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ÍNDICE

Prefácio

Ensaio
Será que somos Patriotas? 5

Cultura
Som e Beleza: uma visão filosófica da música 10
Minha Vizinha Pianista 13
O Jardim das Aflições é uma rosa do deserto 14


Defensores celestes do Brasil 18
O Cruzado e o Comunista 25
O Rosário e as potências que regem os acontecimentos do mundo. 27

História
Mário, O Velho 30
Eleições não são fenômeno de bilheteria 36
Anamnese: memória, futebol, e política 40

Educação
Processos de amadurecimento humano e retidão política 45
Aprender a ser criança; ensinar a ser adulto 50
O fantástico mundo real 55

Humor
O Brasil precisa de falta de seriedade 59
Zoeira: o deboche como virtude ou brasil: filho de Hermes (Mercúrio)  61
O humor salvará o Brasil  63

Política
As palavras que usamos: Direito 65
A morte da verdade e o império da desinformação 69
A certeza política e seus inimigos 77
Prefácio
Por: Bruna Torlay

No dia 30 de outubro de 2022, a nova direita emergente no cenário político brasileiro foi
confrontada a um amargo resultado: seu candidato perdia o pleito para o maior nome da es-
querda política nacional: Luiz Inácio da Silva, o desagradável e velho Lula. Os imaturos enlou-
queceram, os histéricos acorreram à porta das Forças Armadas pedindo socorro, e os reflexi-
vos se perguntaram: como sobreviver aos próximos 4 anos?

É para essas pessoas que criamos essa Revista.

A dignidade humana está inexoravelmente atrelada à consciência de si, de modo que voltar
as costas à reflexão corresponderia a uma facada na própria alma, fosse a alma passível de
sofrer tal coisa. Cuidar da alma, por outro lado, corresponde à busca permanente pela saúde
do espírito, que se manifesta em reflexão e recolhimento, diante da adversidade.

As próximas páginas contêm 19 textos, em diferentes registros literários, do artigo filosófi-


co ao ensaio livre, da crônica ao diálogo, da biografia ao debate opinativo; todos eles frutos de
reflexões que certamente nos ajudam a responder à pergunta que se impõe: como sobreviver
ao governo Lula?

Após o ensaio introdutório, que procura analisar a natureza do patriotismo brasileiro,


percorremos seis domínios da atividade espiritual humana, cada qual representado por três
textos, todos eles extraídos das edições da Revista Esmeril publicadas entre outubro de 2019
e dezembro de 2022, além de amostras do conteúdo diário publicado pelos colunistas fixos
deste portal.

No domínio da *cultura*, abordamos o valor das artes e o sentido profundo da apreciação


do belo na vida cotidiana das pessoas de carne e osso, e ainda prestamos tributo a uma difícil
e clássica obra dos anos 90 que trouxe à luz as origens e natureza do projeto de poder moder-
no, entre os quais o petista é mais uma nota de rodapé.

Nada pode garantir a sobrevivência da alma às adversidades temporais sem a fé voltar-se


ao absoluto, cabendo a tudo o que é transitório (a política em primeiro lugar) apenas o ceti-
cismo. No ciclo moderno da história, porém, as coisas se invertem: inúmeras almas são céti-
cas em religião e crentes em política. Nesta inversão está a origem de uma doença espiritual
grave, origem das piores histerias: o fanatismo ideológico. Marx errou feio ao identificar a
religião como um ópio do povo. A cocaína do povo, pelo contrário, é a fé no Estado, manifes-
ta na identificação entre ideologia política e sentido da vida. Uma biografia, uma crônica de
costumes e um ensaio buscam mostrar a profundidade desse problema entre nós na segunda
parte deste livro.

No domínio da história estabelece um fio da cultura grega ao presente brasileiro, tanto por
meio de um ensaio biográfico sobre o filósofo brasileiro que retomou o legado de Pitágoras
em solo pátrio, quanto num artigo cujo propósito é responder se o espírito democrático nas-

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cido na antiga Atenas sobreviveu, ainda que aos farrapos, na versão brasileira da democracia
representativa. O último texto dessa seção faz do futebol uma lente de aumento por meio da
qual analisar as picuinhas e os tumores mortais da política, desafiando o medíocre ditado
segundo o qual religião, política e futebol não se discutem.

