto de presentes e eu voltei-me novamente para o
Marid.
— Os seus pais não quiseram vir?
Ele enfiou as mãos nos bolsos e fez uma careta.
— Recearam que a visita parecesse mais política do que pessoal.
Acenei com a cabeça.
— É compreensível. Mas, por favor, diga-lhes para não se preo‐
cuparem com isso no futuro. Ainda são bem-vindos aqui.
O Marid suspirou.
— Eles não achavam que fossem, não depois da sua... saída.
Apertei os lábios, lembrando-me de tudo claramente.
O August Illéa e o meu pai tinham trabalhado juntos depois de os meus
avós morrerem, tentando dissolver as castas o mais depressa possível.
Quando o August se queixou de que a mudança não estava a acontecer
suficientemente depressa, o meu pai puxou dos galões e disse-lhe para
respeitar o seu plano. Quando o meu pai não conseguiu eliminar o estigma
da pertença a uma casta inferior, o August disse-lhe que ele tinha de tirar o
seu «rabo mimado» do palácio e ir para a rua. O meu pai foi sempre um
homem paciente e, do que me lembrava do August, este estava sempre
agitado. No final, houve uma grande discussão e o August e a Georgia
arrumaram as suas coisas, incluindo o seu filho tímido, e partiram no meio
de um furacão de mágoa e raiva.
Desde então, eu tinha ouvido a voz do Marid uma ou duas vezes na
rádio, fazendo comentários políticos ou dando conselhos empresariais, mas
era estranho ouvir agora aquela voz sincronizada com os movimentos dos
lábios e vê-lo sorrir com tanta facilidade, quando a minha principal
memória dele era a de um rapaz encolhido.
— Sinceramente, não entendo por que razão os nossos pais não se têm
falado recentemente. Já viu, sem dúvida, os problemas com a discriminação
pós-castas que temos tentado acalmar. Achei que um deles poderia ceder e
procurar o outro. Por esta altura, já deixou de ser uma questão de orgulho.
O Marid estendeu um braço.
— Talvez pudéssemos caminhar e conversar?
Entrelacei o meu braço no dele e começámos a andar pelo corredor.
— Bom, Vossa Alteza...
— Por favor, Marid. É Eadlyn. Conhecemo-nos desde antes de eu
nascer.
Ele sorriu.
— É verdade. Ainda assim, você é a regente agora e parece mal não a
tratar adequadamente.
— E como o devo chamar?
— Nada exceto um súbdito leal. Gostaria de lhe oferecer toda a ajuda
possível neste momento de tensão. E sei que a dissolução das castas não foi
tão perfeita como todos esperavam, nem sequer no início. Passei anos a
ouvir o público. Acho que os ouvi com bastante clareza e se o meu
comentário for útil diga-me, por favor.
Arqueei as sobrancelhas enquanto considerava as suas palavras. Sabia
atualmente muito mais sobre as vidas das pessoas comuns graças à Seleção,
mas um especialista em opinião pública poderia ser uma ferramenta perfeita
para ter no meu arsenal. Especialmente considerando o que o Ahren tinha
dito na sua carta.
Cada vez que me lembrava das palavras dele era como se levasse um
soco, mas sabia que ele não me teria dito que as pessoas me desprezavam se
não tivesse pensado que isso me poderia ser útil. Apesar da sua partida, eu
confiava nisso.
— Obrigada, Marid. Se eu puder fazer alguma coisa para aliviar o
stresse que esta situação trouxe para o meu pai, isso seria uma grande
bênção. Gostaria que o país estivesse o mais calmo possível quando ele
estiver pronto para regressar ao trabalho. Entrarei em contacto consigo.
Ele tirou um cartão do bolso e entregou-mo.
— É o meu número pessoal. Ligue quando quiser.
Sorri.
— Será que os seus pais não vão ficar aborrecidos por me estar a
ajudar? Isso não é confraternizar com o inimigo?
— Não, não — disse ele, num tom ligeiro. — Os nossos pais tinham o
mesmo objetivo. Apenas tinham métodos diferentes de o alcançar. E agora,
com a sua mãe doente, não devia ter de se preocupar tanto com coisas que
são solucionáveis e a moral do país é, certamente, uma delas. Agora, mais
do que nunca, acho que os nossos pais aprovarão o facto de trabalharmos
juntos.
— Esperemos que sim — disse eu. — Há muitas coisas a quebrarem-
se ultimamente. Alguns remendos far-me-iam bem.
Capítulo 4

Entrei no banho, notando que não havia alfazema, nem bolhas, nem
nada para perfumar a água. A Eloise era silenciosa e rápida, mas não era a
Neena. Suspirei. Não importava. Afinal, isto era pouco mais do que um
pequeno espaço onde eu podia, por fim, parar de fingir que sabia o que
estava a fazer. Puxei os joelhos para o peito, finalmente livre para chorar.
O que é que ia fazer? O Ahren já não estava aqui para me guiar e eu
temia poder fazer erros atrás de erros sem ele. E porque é que ainda não
tinha ligado? Porque é que não vinha no primeiro voo a caminho de casa?
O que é que eu faria se tirassem os tubos da garganta da minha mãe e
ela não conseguisse respirar sozinha? De repente, percebi que, embora
nunca tivesse pensado em casar e ter filhos, de um modo específico e
pessoal, sempre a imaginara a dançar no meu casamento e ternamente
debruçada sobre o meu primogénito. E se ela não estivesse lá para fazer
isso?
Como podia eu tomar o lugar do meu pai? O dia de hoje desgastara-me
até aos ossos. Não me conseguia imaginar a fazer isto todos os dias durante
as próximas semanas, quanto mais durante os anos em que teria de reinar
quando herdasse verdadeiramente o trono.
E como é que ia escolher um marido? Quem era a melhor escolha?
Quem teria a maior aprovação do público? E seria essa sequer uma pergunta
justa? A pergunta certa para se fazer?
Esfreguei os olhos com a palma da mão, como uma criança, e desejei
poder voltar a não ter qualquer noção da quantidade de coisas más que se
podiam acumular num único dia.
Tinha poder e não fazia ideia de como o usar. Era uma governante que
não sabia como liderar. Uma gémea que estava sozinha. Uma filha com pais
ausentes. Tinha meia dúzia de pretendentes e não sabia como era estar
apaixonada.
A tensão que me constringia o coração era suficiente para esmagar
qualquer um. Esfreguei a dor no meu peito, perguntando-me se teria sido
assim que tudo começara para a minha mãe. Sentei-me, espalhando a água e
expulsando o pensamento da minha cabeça.
Tu estás bem. Ela está bem. Só tens de continuar.
Vesti-me e estava quase pronta para me ir deitar quando ouvi uma
pancada tímida na porta.
— Eady? — chamou alguém.
— Osten?
Ele enfiou a cabeça pela porta, com o Kaden logo atrás, e eu corri para
eles.
— Vocês estão bem?
— Estamos bem — assegurou-me o Kaden. — E não estamos com
medo nem nada.
— Nada mesmo — acrescentou o Osten.
— Mas não tivemos notícias da mãe e pensámos que talvez soubesses
de alguma coisa.
Dei uma palmada na cabeça.
— Desculpem. Devia ter-vos dito o que se passava. — Praguejei
contra mim mesma, lembrando-me de que tinha acabado de passar vinte
minutos num banho em vez de usar esse tempo para ir procurar os meus
irmãos. — Ela está a recuperar. — Tentei escolher as palavras com cuidado.
— Estão a mantê-la a dormir para se poder curar. Vocês sabem como é a
mãe. Se estivesse acordada, ia andar a correr atrás de nós para garantir que
estávamos a fazer tudo o que devíamos. Desta forma, ela descansa o
suficiente para estar saudável quando acordar.
— Oh. — Os ombros do Osten endireitaram-se e pude ver que, por
mais difícil que fosse para mim, era ainda mais difícil para eles.
— E o Ahren? — O Kaden esgravatava as unhas, uma coisa que nunca
o vira fazer.
— Ainda não disse nada, mas tenho a certeza de que é só porque se
está a acomodar. Afinal, é um homem casado.
A expressão do Kaden mostrou que não estava satisfeito com a
resposta.
— Achas que ele vai voltar?
Respirei fundo.
— Não vamos pensar nisso esta noite. Tenho a certeza de que ele vai
ligar em breve e então vai-nos contar tudo. Por agora, tudo o que vocês
precisam de saber é que o nosso irmão está feliz, a nossa mãe vai ficar bem
e eu tenho tudo sob controlo. Está bem?
Eles sorriram.
— Está bem.
A expressão do Osten passou de perfeitamente bem para absolu‐
tamente destroçada em segundos e os seus lábios começaram a tremer.
— A culpa é minha, não é?
— O que é culpa tua? — Ajoelhei-me à frente dele.
— A mãe. É culpa minha. Ela dizia-me sempre para me acalmar um
bocadinho e depois passava a mão pelo cabelo como se estivesse esgotada.
É culpa minha. Cansei-a demais.
— Pelo menos não a incomodavas tanto com a escola — disse o
Kaden baixinho. — Eu estava sempre a aborrecê-la, a pedir livros e
professores melhores e fazia-a responder a perguntas quando ela tinha
outras coisas para fazer. Ocupava-lhe o tempo todo.
Estávamos todos a culpar-nos, portanto. Perfeito.
— Osten, não penses assim. Nunca — insisti, puxando-o para o
abraçar. — A mãe é uma rainha. Se virmos bem, tu eras a parte menos
enervante da vida dela. Sim, é difícil ser mãe, mas ela tinha-nos sempre a
nós quando precisava de uma gargalhada. E quem é, de longe, o mais
engraçado de nós os quatro?
— Eu. — A voz dele era fraca, mas sorriu um pouco enquanto limpava
o nariz.
— Exatamente. E, Kaden, achas que a mãe preferia que lhe fizesses
uma dúzia de perguntas ou que andasses pela vida com as respostas
erradas?
Ele mexericou um pouco mais nos dedos enquanto pensava no assunto.
— Queria que eu fosse ter com ela.
— Lá está. Vamos ser sinceros, somos um grupo bastante intenso,
certo? — O Osten riu-se e a expressão do Kaden iluminou-se. — Mas tudo
pelo qual a fizemos passar foi bem-vindo. Ela preferia forçar-me a aprender
caligrafia do que nunca ter tido uma filha. Preferia ter sido a tua
enciclopédia viva do que não falar connosco. Preferia ter de implorar para
te sentares quieto do que ter apenas três filhos. Nada disto é por nossa causa
— prometi.
Esperei que se virassem e fugissem, de modo a esconderem esta
pequena brecha na sua armadura. Mas eles não se moveram. Suspirei para
mim mesma, sabendo do que estavam à espera e percebendo que estava
preparada para perder um pouco do meu muito necessário sono por eles.
— Querem ficar aqui hoje à noite?
O Osten correu para a minha cama.
— Sim!
Abanei a cabeça. O que é que eu ia fazer com estes rapazes? Subi para
a cama e o Kaden colou-se às minhas costas, enquanto o Osten pousava a
cabeça na almofada à minha frente. Percebi que a luz da casa de banho
ainda estava acesa, mas ignorei-a. Precisávamos de um pouco de luz neste
momento.
— Não é o mesmo sem o Ahren — disse o Kaden baixinho.
O Osten abraçou-se a si mesmo, enrolando-se.
— Sim. Não parece o mesmo.
— Eu sei. Mas não se preocupem. Vamos encontrar um novo normal.
Vão ver.
De alguma forma, por eles, eu faria com que isso acontecesse.
Capítulo 5

— Bom dia, Vossa Alteza.


— Bom dia — respondi para o mordomo. — Café forte, por favor, e o
que quer que o chef tiver preparado para a Elite está bem.
— Com certeza.
Ele voltou com panquecas de mirtilos, salsichas e um ovo cozido
cortado ao meio. Depeniquei a minha refeição, enquanto folheava os
jornais. Havia notícias de mau tempo numa zona e alguma especulação
sobre com quem eu iria casar noutro lado, mas, em geral, parecia que toda a
nação tinha perdido a vontade de fazer outra coisa a não ser preocupar-se
com a minha mãe. Senti-me grata. Depois da carta do Ahren, tinha a certeza
de que o país se iria revoltar por eu ter sido nomeada regente. Parte de mim
ainda temia que o ódio da nação se voltasse contra mim sem dó nem
piedade, se desse a mínima indicação de que poderia falhar.
— Bom dia hoje! — disse alguém. Não alguém. Teria reconhecido a
saudação do Henri até morta.
Ergui a cabeça, sorrindo, e acenei para ele e para o Erik. De certo
modo, gostava que o Henri parecesse ser imune à tristeza que pairava sobre
o palácio. E o Erik parecia ser a mão que o guiava de volta para a Terra,
calmo e gentil, independentemente do que acontecesse à sua volta.
O Osten e o Kaden entraram com o Kile, de cabeças juntas enquanto
avançavam. O Kile estava a tentar fazê-los sorrir, conseguia percebê-lo pela
sua linguagem corporal, e, por sua vez, eles davam-lhe pequenos sorrisos de
lábios apertados. O Ean entrou com o Hale e o Fox e fiquei agradavelmente
surpreendida ao vê-lo, finalmente, interagir com alguns dos outros. O
Gunner vinha atrás deles, como se tivesse sido esquecido. Mantivera-o na
Elite porque não me conseguia esquecer do modo como o seu poema me
tinha feito rir. Mas, para além disso, mal o conhecia. Ia ter de me esforçar
mais com ele, com todos eles.
Os meus irmãos sentaram-se juntos, nos seus lugares do costume, mais
contidos do que o habitual. Ver a mesa da nossa família tão vazia enviava
uma pontada de tristeza por todo o meu corpo. Esse tipo de dor, calmo e
silencioso, pode absorver-nos tão depressa que nem notamos. Podia vê-lo a
tentar invadir os meus irmãos agora, no modo como as suas cabeças
estavam um pouco mais baixas, provavelmente sem sequer terem
consciência de que o estavam a fazer.
— Osten? — Ele olhou para mim e pude sentir os olhos da Elite sobre
nós. — Lembras-te de quando a mãe nos fez panquecas?
O Kaden começou a rir, virando-se para os outros para contar a
história.
— A mãe costumava cozinhar quando era pequena e, de vez em
quando, fazia comida para nós, só por brincadeira. A última vez que tentou
foi há mais ou menos quatro anos.
Sorri.
— Ela sabia que estava destreinada, mas quis fazer-nos panquecas de
mirtilos. O problema foi que quis colocar as bagas nas panquecas de modo
a formarem estrelas, flores e caras, mas deixou a massa na frigideira
durante tanto tempo, enquanto colocava as bagas, que quando virou as
panquecas estavam todas queimadas.
O Osten riu-se.
— Eu lembro-me! Lembro-me das panquecas crocantes!
Ouvi risinhos da Elite.
— E tu foste má, nem sequer provaste uma — acusou o Kaden.
Acenei com a cabeça, envergonhada.
— Foi para me proteger.
— Na verdade, até eram bastante boas. Crocantes, mas boas. — O
Osten mordeu uma das panquecas à frente dele. — Fazem com que estas
pareçam moles.
Ouvi uma risada baixa e vi que o Fox estava a abanar a cabeça.
— O meu pai também é um cozinheiro terrível — disse ele, projetando
a voz. — Fazemos muitos grelhados e ele está sempre a dizer que estão
«carbonizados». — Fox levantou os dedos para imitar aspas.
— Ele quer dizer queimados, não é? — perguntou o Gunner.
— Sim.
— O meu pai — disse o Erik timidamente. Fiquei surpreendida por ele
se querer juntar à conversa e dei por mim a apoiar a cabeça no braço,
atraída. — Ele e a minha mãe têm um prato que fazem um para o outro e
que inclui fritar. Na última vez que o fez, ele saiu da sala enquanto estava a
cozinhar e o fumo era tanto que tiveram de ir viver comigo durante dois
dias, enquanto arejavam a casa.
— Tens um quarto extra? — perguntou o Kile.
O Erik abanou a cabeça.
— Não. Por isso, a minha sala passou a ser o meu quarto, o que era
ótimo quando a minha mãe acordava às seis da manhã e decidia começar a
limpar.
O Gunner riu-se em concordância.
— Porque é que os pais fazem sempre isso? E sempre no dia em que
podemos dormir até mais tarde?
Semicerrei os olhos.
— Não pode simplesmente dizer que não?
O Fox riu-se descontroladamente.
— Talvez Vossa Alteza possa.
Eu estava consciente de que estava a ser provocada, mas sabia que era
tudo na brincadeira.
O Hale declarou.
— Falando nisso, mais alguém tem receio de ficar incrivelmente
mimado se perder e tiver de voltar para casa depois de viver assim? — Fez
um gesto para a mesa e o salão.
— Eu não — respondeu o Kile sem rodeios e os rapazes irromperam
em gargalhadas.
O salão dissolveu-se em histórias e comentários, em que o fim de cada
frase provocava uma nova lembrança em alguém. A conversa ficou tão
barulhenta e os risos tão turbulentos que ninguém reparou na aia solitária
que avançava pela sala. Ela fez uma reverência e inclinou o rosto perto do
meu.
— A sua mãe está acordada.
Um turbilhão de emoções tomou conta de mim, uma dúzia de
sentimentos, nenhum dos quais eu conseguia quase identificar, exceto a
sensação geral de alegria.
— Obrigada! — Corri para fora do salão, demasiado temerosa para
esperar pelo Kaden e pelo Osten.
Os meus pés voaram pelos corredores e irrompi pela ala hospitalar,
parando apenas para me preparar assim que cheguei à porta dela. Abri-a
lentamente, reparando imediatamente no monitor cardíaco, ainda a registar
todas as batidas, e no modo como o ritmo aumentou um pedacinho quando
os nossos olhos se encontraram.
— Mãe? — sussurrei.
O meu pai olhou por cima do ombro, a sorrir, embora os seus olhos
estivessem vermelhos e cheios de lágrimas.
— Eadlyn — sussurrou a minha mãe, estendendo a mão.
Fui até junto dela, mas as lágrimas nos meus olhos turvavam tanto a
minha visão que dificilmente a conseguia distinguir.
— Olá, mãe. Como estás? — Entrelacei os meus dedos nos dela,
tentando não agarrar com muita força.
— Dói um pouco. — O que significava que devia doer muito.
— Bem, demora o tempo que for preciso até te sentires melhor, está
bem? Sem pressas.
— Como estás?
Endireitei-me, na esperança de a convencer.
— Está tudo sob controlo e o Kaden e o Osten estão ótimos. Tenho a
certeza de que vêm mesmo atrás de mim. E tenho um encontro hoje à noite.
— Bom trabalho, Eady. — O meu pai sorriu-me e olhou novamente
para a minha mãe. — Viste, querida? Nem sequer sou preciso lá fora. Posso
ficar aqui contigo.
— O Ahren? — perguntou a minha mãe, respirando fundo a seguir.
Fiquei cabisbaixa. Abri a boca para lhe dizer que não sabíamos nada
dele, mas o meu pai falou.
— Ele ligou esta manhã.
Fiquei ali, atordoada.
— Oh?
— Espera poder voltar para casa em breve, mas disse que havia
algumas complicações, embora estivesse um pouco agitado demais para
explicar quais eram. Disse-me para te dizer que te ama.
Eu esperava que aquelas palavras fossem para mim, mas o meu pai
estava a olhar diretamente para a minha mãe enquanto falava.
— Quero o meu filho — disse a minha mãe, com a voz embargada.
— Eu sei, querida. Em breve. — O meu pai esfregou a mão da minha
mãe.
— Mamã? — O Osten entrou no quarto e o seu rosto mostrava que
mal continha a sua excitação. O Kaden fungava, mantendo-se direito como
se estivesse acima de chorar.
— Olá. — A minha mãe conseguiu dar-lhes um enorme sorriso e,
quando o Osten se inclinou para a abraçar, fez uma careta de dor mas não
deixou escapar um som.
— Temo-nos portado muito bem — prometeu ele.
A minha mãe sorriu.
— Então parem com isso imediatamente.
Rimo-nos.
— Olá, mãe. — O Kaden beijou-lhe a bochecha, parecendo ter medo
de lhe tocar.
Ela levantou a mão para lhe acariciar o rosto. Parecia ficar mais forte a
cada segundo, simplesmente por nos ver. Perguntei-me o que teria feito se o
Ahren estivesse aqui. Saltaria da cama?
— Queria que soubessem que estou bem. — O seu peito subia e descia
de forma agressiva, mas o seu sorriso não vacilou. — Acho que amanhã
posso voltar para o andar de cima.
O meu pai assentiu rapidamente.
— Sim, se o dia de hoje decorrer sem incidentes, a vossa mãe pode
recuperar no quarto dela.
— Isso é mesmo bom. — A voz do Kaden animou-se com a notícia.
— Então, estás a meio caminho de voltar ao normal.
Eu não queria acabar com a esperança nos olhos dele ou nos do Osten.
O Kaden era habitualmente tão inteligente, vendo para lá de qualquer
fingimento, mas não havia dúvidas do quanto queria que isto fosse verdade.
— Exatamente — disse a minha mãe.
— Muito bem, vocês todos — disse o meu pai. — Agora que já viram
a vossa mãe, quero que voltem para os vossos estudos. Ainda temos um
país para gerir.
— A Eadlyn deu-nos o dia de folga — protestou o Osten.
Sorri culpada. Quando nos tínhamos levantado, de manhã, essa fora a
minha única ordem. Precisava que eles se divertissem.
A minha mãe riu-se, um som fraco mas belo.
— Que rainha tão generosa.
— Ainda não sou rainha — protestei, grata por a verdadeira rainha
ainda viver, falar e sorrir.
— Seja como for — disse o meu pai. — A vossa mãe precisa de
descanso. Prometo que podem vir vê-la novamente antes de irem dormir.
Isso acalmou os rapazes e eles foram-se embora, acenando para a
nossa mãe.
Beijei-a na cabeça.
— Adoro-te.
— Minha menina. — Os seus dedos fracos tocaram-me no cabelo. —
Adoro-te.
Aquelas palavras eram o meu primeiro pilar do dia e eu ia conseguir
ultrapassá-lo sabendo que o Kile Woodwork seria o outro.
Quando saí da ala hospitalar, deparei-me com outra Woodwork. —
Miss Marlee? — perguntei.
Ela levantou o olhar do banco onde estava sentada, torcendo um lenço
nas mãos e com o rosto manchado de tanto chorar.
— A senhora está bem?
Ela sorriu.
— Mais do que bem. Estava com tanto medo que ela pudesse não
voltar e... sinceramente, não sei o que faria sem ela. Estar aqui com a tua
mãe tem sido toda a minha vida.
Sentei-me e abracei a melhor amiga da minha mãe e ela agarrou-se a
mim como se eu fosse sua filha. Parte de mim sentia-se triste, porque sabia
que ela não estava a ser dramática quando dizia aquilo. Um olhar para as
palmas das suas mãos cheias de cicatrizes revelava a longa história de como
ela tinha passado de concorrente valorosa a traidora a companheira fiel.
Quando elas falavam sobre o passado, alguns detalhes eram evitados e eu
nunca forçara o assunto, porque não era da minha conta. Mas, por vezes,
receava que a Miss Marlee achasse que o perdão dos meus pais ainda tinha
de ser compensado com devoção, por ela e pelo marido.
— Disseram-me que tu e os teus irmãos a tinham ido visitar e eu
queria vê-la, mas não queria ocupar o vosso tempo.
— Não viu os rapazes saírem? Já acabámos. É melhor apressar-se
antes que ela volte a adormecer. Sei que ia gostar de a ver.
Ela enxugou novamente as lágrimas.
— Como estou?
Ri-me.
— Perfeitamente miserável. — Abracei-a. — Vá até lá. E será que de
vez em quando me poderia fazer o favor de ver como eles estão? Sei que
não vou poder vir aqui com tanta frequência como gostaria.
— Não te preocupes. Eu mando-te notícias sempre que puder.
— Obrigada, Miss Marlee.
Depois de um último abraço, ela dirigiu-se à ala hospitalar. Suspirei,
tentando desfrutar deste breve momento de calma. Pelo menos, por agora,
tudo estava a caminho de melhorar.
Capítulo 6

O Kile colocou a mão na base das minhas costas, conduzindo-me pelo


jardim. A Lua estava baixa e cheia, lançando sombras mesmo de noite.
— Foste espetacular esta manhã — disse ele, abanando a cabeça. —
Temos estado todos preocupados com a tua mãe e é tão estranho não ter o
Ahren por perto. E o Kaden? Nunca o vi tão... confuso.
— É horrível. E ele é o estável da família.
— Não te preocupes demasiado. Faz sentido que ele esteja um pouco
abalado agora.
Aproximei-me ainda mais do Kile.
— Eu sei. É apenas difícil ver isso acontecer a alguém que nunca fica
abalado.
— E é por isso que o pequeno-almoço foi tão bom. Pensei que íamos
ter de passar por uma refeição dolorosa juntos, sem podermos conversar
sobre o que estava a acontecer ou até falar sequer. E então tu aliviaste a
situação. Foi notável. Não te esqueças de que tens essa capacidade. — Ele
agitou o dedo para mim.
— Qual capacidade? Distração? — Ri-me.
— Não. — Ele debateu-se com as palavras. — É mais como teres os
meios para aliviar. Quero dizer, já o fizeste antes. Em festas ou em
Noticiários. Alteras o momento. Nem todos conseguem fazer isso.
Caminhámos pela beira do jardim, onde a terra se abria num amplo
espaço plano, antes de a floresta começar.
— Obrigada. Isso significa muito. Tenho estado preocupada.
— Não há nada de mal nisso.
— É mais do que a situação da minha mãe. — Parei e coloquei as
mãos nas ancas, interrogando-me sobre quanto lhe deveria contar. — O
Ahren deixou-me uma carta. Sabias que as pessoas estão descontentes com
a monarquia? Mais especificamente comigo? E agora estou basicamente no
comando e, honestamente, não tenho a certeza se o vão aceitar. Já me
atiraram comida uma vez. Li tantos artigos horríveis sobre mim... E se
vierem atrás de mim?
— E se vierem? — brincou ele. — Não é como se não existissem
outras opções. Podíamos começar uma ditadura, isso metia as pessoas na
ordem. E temos também uma república federal, uma monarquia
constitucional... oh, talvez uma teocracia! Podíamos entregar tudo à Igreja.
— Kile, estou a falar a sério! E se me depuserem?
Ele envolveu o meu rosto com as mãos.
— Eadlyn, isso não vai acontecer.
— Mas já aconteceu antes! Foi assim que os meus avós morreram. As
pessoas entraram na casa deles e mataram-nos. E todos adoravam a minha
avó! — Podia sentir as lágrimas a chegar. Andava um caco choroso nestes
últimos dias! Limpei-as, atrapalhando-me com os dedos dele enquanto o
fazia.
— Ouve-me. Isso foi um grupo de radicais. Já não existem e as
pessoas lá fora estão demasiado ocupadas a tentar viver as suas vidas para
perder tempo a estragar a tua.
— Não posso contar com isso — sussurrei. — Havia coisas sobre as
quais sempre tive a certeza e quase todas se desmoronaram nas últimas
semanas.
— Tu... — Ele fez uma pausa enquanto me observava. — Precisas de
não pensar nisso agora.
Engoli em seco, processando a oferta. Só nós os dois aqui, no escuro,
numa noite tranquila; tudo parecia muito semelhante à noite do nosso
primeiro beijo. Só que desta vez não havia ninguém a observar, ninguém
para o imprimir num jornal. Os nossos pais não estavam por perto e os
guardas não estavam a seguir os nossos passos. Para mim, isso significava
que, apenas por um instante, não havia nada que me impedisse de ter o que
queria.
— Faria qualquer coisa que me pedisses, Eadlyn — sussurrou ele.
Abanei a cabeça.
— Mas não posso pedir.
Ele semicerrou os olhos.
— Porque não? Fiz alguma coisa errada?
— Não, seu idiota — disse eu, afastando-me. — Aparentemente... —
Bufei. — Parece que fizeste alguma coisa certa. Não posso simplesmente
beijar-te como se não fosse nada, porque acontece que tu não és nada.
Olhei para o chão, cada vez mais irritada.
— Isto é tudo culpa tua, a propósito! — acusei, olhando furiosa para
ele, enquanto andava de um lado para o outro. — Eu estava muito bem
quando não gostava de ti. Estava muito bem quando não gostava de
ninguém. — Tapei a cara. — E agora estou no meio desta coisa e tão
perdida que mal consigo pensar. Mas sei que és importante e não sei o que
fazer em relação a isso. — Quando reuni coragem suficiente para o encarar
novamente, ele tinha um sorrisinho na cara. — Por amor de Deus, não
fiques tão presunçoso.
— Desculpa — disse ele, ainda a sorrir.
— Sabes como é assustador para mim dizer tudo isto?
Ele aproximou-se de mim.
— Provavelmente, tão assustador como é para mim ouvi-lo.
— Estou a falar a sério, Kile.
— Eu também! Em primeiro lugar, é estranho pensar no que isso tudo
significa. Porque tu vens com um título e um trono e uma vida inteira
planeada. É uma loucura tentar assimilar isso. E, em segundo lugar, mais do
que ninguém aqui, sei que és uma pessoa muito reservada. Uma confissão
como esta deve ser praticamente dolorosa para ti.
Acenei com a cabeça.
— Não é que esteja irritada por gostar de ti... só que, de certo modo,
estou.
Ele riu-se.
— É um pouco irritante.
— Mas preciso de saber agora, antes de continuarmos, se sentes algo
semelhante por mim. Mesmo o menor vislumbre de algo. Porque, se não
sentes, tenho de fazer planos.
— E se eu sentir?
Ergui os braços e deixei-os cair novamente.
— Então, ainda tenho de fazer planos, mas serão diferentes.
Ele suspirou profundamente.
— Acontece que também és importante para mim. E não teria pensado
nisso se não fosse pelos meus desenhos, ultimamente.
— Hã... que romântico.
Ele riu-se.
— Não, a sério, até é. Normalmente fico entusiasmado quando
desenho arranha-céus e lares para pessoas sem-abrigo, coisas de que alguém
se possa lembrar ou que possam ajudar as pessoas. Mas, no outro dia, dei
por mim a desenhar uma casa de verão, um palácio em miniatura, talvez
algo com uma vinha. E esta manhã tive uma ideia para uma casa de praia.
Abri a boca de espanto.
— Eu sempre quis uma casa de praia!
— Não que alguma vez a pudéssemos usar, contigo a gerires o mundo
todo e isso.
— Mas é uma ideia simpática.
Ele encolheu os ombros.
— Parece apenas que tudo o que quero fazer ultimamente é algo para
ti.
— Isso significa muito. Eu sei o quão importante o teu trabalho é para
ti.
— Não é realmente o meu trabalho. É algo de que gosto, só isso.
— Está bem. Então, e que tal se juntássemos isto ao molho? Isto é algo
de importante e ambos o sabemos e vamos prestar atenção e ver o que
acontece.
— E justo. Não te quero desanimar nem nada, mas parece-me
demasiado cedo para dizer que é amor.
— Sem dúvida! — concordei. — É muito cedo e essa é uma palavra
demasiado grande.
— Demasiado atulhada.
— Demasiado assustadora.
Ele riu-se.
— Ao nível de seres destronada?
— No mínimo!
— Uau. Está bem. — Ele continuava a sorrir, provavelmente também
ele considerando a improbabilidade de nos apaixonarmos um pelo outro. —
E agora?
— Eu continuo com a Seleção, acho. Não quero ferir os teus
sentimentos, mas tenho de continuar. Tenho de ter a certeza.
Ele assentiu.
— Não te iria querer se não tivesses.
— Obrigada, sir.
Ficámos ali, com o som do vento na relva como único ruído.
Ele tossiu para aclarar a garganta.
— Acho que precisamos de comida.
— Desde que eu não tenha de cozinhar.
Ele colocou o braço em volta dos meus ombros, enquanto voltávamos
para o palácio. Parecia uma coisa típica de namorado.
— Mas saímo-nos muito bem da última vez.
— Só aprendi sobre a manteiga.
— Então, já sabes tudo.
***
De manhã, fui direta para a ala hospitalar, desesperada para ver o rosto
da minha mãe. Mesmo que ela estivesse a dormir, precisava de a ver viva e
a recuperar. Mas, quando abri a porta, desta vez ela estava sentada, bem
acordada... e o meu pai estava a dormir. Sorrindo, ela levou um dedo aos
lábios. Com a outra mão, passou os dedos pelo cabelo dele, suavemente,
enquanto ele permanecia tombado fora da cadeira e sobre a cama dela, com
um braço debaixo da cabeça e o outro sobre o colo dela.
Dei silenciosamente a volta para o outro lado da cama para lhe dar um
beijo na bochecha.
— Estou sempre a acordar de noite — sussurrou ela, dando-me um
pequeno apertão. — Todos estes tubos e estas coisas incomodam-me. E, de
todas as vezes, lá está ele acordado, a observar-me. Faz-me bem vê-lo
dormir.
— A mim também. Ele tem andado um pouco em baixo.
Ela sorriu.
— Eh. Já o vi pior. Também vai ultrapassar isto.
— Os médicos já te examinaram?
Ela abanou a cabeça.
— Pedi-lhes para voltarem depois de ele descansar um pouco. Tenho
tempo de voltar para o meu quarto.
Claro. Era óbvio que a mulher que acabava de ter um ataque cardíaco
podia esperar para se mudar para um sítio mais confortável para que o
marido pudesse fazer uma sesta. Sinceramente, mesmo que eu alguma vez
encontrasse alguém, ele poder-se-ia comparar a eles?
— E tu como estás? Estão todos a ajudar-te? — A minha mãe
continuou a passar a mão pelo cabelo do meu pai.
— Despedi o Coddly. Acho que não te disse ontem.
Ela ficou imóvel, olhando-me fixamente.
— O quê? Porquê?
— Oh, por nada de importante. Ele só queria ir para a guerra.
Ela tapou a boca, tentando não se rir do modo indiferente como eu
falava de uma invasão. Um instante depois, parou de sorrir e colocou as
duas mãos sobre o peito.
— Mãe? — perguntei alto demais. O meu pai levantou instanta‐
neamente a cabeça.
— Querida? O que se passa?
A minha mãe abanou a cabeça.
— São apenas os pontos. Estou bem.
O meu pai acomodou-se novamente na cadeira, mas sentou-se direito,
o sono terminado por agora. A minha mãe tentou iniciar outra vez a
conversa, fazendo qualquer coisa para desviar as atenções de si própria.
— E quanto à Seleção? Como vão as coisas por lá?
Fiz uma pausa.
— Hum, bem, acho. Não tenho tido muito tempo para passar com os
rapazes, mas vou tratar disso. Especialmente porque há um Noticiário a
aproximar-se.
— Sabes, querida, ninguém te iria criticar se cancelasses tudo. Passaste
por muita coisa nesta última semana e estás a agir como regente. Não tenho
a certeza se deverias estar a tentar equilibrar tudo isto.
— Eles são uns rapazes muito simpáticos — disse o meu pai —, mas
se a Seleção estiver a prejudicar demasiado a tua concentração...
Suspirei.
— Acho que temos de parar de ignorar o facto de eu não ser o membro
mais amado desta família. Pelo menos, não para o público em geral. Vocês
dizem que ninguém me iria criticar, mas eu tenho a certeza de que iriam. —
A minha mãe e o meu pai trocaram um olhar, parecendo querer refutar a
minha afirmação, mas não querendo mentir ao mesmo tempo. — Se vou ser
rainha um dia, preciso de conquistar as pessoas.
— E achas que encontrar um marido é a maneira de conseguires isso?
— perguntou a minha mãe, desconfiada.
— Sim. Tem tudo a ver com a perceção que têm de mim. Eles acham
que sou demasiado fria. A melhor maneira de refutar isso é casando-me.
Eles acham que sou demasiado masculina. A melhor maneira de refutar isso
é ficando noiva.
— Não sei. Ainda estou muito hesitante em relação a continuares.
— Preciso de te lembrar que a Seleção foi ideia tua?
Ela suspirou.
— Ouve a tua filha — disse o meu pai. — É uma menina muito
inteligente. Saiu a mim.
— Não queres dormir mais um pouco? — perguntou ela sem rodeios.
— Não, sinto-me bastante revigorado — disse ele. Eu não tinha a
certeza se era porque ele queria continuar a conversa ou se era porque
precisava de continuar atento à minha mãe. De qualquer maneira, estava
claramente a mentir.
— Pai, parece que a morte te deu um soco na cara.
— Também deves ter saído a mim nisso.
— Pai!
Ele riu-se e a minha mãe fez o mesmo, voltando a pressionar o peito
com a mão.
— Olhem! As vossas piadas péssimas são agora um risco de vida.
Parem com isso.
Ele trocou um sorriso com a minha mãe.
— Faz o que tiveres de fazer, Eadlyn. Nós apoiar-te-emos em tudo o
que pudermos.
— Obrigada. Agora, os dois, descansem um pouco, por favor.
— Uf, ela é tão mandona — lamentou-se a minha mãe.
O meu pai concordou.
— Eu sei. Quem é que pensa que é?
Olhei para eles uma última vez. O meu pai piscou-me o olho.
Independentemente de quem estivesse contra mim hoje, pelo menos tinha-
os a eles.
Deixei-os e fui até ao escritório, no andar de cima. Fiquei chocada
quando encontrei um lindo ramo de flores na minha secretária.
— Alguém pensa que a princesa está a fazer um bom trabalho, hum?
— observou a Neena.
— Ou acham que vou morrer de stresse e quiseram ser os primeiros —
brinquei, não tendo a certeza de querer admitir que ficara muito feliz com a
surpresa.
— Alegre-se. Está a ir muito bem. — Mas a Neena já não estava a
olhar para mim. Tinha visto o cartão.
Puxei-o para junto do peito, perante o lamento dela, e ergui-o apenas o
suficiente para o poder ler.
«A Eadlyn parecia um pouco em baixo quando nos despedimos no
outro dia. Queria que o dia de hoje começasse de um modo mais feliz.
Estou aqui para si. — Marid»
Sorri e passei o cartão à Neena, que suspirou antes de voltar a olhar
para o enorme ramo.
— De quem são? — perguntou o general Leger, entrando pela porta.
— Marid Illéa — respondi.
— Ouvi dizer que ele fez uma visita. Estava apenas a trazer presentes
ou precisava de alguma coisa? — perguntou o general em tom cético.
— Curiosamente, ele veio ver se eu não precisava de nada. Ofereceu-
se para me ajudar com o público. Sabe muito mais sobre como as pessoas
vivem depois das castas do que eu.
O general Leger juntou-se a mim ao lado da mesa e olhou para o
arranjo extravagante.
— Não sei. As coisas não acabaram exatamente bem entre a tua
família e a dele.
— Eu lembro-me. Bastante bem. Mas pode ser uma coisa boa,
aprender um pouco agora para quando chegar a minha altura.
O general sorriu para mim e a sua face suavizou-se.
— Já é a tua altura, Vossa Alteza. Tem cuidado em quem confias, está
bem?
— Sim, senhor.
A Neena ainda se sentia romântica.
— Alguém precisa de dizer ao Mark para se chegar à frente. Acabei de
receber uma enorme promoção. Onde estão as minhas flores?
— Talvez ele esteja a planear entregá-las pessoalmente. É muito mais
romântico — disse eu.
— Pfff! Da maneira como aquele rapaz trabalha? — disse ela com
ceticismo. — Se todos no palácio morressem e eu de alguma forma me
tornasse rainha, ele continuaria provavelmente a não conseguir ter uma
folga. Anda sempre muito ocupado.
Embora ela estivesse a tentar fazer uma piada, eu podia sentir a sua
tristeza.
— Mas ele ama o que faz, certo?
— Oh, sim, ele gosta da sua investigação. Só é difícil porque está
muito ocupado e muito longe.
Eu não sabia o que dizer mais sobre o assunto, por isso mudei a
conversa de volta para o meu presente.
— São um pouco exageradas, não acha?
— Acho que são perfeitas.
Abanei a cabeça.
— De qualquer maneira, devem provavelmente ir para outro lado.
— Não quer olhar para elas? — questionou a Neena, indo buscar uma
jarra.
— Não. Preciso de espaço na mesa.
Ela encolheu os ombros e pegou cuidadosamente no arranjo para o
levar para a saleta. Sentei-me à secretária, tentando concentrar-me. Se ia
conquistar o meu povo, tinha de me focar. E era isso que tinha de fazer. Era
o que o Ahren tinha dito.
— Espere! — A minha voz soou um pouco mais alta do que eu queria
e a Neena deu um salto. — Ponha-as onde estavam.
Ela fez-me uma careta, mas trouxe-as de volta.
— O que a fez mudar de ideias?
Olhei para o ramo e passei os dedos por algumas das pétalas mais
baixas.
— Acabei de me lembrar que posso governar e continuar a gostar de
flores.
Capítulo 7

Quando chegou a hora do jantar, o meu maior receio era poder


adormecer em cima do prato. Havia a probabilidade de ninguém se importar
se eu não aparecesse. As refeições eram agora geralmente silenciosas, a
menos que eu me esforçasse por as animar. Mas quando desci e vi a minha
avó Singer a atirar a mala contra um mordomo, percebi que esta noite ia ser
tudo menos monótona.
— Não me diga que não posso vir a esta hora! — Ela agitou o seu
punho enrugado e eu mordi os lábios para conter o riso.
— Eu não estava a dizer isso, minha senhora — respondeu o guarda,
num tom ansioso. — Apenas disse que estava a ficar tarde.
— A rainha vai querer ver-me!
A minha avó Singer era uma criatura temível. Se alguma vez houvesse
uma guerra sob a minha regência, o meu plano era mandá-la para a linha da
frente. Ela regressaria com o inimigo preso por uma orelha no espaço de
uma semana.
Entrei no vestíbulo.
— Avó.
Ela virou imediatamente as costas ao guarda e o seu rosto derreteu-se
numa expressão doce.
— Oh, aí está a minha querida menina. A TV não te faz justiça, és tão
linda!
Inclinei-me para que ela me pudesse beijar em ambas as faces.
— Obrigada... acho.
— Onde está a tua mãe? Eu queria vir, mas a May insistiu para que eu
não atrapalhasse.
— Está muito melhor agora. Posso levá-la para a ver, mas a avó não
prefere comer primeiro e descansar da viagem? — Fiz um gesto em direção
ao salão de jantar.
A minha avó tinha vivido no palácio quando eu era criança, mas
depois de a minha mãe ter passado anos a tentar cuidar dela acabou por se ir
embora. A sua «longa viagem» era, na verdade, apenas uma hora de uma
ponta da cidade à outra, mas pela maneira como falava sobre o assunto
parecia que tinha atravessado toda a Illéa.
— Isso era maravilhoso — disse ela, pondo-se ao meu lado. — Vê, é
assim que se tratam os mais velhos. Haja algum respeito. — Os seus olhos
fitaram o pobre guarda, que se mantinha ali estupefacto, com a mala dela
nas mãos.
— Obrigada, soldado Farrow. Por favor, leve isso para o quarto de
hóspedes do terceiro andar, o que dá para os jardins.
Ele fez uma vénia, indo-se embora, e nós entrámos no salão de jantar.
Alguns dos rapazes já estavam à espera e as suas sobrancelhas ergueram-se
ao verem a mãe da rainha. O Fox aproximou-se imediatamente para se
apresentar.
— Senhora Singer, é um prazer conhecê-la — disse, estendendo a
mão.
— Ora, mas que jovem tão bonito, Eady. Olha só para esta cara. — A
minha avó agarrou-lhe o queixo e ele riu-se.
— Sim, avó, eu sei. É parte da razão pela qual ele ainda está cá. —
Movi a boca num pedido de desculpas silencioso, mas o Fox abanou a
cabeça, radiante perante a aprovação dela.
O Gunner, o Hale e o Henri aproximaram-se para a conhecer e eu
aproveitei a oportunidade para falar baixinho com o Erik.
— Está ocupado amanhã?
Ele semicerrou os olhos.
— Acho que não. Porquê?
— Estava apenas a planear algo com o Henri.
— Oh — disse ele, abanando a cabeça como se devesse ser óbvio. —
Não, estaremos os dois livres.
— Está bem. Não diga nada — insisti.
— Claro que não.
— O quê? — gritou a minha avó. — Diga lá isso outra vez?
O Erik foi rapidamente até lá e fez uma vénia.
— Desculpe, minha senhora. O Sir Henri nasceu na Noruécia e só fala
finlandês. Eu sou o seu tradutor. Ele diz que está muito contente por a
conhecer.
— Oh, está bem, está bem. — A minha avó pegou na mão do Henri.—
TAMBÉM É UM PRAZER CONHECÊ-LO!
Levei-a até à cabeceira da mesa.
— Ele não é surdo, avó.
— Bom — disse ela, como se isso fosse explicação suficiente.
— A senhora falou com o tio Gerad?
— O Gerad queria estar aqui, mas está a trabalhar num projeto sensível
em termos de tempo. Sabes que nunca percebo uma palavra do que ele diz.
— A minha avó abanou o braço no ar, como se estivesse a afastar as
palavras elaboradas que ele usava. — Tive também notícias do Kota. Não
sabe se vos deve vir visitar ou não. A tua mãe e ele tentaram ao longo dos
anos, mas simplesmente não conseguem dar-se bem. Mas ele está melhor.
Acho que é por causa da mulher.
Conduzi-a em redor da mesa e ela sentou-se no meu lugar. Embora não
fosse permanente, ficar ao lado dela no lugar vazio do meu pai parecia
estranho. Tinham-me sido confiadas muitas coisas, mas, ainda assim, era
como se eu lhe tivesse roubado algo.
— A tia Leah parece ser uma pessoa bastante calma — concordei. —
Acho que essas coisas pesam, equilibrarem-se mutuamente.
Os mordomos apressaram-se a pôr a sopa em frente da minha avó,
sabendo que a sua paciência era muito reduzida. Sorri ao vê-la começar a
comer.
— Funcionou para o teu avô e para mim. E também para os teus pais.
Ignorando a minha própria tigela, apoiei o queixo na mão.
— Como era o avô?
— Bom. Muito bom. Queria sempre fazer o que estava certo.
Demorava mais tempo do que eu a ficar irritado e não deixava que as coisas
o deprimissem. Gostava que o pudesses ter conhecido.
— Eu também.
Deixei-a comer e os meus olhos vaguearam em redor da sala. O Kile
era o meu oposto no sentido de que ele era humilde e eu era orgulhosa. O
Henri era o meu oposto porque via tudo com alegria, enquanto eu me
concentrava nos desafios. O Ean, o Fox, o Gunner... havia um elemento em
cada um deles que pertencia ao outro lado do meu espetro.
— A rapariga francesa é assim para o Ahren? — perguntou a minha
avó, sem sequer tentar esconder o seu desdém.
Pensei no assunto.
— Na verdade, não. É como se eles fossem duas metades do mesmo
coração em corpos diferentes. — Os meus olhos encheram-se de lágrimas.
Estava tão cansada e sentia tanta falta dele. — Nem lhe consigo dizer o
quanto ele a ama.
Ela resmungou.
— O suficiente para se ir embora.
Expirei lentamente.
— É isso mesmo, avó. Magoava-o tanto estar longe dela que preferiu a
dor de deixar a sua família, a sua casa e o seu país, sem sequer saber como
tudo isso seria recebido, só para estar com ela.
Ela reconheceu a tristeza na minha voz e agarrou-me na mão.
— Estás bem, querida?
Recompus-me.
— Claro. Só um pouco cansada. Devia ir descansar. — Nesse
momento, o Kaden e o Osten chegaram a correr, oferecendo-me a
escapatória perfeita. — Os rapazes vão levá-la para ver a mãe.
Ela gritou deliciada.
— Os meus meninos!
Recuei, aproveitando a distração dela, e segui silenciosamente pela
lateral do salão até chegar junto do Henri. Toquei-lhe no ombro e ele ergueu
os olhos da sua refeição, com aquele sorriso sempre presente no rosto.
— Olá hoje!
Soltei uma risadinha.
— Gostaria de almoçar comigo amanhã?
Esperei que o Erik traduzisse, mas o Henri levantou a mão,
concentrando-se.
— Amanhã, almoço? — perguntou.
— Sim.
— Bom, bom! Sim!
Sorri.
— Até amanhã, então.
Deixei a sala, olhando para trás para ver o Henri agarrar o Erik pelo
ombro, eufórico com o convite. Também parecia muito feliz por ter
conseguido interagir sem precisar de tradução. O Erik acenava para o Henri,
contente pelo seu amigo, mas eu já o vira sorrir com mais entusiasmo antes.
***
Olhei para o relógio. Meia-noite e dez. Se adormecesse agora, podia
ter cerca de cinco horas de sono.
Dez minutos depois, era óbvio que isso não ia acontecer. Eu costumava
ser boa a desligar a minha mente no final do dia, mas agora parecia que
cada tarefa que iniciava ficava comigo até estar terminada, não se
importando se eu estava descansada o suficiente para a executar.
Vesti o roupão, passei os dedos pelo cabelo e saí descalça para o
corredor. Se fosse até ao escritório, talvez conseguisse fazer algum trabalho
para apaziguar o meu cérebro e depois podia voltar para a cama. Mas, se ia
fazer isso, precisava de café.
Era tarde demais para qualquer uma das aias estar de serviço, portanto
dirigi-me para a cozinha. Aparentemente, essa parte do palácio nunca ficava
vazia e eu tinha a certeza de que alguém me iria ajudar. Quando dei a volta
ao patamar do segundo andar, saltei para trás, assustada com a figura que
apareceu à minha frente.
— Oh! — disse o Erik, percebendo de repente que havia alguém no
seu caminho.
Apertei um pouco mais o meu roupão, embora estivesse totalmente
tapada, e atirei o cabelo para trás, esperando parecer menos surpreendida do
que tinha ficado.
Ele recuou, torceu as mãos por um instante e depois fez uma vénia
abrupta. Foi um gesto tão apressado e desleixado que não pude deixar de
me rir.
Ele sorriu ligeiramente também, abanando a cabeça perante a
estupidez do momento. Também estava de pijama — calças azuis listradas e
uma camisa de algodão lisa — e vagueava pelo palácio de pés descalços.
— O que é que faz a pé a esta hora? — perguntei.
— O Henri tem trabalhado bastante no seu inglês, desde que a princesa
anunciou a Elite. E, com um encontro amanhã, ele queria estar melhor
preparado. Só terminámos a lição, por hoje, há alguns minutos e eu ia à
cozinha buscar um pouco de chá e mel. O mel supostamente ajuda a dormir
bem. — Ele disse aquilo tudo em voz baixa e apressada, como se receasse
poder aborrecer-me.
— Ajuda? Sou capaz de experimentar isso amanhã. Eu ia a caminho da
cozinha buscar café.
— Vossa Alteza, eu sei que é uma mulher muito inteligente, por isso
custa-me dizer-lhe que o café não a vai ajudar a dormir. Nada mesmo.
Dei uma risadinha.
— Não, eu sei. Ia trabalhar mais um bocadinho. Não tenho dormido,
portanto pensei que podia fazer alguma coisa de útil.
— Tenho a certeza de que a princesa é sempre útil. Mesmo quando
dorme.
Baixei a cabeça, dando a volta ao corrimão, e ele seguiu-me pela
escada. Tudo em que conseguia pensar era como ele parecera monótono
naquele primeiro dia, a sombra acinzentada de uma pessoa. Agora, eu sabia
que essa sua simplicidade era o seu escudo, escondendo o quão inteligente,
atencioso e engraçado ele era. Embora ainda não entendesse a sua escolha,
sabia que ele era mais do que aquilo que deixava a maioria das pessoas
verem.
— Como está o Henri? Com as aulas de inglês?
Ele encolheu os ombros e colocou as mãos atrás das costas.
— Bom. Não ótimo. O que lhe disse antes ainda é verdade; demoraria
bastante tempo até poderem comunicar sozinhos. Mas ele importa-se
imenso e está a esforçar-se mais do que nunca. — Assentiu para consigo
mesmo, como se estivesse a avaliar mentalmente o trabalho deles. —
Perdoe-me... eu devia ter perguntado. Como estão os seus pais? Soube que a
sua mãe está acordada e a recuperar.
— Está sim, obrigada. Ia regressar ao quarto dela hoje, mas havia algo
de estranho com os níveis de oxigénio, portanto mantiveram-na na ala
hospitalar mais uma noite, por precaução. E o meu pai ainda continua a
dormir num divã ao lado da cama.
Erik sorriu.
— A ideia de «na saúde e na doença» torna-se muito mais real quando
a vemos acontecer à nossa frente.
Acenei com a cabeça.
— Sinceramente, às vezes é intimidante vê-los. Encontrar algo
próximo do que eles têm parece impossível.
Ele sorriu.
— É impossível sabermos tudo sobre o relacionamento de alguém,
nem sequer o dos nossos pais. Às vezes, especialmente o dos nossos pais —
acrescentou ele, como se tivesse pensado nisso antes, talvez sobre a sua
própria família. — Garanto-lhe que ele já lhe deu um presente de Natal
horrível, pelo menos uma vez, e obteve um dia inteiro de silêncio em troca.
— Altamente improvável.
O Erik permaneceu imperturbável.
— Temos de aceitar a ideia de imperfeição, mesmo naquilo que para
nós é mais perfeito. O seu irmão apaixonou-se por uma rapariga e casou-se
com ela de rajada e, neste exato momento, pode estar a descobrir que ela
ressona tão alto que ele não consegue sequer dormir.
Tapei a boca, mas não rápido o suficiente para abafar a gargalhada que
me escapou. Algo na imagem do pobre Ahren com almofadas a tapar os
ouvidos desmanchou-me.
— É bem possível — acrescentou ele, parecendo bastante contente por
me ter feito sorrir.
— Você arruinou a minha imagem da Camille! Como é que vou
manter uma cara séria da próxima vez que a vir?
— Não o faça — disse ele simplesmente. — Ria-se apenas. A sua
impressão de todos está provavelmente errada de alguma forma.
Abanando a cabeça, suspirei.
— Tenho a certeza de que tem razão. O que torna tudo o que faço
ainda mais difícil.
— Como a Seleção?
— Há momentos em que uma sala cheia de políticos parece mais fácil
de gerir do que seis rapazes. Apesar de tudo o que aprendi até agora, deve
haver uma dúzia de coisas que me escaparam.
— Está, então, a basear-se fortemente na intuição?
— Muito fortemente.
— Bem, ela estava certa sobre o Henri. Ele é tão simpático como
parece. Mas já deve saber disso, para o manter no grupo final. — Notei algo
de estranho no seu tom de voz, enquanto ele falava, como se admiti-lo fosse
desapontante.
Juntei as mãos, só então percebendo que já tínhamos passado a
cozinha há muito. Bem, podia sempre voltar atrás para ir buscar o café, se
ainda o quisesse.
— Toda esta situação tem sido difícil de gerir. Não era suposto eu ter
uma Seleção. No passado, as princesas casavam em troca de relações
internacionais, mas os meus pais prometeram que nunca fariam isso
comigo. Portanto, dar por mim numa sala cheia de rapazes e ter de escolher
um parceiro para a vida entre eles... é assustador. Tudo em que me posso
apoiar é num punhado de impressões e na esperança de que ninguém me
esteja a enganar.
Arrisquei um olhar para ele e vi que estava atento, com uma expressão
abatida.
— Isso parece incrivelmente assustador — disse ele lentamente. —
Surpreende-me que tenha funcionado tão bem no passado. Não quero ser
rude, mas parece um pouco injusto.
Acenei com a cabeça.
— Foi exatamente o que eu disse quando me apresentaram a ideia.
Mas eles insistiram para que eu tentasse, portanto...
— Então... isto não foi ideia sua?
Gelei.
— Queria sequer que acontecesse?
Há um arrepio que nos percorre as costas quando percebemos que
fomos apanhados numa mentira. E era assustador, porque isto já tinha sido
sugerido nos jornais e adivinhado por muitas pessoas.
— Erik, isto tem de ficar entre nós — disse eu em voz baixa, as
palavras saindo mais como um pedido do que uma ordem. — Admito que,
no início, não queria nada com a Seleção. Mas agora...
— Agora está apaixonada? — perguntou ele e o seu tom era ao mesmo
tempo curioso e melancólico.
Soltei uma gargalhada isolada.
— Estou um monte de coisas. Entusiasmada, assustada, desesperada,
esperançosa. Seria bom adicionar «apaixonada» à lista. — Pensei no Kile e
na nossa conversa no jardim. Amor ainda era uma palavra demasiado
grande para aquilo e nada do que eu dissera ao Kile me parecia apropriado
partilhar agora com o Erik. — Às vezes, acho que estou perto, mas, neste
momento, a Seleção é algo que eu preciso de terminar. Por uma série de
razões. Por uma série de pessoas, também.
— Espero sinceramente que a princesa seja uma delas.
— E sou — prometi. — Apenas talvez não da maneira que as pessoas
pensam.
Ele não respondeu. Apenas caminhou ao meu lado, absorvendo as
minhas palavras.
— Não pode repetir nada disto a ninguém. Não posso acreditar que lhe
disse estas coisas. Se esta Seleção parecer uma piada ou falsa de alguma
forma...
Ele ergueu uma mão.
— Não tem de se preocupar comigo. Eu nunca trairia a sua confiança.
Não me parece que seja uma coisa fácil de adquirir e detestaria desperdiçá-
la.
Sorri.
— Bem, você mais do que a mereceu. Já guardou segredos por mim,
tirou-me do meio de uma luta e trouxe-me uma flor quando não precisava.
— Era apenas um dente-de-leão.
— Perspetiva — lembrei-lhe e ele sorriu por as suas palavras lhe
serem devolvidas. — Tudo o que estou a dizer é que você tem feito muito
por mim, sem qualquer obrigação de o fazer. Ganhou a minha confiança.
— Ainda bem — disse ele simplesmente. — Porque estou aqui para si,
para tudo o que precisar, sempre que precisar.
A sinceridade na sua voz era tão dolorosamente clara que fiquei
imóvel. Os olhos do Erik eram límpidos e azuis, um forte contraste com o
seu cabelo escuro. Talvez fosse por isso que se destacavam tão luminosos
no momento.
— A sério? — perguntei, embora não tivesse qualquer razão para
duvidar das suas palavras.
— Claro — respondeu ele.— A princesa vai ser a minha soberana. É
um privilégio servi-la.
Aclarei a garganta.
— Sim. Pois. Obrigada. É um conforto saber que há, pelo menos, um
punhado de pessoas pelas quais não preciso de me virar do avesso para as
conquistar.
O sorriso dele era amável e lembrei a mim mesma que isto era uma
vitória, ter alguém como ele ao meu lado.
— Se me der licença — disse eu, recuando —, eu devia mesmo tentar
dormir.
Ele curvou-se.
— Claro. Eu sei que estou aqui à disposição do Henri, mas, por favor,
diga-me se houver alguma coisa que possa fazer para a ajudar.
Sorri, sem responder, e voltei para o meu quarto, com uma postura tão
direita como uma espada.
Capítulo 8

— No Noticiário desta noite, o foco estará em si. — A Lady Brice


andava de um lado para o outro diante da minha secretária. Era
reconfortante observar os seus passos elegantes, enquanto ia pensando em
tudo. O meu pai às vezes era assim. Fazia-me passear com ele pelo jardim,
enquanto tentava resolver qualquer confusão.
— Sei que não tenho muita experiência a fazer isto sozinha, mas o
Gavril vai estar lá para me ajudar. E tenho uma ideia de como abordar o
meu progresso com a Seleção.
— Ainda bem. Já era altura de a Eadlyn contribuir com alguma coisa
— brincou ela. — Falando da Seleção, há mais uma coisa. Estou a tentar
decidir se vale a pena falar nisso.
Semicerrei os olhos.
— O que se passa?
— Bem — começou ela. — O Marid Illéa esteve noutro programa de
rádio ontem. Temos uma gravação, se quiser ouvir, mas, basicamente, ficou
a saber-se que ele visitou o palácio e que lhe enviou flores.
— E então?
— E, então, perguntaram-lhe se isso significava alguma coisa.
Fiquei a olhar para ela.
— Mas eu estou no meio de uma Seleção. Como..
— Ele disse a mesma coisa, mas também disse que lamentava ter
perdido o contacto consigo e que a Eadlyn tinha crescido e tinha-se tornado
uma mulher bonita e inteligente. — Ela ergueu uma sobrancelha e eu senti o
meu estômago estremecer um pouco.
— Ele disse isso?
Ela assentiu com a cabeça.
— Porque me está a contar isso? — Tentei acalmar a minha respiração.
— Porque precisa de estar ciente de que vocês os dois têm sido
associados na imprensa. E isso pode levar a uma de duas coisas: prejudicar
a sua Seleção, ao ponto de parecer que não se preocupa com ela, ou...
— Como é que a pode prejudicar?
— Bem, se parecer que está a abandonar os seus pretendentes por ele...
— Percebi. Qual é a segunda coisa?
— Pode oferecer-lhe um outro pretendente, se não se opuser.
Ri-me.
— Tenho a certeza de que as regras da Seleção são bastante
vinculativas. Acho que não poderia simplesmente abandoná-la por outra
pessoa, poderia?
Ela encolheu os ombros.
— Ele é bastante popular.
— Está a aconselhar-me a considerá-lo?
— Não. Estou a aconselhá-la a estar ciente de que isto se tornou
público e que precisa de estar consciente do modo como interage com ele. E
com a Elite.
— Consigo fazer isso. Especialmente dado que praticamente não
interagi com ele. Não quero fazer nada que possa prejudicar este processo.
Já o fiz acidentalmente demasiadas vezes e quero que as pessoas saibam
que isto é importante para mim. Não fiz nada para encorajar o Marid e não
acho que valha a pena mencioná-lo no Noticiário.
— Concordo.
— Ótimo. — Só comigo é que um ato de generosidade e simpatia seria
distorcido em algo de escandaloso.
— E agora, não me leve a mal, mas o que vai vestir hoje?
Olhei para mim mesma.
— Não faço ideia. Quase não tenho tido tempo para me vestir.
Ela estudou as minhas roupas.
— Isto vai parecer um insulto, mas acredite que não é essa a minha
intenção. Acho que precisa de elevar um pouco a fasquia. Embora as roupas
que escolheu ou desenhou no passado fossem lindas, é altura de parar de
brincar com a moda e passar a usá-la como um meio de reforçar as suas
palavras.
A ideia de desfazer a imagem que tinha construído apenas para mim e
transformá-la em algo para os outros era como uma facada no estômago.
— Percebo. Em que está a pensar?
Ela cruzou os braços, pensativa.
— Poderia usar um dos vestidos da sua mãe?
Olhei para o relógio.
— Se eu for agora, posso escolher qualquer coisa. Mas a Neena é a
única capaz de o alterar com rapidez suficiente e ela precisa de terminar a
minha agenda para a próxima semana. E tenho um encontro ao almoço.
Ela apertou as mãos.
— Ohhhhh.
— A sério? Como se já não fosse suficientemente mau ter a minha avó
a dizer ao Fox que ele é muito giro.
A Lady Brice abraçou-se a si mesma e riu-se.
— Ela fez isso?
— Ninguém para aquela mulher.
— Deve ser de família. Depressa. Vá escolher um vestido.
— Está bem. Chame o Hale. Tenho a certeza de que é tão habilidoso
como a Neena e acho que vamos descobrir o quão rápido ele é. E escreva-
me uma lista para esta noite. Tenho pavor de ter uma branca.
— Eu trato disso.
Saí apressadamente para o corredor, esperando que a minha mãe ainda
estivesse na enfermaria, porque ia sentir-me absolutamente horrível se a
incomodasse à procura de um vestido no quarto dela. Não tinha dado mais
de dois passos quando vi Gunner à minha espera. Ele saltou imediatamente
do banco e fez uma vénia.
— Olá. Está tudo bem? — perguntei, aproximando-me.
— Sim — disse ele. — Bem, exceto pelo facto de eu estar, prova‐
velmente, prestes a fazer uma coisa tão incrivelmente estúpida que sinto o
meu coração a bater nos pés.
— Oh, por favor, não o faça. Já tive estupidez bastante para uma vida
inteira.
Ele riu-se.
— Não é dessa forma. Eu... eu queria perguntar-lhe uma coisa.
Ergui as sobrancelhas, procedendo com cautela.
— Muito bem. Tem dois minutos.
Ele engoliu em seco ruidosamente.
— Está bem, uau. Bom, eu sinto-me bastante lisonjeado por me ter
mantido nos últimos seis. Fez-me sentir como se tivesse feito alguma coisa
bem, embora ainda não faça ideia do quê.
Encolhi os ombros.
— O seu poema fez-me rir. Rir é importante.
Ele sorriu.
— Concordo, mas, de certo modo, isso prova o meu ponto. — Ele
torceu as mãos. — É que, por esta altura, com a princesa tão ocupada e sem
que eu tivesse tido algum tempo a sós consigo, estava a pensar se teria
alguma hipótese.
— É uma pergunta justa. Mas, sinceramente, não lhe posso dar uma
resposta neste momento. Ainda há muita coisa que tenho de perceber.
— Exatamente — respondeu ele com entusiasmo. — Portanto, vou
fazer-lhe um pedido ridículo. Posso beijá-la?
Dei um passo atrás.
— Desculpe?
— Não temos de o fazer se não quiser. Mas acho que um beijo pode
dizer muito. Acho que um beijo seria o suficiente para a princesa saber se
vale a pena eu ir atrás de si ou a princesa vir atrás de mim.
Havia algo de doce no pedido dele, como se, apesar de uma imagem de
mim a beijar o Kile ter sido espalhada pelo país, ainda assim ele não
achasse que eu beijava simplesmente qualquer um. E tinha aprendido o
suficiente com a expulsão do Jack para agir com cuidado. Só por isso fiquei
tentada a dar-lhe o que pedia. Mas fazer isso e perder potencialmente um
pretendente sem sequer tentar conhecê-lo melhor? Parecia tolice.
— Você podia ser um príncipe. Podia ter tanto dinheiro que nem
saberia o que fazer com ele, ser tão famoso que até as pessoas sem televisão
conheceriam o seu rosto. Está disposto a arriscar tudo isso num beijo?
— Estou disposto a apostar a sua felicidade e a minha nisso.
Inspirei, pensando.
— Está bem.
— Sim?
— Sim.
Assim que a surpresa se desfez, o Gunner colocou a mão na minha
cintura. Baixou o rosto para o meu, parando momentaneamente para se rir.
— Isto é um pouco surreal.
— Estou à espera, sir.
Ele sorriu mesmo antes de os nossos lábios se tocarem. Havia
bastantes coisas boas no beijo. Ele não tinha uma boca rígida nem tentou
enfiar a língua pela minha garganta. Também cheirava muito bem, embora
não a canela, nem a flores, nem a qualquer coisa reconhecível. No geral,
diria que não foi mau.
Mas o facto de eu conseguir fazer essa avaliação enquanto o beijo
estava a acontecer...
O Gunner afastou-se, apertou os lábios, e considerou.
— É não, certo?
Ele abanou a cabeça.
— Acho que sim. Não que tenha sido mau!
— Apenas não foi assim tão bom.
— Exatamente. — A sua postura mudou, de alívio. — Muito obrigado
por esta experiência, mas acho que é altura de eu ir para casa.
Sorri.
— Tem a certeza? Pode ficar para o Noticiário e ir para casa de manhã.
— Ná. — Ele sorriu timidamente. — Acho que, se ficasse, tentaria
convencer-me a voltar a tentar. A princesa é capaz de ser a rapariga mais
bonita que alguma vez conhecerei, mas... acho que não é a rapariga certa
para mim. Detestaria encontrar uma razão pela qual o poderia ser quando
tenho vindo a tentar dizer a mim mesmo, já há algum tempo, que era
improvável.
Estendi-lhe a minha mão.
— Respeito isso. Boa sorte para si, sir.
O Gunner apertou a minha mão.
— E para si, Vossa Alteza.
Enquanto o Gunner se dirigia para a escada, vi um mordomo a
acompanhar o Hale em direção ao quarto da minha mãe. Acenei-lhe para se
aproximar e ele olhou para o meu pretendente rejeitado enquanto se
cruzavam.
— O que é que o Gunner estava a fazer aqui? — perguntou.
— Uma escolha. Venha comigo. Preciso das suas mãos.
Capítulo 9

Saí do quarto de vestir da minha mãe com a nossa escolha favorita


vestida e pressionando-a contra o peito para manter a minha modéstia.
— Obrigada por fazer isto — disse eu, enquanto o Hale trabalhava,
puxando pelas costuras e fixando-as no lugar.
— Está a brincar? Estou neste momento a ajudar a vestir a minha
futura rainha. Estou no paraíso. — Ele puxou mais um pouco, observando
no espelho a forma como o tecido reagia. — Claro, não é o mesmo que
fazer-lhe um vestido desde o início, mas isto é uma experiência
impressionante para pôr no currículo.
Soltei uma risadinha.
— Sinto-me mal por ter de desistir da sua tarde para isto.
— Bem, às vezes as coisas ficam um bocado aborrecidas no Salão dos
Homens. Tenho a certeza de que se pedir ao Kile ele virá fazer-me
companhia enquanto trabalho. Ou o Ean, talvez.
— O Ean — disse eu, chocada. — É difícil imaginá-lo a juntar-se de
bom grado a qualquer um, seja onde for.
O Hale sorriu.
— Sim. Acho que está finalmente a habituar-se a nós. Ele fala comigo
algumas vezes e com o Erik. Provavelmente porque não é concorrência.
— Faz sentido. O Ean parece ser do tipo «não estou aqui para fazer
amigos», mas acho que ninguém consegue passar por isto sem se aproximar
de alguém. É demasiado difícil. Por mais complicado que seja para mim, sei
que é igualmente mau para todos vocês.
— Mas nós sem dúvida que temos a melhor parte da situação — disse
ele, piscando o olho para o meu reflexo.
Inclinei a cabeça.
— Não sei. Quanto mais penso nisso, mais me entristeço por ter de vos
mandar a todos embora, exceto um. Vou sentir falta de vos ter aqui.
— Já pensou num harém? — disse ele impassível.
Dobrei-me à gargalhada e fui recompensada com um alfinete a picar-
me na cintura.
— Ai!
— Desculpe! Eu não devia brincar quando há alfinetes por perto. —
Ele pôs-se à minha frente e mantive-me imóvel, observando os seus olhos e
reconhecendo a expressão analítica. Eu fazia a mesma coisa com os
desenhos e as propostas e, às vezes, até mesmo com as pessoas. — Acho
que precisamos de melhorar isto um pouco. Tem a certeza de que a rainha
não se importa mesmo? Porque alguns destes cortes não podem ser
desfeitos.
— Não se preocupe. Tem permissão total para fazer todos os ajustes
que julgar necessários.
— Isso faz-me sentir muito importante.
— Bem, e é. Está a ajudar-me a parecer uma líder hoje à noite. São
precisas milhares de coisas deste género para que este cargo funcione,
portanto, tenho uma dívida para consigo. Ou duas. Pelo menos duas.
— Sente-se bem?
Levantei o olhar, não percebendo o quão melancólica tinha ficado.
— Sim. É apenas muita coisa para resolver, às vezes. Estou a tentar
gerir tudo, é só isso.
O Hale pegou num alfinete da pilha que a aia nos deixara e apresentou-
mo.
— Use este da próxima vez que sentir que as coisas se estão a desfazer.
Vai ajudar, prometo.
Lentamente, peguei no alfinete e fi-lo girar entre o indicador e o
polegar e, pelo menos por um instante, acreditei que era verdade.
***
O Henri chegou à hora combinada, entrando apressadamente na saleta
como se tivesse passado os últimos quinze minutos desejoso de chegar ali.
Ignorou a etiqueta, segurando nas minhas mãos e beijando o meu rosto e
fazendo-me rir.
— Olá hoje!
Sorri.
— Olá, Henri.
Por cima do ombro do Henri, o Erik fez uma vénia e eu fiz-lhe um
aceno com a cabeça.
Tomei o braço do Henri e conduzi-o até à mesa. Esta estava posta com
dois lugares bastante próximos e um terceiro ligeiramente afastado.
— Aqui — disse o Henri, puxando a minha cadeira.
Assim que me sentei, ele correu entusiasmado em redor da mesa para
se sentar à minha frente... e a conversa cessou abruptamente. Tirei a tampa
do meu prato, para que eles soubessem que podiam fazer o mesmo, e,
depois de algumas garfadas silenciosas, tentei iniciar um diálogo.
— Como está a sua família? — perguntei. — E a sua irmã?
— Miten on Annika? — disse ele, virando-se para o Erik para
confirmar. Este concordou e o Henri voltou-se para mim, encantado. —
Bom. Ela muito bom. Nós saudades.
Ofereci-lhe um olhar triste e assenti.
— Entendo perfeitamente. Não faz ideia de quanto eu desejava que o
Ahren estivesse aqui.
Ele manteve a sua expressão calma, mas inclinou-se para o Erik, que
murmurou uma tradução da minha resposta o mais rápido possível.
— Sua mãe? Bom? — perguntou o Henri, tentando arduamente.
— Sim, graças a Deus. Está novamente no quarto dela e a recuperar.
Mais uma vez, o Erik veio em nosso socorro. Continuámos da mesma
forma durante mais alguns minutos e, mesmo com todo o esforço investido
em aprender inglês, o Henri estava tão perdido como eu. Eu odiava toda a
situação. Era demasiado impessoal. Uma coisa era precisar de um tradutor
para um dignitário de visita, mas era demais para alguém que vivia em
minha casa todos os dias. Mesmo que o tempo do Henri no palácio fosse de
curta duração, eu queria realmente ser capaz de falar com ele, apenas com
ele, pelo menos de vez em quando.
— Erik, como é que o Henri interage com o resto da Elite? Eles falam
todos através de si?
Ele endireitou-se mais no assento, pensativo.
— A maioria das vezes. O Hale e o Kile aprenderam algumas palavras.
— E os outros?
Ele franziu os lábios, parecendo culpado, como se temesse manchar a
reputação dos outros.
— O Gunner tem pouco interesse, assim como o Fox, não parecem
querer assumir o desafio. Dá muito trabalho. E o Ean fala comigo, mas não
tenta realmente falar com o Henri.
Deixei escapar um longo suspiro, enquanto vários pensamentos
passavam pela minha cabeça.
— Será que nos poderia dar amanhã uma pequena lição de finlandês a
todos?
O Erik ergueu as sobrancelhas.
— A sério?
— Completamente. Parece injusto que o Henri tenha de fazer o
trabalho todo.
Assim que eu disse o nome dele, os olhos do Henri voltaram-se para
mim. Estava sem dúvida a seguir a nossa conversa à sua maneira, mas eu
estava desejosa que ele descobrisse exatamente para onde isto se dirigia.
O Erik falou rapidamente em finlandês e os olhos do Henri
iluminaram-se.
— Eu falo, também? Eu falando? — perguntou ele como se se tratasse
de uma festa em vez de uma aula.
— Claro — disse eu e o Henri ficou ali, completamente fora de si, com
as engrenagens já a girar na cabeça.
— Acho que acaba de o fazer ganhar o dia — comentou o Erik.
— Estou aborrecida por não ter pensado nisso antes. Vai facilitar as
coisas para todos.
— Espero que sim. Mas ainda vou continuar a concentrar-me nas aulas
de inglês. Estou a tentar evitar mais aparições no Noticiário.
Fiz uma careta.
— Não foi assim tão mau.
— Foi horrível! — Depois de abanar a cabeça, ele apontou o garfo
para mim.— A minha mãe não para de falar sobre isso. «Estavas tão bem!
Porque não sorriste mais?» Juro, é de enlouquecer.
— Está a culpar-me? — perguntei, fingindo indignação.
— Completamente. Culpo-a totalmente! Não gosto de estar diante das
câmaras. — Ele estremeceu. Fiquei contente por ele não parecer realmente
zangado, embora pudesse sentir que falava a sério.
Ri-me e ele olhou timidamente para o prato enquanto sorria. Foi então
que percebi que o Henri estava parado a ver-me conversar com o seu
tradutor, quando era suposto eu estar num encontro com ele.
— Sabe, Henri, talvez pudéssemos fazer uma experiência completa de
imersão noruega e você poderia ensinar a toda a gente aquela receita da
sopa de que falou.
O Erik traduziu e, mais uma vez, o Henri ficou exultante.
— Kalakeitto! — exclamou.
Eu tinha curiosidade em relação a algumas coisas sobre o Henri.
Queria saber mais sobre a sua família, especialmente a irmã. E queria saber
se ele estava em paz com a ideia de viver aqui e trabalhar ao meu lado ou se
o preocupava o facto de podermos ter mais vezes momentos como o do
desfile e ele acabar preso a tentar proteger-me das massas furiosas para o
resto da vida. Queria perguntar-lhe sobre aquele beijo na cozinha, se ele
tinha pensado muito sobre isso ou se o tinha considerado um lapso de
julgamento de um de nós ou de ambos.
Mas até eu conseguir perguntar-lhe essas coisas sem ter de pedir a
ajuda do Erik, não havia nenhuma maneira de saber.
Capítulo 10

O vestido era vermelho. A minha mãe não o usava há anos, uma das
razões pelas quais eu o escolhera. O Hale tinha encurtado as mangas
compridas de renda pelos cotovelos e retirado algumas das camadas da
parte de baixo do vestido, para este não parecer tão tufado. Ele tinha razão
sobre algumas das mudanças serem irreversíveis, mas fez tudo com tão bom
gosto que mesmo que a minha mãe o quisesse de volta ela ficaria
provavelmente feliz com as alterações.
A Eloise ajudou-me a pentear o cabelo e o arranjo estava muito bom,
com tranças que se uniam num coque modesto. Escolhi uma tiara com rubis
e parecia estar em chamas.
Estava tudo lindo, mesmo. Eu sabia disso e estava grata a todos os que
tinham contribuído para que eu tivesse o ar de alguém a quem poderiam ser
confiadas as decisões que tinham de ser tomadas em nome do país. Apenas
parecia mais velha, mais do que me sentia, embora talvez mais perto da
idade de acordo com a qual tinha de me comportar. Suspirando, resignei-me
ao vestido. Esta era quem eu tinha de ser, por agora.
Estava a puxar pelas costuras do vestido, no estúdio, quando a Josie
veio falar comigo.
— Esse vestido é incrível — elogiou ela, incapaz de manter os dedos
longe das camadas de cetim.
Eu continuei a endireitá-lo.
— É da minha mãe.
— A propósito, lamento imenso tudo o que aconteceu — disse ela
suavemente. — Acho que ainda não te tinha dito.
Engoli em seco.
— Obrigada, Josie. Isso significa muito.
— Sabes, já que tem sido tudo tão sério, era capaz de ser uma boa
ideia termos uma festa.
Quase deixei escapar uma gargalhada.
— Estou um pouco ocupada demais para isso. Talvez quando as coisas
se acalmarem.
— Eu podia planeá-la! Deixa-me falar com algumas aias e somos
capazes de organizar qualquer coisa numa semana.
Voltei as costas ao espelho.
— Como eu disse, talvez um dia, mas não agora. — Afastei-me,
tentando concentrar-me.
Ela veio atrás de mim, insistente.
— Mas porquê? Não devias estar a comemorar? Quero dizer, és
praticamente a rainha, portanto...
Encarei-a, furiosa.
— Mas não sou a rainha. Esse título pertence à minha mãe, que quase
morreu. O facto de ignorares isso de forma tão descontraída faz com que as
palavras de simpatia que acabaste de me dizer percam todo o significado. O
que é que não compreendes, Josie? Achas que este trabalho é só vestidos e
galas?
Ela ficou ali, atordoada. Vi os seus olhos varrerem o estúdio, para ver
se alguém estava a observar a nossa conversa. Eu não a queria humilhar. De
certa forma, compreendia-a. Tinha havido um tempo em que nada me dava
mais alegria do que uma razão para começar uma lista de convidados, uma
altura em que eu própria pensava que este cargo não era mais do que
vestidos e galas...
Suspirei.
— Não te estou a tentar insultar. Mas não seria apropriado dar uma
festa quando a minha mãe ainda está a recuperar. Por favor, o que preciso
de ti esta noite é de alguma compreensão, coisa que entendo poder ser
demasiado, considerando a nossa história. Ainda assim, pela minha
sanidade mental, peço-te que tentes simplesmente imaginar como é estar no
meu lugar.
Ela amuou.
— Isso é tudo o que eu sempre quis. É claro que só te interessa quando
é conveniente.
Eu queria arrancar-lhe a cabeça. Que parte da minha vida neste
momento é que ela achava que era conveniente? Mas havia uma
transmissão oficial para fazer.
— Desculpe? — chamei uma aia que passava. — Por favor, acom‐
panhe a Miss Josie até ao quarto dela. A sua atitude esta noite é
perturbadora e eu preciso de me concentrar.
— Sim, Vossa Alteza. — A aia voltou-se alegremente para a Josie,
nada preocupada com os nossos problemas pessoais e pronta para fazer o
seu trabalho.
A Josie bufou.
— Odeio-te.
Apontei para a porta.
— Sim e podes fazer isso no teu quarto tão bem como aqui.
Sem esperar para ver se ela obedecia, dirigi-me ao meu lugar. Nunca
tinha visto o cenário montado desta maneira: a Elite de um lado e uma
única cadeira solitária do outro.
Enquanto olhava para o triste e solitário assento, o Kile aproximou-se
de mim.
— O que foi aquilo com a Josie?
Sorri e pestanejei.
— Nada, querido. Ela estava apenas a fazer-me ter sérias dúvidas
sobre se a quero ter como parente.
— Demasiado cedo, ainda.
Ri-me.
— Não, nós tivemos um... desentendimento. E sinto-me um pouco
mal, porque eu percebo-a. Só queria que ela me conseguisse perceber a
mim.
— Isso pode ser difícil para a Josie. Ela só tem consciência de si
própria. Além disso, viste o Gunner?
Semicerrei os olhos.
— Ele foi-se embora esta tarde. Não se despediu?
O Kile abanou a cabeça.
Aproximei-me dos outros rapazes, que se endireitaram todos quando
me aproximei.
— O Gunner disse adeus a algum de vocês?
Os outros abanaram a cabeça confusos, enquanto Fox clareava a
garganta.
— Ele falou comigo. O Gunner é um pouco sentimental e não teve
coragem para passar por longas despedidas. Apenas disse que isto não era a
coisa certa para ele e que tinha a sua aprovação para sair.
— Tinha sim. Despedimo-nos como bons amigos.
O Fox acenou com a cabeça.
— Acho que ele pensou que iria perder a coragem se ficasse. Pediu-me
para dizer a todos que iria sentir a vossa falta. — Sorriu. — É muito boa
pessoa.
— Era sim. Mas pensem bem nas palavras dele — supliquei, olhando
para cada um dos seus rostos.— Trata-se também dos vossos futuros. Não
fiquem por algo com o qual possam não ser capazes de lidar.
O Kile assentiu, parecendo subitamente pensativo. O Hale ofereceu-
me um sorriso brilhante. O Ean ficou impassível como sempre e o Henri
estava a ouvir a tradução do Erik, parecendo confuso.
Eu ia sem dúvida passar o resto da noite a analisar exaustivamente as
suas expressões, mas por agora tínhamos um programa para fazer.
— Hale — sussurrei, apontando para o vestido. — Obrigada.
— Linda — murmurou ele. Eu sabia que ele estava a ser sincero e
tentei ficar ainda mais direita. Queria fazer justiça a este vestido hoje.
***
As câmaras acenderam-se e eu cumprimentei o país o mais
honestamente que pude.
— Deixem-me começar pelas notícias que mais desejam ouvir. A
minha mãe está bem. Neste momento, está a recuperar no seu quarto, com o
meu pai ao seu lado. — Tentei parar de pensar na minha postura ou no que
devia fazer com as mãos. Em vez disso, pensei nos meus pais, sem dúvida a
ver a emissão de pijama com lanches aprovados pelo médico ao lado.
Quando imaginei a cena, sorri. — Já todos sabemos que a história de amor
deles pode ser a mais verdadeira alguma vez contada. Mas não tem sido
tarefa fácil assumir o lugar do meu pai.
»O meu irmão Ahren, agora príncipe consorte de França, é também um
testemunho do poder do amor mais profundo. Pelo que sei, está a
estabelecer-se muito bem na sua nova posição e sente-se muito feliz com a
vida de casado. — Sorri novamente. — Nada disto me surpreende. A sua
devoção para com a princesa Camille tem sido constante e forte ao longo do
tempo e da distância e só posso imaginar a sua felicidade por estar ao lado
dela a cada momento.
»No que diz respeito ao país em geral — olhei para as minhas notas,
embora detestasse fazê-lo —, parte da inquietação que vínhamos sentindo
diminuiu nas últimas semanas. — De certa forma, isso era completamente
verdade, mas, na parte da inquietação que me dizia respeito, o meu nariz
devia crescer enquanto eu falava. — Considerando a quantidade de trabalho
que o meu pai colocou na causa da paz no exterior, o pensamento de que
poderemos estar finalmente a alcançar uma maior paz em casa proporciona-
me uma enorme alegria.
Falei sobre todos os assuntos que tinha de abordar: a proposta de
orçamento, o início próximo do projeto de perfuração e a mudança no
Conselho, o que fez com que algumas pessoas na sala se contorcessem.
Quando terminei, procurei alguns dos rostos importantes na multidão. A
Lady Brice fez-me um grande aceno com a cabeça, assim como o general
Leger. Vi a avó a remexer-se, impaciente com os longos anúncios e
provavelmente só a aguentar aquilo para poder ouvir os rapazes falarem. E,
fora do palco, o Erik sorriu para mim, satisfeito.
— Vossa Alteza. — O Gavril fez-me uma vénia ao começar a falar. —
Posso dizer que, considerando as circunstâncias sob as quais foi impelida
para este cargo, está a fazer um trabalho fantástico.
— Obrigada. — Não sabia quão sincera a afirmação era, mas talvez o
facto de ele o dizer fizesse com que outras pessoas pensassem o mesmo.
— Temos de nos perguntar, considerando que tem trabalhado a um
ritmo tão elevado, se teve algum tempo para este grupo aqui? — perguntou
ele, acenando com a cabeça na direção da Elite.
— Um pouco.
— A sério? Alguma coisa que possa partilhar connosco? — Ele agitou
as sobrancelhas e eu lembrei-me, novamente, dos exemplos de como a sua
personalidade diante das câmaras era diferente da que apresentava longe
delas. O entretenimento era o seu trabalho e ele era excelente no que fazia.
— Sim, mas, só por diversão, não vou usar nomes.
— Não vai usar nomes?
— Por exemplo, um membro da Elite deixou-nos hoje — disse eu,
embora soubesse que se tratava de uma revelação que seria desvendada em
segundos. — Gostaria de dizer que o nosso pretendente recém-saído
deixou-nos de bom humor e como um amigo.
— Ah, estou a ver — disse o Gavril. — Gosto disto! Diga-nos mais.
— Bem, hoje, um dos meus pretendentes deu-me um presente feito a
partir de um metal muito precioso.
— Oh, céus! — O Gavril investigou as minhas mãos, procurando,
obviamente, por anéis.
Levantei-as para toda a gente as ver.
— Não, não foi ouro. Foi aço. Ele deu-me um alfinete de costura. Mas
juro que foi muito especial.
Ouviram-se risadinhas vindas do público e da Elite e eu esperava que
isto estivesse a parecer tão encantador perante as câmaras como o era na
minha cabeça.
— Por favor, diga-me que tem pelo menos mais uma — implorou o
Gavril.
— Mais uma, então — concedi. — No início desta semana, um dos
pretendentes da Elite disse-me que não estava, com toda a certeza,
apaixonado por mim e eu disse-lhe que sentia o mesmo.
O Gavril estava de olhos arregalados.
— E esse jovem é o mesmo que nos deixou?
— Não. E essa é a parte louca. Não estamos apaixonados e, ainda
assim, não temos qualquer desejo de nos separarmos, portanto, aí tem. —
Encolhi os ombros em tom de brincadeira e sorri, ouvindo os suspiros e os
risos em redor da sala.
— Como tenho a certeza de que uma parte significativa do nosso país
vai ficar acordada até tarde esta noite, a tentar adivinhar sobre quem é que a
princesa está a falar, seria bom ter algo um pouco mais sólido.
— Talvez seja melhor falar com os rapazes sobre o assunto.
— Então, acho que vamos fazer exatamente isso. Posso interrogar
estes belos rapazes?
— Com certeza — respondi com um sorriso, feliz por deixar os
holofotes por um maravilhoso instante.
— Muito bem, vamos começar por aqui. Sir Fox, como está?
— Muito bem, obrigado. — Ele sentou-se um pouco mais direito e fez
um grande sorriso.
— As pessoas percebem que a princesa tem estado sob grande stresse
e que os seus dias estão repletos de tarefas, portanto, o tempo a sós tem sido
limitado — disse o Gavril graciosamente.
— Sim, já era impressionante ver o quanto a princesa trabalhava antes,
portanto, vê-la assumir ainda mais coisas nestes últimos dias... é inspirador.
Inclinei a cabeça, sentindo-me um pouco reconfortada interiormente.
Inspirador? Era um pensamento muito generoso.
O Gavril concordou com a cabeça.
— Considerando tudo isso, poderia contar-nos alguma coisa do seu
tempo com a princesa que se tenha destacado em relação a tudo o resto?
Imediatamente, um sorriso surgiu no rosto do Fox.
— Acho que o momento mais significativo da nossa relação foi após a
luta, quando o Burke foi para casa. A princesa veio falar comigo e foi muito
sincera sobre o que esperava. Também me ouviu. Acho que esse é um lado
dela que poucas pessoas têm o privilégio de ver. Não é como se a princesa
possa ir de porta em porta e oferecer a todos uma hora do seu tempo... mas,
quando está connosco, está totalmente ali. Está, de facto, a ouvir-nos.
Eu tinha uma lembrança calorosa daquela noite com o Fox, mas não
tinha percebido o quanto tinha significado para ele. Era um momento que
ele acarinhava.
O Kile levantou a mão.
— Tenho de concordar com o Fox. Todos sabem que a Ead... hum, a
princesa e eu na realidade só começámos a nossa amizade recentemente. E,
nesse período, senti que muitas das minhas preocupações e aspirações
foram ouvidas.
— Como quais? — insistiu o Gavril.
Ele encolheu os ombros.
— Não é nada de emocionante, mas eu tenho uma paixão por
arquitetura e a princesa prestou de facto atenção aos meus esboços. — Ele
ergueu um dedo como se de repente se tivesse recordado de algo. —
Reconheço que tínhamos bebido um pouco de vinho e tenho a certeza de
que ela estava bastante aborrecida, mas ainda assim.
Todos se riram e eu sorri para o Kile. Ele fazia com que estar à frente
das câmaras parecesse tão fácil, inventando sempre coisas maravilhosas
para dizer. Fez-me sentir mais segura de ter feito a escolha certa quando lhe
dissera como me sentia.
Prosseguindo no mesmo tom, o Gavril aproximou-se do Ean.
— Sir Ean, você é, talvez, o mais silencioso do grupo. Tem alguma
coisa a acrescentar?
A expressão dele era tão descontraída como sempre.
— Sou um homem de poucas palavras — concordou —, mas direi que
a princesa é incrivelmente atenciosa. Embora neste momento existam
apenas cinco de nós, nenhuma das eliminações foi feita levianamente. Só
pelo facto de ter ficado a conhecer estes outros cavalheiros, posso ver o
esforço que a princesa colocou em fazer a melhor escolha possível, para si e
para o seu povo.
»O que as câmaras não conseguiram captar foi o clima no Salão dos
Homens quando ela teve de fazer a eliminação mais recente. Não havia uma
gota de hostilidade no ar. A princesa tem sido tão generosa connosco que
era impossível ficarmos aborrecidos. Todos os outros pretendentes saíram
satisfeitos.
O Gavril assentiu.
— Então, e quais acha que são as suas hipóteses? Chegou ao top
cinco!
O Ean, como sempre, foi perfeitamente diplomático.
— Estou à disposição de Sua Alteza. Ela é a melhor mulher que
qualquer um de nós poderia alcançar e como tal tem padrões incríveis. Isto
não tem a ver com a minha avaliação das minhas hipóteses mas sim com a
sua preferência. Por isso, vamos todos ter de esperar e ver.
Nunca tinha ouvido o Ean falar tanto de uma só vez e senti-me
instantaneamente em dívida para com ele. Embora tivéssemos um
entendimento no nosso relacionamento, que era reconhecidamente nada
romântico, ainda assim ele via bastantes coisas boas em mim. Ou isso ou
era um ator incrível.
— Muito interessante. E você, Sir Hale? Pelo que me lembro, o seu
encontro com a princesa foi o primeiro. Como se sente agora?
— Sinto-me com sorte — disse ele calorosamente. — Cresci a vê-la
em desfiles, a observá-la na televisão e a ver o seu rosto nas revistas. — Ele
apontou para mim do outro lado da sala. — A princesa é tão bonita que é
intimidante e tem um olhar que parece poder queimar-nos se quiser.
Parte do que ele disse doeu, mas havia algo de tão terrivelmente
honesto naquilo que não pude deixar de sorrir.
— Mas jantei com ela uma vez e fi-la rir tanto que cuspiu a bebida.
— Hale!
Ele encolheu os ombros.
— Alguém iria descobrir algum dia. Mais vale partilhar!
Tapei o rosto com as mãos, perguntando-me o que os meus pais iriam
pensar de tudo isto.
— O meu ponto é: tudo o que temos dito sobre ela é verdade. É dura, é
uma líder e, sim, acho que se quisesse disparar fogo com os olhos
conseguiria fazê-lo. — A sala riu-se. — Mas também é uma excelente
ouvinte, é interessada e sabe rir. Mas rir mesmo, à gargalhada. Não tenho a
certeza se todos vão conseguir ver isso, portanto sinto-me com sorte por o
ter conseguido.
Todo o segmento foi uma homenagem tão gloriosa às minhas melhores
qualidades que quase me perguntei se os rapazes teriam sido treinados. E, se
tinham, então devia imenso à pessoa que pensara nisso.
Quando as câmaras se desligaram, aproximei-me do Gavril.
— Obrigada. Foi excelente esta noite.
— Sempre estive ao seu lado e sempre estarei. — Ele piscou-me um
olho e seguiu o seu caminho.
Observei o público a sair e fiquei ali um instante, sentindo-me
orgulhosa. Tinha conseguido, e quase inteiramente por conta própria. O
grupo da Elite fora fantástico, mais amáveis do que eu poderia ter
imaginado ou esperado. A minha mãe e o meu pai iam ficar muito
contentes.
— Muito bem. — O Kile colocou um braço à minha volta. — O teu
primeiro Noticiário sozinha está registado!
— Pensei seriamente que esta noite podia ser um desastre, mas olha!
— disse eu, afastando-me e estendendo os braços. — Ainda estou inteira.
O Hale aproximou-se e riu-se.
— Achava que as pessoas iam arrombar as portas e desfazê-la em
pedaços?
— Nunca se sabe!
O Fox riu-se e o Ean ficou para trás, ainda a sorrir. Eu estava muito
grata. Se soubesse que palavras usar, tê-los-ia enchido descaradamente de
elogios pelo modo tão maravilhoso como se tinham portado esta noite.
— Jantar? — perguntou o Fox e os rapazes assentiram todos.
Ouvi o Henri repetir uma palavra várias vezes excitadamente, o que
supus querer dizer que estava muito contente por ir finalmente comer.
Formámos um pequeno grupo e seguimos juntos para o salão de jantar.
Capítulo 11

Sentia-me muito contente, à medida que subíamos as escadas e


percorríamos os corredores. Rodeava-me uma sensação de familiaridade e
paz, que eu suspeitava ter muito a ver com o facto de me sentir bastante
confortável com a companhia.
O sentimento durou até ao momento em que entrámos pelas portas do
salão de jantar.
A minha mãe e o meu pai ainda estavam no andar de cima e a minha
avó tinha-se retirado para o seu quarto. O Osten não se estava a sentir bem
esta noite, por isso o Kaden estava a fazer-lhe companhia, e o meu irmão
gémeo ainda estava a um oceano de distância de mim.
Um olhar para a cabeceira da mesa vazia e só me apetecia esconder.
— Vossa Alteza? — perguntou o Erik e, quando me virei, dei por mim
a centímetros de distância dos seus olhos preocupados. Havia algo de
calmante neles, um pormenor do qual me lembrava depois da luta na
cozinha. Tinha olhado para eles na altura e sentira-me como se tivesse visto
claramente a alma dele. Mesmo agora, com tantas pessoas à volta, só o
facto de os seus cristalinos olhos azuis perscrutarem os meus fez com que
sentisse a minha tristeza desaparecer. — Sente-se bem? — perguntou ele e,
pelo seu tom, percebi que já me perguntara o mesmo antes, sem que eu
tivesse ouvido.
— Sim. Poderia, por favor, ir buscar aquelas cadeiras e colocá-las do
outro lado da mesa principal? Você também, Ean? — Eles afastaram-se para
atender ao meu pedido. — Hale, Fox? Podem levar os pratos?
Mexi-me também, pegando em talheres e copos e dirigindo-me para a
mesa principal. Antes que alguém pudesse escolher um lugar, sentei-me na
cadeira do meu pai. O Kile ficou de um lado e o Hale do outro. O Fox, o
Henri, o Erik e o Ean sentaram-se à nossa frente e, de repente, aquela mesa
comprida e imponente parecia um jantar íntimo. Só eu e os meus rapazes.
Os mordomos começaram a servir de modo um pouco desorganizado,
não estavam preparados para o rearranjo improvisado, mas chegaram a
todos com rapidez suficiente. E, seguindo uma sugestão do nosso encontro,
o Henri começou a comer e os outros imitaram-no.
— Bom, espero que estejam todos preparados para amanhã — anun‐
ciei. — O Erik e o Henri vão dar-nos uma aula de finlandês de manhã.
— A sério? — perguntou o Kile animado. O Erik corou um pouco e
assentiu.
— Qual é o plano da aula? — perguntou o Fox.
O Erik ergueu os olhos para o teto, como se ainda estivesse a decidir.
— O Henri e eu estivemos a conversar e acho que vamos saltar as
coisas iniciais habituais, como o alfabeto. O mais útil nesta situação são as
capacidades básicas de conversação. Portanto, dizer as horas e fazer outros
pedidos vão estar no topo da agenda.
— Ótimo! — comentou o Hale. — Gostava de aprender mais. Grande
ideia, Erik.
Ele abanou a cabeça.
— Foi ideia da nossa futura rainha. O crédito pertence-lhe.
— Ei — disse o Kile, atraindo a minha atenção. — Podemos também
falar um instante sobre o quão espetacular foste novamente no Noticiário?
Eu sei que já fizeste anúncios e outras coisas, mas gerir um programa
inteiro sozinha não é uma ninharia.
— Além disso — acrescentou o Fox não é incrível a disposição dos
lugares hoje? Para todos nós, exceto um, esta é a única vez em que nos
sentaremos à mesa principal do palácio. Inesquecível.
— Concordo — acrescentou o Ean.
E, embora o Henri não acrescentasse muito à conversa, eu conseguia
ver que ele também estava satisfeito. Mas, claro, o mais surpreendente teria
sido vê-lo aborrecido. Depois de o Erik o pôr a par da conversa, ele ergueu
o copo.
— Para a Eadlyn — disse.
Os outros colocaram as suas bebidas no ar e repetiram o seu brinde.
Dei por mim a pestanejar para tentar conter as lágrimas de felicidade,
incapaz de dizer uma palavra. Nem mesmo obrigada, embora pudesse
perceber pelos seus olhares que isso estava subentendido.
***
Havia bastantes coisas boas onde o país se focar, mas, com uma
eliminação em massa no início da semana e a saída do Gunner antes do
Noticiário, parecia que eu estava novamente a afastar as pessoas. Pelo
menos, era isso que os jornais diziam. Era como se não tivessem ouvido
uma única palavra do que o Ean tinha dito sobre como eu me tinha debatido
com essa decisão. Uma transmissão ao vivo inteira era arrasada por um
punhado de manchetes.
Surpreendentemente, espalhado por todos os jornais, o belo rosto do
Marid surgia por baixo dessas histórias, ao lado do meu, com comentários
sobre como ele tinha perdido o comboio, agora que eu tinha começado o
meu processo de Seleção.
— Dê-me isso — insistiu a Neena, amarrotando os jornais e deitando-
os no lixo. — Parece que andam a publicar poucas notícias e muita
coscuvilhice hoje em dia.
— Sem dúvida — concordou a Lady Brice. — Concentre-se menos no
que as pessoas dizem e mais no que pode fazer.
Acenei com a cabeça, sabendo que ela tinha razão. A Lady Brice dizia-
me as coisas que eu tinha a certeza que o meu pai me diria se estivesse na
sala e, embora nem sempre fosse fácil, sentia-me forçada a ouvir.
— Apenas não tenho a certeza de me conseguir concentrar no que sou
capaz de realizar até ter a opinião pública controlada. Qualquer coisa que eu
propuser, mesmo que seja algo que eles teriam apoiado se tivessem sido os
meus pais a apresentá-la, será provavelmente recebida com oposição.
Preciso de escolher um marido — disse com decisão. — Sinto-me confiante
de que isso vai ajudar com a opinião pública e esperemos que ajude mesmo,
porque eles não gostam de mim.
— Eadlyn, isso não é...
— É verdade. Eu sei que é, Lady Brice. Já o senti na pele. Preciso de a
recordar do desfile?
Ela cruzou os braços.
— Pronto, está bem. A Eadlyn não é exatamente popular. E consigo
ver como encontrar um marido poderá influenciar isso. Então, é nisso que
nos vamos concentrar hoje?
— Pelo menos, durante os próximos cinco minutos. Confio na minha
cabeça um pouco mais do que no meu coração, por isso ajudem-me. Falem-
me sobre isso.
A Neena encolheu os ombros.
— Quem é o primeiro? O Kile? O palácio inteiro está a torcer por ele.
É tão bonito e inteligente e, oh, meu Deus, se a princesa não o quiser,
mande-o para mim.
— Você não tem um namorado?
Ela suspirou.
— Detesto quando tem razão.
Ri-me.
— Estaria a mentir se dissesse que não senti uma ligação a ele. Até lho
disse... mas continuo a hesitar. Não sei porquê, mas não estou pronta para
dizer que ele é a minha primeira escolha.
— Está bem — respondeu a Lady Brice. — Quem mais?
— O Hale. Tem uma excelente atitude e prometeu provar-me o seu
valor todos os dias. Ainda não falhou. E é uma pessoa fácil de lidar. Essa é
uma das razões pelas quais também gosto do Fox.
— O Fox é mais atraente do que o Hale — disse a Neena. — Não
quero ser superficial, mas essas coisas são importantes para a opinião
pública.
— Entendo, mas a beleza é subjetiva. Sabe, como às vezes o que torna
uma pessoa atraente é a maneira como nos faz rir ou como parece conseguir
ler a nossa mente? Também quero pensar nisso.
A Neena sorriu.
— Então, escolheria o Hale em vez do Fox?
Abanei a cabeça.
— Não foi isso o que quis dizer exatamente. Só estou a tentar dizer
que a aparência não é tudo. Temos de nos focar noutras qualidades.
— Como? — incentivou a Lady Brice.
— Como o facto de o Henri ser incessantemente otimista.
Independentemente das circunstâncias, ele é uma fonte de alegria. E não
tenho qualquer dúvida do seu afeto por mim.
A Neena revirou os olhos.
— Isso é bom, mas ele não fala inglês.. Não é possível que vocês os
dois já tenham tido uma conversa onde tenham ido mais longe do que
apenas raspar a superfície.
— Isso é... bem, isso é verdade. Mas ele é muito doce e seria bom para
mim. O Erik disse que era possível o Henri aprender, mas que poderia
demorar um pouco. E ele tem estudado até à meia-noite desde que entrou
para a Elite. E, pelo meu lado, vou ter uma aula de finlandês agora.
Podemos trabalhar nisto a partir de ambos os lados e o Erik poderia
permanecer aqui durante o tempo que precisássemos, para nos ajudar.
A Lady Brice abanou a cabeça.
— Isso é muito injusto para o Erik. Ele tem uma família, um emprego.
Não se candidatou para ficar possivelmente preso no palácio durante os
próximos cinco anos. E se ele quiser encontrar alguém para ele?
Queria dizer-lhe que ela estava errada... mas não podia. O Erik não
sabia quanto tempo a Seleção duraria quando concordara vir, mas não
entrara certamente nisto a pensar que iria viver no palácio até o Henri ser
fluente em inglês. E seria egoísta pedir-lhe para fazer exatamente isso.
— Ele ficaria. Eu sei que sim — foi tudo o que disse.
Houve um silêncio depois disso, como se a Lady Brice soubesse que
eu estava errada e estivesse a pensar em mo dizer. Em vez disso, suspirou.
— Quem falta? O Ean? — perguntou ela.
— O Ean é um pouco mais complicado, mas, confie em mim, é
importante.
A Neena semicerrou os olhos.
— Então... são todos favoritos?
Suspirei.
— Acho que sim. Não sei se isso significa que escolhi bem ou que
escolhi mal.
A Lady Brice riu-se.
— Você escolheu bem. A sério. Posso não entender o encanto do Ean
ou como faria com que as coisas funcionassem com o Henri, mas todos têm
os seus méritos. Acho que o que precisamos de fazer neste momento é
intensificar a formação deles, começar realmente a moldá-los para o trono.
Isso irá ajudar a destacar alguns, tenho a certeza.
— Moldá-los? Isso parece sinistro.
— Não foi com esse sentido que falei. Só estou a dizer...
As palavras seguintes da Lady Brice perderam-se porque, sem
qualquer aviso, a minha avó escancarou a porta.
— A senhora tem de pedir permissão antes — avisou-a um guarda em
tom abafado.
Ela continuou a andar na minha direção.
— Bem, minha menina, é altura de me ir embora.
— Tão cedo? — perguntei, abraçando-a.
— Nunca posso ficar muito tempo. A tua mãe está a recuperar de um
ataque cardíaco, mas continua a ter a audácia de me dar ordens. Eu sei que
ela é a rainha — admitiu, erguendo as mãos em sinal de rendição —, mas
eu sou a mãe dela e esse posto está sempre acima do de rainha.
Soltei uma gargalhada.
— Vou guardar essa para mais tarde.
— Faz isso — disse ela, esfregando a minha face. — E, se não te
importas, arranja um marido assim que puderes. Não vou para nova e
gostaria de ver, pelo menos, um bisneto antes de morrer. — Ela olhou para a
minha barriga e agitou o dedo. — Não me desapontes.
— Estáááá bem, avó. Bom, nós temos de voltar ao trabalho, portanto
vá para casa e veja se telefona quando chegar.
— Eu ligo, querida. Eu ligo.
Fiquei calada, absorvida pela loucura que era a minha avó.
A Neena inclinou-se para mim.
— Bom, qual dos seus cinco pretendentes é que acha que seria o
fazedor de bebés mais determinado? Será que deveríamos pôr isso na lista?
Nem mesmo o meu olhar mais violento diminuiu as palermices dela.
— Não se esqueça de que posso chamar um pelotão de fuzilamento
quando quiser.
— A Eadlyn pode chamar um pelotão de fuzilamento quando quiser,
mas eu tenho a sua avó do meu lado, portanto não tenho nada com que me
preocupar.
Deixei cair os ombros, absorvendo a tolice de toda a situação.
— Infelizmente, Neena, acho que tem razão.
— Não se sinta mal. Ela, no fundo, tem boas intenções.
— Vou tentar lembrar-me disso. Bom, acabámos por agora? Tenho de
ir aprender finlandês.
***
— Desculpem, desculpem, desculpem! — disse eu, irrompendo pela
biblioteca. Os rapazes aplaudiram a minha entrada e eu aproximei-me de
um lugar livre na mesa onde se encontravam o Henri, o Hale e o Ean. — O
dever chamou-me.
O Erik riu-se, colocando um pequeno maço de papéis à minha frente.
— Está desculpada. Não se preocupe. Ainda não avançámos muito.
Veja a primeira página e o Henri ajuda-a com a pronúncia, enquanto eu
verifico como os outros estão a ir. Depois continuamos.
— Está bem. — Peguei no papel, uma fotocópia feita de notas
manuscritas pelo Erik com imagens desenhadas à mão na margem, e sorri.
A primeira tarefa do dia era aprender a contar até doze, para podermos dizer
as horas. Olhar para esta simples lição fez-me ficar instantaneamente
envergonhada. Tudo em que conseguia pensar era que parecia não haver
vogais suficientes nas palavras e as que se tinham preocupado em aparecer
estavam todas nos lugares errados. — Certo — disse eu, olhando para a
primeira palavra: yksi.
— Yucksey?
O Henri riu-se e sacudiu a cabeça:
— Diz yoo-ksi.
— Yooksi?
— Sim! Vai, vai — incentivou ele e, embora eu não estivesse nem
sequer perto da perfeição, era bom ter a minha própria claque pessoal. —
Diz kahk-si.
— Kahk-si... kaksi.
— Bom, bom. Agora, é kolme.
— Coolmay — tentei eu.
— Ehhh — disse ele, ainda a tentar ser positivo. — Kohl-may.
Tentei novamente, mas dava para ver que estava a sair-me mal. Estava
a ser derrotada pelo número três. Sempre cavalheiro, ele inclinou-se,
preparando-se para demorar o tempo que eu precisasse.
— Diz oh. Kohl-may.
— Ooh. Ooh — tentei.
Ele levantou a mão e, gentilmente, colocou os dedos no meu rosto,
tentando mudar a forma da minha boca, o que me fez cócegas. Fiz um
sorriso, incapaz de fazer o som que ele estava a incentivar. Mas ele
continuou a segurar no meu rosto. Ao fim de um momento, o humor deixou
os seus olhos e eu reconheci a expressão neles. Tinha-a visto antes, na
cozinha, quando ele transformara a camisa num avental para mim.
Era um olhar tão cativante que me esqueci completamente de que
havia outras pessoas na sala.
Até que o Erik deixou cair um livro sobre a outra mesa.
— Excelente — disse ele e eu afastei-me do Henri o mais rápido que
consegui, rezando para que ninguém tivesse notado o que quase tinha
acabado de acontecer.
— Parece que estão todos a ir bem com os números, portanto vamos
começar a usá-los em frases. Se olharem para o quadro aqui, tenho um
exemplo escrito; mas, como de certeza já adivinharam, a pronúncia é um
pouco complicada.
Os rapazes riram-se. Tinham-se aparentemente debatido tanto com os
números como eu... e também parecia que tinham estado demasiado
absorvidos para terem reparado no meu quase beijo. Concentrei-me no
quadro, tentando absorver a fonética das palavras à minha frente em vez de
pensar no quão próximo de mim o Henri estava sentado.
Capítulo 12

O primeiro momento livre que tive durante o dia foi o almoço e sabia
que precisava de usar esse tempo para me concentrar no controlo de danos.
Enquanto todos se dirigiam para o salão de jantar, depois da nossa aula de
finlandês, voltei para o meu escritório e tirei o cartão do Marid da gaveta da
minha secretária. Fora claramente feito com papel caro. Perguntei-me o que
a família dele estaria a fazer agora para se poderem dar a esse luxo. Deviam
estar a sair-se bem, onde quer que o seu caminho os tivesse conduzido.
Marquei o número, esperando até certo ponto que ele não atendesse.
— Estou?
— Sim, hum, Marid?
— Eadlyn, é você?
— Sim. — Mexi-me nervosamente, endireitando as roupas, embora ele
não me pudesse ver. — Esta é uma boa altura?
— Completamente. Como posso ajudá-la, Vossa Alteza?
— Só queria dizer que vi algumas especulações na imprensa, no outro
dia, sobre a nossa relação.
— Oh, sim. Desculpe por isso. Você sabe como eles conseguem pôr as
coisas fora do contexto.
— Sei sim — quase exclamei. — E, na verdade, eu é que lhe queria
pedir desculpas. Sei a reviravolta que pode acontecer na vida de alguém
quando a misturam com a minha e lamento que esteja a passar por isso.
— Eh, deixe-os falar — respondeu ele com uma gargalhada. — A
sério, não precisa de se desculpar. Mas, já que estou a falar consigo, queria
falar-lhe de uma ideia que tive.
— Claro.
— Sei que anda preocupada com a violência pós-castas e pensei que
poderia ser bom para si fazer algo semelhante a uma sessão municipal.
— O que quer dizer?
— Podia escolher um punhado de pessoas, de várias origens, para
virem até ao palácio e conversarem pessoalmente consigo. Seria uma
oportunidade única de ouvir o seu povo e, se convidasse a imprensa,
também poderia ser uma oportunidade espetacular para mostrar que o
palácio escuta realmente o seu povo.
Fiquei atordoada.
— Mas isso é uma ideia maravilhosa.
— Se quiser, eu posso tratar da maior parte dos preparativos. Tenho
algumas ligações com famílias que costumavam ser Oitos, bem como com
alguns que sentiram dificuldades em abandonar o seu estatuto de Dois.
Talvez pudéssemos planear convidar uma dúzia de pessoas, mais ou menos,
para não a sobrecarregar?
— Marid, isso parece-me perfeito. Vou pedir à minha dama de
companhia para lhe ligar. Ela chama-se Neena Hallensway e é tão
organizada como você parece ser. Ela conhece a minha agenda e é a pessoa
ideal para combinar a hora e a data.
— Excelente. Vou ficar à espera do telefonema dela.
Houve um longo silêncio e eu não sabia bem como terminar a
conversa.
— Obrigada — tentei. — Agora, mais do que nunca, preciso realmente
de provar o quanto me preocupo com o meu povo. Quero que saibam que,
daqui a poucos anos, serei tão capaz de os conduzir como o meu pai.
— Como alguém pode duvidar disso é um mistério para mim.
Sorri, encantada por ter acrescentado outro aliado ao meu arsenal.
— Desculpe a pressa, mas vou ter de desligar.
— Não tem qualquer problema. Falamos novamente em breve.
— Claro. Adeus.
— Adeus.
Desliguei o telefone e suspirei de alívio. Não fora tão estranho como
receara. As palavras do Marid ecoavam nos meus ouvidos. Deixe-os falar.
Eu sabia que eles iam falar sempre. Só esperava que, em breve, tivessem
algo de positivo para dizer.
Capítulo 13

— Espere, diga-me outra vez como é que estes tipos se movem? —


perguntou o Hale, antes de se esticar e agarrar em mais dois petits-fours,
colocando-os no prato.
— Os bispos movem-se na diagonal. Se fosse a si, eu não faria isso,
mas é o seu enterro.
Ele riu-se.
— Está bem. E estes castelinhos pequenos?
— Em linha reta, para os lados ou para trás e para a frente.
Ele moveu a torre, tomando mais um dos meus peões.
— Sinceramente, nunca diria que a Eadlyn era uma mulher de xadrez.
— E não sou. O Ahren costumava ser obcecado e obrigava-me a jogar
com ele todos os dias durante meses. Mas depois as coisas com a Camille
ficaram sérias e o tempo do xadrez transformou-se em tempo para escrever
cartas.
Movi o meu bispo e tomei o cavalo dele.
— Ui, nem sequer vi isso — lamentou-se ele entre dentadas. — Tenho
tido vontade de lhe perguntar sobre o Ahren, mas não sabia se queria falar
nisso.
Encolhi os ombros, preparada para ignorar o assunto, mas depois
recordei a mim mesma que se queria ter uma hipótese de ser feliz tinha de
deixar alguém passar para lá das minhas barreiras. Suspirando, disse a
verdade.
— Tenho saudades dele. É como se tivesse crescido com um melhor
amigo incorporado e agora ele foi-se embora. Tenho outras pessoas de
quem sou próxima, como a minha dama de companhia, a Neena. Acho que
só percebi o quanto me tinha aproximado dela quando o Ahren se foi
embora e fui capaz de dar por isso. Mas assusta-me. E se eu chegar ao
mesmo ponto a que cheguei com o Ahren, onde ela é a pessoa que procuro
para tudo, e depois algo acontece e ela vai-se embora?
O Hale acenava com a cabeça, enquanto ouvia, e eu pude ver que ele
estava a tentar reprimir um sorriso.
— Isto não tem graça! — queixei-me, atirando-lhe um dos seus peões
perdidos.
Ele riu-se alto, desviando-se.
— Não, não me estou a rir por causa disso. É que... da última vez que
falou desta maneira, você fugiu. Não está a usar uns ténis por baixo desse
vestido, está?
— Não. Não combinavam — provoquei. — Não, a sério, eu devia ter
confiado em si na altura, mas agora confio. Desculpe se sou lenta. Abrir-me
para as pessoas não é uma das minhas qualidades.
— Sem pressas. Sou uma pessoa muito paciente.
Não conseguia aguentar mais o olhar dele, portanto concentrei-me no
tabuleiro, observando as mãos dele a pairar por cima das peças.
— Quanto à forma como se sente em relação à Neena — continuou o
Hale —, mesmo que ela tivesse de se ir embora, isso não a tornaria menos
amiga, assim como o Ahren não é menos seu irmão. Talvez precise de se
esforçar mais para manter o contacto, mas, se os ama tanto como diz, vale a
pena.
— Eu sei que isso é verdade — admiti. — Apenas não torna as coisas
mais fáceis. É difícil para mim fazer amigos, já que não saio muito.
Portanto, preciso de manter os que tenho.
O Hale riu-se e não vi o que ele fez no tabuleiro.
— Bem, mesmo que não me escolha, prometo que tem a minha
amizade para toda a vida e, se precisar de mim, meto-me logo num avião
para Angeles.
Sorri.
— Uma coisa todos os dias.
Ele assentiu.
— Todos os dias.
— Precisava mesmo de ouvir isso. Obrigada. — Endireitei-me na
cadeira e comecei a pensar na minha próxima jogada. — E você? Quem é o
seu melhor amigo?
— Na verdade, fui interrogado sobre isso há algumas semanas, logo
depois da saída do Burke. O meu melhor amigo é uma rapariga e eles
pensaram que eu estava a escrever à «minha namorada de casa». Confesso
que foi humilhante ter de lhe pedir para telefonar a um guarda e explicar
que nós nunca, mas nunca mesmo, estivemos romanticamente envolvidos.
Mordi o lábio, feliz por ele ver humor naquilo.
— Lamento imenso.
— Está tudo bem. A Carrie achou um piadão a toda a situação.
— Bem, fico contente por ela ter aceitado tudo bem. — Clareei a
garganta. — Mas agora tenho de perguntar; nunca teve realmente uma
queda por ela?
— Não! — Ele quase estremeceu. — A Carrie é como uma irmã para
mim. Só a ideia de a beijar parece-me uma coisa completamente errada.
Ergui as mãos à minha frente, surpreendida com a forma como ele
ficara ofendido.
— Pronto. Não preciso de me preocupar com a Carrie. Já percebi.
— Desculpe. — O nojo no seu rosto transformou-se num sorriso
tímido. — É só que já me perguntaram isso um milhão de vezes. Outros
amigos, os nossos pais... é como se toda a gente tenha sempre querido que
ficássemos juntos e eu não sinto nada disso por ela.
— Eu percebo. As vezes parece que toda a gente quer que eu escolha o
Kile só porque crescemos juntos. Como se isso, por si só, fosse o suficiente
para garantir que nos vamos apaixonar.
— Bem, a diferença é que você tem realmente sentimentos pelo Kile.
Qualquer pessoa que vos veja consegue perceber isso. — Ele brincou com
um peão descartado.
Olhei para o meu colo.
— Não devia ter falado no assunto. Desculpe.
— Não, está tudo bem. Acho que a única maneira de mantermos a
sanidade no meio disto tudo é lembrando-nos de que quem conduz este
processo é a Eadlyn e que você é a única que decide as nossas hipóteses. A
única coisa que qualquer um de nós pode fazer é sermos nós mesmos.
— E quais acha que são as suas hipóteses, exatamente?
O sorriso dele desvaneceu-se.
— Não sei. Medianas?
Abanei a cabeça.
— Está a sair-se melhor do que isso.
— Sim?
— Sim.
O sorriso dele sumiu-se um pouco.
— Isso é fantástico, mas também é assustador. Há uma enorme
responsabilidade que acompanha a vitória nesta situação.
Assenti.
— Imensa.
— Acho que nunca parei realmente para pensar nisso. Mas com a
Eadlyn a atuar ultimamente como regente é tudo um pouco... esmagador.
Fitei-o, certa de que tinha entendido mal alguma coisa.
— Não está a tentar desistir, está?
— Não — disse ele, continuando a fazer rolar o peão na mão. — Estou
apenas a começar a encarar a magnitude de tudo isto. Tenho a certeza de
que a sua mãe também teve momentos como este.
Ele estava a ser estranhamente direto e isso parecia ter a ver com algo
mais profundo do que a sua frustração sobre a Carrie. Quando prossegui,
tentando manter um tom calmo, ele evitou o meu olhar.
— Entendi mal alguma coisa? Você foi sempre tão entusiasta, a ponto
de me questionar sobre a sua sanidade mental. O que se passa com esta
súbita perda de coragem?
— Eu não disse que tinha perdido a coragem — respondeu ele. —
Estava simplesmente a expressar uma preocupação. Você está
constantemente a expressar as suas preocupações. Em que é que isto é
diferente?
Havia muita verdade naquilo, mas eu tinha claramente tocado num
ponto sensível. E, depois de me ter esforçado tanto para me abrir com o
Hale, não percebia por que razão ele se estava a fechar comigo. Embora não
o considerasse o tipo de pessoa que me testasse só porque lhe apetecia,
perguntei-me se não estaria a tentar avaliar a minha paciência.
Abri e fechei as mãos por baixo da mesa, lembrando-me de que
confiava no Hale.
— Talvez seja melhor mudarmos de assunto — sugeri.
— Concordo.
Mas a única coisa que se seguiu foi o silêncio.
Capítulo 14

O salão estava preparado para a chegada dos visitantes. Duas filas de


cadeiras tinham sido colocadas como num estádio, recordando o modo
como os Selecionados se costumavam sentar para o Noticiário. Tínhamos
comida e bebidas em volta da sala, um posto de segurança na porta e
câmaras a filmar.
Atrás da equipa de produção, o grupo da Elite estava sentado junto da
parede e todos eles pareciam entusiasmados por haver uma parte do meu
trabalho que podiam observar. Fiquei contente por ver que o Kile e o Erik
(embora certamente a ação deste fosse mais em benefício do Henri) traziam
ambos blocos de notas. Tinham vindo trabalhar.
— Está linda — assegurou-me o Marid, provavelmente notando que eu
estava a puxar pelo meu colarinho.
— Estou a tentar parecer profissional sem tornar as coisas demasiado
formais.
— E conseguiu. Só precisa de se acalmar. Eles não estão aqui para a
atacar; estão aqui para falar consigo. A única coisa que tem de fazer é ouvir.
Acenei com a cabeça.
— Ouvir. Sou capaz de fazer isso. — Respirei fundo. Nunca tínhamos
feito nada de semelhante antes e eu estava ao mesmo tempo excitada e
aterrorizada. — Como encontrou estas pessoas? São seus amigos?
— Não exatamente. Alguns deles ligaram para programas de rádio que
fiz antes e outros foram sugeridos por conhecidos. E uma boa mistura de
estatutos sociais e económicos, o que deve criar uma discussão equilibrada.
Assimilei as palavras dele. Era o que isto era: uma discussão. Ia ver os
rostos das pessoas que viviam, de facto, no nosso país e ouvir as suas vozes.
Não era uma multidão enorme; era um grupo pequeno.
— Vamos conseguir, está bem? — disse ele, tranquilizador.
— Está bem. — Recordei a mim mesma que isto era uma coisa boa,
enquanto os nossos convidados começavam a entrar no salão.
Fui apertar a mão de uma mulher, que parecia ter demorado mais
tempo a fazer o seu penteado do que eu, e do seu marido, que, embora
atraente, era capaz de levar alguém ao desmaio com a quantidade de água-
de-colónia que tinha posto.
— Vossa Alteza — cumprimentou a mulher, fazendo uma reverência.
— O meu nome é Sharron Spinner e este é o meu marido, Don. — Ele fez
uma vénia. — Estamos muito satisfeitos por estar aqui. É muito simpático o
palácio ter arranjado tempo para ouvir o seu povo.
Acenei com a cabeça.
— Há muito que o devíamos já ter feito. Por favor, tomem uma bebida
e fiquem à vontade. Os produtores são capazes de os entrevistar, enquanto
as pessoas forem chegando, mas se não quiserem não têm obrigação
nenhuma de falar com eles.
A Sharron tocou no canto dos lábios, certificando-se de que a sua
maquilhagem estava o mais impecável possível.
— Nós não nos importamos, nada mesmo. Vamos, querido.
Mal consegui conter um revirar de olhos. Os Spinners pareciam um
pouco interessados demais em aparecer na televisão.
Atrás dos Spinners surgiram os Barnses e os Palters. Havia uma
rapariga sozinha, Bree Marksman, e dois homens mais jovens, Joel e Blake,
que se tinham conhecido na entrada e já conversavam como velhos amigos.
Finalmente, entrou um casal mais jovem, que se apresentou como os Shells.
Parecia que se tinham esforçado por arranjar algumas roupas decentes para
a ocasião, sem o conseguirem totalmente.
— Brenton e Ally, disseram? — Acenei com a mão, convidando-os a
caminhar ao meu lado.
— Sim, Vossa Alteza. Muito obrigado por nos receber. — O Brenton
sorriu, parecendo grato e tímido ao mesmo tempo. — Será que isto significa
que vamos conseguir mudar-nos agora?
Parei e virei-me para eles. A Ally engoliu em seco, tentando
claramente não ficar com esperanças.
— Mudar-se?
— Sim. Estamos a tentar sair da nossa vizinhança há algum tempo, em
Zuni.
— Não é muito seguro — acrescentou a Ally suavemente.
— Estamos a pensar em ter filhos. Mas os preços dos apartamentos
estão sempre a mudar.
— Temos amigos que se mudaram e não tiveram quaisquer problemas
— insistiu a Ally.
— Mas quando tentámos ir para a mesma zona, o aluguer era o dobro
do que o Nic e a Ellen pagam.
— Os proprietários disseram que os nossos amigos se devem ter
enganado quando nos disseram o preço, mas... bem, não quero acusar
ninguém de nada, mas o Nic nasceu como Três e nós os dois seríamos
Cincos.
— Só queremos viver num lugar mais seguro — acrescentou o
Brenton com um encolher de ombros. — Mesmo que Vossa Alteza não
possa resolver o problema, pensámos que falar consigo poderia ajudar as
coisas.
— Vossa Alteza — disse o produtor. — Desculpe interromper, mas
vamos começar. — Ele indicou os lugares aos Shells e eu sentei-me em
frente de todos, sem saber bem como começar.
Ri-me, tentando quebrar a tensão.
— Dado que nunca fizemos isto antes, não há um plano para
seguirmos. Alguém tem alguma pergunta?
Um dos homens mais jovens, Blake, lembrei-me, levantou a mão e vi
as câmaras mudarem de ângulo para focarem o seu rosto.
— Sim, Blake?
— Quando é que o rei vai voltar?
E, assim, num abrir e fechar de olhos, tornei-me insignificante.
— Não tenho a certeza. Depende de quando a minha mãe estiver
totalmente recuperada.
— Mas ele vai voltar, certo?
Forcei-me a sorrir.
— Se, por alguma razão, o rei não regressasse, o Estado continuaria
como de costume. Fui sempre a seguinte na linha de sucessão e tenho os
mesmos ideais que o meu pai. Ele queria muito acabar com as castas e,
agora que elas desapareceram, eu tentaria eliminar ainda mais as divisões
que deixaram.
Dei uma olhadela na direção do Marid, que me fez um sinal rápido
com os polegares para cima.
— Mas essa é a questão — começou o Andrew Barns. — O palácio
não fez nada para ajudar aqueles de nós cujos pais eram Cincos, Seis ou
abaixo.
— Acho que temos estado confusos em relação ao que seria mais
eficaz. Isso é parte da razão pela qual estão aqui hoje. Queremos ouvir as
vossas opiniões. — Cruzei as mãos no colo, esperando parecer controlada.
— Os monarcas alguma vez ouvem realmente os seus súbditos? —
perguntou a Bree. — Já pensou em entregar o governo ao povo? Não acha
que haveria a possibilidade de podermos fazer um melhor trabalho do que
vocês?
— Bem...
A Sharron interrompeu-me, virando-se para a Bree.
— Querida, tu mal te consegues vestir. Como achas que serias capaz
de gerir um país?
— Concedam-me o voto! — exigiu a Bree. — Só isso mudaria
bastantes coisas.
O Sr. Palter, Jamal, inclinou-se para a frente.
— És muito jovem — disse ele, atacando também a Bree. — Eu
também quero ver mudanças. Vivi no tempo das castas. Era Três e perdi
muito desde então. Vocês miúdos não sabem o suficiente sobre como as
coisas eram para poderem contribuir sequer para a conversa.
O outro rapaz levantou-se, enfurecido.
— Só porque sou jovem isso não significa que não presto atenção ou
que não conheço pessoas que passaram por dificuldades. Quero que este
país seja melhor para todos e não apenas para mim.
Tínhamos começado há menos de cinco minutos e toda a conversa
tinha-se já transformado num concurso de gritaria. Nem sequer parecia
fazer diferença eu estar ali. Muitas pessoas mencionavam-me, claro, mas
ninguém falava realmente comigo.
Suponho que tentar observar uma ampla gama de estilos de vida
implicava algum conflito, mas eu desejava que o Marid tivesse selecionado
melhor estas pessoas. Contudo, talvez ele o tivesse feito e, mesmo assim,
tínhamos acabado com pessoas que não se importavam se eu estava
presente ou não. Tinha passado tanto tempo preocupada com o facto de me
odiarem que não tinha parado para considerar a possibilidade de ser
simplesmente irrelevante para eles.
— Talvez possamos levantar as mãos um a um — sugeri, tentando
recuperar o controlo. — Não posso ouvir as vossas opiniões se falarem
todos ao mesmo tempo.
— Exijo o voto! — gritou a Bree e os outros calaram-se. Ela fitou-me
furiosa. — Vocês não fazem ideia de como as nossas vidas realmente são.
Olhem para esta sala. — Ela apontou para a pintura e para as tapeçarias
habilmente coordenadas, para os pratos de porcelana e para os copos
cintilantes. — Como podemos confiar no seu julgamento quando a princesa
está completamente desligada do seu povo? Você governa as nossas vidas
sem nenhuma compreensão do que significa viver como vivemos.
— Ela tem razão — disse a Suzette Palter. — A princesa nunca passou
um dia no meio da sujidade ou a correr de um lado para o outro. É fácil
tomarmos decisões sobre a vida das outras pessoas quando não temos de a
viver.
Fiquei ali sentada, a olhar para aqueles estranhos. Eu era responsável
por eles. Mas como poderia sê-lo? Como poderia uma só pessoa garantir
que todas as almas tinham todas as oportunidades possíveis, tudo o que
precisavam? Não era possível. E, no entanto, deixar o cargo também não
parecia ser a solução.
— Lamento, mas tenho que parar com isto — disse o Marid, saindo
das sombras. — A princesa é demasiado gentil para vos recordar quem é
exatamente, mas, como seu grande amigo, não posso permitir que falem
com ela desta forma.
Ele recordava-me alguns dos meus tutores, no modo como se
impunham sobre mim e me faziam sentir constrangida, mesmo quando eu
não tinha bem a certeza se havia alguma razão para tal.
— A princesa Eadlyn pode não ser a vossa soberana hoje, mas está
destinada ao trono. Adquiriu esse direito através de uma longa linhagem de
tradição e sacrifício. Vocês esquecem-se de que, enquanto vocês podem
escolher as vossas profissões, o sítio onde vivem e o vosso próprio futuro, o
dela foi-lhe atribuído quando nasceu. E ela aceitou de bom grado o peso
dessa responsabilidade por vossa causa.
»Gritar com ela por causa da sua juventude é injusto, pois todos
sabemos que o seu pai não tinha mais experiência quando subiu ao trono. A
princesa Eadlyn estudou incansavelmente ao lado dele durante anos e já
disse que pretende realizar as suas vontades. Digam-lhe como o fazer.
A Bree inclinou a cabeça.
— Já o fiz.
— Se está a sugerir que nos tornemos de repente uma democracia, isso
causaria mais caos na sua vida do que pode imaginar — insistiu o Marid.
— Mas, se quer um voto — comecei —, talvez pudéssemos falar sobre
como implementar isso localmente. É muito mais fácil que sejam os líderes
próximos de vocês, aqueles que veem realmente as vossas zonas no dia a
dia, a arranjarem forma de vos fornecer o que é mais necessário.
A Bree não sorriu, mas relaxou os ombros tensos.
— Seria um começo.
— Muito bem, então. — Vi a Neena a tomar notas ferozmente.
— Brenton, você mencionou algo sobre a habitação quando chegou. O
que me pode dizer mais sobre isso?
Ao fim de quinze minutos, o grupo chegou à decisão de que a
habitação nunca deveria ser negada a ninguém com base na sua profissão
ou casta anterior e que todos os valores deviam ser tornados públicos, para
que não pudessem ser elevados como forma de restringir o acesso de
determinadas pessoas.
— Não quero parecer arrogante — disse a Sharron —, mas alguns de
nós vivem em zonas onde preferimos... que certas pessoas não apareçam.
— Falhou — disse um dos rapazes. — Isso é completamente
arrogante.
Suspirei, pensando.
— Primeiro, suponho que se vive num bairro rico seria necessária uma
quantidade considerável de dinheiro para alguém se mudar para lá. Em
segundo lugar, está a assumir que as pessoas com poucos recursos seriam
vizinhos horríveis.
— O que você disse sobre mim, Suzette, estava certo. — Ela animou-
se ao ouvir o seu nome e sorriu por estar correta, ainda que não soubesse
sobre o quê. — Eu nunca vivi fora do palácio. Mas, graças à Seleção,
jovens de diversas origens entraram na minha vida e ensinaram-me imenso.
Alguns deles trabalhavam enquanto estudavam, ou apoiavam as suas
famílias, ou tentavam simplesmente dominar o inglês para poderem ter mais
oportunidades. Podem ter passado as suas vidas com muito menos do que
eu, mas enriqueceram a minha vida de um modo que nem sequer consigo
exprimir. Sharron? — perguntei. — Não valerá isso alguma coisa?
Ela não respondeu.
— No fim de contas, não posso forçar ninguém a tratar as pessoas
corretamente. Mas deve ficar na vossa consciência que as leis que eu criar,
quaisquer que sejam, não farão grande coisa a menos que cada um de vocês
decida mostrar bondade para com os vossos concidadãos.
Vi o sorriso do Marid e percebi que, embora não tivesse sido perfeita,
tinha dado um grande passo. Soube-me a vitória.
Quando a reunião acabou, sentia-me pronta para ter um colapso de
tensão. Quase duas horas de conversa equivaliam a uma semana de
trabalho. Graças a Deus, a Elite pareceu entender o quão esgotada eu estava
e saíram com pouco mais do que algumas vénias educadas. Haveria muito
tempo para discutir isto com eles mais tarde. Neste momento, eu só queria
cair num sofá.
Gemi para o Marid.
— Tenho a sensação de que vão querer que façamos isto novamente,
mas recuso-me até ter recuperado totalmente do dia de hoje. O que pode
demorar anos.
Ele riu-se.
— Saiu-se muito bem. Eles é que tornaram isto difícil. Mas,
considerando que esta era a primeira vez, ninguém sabia como se
comportar. Se fizer isto novamente, vai correr muito melhor de ambos os
lados.
— Espero que sim. — Esfreguei as mãos. — Fiquei a pensar na Bree,
em como era emotiva.
— Emotiva. — Ele revirou os olhos. — É uma maneira de o dizer.
— Estou a falar a sério. Isto era muito importante para ela — lamentei,
pensando em como ela parecera estar à beira das lágrimas algumas vezes.
— Estudei ciência política durante toda a minha vida. Conheço as
repúblicas, as monarquias constitucionais e as democracias. Pergunto-me se
ela poderá ter razão. Talvez devêssemos...
— Deixe-me interrompê-la logo aí. Já se esqueceu de como ela parecia
louca quando percebeu que não ia conseguir o que queria? Quer realmente
que as escolhas do país sejam feitas por alguém como ela?
— Ela é uma voz em milhões.
— Exatamente. E eu estudei política tanto como a Eadlyn e através de
uma lente muito mais variada. Acredite em mim, é muito melhor manter o
controlo aqui. — Ele segurou as minhas mãos nas dele, sorrindo com tanta
convicção que eu afastei os meus pensamentos. — E você é muito capaz.
Não deixe que um pequeno grupo de pessoas, sem qualquer ideia de como
expressar razoavelmente as suas opiniões, mine a sua confiança.
Acenei com a cabeça.
— Fiquei um pouco abalada, só isso.
— Claro que sim. Era um grupo muito difícil. Mas pode esquecer isso
tudo com uma garrafa de vinho. Sei que têm lojas excelentes aqui.
— Temos sim — respondi com um sorriso.
— Venha, então. Vamos celebrar. Você acabou de fazer uma coisa
maravilhosa para o seu povo. Acho que merece um copo.
Capítulo 15

— Bem, não foi excelente — admiti mas poderia ter sido muito pior.
— Digam à vossa filha para se valorizar mais — insistiu o Marid.
A minha mãe e o meu pai sorriram e fiquei feliz por os ter encontrado
no corredor. A voz do meu pai, acima de todas as outras, iria ajudar-me a
destrinçar exatamente o que tinha acabado de dizer e fazer.
— Nós tentamos, Marid, garanto-lhe. — O meu pai tomou um gole de
vinho antes de pousar o copo e afastá-lo para longe, para se servir de uma
chávena de chá, tal como a minha mãe.
O médico dissera que uma bebida ocasional não fazia mal, mas ela
claramente não estava interessada em arriscar e não me surpreendia que o
meu pai seguisse o seu exemplo.
— Como está a sua mãe? — perguntou a minha mãe. A expressão do
seu rosto indicou-me que estava desejosa de fazer a pergunta.
O Marid sorriu.
— Nunca para. Sente-se triste, claro, por não poder fazer coisas
maiores, mas trabalha diligentemente para cuidar daqueles perto de nós em
Columbia. Mesmo uma pequena boa ação é melhor do que nada.
— Concordo — respondeu a minha mãe. — Poderia, por favor, dizer-
lhe que penso nela com frequência?
Ela desviou rapidamente os olhos para o meu pai, que permaneceu
impassível, mas o Marid pareceu satisfeito.
— Digo sim. E posso assegurar-lhe que ela sente o mesmo.
A conversa interrompeu-se e todos se concentraram nas suas bebidas
por um instante. Finalmente, o meu pai salvou-nos do silêncio.
— Então, parece que havia um casal um pouco agressivo. A esposa,
qual era o nome dela?
— Sharron — disse o Marid e eu fiz coro.
— Ela tinha um objetivo.
— Todos eles tinham — disse eu. — Mas não era essa a intenção?
Toda a gente tem, provavelmente, uma ideia concreta de como melhorar a
sua vida no dia a dia. A parte mais difícil não foi eles terem essas opiniões,
foi o modo como as tentaram exprimir.
A minha mãe concordou.
— Tem de haver uma maneira de fazermos algo deste género sem tanta
gritaria. Torna tudo mais lento.
— Nalguns aspetos, mas noutros contribui para a discussão —
declarou o Marid. — Assim que lhes foi recordado com quem estavam a
falar, a conversa tornou-se muito mais clara.
— Acho sem dúvida que houve mais coisas positivas do que negativas
hoje — acrescentei.
O meu pai estava a olhar para a mesa.
— Pai? Não achas?
Ele olhou para mim, sorrindo.
— Sim, querida. Acho. — Suspirou, endireitando-se. — E devo-lhe
um agradecimento, Marid. Uma ação como esta é certamente um progresso,
não apenas para o palácio, mas para o país, e foi uma excelente ideia.
— Passarei os seus agradecimentos ao meu pai. Foi ele quem pôs a
ideia na minha cabeça há uns anos.
O meu pai fez uma careta.
— Então também lhe devo um pedido de desculpas. — Ele bateu com
o dedo na mesa, organizando os seus pensamentos. — Por favor, diga aos
seus pais que não precisam de se manter à distância. Só porque discordamos
sobre os métodos isso não significa...
O Marid levantou a mão.
— Não diga mais, Vossa Majestade. O meu pai já disse, em mais de
uma ocasião, que passou dos limites. Vou pedir-lhe para lhe ligar. Em breve.
O meu pai sorriu.
— Isso seria bom.
— Também acho — acrescentou a minha mãe.
— E você está convidado para nos visitar sempre que quiser —
acrescentei. — Especialmente se tiver mais ideias sobre como nos
aproximarmos do povo.
O rosto do Marid tornou-se triunfante.
— Oh, eu tenho muitas.
***
Na manhã seguinte, fui praticamente a primeira a chegar ao escritório,
batendo toda a gente, exceto o general Leger, que andava a remexer
vigorosamente nas gavetas da secretária do meu pai.
— General? — perguntei, anunciando-me.
Ele fez uma vénia rápida e regressou à sua busca.
— Desculpa. O teu pai partiu os óculos e disse que havia outro par na
secretária. Não estou a ter sorte nenhuma.
A voz dele estava áspera e ele fechou a gaveta com um empurrão,
antes de se virar para inspecionar a prateleira atrás dele.
— General Leger?
— Ele disse que estavam aqui. Será que estão mesmo debaixo do meu
nariz e não os vejo?
— Senhor?
— Uma coisa, era tudo o que eu tinha de fazer. Nem sequer consigo
encontrar um par de óculos.
— General?
— Sim? — respondeu ele sem olhar para mim.
— O senhor está bem?
— Claro. — Ele procurou e procurou, sem pausas, até eu colocar uma
mão suavemente no seu ombro.
— O senhor não iria mentir ao meu pai. Por favor, não me minta
também.
Ele levantou finalmente os olhos da sua tarefa, com uma expressão
perplexa.
— Quando é que ficaste tão alta? — perguntou. — E tão eloquente?
Parece que foi ontem que a tua mãe entrou a correr no nosso quarto para
nos chamar para vermos os teus primeiros passos. — Ele sorriu um pouco.
— Não sei se sabes, mas o Ahren quase te venceu. Mas, mesmo naquela
altura, não deixaste que ninguém te passasse à frente.
— O senhor ainda não respondeu à minha pergunta. Está bem?
Ele assentiu.
— Vou ficar. Nunca fui bom a aceitar a derrota, mesmo quando era a
melhor coisa. Na realidade, a Lucy está a aceitar isto melhor do que eu,
embora não muito. — Ele semicerrou os olhos. — Suponho que saibas do
que estou a falar.
Suspirei.
— Sei sim. Mas só um pouco. Tenho vergonha de admitir que tenho
estado tão concentrada em mim mesma que não percebi o quanto vocês
lutaram. Gostava de ter sido mais sensível em relação a toda a situação.
— Não te culpes. Nós não vivemos no palácio e não termos filhos não
é um assunto sobre o qual gostemos de conversar. Além disso, não há nada
que se possa fazer sobre o assunto.
— Nada?
— Como disse, estamos a aceitar a derrota. No início, achávamos que
tínhamos imenso tempo e depois, quando tentámos obter ajuda, as coisas
nunca funcionaram. A Lucy não aguenta mais. — Ele fez uma pausa,
engolindo em seco antes de me fazer um sorriso fraco. — Espero ter sido
justo contigo. Como conselheiro, como amigo. És o mais próximo que terei
de uma filha, portanto isso é muito importante para mim.
Dei por mim à beira das lágrimas, pensando em como tinha pensado
nele como um pai de reserva, não há muito tempo.
— Foi sim. Claro que foi. E não apenas para mim, mas para todas as
outras crianças deste palácio que ajudou a criar.
Ele semicerrou os olhos.
— O Sr. Woodwork partiu uma perna quando o Kile estava pronto para
aprender a andar de bicicleta. Lembro-me de si a correr atrás dele, na
gravilha em frente do palácio, até ele finalmente perceber como se
equilibrar.
O general Leger acenou com a cabeça, com um ligeiríssimo sorriso no
rosto.
— É verdade. Eu fiz isso.
— E a minha mãe e o meu pai estavam na Nova Asia quando o Kaden
perdeu o primeiro dente, lembra-se? E foi a Miss Lucy quem o ajudou a
tirá-lo. E ela ensinou a Josie a pôr eyeliner. Não se lembra de como ela se
gabou disso durante semanas?
— O que me lembro é da Marlee a dizer-lhe para o limpar — disse ele,
ficando mais animado.
— E o senhor ensinou o Ahren e o Kaden a manejarem uma espada. O
Kaden sugeriu recentemente um duelo e a primeira coisa em que pensei foi
que ele venceria sem qualquer dúvida, graças a si.
O general Leger observava-me.
— Valorizo essas memórias. Muito. Defender-vos-ia a todos até ao
meu último suspiro. Mesmo que não fosse essencialmente pago para isso.
Soltei uma risadinha.
— Eu sei. E é por isso que não há mais ninguém a quem confiasse a
minha vida. — Estendi-lhe a mão. — Por favor, tire o dia de folga.
Ninguém nos vai invadir hoje e se o fizerem eu chamo-o — acrescentei
rapidamente quando vi que ele ia protestar. — Passe algum tempo com a
Miss Lucy. Lembre-a de todas as coisas boas que vocês têm sido um para o
outro e recorde-a de tudo o que vocês têm sido para nós. Eu sei que isso não
substitui nada, mas faça-o, mesmo assim.
— Ainda não encontrei os óculos.
— Tenho a certeza de que ele os deixou no salão. Eu trato disso. Vá.
Ele apertou mais uma vez a minha mão antes de fazer uma vénia.
— Sim, Vossa Alteza.
Observei-o a sair, encostada à mesa, enquanto pensava no general e na
Miss Lucy e na sua vida juntos. Tinham enfrentado tanta tristeza, tanta
desilusão, e, no entanto, ele aparecia todos os dias, pronto para servir.
Assim como a Miss Lucy. Era estranho compará-los com os meus pais,
cujas vidas pareciam decorrer perfeitamente.
Eu estava rodeada por exemplos de como o amor, o amor verdadeiro,
podia tornar as circunstâncias menos incómodas, quer fosse enfrentando a
maior deceção de uma vida ou arcando com o peso de um país. Revi
mentalmente a minha lista de pretendentes, sentindo-me ao mesmo tempo
curiosa e assustada. A doçura do Kile, o entusiasmo do Fox, a alegria do
Henri... estas eram tudo coisas que me atraíram. Mas, além disso, será que
haveria ali algo de belo e duradouro?
Ainda não sabia.
Afastei o pensamento por enquanto e dirigi-me para o salão. Claro, os
óculos do meu pai estavam ali, desdobrados e de pernas para o ar, sobre
uma pilha de livros. Levei-os até ao quarto dele, ainda a pensar no futuro.
Esforçando-me para não acordar a minha mãe, caso ela estivesse a dormir,
bati na porta do escritório pessoal dele.
— Sim? — disse ele.
Entrei e encontrei o meu pai à secretaria, a franzir os olhos enquanto
olhava para alguns papéis.
— Encontrei isto — disse eu, erguendo os óculos e balançando-os
entre os dedos.
— Ah! És uma salva-vidas. Onde está o Aspen? — perguntou ele,
agarrando alegremente nos óculos e colocando-os na cara.
— Disse-lhe para tirar um dia de folga. Parecia um pouco em baixo.
O meu pai levantou de imediato a cabeça.
— Estava? Não percebi.
— Sim. Ele está a ter um dia mau, e acho que talvez a Miss Lucy
também.
Com a menção do nome dela, ele pareceu entender.
— Bem, agora sinto-me mal por não ter dito nada. — Ele recostou-se
na cadeira e esfregou as têmporas.
— Tens dormido bem, pai? — perguntei, mexericando num peso de
papel.
Ele sorriu.
— Estou a tentar, querida, a sério. Mas basta a tua mãe dar um pio e
acordo logo e depois fico a olhar para ela durante uma hora, antes de voltar
a acalmar o suficiente para adormecer novamente. Este ataque cardíaco
apanhou-nos de surpresa. Eu achava que, a acontecer alguma coisa, seria a
mim.
Acenei com a cabeça. Dera por mim a observá-lo muitas vezes
recentemente, perguntando-me se estaria bem. Mas a minha mãe? Ela
apanhara-nos a todos desprevenidos.
— A tua mãe continua a falar sobre aparecer no Noticiário amanhã,
como se fosse um sinal de que as coisas estão a voltar ao normal. Como se,
caso ela o consiga fazer, eu deva voltar ao trabalho. E sei que, assim que eu
voltar ao trabalho, ela também volta. Não estou a dizer que quero que ela
fique sentada o tempo todo a olhar para as paredes, mas a ideia de ela voltar
a ser a rainha, o dia todo, todos os dias... Não sei como o encarar.
Ele esfregou os olhos e deu-me um sorriso sem humor.
— E a verdade é que tem sido bom para mim fazer uma pausa,
respirar. Acho que não tinha percebido o quanto me estava a esforçar até ter
de parar. — Olhou para mim. — Não me lembro da última vez que estive
dez horas seguidas sem interrupção com a minha esposa. Ela tem umas
belas linhas de expressão perto dos olhos.
Sorri.
— Bem, tu dizes um monte de piadas péssimas, pai.
Ele assentiu.
— O que posso dizer? Sou um homem de muitos talentos. Mas isto
também é difícil de assimilar: quando ela voltar a ser a rainha, eu tenho de
voltar a ser o rei. E não sei quando irei ter outra semana como esta, só ela e
eu.
— E se ela não fizesse isso?
Ele semicerrou os olhos.
— O que queres dizer?
— Bem... — Aquilo andava a girar na minha cabeça desde a reunião
municipal do dia anterior. Provavelmente, nunca seria capaz de ajudar todo
o meu povo, mas poderia chegar a alguns. Esse pensamento entusiasmava-
me mais do que eu imaginara ser possível. E, pelo menos, poderia ajudar os
meus pais, o que recentemente me tinha começado a parecer um feito
monumental. Ainda assim, à medida que dizia as palavras, eu sabia que
aquilo era uma loucura completa.
— E se ela deixasse de ser a rainha? E se eu o fosse?
O meu pai ficou em silêncio, olhando para mim, incrédulo.
— Não o digo como um insulto — gaguejei. — Eu sei que és
totalmente capaz de liderar... mas tens razão. A mãe vai querer voltar a
assumir completamente o papel de rainha. Se eu fosse a rainha, ela teria de
fazer outra coisa.
Os olhos dele arregalaram-se, como se não tivesse considerado essa
opção.
— E se ela não fosse rainha e tu não fosses rei, e este intervalo não
tivesse acontecido quando ela está a recuperar de um ataque cardíaco,
talvez vocês pudessem fazer mais do que ficarem sentados sem fazer nada.
Talvez pudessem viajar ou algo assim.
Ele pestanejou, estupefacto perante a possibilidade.
— Até poderíamos fazer isso esta semana. Eu posso mandar fazer um
vestido de coroação, a Lady Brice e a Neena podem organizar tudo e tu
sabes que o general Leger irá garantir que todo o evento é seguro. Não
terias de te preocupar com nada.
Ele engoliu em seco, desviando o olhar.
— Por favor, pai, nada disto é um insulto. Eu...
Ele levantou a mão e eu calei-me, chocada por ver lágrimas nos seus
olhos quando ele se virou novamente para mim.
— Não me sinto insultado — respondeu ele roucamente, antes de
clarear a garganta. — Estou tão orgulhoso de ti.
Sorri.
— Então... vais deixar-me assumir o trono?
— Vais passar por um momento difícil — disse ele, sério. — As
pessoas estão inquietas.
— Eu sei. Não tenho medo. Bem, não tenho muito medo.
Rimo-nos juntos.
— Vais ser maravilhosa.
Encolhi os ombros.
— Não sou como tu. E, definitivamente, não sou a mãe. Mas posso
fazer isto. Tenho ajuda e ainda vos tenho aos dois. E, entre todos nós, talvez
possa parecer uma rainha decente.
Ele abanou a cabeça.
— És mais do que decente, Eadlyn. Talvez não te tenha dito o
suficiente, mas és uma jovem extraordinária. Inteligente, engraçada e capaz.
Vai ser um privilégio ser teu súbdito. — As palavras dele eram tão genuínas
que dei por mim a pestanejar para conter as lágrimas.
Não tinha percebido, até àquele momento, como a opinião dele sobre
as minhas ações era importante para mim. Mas devia ter percebido,
considerando todos os passos que tinha dado por sugestão dele. O facto de
ele aprovar as decisões que eu estava a tomar por mim mesma tinha um
significado imenso.
Ele respirou fundo.
— Muito bem. — Pondo-se de pé, ele deu a volta à mesa e fez deslizar
o seu anel de sinete do dedo anelar, colocando-o no dedo médio da minha
mão. Os seus olhos, tão límpidos como já não os via há dias, fitaram
profundamente os meus. — Fica-te lindamente.
Inclinei a cabeça.
— Quase tudo fica.
Capítulo 16

Quando a minha mãe entrou no estúdio, na sexta-feira à noite, toda a


sala irrompeu em aplausos. Reconhecendo o apoio, ela fez um aceno com a
mão. O meu pai seguia ao seu lado, tão perto que não se conseguia ver uma
réstia de luz entre eles. Ela coxeava ligeiramente, devido ao facto de os
médicos lhe terem retirado uma veia da perna, mas era tão graciosa que
tínhamos de prestar atenção para o notar. Escolhera um vestido com um
decote alto e eu podia ver, pela forma como ela estava constantemente a
mexer nele, que estava um pouco ansiosa por causa da sua cicatriz.
— Estás linda — disse eu, avançando ao lado dela e do meu pai,
tentando distraí-la.
— Obrigada. Tu também.
— Como te estás a sentir, pai? — Espreitei para lá da minha mãe,
tentando avaliar as emoções dele.
Ele inclinou a cabeça de um lado para o outro.
— Em parte aliviado, em parte nervoso. Não sobre ti, vais sair-te bem.
Apenas estou preocupado com a reação.
Notei que ele parecia um pouco mais descansado e conseguia perceber
que ver a minha mãe elegantemente vestida melhorara o seu ânimo.
— Eu também. Mas sabíamos que mais cedo ou mais tarde este dia
chegaria. Prefiro fazer isto agora e ajudar quando é mais preciso.
A minha mãe soltou um suspiro melancólico.
— Finalmente fora dos holofotes e em segundo plano — disse ela. —
Senti falta disso.
— As pessoas ainda nos vão observar, minha querida — disse o meu
pai. — Tenta manter-te animada esta noite e eu estarei ao teu lado se
precisares de mim.
— Então, o costume?
Ele sorriu.
— O costume.
— Olhem, eu não tenho planos para vos pôr a andar nem nada disso,
mas se continuarem a ser lamechas o tempo todo, enfio-vos numa casa no
campo num abrir e fechar de olhos.
A minha mãe beijou-me na cabeça.
— Boa sorte para esta noite.
Eles dirigiram-se para as cadeiras enquanto eu fui ao encontro dos
rapazes.
— Vossa Alteza. — O Ean fez uma vénia profunda e o seu sorriso era
mais luminoso do que o habitual.
— Olá, sir.
— Como está hoje?
— Bem, acho. Vai ser um programa muito entusiasmante.
Ele inclinou-se para mim.
— Estou sempre pronto para um pouco de entusiasmo — sussurrou.
O Ean cheirava a água-de-colónia e a tabaco e, tal como tinha
acontecido assim que o conhecera, algo de ligeiramente hipnótico preenchia
o ar em redor dele.
— Tenho estado muito ocupada ultimamente, mas estive a pensar que
talvez devêssemos ter um encontro em breve.
Ele encolheu os ombros.
— Só se o quiser. Como eu disse, não tenho nenhuma intenção de
exigir nada de si.
— Então, sente-se bastante confortável?
— Sim — respondeu ele com um sorriso. — E, como sempre, estou
aqui para si de qualquer forma que precisar.
Ele fez-me uma vénia e afastou-se, sentando-se ao lado do Hale, que
lhe sussurrou algo quando se aproximou. Vi o Ean abanar a cabeça em
resposta. O Hale pareceu inquieto e percebi que não tínhamos falado desde
o desastre do nosso último encontro. Não tinha a certeza se já estava pronta
para resolver essa situação.
Contudo, aproximei-me do meu pequeno grupo de pretendentes.
— É tão bom ver a rainha de volta — disse o Fox.
Fiz um grande sorriso.
— É sim. Ela vai dar uma pequena informação sobre a sua situação,
haverá as notas normais dos conselheiros e, em seguida, o meu pai fará um
grande anúncio. Vocês estão dispensados esta noite.
— Graças a Deus. — O Kile recostou-se na sua cadeira, sorrindo.
Soltei uma risadinha.
— Conheço a sensação. Portanto, só têm de ficar aí e parecerem
bonitos.
— Feito — brincou o Ean, algo que eu não pensara que ele fosse capaz
de fazer. O Hale riu-se e o Henri sorriu, embora a sua expressão me
mostrasse que não entendera o que tinha acontecido.
Comecei a afastar-me, abanando a cabeça, quando fui surpreendida
pelo leve roçar de dedos contra o meu pulso.
— Desculpe, Vossa Alteza — disse o Erik. — Queria saber se me devo
sentar com o público, uma vez que não haverá perguntas esta noite.
Os seus olhos azuis captavam as luzes intensas do estúdio, brilhantes e
límpidos.
— Está com medo que eu o arraste para o meio do palco, se não se
esconder?
Ele soltou uma risada.
— Mais do que imagina.
— Não se preocupe. Está a salvo. Mas o Henri precisa de perceber o
anúncio do meu pai, portanto, fique por perto.
Ele assentiu.
— Ficarei. Sente-se bem? Parece um pouco nervosa.
— E estou. Muito — confessei.
— Há algo que possa fazer por si?
Coloquei uma mão no ombro dele.
— Faça figas. Vai ser uma noite interessante.
Sentei-me ao lado da minha mãe, olhando para a pequena multidão. A
escolha de vestuário da Josie deixou-me perplexa mais uma vez. Estava
coberta por tantas lantejoulas que se poderia pensar que ia aparecer perante
as câmaras esta noite. Talvez fosse esse o seu plano, estar preparada no caso
de isso alguma vez acontecer.
O general Leger ficava normalmente de pé, mas esta noite estava
sentado ao lado da Miss Lucy. Ela inclinou-se para ele e ele virou a cabeça
ligeiramente para lhe dar um beijo suave na testa. Nenhum dos dois olhou
um para o outro ou falou, mas eu percebi que havia algum tipo de
comunicação sem palavras a decorrer e ambos pareciam envolvidos no
momento.
Poderia ter ficado a observá-los durante horas, mas distraí-me. O
Kaden acenava freneticamente, pondo os dois polegares para cima, e eu
sorri, dando-lhe um pequeno aceno em resposta.
— Se ele está assim tão animado com o que está para vir, imagina o
entusiasmo do Ahren quando souber. — A minha mãe puxou novamente
pelo colar, organizando todas as suas camadas protetoras.
— Sim — respondi frouxamente, pensando que, se ele não era capaz
de me ligar para dizer como estava, poderia nem sequer ficar entusiasmado.
As câmaras acenderam-se e o programa começou.
A mãe abriu o Noticiário garantindo que estava a recuperar.
— Estou muito bem, graças ao trabalho dos nossos excelentes médicos
e aos cuidados da minha família — assegurou ela. Eu sabia que esta era a
única notícia que interessava ao público até ao nosso grande anúncio. Se eu
mesma mal conseguia prestar atenção às atualizações sobre financiamentos
e relações internacionais, duvidava que o resto do país conseguisse.
Finalmente, o meu pai avançou até ao pódio no meio do palco.
Olhando para a câmara, exalou lentamente.
— Meu povo — começou, mas parou rapidamente e virou-se para
olhar para a minha mãe e para mim. Peguei na mão dela, temendo que ele
mudasse de ideias. Apesar de me assustar imenso tomar o lugar dele, se
recuasse agora iria sentir-me como se tivesse falhado.
Ele olhou para nós as duas por um instante e os seus lábios formaram
lentamente um sorriso. Depois olhou novamente para a câmara.
— Meu amado povo, estou perante vocês hoje à noite para pedir a
vossa misericórdia. Em vinte anos como rei, fiz o meu melhor para aliviar
as guerras e os problemas que ameaçaram a nossa paz durante tanto tempo.
Formámos novas alianças, livrámo-nos de práticas sociais arcaicas e
fizemos tudo o que pudemos para vos dar melhores oportunidades para
alcançarem a felicidade pessoal. Agora, peço-vos que façam o mesmo por
mim.
»Com o recente susto em termos de saúde da minha esposa, encontro-
me incapaz de me concentrar no futuro do nosso país e muito menos em
manter o que temos atualmente. Como tal, depois de muita reflexão e
discussão, a nossa família decidiu que a minha filha, a princesa Eadlyn
Schreave, irá subir ao trono.
Ele fez uma pausa para deixar as palavras assentarem e nesse instante
ouvi o som mais inesperado: aplausos.
Levantei os olhos e vi que eram os rapazes. Estavam a aplaudir-me. O
Kile pôs-se de pé, emocionado com a notícia, e o Hale juntou-se a ele,
enfiando os dedos na boca para dar um assobio. Depois de toda a Elite ficar
de pé, percebi que todos no estúdio se tinham juntado a eles. E não apenas a
Miss Marlee e o general Leger, mas também as raparigas da maquilhagem e
os estagiários que faziam com que o programa prosseguisse sem
sobressaltos.
Os meus lábios tremeram um pouco, completamente dominada pela
sua alegria instantânea. Reforçou a minha confiança. Talvez nos tivéssemos
preocupado sem razão.
O meu pai, encorajado pela reação, continuou assim que o barulho
cessou.
— Estamos neste momento a definir planos para a coroação, a qual
acontecerá até ao final da próxima semana. Tendo trabalhado lado a lado
com a princesa durante toda a sua vida, sei que o nosso país não poderia
estar em melhores mãos. Devo também dizer-vos que ela se ofereceu para
assumir este papel precocemente, a fim de que a sua mãe e eu possamos
deixar a liderança e desfrutar simplesmente da nossa vida enquanto marido
e mulher, uma vida que ainda não tivemos o privilégio de viver. Espero que
celebrem comigo esta notícia maravilhosa. Toda a nossa família vos
agradece, ao nosso povo, pelo vosso continuado apoio.
Assim que o meu pai terminou de falar, as palmas e os assobios
começaram de novo. Passámos um pelo outro, quando me dirigi para o
pódio, e quando ele levantou a mão para bater na minha não pude deixar de
responder. Parei em frente do pódio, sentindo-me bastante nervosa.
— Quero agradecer a todos no palácio pela sua ajuda e orientação
desde que me tornei regente e dizer a toda a Illéa o quão feliz estou por
ascender ao trono. Não me é possível exprimir a alegria que sinto pelo facto
de poder fazer isto pelos meus pais. — Isto era a coisa mais verdadeira que
sentia. Nem todos os nervos do mundo o poderiam apagar. — E o facto de
eu assumir o cargo de rainha significa que um destes senhores aqui não vai
ser simplesmente um príncipe. Passará a ser imediatamente príncipe
consorte.
Olhei para eles por cima do ombro e, enquanto alguns, como o Fox e o
Kile, pareciam em êxtase, o Hale franzia a testa. Então, a outra noite não
fora apenas um acaso. Ele estava a ter dúvidas genuínas. O que teria
acontecido? Como é que eu o tinha perdido?
— A minha coroação será uma das maiores celebrações que o palácio
já viu. Por favor, dirijam-se ao vosso Departamento de Serviços Provinciais
para obterem informações, pois uma família de cada província será
convidada para o palácio, com todas as despesas pagas, para desfrutar das
festividades. — Isto tinha sido ideia minha, ideia que tinha a certeza que o
Marid apreciaria. — E, claro, a nossa família apreciará o vosso apoio
durante este período de transição. Muito obrigado, Illéa. Boa noite!
Fui ter com os meus pais assim que as câmaras pararam.
— Conseguem acreditar?
— Correu tudo muito bem — disse a minha mãe. — Os rapazes a
aplaudirem e começando tudo sozinhos. Foi tão orgânico e sei que isso deve
ter encorajado as pessoas em casa.
— É um bom sinal — concordou o meu pai. — E acho que o facto de
o teu marido se tornar imediatamente príncipe consorte acrescenta sem
dúvida algo a esta Seleção.
— Como se já não fosse suficientemente louca. — Suspirei e sorri,
sentindo-me demasiado feliz para me importar com o facto de isto ser tudo
uma loucura completa.
O meu pai beijou-me a testa.
— Foste maravilhosa. E tu, precisas de descansar um pouco? —
perguntou ele, virando-se para a minha mãe.
— Estou bem. — Ela revirou os olhos enquanto saíam do palco.
— Tens a certeza? Podíamos pedir o jantar no nosso quarto.
— Deus me ajude, se fizeres isso atiro-to à cabeça.
Soltei uma gargalhada. Estava a fazer cada vez mais sentido que eles
tivessem discutido durante toda a sua Seleção.
Agora eu só precisava de conseguir terminar a minha.
Capítulo 17

Desci para o pequeno-almoço, na manhã seguinte, com o jornal bem


seguro na mão. Passei como um raio pelos guardas e pela Elite e coloquei-o
em frente da minha mãe e do meu pai.
— Olhem — insisti, apontando para o título.
«O que é que eles sabem que nós não sabemos?» lia-se na manchete e,
na foto por baixo, os rapazes apareciam todos de pé a aplaudir, no
Noticiário.
O meu pai agarrou no jornal, colocou os óculos e leu o artigo em voz
alta, embora sem projetar a voz para que a sala inteira ouvisse.
— «Quando pensamos na princesa Eadlyn Schreave, as primeiras
palavras que nos vêm à mente poderão não ser agradável, entusiasta ou
amada. Tem, certamente, classe e beleza e, embora ninguém possa
questionar a sua inteligência, poderão existir motivos para questionarmos
outras características, como a sua devoção ao seu povo. Portanto, temos de
perguntar o que é que estes jovens, estes filhos de Illéa, sabem sobre ela que
nós não sabemos?»
A minha mãe olhou para mim, sorrindo.
— «Quando os cinco cavalheiros restantes na Seleção se levantaram e
aplaudiram instantaneamente o anúncio da ascensão da princesa, tenho de
admitir que essa não foi a reação inicial deste repórter. Fiquei preocupado.
Ela é jovem. É distante. Não conhece o seu povo.
»Mas se estes rapazes, todos exceto um, estranhos para ela até há
pouco tempo, decidiram imediatamente celebrar, então a nossa próxima
rainha deve ser mais do que apenas um rosto bonito. Recentemente, a Elite
disse que ela era atenciosa e envolvente. Serão estas qualidades que ela
sempre teve e que, simplesmente, não têm sido fáceis de passar para o ecrã?
Será ela uma líder genuína, preparada para se sacrificar pelo seu povo?
»A natureza da sua ascensão à coroa sugere que a resposta é
afirmativa. O rei e a rainha ainda são jovens. Ainda são física e men‐
talmente capazes de continuar o seu reinado. Ver a princesa assumir a coroa
tão cedo, para que eles possam desfrutar de tempo juntos enquanto casal,
mostra não só o seu amor pela sua família, como também o seu
compromisso para com o seu trabalho.»
Eu podia ver os olhos da minha mãe a encherem-se agora de lágrimas.
— «Só o tempo dirá se estes pressupostos demonstrarão ser ver‐
dadeiros, mas posso dizer que a minha fé na coroa foi, pelo menos
temporariamente, restaurada.»
— Oh, querida — exclamou a minha mãe.
O meu pai devolveu-me o jornal.
— Eady, isto é ótimo.
— É a coisa mais encorajadora que aconteceu publicamente em muito
tempo — concordei com um suspiro de satisfação. — Estou a tentar não ter
demasiadas esperanças, mas isto faz com que seja muito mais fácil ir
trabalhar hoje.
— Espero que estejas a planear uma manhã calma. — A minha mãe
lançou-me um olhar penetrante. — Não quero que fiques esgotada ainda
antes de começares.
— Poderia dizer-te que tenho planeada uma manhã simples, mas seria
mentira — admiti. — Estou neste momento a caminho de uma aula de
finlandês. Fazes alguma ideia da dificuldade que é contar em finlandês?
O meu pai bebeu um gole de café.
— Ouço a língua há anos. Dou-te os parabéns por tentares.
— O Henri é muito doce — comentou a minha mãe. — Não é a
direção que esperava que tomasses, mas vai certamente fazer-te sorrir.
— Pfff. — O meu pai virou-se para ela. — O que é que tu sabes sobre
escolher um marido? Da última vez que tentaste acabaste comigo.
Ela sorriu e bateu-lhe no braço.
— Vocês os dois são mesmo nojentos, estragam tudo. — Virei-me e
dirigi-me para a porta.
— Tem um ótimo dia, querida! — exclamou a minha mãe e eu levantei
a mão num aceno antes de fazer uma paragem junto do Henri.
— Hum. Lähteä?
Ele fez um sorriso rasgado.
— Sim! Bom, bom! — Deixou cair o guardanapo no prato e pegou-me
no braço.
— Esperem! — chamou o Fox e o Kile veio logo atrás dele. — Isto
deixa-me entusiasmado. Acho que me saí muito bem da última vez.
— O Erik é um professor muito encorajador. Podemos estar apenas a
juntar sons aleatórios, mas ele diz sempre «boa tentativa» — disse o Kile
com uma gargalhada.
Acenei com a cabeça.
— Talvez seja uma coisa norueca? O pobre do Henri ficou a ajudar-
me da última vez e teve de agarrar na minha cara porque eu estava a fazer
os movimentos errados. — Imitei a ação e o Henri compreendeu, sorrindo
para nós. — E ficou incomodado? Nada.
Assim que mencionei o assunto, lembrei-me de que o Henri e eu
tínhamos estado quase à beira de um beijo nessa altura. E, embora me
sentisse aliviada por ver que nenhum deles parecia ter dado por nada, o que
mais me impressionou foi o facto de eu não ter sequer pensado nesse quase
beijo.
Quando chegámos à biblioteca, o Erik já lá estava, a escrever no
quadro.
— Bom dia, professor — cumprimentei, aproximando-me dele.
— Vossa Alteza. Ou será que agora devemos dizer Vossa Majestade?
— Ainda não! — exclamei. — Só de pensar nisso tenho arrepios.
— Bem, estou muito feliz por si. Todos nós estamos. Quero dizer,
todos eles estão — corrigiu ele, apontando para a Elite e incluindo o Hale e
o Ean, que vinham atrás de todos. — Não tinha a intenção de me considerar
um deles. É que vejo a reação de todos de perto.
— Não seja tonto. Você faz parte do grupo. — Ri-me, olhando em
volta da sala. — Às vezes, isto parece mais um clube estranho do que uma
competição.
— Tem razão. Mas isso não muda o facto de o ser.
O tom sombrio dele fez com que eu olhasse para o seu rosto. Ele
evitou o meu olhar e em vez disso agarrou num punhado de papéis e deu-
mos.
— Sou extremamente sortudo por poder dizer que ajudei a nova rainha
a aprender finlandês! — Os olhos dele brilhavam de orgulho.
Deitei uma olhadela aos outros, observando-os a escolher os lugares, e
aproximei-me um pouco mais dele, de modo a manter as minhas palavras só
entre nós.
— Vou sentir a sua falta também, sabe. Quando tudo isto acabar. Você
representa tanto para mim como os outros. Mais do que alguns.
Ele abanou a cabeça.
— Não devia dizer isso. Não sou como eles.
— Você é exatamente como eles. Igualmente comum e igualmente
elevado, Eikko.
Ele ficou imóvel ao ouvir o seu verdadeiro nome e, muito
ligeiramente, moveu os lábios num pequeno sorriso.
— Ei, Eady — chamou o Kile. — Queres ser a minha parceira?
— Está bem. — Fui ter com ele e o Erik seguiu-me.
— Vamos passar alguns minutos a rever o que aprendemos na semana
passada — começou o Erik. — Depois seguimos para algumas perguntas e
respostas básicas de conversação. Sei que alguns de vocês estiveram a
estudar outras coisas e terei todo o prazer em vos ajudar com isso também.
Por agora, vamos voltar aos números.
— Pronto, aqui vamos nós. Yksi, kaksi, kolme, neljä, viisi — recitou o
Kile com orgulho.
— Como é que consegues isso? Que inveja.
— Praticando. Não tens uma hora livre para te dedicares à contagem
em finlandês?
Ri-me.
— Ando a tomar banho a velocidades alucinantes hoje em dia. Sinto
falta do meu tempo. Mas vai valer a pena para dar aos meus pais tempo
para respirarem.
— É estranho dizer-te que estou orgulhoso de ti, mas estou. — Ele
tentou suprimir um sorriso e falhou. — Isso diz-me que não me estou a
apaixonar por algo imaginário e que tu és mesmo tão inteligente, altruísta e
determinada como comecei a achar que és.
— Ao contrário da Eadlyn de há aproximadamente um ano? — disse
eu maliciosamente.
— Não me interpretes mal, ela era uma rapariga divertida. Sabia como
dar uma festa, como iluminar uma sala. Esta rapariga faz isso e uma centena
de outras coisas. E eu gosto dela. Mas isso já tu sabes.
— Eu também gosto de ti — sussurrei. Vi o Erik pelo canto do olho e
voltei a minha atenção para a folha. — Tropeço sempre no oito e no nove
porque são semelhantes, mas muito diferentes ao mesmo tempo.
— Está bem. Vamos então olhar para eles novamente.
O Erik afastou-se e senti-me culpada por desperdiçar tempo de aula
quando se tratava de algo que eu queria de facto aprender.
— Falando de gostar de ti, desculpa por não ter conseguido arranjar
tempo.
O Kile encolheu os ombros.
— Não te preocupes comigo, Eady. Ainda estou aqui.
Dizendo isso, ele apontou para o papel à minha frente, obrigando-me a
concentrar-me nas sílabas. Vi-o exagerar a forma das palavras com a boca,
sentindo-me o tempo todo grata pelo idioma e pelo tempo e por tudo o que
me aguardava.
***
Abri a porta do escritório e encontrei a Lady Brice ao telefone. Ela
acenou para mim, continuando a falar.
— Sim... sim... daqui a uma semana. Obrigada! — Desligou o
telefone. — Desculpe. A sua secretária é maior e, com a coroação daqui a
uma semana, há muito para fazer. As flores estão prontas, a igreja está
reservada, temos três designers a trabalhar em várias opções de vestidos e
se quiser que a Neena verifique alguma destas coisas tenho a certeza de que
ela ficará entusiasmada.
Olhei para as pilhas de pastas diante dela.
— Fez isso tudo num dia?
— Mais ou menos.
Fiz-lhe uma careta e ela sorriu antes de confessar a verdade.
— Tinha a sensação de que ia acontecer, portanto tinha algumas coisas
organizadas só por precaução.
Abanei a cabeça.
— Conhece-me melhor do que eu mesma.
— Faz parte do meu trabalho. Um aparte — disse ela. — Recebi um
telefonema do Marid esta manhã. Agradeceu o convite para a coroação
enviado à família, mas não tinha a certeza se os pais dele seriam
completamente bem-vindos.
— Falei com o meu pai. Ele sabia disso, certo?
— Sim.
Suspirei.
— Mas o Marid vem?
— Sim. E depois de tudo isto passar e a Eadlyn se sentir à vontade
como rainha, pode continuar a aproximar-se deles, se quiser.
Assenti com a cabeça.
— Se for algo que possa ser consertado, quero que seja feito.
— Parece-me uma decisão bastante sábia.
Inspirei profundamente, deliciando-me com o elogio. Precisava de
manter as palavras amáveis que recebia perto de mim, como uma armadura,
para conseguir sobreviver.
— Estou pronta para trabalhar. Pode começar.
— Na verdade, acho que o melhor uso do seu tempo poderá ser falar
com alguns dos rapazes da Elite, ter um encontro ou algo assim.
— Acabei de estar com eles — protestei. — Estão todos bem.
— Estava a pensar mais num encontro a sós. Além dos detalhes da
coroação, com os quais nem sequer se deve incomodar, não há nada que não
possa esperar até segunda-feira. A sua vida profissional está a avançar e foi
a Eadlyn quem disse que esta estava interligada com a sua vida privada. —
Ela ergueu as sobrancelhas para mim.
— Está bem.
— Porque está tão triste? Se bem me lembro, você acha que os cinco
têm todos hipótese.
— É complicado. Aquele com quem mais precisava de falar pode nem
sequer querer falar comigo. — Suspirei. — Deseje-me sorte.
— Não precisa disso.
Capítulo 18

Sentei-me no meu quarto, à espera que o Hale chegasse.


Queria ter esta conversa num lugar íntimo e confortável. Tinha as
mãos suadas e percebi, abruptamente, que só me restavam os rapazes que
não queria mesmo mandar para casa. Sabia que apenas um ficaria no final,
mas quase desejei que os outros pudessem também considerar o palácio
como sua casa ou que talvez prometessem aparecer de visita nas férias.
Ergui a cabeça quando ouvi a pancada na porta e fui abri-la. Não
queria a Eloise por perto nesta situação.
O Hale fez uma vénia.
— Vossa Alteza.
— Entre. Tem fome? Ou sede?
— Não, estou bem. — Ele esfregou as mãos, parecendo tão nervoso
como eu.
Sentei-me à mesa e ele imitou-me.
Quando não consegui aguentar mais o silêncio, falei.
— Preciso que me diga o que se passa.
Ele engoliu em seco.
— Eu quero dizer-lhe. Mas não sei o que farei se acabar por me odiar
por causa disso.
Apesar do calor, senti um arrepio.
— Porque é que o odiaria, Hale? O que é que você fez?
— Não é algo que tenha feito. É algo que não posso fazer.
— E isso é?
— Casar consigo.
Embora estivesse à espera de algo semelhante, embora o meu coração
nunca tivesse sido verdadeiramente dele, ainda assim era um golpe
doloroso.
— O que... — Tive de parar para respirar. O meu pior receio ganhava
vida. Era impossível de amar. Eu sabia. Apenas fora preciso ele passar
algumas semanas ao meu lado para o descobrir. — O que é que aconteceu
de repente para ter tanta certeza de que não se pode casar comigo?
Ele fez uma pausa, parecendo em sofrimento, e eu retirei algum
consolo do facto de ele não parecer querer magoar-me.
— Quando descobri que tinha sentimentos por outra pessoa.
Pelo menos, era mais fácil lidar com isto do que com a minha
preocupação inicial.
— A Carrie?
Ele abanou a cabeça.
— O Ean.
Fiquei em silêncio absoluto. O Ean? Como no Ean?
Aquela apanhara-me mesmo desprevenida. O Hale tinha sido tão terno,
tão romântico. Mas, de repente, tudo ficou claro em relação ao Ean.
Quando as castas ainda vigoravam, a lei indicava que cada família
pertencia à casta do marido. Por essa razão, apenas poderia haver um
homem como chefe de família. O mesmo acontecia com as mulheres; sem
casamento não havia uma família legítima. Algumas pessoas viviam juntas,
sem se preocuparem em casar e apresentando os seus amantes como
companheiros de casa, mas isso não era visto com bons olhos. A mãe
falara-me de um casal do mesmo sexo em Carolina, que tinha sido rejeitado
ao ponto de ser expulso da cidade.
Eu nunca tinha ligado a essa história. Parecia-me que havia
demasiadas pessoas com dificuldades quando ela era jovem. Por que razão
é que alguém se iria esforçar para tornar a vida de outra pessoa mais difícil?
Fosse como fosse, os casais do mesmo sexo tendiam a viver nas
sombras, à margem da sociedade, coisa que, infelizmente, ainda acontecia
atualmente. Isto tornava a aceitação do Ean em relação a não encontrar
amor na sua vida muito mais compreensível.
Mas o Hale?
— Como... como é que vocês...?
— Começámos a conversar uma noite, no Salão dos Homens. Eu não
conseguia dormir e decidi ir até lá para ler. Encontrei-o a escrever no seu
diário. — O Hale sorriu para si mesmo. — Ninguém diria, olhando para ele,
mas o Ean é muito poético.
»De qualquer forma, ficámos a conversar. Nem sei como acabámos
sentados um ao lado do outro, mas então ele beijou-me e... eu percebi por
que razão nunca tive uma paixoneta pela Carrie. Percebi porque é que,
ainda que a Eadlyn seja a rapariga mais inteligente, engraçada e corajosa
que conheço, não me poderia casar consigo.
Fechei os olhos, assimilando tudo aquilo. Sentia-me completamente
aterrorizada, porque tudo em que conseguia pensar era no quanto aquilo me
poderia afetar negativamente. Não importava que o Hale tivesse de explicar
esta descoberta sobre si mesmo à sua família, não importava que o Ean
pudesse ser finalmente forçado a ser sincero. O que é que a imprensa diria
quando acabasse por descobrir que não um mas dois dos meus pretendentes
preferiam mais estar um com o outro do que comigo?
As vezes, eu era uma pessoa realmente horrível.
— Eu sei que um Selecionado ter um relacionamento com outra pessoa
é traição — murmurou o Hale. Ergui os olhos, tendo-me esquecido desse
pormenor. — Mas também sei que uma vida honesta e curta é melhor do
que uma longa e falsa.
— Hale — insisti, inclinando-me sobre a mesa para agarrar na mão
dele. — O que é que te faz pensar que eu te poderia sequer punir?
— Conheço as regras.
Suspirei.
— Vivemos as nossas vidas vinculados por elas, não é?
Ele assentiu.
— Talvez tu e eu pudéssemos fazer um acordo?
— Que tipo de acordo?
Retirei as minhas mãos e esfreguei-as uma na outra.
— Se me fizeres o favor de ficar até depois da coroação e me deixares
dispensar-te e ao Ean com algumas semanas, ou talvez até alguns dias, de
diferença, permito que deixes o palácio sem qualquer tipo de repercussão.
Ele fitou-me.
— A sério?
— Admito que estou preocupada com as consequências de tudo isto.
Mas se parecer que vocês os dois se apaixonaram depois de terem sido
eliminados, então ninguém vos poderá acusar de traição. E, desculpa, mas
se a imprensa descobrir fazem-me em pedaços por causa disto.
— Eu não queria tornar as coisas mais difíceis para si. Não estou
apaixonado, mas gosto da Eadlyn o suficiente para dizer a verdade.
Pondo-me de pé, atravessei o espaço entre nós. Ele levantou-se
também e eu lancei os braços em volta dele, descansando a minha cabeça
no seu ombro.
— Eu sei. E eu também gosto de ti. Não te desejaria uma vida
algemado a mim quando isso te deixaria infeliz.
— Há alguma coisa que eu possa fazer? Sair daqui com a tua bênção é
mais do que esperava. Como é que posso ajudar?
Dei um passo atrás.
— Basta que sejas um candidato da Seleção exemplar durante mais
alguns dias. Eu sei que é pedir muito, mas é importantíssimo para mim
conseguir ultrapassar a coroação.
— Não é pedir muito, Eadlyn. É pedir quase nada.
Coloquei uma mão no rosto dele. Algo todos os dias.
— Então, ele é o tal ou quê?
O Hale riu-se, sentindo finalmente alívio.
— Não sei. Quero dizer, nunca me senti assim antes.
Acenei com a cabeça.
— Como ele e eu não falamos muito, talvez lhe pudesses dizer como
as vossas eliminações vão acontecer? Ele voltará provavelmente para casa
antes de ti, uma vez que publicamente parece um candidato menos
provável.
Dizer aquilo em voz alta também me causava uma certa dor no peito.
O Ean tinha sido uma rede de segurança e, mesmo sabendo a verdade, a
ideia de ele se ir embora não me agradava.
— Obrigado. Por tudo.
— Foi um prazer.
O Hale veio ao meu encontro e abraçou-me novamente antes de sair.
Sorri, pensando que o Hale e eu estávamos em situações muito
semelhantes: atirando-nos de cabeça para o futuro sem qualquer garantia de
sermos felizes para sempre. Ao mesmo tempo, o facto de corrermos
significava alguma coisa, não era?
Eu preferia pensar que sim.
***
O dia tinha passado muito rapidamente de maravilhoso a complicado e
à noite eu estava pronta para saltar o jantar e ir diretamente para a cama.
Abri a porta, enquanto me tentava lembrar das melhores partes do dia: a
Lady Brice a dizer que eu era sábia, a imprensa parecendo esperançosa, o
sorriso do Hale antes de sair da sala.
— Sabes — disse uma voz profunda. — Acho que sou capaz de ser o
favorito da tua aia.
O Kile estava estendido na minha cama, com os braços con‐
fortavelmente cruzados atrás da cabeça.
Ri-me.
— E porque achas isso?
— Porque ela foi demasiado fácil de subornar.
— O mínimo que podias ter feito era tirar os sapatos.
Ele fez uma careta, tirou-os e depois bateu com a mão no espaço ao
seu lado.
Deixei-me cair na cama sem qualquer elegância. Ele rebolou,
colocando-se de frente para mim, e eu vi de relance os dedos dele.
— Mas que raio andaste a fazer hoje?
— Passei a tarde a desenhar a carvão — respondeu ele, virando as
mãos enegrecidas. — Não te preocupes. Não vou sujar os teus lençóis. Os
meus dedos estão apenas manchados.
— O que é que imaginaste?
— Sei que isto pode ultrapassar os limites, mas estive a pensar na
reunião municipal e perguntei-me se seria útil fazer coisas desse género
mais vezes. Redesenhei uma das salas de estar, transformando-a numa sala
do trono permanente onde poderias receber as pessoas, ouvir petições
individuais e resolvê-las caso a caso. Algo oficial, mas discreto.
— Isso é muito atencioso da tua parte.
Ele encolheu os ombros.
— Eu disse-te, estou sempre a fazer coisas para ti.
O brilho nos olhos dele era tão juvenil que por um instante esqueci-me
de que estávamos à beira de tantas coisas adultas.
— Também podes pensar em criar uma estação de rádio — comentou
ele.
— Porquê? Os Noticiários já são suficientemente maus.
— Quando tinha aulas em Fennley, os meus amigos e eu ouvíamos
imenso rádio. Gostávamos de o deixar ligado na cozinha ou enquanto
trabalhávamos e, sempre que escutávamos qualquer coisa interessante,
parávamos para ouvir e discutíamos o assunto. Pode ser uma boa maneira
de alcançares as pessoas. E não é tão mau como teres uma câmara apontada
à cara.
— Interessante. Vou pensar nisso. — Toquei na ponta dos seus dedos
sujos. — Trabalhaste em mais alguma coisa?
Ele fez uma careta.
— Lembras-te daquelas pequenas casas de que te falei? Estive a tentar
ver se poderiam ser construídas com um andar superior, para famílias
maiores. Mas, considerando os materiais que queria usar, não parece ser
possível. O metal seria demasiado fino. Seria útil se pudesse mesmo
construir uma e testá-la. Talvez um dia.
Fitei-o.
— Sabes, Kile, os príncipes raramente sujam as mãos.
— Eu sei. — Ele sorriu. — É mais uma coisa agradável em que pensar
do que qualquer outra coisa. — Ele mexeu-se, mudando de posição e de
assunto num ápice. — Os jornais pareciam bons hoje.
— Sim. Agora só tenho de manter essa boa vontade. Só que não faço
ideia de como a criar novamente.
— Não tens de o fazer. As vezes, as coisas acontecem simplesmente.
— Seria bom não ter de trabalhar tanto para tudo isso. — Bocejei. Até
mesmo um dia bom era cansativo.
— Queres que eu me vá embora para poderes descansar um pouco?
— Nã — disse eu, aconchegando-me um pouco mais e colocando-me
de costas. — Podes ficar aqui mais um bocadinho?
— Claro.
Ele pegou na minha mão e ficámos a olhar para a intrincada pintura no
meu teto.
— Eadlyn?
— Sim.
— Estás bem?
— Sim. Acho que me estaria a sair melhor se pudesse ir mais devagar,
mas as coisas têm todas de ser agora, agora, agora.
— Podias adiar a coroação. Ficar como regente durante algum tempo.
É quase a mesma coisa.
— Eu sei, mas não parece o mesmo. O meu pai sentia-se bem comigo
como regente, mas, mesmo neste curto espaço de tempo, desde que
definimos uma data para a coroação, tem estado muito melhor. Eu sei que é
tudo mental, mas se isso o ajuda a dormir, o que o ajuda com a minha mãe,
o que ajuda a que ela melhore...
— Percebo o que queres dizer. Mas e que mais? Não estás a acelerar a
Seleção, estás?
— Não de propósito. Parece mais que ela é que se está a adiantar a
mim.
— O que queres dizer?
Suspirei.
— Não posso falar nisso agora. Talvez depois de estar tudo resolvido.
— Podes confiar em mim.
— Eu sei. — Apoiei a cabeça no ombro dele. — Kile?
— Sim.
— Lembras-te do nosso primeiro beijo?
— Como poderia esquecer? Apareceu na capa de todos os jornais.
— Não, não esse. O nosso primeiro primeiro beijo.
Depois de um momento de confusão, ele inspirou profundamente.
— Oh. Meu. Deus.
Fiquei ali deitada a rir à gargalhada.
Quando eu tinha quatro anos e o Kile seis, ele e eu brincávamos muito
juntos. Ainda não me lembrava do que o fizera começar a odiar a vida no
palácio ou quando é que a nossa antipatia mútua tinha surgido, mas nessa
altura o Kile era como mais um Ahren. Um dia estávamos os três a brincar
às escondidas e o Kile encontrou-me. Mas, em vez de me denunciar,
inclinou-se e beijou-me de chapa na boca.
Pus-me de pé, empurrei-o para o chão e jurei que se ele tentasse fazer
aquilo novamente mandava-o enforcar.
— Qual é a criança de quatro anos que sabe ameaçar a vida de
alguém? — brincou ele.
— Uma que foi educada para isso, acho.
— Espera, esta é a tua maneira de me dizeres que me vais mandar
enforcar? Porque, se for, isso é incrivelmente frio.
— Não. — Ri-me. — Achei que, por esta altura, já merecias um
pedido de desculpas.
— Não há problema. É bastante engraçado, anos depois. Quando as
pessoas me perguntam qual foi o meu primeiro beijo, nunca digo esse.
Digo-lhes que foi com a filha do primeiro-ministro saudita. Acho que, na
realidade, esse foi o meu segundo.
— Porque não lhes falas de num?
— Porque achava que poderias ir em frente com o enforcamento —
brincou ele e eu ri-me. — Acho que me esqueci. Não foi exatamente um
primeiro beijo fantástico.
Desatei às risadinhas.
— A minha mãe contou-me como foi o primeiro beijo com o meu pai
e que ela quis basicamente escapar.
— A sério?!
— Sim.
O Kile riu-se.
— Sabes qual foi o do Ahren?
— Não. — Mas o Kile ria tanto que eu já chorava às gargalhadas antes
de ele dizer sequer uma palavra.
— Foi com uma das raparigas italianas, mas ele estava constipado e...
— Ele ria tanto que teve de parar. — Céus, ele teve de espirrar a meio do
beijo e foi ranho por todo o lado.
— O quê?
— Eu não vi o beijo, mas apareci lá logo a seguir. Agarrei-o e fugimos.
O meu estômago doía de tanto rir e demorou um pouco para nos
acalmarmos. Quando finalmente sossegámos, percebi uma coisa.
— Não conheço ninguém que tenha tido um bom primeiro beijo.
Ao fim de um segundo, ele respondeu.
— Nem eu. Talvez não sejam os primeiros beijos que tenham de ser
especiais. Talvez sejam os últimos.
Capítulo 19

Mantive-me imóvel enquanto a Neena colocava alfinetes na parte de


trás do meu vestido da coroação. Era um espetáculo, com um decote em
coração e uma saia ampla, tudo em dourado. A capa era um pouco pesada,
mas só tinha de a usar na igreja. Embora tivesse escolhido este vestido entre
os três que me tinham sido apresentados, não era provavelmente o que
vestiria se tivesse sido eu a desenhá-lo. Ainda assim, toda a gente suspirou
quando o viu, portanto mordi a língua e senti-me grata.
— Estás linda, querida — disse a minha mãe, enquanto eu permanecia
de pé em cima de uma plataforma elevada em frente de uns enormes
espelhos, que tinham sido trazidos para o meu quarto especialmente para
esta prova.
— Obrigada, mãe. Acha que se compara com o seu?
Ela riu-se.
— O meu vestido da coroação foi também o meu vestido de noiva, por
isso não há comparação. O teu vestido é perfeito para a ocasião.
A Neena riu-se enquanto eu tocava no bordado do corpete.
— É sem dúvida o vestido mais ostentoso que já usei.
— Pense que vai ter de o superar quando se casar — brincou a Neena.
O meu sorriso desapareceu.
— É verdade. Vai ser um desafio, não é?
— Sente-se bem? — perguntou ela, olhando para mim no espelho.
— Sim. Só um pouco cansada.
— Não me interessa o que mais possa acontecer esta semana, precisas
de descansar — ordenou a minha mãe. — O sábado vai ser comprido e vais
estar no centro de tudo.
— Sim, senhora. — Observei-a a mexer no colar. — Mãe? O que
achas que terias feito se não te tivesses casado com o pai? Por exemplo, se
tivesses chegado ao fim e ele escolhesse outra pessoa?
Ela abanou a cabeça.
— Ele quase o fez. Sabes do massacre. — Ela engoliu em seco,
hesitando por um instante. Ao fim de todo este tempo, ainda lhe era difícil
recordar. — Naquele dia, ele poderia ter ido por um caminho totalmente
diferente, o que significava que eu também teria de ir.
— Mas terias ficado bem?
— Acabaria por ficar — disse ela devagar. — Parece-me que nenhum
de nós teria tido uma vida necessariamente má. Apenas poderia não ter sido
a melhor possível.
— Mas não te terias sentido completamente miserável o resto da vida?
Ela estudou o meu rosto no espelho.
— Se estás com receio de desiludir os teus pretendentes, isso é uma
coisa em que não podes pensar.
Comprimi as mãos contra o estômago, segurando firmemente o vestido
enquanto a Neena trabalhava.
— Eu sei. Apenas é mais difícil do que achei que seria nesta altura.
— Tudo se vai tornar claro. Confia em mim. E o teu pai e eu vamos
apoiar-te, seja qual for a escolha que fizeres.
— Obrigada.
— Acho que está finalmente a ficar bem — comentou a Neena,
recuando para avaliar o seu trabalho. — Se estiver satisfeita com ele, pode
tirá-lo e eu peço ao estafeta que o envie para o Allmond.
A minha mãe mordiscou algumas fatias de maçã.
— Não compreendo por que razão ele não a deixou costurá-lo.
Confiou em si para a prova.
Ela encolheu os ombros.
— Apenas sigo ordens.
Uma pancada suave na porta chamou a nossa atenção.
— Entre — disse a Neena, regressando ao seu antigo papel. Eu
desejava que ela pudesse simplesmente gerir toda a minha vida por mim.
Tudo parecia mais fácil com ela por perto.
Um mordomo entrou e fez uma vénia.
— Perdoe-me, Vossa Alteza. Há uma confusão em relação ao fato de
um dos senhores.
— Qual?
— O Erik, menina.
— O tradutor? — perguntou a minha mãe.
— Sim, Vossa Majestade.
— Estou a ir — disse eu, seguindo-o para fora do quarto.
— Não quer tirar o vestido? — perguntou a Neena.
— Assim tenho a oportunidade de praticar o meu andar com ele.
E tive mesmo. O vestido era incrivelmente pesado e um pouco difícil
de manobrar enquanto descia as escadas. Precisava de saltos mais
resistentes.
Quando me aproximei do quarto do Erik, ouvi-o implorar a alguém
para reconsiderar.
— Eu não faço parte da Elite. Não seria adequado.
Empurrei a porta e deparei-me com ele vestindo um fato com linhas de
giz nas laterais e alfinetes na bainha.
— Vossa Alteza — disse o alfaiate, fazendo imediatamente uma vénia.
O Erik, no entanto, fitou-me por um longo instante, incapaz de desviar
os olhos do vestido.
— Estamos a ter um problema para chegar a um acordo sobre o fato do
senhor, menina. — O alfaiate fez um gesto na direção do fato cheio de giz.
O Erik recuperou a compostura.
— Não quero confundir ninguém vestindo um fato igual ao que os
membros da Elite vão usar.
— Mas o senhor vai estar no cortejo e vai haver montanhas de fotos —
insistiu o alfaiate. — A uniformidade é melhor.
O Erik olhou para mim suplicante.
Pressionei os dedos contra os lábios, pensando.
— Pode dar-nos um instante, por favor?
O alfaiate curvou-se novamente e saiu e eu atravessei o quarto até ficar
em frente do Erik.
— É bastante elegante — disse, com um sorriso.
— É sim — admitiu ele. — Apenas não tenho a certeza se será uma
boa ideia.
— O quê? Ter bom aspeto por um dia?
— Eu não faço parte da Elite. É... confuso para mim ficar ao lado
deles, parecendo-me com eles, quando não posso... não sou...
Coloquei a mão no peito dele.
— O alfaiate tem razão. É melhor estarem todos uniformes. Um fato
de cor diferente não ajudaria no seu caso.
Ele suspirou.
— Mas eu...
— E se a sua gravata fosse de uma cor ligeiramente diferente? —
sugeri rapidamente.
— É essa a minha única opção?
— Sim. Além disso, pense no quanto a sua mãe vai adorar.
Ele revirou os olhos.
— Isso é tão injusto. Pronto, ganhou.
Bati palmas.
— Vê? Não foi assim tão difícil.
— Claro que para si é fácil. É quem dá as ordens.
— Não tive a intenção de lhe dar nenhuma ordem, a sério. Ele sorriu.
— Claro que teve. Foi feita para isso.
Não percebi se era uma crítica ou um elogio.
— O que acha? — perguntei, estendendo os braços. — Tem de o
imaginar sem os alfinetes todos.
Ele fez uma pausa.
— Está absolutamente maravilhosa, Eadlyn. Nem me consigo lembrar
porque estava tão agitado quando entrou.
Tentei não corar.
— Estava a pensar se não seria demais.
— Está perfeito. Consigo ver que é um pouco diferente do seu estilo
habitual, mas, afinal, não é suposto o seu aspeto típico ser para o dia da
coroação.
Virei-me e olhei para o espelho. Aquela frase fazia com que tudo
ficasse muito melhor.
— Obrigada. Acho que estava a pensar demais.
Ele colocou-se ao meu lado. Era cómico, aquelas belas roupas, as
melhores que alguma vez vestiríamos, marcadas a giz e seguras por
alfinetes. Parecíamos bonecos.
— Isso parece ser um talento seu.
Fiz uma careta, mas assenti. Ele tinha razão.
— Sei que não estou em posição de lhe dizer o que fazer — disse ele
—, mas parece lidar muito melhor com as coisas quando pensa menos sobre
elas. Ignore a sua cabeça. Confie nos seus instintos. Confie no seu coração.
— Tenho pavor do meu coração. — Não tinha a intenção de dizer
aquelas palavras em voz alta, mas havia algo nele que fazia com que esta
sala, e este momento, fosse o único lugar onde podia admitir a verdade.
Ele inclinou-se junto ao meu ouvido e sussurrou:
— Não há lá nada a temer. — Clareou a garganta e virou-se para os
nossos reflexos. — Talvez tudo o que precise é de um pouco de sorte. Vê
este anel? — perguntou, estendendo o dedo mindinho.
Olhei. Tinha reparado nele uma dezena de vezes. Por que razão é que
alguém que se esforçava por parecer apagado e se recusava a vestir um fato
usava uma joia?
— Este era o anel de casamento da minha tetravô. O desenho
entrelaçado é um padrão tradicional norueco. Vê-se por todo o lado na
Noruécia. — Ele tirou o anel e segurou-o entre dois dedos. — Sobreviveu a
tudo, desde guerras à fome e até mesmo à mudança da minha família para
Illéa. Devo dá-lo à rapariga com quem me casar. Ordens da minha mãe.
Sorri, encantada com o seu entusiasmo. Perguntei-me se haveria
alguém onde ele morava à espera de o usar um dia.
— Mas parece dar muita sorte — continuou ele. — Acho que alguma
poderia dar-lhe jeito neste momento.
Estendeu-me o anel, mas eu abanei a cabeça.
— Não posso aceitar! É uma herança de família.
— Sim, mas é uma herança com muita sorte. Conduziu várias pessoas
até às suas almas gémeas. E é apenas temporário. Até a Eadlyn chegar ao
final da Seleção ou o Henri e eu sairmos. O que ocorrer primeiro.
Hesitante, coloquei o anel no dedo, notando a sua suavidade.
— Obrigada, Erik.
Fitei os seus olhos azuis. Bastou apenas um segundo intenso para eu
ouvir o coração no qual tinha tão pouca fé. Ele encarou aquele olhar
penetrante, sentiu o cheiro quente da pele dele... que era como se gritasse.
Sem considerar as repercussões ou as complicações, sem saber se ele
sentia algo de semelhante ao que eu estava a sentir, inclinei-me na direção
dele. E fiquei maravilhada quando ele não se afastou. Estávamos tão perto
que eu podia sentir a sua respiração nos meus lábios.
— Chegámos a uma decisão? — perguntou o alfaiate, voltando a
entrar.
Afastei-me bruscamente do Erik.
— Sim. Por favor, termine o fato.
Sem olhar para trás, corri para o corredor. O meu coração batia
descontrolado. Encontrei um quarto vazio e enfiei-me lá dentro, batendo
com a porta atrás de mim.
Tinha sentido crescer, há já algum tempo, este sentimento que se
escondia sob a superfície. Tinha visto esta pessoa que nunca tivera a
intenção de ser vista e o meu coração defeituoso, tolo e inútil não parava de
sussurrar o seu nome. Agarrei-me ao peito, sentindo o meu coração
disparado.
— Seu idiota traidor. O que é que fizeste?
Tinha-me perguntado como era possível alguém encontrar
magicamente uma alma gémea num grupo aleatório de rapazes.
Mas agora já não o podia questionar.
Capítulo 20

Os dias seguintes passaram num turbilhão de preparações para a


coroação. Fiz o possível por ficar no meu escritório e fazer as refeições no
meu quarto, mas, mesmo assim, não consegui evitar completamente o Erik.
Tivemos de ir até à igreja praticar o cortejo, no qual ele foi forçado a
participar, a fim de equilibrar o número de pessoas que caminhariam atrás
de mim. Teve de ficar junto do Henri enquanto conduzíamos a Elite pelo
Grande Salão, explicando a melhor forma de circularem numa festa formal.
E eu tive de aprovar a prova final dos seus fatos, o que consegui fazer sem
olhar para ele, mas que foi muito mas mesmo muito mais difícil do que
tinha pensado.
A coroação seria um dos momentos mais importantes da minha vida e,
ainda assim, tudo em que conseguia pensar era em qual teria sido a
sensação de o beijar.
***
Estava atrasada. Eu nunca me atrasava.
Mas o meu cabelo não enrolava como devia ser, uma costura rebentara
por baixo do meu braço e, embora tivesse escolhido uns sapatos elegantes
no início da semana, assim que os vi com o vestido detestei-os.
A Eloise respirava fundo enquanto arranjava o meu cabelo, treinando
com uma coroa falsa para garantir que tudo ficaria o mais bonito possível
quando chegasse o verdadeiro momento. A Neena estava ocupada a fazer
com que as pessoas se vestissem e ficassem prontas e, portanto, foi o Hale
quem apareceu no último instante com agulha e linha para garantir que o
problema do vestido ficava resolvido.
— Obrigada — sussurrei.
Ele rematou o último ponto.
— Sempre que precisares. — Olhou para o relógio. — Embora
preferisse que me tivesses pedido mais cedo.
— Só rebentou quando o vesti!
Ele sorriu.
— Dei uma olhadela a tudo e parece que era o único ponto fraco.
Ainda bem que o encontrámos agora e não a meio do dia.
Acenei com a cabeça.
— Preciso que as coisas estejam perfeitas hoje. Só por uma vez,
gostava de parecer controlada, mas não ao ponto de detestar tudo e todos à
minha volta.
O Hale riu-se.
— Bem, então, se voltar a rebentar, não ligues.
A Eloise foi buscar algo à casa de banho e eu aproveitei a
oportunidade.
— Como está o Ean? — perguntei num sussurro.
— Bem. Atordoado — respondeu ele, quase louco de alegria. — Am‐
bos queremos ajudar-te de todas as formas que pudermos. Estás a tornar o
nosso futuro possível, por isso estamos em dívida para contigo.
— Ajudem-me a ultrapassar o dia de hoje e será mais do que
suficiente.
— Uma coisa todos os dias — lembrou-me ele.
Desci do pedestal e abracei-o.
— Tens sido incrivelmente valoroso.
— É bom saber — respondeu ele, devolvendo o meu abraço. — Bem,
vou buscar o meu casaco e vou descer. Diz-me se precisares de mim hoje.
Acenei com a cabeça, tentando não parecer tensa quando a Eloise
regressou para fazer os seus retoques finais.
— Ele é simpático — comentou ela, pondo laca nas últimas madeixas
rebeldes.
— E mesmo.
— Pessoalmente, eu escolheria o Kile — comentou ela com uma
risadinha.
— Eu sei! — Abanei a cabeça para ela. — Ainda não me esqueci que
o deixou entrar no meu quarto.
Ela encolheu os ombros.
— É o meu favorito. Tenho de fazer o que posso!
Finalmente, ficou tudo pronto. Desci as escadas com a cauda da capa
pendurada sobre o braço. Na entrada havia uma multidão de pessoas. O
general Leger, de um lado, levando as mãos da Miss Lucy aos lábios, a
Josie e a Neena, com vestidos coordenados em azul-claro, que ficariam
lindas quando segurassem a minha cauda até ao altar, e os cinco membros
restantes da Elite, num círculo, junto a um canto, com o Erik a usar uma
gravata num tom de azul ligeiramente mais vivo do que os outros.
Mas eu só tinha olhos para um rapaz no meio da multidão. Assim que
cheguei a meio da escadaria, vi o Ahren. Tinha vindo.
Corri através da multidão, acotovelando de passagem assessores e
amigos, e lancei-me nos braços não do Ahren, mas da Camille.
— Ele está bem? — perguntei-lhe ao ouvido.
— Oui, muito.
— E o teu povo está satisfeito? Eles aceitam-no?
— Como se tivesse nascido entre nós.
Apertei-a com mais força.
— Obrigada.
Afastei-me, virando-me para olhar para o meu irmão estúpido.
— Ficas bem nessas roupas — troçou ele.
Não sabia se devia trocar piadas com ele, dar-lhe um soco no braço,
gritar, rir ou outra coisa qualquer. Então, esmaguei-o num abraço.
— Desculpa — sussurrou ele. — Não me devia ter ido embora como
fui. Não te devia ter deixado sozinha.
Abanei a cabeça.
— Tinhas razão. Sinto tanta a tua falta que até dói, mas tinhas de ir.
— Assim que soube da mãe, quis voltar. Mas não sabia se isso iria
piorar ou melhorar as coisas, ou se era sequer correto eu aparecer, uma vez
que parecia ter sido a causa.
— Não sejas tonto. Tudo o que importa é que estás aqui agora.
Ele abraçou-me durante mais um minuto, enquanto a Lady Brice
organizava toda a gente nos carros. Os conselheiros foram primeiro, com a
Elite logo a seguir, curvando-se todos profundamente diante de mim,
especialmente o Erik. Ele não me fitou nos olhos e senti-me grata. Quem
sabe o que o meu coração idiota poderia ter feito se ele me tivesse
encarado?
Derreteu-se um pouco quando ele se afastou, puxando repetidamente
pelas mangas e parecendo dolorosamente desconfortável no seu fato.
— Certo, o próximo carro — anunciou a Lady Brice. — Todos os que
têm o apelido Schreave, incluindo o senhor, Monsieur Príncipe Francês.
— Sim, senhora — disse o Ahren, pegando na mão da Camille.
— A Eadlyn vai primeiro, seguida pela Neena e pela Josie. O resto da
família vai depois e eu sigo num carro logo atrás de vocês.
O meu pai hesitou.
— Brice, devias vir connosco.
— Sem dúvida — concordou a minha mãe. — Há espaço na limusina
e tu és a pessoa que tem esta coisa toda controlada.
— Não tenho a certeza se é adequado — respondeu ela.
A Neena inclinou a cabeça, tentando fazê-la duvidar.
— As coisas podem facilmente desmoronar-se numa viagem de dez
minutos.
— Além disso, a probabilidade de alguém pensar que a Neena e eu
somos irmãs é mínima — acrescentei. — Fique connosco.
Ela apertou os lábios como se achasse que aquilo era de alguma forma
uma má ideia.
— Está bem. Vamos.
Enfiámo-nos na limusina, onde o meu vestido ocupava o espaço de
três pessoas. Havia tantas risadas e pés a pisar outros pés que tudo começou
a parecer divertido. Respirei fundo. Tudo o que tinha de fazer era dizer
algumas palavras e fazer uma promessa que já tinha feito no meu coração.
Olhei para a minha mãe. Ela piscou-me o olho e isso foi tudo o que
precisava.
***
A Josie e a Neena seguiram-me pelo corredor da igreja, segurando na
minha capa para que esta não se arrastasse pelo chão. Enquanto caminhava,
olhei para o anel de sinete no meu dedo, com o brasão de Illéa a brilhar no
centro. O meu pai já confiava em mim neste cargo. Já se sentia bastante
contente com a forma como eu estava a lidar com as coisas. Isto apenas
tornava tudo oficial.
Olhei para o maior número de pessoas possível, esperando transmitir a
minha gratidão. No topo da igreja, ajoelhei-me no banquinho de descanso,
sentindo o peso do meu vestido espalhar-se atrás de mim. O bispo pegou na
coroa cerimonial e segurou-a por cima da minha cabeça.
— Eadlyn Schreave, está disposta a fazer este juramento?
— Estou disposta.
— Jura defender as leis e a honra de Illéa todos os dias da sua vida,
governando o seu povo de acordo com as suas tradições e costumes?
— Juro.
— E jura proteger os interesses de Illéa, tanto internamente como no
estrangeiro?
— Juro.
— E jura usar o seu poder e posição para levar misericórdia e justiça a
todo o povo de Illéa?
— Juro.
Parecia apropriado que os votos feitos a um país exigissem quatro
afirmações, ao passo que os votos a outra pessoa apenas precisassem de
uma. Com a declaração das minhas palavras finais, o bispo colocou a coroa
na minha cabeça. Levantei-me e virei-me para o meu povo, enquanto a
minha capa se enrolava maravilhosamente em torno dos meus pés como um
gato. O bispo colocou o cetro na minha mão esquerda e o orbe na direita.
Ouviu-se a pancada forte de um bastão contra o chão e as pessoas em
meu redor gritaram:
— Deus salve a rainha.
E eu senti um arrepio no peito por saber que aquelas palavras eram
para mim.
Capítulo 21

— Osten, por amor de Deus, levanta-te — ordenou a minha mãe.


— Mas está tão quente — queixou-se ele, no momento em que
iniciávamos uma longa sessão fotográfica.
O meu pai contornou-me.
— Podes esforçar-te durante cinco minutos para umas fotos, filho.
O Ahren riu-se.
— Oh, tive saudades de vocês todos.
Dei-lhe uma palmada.
— Estou tão contente por ninguém estar a filmar isto.
— Muito bem, certo. Estamos todos prontos. — O meu pai chamou o
fotógrafo. Ele e a minha mãe posaram atrás de mim, com os braços na parte
de trás da minha cadeira, o Osten e o Ahren colocaram um joelho no chão,
um de cada lado, e o Kaden ficou de pé, com uma mão atrás das costas,
quase me roubando o título de membro da família com o ar mais majestoso
do dia.
O fotógrafo disparou foto atrás de foto até ficar satisfeito.
— Quem é o próximo?
Ficámos todos onde estávamos, puxando a Camille para a fotografia.
Depois, para termos uma imagem de toda a família, cada um dos rapazes da
Elite também tirou uma foto connosco.
Seguiu-se uma foto minha com os Legers e depois uma com cada um
dos membros do conselho consultivo, incluindo a Lady Brice, que
abandonou a pose tradicionalmente rígida e, em vez disso, abraçou-me com
força.
— Estou tão orgulhosa! — dizia continuamente. — Tão, tão or‐
gulhosa!
Depois, claro, tivemos de tirar uma foto com toda a família
Woodwork.
A Josie aproximou-se o mais depressa que conseguiu, colocando-se
praticamente no centro e à frente de todos. Abanei a cabeça enquanto a
Miss Marlee me dava um grande abraço.
— Estou tão feliz por ti, querida. Cresceste tão depressa.
Ri-me.
— Obrigada, Miss Marlee. Estou feliz por poderem estar todos aqui
hoje.
O Sr. Woodwork sorriu.
— Como se pudéssemos perder isto. Parabéns.
A Miss Marlee ainda segurava as minhas mãos.
— Estes últimos meses têm sido maravilhosos, vendo-te ascender e
observando-te a ti e ao Kile a tornarem-se tão próximos.
Sorri.
— Sinceramente, agora é difícil imaginar não sermos amigos. Não
posso acreditar que demorámos tanto tempo para nos conhecermos
realmente um ao outro.
— É engraçado como estas coisas acontecem — respondeu a Miss
Marlee. — Mas é uma pena que tu e a Josie quase não tenham passado
tempo nenhum juntas.
— O quê? — disse a Josie, que era capaz de ouvir o seu nome ainda
que este fosse anunciado em código Morse a partir de outro continente.
— Poderia ser bom para vocês fazerem mais coisas juntas. — A Miss
Marlee olhou para nós as duas, brilhando de alegria.
— Sim! Devíamos mesmo! — guinchou a Josie.
— Eu adoraria — menti. — Mas, agora que sou rainha, receio que o
meu tempo livre seja muito limitado.
A minha mãe sorriu sabiamente por trás da sua amiga. Notei que ela
percebeu exatamente o que eu estava a tentar fazer.
A Miss Marlee franziu a testa.
— É verdade. Oh, já sei! Por que razão não deixas a Josie seguir-te por
uns dias? Ela sempre teve um interesse profundo na vida de uma princesa.
Agora pode estudar uma rainha!
— Isso. Seria. Maravilhoso! — A Josie agarrou a minha mão e, mérito
meu, não a afastei.
Com todos à espera que eu falasse e o olhar da minha mãe a avisar-me
que, rainha ou não, era melhor eu não desapontar a sua amiga mais
próxima, não tive escolha.
— Claro. A Josie pode acompanhar-me. Será... ótimo.
A Josie voltou para o seu lugar a dançar e eu olhei para o Kile, que
fazia um esforço para não se rir do meu mais recente aperto. O divertimento
dele fez-me sorrir e senti-me confiante de que pelo menos ia parecer feliz
nas fotos.
Finalmente, chegou a altura dos retratos individuais com a Elite.
Fiquei de pé envergando o meu vestido da coroação enquanto eles
passavam um a um pelo cenário.
O Fox foi o primeiro, muito elegante no seu fato cinzento-escuro.
— Muito bem, o que faço? — perguntou. — Na foto de família pus os
braços para baixo, mas acho que deveria, não sei, segurar na sua mão ou
algo assim.
— Sim, está bem assim — respondeu o fotógrafo quando o Fox pegou
na minha mão. Ele aproximou-se um pouco mais e sorrimos enquanto os
disparos soavam em rápida sucessão.
O Ean aproximou-se a seguir, parecendo bastante satisfeito.
— Deslumbrante, Eadlyn. Absolutamente deslumbrante.
— Obrigada. Você também não está nada mal.
— É verdade — disse ele, sorrindo. — Bem verdade.
Ele posicionou-se atrás de mim.
— Ainda não tive oportunidade de lhe agradecer. Tanto pelo seu
perdão como pela sua discrição.
— Você e eu sempre nos entendemos com o mínimo de comunicação.
Eu sabia que se sentia agradecido.
— Tinha-me preparado para uma vida de desapontamento — admitiu
ele num tom quase nervoso, como nunca antes lhe ouvira. — Pensar que é
possível outra coisa parece irreal. Ainda não sei como seguir em frente.
— Viva apenas.
O verniz frio do Ean, a sua máscara cuidadosamente calculada, tinha
finalmente caído. Ele sorriu-me, beijou-me na testa e afastou-se.
Depois do Ean foi a vez do Kile, que entrou disparado, fazendo-me
gritar quando me pegou ao colo e me fez rodopiar.
— Põe-me no chão!
— Porquê? Porque és a rainha? Preciso de uma razão melhor do que
essa.
Ele parou finalmente, virando-se para a câmara, e eu sabia que
estávamos os dois a sorrir como idiotas. Estas seriam umas imagens
espetaculares de um modo completamente diferente.
— Quase morri tropeçando nessa capa — disse ele. — A moda é
mortífera.
— Não digas isso ao Hale — comentei.
— Não me digam o quê? — disse o Hale, enquanto trocavam de lugar.
— Que a moda pode matar. — O Kile ajeitou o fato enquanto se
afastava.
— A dela sim. Estás maravilhosa — disse ele, abraçando-me.
— Muito obrigada pela tua ajuda esta manhã. Nada mais se desfez.
— Claro que não. Duvidas das minhas capacidades? — brincou ele.
— Nunca.
Dei um passo atrás para podermos tirar algumas fotos que mostrassem
os nossos rostos, embora mal pudesse esperar para ver aquelas onde nos
abraçávamos.
Finalmente, chegou a vez do Henri e só o sorriso dele era suficiente
para fazer com que este longo dia parecesse mais curto. Ele parou a alguns
passos de distância de mim e respirou fundo.
— Está muito bonita. Estou feliz por si.
Tapei a boca com a mão, comovida.
— Henri. Obrigada! Muito obrigada!
Ele encolheu os ombros.
— Eu tentar.
— E está a ir muito bem. A sério.
Ele assentiu e aproximou-se de mim, colocando-me gentilmente de
costas para ele. Depois, deu a volta para ajeitar a minha capa, de modo a
que esta se espalhasse em meu redor, e posicionou-se do outro lado com as
mãos na minha cintura e olhando orgulhoso por cima do meu ombro.
Era óbvio que tinha pensado bastante no modo como queria ser
retratado e admirei-o por isso. Quando o fotógrafo acabou, o Henri
começou a afastar-se e depois parou.
— Hum, entä Erik? — disse, apontando para o amigo.
O Kile percebeu e concordou totalmente.
— Sim, o Erik também passou por isto. Também deve ficar aí.
O Erik abanou simplesmente a cabeça.
— Não, eu estou bem. Está tudo bem.
— Vá lá, amigo, é só uma fotografia. — O Kile deu-lhe um pequeno
empurrão, mas ainda assim ele não se mexeu.
Parte de mim receava que, de alguma forma, toda a gente fosse capaz
de ouvir o meu coração a soletrar o seu nome se ele se aproximasse. Mas,
da mesma forma que me esforçara por o evitar nos últimos dias, era
igualmente desafiador não correr para ele agora.
Avancei na sua direção e quando ele percebeu que eu ia ao seu
encontro ergueu de imediato o olhar para mim. Num instante, tudo na sala
ganhou vida. Como se os raios de sol tivessem melodia e os sons dos passos
uma textura que eu podia sentir na ponta dos dedos sempre que alguém se
movia.
O mundo acordou quando olhei para ele.
Parei em frente do Erik, esperando não parecer tão deslumbrada como
me sentia.
— Não estou a ordenar. Estou a pedir.
Ele suspirou.
— Isso torna tudo mil vezes pior. — Sorrindo, ele colocou a mão na
minha, mas, antes de eu o poder puxar para o palco, ele olhou para si
mesmo. Assim que a cerimónia terminara, tinha tirado o casaco e agora
vestia apenas o colete e a gravata. — Agora estou malvestido — lamentou-
se.
Suspirei e desabotoei as presilhas que prendiam a capa ao meu vestido.
Assim que a tirei, o Hale aproximou-se para a levar cuidadosamente dali.
— Assim ajuda?
— Não. — Ele engoliu em seco. — Mas se quer realmente isto...
— Quero. — Inclinei a cabeça e pestanejei de modo brincalhão. Ele
riu-se, percebendo claramente que estava derrotado.
— O que tenho de fazer?
— Muito bem. — Sorri, aproximando-me dele. — Ponha esta mão
aqui — disse eu, colocando a da frente na minha cintura. — E esta aqui —
e puxei a outra para o meu ombro. Coloquei uma mão no peito dele e a
outra por trás do seu braço e ficámos ali num abraço descontraído. —
Agora, sorria para a câmara.
— Está bem — disse ele.
Com a minha mão no peito dele, conseguia sentir o seu coração a
bater.
— Acalme-se — disse baixinho. — Finja que somos só nós os dois.
— Não posso.
— Então, não sei, diga algo em finlandês.
Ele riu-se para si mesmo e sussurrou:
— Olet hullu tyttö.
Embora não conseguisse perceber as palavras que ele murmurara,
sabia que nunca seria capaz de esquecer o seu tom de voz. Sem olhar para
ele, conseguia ouvir o seu sorriso, o que só tornava o meu maior. Tinha de
me lembrar de respirar, já que estava tão ocupada a ouvi-lo. Sabia, no fundo
do coração, que aquelas eram palavras importantes. E não conseguia
reconhecer nenhuma.
— Essa ficou muito boa — disse o fotógrafo e, quase instantanea‐
mente, o Erik deixou cair as mãos.
— Vê? Foi assim tão horrível? — perguntei.
— Pensei que seria muito mas mesmo muito mais difícil — confessou
ele e havia algo de estranho na sua voz, como se eu tivesse perdido algum
pormenor.
Conseguia ouvi-lo novamente, o rá-tá-tá do meu coração insensato.
Engoli em seco, ignorando-o, e virei-me na direção dos passos que ecoavam
nesse momento pelo salão.
— Marid — chamei em saudação.
— Desculpe intrometer-me, mas não resisti. Há alguma maneira de eu
poder ter um retrato oficial com a minha nova rainha? — perguntou o
Marid.
— Claro. — Estendi a mão e ele aproximou-se, agarrando-a satisfeito.
— O país está num alvoroço — disse ele. — Não sei se ouviu os
relatos de hoje, mas a cobertura é muito positiva.
— Não tive um segundo sequer para parar e olhar — confessei
enquanto ele segurava ambas as minhas mãos afetuosamente e olhava para
a câmara.
— Não tem necessidade. Você tem pessoas à sua disposição para lhe
contarem tudo mais tarde. Apenas estou contente por ser o primeiro a dizer-
lhe que o seu dia inaugural está a ir muito bem.
Ele apertou a minha mão e eu suspirei, pensando que talvez tudo se
estivesse finalmente a encaixar.
Capítulo 22

Bebi champanhe, ri alto demais e comi metade do meu peso em


chocolate. Apenas durante algumas horas, quis deleitar-me com a opulência
ridícula que sempre tomara como certa. Amanhã beberia água e organizaria
a minha cabeça. Amanhã preocupar-me-ia com a gestão do meu país.
Amanhã pensaria em maridos.
Mas hoje à noite? Hoje ia deleitar-me com este momento perfeito e
cintilante.
— Mais uma dança? — perguntou o Ahren, apanhando-me a meio de
um gole daquela que eu jurara ser a minha última bebida. — Tenho um
avião para apanhar, mas queria dizer adeus.
Levantei-me, pegando na mão dele.
— Aceito qualquer adeus que conseguir. Qualquer coisa será melhor
do que a última vez.
— Ainda lamento imenso por isso, mas tu sabes porque não consegui.
Colocámo-nos em posição e ele fez-me rodopiar pela sala.
— Eu sei. Mas isso não tornou as coisas mais fáceis. Junta isso a tudo
o resto que se tem passado e a vida tem sido um pouco dura por aqui sem ti.
— Desculpa. Mas estás a ir muito bem, melhor do que pensas, aposto.
— Veremos. Ainda tenho de estabelecer o meu governo, certificar-me
de que a mãe e o pai passam a ter mais calma e encontrar alguém para casar
comigo.
Ele encolheu os ombros.
— Então, basicamente, nada.
— É praticamente umas férias.
Ele soltou uma risada. Oh, como sentira falta daquele som.
— Desculpa se a minha carta foi dura. A mãe e o pai queriam
proteger-te, mas eu receava que, se não soubesses qual era a tua situação,
isso te pudesse prejudicar.
— Não foi fácil de ler, mas tenho-me lembrado dela imensas vezes. Eu
devia ter percebido. Se não fosse tão egocêntrica...
— Estavas a tentar proteger-te — disse ele rapidamente, inter‐
rompendo-me. — Estás a fazer algo que mais ninguém neste país alguma
vez fez. Claro que encontraste maneira de o tornar mais fácil.
Abanei a cabeça.
— O pai andava esgotado. A mãe não abrandava. Tu estavas apai‐
xonado e eu tentei fazer-te desistir disso. Há uma palavra para pessoas
como eu, mas sou demasiado educada para a dizer.
Ele desatou à gargalhada e eu notei vários olhares dirigidos para nós,
sendo o mais notório o da Camille. Tinha querido estar furiosa com ela, esta
rapariga que fizera tudo o que eu estava a tentar fazer, mas dez vezes
melhor, a rapariga que me tinha tirado o irmão gémeo. Mas era óbvio que
ela estava muito feliz por nos ver novamente juntos.
Ainda não compreendia como ela geria tudo tão facilmente, como
conseguia, sem esforço, ser uma líder e uma rapariga. Temia que este dia
não durasse, por mais perfeito que fosse.
— Ei — disse ele, notando a preocupação nos meus olhos. — Vai ficar
tudo bem. Vais ultrapassar isto sem problemas.
Recompus o rosto, tentando reencontrar a magia que correra pelas
minhas veias há apenas alguns instantes. Eu era a nova rainha; não fazia
sentido estar triste, especialmente no dia de hoje.
— Eu sei. Só não tenho a certeza de como o fazer.
A música chegou ao fim e o Ahren curvou-se profundamente. — Tens
de vir a Paris para o Ano Novo.
— E tu tens de voltar para o nosso próximo aniversário — insisti.
— Então, tens de passar a lua de mel em França.
— Não a menos que voltes cá para o casamento.
Ele estendeu a mão.
— Está combinado.
Apertámos as mãos e o meu adorado irmão gémeo puxou-me para
mais um abraço.
— Senti-me miserável durante dias, achando que nunca me irias
perdoar por me ter ido embora. O facto de não estares furiosa faz com que
ainda seja mais difícil partir novamente.
— Tens de telefonar. E não apenas à mãe e ao pai, tens de me ligar.
— Eu ligo.
— Adoro-te, Ahren.
— Adoro-te, Vossa Majestade.
Ri-me e parámos um instante para secarmos ambos os olhos.
— Falando do casamento — começou ele —, alguma ideia sobre quem
será o noivo?
Observámos a sala. Os integrantes da Elite eram fáceis de detetar nos
seus fatos e gravatas engomados e tão belos como qualquer um dos
visitantes reais. Observara-os a noite toda, juntando o seu comportamento à
pilha de informações que tinha sobre eles.
O Kile tinha conversado graciosamente com a maioria dos visitantes
mais jovens e o Fox tinha apertado tantas mãos que o apanhei a massajar os
pulsos a certa altura. Embora o Ean e o Hale estivessem fora da corrida,
tinha ouvido ambos a fazerem comentários maravilhosos sobre mim à
imprensa, indo para além de tudo o que eu podia esperar. E depois havia o
Henri. Tinha dado o seu melhor com o Erik ao lado, a ajudá-lo nas
conversas, mas, ao observá-lo a estudar os convidados, sentado no seu
lugar, era óbvio que tinha passado por dificuldades.
— Já avancei e recuei algumas vezes. É difícil saber com toda a
certeza quem é a escolha certa. Só quero fazer o que é melhor para todos.
— Incluindo tu?
Sorri, incapaz de responder.
— Se há coisa que espero que o facto de eu ter partido prove — disse
ele, sério — é que tens de fazer o que for preciso para estares com a pessoa
que amas.
Amor. Tal como as roupas, tinha percebido que se tratava de algo que
não servia exatamente da mesma maneira a duas pessoas diferentes. Ainda
não sabia o que essa palavra significava para mim, mas sentia que, mais
cedo ou mais tarde, ficaria totalmente definida. Tudo o que restava era saber
se eu poderia ficar satisfeita com a definição.
— Estou a dizer-te, Eady, guerras e tratados, e até mesmo países, são
tudo coisas que vão e vêm. Mas a tua vida é só tua, única e sagrada, e deves
estar com a pessoa que te faz sentir assim todos os segundos abençoados
que viveres.
Olhei para baixo, estudando o meu vestido e sentindo o peso da coroa
na minha cabeça. Sim, a minha vida era única e sagrada, mas, desde o
momento do meu nascimento, apenas sete minutos antes do dele, ela tinha
pertencido a todos menos a mim.
— Obrigada, Ahren. Vou lembrar-me disso.
— Faz isso, por favor.
Coloquei a mão no ombro dele.
— Vai ter com a tua mulher. Faz uma boa viagem e diz-nos quando
aterrares, está bem?
Ele pegou na mão que eu pousara no seu braço e beijou-a.
— Adeus, Eady.
— Adeus.
Embora estivesse a ficar cansada, sabia que ainda não era altura de me
escapulir. Mais uma volta, disse a mim mesma. Apertaria algumas mãos,
daria duas ou três entrevistas e escaparia pela porta lateral.
Tantos sorrisos e abraços, tantos desejos de felicidades e promessas de
contacto em breve. Instilavam-me energia quase tão depressa como a
sugavam. Quando virei a esquina onde o Ean falava com algumas pessoas,
que tinham ganho a lotaria de virem à coroação, começou a tocar outra
valsa.
— Oh, uma dança! — implorou uma jovem. Pensei que quisesse que o
Ean dançasse com ela, mas ela empurrou-o na minha direção e ele teve todo
o gosto em me acompanhar até à pista.
Depois de algumas voltas tive que perguntar.
— Há quanto tempo gosta do Hale?
Ele sorriu.
— Desde o momento em que nos estávamos a preparar para a
conhecer. Ele parecia tão feliz, ao ponto de ser caricatural. Foi cativante.
— Ele é mesmo — concordei.
— Desculpe ter-lhe mentido. Eu planeava levar isto para a sepultura.
— E agora?
Ele encolheu os ombros.
— Não tenho a certeza. Mas o Hale é tão insistente em relação a
sermos fiéis a nós mesmos que, no mínimo, não vou voltar a usar alguém
como uma capa para me esconder, como tentei fazer consigo. Não é justo
para ninguém.
— Por vezes, é difícil sermos justos connosco mesmo, não é?
Ele assentiu.
— Eu, contudo, não compararia as nossas circunstâncias. No fim de
contas, ninguém se preocupa comigo e toda a gente se preocupa consigo.
— Tolice. Eu preocupo-me consigo. Gostava do snobe arrogante que
se apresentou naquele primeiro dia. — Ele riu-se, recordando. Algum do
seu verniz tinha desaparecido. Não todo, mas eu sabia o quão difícil era
deixarmos cair as muralhas. — E gosto desta pessoa nervosa e gentil à
minha frente agora.
O Ean não era o tipo de homem que chorasse. Não engoliu em seco,
não pestanejou, nem apresentou nenhum dos sinais típicos, mas eu senti
que, se alguma vez estivera perto de derramar uma lágrima, este fora o
momento.
— Estou tão feliz por a ver como rainha. Obrigado, Vossa Majestade.
Por tudo.
— Sempre que precisar.
A música chegou ao fim e inclinámos a cabeça um para o outro.
— Será que eu poderia partir de manhã? — perguntou ele. — Gostava
de passar algum tempo com a minha família.
— Claro. Dê notícias.
Ele acenou com a cabeça e atravessou a sala, pronto para começar a
sua nova vida.
Tinha conseguido. Tinha ultrapassado este dia sem fazer nada de
humilhante, sem ninguém protestar, e ainda continuava de pé. Estava
terminado e eu podia escapar para a paz e tranquilidade do meu quarto.
E então, quando estava prestes a alcançar a porta lateral, vi o Marid a
falar diante de uma câmara.
Ele olhou para mim e a sua expressão iluminou-se como um fogo de
artifício, acenando para eu me juntar à sua entrevista. E, embora tudo em
mim me pedisse para me retirar e ir descansar, o sorriso dele era tão
encantador que me aproximei.
Capítulo 23

— Aqui está ela, a senhora do momento — disse ele colocando um


braço à minha volta, enquanto a entrevistadora soltava uma risadinha.
— Majestade, como se sente? — perguntou ela, apontando o
microfone para a minha cara.
— Posso dizer cansada? — brinquei. — A sério, foi um dia incrível e,
com tantas coisas angustiantes a acontecerem recentemente no nosso país,
espero sem dúvida que o dia de hoje levante o ânimo de todos. E estou
muito entusiasmada por começar a trabalhar. Graças aos maravilhosos
jovens da Seleção e aos amigos, como aqui o Sr. Illéa, passei a saber muito
mais sobre o meu povo. Espero ser capaz de encontrar maneira de ouvir e
responder às suas necessidades de um modo muito mais eficiente.
— Pode dar-nos alguma dica sobre o que está a planear fazer? —
perguntou ela ansiosamente.
— Bem, acho que a nossa reunião municipal, uma ideia do Marid —
disse eu, apontando para ele —, começou de um modo um pouco
atribulado, mas acabou por ser bastante informativa. E o Sir Woodwork
apresentou recentemente uma proposta interessante sobre como
proporcionar aos cidadãos um modo muito mais fácil de fazerem uma
petição à Coroa. Neste momento, não posso dizer muito sobre isso, mas é
incrivelmente inspiradora.
— Falando de propostas — disse ela com entusiasmo. — Há alguma
notícia nesse campo?
Soltei uma gargalhada.
— Deixe-me passar a minha primeira semana como rainha e depois
voltarei novamente o meu foco para os namoros.
— Faz sentido. E quanto a você, senhor? Algumas palavras de
conselho para a nossa nova rainha?
Virei-me para encarar o Marid, que encolheu os ombros e baixou a
cabeça.
— Só lhe quero desejar toda a sorte para o seu reinado e para o fim da
sua Seleção. O homem que conquistar o seu coração será mais sortudo do
que imagina.
O Marid engoliu em seco, parecendo ter dificuldade em encarar
novamente a entrevistadora.
Ela acenou entusiasticamente.
— Sem dúvida que será.
Peguei no braço do Marid e puxei-o para longe, afastando-nos de
ouvidos alheios.
— Não quero ser rude depois de toda a generosidade que me dedicou,
mas está a agir de um modo inadequado.
— De que modo? — perguntou ele.
— Como se pudéssemos ter tido algo se a Seleção não tivesse
acontecido. Esta é a terceira vez, de que tenha conhecimento, que diz algo
deste género, mas eu não o via há anos. É meu dever de honra casar-me
com um dos meus candidatos, portanto, agir deste modo magoado quando
nunca tivemos absolutamente nada juntos é inaceitável. Peço-lhe que pare
imediatamente com isso.
— E porque o faria? — disse ele e a sua voz tornou-se sagaz.
— Perdão?
— Se a tua família tivesse prestado alguma atenção ao povo já teriam
percebido, por esta altura, que, quando se trata do público, eu tenho uma
voz incrivelmente poderosa. Eles valorizam-me. Devias ver as pilhas de
cartas de fãs que recebo. Nem toda a gente pensa que a linhagem Schreave
é a única válida.
Gelei, receando que o que ele dizia fosse verdade.
— Deves-me bastante, Eadlyn. Fiz com que tivesses boa imagem nos
jornais, falei bem de ti em entrevistas e salvei aquela reunião municipal. Eu
fiz aquilo, não tu.
— Eu podia ter...
— Não, não podias. E esse é o problema. Não consegues fazer este
trabalho sozinha. É quase impossível e essa é a razão pela qual é uma
excelente ideia casares. Só que estás a olhar para o sítio errado.
Eu estava demasiado chocada para falar.
— E, vamos ser honestos, se algum destes rapazes estivesse en‐
tusiasmado por ti estaria aqui neste exato momento. Vendo de fora, parecem
todos indiferentes.
O meu choque transformou-se em angústia. Olhei em volta da sala. Ele
tinha razão. Ninguém da Elite parecia estar remotamente consciente da
minha presença.
— Mas, se casares comigo, a linhagem Illéa— Schreave ficará
completamente segura. Ninguém se atreveria a questionar o teu direito de
governar se fosses minha mulher.
O quarto oscilou um pouco e lutei para me manter controlada enquanto
ele continuava.
— Podes verificar os números se quiseres, mas, em termos de opinião
pública, o meu índice de aprovação é o dobro do teu. Posso fazer com que
passes de tolerável a adorada de um dia para o outro.
— Marid — disse eu, odiando o facto de a minha voz soar tão fraca.
— Isso não é possível.
— É sim. E ou acabas com esta Seleção sozinha ou eu posso espalhar
rumores sobre nós ao ponto de ninguém a levar a sério. Quando eu tiver
terminado, vais parecer mais insensível do que eles já pensam que és.
Endireitei-me.
— Vou destruir-te — jurei.
— Experimenta. Vais ver o quão rápido eles se viram contra ti. — Ele
beijou-me na face. — Tens o meu número.
O Marid afastou-se, apertando descontraidamente as mãos dos que
passavam por ele, como se já fosse um membro da família real. Enquanto
todos os olhares pareciam segui-lo, escapei silenciosamente da sala.
Era uma tola. Tinha pensado que o Hale gostava de mim e que o Ean
estava aqui para me apoiar e não podia ter estado mais errada. Tinha-me
enganado ao confiar no Burke, no Jack e no Baden. Tinha tido a certeza de
que o Marid estava aqui para me ajudar, quando afinal ele só estava a tentar
apoderar-se do trono. Os meus instintos tinham estado errados em tudo e, de
repente, parecia que todas as pessoas à minha volta eram falsas.
Encostei-me à parede, à beira das lágrimas. Era a rainha. Ninguém era
mais poderoso do que eu. E, ainda assim, nunca me sentira tão impotente.
A porta abriu-se e, antes que eu pudesse fugir, o rosto do Erik surgiu.
— Vossa Majestade, desculpe. Estava apenas a escapar da multidão.
Está a ficar um pouco demais para mim ali dentro.
Não respondi.
— Parece ter sido demasiado para si também — acrescentou ele com
cautela.
Fitei o chão.
— Vossa Majestade? — Ele afastou-se da porta, sussurrando. — Posso
ajudar?
Fitei aqueles olhos incrivelmente azuis e abandonei todas as
preocupações que tinha na cabeça. O meu coração dizia Corre. Então,
peguei na mão dele e fiz exatamente isso.
Disparei pelo corredor, olhando para trás uma vez para me certificar de
que ninguém nos estava a seguir.
Tal como esperava, o Salão das Mulheres estava vazio. Deixando as
luzes apagadas, conduzi-nos para mais perto da janela para desse modo ter
pelo menos a Lua para me ajudar a ver.
— Correndo o risco de fazer uma tolice ainda maior do que as que já
fiz, podes, por favor, responder-me a uma coisa? E tens de ser
absolutamente sincero comigo. Dou-te autorização para ferires os meus
sentimentos. Preciso de saber.
Após um longo momento, ele assentiu, embora a sua expressão me
dissesse que estava apavorado com o que poderia surgir.
— Existe alguma hipótese de sentires por mim o mesmo que sinto por
ti? Se sentes ainda que seja apenas uma fração do caos que está a acontecer
no meu coração, eu preciso de saber.
O Erik soltou um suspiro, parecendo atordoado e triste ao mesmo
tempo
— Vossa Majestade, eu...
— Não! — disse eu, arrancando a coroa da cabeça e atirando-a para o
outro lado da sala. — Majestade não. Eadlyn. Eu sou apenas a Eadlyn.
Ele sorriu.
— És sempre apenas a Eadlyn. E és sempre a rainha. És tudo para toda
a gente. E infinitamente mais para mim.
Coloquei a mão no peito dele e consegui sentir o seu coração a bater
em compasso com o meu. Ele pareceu ficar subitamente consciente do quão
desesperada eu estava naquele momento e, sem dizer nada, colocou a mão
no meu queixo e inclinou-se para me beijar.
Todos os momentos que tínhamos tido juntos dançaram na minha
cabeça. A sua postura desajeitada no dia em que nos tínhamos conhecido e
como eu o repreendera antes do desfile, por estar a roer as unhas. A maneira
como me protegera quando se dera a briga na cozinha e como os meus
olhos o procuraram, vezes sem conta, quando os rapazes estavam em
profunda oração no exterior da ala hospitalar. E, mais surpreendente, o
momento no Salão das Mulheres quando a Camille me perguntara quem
preenchia os meus pensamentos e como eu tinha lutado para me impedir de
dizer o nome dele em voz alta, naquele mesmo instante.
Tudo aquilo, cada segundo mágico e proibido, ardeu pelo meu corpo à
medida que continuávamos o nosso beijo perigosamente traidor. Quando
finalmente nos separámos, eu estava a chorar, certa de que a partida do
Ahren e o medo de perder a minha mãe tinham sido quase indolores
comparados com isto.
Ele abanou a cabeça, ainda a rodear-me com os braços.
— Claro que a única vez que me apaixono é por alguém de outro
universo.
Agarrei a camisa e o colete dele com força, cheia de raiva por não o
poder agarrar para sempre.
— Esta é a primeira vez na minha vida em que não posso ter aquilo
que queria mesmo. E é tão cruel que sejas tu.
Ele engoliu em seco.
— É realmente impossível, então?
A minha expressão desmoronou-se. Não queria dizer as palavras.
— Receio que sim. De tantas maneiras, agora. Mal consigo entender
tudo para o poder explicar, mas as coisas tornaram-se muito mais
complicadas para mim.
— Não me deves uma explicação. Eu já sabia. Cometi o erro de me
permitir ter esperança por um instante. É tudo.
— Lamento tanto — sussurrei, baixando os olhos. — Se achasse que
podia cancelar tudo isto, cancelava. Mas isso seria visto como mais um erro
em cima de todas as outras coisas estúpidas e egoístas que fiz.
Usando a outra mão, ele ergueu gentilmente o meu queixo.
— Por favor, não fales assim da mulher que amo.
O meu sorriso era fraco.
— Fui tão injusta contigo. Estava a roer-me por dentro, toda a dúvida,
mas talvez tivesse sido melhor se nunca tivéssemos sabido.
— Não — disse ele, conseguindo de alguma forma encontrar um
pouco de conforto apesar de nos termos de separar. — Não há nenhuma
vergonha em amarmos quem amamos e há grande honra em fazermos o que
está certo. É uma pena que essas duas coisas não se sobreponham no nosso
caso, mas isso não torna este momento menos importante para mim.
— Ou para mim.
Ele segurou a minha mão com imensa ternura, ainda parecendo
chocado por ter a coragem de o fazer sequer.
—Tenho de voltar — disse ele. — Detestaria causar um escândalo.
Suspirei.
— Tens razão. — Mas, ainda assim, não o conseguia deixar ir.
Continuei abraçada a ele. — Ainda não estou noiva — sussurrei. —
Encontrar-te-ias comigo amanhã à noite?
Era impossível não ver todas as engrenagens a girar na cabeça dele. E
também foi fácil ver o momento em que ele parou de pensar e disse que sim
com um aceno.
— Eu mando-te uma mensagem. Podes sair agora e eu sigo-te daqui a
uns minutos.
O Erik deu-me um último beijo apressado e saiu novamente para o
corredor. Fui buscar a minha coroa e dirigi-me ao painel escondido atrás da
estante. Queria ter a certeza de que ninguém me encontraria esta noite.
Já não havia rebeldes em Illéa nem ameaças das quais fugir. Mas ainda
havia dezenas de passagens secretas no palácio e eu conhecia-as a todas.
Capítulo 24

— Bom dia, Vossa Majestade — cumprimentou a Lady Brice quando


entrei no escritório. Normalmente, eu dormia até mais tarde aos domingos,
mas não podia, de modo nenhum, passar o meu primeiro dia como rainha na
cama, especialmente não depois da maneira como as coisas tinham
terminado na noite anterior.
Suspirei, ao mesmo tempo cansada e emocionada.
— Ouvi isso um milhão de vezes ontem, mas ainda me parece estranho
responder a esse título.
— Vai ter décadas para se habituar a isso — respondeu ela com um
sorriso.
— Falando nisso, preciso de falar consigo sobre a Seleção, o meu
reinado e uma complicação inesperada.
— Complicação?
— Pode dizer-me uma coisa? Quão grande é a popularidade do Marid?
A Lady Brice assobiou.
— Ele construiu um nome importante ao longo dos últimos anos. É
frequentemente entrevistado na rádio, é atraente e vem de uma família bem
conhecida, o que faz com que também apareça bastante na imprensa escrita.
Muitas pessoas ouvem o que ele diz. Felizmente, decidiu aparecer nesta
altura, não é?
Antes de eu poder explicar o que tinha acontecido na noite anterior,
ouvi a porta abrir-se atrás de mim e a Josie irrompeu pela sala.
— Olá! Espero não estar atrasada! — exclamou.
Fechei os olhos frustrada. Esquecera-me completamente de que ela ia
começar a seguir-me hoje.
— Posso ajudá-la? — perguntou a Lady Brice.
— Oh, eu estou aqui para vos ajudar — anunciou ela. — Estou a
seguir a Eadlyn hoje. Talvez durante mais tempo, se tudo correr bem.
— A Miss Marlee sugeriu-o durante a sessão de fotos de família ontem
— disse eu rapidamente.
A Lady Brice acenou com a cabeça e nesse momento a Neena também
entrou no escritório. Embora não tivesse a certeza de me sentir à vontade
para partilhar tudo em frente da Josie, parecia que não tinha escolha.
— Bom — comecei lentamente —, temos um problema. E o nome
dele é Marid Illéa.
— A sério? — perguntou a Neena. — Ele pareceu ser útil até agora.
— Sim, era assim que ele queria parecer. Mas, na verdade, o objetivo
dele foi sempre tomar a coroa. — Engoli em seco, sentindo-me novamente
estúpida. — Na noite passada, disse-lhe para parar de encorajar a imprensa
a pensar que éramos mais do que amigos e ele deixou bem claro que planeia
seguir essa estratégia até o público exigir que eu me case com ele.
A Lady Brice colocou a cabeça entre as mãos.
— Eu sabia que ele podia arruinar isto tudo. Eu sabia. Devíamos ter
acabado com os rumores.
Abanei a cabeça.
— A culpa não é sua. Você deu-me essa oportunidade logo no início e
eu não a aceitei. Nunca pensei que ele se tentasse introduzir no palácio
como um elemento permanente.
— É tudo tão sorrateiro — disse a Lady Brice, cerrando os punhos. —
Os pais dele lançaram pedras e invadiram o palácio. Tudo o que ele tem de
fazer é alguns discursos no momento certo e entra sem sequer parecer
remotamente agressivo.
— Exatamente. E eu estou... Estou assustada. Se convencer as pessoas
a acreditarem que ele deve ser o meu príncipe consorte, elas virão atrás da
monarquia. Estão à beira da revolta há algum tempo e, agora que sou
rainha, não há nada que detenha as pessoas que se contiveram por causa do
meu pai. Mas se cedermos e ele entrar... se consegue mentir assim tão
facilmente apenas para se aproximar de mim...
— Então o que faria quando visse que já não precisava de si? — disse
a Lady Brice sombriamente.
Eu já tinha imaginado uma dúzia de cenários diferentes. Ele diria que
eu caíra nas escadas, ou que adormecera no banho, ou que os genes dos
Singers também tinham afetado o meu coração. Não queria pensar no Marid
como puramente malévolo, mas percebia que ele queria o poder e que não
tinha qualquer respeito por mim.
Era possível que estivesse a ser paranoica, sabia disso, mas, depois de
não ter percebido tantas coisas nos últimos meses, coisas que me deveriam
ter obrigado a ser cuidadosa, a chamar a atenção, a agir, agora não era o
momento de achar que iria correr tudo bem.
— Então temos de o silenciar. O que vamos fazer? — perguntou a
Neena.
— Porque precisam de fazer alguma coisa? — perguntou a Josie.
Virámo-nos todas e o sorriso dela desapareceu sob o peso dos nossos
olhares. — Quero dizer, és a rainha. Podes simplesmente mandar matá-lo se
quiseres. Se ele for um traidor, certo?
— Se ele agir como um traidor, sim. Mas se eu decidir enforcá-lo
quando ele aparenta estar apaixonado por mim, que imagem é que isso dá
de mim?
Ela semicerrou os olhos, compreendendo.
— Horrível.
— Pior do que horrível. E a minha aprovação já está por um fio. Não o
posso matar. Acho que agora nem sequer posso dizer publicamente que não
tenho qualquer interesse nele, não sem consequências.
— Então, o que fazemos? — perguntou a Lady Brice.
— Isto não pode sair deste quarto. Estamos entendidas? — Olhei para
a Josie, esperando que ela percebesse a importância do sigilo. — Primeiro,
vamos ignorar o Marid. Ele não tem permissão para vir ao palácio e, se
telefonar, ninguém fala com ele. Fica completamente afastado da minha
presença daqui em diante. Não podemos dar à imprensa nem um sussurro
sobre o qual possa especular.
— Concordo — comentou a Lady Brice.
— Em segundo lugar, planeei as próximas semanas em termos da
Seleção. O Ean vai para casa esta manhã. Conversámos a noite passada e
ele está pronto para ir. No início da próxima semana, o Hale também se vai
embora.
A Neena fez uma careta.
— Tenho pena que o Hale saia.
— Eu também. Mas isto foi de mútuo acordo, por isso garanto-lhe que
não há ressentimentos de nenhum dos lados.
— Isso torna tudo mais fácil — admitiu ela. — Mas espere. Não tem
de escolher no espaço de quatro dias depois de chegar aos últimos três?
— Sim. A única maneira de vencer o Marid no seu jogo é escolher um
marido o mais rapidamente possível. E, independentemente de quão
profundamente apaixonada eu possa ou não estar, tem de parecer tão bom
como o que os meus pais têm. Melhor, se possível. — Respirei fundo. —
Portanto, assim que o Hale partir esperamos alguns dias e depois
eliminamos o Fox. Ele é simpático, mas não temos uma verdadeira ligação.
Isso deixa o Kile e o Henri como os dois finalistas e eu pretendo fazer uma
transmissão ao vivo daqui a cerca de duas semanas para anunciar o meu
noivado.
— Duas semanas! — exclamou a Neena. — Eadlyn!
— Vou precisar de ajuda com tudo isto — continuei. — Verifiquei
algumas sondagens recentes e o Hale e o Kile são os favoritos há já algum
tempo. Vou certificar-me de que a decisão de sair do Hale é encarada como
necessária para que as pessoas fiquem satisfeitas com a sua partida, mas
precisamos de algo sensacional sobre o Henri. Por exemplo, ele cozinhar
para idosos em lares ou a sua família ser descendente da nobreza norueca.
Mesmo que tenham de esticar a verdade façam-no. Coloquem-no nos dois
últimos finalistas com a aprovação de todos.
Ninguém falou por um instante.
— Tu amas sequer o Kile? — perguntou a Josie. Pela primeira vez, o
rosto dela perdera aquele seu olhar ridiculamente inexpressivo e vi uma
profunda e sincera preocupação nos seus olhos.
Pensei no Erik. A prometer-me que valia a pena. Em como me tratara
desde o início. No modo como me beijara.
Em como se iria embora em breve.
— Eu seria feliz com o Kile.
Sem dúvida que antes de mim já outros líderes tinham feito sacrifícios
muito maiores, mas a Lady Brice, a Neena e a Josie olharam todas para
mim como se eu estivesse a marchar para a morte.
— Vocês vão ajudar-me ou não? — perguntei.
— Vou ver o que consigo descobrir sobre o Henri — disse a Lady
Brice. — Prefiro começar com a verdade absoluta primeiro.
— Também eu. E tenho a certeza de que vai conseguir encontrar
alguma coisa sobre ele. É um doce.
— É sim — concordou a Neena. — Assim como o Kile. Podia ser
muito pior.
Sim, pensei. Mas também podia ser muito melhor.
— Façam o que for preciso para organizar tudo. Vou passar o resto do
dia a trabalhar no meu quarto. Josie? — Ela encarou-me imediatamente,
atenta. — Vais voltar amanhã ou foi o suficiente para ti?
— Foi mais do que suficiente — disse ela, engolindo em seco.
— Nem uma palavra, percebeste?
Ela assentiu, mas eu mal conseguia olhar para ela. Parecia tão triste
por mim e, de todas as pessoas, a pena dela era algo que eu não conseguia
suportar. Mas quando olhei para a Neena e para a Lady Brice, as suas
expressões eram igualmente más.
Endireitei-me o mais que consegui e saí da sala, lembrando-me de que,
independentemente do que acontecesse, ainda era rainha.
Capítulo 25

— Que lugar é este? — perguntou o Erik. Eu tinha feito o meu melhor


para tornar o local aconchegante, esgueirando-me com um cesto cheio de
velas e cobertores a meio do dia e com outro cheio de comida quando toda a
gente tinha ido jantar.
O Erik disse que estava doente, eu aleguei trabalho e encontrámo-nos
num local discreto no segundo andar. Uma das passagens mais fáceis que
conduziam até ao enorme abrigo ficava junto do antigo quarto da minha
mãe, o que ela usara durante a sua Seleção. Às vezes, ela fazia
peregrinações até lá, como se para ela aquele fosse o lugar mais calmo do
palácio.
— Quando os rebeldes eram uma ameaça mortal, a família real
costumava fugir para aqui — disse eu ao Erik, enquanto seguíamos através
da passagem. — Mas este lugar não é utilizado há mais de uma década e
agora é capaz de ser o segredo mais bem guardado do palácio.
— Por outras palavras, ninguém nos vai encontrar — respondeu o Erik
com um sorriso.
— Não se não quisermos que o façam.
Ele respirou fundo.
— Senti-me tão culpado hoje, dividido entre a excitação pelo teu
convite e uma culpa enorme por nem sequer ser uma escolha.
Acenei com a cabeça, tirando os pratos do cesto e colocando-os em
cima dos cobertores.
— Eu sei. Tenho amaldiçoado a Seleção como não o fazia desde que
os meus pais a mencionaram pela primeira vez. E depois volto atrás, porque
se ela nunca tivesse acontecido...
Trocámos um longo olhar. Interrompi-o com um suspiro, continuando
a montar o nosso piquenique à luz das velas.
— Sabes, não era suposto o meu pai casar com a minha mãe.
— Estás a brincar — disse ele, juntando-se a mim.
— Aparentemente, o meu avô escolheu a dedo as raparigas da
competição e só colocou três Cincos para apaziguar as castas mais baixas.
Ele detestou a minha mãe desde o início. Além disso, descobri que os meus
pais costumavam discutir o tempo todo. — Encolhi os ombros, ainda
surpreendida com a sua história turbulenta.
— Cresci a pensar que eles eram um conto de fadas, sabes? E acontece
que eram iguais a todas as outras pessoas. De certa forma, isso torna tudo
ainda mais mágico.
Deixei as palavras pairarem, pensando em tudo o que sabia agora.
— Eles ainda dançam quando chove. Não faço ideia porquê, mas
sempre que o céu fica cinzento lá estão eles, juntos. — Sorri.
— Lembro-me de que uma vez o meu pai invadiu o Salão das
Mulheres, o que é completamente impróprio. Vocês têm de ser convidados a
entrar. Mas estava a chover e ele não quis esperar para a levar. E uma vez
inclinou-a para trás, no corredor, e ela não parava de rir. Ainda usava o
cabelo solto na altura e nunca me hei de esquecer de que parecia uma
cascata de vermelho. É como se, independentemente do que aconteça, eles
se possam encontrar novamente ali.
— Sei o que queres dizer. — O Erik olhou para a garrafa de vinho
tinto que eu tinha roubado e sorriu. — Os meus pais encontram-se quando
fazem omenalörtsy.
Abracei os joelhos, entalando o vestido por baixo de mim.
— O que é isso?
— E como um dónute de maçã. A minha mãe fez-lhe uma fornada
quando namoravam e aquilo tornou-se a coisa especial deles. Quando algo
de bom acontece: omenalörtsy. Quando fazem as pazes depois de uma
discussão: omenalörtsy. Quando estão a ter uma sexta-feira maravilhosa:
omenalörtsy.
— Como é que eles se conheceram?
— Isto vai soar estranho, mas foi através de porcas e parafusos.
Semicerrei os olhos.
— Então... são mecânicos?
— Não — respondeu ele com uma risada. — Os meus pais co‐
nheceram-se basicamente a vida toda. Cresceram na mesma cidadezinha na
Noruécia. Quando tinham onze anos, alguns miúdos na escola implicaram
com o meu pai e atiraram os trabalhos da escola dele para a lama. A minha
mãe ainda era mais pequena do que ele na altura, mas foi ter com eles e
gritou-lhes e puxou o meu pai para longe.
»Ele ficou envergonhado, mas ela estava enfurecida. Obrigou-o a fazer
um pacto. Nessa noite, encontraram-se numa estrada secundária, foram até
à casa de cada um dos três agressores e roubaram os parafusos das rodas
das bicicletas deles para os obrigarem a andar a pé. Durante semanas,
depois disso, sempre que viam que um dos agressores tinha substituído os
parafusos, a minha mãe e o meu pai iam roubá-los. Ao fim de algum tempo,
os valentões desistiram e passaram a andar a pé.
— Gosto da tua mãe — disse eu entre dentadas no pão.
— Oh, vocês dar-se-iam muito bem. Ela adora comida e música e está
constantemente à procura de um bom motivo para se rir. O meu pai, por
outro lado... Bem, se achas que sou tímido, devias conhecê-lo. Sente-se
muito mais à vontade com livros do que com pessoas e pode demorar algum
tempo até se sentir confortável junto de estranhos. Enfim, os meus pais
cresceram e, como eram pessoas muito diferentes, moviam-se em círculos
distintos. Havia vários rapazes atrás da minha mãe, enquanto o meu pai
passava os fins de semana na biblioteca.
»Quando o meu pai cresceu, comprou uma bicicleta. E uma manhã
acordou e percebeu que lhe faltavam os parafusos das rodas.
— Não!
— Sim. E ela fez isso até ele perceber e começar a ir para a escola a pé
com ela. E desde então caminham juntos.
— Isso é incrível.
Ele assentiu.
— Casaram-se novos, mas esperaram algum tempo antes de terem
filhos. Disseram-me para não me sentir ofendido, mas não estavam prontos
para se partilharem com mais ninguém, nem sequer comigo.
Abanei a cabeça.
— Gostava mesmo de os poder conhecer.
— Eles teriam gostado de ti. O meu pai passaria a maior parte da visita
escondido no quarto dele, mas teria gostado de ti na mesma.
O Erik tirou a rolha do vinho e partilhámos as frutas, o pão e o queijo.
Não falámos durante bastante tempo. O silêncio tornava tudo maior, melhor.
Não havia pressa para preenchermos o espaço e, depois de dias e dias de
ruído, o silêncio confortável com o Erik era a coisa mais calmante do meu
mundo. Era como estar sozinha sem estar realmente sozinha.
— Tenho de fazer uma pergunta embaraçosa — admiti, ao fim de
algum tempo.
— Oh, não. — Ele respirou fundo. — Tudo bem, estou pronto.
— Qual é o teu nome completo?
Ele quase cuspiu o vinho.
— Pensei que ia ter de confessar algum segredo obscuro e é só isso?
— Sinto-me mal por te ter beijado e nem sequer saber o teu apelido.
Ele assentiu.
— É Eikko Petteri Koskinen.
— Eikko Pet... Petteri?
— Koskinen.
— Koskinen.
— Perfeito.
— Posso chamar-te assim? Eikko? Gosto do teu nome.
Ele encolheu os ombros.
— Só o mudei porque achei que era demasiado estranho.
— Não — insisti. — Não é estranho.
Ele olhou para baixo, brincando com o cobertor.
— E tu? Qual é o teu nome completo?
Suspirei.
— Houve algum debate em relação aos meus segundos nomes, por
isso ficou Eadlyn Helena Margarete Schreave.
— Isso é muito grande — brincou ele.
— E pretensioso também. O meu nome significa literalmente
«princesa luminosa pérola».
Ele tentou esconder um sorriso.
— Os teus pais chamaram-te princesa?
— Sim. Sou a rainha Princesa Schreave, obrigadinha.
— Eu não me devia rir.
— Mas estás a rir. — Sacudi as migalhas do meu vestido. — Faz-me
sentir como se estivesse predestinada a ser uma miúda mimada.
Ele agarrou a minha mão, forçando-me a olhar para ele.
— Tu não és uma miúda mimada.
— Na primeira vez que falámos, corrigi as tuas maneiras.
Ele encolheu os ombros.
— Precisavam de ser corrigidas.
Sorri tristemente.
— Não sei porquê, mas isso dá-me vontade de chorar.
— Por favor, não. Aquele foi um bom dia para mim.
Questionei-o com os olhos, segurando-lhe na mão enquanto ele
prosseguia.
— Quando subiste para o carro alegórico e estavas a falar com o
Henri? Depois de fazeres isso, olhaste para baixo, para me indicares que
estava tudo bem. Não tinhas de fazer isso. Estavas ocupada e com pressa e,
ainda assim, reparaste em mim. Mesmo depois de saberes que eu era o tipo
de pessoa que roía as unhas quando estava nervoso.
Aquilo deu-me ainda mais vontade de chorar.
— Foi aí que tudo começou?
— Sim. E desde então tenho pregado sermões a mim mesmo por causa
disso todos os dias. Mas, claro, achava que nunca ninguém iria saber, muito
menos tu.
— Eu fui um pouco mais lenta — admiti.— Acho que foi quando me
tiraste da cozinha. Não estavas preocupado com o que estava a acontecer,
nem com o aspeto que poderíamos dar, a correr pelo meio de uma sala cheia
de gente, nem com mais nada, aparentemente. Eu estava enervada e tu
trouxeste-me de volta à Terra. Há muitas pessoas encarregadas de me
manterem na linha, mas ninguém me faz sentir tão normal como tu.
Ele engoliu em seco.
— Desculpa não poder fazer isso por muito mais tempo.
— Não fazes ideia do quanto eu gostaria que pudesses.
Depois de um momento tenso de silêncio, ele aclarou a garganta.
— Podias, por favor... quando isto acabar, podias não me contactar?
Tenho a certeza de que se quiseres encontrar-me-ás. Mas, por favor, não o
faças. Tens sido uma amiga maravilhosa e o mesmo posso dizer dos outros.
Não me quero tornar no tipo de homem que trai os seus amigos.
— E eu não quero ser o tipo de mulher que engana o marido. Quando
isto acabar, acabou.
— Obrigado — sussurrou ele.
— Mas ainda nada acabou hoje — recordei-lhe.
Ele olhou para baixo, sorrindo um pouco.
— Eu sei. Estou a tentar decidir se tenho coragem suficiente para te
pedir outro beijo.
Aproximei-me mais dele.
— Podes pedir um. Ou dois. Ou doze.
Ele riu-se e deixou-se cair para trás, derrubando o seu copo de vinho e
fazendo dançar a chama das velas com a impetuosidade do nosso
movimento.
Capítulo 26

Na manhã seguinte, cheguei ao escritório um pouco mais tarde do que


queria. Tinha apanhado o cabelo e tinha-me vestido a correr, mas,
independentemente do tempo que tinha gasto com o rosto, não conseguia
apagar o sorriso da cara.
Estar apaixonada era uma sensação deliciosa. Tinha tido bastantes
luxos na vida e achara que já tinha sentido isto antes, mas percebia agora
que fora apenas uma imitação barata de algo que não podia sequer ser
imitado.
Recordei a mim mesma que isto ia acabar e que tinha aceitado esse
facto. Sabia que ia escolher o Kile; tinha-o praticamente dito ao Eikko.
O Kile far-me-ia feliz e esperava poder fazer o mesmo por ele. Decidi
que, a certa altura, depois de o Kile saber que o iria escolher, ia contar-lhe o
que se passava. E conhecia o Kile suficientemente bem para saber que ele ia
perceber se eu confessasse que me tinha sentido confusa com todo o
processo e que beijar o Eikko não fora algo que tivesse planeado. Ambas as
coisas eram verdade. Não queria nada a pairar sobre nós. Nenhum de nós.
E uma vida ao lado do Kile não era exatamente uma pena de prisão.
Ele era inteligente, apaixonado, engraçado, encantador, uma dúzia de coisas
que um marido deve ser. Seria amado pelo povo — o nosso povo — e iria
ficar ao meu lado e lutar contra o Marid. Era tão carismático que podia até
suplantar o Marid.
E, no fundo do meu coração, esperava ter a oportunidade de aprender a
amá-lo, agora que sabia o que isso realmente era.
Por enquanto, ainda tinha alguns dias preciosos com o Eikko e
tencionava aproveitá-los a todos.
A Neena bateu com os dedos na minha secretária, atraindo a minha
atenção para o presente.
— Sente-se bem? Em que está a pensar?
— Hum...
Para ser sincera, estava a pensar em como Sua Majestade Eadlyn
Helena Margarete Schreave de Koskinen soava e como, de repente, todos os
meus nomes pareciam um verso de poesia. Mas, então, olhei para os olhos
dela e vi que estavam tingidos de vermelho.
— Em si — disse. — Está tudo bem?
— Muito bem — disse ela num tom que indicava o contrário. — É só
o Mark. Anda a trabalhar imenso e agora eu tenho de trabalhar mais e está a
ficar cada vez mais difícil manter o contacto. Sabe, o costume. A distância
não é importante até passar a ser.
Agarrei as mãos dela.
— Neena, a última coisa que quero é fazê-la perder a pessoa que ama.
Você é uma rapariga fantástica; pode trabalhar em qualquer lado...
— Está a despedir-me? — sussurrou ela, parecendo à beira das
lágrimas.
— Claro que não! Só a ideia de se ir embora parte-me o coração. Se
existirem almas gémeas na amizade, a Neena é a minha e não quero que vá
a lado nenhum. — Ela riu-se apesar dos olhos chorosos. — Apenas não
aguento vê-la perder algo tão importante para si.
— Eu entendo. Faz ideia de como é difícil para mim ver a sua vida
neste momento e não poder fazer nada?
Suspirei.
— A minha vida é uma coisa completamente diferente. E, como a
Neena disse, podia ser pior.
— Eadlyn, por favor, pense bem. Deve haver uma maneira melhor de
determos o Marid.
— Se houver, não tenho tempo para esperar por ela. Se não assegurar o
meu lugar agora, vou ter um reinado cheio de pessoas a tentarem usurpar o
trono e a falharem ou a tentarem e a conseguirem. Nenhuma dessas opções
é aceitável. Isto é importante para mim. Não posso ceder.
Ela assentiu com a cabeça.
— Bem, e eu também não. E não a poderia deixar assim.
Agarrei na mão dela, grata, como sempre, pela sua presença na minha
vida.
— Avise-me se mudar de ideias — insisti. — Se tiver de se ir embora,
eu posso...
Fiquei sem palavras perante a visão da Josie a entrar no escritório com
uma bandeja nas mãos. Ela pôs uma chávena de café à frente da Neena e
outra à minha frente antes de falar.
— Todos disseram que tomas o teu café com duas colheres de açúcar,
mas se estiver mal posso fazê-lo novamente.
— Não, não — disse eu, ainda um pouco confusa. — Está correto.
— Certo. E passei pela sala do correio e eles tinham lá estas, portanto
achei que podia trazer-tas. — Ela colocou um punhado de cartas na caixa de
entrada de madeira da minha secretária.
— Obrigada.
Ela assentiu com a cabeça.
— Além disso, vi a tua mãe esta manhã. Está ótima. Não vi nenhum
dos rapazes.
— Boa sorte para os encontrares — disse eu com um sorriso. —
Obrigada, Josie.
— É o mínimo que posso fazer. — Ela encolheu os ombros. — Não
estou ocupada, se precisares de ajuda.
— Neena?
Virei-me e percebi que ela ainda estava a assimilar a mudança.
— Como é a sua caligrafia? — perguntou ela, finalmente.
— Excelente — respondeu a Josie, sorrindo.
— Muito bem, então. — E deste modo ganhei uma adição inesperada
para o meu gabinete.
***
O Fox mantinha-se calado enquanto caminhávamos pelos corredores
do palácio. Não era o mais emocionante dos encontros, mas a nuvem
constante de preocupação que pairava sobre a minha cabeça minara
qualquer criatividade que eu tivesse. Ainda assim, enquanto o fotógrafo
verificava as imagens na parte de trás da sua câmara, ele parecia satisfeito.
— É um pouco triste não podermos ir a um restaurante ou fazer algo
divertido como... Joga bowling? — perguntou o Fox.
— Não — respondi com uma gargalhada. — Calçar sapatos que
milhares de outras pessoas já calçaram e enfiar os meus dedos em buracos
que podem ter sabe-se lá quantos germes? — Deitei a língua de fora. —
Não é para mim.
Ele sorriu.
— Mas é tão divertido! Como pode sequer pensar em germes?
— O Osten pediu uma vez para irmos jogar bowling no aniversário
dele. Alugámos uma pista inteira de bowling por uma tarde. Assim que
percebi que tínhamos de calçar sapatos usados, não aguentei. Não
importava a quantidade de desinfetante que usaram para os limpar, aquilo
não era para mim. Toda a gente jogou, até mesmo a minha mãe, mas eu só
observei.
— Isso é triste. Tem medo de germes? — O tom dele era quase
zombeteiro.
Ignorei o desprezo.
— Não. É apenas incrivelmente desagradável.
— Bem, isso resolve o problema — disse ele.
— Resolve o quê?
— Se se casar comigo, a primeira decisão é instalarmos a nossa
própria pista de bowling privada.
Ri-me.
— Não estou a brincar. Talvez pudéssemos acabar com o estúdio e
colocá-la lá.
— Acabavam-se os Noticiários? — perguntei alegremente. — Bem,
para mim, isso é capaz de ser um ponto a favor. Aceito.
— E poderia desenhar os seus próprios sapatos!
— Ohhhhh! — Já me conseguia imaginar a pegar naqueles sapatos
estranhos e a torná-los dignos da realeza. Seria um projeto divertido. —
Essa é uma das coisas de que gosto realmente em si, Fox. Você é bom a
melhorar o ânimo.
— Acho que já temos tudo, Vossa Majestade — disse o fotógrafo,
recuando. — Obrigado.
— Obrigada — respondi. — Desculpe. Com as coisas a chegarem ao
fim, as pessoas querem mesmo ver os últimos quatro.
— Oh, eu não me importo — disse ele. — Sinto-me um sortudo por
chegar até aqui e poder estar consigo.
Afaguei as costas da mão dele com o polegar.
— Obrigada, Fox. Sei que tenho andado ocupada.
— E eu pareço aborrecido? Estou no primeiro encontro consigo
enquanto rainha. Isso é incrível!
Eu nem sequer tinha considerado como isto podia ser interpretado.
Tinha esperado dar-lhe a entender que ele poderia sair em breve. E agora
sentia-me entalada.
— Estou a ser mal-educada. Está tudo bem consigo? Como está a sua
família?
— O meu pai está bem. Tem andado a gabar-se a todos os que o
queiram ouvir. «Viram? O Fox está nos últimos quatro. É meu filho.» —
Ele abanou a cabeça.— Acho que não tem tido muita coisa para comemorar
já há algum tempo, por isso, mesmo que eu lhe queira dizer para se acalmar,
não posso. Pelo menos, não tenho de o ver a fazê-lo.
Soltei uma risadinha.
— Sei o que quer dizer. O meu pai adora fotografia e gosta de
documentar tudo o que acontece. Por alguma razão, às vezes é mais
constrangedor quando é ele em vez de um jornalista, ainda que estejam a
fazer exatamente a mesma coisa.
— É o seu pai. É pessoal.
— Pois.
Ficámos em silêncio. O palácio parecia vazio. Por um instante, senti
falta da multidão de rapazes que tinha invadido a minha vida há apenas dois
meses. Perguntei-me se iria continuar a pensar neles depois de tudo isto
acabar.
— De qualquer forma, ele está bem, apesar de tudo — disse o Fox,
preenchendo o silêncio. — Está muito orgulhoso, mas continua a fazer-me
perguntas que não sei bem como responder.
— O que quer dizer?
Vi a expressão do Fox passar de determinada a embaraçada.
— Ele não para de me perguntar se a amo. Ou se a Eadlyn me ama.
Disse-lhe que não posso entrar no seu escritório e exigir uma declaração de
amor. — Ele sorriu, mostrando que entendia o quão pouco razoável o
pedido era. — Nunca lhe pediria para me dizer quais são os seus
sentimentos. Não tenho a certeza se é justo. Mas achei que devia saber que
eu... eu...
— Não diga.
— Porque não? Já o sinto há algum tempo e queria dizer-lhe.
— Não estou pronta para o ouvir. — Recuei, sentindo o meu coração a
bater nos ouvidos. Isto era demasiado rápido, demasiado inesperado. Mal
tinha conseguido falar com ele recentemente e agora isto?
— Eadlyn. Quero que pelo menos saiba como me sinto. Vai ter de
escolher alguém em breve, portanto, não seria bom ter essa informação?
Encarei-o e endireitei-me. Se era capaz de enfrentar repórteres e
dignitários, também era capaz de enfrentar um rapaz.
— Diga-me então, Fox.
O sorriso dele era pequeno mas sincero.
— Acho que fiquei perdido por si na noite em que me deixou ficar. Foi
muito gentil comigo durante a pior noite da minha vida. E estou desejoso
para que conheça a minha família. Quero vê-la na praia em Clermont, quero
que passe uma noite em volta da mesa connosco. De um milhão de
maneiras, acho que combinaria perfeitamente com os Wesleys.
Ele fez uma pausa, abanando a cabeça como se não pudesse acreditar
que tinha dito aquilo.
— Quero ajudá-la. Quero apoiá-la de todas as maneiras possíveis. E
gostaria de pensar que a Eadlyn me poderá apoiar a mim. Não sei quanto
mais tempo tenho com o meu pai. Gostaria que ele soubesse que escolhi um
caminho antes de ele morrer.
Fechei os olhos, sentindo-me sobrecarregada de culpa. Ainda não há
muito tempo, a minha mãe estava naquele que eu pensara ser o seu leito de
morte. Compreendia o desejo dele.
— Mas isso não significa que eu possa torná-lo realidade —
murmurei.
— O quê?
— Nada — respondi, abanando a cabeça para me focar. — Fox, estes
são sentimentos belos. E admiro a sua honestidade, mas não estou pronta
para fazer promessas.
— Não lho estou a pedir. — Ele aproximou-se, pegando na minha
mão. — Só queria que soubesse como me sinto.
— E agora, tal como disse, vou levar tudo isso em consideração
quando fizer a minha escolha. O que acontecerá em breve.
Ele afagou as costas da minha mão com um dedo, um gesto menos
reconfortante do que deveria ter sido.
— Estou a falar a sério em relação a si, Eadlyn. Não duvide.
— Oh, não duvido — sussurrei. — Nem um pouco.
Capítulo 27

— Não percebo — confessou a Neena na manhã seguinte quando lhe


relatei o encontro. — O facto de ele confessar a sua devoção não é uma
coisa boa? Será que ele não deveria ser um dos dois principais favoritos?
Os outros ainda estavam todos a tomar o pequeno-almoço, por isso o
escritório estava vazio. O sol entrava pelas janelas e nós estávamos sentadas
juntas num sofá, com as pernas encolhidas sobre o assento, como se a
manhã a seguir fosse uma festa do pijama.
— Não acho. Houve algo em tudo aquilo que me deu a sensação de ser
forçado. Não que ele não sinta aquelas coisas, mas era como se tivesse
orquestrado um momento para eu ter de as ouvir. — Apoiei a cabeça na
mão, ouvindo repetidamente as frases na minha cabeça. — E então senti-me
culpada. Ele falou sobre o seu pai e disse que eu seria uma boa Wesley e...
nada daquilo soava bem.
Puxei pela barra da minha saia com a mão livre, como se os meus
dedos pudessem desfazer os meus pensamentos emaranhados.
— Acho que o que se passou — comecei — é que... ele disse que se
sentia assim desde a noite da luta na cozinha, mas nós não tivemos muita
interação desde essa altura, pelo menos não sozinhos. Portanto, para ele ter
esta atração profunda e séria por mim... de onde é que isso surgiu?
A Neena assentiu.
— É como se ele estivesse apaixonado por alguém que pensa que ela é
e não por quem é realmente.
Todo o meu corpo relaxou de alívio.
— É isso. É exatamente assim que me sinto.
— Então, mande-o para casa.
Abanei a cabeça.
— Não, prometi ao Hale que podia sair a seguir. Ele está pronto e não
o quero desapontar, não depois de tudo o que fez por mim.
— Bom dia, Vossa Majestade. Olá, Neena. — A Lady Brice entrou,
segurando um queque na mão. — Vossa Majestade, tenho alguns
documentos do seu irmão para rever. Parece que a França quer renegociar o
acordo comercial. Acho que este vai ser o mais fácil dos últimos anos.
— Ohhh, mas que rapaz mais útil, aquele Ahren. — Tinha a certeza de
que isto se devia mais à Camille do que a ele, mas sabia que a presença dele
era útil.
— É mesmo. Também tenho três contratos da Nova Ásia para rever;
estão à espera na sua secretária. E o produtor do Noticiário gostaria de
filmar uma entrevista consigo esta tarde, algo sobre transições, não sei.
— Ah, um dia agradável e fácil, então? — brinquei.
— Como sempre!
— Lady Brice, também ajudava assim tanto o meu pai?
Ela riu-se.
— Só durante pouco tempo. Mal a Eadlyn cresceu, ele quis que
assumisse um papel mais importante. E assim que se sentir confortável
afasto-me com prazer ou talvez até me reforme.
Saltei do sofá e agarrei-a pelos ombros.
— Não. Nunca. Você vai viver e morrer neste escritório!
— Como quiser, minha rainha.
— Vossa Majestade! Vossa Majestade! — gritou alguém.
— Josie? — perguntei, vendo-a entrar a correr sem fôlego. — Qual é o
problema?
— Estava a ver televisão. O Marid. — Ela inspirava aos tropeções.
— O que se passa com o Marid?
Ela engoliu em seco.
— Ele foi visto a comprar anéis de noivado. Está em todos os
noticiários.
***
Os conselheiros inundaram a sala e vimos tudo a desenrolar-se. Num
abrir e fechar de olhos, todas as pessoas a quem eu não confiara os meus
segredos ficaram perfeitamente conscientes do que o Marid tinha andado a
planear e de quão perto estava a ficar da coroa.
— Tem o ar de um rei, não tem? — disse uma apresentadora.
— Claro que tem! Ele descende de um! — respondeu a colega dela.
— A sério, não seria tão romântico?
— Seria. Oh, seria mesmo, mas ela está a meio de uma Seleção.
A apresentadora agitou a mão no ar.
— E o que é que isso importa? Eles que se vão embora. Nenhum tem o
charme do Marid Illéa, nem de longe.
Mudei de canal.
— De acordo com o joalheiro, o Sr. Illéa olhou para algumas peças
bastante caras, que só seriam apropriadas se estivesse realmente a planear
propor casamento à rainha.
— Este é mais um acontecimento improvável, numa série de situações
sem precedentes em torno da família real. Em primeiro lugar, temos uma
Seleção liderada por uma princesa em vez de um príncipe. Em segundo
lugar, temos uma jovem que sobe ao trono muito antes do momento em que
terminaria o seu treino ou de o seu pai ter morrido. E agora temos um
pretendente de fora a tentar roubar o coração da rainha antes que alguém da
Elite tenha hipótese. É absolutamente fascinante.
Mudei novamente de canal.
— Kathy, você estava presente quando o jovem Sr. Illéa chegou. Pode
dizer-nos o que viu?
— Bem, ele parecia um pouco tímido no início, como se não quisesse
admitir por que razão estava aqui. Mas, depois de cerca de quinze minutos a
olhar para as vitrinas, era bastante óbvio o que estava à procura.
— Pareceu interessado em alguma coisa em especial?
— Fez-me tirar pelo menos uma dúzia de anéis diferentes e, como
nenhum deles era aquilo que procurava, eu disse-lhe que se quisesse
poderíamos desenhar uma peça para ele. Ficou todo entusiasmado. Espero
que volte em breve.
— Então, você escolheria o Marid em vez de, digamos, o Sir Hale ou o
Sir Kile?
— Oh, meu Deus! Não faço ideia. Tudo o que sei é que a rainha
Eadlyn é uma mulher de muita sorte por ter tantos homens elegíveis aos
seus pés.
Não aguentei mais. Desliguei a televisão e sentei-me furiosa no sofá.
— Eu devia ter previsto isto — disse. — Ficar em silêncio parecia ser
a opção mais inteligente, mas agora ele transformou a situação numa coisa
gigantesca.
O Sr. Rasmus resmungou.
— Precisamos de um plano.
— Nós temos um plano — retorqui. — Há alguma coisa que pu‐
déssemos realmente ter feito, além de me casar mais depressa?
O general Leger estava encostado a uma estante, ainda a olhar para o
ecrã em branco.
— Podíamos matá-lo.
Suspirei.
— Sinceramente, não quero que essa seja a minha ação de recurso. O
Sir Andrews também estava furioso, mas pelas razões erradas.
— Não o devia ter provocado.
— Eu não fiz nada — retorqui.
— Estava ativamente a ignorá-lo.
— Acalme-se, Andrews. — A Lady Brice andava de um lado para o
outro atrás do sofá, enfurecida. Quando olhei para ela, dei pela Josie, de pé,
num canto. Devia ter perdido a oportunidade de se escapar e agora estava
presa, parecendo receosa das vozes altas e da raiva em seu redor. — Temos
de o calar de uma vez por todas.
— A única maneira de o fazer é a Eadlyn ficar noiva — afirmou o Sir
Andrews.
— Sim, estamos cientes disso — concordou a Lady Brice em tom
cansado. — Mas ela não deve ser apressada. Como é que pode ter um
casamento minimamente bem-sucedido se o forçar?
— É seu dever torná-lo um sucesso!
— Dever? Ela é uma pessoa — argumentou a Lady Brice. — Ela
concordou em fazê-lo e não há nenhuma razão...
— Ela nunca foi apenas uma pessoa! — recordou-lhe o Andrews. —
Tem sido uma mercadoria desde o instante em que nasceu e precisamos
de...
O general Leger aproximou-se do Andrews.
— Diga isso outra vez. Não tenho medo de fazer da morte a minha
ação de recurso.
— Está a ameaçar-me, seu...
— Parem — suspirei. E foi espantoso. Com a mais silenciosa das
ordens, a sala inteira acalmou-se.
Eu sabia que aquilo ia acontecer. E tinha-o aceitado. O Marid tinha
mostrado quanta influência realmente tinha e eu precisava de lutar contra
ele. Não podia deixar de recear que talvez nem sequer o casamento
conseguisse manter o povo do meu lado, mas era tudo o que tinha.
— Lady Brice, pode, por favor, trazer o Fox ao escritório. É altura de
nos despedirmos.
—Tem a certeza, Vossa Majestade? Assim que os reduzir a três...
— Não estou a reduzi-los a três. — Engoli em seco. — Por favor,
mande o Hale logo a seguir. Vou fazer a minha escolha final hoje e amanhã
à noite teremos uma transmissão ao vivo em vez de um Noticiário. Sem
dúvida que, depois desta semana, toda a gente vai estar a ver.
— Com certeza, Vossa Majestade.
— Aí tem, Sir Andrews. Este é o seu progresso. O meu anúncio oficial
de noivado sairá do palácio amanhã à tarde.
— Tem a certeza de que devemos esperar esse tempo? Se o Marid...
— Se o Marid fizer mais algum truque estúpido será arrasado em
menos de vinte e quatro horas. Isso é suficientemente bom para mim,
senhor, portanto também é certamente bom o suficiente para si.
Pus-me de pé. Estava feito.
Tinha a certeza de que algo me ia denunciar, estava convencida de que
todos na sala iam ver que uma parte de mim tinha perdido o oxigénio e
estava a sufocar ali mesmo. Na minha cabeça, vi o Eikko a fazer as malas e
a desaparecer da minha vida para sempre. Era um novo tipo de dor que se
concentrava neste meu coração condenado.
Capítulo 28

Os outros saíram todos para o almoço, irritados, e eu fiquei na sala,


ansiando por solidão. Na verdade, ansiava pelo Eikko, mas não havia
nenhuma maneira de poder falar com ele sem levantar suspeitas. Rangendo
os dentes, liguei novamente a TV. Tirei-lhe o som e observei as imagens do
Marid a passarem no ecrã.
Talvez as pessoas tivessem razão. Talvez eu devesse renunciar agora.
Se treinássemos o Kaden para o trono, isso era capaz de salvar tudo. Seria
humilhante para mim abdicar ao fim de menos de uma semana, mas pelo
menos poderia poupar o resto da minha família da vergonha.
— Vossa Majestade? — A Josie aproximou-se de mim. — Posso
trazer-lhe alguma coisa? Alguma comida? Café?
— Não, Josie. Perdi o apetite.
— Não me admira — disse ela com um pequeno sorriso.
— Quero agradecer-te por me teres vindo avisar hoje. Eu sei que não
parece muito, mas aqueles cinco minutos extra ajudaram-me a preparar-me.
Teria sido mil vezes pior se o Sir Andrews tivesse descoberto primeiro.
Ela arregalou os olhos.
— Ele é horrível. Eles gritam assim o tempo todo?
Acenei com a cabeça.
— A Lady Brice e o general Leger não o fazem, mas os outros também
eram assim com o meu pai. É como se pensassem que a única maneira de
nos darem a entender a sua determinação é gritando.
Ficámos em silêncio por um minuto, observando o belo rosto do Marid
no ecrã. Ele sabia certamente acenar.
— Desculpa, Eadlyn, mesmo — sussurrou a Josie, despertando
novamente a minha atenção. — Por tudo e pelo modo como me portei e por
tudo aquilo com que estás a lidar agora.
— Não fazias ideia, pois não? — perguntei, num tom de voz suave.
Envergonhada, ela abanou a cabeça.
— Eu pensava que toda a gente fazia o trabalho por ti e tu só dizias
que sim ou que não.
— Que era tudo só festas, dinheiro e poder?
— Sim. — Ela quase soltou uma gargalhada. — Não posso acreditar
que passei a minha vida inteira a querer ser uma princesa para acabar por
descobrir que nunca mas nunca conseguiria lidar com isso.
Mudei de posição no sofá, exprimindo finalmente algo sobre o qual
tinha tido praticamente a certeza desde o início.
— Foi por isso que colocaste o nome do Kile no sorteio? Para poderes
ser uma princesa?
Ela corou, irritada.
— Não pensei que ele fosse realmente sorteado. E, se fosse, não achei
que houvesse alguma hipótese de o escolheres. Quando vi aquele beijo na
primeira página dos jornais fiquei muito entusiasmada. Comecei a desenhar
tiaras nos meus cadernos.
— E agora?
— Ainda gostava de ter uma que fosse minha, mas sei que não a
mereci. — Ela sorriu lentamente. — E percebo que, mesmo que ele ganhe,
eu não seria exatamente uma princesa, mas ainda assim parece ótimo. Olho
para a tua tia May, tão glamorosa, a viajar pelo mundo e a conhecer todas
aquelas pessoas, parecendo uma modelo.
— Consigo perceber o apelo — concordei. — De certa maneira, os
irmãos da minha mãe tiveram sem dúvida uma vida mais fácil do que ela.
Quando pensei nos meus tios, tive uma ideia maravilhosa e fiquei
muito feliz por pelo menos uma coisa boa poder sair deste dia.
A Josie brincava com a bainha do seu vestido.
— Sim, parece divertido. Mas eu era demasiado obcecada com isso.
Desculpa ter-te aborrecido tanto.
— Eu também. Foi difícil crescer com alguém que queria ser eu sem
trabalhar para isso.
— E foi difícil para mim crescer à tua sombra. — Ela parecia triste,
agora insegura de si mesma.
— Sabes, Josie, não é tarde demais para te apaixonares por outra coisa.
Tens um excelente recurso em mim e eu gostava de te ajudar a encontrares
o caminho certo. Desde que esse caminho seja longe das minhas tiaras.
Ela soltou uma risadinha.
— Não faço ideia por onde devo começar.
— Bem, nos últimos dias provaste que podes ser muito útil. E se te
contratássemos como estagiária para o escritório? Vais precisar de ter o teu
próprio dinheiro para o que quer que faças na vida.
— A sério? — Ela ficou de boca aberta.
— A sério.
A Josie atravessou a sala a correr, esmagando-me num abraço. Pela
primeira vez, não me importei que ela estivesse tão perto.
— Obrigada.
— De nada. Tenho de fazer todo o bem que puder, enquanto estiver
aqui.
Ela afastou-se.
— Juro que nunca te vou perdoar se abdicares.
Eu não tivera a intenção de revelar tanto numa frase.
— Percebo que isto não significa grande coisa, mas mesmo assim. Não
o faças. Não podes.
Abanei a cabeça.
— Não o faço. Prometo. Por mais tentador que seja, sou demasiado
orgulhosa para o fazer.

Caro tio Gerad,


Esta carta já devia ter sido escrita há muito. Como estás? Como está o
trabalho? Como...
Pronto, preciso de um favor. O namorado da minha dama de
companhia também é um cientista talentoso. Não sei bem se o campo dele e
o teu são semelhantes, mas pensei que poderias pelo menos conhecer
alguém que lhe pudesse arranjar uma colocação em Angeles. Significaria
muito para ela se ele estivesse mais perto e significaria imenso para mim se
ela estivesse feliz. Achas que podes ajudar?
Lembrete amigável: sou a tua rainha.
Um milhão de obrigados! Adoro-te a potes! Vem visitar-nos em breve!
Eadlyn
Capítulo 29

O Fox percebeu o que a convocatória para vir ao meu escritório


significava. Portanto, recusou-se a vir, enviando, em vez disso, as suas
despedidas através da Neena, que preparou tudo para que ele ficasse num
hotel até poder embarcar num voo para Clermont na manhã seguinte.
Senti-me mesquinha, sorrateira, de certo modo, como se me tivesse
escapado com demasiada facilidade. Estava preparada para uma batalha.
Em vez disso, obtive uma rendição.
Mas o Hale entrou pela porta todo sorridente, vestido com esmero e
pronto para sair como um cavalheiro. Vinha de braços abertos quando
entrou no escritório e abracei-o com total confiança.
— Vou sentir tanto a tua falta — sussurrou ele ao meu ouvido.
— Eu também. Mas sabes como me podes contactar se precisares,
certo?
Ele assentiu.
— A Neena deu-me algumas informações juntamente com os
pormenores do meu voo.
— Ainda bem. Porque vou provavelmente precisar de falar contigo em
breve.
— Hã? — perguntou ele, dando um passo atrás e endireitando o
casaco.
— Claro. Alguém tem de desenhar o meu vestido de noiva.
O Hale ficou imóvel e o seu sorriso desapareceu-lhe instantaneamente
do rosto, como se achasse que isto era uma piada de mau gosto.
— Eadlyn... estás a falar a sério?
Segurei-o pelos ombros.
— Tu protegeste-me quando o público atirou comida contra mim.
Foste meu amigo antes de eu estar disposta a aceitar a amizade. Mesmo
agora, protegeste-me para além de tudo o que eu merecia. O mínimo que
posso fazer é ser a tua primeira cliente. E vou observar com interesse a tua
carreira a levantar voo, meu caro.
Os olhos dele brilharam com lágrimas, mas conseguiu controlar-se.
— Estou quase com receio de partir — confessou ele. — Vai mudar
tanta coisa assim que estiver longe destas paredes.
Acenei com a cabeça.
— Mas isso não quer dizer que vá ser tudo mau.
Ele riu-se.
— Desde quando te tornaste tão otimista?
— Vai e vem.
— Como a maioria das coisas — disse ele com um suspiro.
— Como a maioria das coisas — concordei. Abracei-o uma última
vez. — Tem uma boa viagem e começa a desenhar assim que chegares a
casa.
— Estás a brincar? Vou começar a desenhar no carro!
O Hale deu-me um beijo na face e piscou-me o olho.
— Adeus, Eadlyn.
— Adeus.
Com o Hale fora, tudo ficou definido. Isto era o fim. Sobravam dois
pretendentes e uma alma gémea de olhos azuis. Não sabia com quem falar
primeiro. Depois de alguma reflexão, percebi que o Eikko sabia o que
estava para vir. Não se surpreenderia com o meu anúncio. Mas o Henri sim
e eu suspeitava que o iria receber mal. Falaria com o Kile em primeiro
lugar, o que me deixaria bastante tempo para conversar com calma com o
Henri sobre tudo isto através do uso doloroso do seu absolutamente
maravilhoso tradutor.
Tremia quando bati à porta do Kile. Não tinha preparado um discurso
nem nada. E embora assumisse que ele diria que sim, na realidade não fazia
ideia. E se ele decidisse de repente que eu não valia todo este trabalho?
O mordomo dele abriu a porta e curvou-se profundamente.
— Vossa Majestade.
— Preciso de falar com o Sir Kile, por favor.
— Lamento, minha senhora, mas ele não está aqui. Falou em ir buscar
qualquer coisa ao seu antigo quarto.
— Oh. Bem, eu sei onde é. Obrigada.
Fui até ao terceiro andar, seguindo o caminho que tinha tomado na
noite em que ele aceitara beijar-me no corredor. As nossas vidas tinham
dado uma reviravolta bem estranha.
A porta do quarto do Kile estava ligeiramente aberta e eu podia vê-lo a
mexericar num canto. Colocara o casaco e a gravata sobre a cama e estava a
lixar um pequeno pedaço de madeira, presumivelmente a preparar-se para o
anexar à estrutura ao lado dele.
— Posso entrar?
Ele levantou de imediato a cabeça e algumas madeixas de cabelo
caíram-lhe sobre o rosto. Estava a ficar novamente comprido. Não parecia
tão mau como me lembrava.
— Olá — disse ele, sacudindo a sujidade das mãos e vindo cum‐
primentar-me. —Tinha esperanças de te poder ver hoje.
— Ah, sim?
Ele colocou um braço em volta da minha cintura e conduziu-me para o
fundo do quarto.
— Estava a ver televisão esta manhã e vi todas aquelas coisas sobre o
Marid.
Revirei os olhos.
— Eu sei. Está a ser um problema neste momento.
Ele sacudiu o pó de uma cadeira e sentei-me diante dele, olhando para
as suas pequenas criações. Esboços pormenorizados em tinta azul e preta,
pilhas de livros com papéis a sair das páginas e os seus edifícios em
miniatura espalhados por todo o lado, como uma cidade minúscula. Ele
tinha construído um mundo aqui.
— Ele pode realmente pedir-te em casamento? — Ele parecia nervoso,
como se temesse que o Marid me pudesse levar em vez do país.
— Suponho que pode, mas não vou aceitar. — Suspirei. — Parece que
o Marid, afinal, não é o aliado que achei que fosse. Tem ameaçado
influenciar a opinião pública e, no início, eu não tinha a certeza se ele seria
capaz de o fazer. Depois, a maneira como entrou pela casa de toda a gente
hoje... foi mesmo brilhante. Tal como a Lady Brice disse, foi uma invasão
instantânea e sem batalhas.
— Invasão? Como? Ele está subitamente a disputar a coroa?
Passei os meus dedos sobre as linhas de um dos desenhos do Kile.
— Não acho que seja subitamente. Acho que ele e a família têm estado
à espera de tomar esse caminho há algum tempo. A jovem rainha inepta foi
uma oportunidade perfeita.
»Agora, ele quer ser o meu consorte e usar o meu nome para
concretizar os seus planos. A minha única esperança é ficar noiva antes de
ele tentar pedir-me em casamento, porque tenho a certeza de que a imprensa
vai adorar se o rejeitar.
— Então vamos fazer isso.
— Fazer o quê?
— Casar. Eadlyn, eu caso-me contigo hoje mesmo. Entre nós os dois e
as nossas famílias, é impossível ele sobreviver. As pessoas têm torcido por
nós desde o início. Casa-te comigo, Eadlyn.
Olhei para o rosto doce e preocupado do Kile Woodwork e por um
instante achei realmente que era capaz. Tinha dito a mim mesma que ia ser
muito fácil, ia caminhar até ao altar e ele estaria lá. Sempre me fizera rir. E
depois dos dois últimos meses, em que tínhamos estado no mesmo lado, eu
sabia, sem qualquer dúvida, que ele me apoiaria para toda a vida.
— Vou confessar-te uma coisa: vim até aqui agora para te fazer
precisamente essa proposta. Mas... não posso.
— Porquê? É porque não me ajoelhei? — Ele caiu instantaneamente,
agarrando as minhas mãos. — Ou, espera, é porque tens de ser tu a
perguntar?
Baixei-me para junto dele.
— Não. Não é por causa de nada disso.
A expressão dele desmoronou-se.
— Não gostas de mim.
Abanei a cabeça, rindo.
— Não, também não é isso. Na verdade, sou capaz de gostar um pouco
demais. Talvez não inteiramente de um modo romântico, mas gosto de ti,
sem dúvida.
— Então porquê?
— Por causa disto — disse eu, apontando para o trabalho à minha
volta. — Kile, nunca serei capaz de te dizer o quanto significa para mim
quereres ficar comigo para toda a vida apenas para me salvares de uma
pessoa. Considerando a chata que fui, é um milagre.
Ele riu-se, ainda segurando as minhas mãos.
— Mas tudo o que sempre quiseste foi fugir destas paredes. Tudo o
que queres fazer é construir. Acho que isso é uma coisa linda. Há tantas
pessoas no mundo que querem destruir coisas. É maravilhoso que queiras
fazer o contrário.
— Mas eu desistiria. Não me importaria.
— Mas eu sim. Eu importar-me-ia. E no final, quando o lado as‐
sustador da minha vida desaparecesse, tu também o farias. Morrerias um
pouco, de saudades. Levar-me-ias a mal. — Os meus olhos encheram-se de
lágrimas. — Não posso viver num mundo onde não gostes de mim.
— Eu fico, Eady. Estou a dizer-te, eu quero fazer isto.
— Não posso.
— Podes sim. Acabaste de dizer que precisavas. Quem seria capaz de
fazer isto melhor do que eu?
Lágrimas quentes escorriam pelo meu rosto.
— Por favor, não me faças obrigar-te.
— Não me podes mandar embora, Eadlyn.
Arranquei as minhas mãos das dele e levantei-me, limpando a cara.
Olhei para baixo, para o Kile, o meu doce amigo que se sacrificava, e
recompus-me.
— Kile Woodwork, estás a partir de agora banido do palácio pelo
prazo de um ano.
— O quê? — Ele levantou-se, cerrando os punhos.
— Como compensação pela perda da tua casa e pelos serviços
prestados à família real, vais ter um apartamento totalmente pago em
Bonita.
— Bonita? Isso é do outro lado do país!
— Além disso, ser-te-ão atribuídos fundos e materiais para começares
um projeto de habitação para os sem-abrigo na capital da província.
O rosto dele suavizou-se.
— O quê?
— Se achares que os fundos ou os materiais são insuficientes, podes
escrever para o palácio e pedir mais e eu enviar-tos-ei o mais depressa
possível.
— Eadlyn...
— Farás sempre parte da minha família, Kile, mas não vou fazer de ti
meu marido. Não te posso fazer isso.
A voz dele era carinhosa.
— Mas vais fazer de alguém teu marido. Tens de o fazer agora.
— Será o Henri. O Fox saiu há poucas horas e o Hale acabou de entrar
no carro.
Ele ficou completamente abalado.
— Isto é mesmo o fim, não é?
— E eu estava preparada para ficar contigo para o resto da minha vida.
De certa forma, acho que ainda o consigo fazer. Mas odiar-me-ia se te
prendesse aqui. Seria insensível.
— E o Henri? Serás feliz com ele?
Engoli em seco.
— Bem, ele adora o chão que piso.
O Kile assentiu, concordando.
— Suponho que poderias conseguir pior do que a devoção absoluta.
Sorri.
— Obrigada. Mantiveste-me mentalmente sã ao longo de grande parte
disto, mas não te posso tirar a única coisa de que realmente gostas.
Ele assentiu.
— Eu compreendo.
Aproximei-me e ele abraçou-me, segurando-me com tanta força que
quase doeu.
A sua voz soou embargada quando finalmente falou.
— Se houver alguma coisa que eu possa fazer por ti, diz-me.
Chorei contra a camisa dele.
— Eu digo. E farei tudo o que me pedires.
— Menos casar comigo.
Afastei-me, feliz por o ver sorrir.
— Menos casar contigo. — Larguei-o e entrelacei os meus dedos nos
dele. — Vou fazer o anúncio oficial amanhã. Preciso que fiques até lá para a
imprensa não descobrir o que se passa. Depois disso, não quero ver a tua
cara por um ano. Estás a ouvir, Woodwork?
— Mas estou convidado para o casamento, certo?
— Bem, sim, claro, para o casamento.
— E para o Natal?
— Obviamente.
Ele considerou.
— E o teu aniversário?
— Bem, o Ahren disse que vem, por isso vai ser provavelmente uma
festa maravilhosa.
Ele assentiu.
— Está bem, então. Um ano, exceto esses três dias.
— Perfeito. E, entretanto, vais estar a fazer aquilo para o qual nasceste
— disse eu com um encolher de ombros, como se isto fosse tudo
irrelevante.
Ele abanou a cabeça.
— Vou construir coisas. Vou mesmo construir coisas.
— E vais mudar vidas por causa disso.
— Obrigado, Vossa Majestade.
— De nada. — Dei-lhe um beijo na face e saí do quarto a correr, antes
que mudasse de ideias. — Vejo-te no estúdio amanhã. Mando-te os
pormenores assim que os tiver.
No corredor, coloquei uma mão sobre o estômago e respirei fundo.
Tinha feito uma escolha. Então, porque é que me sentia de repente
descontrolada?
Corri de volta para o escritório, contente por ver que estavam todos a
trabalhar para fazer com que o dia de amanhã decorresse o mais
suavemente possível. Todos exceto eu.
— Lady Brice, por favor, pode chamar o Erik? Preciso de falar com ele
sobre alguns pormenores para amanhã.
— É para já.
Capítulo 30

Andei de um lado para o outro no salão ao lado do escritório,


esperando que ele chegasse. A cada segundo, a bola na minha garganta ia
crescendo, ameaçando bloquear todas as palavras que eu tinha para dizer.
— Vossa Majestade? — disse ele em voz baixa e, embora houvesse
imensas pessoas em redor, não hesitou em sorrir como se eu fosse o sol dele
e as estrelas.
— Preciso de falar contigo sobre amanhã. Podes fechar as portas, por
favor? — Tentei manter a voz calma, mas a expressão dele mostrou que
sabia que eu me estava a conter. E isso tornou ainda mais difícil a minha
tentativa de diminuir a importância da situação.
— Estás bem? — sussurrou ele, embora estivéssemos sozinhos.
Expirei, tentando manter a calma.
— Não propriamente.
— De acordo com as notícias, tens um pretendente inesperado — disse
ele, sem rodeios.
Acenei com a cabeça.
— Há quanto tempo é que isso é um problema?
— Há mais tempo do que eu pensava.
— Imagino que te tenha causado ainda mais stresse.
— Fez muito mais do que isso. — Engoli em seco. — Devido a este
problema, sou forçada a anunciar o meu noivado amanhã.
— Oh. — A minúscula palavra continha um choque imenso.
— E devido ao facto de o Kile ter outras atividades, que não posso
ignorar, vou fazer o pedido ao Henri. Hoje.
Perante isto, ele não conseguiu dizer uma única palavra.
Estiquei a mão para pegar na dele e ele agarrou-ma. Nem sequer estava
zangado, o que teria sido justo, já que eu tinha faltado a quase todas as
promessas que tinha feito. Ele estava, muito simplesmente, apenas triste.
Uma sensação que eu conhecia bem demais.
— Tenho a certeza de que percebes que vou ter de me ir embora depois
de amanhã — disse ele baixinho.
— Eu peço à Neena para encontrar outro tradutor. Não deves ter de te
substituir. — A minha respiração ficou entrecortada e as lágrimas surgiram.
— O meu plano é ir vê-lo dentro de uma hora. Achas que... podes, por
favor, não estar no quarto?
Ele assentiu.
— Se me pedisses para ficar, esta seria talvez a primeira vez que te
tentaria recusar algo.
Ficámos ali, em silêncio, de mãos dadas. Talvez se ficássemos imóveis
nada mudasse.
— Eu tinha-me preparado — disse ele. — Sabia o que estava para vir e
ainda assim...
A dor de estar ali a ver o lábio do Eikko tremer foi aguda.
Atirei-me para os braços dele.
— Eikko, preciso que me ouças. Só por uma vez, preciso que o saibas,
sem qualquer dúvida. Eu amo-te. E, se fosse livre, se a minha vida fosse
apenas minha, fugiria contigo agora. Mas o Marid usaria a minha ausência
como razão para me tomar o trono e o povo. — Abanei a cabeça. — Não
posso...
Ele envolveu o meu rosto com as mãos, fazendo-me encará-lo. E,
embora cheios de lágrimas, os seus olhos estavam mais límpidos e mais
belos do que nunca.
— Que privilégio é ficar em segundo lugar atrás do teu povo. Em que
rainha te tornaste para não conseguires suportar abandoná-lo.
Puxei-o para mim, beijando-o como se as nossas vidas dependessem
disso. Talvez não fosse o beijo mais belo, de narizes molhados e rímel a
escorrer pelas minhas faces, mas era o encapsulamento de todos os outros
que nunca chegaríamos a ter.
O Kile tinha razão. Eram os últimos beijos que importavam.
Dei um passo atrás, limpando a cara. Queria mesmo ser uma senhora
neste momento. Estiquei a mão e fiz deslizar o anel da tetravô dele pelo
meu dedo.
— Não sejas tonta.
— É uma relíquia de família, Eikko.
Ele envolveu a minha mão com a sua.
— No dia em que to dei, não tinha nenhuma intenção de o recuperar.
Não o poderia dar a mais ninguém.
Sorri tristemente e coloquei-o novamente no lugar.
— Bem, então. — Retirei o meu anel de sinete do dedo.
— Eadlyn, isso pertence à realeza.
— E tu terias sido um excelente príncipe. E, para o resto da tua vida,
terás a prova disso.
Olhámos para os nossos anéis. Não estavam nas nossas mãos
esquerdas, mas era o mais próximo que teríamos. Uma parte do meu
coração ficaria sempre reservada para o Eikko.
— Tenho de ir — disse ele. — Ele deve estar no quarto.
Assenti com a cabeça.
O Eikko deu-me um beijo leve na face e sussurrou ao meu ouvido.
— Amo-te. Espero que tenhas uma bela vida.
E então, como se não aguentasse nem mais um segundo, saiu pelo
escritório, fechando a porta atrás de si.
Sentei-me, agarrando o braço do sofá com força. Sentia-me doente,
como se pudesse desmaiar ou vomitar. Corri para a porta que dava para o
corredor e fugi para o meu quarto o mais rápido que pude.
— Minha senhora? — perguntou a Eloise quando passei por ela a
correr em direção à casa de banho, onde vomitei tudo o que tinha comido
durante o dia.
Chorei por entre os vómitos, furiosa, quebrada e imensamente cansada.
— Deixe sair tudo — sussurrou a Eloise, aproximando-se com um
pano húmido. — Eu estou aqui.
Ela ajoelhou-se atrás de mim e colocou os braços em volta do meu
estômago. A pressão era surpreendentemente reconfortante.
— Não consigo imaginar como é ser a senhora. Toda a gente tem uma
opinião, toda a gente tem um pedido. Mas, quando estiver aqui, pode gritar
e chorar tudo o que quiser, está bem? Vamos ajudá-la a ultrapassar tudo.
Eu soluçava e virei-me contra o peito dela. Ela não disse uma única
palavra, apenas me segurou enquanto eu deixava sair tudo para fora.
— Obrigada — disse eu quando a minha respiração já tinha
abrandado.
— Sempre que precisar. Agora, tem de voltar ao trabalho?
— Tenho de ir pedir o Henri em casamento.
Se ficou surpreendida, ela não o mostrou.
— Primeiro o mais importante. Vamos lavar o seu rosto.
E, assim, iniciei o lento processo de me preparar para a primeira etapa
do resto da minha vida.
Capítulo 31

A Eloise ajudou-me a recompor e eu estava absolutamente magnífica


quando me dirigi ao quarto do Henri. Tal como tinha feito quando pensara
que ia ficar com o Kile, recordei a mim mesma que esta não era uma má
escolha. O Henri seria dedicado e gentil e, embora os nossos meios de
comunicação pudessem ser pouco convencionais durante algum tempo, isso
não significava que a nossa vida juntos não seria feliz.
O mordomo abriu a porta e deixou-me gentilmente entrar. O Henri
estava sentado à mesa diante de alguns livros abertos e com um jarro de chá
à disposição. Levantou-se quando me viu, curvando-se de uma forma que
só poderia ser descrita como alegre.
— Olá hoje!
Soltei uma risadinha, avançando com a grande caixa de madeira nos
braços.
— Olá, Henri. — Pousei-a na mesa, abracei-o e ele iluminou-se
perante o meu carinho. — O que é tudo isto?
Toquei nos seus livros, observando as páginas. Claro que, mesmo sem
ajuda, ele estava a estudar inglês. Pegou num caderno e mostrou-mo,
apontando.
— Eu escrevo para ti. Posso ler, sim?
— Oh, sim, por favor.
— OK, OK. — Ele respirou fundo e sorriu, enquanto segurava nos
papéis. — «Querida Eadlyn. Eu sei que não poder dizer, mas pensando em
ti cada dias. Minhas palavras não boas ainda, mas meu coração» — disse
ele, tocando no peito — «sente o que não posso dizendo. Mesmo em
finlandês, eu diria mal.»
Ele riu-se de si mesmo, encolhendo os ombros, e eu sorri.
— «Tu tens bela, talento, inteligência e simpática. Espero para mostrar
quanto bem eu penso de tu. Também, mais beijos.»
Não pude deixar de rir e ele ficou tão feliz por me ver de bom humor
que parecia que ia explodir.
— Ainda trabalhando — disse ele, colocando o caderno virado para
baixo. — Hum, eu buscar Erik?
— Não — disse eu. — Só tu.
Ele pareceu nervoso perante a ideia de tentar comunicar comigo
sozinho. Mas até isto era melhor do que o que alguma vez tínhamos feito
antes. Ele acenou com a cabeça, esfregando as mãos para libertar um pouco
da sua energia nervosa.
— Henri, tu gostas de mim, sim?
Ele assentiu.
— Sim. Gosto de tu.
— Eu também gosto de ti.
Ele sorriu.
— Boa!
E, mais uma vez, dei por mim a rir. Vês, Eadlyn, isto vai correr bem.
— Henri... Henri, casar-te-ias comigo?
Ele semicerrou os olhos por um momento antes de os arregalar de
surpresa.
— Eu caso com tu?
— Sim, se quiseres.
Ele deu um passo atrás, sorrindo como sempre, mas havia algo na sua
expressão que não consegui definir. Descrença? Dúvida? Mas só surgiu por
um instante, desaparecendo em seguida.
— Espera, espera. — Ele caiu de joelhos, agarrando-me em ambas as
mãos. — Vais casar com eu?
— Sim.
Ele riu-se e começou a beijar as minhas mãos sem parar, detendo-se
finalmente e olhando para elas durante algum tempo, como se não pudesse
acreditar que ia poder segurar nelas para o resto da sua vida.
— Vem cá — disse eu, instigando-o a ficar de pé.
Ele abraçou-me, apertando-me com força. E, por mais doce que tudo
isto fosse, eu estava novamente a lutar contra a vontade de chorar.
— Tens de me dar um anel — disse eu e abri a caixa sobre a mesa,
notando a exclamação audível do Henri.
Aninhados sobre veludo azul estavam vinte e cinco anéis de noivado
diferentes, variando em tamanho e cor, mas todos condizentes com uma
rainha.
Ele olhou para eles por um segundo antes de se virar para mim.
— Eu escolher para tu?
— Sim.
Ele fez uma careta, um pouco assoberbado pelas suas opções. Passou o
dedo sobre combinações etéreas de granada e ametista e deteve-se sobre
diamantes tão planos e largos que se poderia patinar em cima deles. Mas,
então, encontrou uma grande pérola encastrada em ouro rosa, rodeada por
uma fileira de diamantes. Ergueu-a à altura dos olhos e assentiu.
— Para tu.
Estendi a minha mão esquerda e ele colocou o enorme e belo anel no
meu dedo.
— Bom, bom? — perguntou ele.
Era com aquilo que eu teria de me contentar. Não perfeito, não feliz,
mas bom. E para mim, depois de todos os erros que tinha cometido ao
longo do caminho, teria sem dúvida de ser suficiente.
Sorri.
— Bom, bom.
***
— Chegou uma encomenda para si — anunciou a Eloise.
Olhei para o pacote sem fazer ideia do que seria, já que não estava à
espera de nada. Coloquei a caixa dos anéis ao lado dele e estiquei os dedos.
— O que acha? — perguntei.
Os olhos da Eloise arregalaram-se.
— Nunca vi nada parecido.
— Bem, foram feitos vinte e cinco anéis diferentes para isto, todos
únicos. Um pouco extravagantes, mas estou contente por este estar lá no
meio. É de longe um dos meus favoritos.
— Fica lindo em si. — Ela sorriu para mim. — Há mais alguma coisa
de que precise ou prefere ficar sozinha?
— Sozinha por agora, acho.
— Excelente. Chame-me quando estiver pronta para o jantar e eu
venho logo.
Acenei com a cabeça e ela foi-se embora, fazendo a bainha do vestido
roçar pela porta enquanto saía.
Eu nunca deveria ter duvidado da Neena.
Agarrei-me à parte de trás da cadeira da minha secretária, tentando
assimilar as coisas com calma. Quase perdera demasiado, mas tinha de me
lembrar do quanto tinha ganho. Era a rainha e estava noiva. Tinha
finalmente aprendido a ver as outras pessoas e o que significava deixar que
elas me vissem. Ainda tinha muito para alcançar, tantas coisas que queria
fazer pela minha família e pelo meu povo. E esperava ter-me estabelecido
firmemente numa posição em que o podia fazer.
Suspirando, desembrulhei com curiosidade a caixa estreita à minha
frente. Retirei a tampa e soltei uma exclamação.
Diante de mim estava uma bela imagem da minha família no dia da
coroação. O Osten parecia estar a tramar alguma malandrice, como sempre,
e o Ahren estava lindíssimo. Tudo o que o Kaden precisava era de uma
espada na mão e a sua imagem de príncipe perfeitamente galante ficaria
completa. Passei para a imagem seguinte e ali estávamos nós novamente,
numa pose um pouco diferente. Percorri a caixa, vendo foto atrás de foto,
radiante de felicidade. A Lady Brice apertando-me num abraço, o Kile a rir
enquanto me envolvia com os braços e os Legers com uma mão em cada
um dos meus ombros, como se eu fosse realmente filha deles.
Aqueles momentos pareciam-me tão distantes, agora. Era quase como
se estivesse a olhar para outra rapariga em todas estas fotografias. Um
pouco de tempo e de esperança era o bastante para mudar uma pessoa.
Quando cheguei às fotografias com o Eikko, estas contrastavam
fortemente com todas as outras. Eu tinha tirado a minha capa, ele estava
apenas de colete e percebi que nos tinha, inconscientemente, posicionado
como duas pessoas apaixonadas. A minha mão repousava sobre o peito
dele, enquanto ele me segurava pela cintura, e a minha cabeça estava
ligeiramente inclinada na sua direção, como se o coração dele tivesse uma
força gravitacional.
Olhei para a minha imagem favorita durante imenso tempo, pensando
em como era maravilhoso o fotógrafo ter captado a luz nos olhos dele.
Apenas algumas horas depois de esta foto ter sido tirada, eu fitara aqueles
olhos e fora envolvida por aqueles braços. Quão extraordinário era eu ter
esta foto? Se não fosse pelos outros, ele poderia não se ter aproximado de
mim nem sussurrado em finlandês ao meu ouvido. Disse a mim mesma que
tinha tido sorte por nos termos sequer conhecido. Se eu tivesse lutado
contra os meus pais, se o Henri não tivesse tido a coragem suficiente para se
candidatar, se eu tivesse movido a minha mão dois centímetros para a
direita quando retirei o envelope dele...
Peguei na foto e fui até à gaveta onde guardava os meus tesouros.
Sorri, olhando para a minha pequena coleção e recordando os dois últimos
meses com um sentimento de gratidão.
A camisa do Henri, que ele tinha transformado num avental. A horrível
gravata do Kile, que impedia a paz mundial. O alfinete do Hale, espetado
num pedaço de tecido, para me lembrar de não me desfazer. O desenho
embaraçoso de um boneco do Fox. O poema do Gunner, que eu já nem
precisava de ler, porque não o conseguiria esquecer por mais que tentasse.
Estas eram as coisas que tinha guardado.
Fiquei ali, com a foto a pairar sobre a gaveta. Ainda que a imagem
fosse um enorme tesouro, não a podia colocar ali. Era impossível pôr o meu
Eikko numa caixa.
Capítulo 32

Antes que o dia mais importante da minha vida pudesse sequer


começar, fui convocada para ir ao Salão das Mulheres. A minha mãe
poderia ter dado as suas audiências em qualquer lugar e eu continuava sem
perceber por que razão aquele enorme salão era o seu lugar favorito para
tal. Fosse como fosse, ela tinha-me chamado e eu ia ao seu encontro.
A Miss Lucy estava lá e a tia May também. Não sabia quem lhe dera
as notícias, mas fiquei tão feliz que quase corri para ela. Só então vi que a
minha amada tia não era a razão pela qual eu tinha sido chamada. A Miss
Marlee chorava no ombro da minha mãe.
Ela levantou os olhos e fitou-me.
— Se não te querias casar com ele, tudo bem, mas porquê, PORQUÊ,
que tiveste de o banir? Como é que vou viver sem os meus filhos?
— A Josie ainda está aqui — recordei-a suavemente.
Ela ergueu um dedo para mim.
— Não te armes em espertinha. Podes ser rainha, mas ainda és apenas
uma criança.
Os olhos da minha mãe passavam de uma de nós para a outra, sem
saber o que fazer: defender uma filha que tinha idade suficiente para se
defender, mas que era uma filha, ainda assim, ou confortar uma amiga cujo
filho a ia deixar sem grande aviso, uma dor que ela entendia intimamente.
— Miss Marlee, tem de me deixar explicar. — Atravessei a sala,
vendo-a cair numa cadeira. — Eu adoro o Kile. Ele tornou-se mais precioso
para mim do que jamais poderia ter esperado. E a verdade é que ele teria
ficado por mim. Poderia até mesmo ter ficado por si. Mas a senhora quer
realmente isso?
— Sim! — insistiu ela, olhando para mim com os olhos vermelhos.
— O coração da minha mãe quase que se partiu, literalmente, quando
o Ahren nos deixou. Partiu o meu. Será que isso significa que ele deveria
ter ficado aqui para sempre?
Ela não respondeu. Vi que a minha mãe baixara o olhar e que apertava
os lábios, como se talvez só agora estivesse a compreender tudo.
— Eu sei que não devemos falar sobre as coisas que nos deixam
desconfortáveis. Como a razão pela qual as suas mãos ficaram cobertas de
cicatrizes — disse eu, fitando a Miss Marlee. — Mas temos de falar sobre
isso. É impressionante o que a senhora fez por amor e eu invejo-a e admiro-
a imenso por isso.
O rosto dela desfez-se, as lágrimas caindo novamente, e eu lutei para
me manter firme. Havia demasiadas pessoas a contar comigo hoje.
— Todos sabemos o que a senhora fez e todos sabemos como foi
recuperada e percebo que pense que está de alguma forma
permanentemente em dívida para com a nossa família, mas não está. Miss
Marlee, o que mais acha que podemos querer de si?
Ela continuou calada.
— Pergunte à minha mãe. Ela não a quer presa aqui. A senhora pode ir
com o seu filho se quiser. Vocês podiam viajar pelo mundo como
dignitários se quisessem. Pensar que a sua vida não lhe pertence só porque
foi poupada é uma mentira. E passar esse fardo para os seus filhos? Fazer
com que um jovem dotado, talentoso e apaixonado passe os melhores anos
da sua vida enfiado atrás destas paredes? Isso é cruel.
A Miss Marlee escondeu a cara nas mãos.
— Tu podias ter-te ido embora — sussurrou-lhe a minha mãe. —
Pensei que soubesses.
— Eu não achava isso, não para mim. O Carter e eu teríamos morrido
há anos se não fosse por ti e pelo Maxon. Não achava que alguma vez
pudesse deixar de te agradecer.
— Tu foste minha amiga quando eu era uma estranha. Convenceste-
me a não abandonar a Seleção. Seguraste o meu cabelo quando eu tinha
enjoos matinais. Lembras-te? Porque eles aconteciam sempre de tarde?
As duas riram-se.
— Quando tive medo deste trabalho, tu disseste-me que eu era capaz
de o fazer. Ajudaste a coser um ferimento de bala, por amor de Deus.
Eu estava prestes a perguntar sobre aquilo, mas optei por deixar passar.
A Miss Lucy aproximou-se e ajoelhou-se ao lado da Miss Marlee,
pegando-lhe na mão.
— Temos um passado muito retorcido, não é? — disse ela. A minha
mãe e a Miss Marlee sorriram. — Cometemos erros, mantivemos segredos
e fizemos muitas coisas tontas, juntamente com outras boas. Mas olhem
para nós. Somos mulheres adultas. E olhem para a Eadlyn.
As três fizeram exatamente isso.
— Será que daqui a vinte anos ela deve continuar presa a todos os
pequenos erros de julgamento? Sentindo-se acorrentada por eles?
Engoli em seco.
— Será que nós devemos? — concluiu a Miss Lucy.
Os ombros da Miss Marlee descaíram e ela puxou a minha mãe e a
Miss Lucy para si.
Observei-as, sentindo um nó na garganta.
Chegaria o dia em que a minha mãe já não estaria aqui, em que a
minha tia já não nos conseguiria vir visitar e em que estas senhoras se iriam
embora. Mas então existiríamos eu, a Josie e a Neena, com filhas, primas e
amigas. Viveríamos juntas e entrelaçaríamos as nossas vidas umas nas
outras, mantendo uma irmandade sagrada, que apenas um punhado de
mulheres alguma vez experimentou.
E sentia-me feliz por a minha mãe ter escolhido vir do outro lado do
país para aqui, para a casa de um estranho, e confiado numa rapariga num
avião e feito amizade com a rapariga que lhe preparava os banhos. E não
importava se e quando se separassem, pois elas nunca estariam separadas.
Não de verdade.
Capítulo 33

O estúdio tinha sido transformado. Ainda que discutir o meu noivado


em frente de uma plateia de amigos, familiares e membros do pessoal,
enquanto era tudo transmitido ao vivo para todo o país, não fosse
exatamente o nível de intimidade que eu desejaria, por vezes uma rapariga
tem de aceitar o que aparece.
Procurei pela minha mãe e pelo meu pai na sala. Precisava de os ver,
de ver os seus sorrisos perante a minha escolha. Se estivessem felizes e
calmos, então eu também podia estar. Mas ainda não tinham chegado. O
Kaden, contudo, estava presente.
Observei-o da porta, vendo-o olhar para o outro lado da sala, como se
estivesse um pouco enfeitiçado. Assustou-se ligeiramente quando apareci
ao lado dele.
— Estás bem?
Ele aclarou a garganta e olhou para os pés, corando.
— Sim, está tudo ótimo. Estou só a ver.
Segui o olhar dele, para ver se conseguia descobrir o que ele tinha
estado a observar, e tudo ficou absolutamente claro. A Josie tinha desistido
dos seus penteados elaborados e das joias excessivas. Tinha abandonado a
maquilhagem pesada e as roupas vistosas. Olhando para ela agora, com o
cabelo ligeiramente ondulado, um toque de gloss nos lábios e um vestido
azul apropriado para a sua idade, parecia estar finalmente a ser ela mesma
em vez de me tentar imitar.
— A Josie está muito bonita esta noite — comentei.
— Oh. Não tinha visto. Mas, agora que falaste nisso, sim, está gira.
A Miss Marlee, parecendo animada e calma, disse algo ao Sr. Carter e
a Josie riu-se, um som ainda um pouco alto demais para os meus ouvidos,
mas bonito, contudo.
— Como não vais ser filmado no programa, talvez te devesses sentar
ao pé dela. Parece que há um lugar livre ao lado. — Deitei uma olhadela
para baixo, para o Kaden, vendo um pequeno sorriso surgir no seu rosto
antes de ele o ocultar.
— Pode ser. Quero dizer, não tenho planos de me sentar ao lado de
mais ninguém.
Ele foi ter com ela, endireitando o fato o caminho todo, e eu dei por
mim desejosa de saber como aquilo se iria desenrolar.
— Eadlyn.
Virei-me ao ouvir a voz da minha mãe, feliz por vê-la aproximar-se de
braços abertos.
— Como te sentes?
— Totalmente maravilhosa e nem um pouco apavorada — brinquei.
— Não te preocupes. O Henri é uma boa escolha. Improvável, mas,
ainda assim, muito boa.
Olhei para o fundo da sala, onde o Eikko endireitava a gravata do
Henri. Estavam a conversar um com o outro, formando um amontoado de
formas com os lábios que eu não conseguia ler.
— O que é engraçado, porém, é que não há nada de que devas ter
inveja.
Olhei para a minha mãe, confusa.
— Inveja?
— Hoje, quando falavas com a Marlee, disseste que tinhas inveja do
que ela fez por amor.
— Eu disse isso? — Engoli em seco.
— Disseste sim. E pergunto-me por que razão terias inveja de uma
pessoa que sofreu para alcançar a pessoa que ama quando parece que há um
rapaz muito doce prestes a cair nos teus braços.
Gelei. Como é que ia dar a volta àquilo?
— Talvez uma palavra melhor seja admirar. Foi uma coisa muito
corajosa o que ela fez.
A minha mãe revirou os olhos.
— Se me queres mentir, tudo bem, mas sugiro que pares de o fazer a ti
mesma antes que te vejas numa posição da qual não consegues sair.
Com isso, ela afastou-se, sentando-se ao lado da Miss Lucy e do
general Leger. O estúdio estava habitualmente frio, mas eu tinha a certeza
de que o arrepio que me percorreu não estava relacionado com a
temperatura.
— E você vai esperar aqui — disse a produtora, arrastando o Henri
para o meu lado. — Ainda temos algum tempo, mas não fujam. Alguém viu
o Gavril? — gritou ela para ninguém em especial.
O Henri apontou para a gravata que o Eikko tinha acabado de arranjar.
— Está bom?
— Sim. — Escovei-lhe os ombros e as mangas. Olhei para além dele,
para o Eikko, que se tinha esforçado imenso para se manter composto. Eu
esperava parecer tão calma por fora como ele. Por dentro, sentia-me como
uma camisola de lã com uma ponta solta a ser puxada e puxada até não
sobrar mais nada senão um nó no chão.
Dei a volta ao Henri, com a desculpa de verificar o fato dele de todos
os ângulos. Baixei o braço quando passei pelo Eikko e os nossos dedos
roçaram-se num beijo, antes de eu me voltar a colocar diante do meu noivo.
A emoção que percorria a minha pele era eletrizante, portanto juntei as
mãos à minha frente, concentrando-me na sensação do anel de noivado
contra as costas dos meus dedos. Pelo canto do olho, vi a figura do Eikko
desaparecer no meio da multidão, presumivelmente para poder encontrar
neste momento a sua própria sanidade mental.
— Então, estás pronto? — perguntei, encarando o Henri.
Ele olhou para mim e a sua expressão geralmente eufórica parecia
apagada.
— Tu estás?
Eu queria dizer que sim, podia ouvir a palavra na minha cabeça, mas
não conseguia fazê-la sair pela boca. Portanto, limitei-me a sorrir e acenei
com a cabeça.
Ele não se deixou enganar.
Agarrando-me na mão, puxou-me para o fundo da sala, em direção ao
Eikko.
— En voi — disse o Henri, e o seu tom era mais solene do que alguma
vez lhe ouvira.
Os olhos do Eikko moveram-se rapidamente entre nós.
— Miksi ei?
— Sou lento aqui — disse o Henri, apontando para a sua boca.
— Não aqui. — E apontou para os olhos.
A minha respiração acelerou-se, sabendo que a minha vida estava
prestes a desmoronar-se e aterrorizada pelo que poderia acontecer depois de
isso ocorrer.
— Vocês são amor — disse ele, apontando para nós os dois.
Quando o Eikko começou a abanar a cabeça, o Henri suspirou e pegou
na mão direita dele, apontando para o anel de sinete. E depois pegou na
minha, que ainda usava o anel do Eikko.
— Eikko, por favor, explica-lhe. Eu tenho de acabar a minha Seleção.
Diz-lhe que nunca terá de duvidar de mim.
O Eikko repetiu o meu apelo rapidamente, mas a expressão do Henri
manteve-se implacável.
— Por favor — implorei, agarrando-lhe o braço.
A expressão dele era incrivelmente doce quando falou.
— Eu digo não. — Ele pegou na minha mão e gentilmente tirou-me o
anel de noivado.
A sala começou a girar. Eu estava a minutos de um anúncio ao vivo e
tinha acabado de ser rejeitada.
O Henri segurou o meu rosto, fitando-me profundamente nos olhos.
— Amo tu — prometeu. — Amo tu. — Depois virou-se e agarrou o
braço do Eikko. — E amo tu. Meu bom amigo. Muito bom amigo.
O Eikko engoliu em seco, parecendo prestes a chorar perante as
palavras do Henri. Durante a maior parte dos dois últimos meses, eles só se
tinham tido um ao outro. Não importava o que este momento significava
para mim. O que significaria para eles?
O Henri empurrou-nos na direção um do outro.
— Vocês ficar juntos. Eu fazer bolo de vocês!
Apesar das minhas preocupações, soltei uma gargalhada. Olhando para
os olhos do Eikko, ansiei por me deixar ir e dar ao meu coração a única
coisa que este realmente queria. Mas não conseguia ignorar o medo.
Olhei em volta da sala, procurando a única pessoa de quem precisava
agora. Quando a encontrei, virei-me para os meus rapazes.
— Esperem aqui. Por favor.
Atravessei o estúdio a correr.
— Paizinho! Pai, preciso da tua ajuda.
— Querida, o que se passa?
Respirei fundo.
— Não me quero casar com o Henri, quero casar-me com o Eikko.
— Quem?
— Erik. O tradutor dele. Estou apaixonada por ele e quero casar-me
com ele. E embora ele odeie tirar fotografias, quero tirar mil para poder
colocá-lo na minha parede e acordar todos os dias diante da nossa imagem a
rir, como tu fazes com a mãe. E quero que ele me faça dónutes, como a mãe
dele faz para o pai. E quero que encontremos a nossa coisa especial ou
talvez descubramos que tudo é a nossa coisa especial, porque sinto que se o
tiver nem sequer as situações estúpidas importam.
Ele ficou parado, de boca ligeiramente aberta.
— Mas uma palavra tua e nunca mais volto a falar nisto. Quero fazer o
que é correto e sei que nunca me deixarias fazer nada de estúpido. Diz-me o
que devo fazer e não o questionarei, pai.
Ele olhou para o relógio, com os olhos ainda arregalados de choque.
— Eadlyn, só tens sete minutos.
Segui o seu olhar e ele tinha razão. Faltavam sete minutos para a hora.
— Então ajuda-me. Diz-me o que fazer!
Depois de um segundo atordoado, ele virou-se para mim e puxou-me
para fora do estúdio.
—Todos nós sabemos que queres avançar depressa por causa do Marid
e acho que essa tua linha de pensamento tem algum valor. Mas não podes
deixar que um valentão decida o resto da tua vida. Confia em mim. Não
tens de anunciar nada hoje.
— Essa não é a questão. Quero estar com o Eikko, tanto que até dói,
mas fiz tantas coisas idiotas e egoístas no passado que receio que o povo
não me perdoe se eu quebrar até mesmo a mais ínfima regra. Não consigo
suportar desiludi-los, pai. Não consigo suportar desiludir-te a ti.
— Eu? Desiludir-me por causa de uma regra tola? — Ele abanou a
cabeça. — Eadlyn, tu vens de uma longa linha de traidores. Não me
poderias desiludir.
— O quê?
Ele sorriu.
— A fuga do teu irmão para França seria tecnicamente o suficiente
para iniciarmos uma guerra. Acho que ele sabia disso. E impediu-o?
Abanei a cabeça.
— A tua mãe — disse ele com uma gargalhada. — Conspirou com o
governo italiano para financiar os rebeldes nortistas, uma ação que a teria
mandado para a morte se o meu pai tivesse descoberto.
Fiquei atordoada.
— E eu? Há mais de vinte anos que mantenho vivo alguém que devia
estar morto.
— Os Woodworks? — perguntei.
— Hã! Não, tinha-me esquecido deles, embora oficialmente fossem
perdoados. Na realidade, é alguém muito mais perigoso aos olhos da
monarquia.
— Pai, não entendo.
Ele suspirou, olhando para ambos os lados do corredor, em busca de
olhares vigilantes, antes de desabotoar rapidamente a camisa. Virou-se e
baixou-a juntamente com o casaco.
Soltei uma exclamação de horror ao olhar para as costas do meu pai.
Estavam cobertas de marcas, algumas largas, como se tivessem sarado sem
qualquer tratamento, e outras finas e enrugadas. Não parecia haver qualquer
uniformidade em relação às marcas, exceto que deviam ter sido todas feitas
com a mesma vergasta ou chicote.
— Pai... Paizinho, o que te aconteceu?
— O meu pai aconteceu-me. — Ele puxou novamente a camisa para
cima e abotoou-a o mais rápido que conseguiu, falando de rajada. —
Desculpa nunca te ter levado à praia, filha. Simplesmente, não o podia
fazer.
Deixei cair os ombros. De todas as coisas pelas quais alguém se
poderia desculpar...
— Não compreendo. Por que razão é que ele te fez isso?
— Para me manter na linha, para me manter calado, para me tornar um
líder melhor... tinha uma infinidade de razões. Mas apenas precisas de saber
sobre dois desses espancamentos. O primeiro aconteceu depois de a tua mãe
ter proposto a eliminação das castas.
Ele abanou a cabeça, quase sorrindo ao lembrar-se.
— Ela decidiu dizer isso num Noticiário, quando ainda estava na
Seleção. É claro que o meu pai, que já a odiava, viu isso como uma ameaça
ao seu controlo. O que realmente era. Tal sugestão é uma traição. Como já
disse, é de família. Temi que ele a punisse e então deixei-o castigar-me a
mim em vez de a ela.
— Oh, meu Deus.
— Exato. Essa foi a última vez que ele me bateu e juro que nunca me
arrependerei. Aguentá-lo-ia cem vezes por ela.
Eu nunca soubera disto. Tudo o que sabia era que eles tinham decidido
eliminar as castas juntos. Muitos dos detalhes desagradáveis da história
deles tinham sido embelezados. Havia bastantes partes terríveis juntamente
com as maravilhosas.
— Quase detesto ter de perguntar, mas qual foi a outra vez de que
preciso de saber?
Ele apertou o último dos botões e suspirou.
— A primeira.
Engoli em seco, sem saber se queria ouvir esta história ou não.
— Sabes, o meu pai era um homem muito vaidoso. Achava que o
mundo lhe devia tudo porque era o rei. E, na verdade, não tinha motivos
para ser infeliz. Tinha poder, uma casa maravilhosa, uma esposa que o
adorava e um filho para continuar a linhagem. Mas nunca foi o suficiente.
O olhar dele estava distante e eu observei-o, ainda sem entender.
— Eu sabia sempre quando a amante dele ia vir. Ele dava um presente
à minha mãe no início do dia, como se estivesse a pagar pelos seus pecados
antes de os cometer. Depois, ao jantar, enchia o copo dela com vinho, sem
parar, até ela ficar prestes a desmaiar. E, claro, ela tinha os seus aposentos
na outra ala. Presumo que fosse ideia dele e não dela. Não consigo imaginá-
la alguma vez a separar-se do meu pai intencionalmente. Ela adorava-o,
genuinamente.
»Seja como for, eu tinha mais ou menos onze anos e andava pelo
palácio uma noite quando a vi sair. Ela tinha o cabelo despenteado e uma
capa sobre os ombros, como se pudesse esconder o que fizera. Eu sabia.
Sabia por que razão ela estava aqui e odiei-a por isso. Mais do que o odiei a
ele, o que era injusto. Assim que ela se foi embora, fui ter com o meu pai.
Ele estava de robe, bêbado e suado. E eu disse-lhe... nunca o vou esquecer,
disse-lhe: «Não pode deixar aquela prostituta vir até aqui novamente.»
Como se eu pudesse dizer ao rei o que ele podia fazer.
»Ele agarrou-me pelo braço com tanta força que me deslocou o ombro.
Pôs-me no chão e espancou-me com uma vergasta, nem sei quantas vezes.
Fiquei tão tonto com a dor que desmaiei. Acordei no meu quarto com o
braço numa tipoia. Quando voltei a mim, o meu mordomo disse-me que não
devia brincar às lutas com os guardas, porque era demasiado novo para os
considerar amigos.
O meu pai abanou a cabeça.
— Não sei quem foi despedido, ou pior, para fazer com que a história
parecesse verdadeira, mas percebi que tinha de ficar calado. E era tão
pequeno que não me atrevi a contar a ninguém. Quando cresci, escondia a
situação por vergonha. E então, de alguma forma, na minha cabeça,
transformei a dor em algo de que me orgulhava. Eu suportava este
sofrimento sozinho, sem apoio, e isso era algo de admirável. É claro que
não era. Era estúpido, mas quando somos pequenos arranjamos desculpas
para nós mesmos.
Ele deu-me um sorriso fraco.
— Lamento tanto, pai.
— Está tudo bem. Tornou-me uma pessoa mais forte e, espero, um pai
melhor. Espero ter sido justo contigo.
Os meus olhos encheram-se de lágrimas.
— Foste sim.
— Ótimo. Bom, para responder à tua pergunta, alguns anos mais tarde
pensei que o meu pai se tinha realmente livrado da sua amante. Como já
disse, eu sabia quando ele planeava trazê-la. Esperei que ele voltasse à
velha rotina e até me escapuli durante várias noites, só para ter a certeza.
Ela desapareceu durante meses, e então, um dia, ali estava ela, a andar pelo
corredor como se fosse a dona de tudo.
»Sentia tanta raiva daquela mulher, enfurecido por ela ter a ousadia de
aparecer enquanto a minha mãe dormia logo ali ao lado, que a detive e
disse-lhe algo nesses termos. Ela inclinou a cabeça e fez-me um sorrisinho,
como se eu fosse um inseto ou uma ninharia. Então aproximou-se do meu
ouvido e sussurrou: «Eu digo à tua irmãzinha que disseste olá.» E afastou-
se, deixando-me completamente estupefacto. Devo ter ficado ali uns dez
minutos, demasiado atordoado para me mexer.
»Será que ela dissera aquilo só para me afetar? Será que eu tinha
realmente uma meia-irmã que não conhecia? Não lhe ia implorar por
respostas e era óbvio que não podia ir ter com o meu pai. Só depois de ele
morrer é que pude começar a procurá-la.
Ele engoliu em seco.
— Mas eis a questão. Os filhos ilegítimos de um membro da família
real não estão autorizados a viver.
— O quê? Porquê?
— Acho que é porque podem ser uma ameaça à linhagem real. Uma
guerra civil ou instabilidade política nunca é bom. Mesmo agora, vê o
problema que o Marid causou. Assim, no passado, essas ameaças eram
eliminadas assim que eram descobertas. — Ele disse aquilo com frieza, de
uma forma desconectada.
— Então mataste-a?
Ele sorriu para si mesmo.
— Não. Fiquei encantado com ela assim que a vi. Era apenas uma
criança e não fazia ideia de quem era o seu pai. Não era culpa dela ter
nascido metade real. Então levei-a para longe da mãe, mantive-a perto de
mim e tenho-a protegido desde então.
Ele arriscou fitar finalmente os meus olhos.
— A Lady Brice? — perguntei.
— A Lady Brice.
Não sabia o que dizer. Tinha outra tia. E ela tinha feito tanto por mim
recentemente como qualquer outra pessoa na minha família. Mais do que
alguns, na verdade. Estava em dívida para com ela.
— Sinto-me mal por a manter na sombra — admitiu ele.
— Eu sei. Se ela tem sangue real, sinto que merece mais.
— Não é possível. E ela entende isso. Sente-se suficientemente grata
por estar aqui — respondeu ele. E embora os dois soubéssemos que isso era
verdade, dava para ver que concordávamos que não era satisfatório. —
Portanto, como vês, cometi uma traição todos os dias nos últimos vinte
anos. A tua mãe já o fez também, assim como o teu irmão. Arrisco-me a
dizer que o Kaden é capaz de ser o único que vai conseguir viver sem nunca
quebrar uma regra.
Sorri perante a verdade da afirmação, temendo a quantidade de regras
que o Osten poderia quebrar.
— Quebra a estúpida da regra, Eadlyn. Casa-te com o homem que
amas. Se ele é bom o suficiente para o aprovares, então eu também o
aprovo. E se as pessoas não o fizerem, isso é problema delas. Porque, quem
és tu?
— Sou a Eadlyn Schreave e ninguém no mundo é tão poderoso como
eu! — exclamei sem pensar.
Ele assentiu.
— Isso mesmo.
A produtora irrompeu pela porta.
— Graças a Deus! Você tem dez segundos. Corra!
Capítulo 34

Entrei como um furação pela sala, procurando pelo Eikko. Não o


consegui ver por causa da multidão de pessoas que andavam à minha
procura.
Subi para o palco, tropeçando, mesmo no instante em que a luz da
câmara ficou vermelha. Afastei o cabelo do rosto e comecei a falar, sem
absolutamente nenhuma ideia de para onde as minhas palavras me iriam
levar.
— Boa noite, Illéa. — Quebrei todas as regras que aprendera sobre
falar em público. A minha postura era atroz, o meu tom era irregular e não
me preocupei em olhar para a câmara, porque estava demasiado ocupada à
procura do Eikko. — Temos uma surpresa para vocês esta noite. Nesta
edição especial do Noticiário, tenho um anúncio importante.
Finalmente vi-o, meio escondido atrás do Henri.
— Por favor, juntem-se a mim para dar as boas-vindas ao Sr. Eikko
Koskinen ao palco.
A sala aplaudiu e eu fiquei ali parada à espera que ele enfrentasse as
câmaras por mim. O Eikko engoliu em seco e ajeitou a gravata, enquanto o
Henri lhe batia nas costas, instigando-o a mexer-se.
Peguei-lhe na mão e convidei-o a ficar ao meu lado, sentindo-me um
pouco tonta e preocupada por ele se poder estar a sentir da mesma maneira.
— Alguns de vocês são capazes de se lembrar deste senhor num
Noticiário há algumas semanas. É o tradutor do Sir Henri e, desde a sua
chegada ao palácio, provou ser inteligente, amável, honesto, engraçado e
uma dezena de outras coisas que eu não sabia que queria até as ver nele. —
Olhei para o Eikko e algo na sua expressão, a esperança nos seus olhos,
acalmou-me. Esqueci-me das câmaras. — Como tal, estou perdidamente
apaixonada por ele.
— E eu por ti — respondeu ele, tão suavemente que talvez ninguém
tenha notado.
— Eikko Petteri Koskinen, dar-me-ias a honra extraordinária de seres
o meu marido?
Ele soltou uma bela e incrédula gargalhada e o mundo parou. Não
havia ninguém a cair de joelhos nem a debater-se com anéis. Era apenas ele
e eu.
E milhões de pessoas a ver.
Ele virou-se e eu segui o seu olhar, sabendo que estava à procura do
Henri. O seu amigo estava ali, a acenar com as mãos e a murmurar sim
exageradamente, de olhos arregalados.
— Sim — disse o Eikko finalmente, rindo-se enquanto respondia.
Lancei-me para ele, colocando os braços em volta do seu pescoço e
puxando-o para um beijo. Sentia-me vagamente consciente dos aplausos e
assobios, mas o bater alegre do meu coração apagou quase tudo.
Um canto da minha mente dizia-me para me preocupar com o modo
como o país poderia reagir, como as coisas se poderiam desenrolar depois
desta noite. Mas o resto de mim silenciou essa preocupação e eu soube, com
uma certeza pura e perfeita, que tinha encontrado a minha alma gémea.
Afastei-me para olhar para ele, indescritivelmente feliz.
Um instante depois, a confusão estabeleceu-se no rosto dele.
— Então... o que faço agora?
Sorri.
— Basta ficares ao meu lado por um momento. Tenho outra coisa para
resolver. E depois há tantas coisas que quero falar contigo.
— Sinto o mesmo.
As palmas esmoreceram e eu olhei para a câmara, demasiado satisfeita
para ter medo, e disse ao meu povo o que sentia de mais verdadeiro.
— Estou ciente de que sou a vossa rainha há apenas alguns dias, mas
nesse curto espaço de tempo, e durante bastante tempo antes, tenho estado
muito preocupada com o meu lugar nos vossos corações. Não sei se alguma
vez vou entender porque recebi tanta desaprovação, mas apenas agora estou
a começar a perceber que não tenho de me importar com isso. A minha vida
deve ser totalmente minha e não vossa.
»E, ao mesmo tempo, a vossa vida deve ser totalmente vossa e não
minha.
Nesse instante, senti o ambiente da sala mudar, e talvez estivesse
louca, mas parecia ser algo maior do que aquilo que conseguia ver no
estúdio.
— Estes dois últimos meses têm sido um turbilhão para mim.
Sobrevivi a quase perder a minha mãe, a ver o meu adorado irmão gémeo
mudar-se para o estrangeiro, a ser coroada rainha e a terminar uma Seleção
que ninguém esperava que eu tivesse. — Sorri, pensando em quão depressa
tudo tinha acontecido, em como eu deveria ter ficado destruída, mas não
ficara. — Ao longo de tudo isto, alguns de vocês foram compreensivos,
enquanto outros se sentiram ignorados. Alguns foram solidários e outros
agressivos. Até há pouco tempo, eu teria dito que esses sentimentos não
tinham fundamento, mas agora tenho a certeza de que não é verdade.
»Antes da Seleção, eu vivia a minha vida no interior de um pequeno
círculo de conhecidos. Admito que a minha maior preocupação no mundo
era o meu próprio conforto e para o manter estava disposta a sacrificar um
vasto conjunto de coisas, incluindo o bem-estar de muitos ao meu redor.
Não sinto orgulho em vos dizer isto.
Concentrei-me no tapete por um momento, sentindo necessidade de
me recompor.
— Mas conhecer estes jovens mostrou-me um mundo para além dos
muros atrás dos quais eu me tinha fechado. Foi apenas nestas últimas
semanas que descobri o pouco que sei sobre o meu próprio país. Os
orçamentos e as propostas podem dar-me um modelo das vossas
necessidades, mas foi o facto de vos conhecer, cara a cara, que me mostrou
quanto mais ainda enfrentam.
»Assim — respirei fundo —, estou diante de vós agora para anunciar
que Illéa se vai tornar uma monarquia constitucional.
Houve exclamações e murmúrios por toda a sala e dei-lhes um
momento para se acalmarem, imaginando que aqueles que estavam a ver
em casa necessitariam da mesma consideração.
— Por favor, não encarem isto como estando a esquivar-me às minhas
responsabilidades. Na verdade, sei agora que vos amo demasiado para
tentar fazer este trabalho sozinha. Mesmo com um companheiro — disse,
olhando para o Eikko e sorrindo —, seria demasiado para qualquer um,
como tem sido demonstrado pelas mortes precoces e pelos problemas de
saúde dos meus antecessores. Farei a minha parte para que vocês possam
fazer a vossa.
»Durante muito tempo, nós aqui no palácio temos procurado maneiras
de tornar as vossas vidas melhores e mais felizes, apenas para descobrir que
não há nenhuma forma de o fazermos. As vossas vidas têm de estar nas
vossas mãos. Só então é que veremos a mudança que muitos de vocês têm
esperado ao longo de gerações para ver.
»Irei encontrar um primeiro-ministro adequado neste entretanto e
planearemos realizar eleições nos próximos dois anos. Não consigo
exprimir como me sinto entusiasmada por ver o que vocês têm em mente
para o nosso país.
«Estou certa de que haverá muitas dúvidas e percalços, enquanto
reinventamos o nosso país, mas, por favor, saibam que nós, na família real,
estamos do vosso lado. Não posso governar os vossos corações mais do que
vocês podem governar o meu. Acho que é altura de todos nós procurarmos
um futuro melhor e mais luminoso.
Sorri, sem sentir medo ou ansiedade, mas uma sensação de paz. Se
tivéssemos parado de nos preocupar com o modo como parecíamos estar a
fazer o nosso trabalho e nos tivéssemos concentrado em fazê-lo, de facto
teríamos chegado a esta conclusão há muito tempo.
— Muito obrigada pelo vosso apoio. Para comigo, para com a minha
família e para com o meu noivo. Adoro-vos, Illéa. Boa noite.
Vi as luzes das câmaras apagarem-se e saí do palco no meio de uma
onda de gritos. Os conselheiros estavam obviamente furiosos, virando-se
para o meu pai e exigindo respostas.
— Porque é que estão a gritar comigo, seus idiotas? — gritou-lhes ele
de volta. — Ela é a vossa rainha, por amor de Deus. Perguntem-lhe a ela.
Virei-me para o Eikko.
— Estás bem?
Ele riu-se.
— Nunca estive mais feliz nem mais apavorado.
— Isso resume tudo perfeitamente.
— Ei! — chamou o Kile, aproximando-se com o Henri logo atrás dele
para abraçarem o Eikko. Enquanto eles começavam a celebrar, afastei-me.
Havia muitas outras coisas que precisavam de ser tratadas.
Abri caminho com a ajuda dos cotovelos pelo meio dos conselheiros
confusos e furiosos e marquei um número familiar no telefone na parte de
trás do estúdio.
O Marid atendeu instantaneamente.
— O que é que acabaste de fazer? — gritou.
— Cancelei o teu convite para qualquer participação no meu reinado.
— Não percebes a estupidez do que fizeste?
— O que eu percebi foi que uma coisa perfeitamente normal te deixou
completamente aterrorizado há algumas semanas. Faz sentido agora. Por
que razão é que irias querer o poder nas mãos de outra pessoa quando o
poderias ter nas tuas?
— Se achas que esta é a última vez que vais ouvir falar de mim...
— Na verdade, acho. Os meus ouvidos estão agora mais perto do meu
povo e, portanto, não preciso de ti. Adeus.
Sorri, positivamente feliz, sabendo agora uma coisa muito importante:
o meu país já não me podia ser tirado, eu tinha-o alegremente entregado ao
povo. Eles queriam a felicidade tanto como eu e tinha a certeza de que
estávamos todos fartos de pessoas a tentarem viver as nossas vidas por nós.
— Eadlyn! — chamou a Lady Brice, correndo para mim. — Minha
menina fantástica, maravilhosa!
— Vai fazê-lo, certo?
— Fazer o quê?
— Ser primeira-ministra. É só até termos eleições.
Ela riu-se.
— Não tenho a certeza de ser a melhor pessoa para o cargo. Além
disso, há...
— Vá lá, tia Brice.
Por uma fração de segundo, ela pareceu ficar absolutamente
horrorizada. Então os seus olhos encheram-se de lágrimas.
— Nunca pensei que iria ouvir essas palavras.
Aproximei-me dela e abracei a mulher que se tornara uma das minhas
maiores confidentes. Era estranho, porque, embora nunca a tivesse perdido,
agora, abraçando-a, sentia-me como se tivesse algo de volta. Como quando
o Ahren viera para a coroação.
— Meu Deus, tenho de ligar ao Ahren! — exclamei.
— Vamos acrescentar isso à lista de coisas a fazer. Ficar noiva,
confirmado. Mudar o país, confirmado. O que vem a seguir na ordem do
dia?
Olhei para o outro lado da sala, vendo o meu pai apertar a mão do
Eikko e a minha mãe pôr-se em bicos de pés para lhe dar um beijo no rosto.
— Mudar a minha vida.
Epílogo

É uma coisa engraçada, sermos o produto de um romance de conto de


fadas. Outra coisa é pensarmos que podemos nós mesmos encontrar um.
Podemos ler as histórias e ver os filmes e podemos achar que sabemos
como é suposto tudo acontecer.
Mas a verdade é que o amor tem tanto a ver com o destino como com
o planeamento e é, ao mesmo tempo, uma beleza e um desastre.
Encontrar um príncipe pode significar beijar muitos sapos. Ou
expulsar uma pilha de sapos da nossa casa. Cair pode significar atirarmo-
nos de cabeça para algo que sempre quisemos. Ou mergulhar o dedo do pé
em algo que tememos a vida inteira. Sermos felizes para sempre pode
depender de esperarmos num campo imenso. Ou resultar de um intervalo
tão pequeno como sete minutos.
Agradecimentos

Muito bem, malta. Acho que, por esta altura, eu podia fazer-vos um
teste sobre as pessoas que aparecem na minha página de agradecimentos e
vocês acertavam em tudo. Seguem a minha agente no Twitter e marcam a
minha publicitária no Tumblr e acham que a minha editora é minha irmã,
embora não o seja. Também me perguntam pelo meu marido e pelos
miúdos, quando dou sessões de autógrafos, porque eles também começaram
a ser importantes para vocês. Portanto, vou manter as coisas simples.
Obrigada.
Ao exército de pessoas que fazem com que os livros sejam lindos, aos
amigos e familiares que me fazem continuar e a vocês. Esta série foi a
melhor viagem da minha vida e, se nunca mais voltarmos a fazer nada de
tão divertido como isto, fico feliz na mesma.
E obrigada à America e à Eadlyn, por terem decidido viver na minha
cabeça. Mudaram o meu mundo.
Adoro-vos para sempre.
K.

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