Se a imaturidade é um dos males mais evidentes do debate político brasileiro, é de edu-


cação que precisamos. Nesta seção, o tema é explorado num ensaio sobre os caminhos da
maturidade, num brilhante diálogo sobre a intrincada – e necessária – tensão entre infância e
vida adulta na alma humana, e numa verdadeira aula sobre o fantástico mundo real, negado
pelos amantes inveterados de sonhos vazios. Não existe amadurecimento possível sem autoco-
nhecimento e reconciliação com o mundo como ele é; reflexo de nós, tal como insistimos em
permanecer. Agir sobre o mundo para melhorar nossa vida é a fórmula do fracasso da qual é
obrigatório se libertar.

De longe a seção principal deste nosso manual de sobrevivência, o domínio do humor,


insisto hoje e sempre, apenas ele pode salvar o Brasil. Por que o Brasil precisa de falta de
seriedade? E o que faz do humor o componente predominante da identidade nacional? Se por
um lado ninguém amadurece sem rir de si mesmo, a solução existencial para suportarmos a
mesquinhez da política local tem sido o humor, do qual não podemos prescindir, se quisermos
sobreviver ao inevitável inferno em que estamos mergulhados.

Feita a peregrinação pelos territórios da arte, da fé, da história, da educação e do riso, che-
gamos ao palco da política, representado por três artigos diferentes de tudo o que você já leu:
uma investigação filológica do termo direito, recompondo o sentido verdadeiro da palavra,
vital quando se fala de política; um ensaio sobre a vida na era que recusa Aristóteles e aclama
a mediocridade sorrateira dos sofistas, isto é, algumas notas explicativas quanto a invenção
comunista chamada império da desinformação; e um inusitado diálogo sobre a certeza políti-
ca e seus inimigos, no qual direita e esquerda são postas contra a parede e a oposição amigo/
inimigo que nos divide, acirra e aprisiona no sétimo círculo do inferno é, finalmente, honesta-
mente revisitada.

Não estamos aqui para lhe enfiar notícias goela abaixo, mas para dar a você os me-
lhores instrumentos de polimento da alma e conquista de equilíbrio mental. Se você qui-
ser sobreviver aos 4 anos de governo Lula, acredite, é justamente disso que você vai precisar.

Pense. Estude. Reformule. Seja livre – no único domínio em que a liberdade não pode ser
destruída.

Boa leitura e boa sorte ao longo da estrada de espinhos que, a todos, nos espera.

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Ensaio
Será que somos Patriotas?
Por: Bruna Torlay

A independência do Brasil foi proclamada pelo herdeiro da coroa portuguesa. Tanto a


imperatriz Leopoldina quanto José Bonifácio pensaram e forjaram o rompimento do vínculo
com Portugal tendo em mente o potencial do Brasil como nação. Ainda assim, a independên-
cia não foi resultado de uma briga coletiva, envolvendo diversos setores da sociedade. Não foi
uma batalha generalizada e traumática, abrangendo grupos rivais unidos em torno da mesma
meta. Costumo me perguntar se o confuso sentimento de “orgulho da pátria” dos brasileiros
tem algo a ver com isso.

“Brasileiros” é um termo atribuído a pessoas com ou sem vínculo tradicional com o Brasil.
Muita gente chegou ao maior território nacional da América do Sul em fases distintas de sua
formação política. Parte massiva da população paulista, por exemplo, descende das ondas de
migração crescentes do final do século XIX para cá. Não conheceram o Brasil tal como se for-
mou, nem têm na memória pista alguma sobre o papel do segundo reinado ao estabelecimen-
to da liberdade política no país. O patriotismo brasileiro é confuso e fragmentário. É mais um
“bairrismo”, um apreço formado individualmente nas almas, desprovido de identidade com o
tipo de apreço próprio aos demais.

Certa vez, as redes sociais fizeram girar um vídeo sobre a reação de americanos diante da
execução de seu hino nacional. Era um local público, por onde as pessoas passeavam. Assim
que o hino dos EUA começa a tocar, as pessoas param em reverência ao símbolo maior do país
e acompanham atentamente a música. Foi uma reação automática de um povo habituado a
estimar o território que partilha e o seu significado para todos ali. Os EUA também são um
país formado por infinitas correntes migratórias. Mas o patriotismo de sua população não é
confuso e fragmentário.

Tampouco é confuso e fragmentário o apreço americano pelas regras políticas que definem
sua pátria. A Constituição cabe em 5 páginas. São sete artigos e 27 emendas. Quem pisa aque-
le solo, sabe onde está se metendo. Conhecer o ambiente é premissa obrigatória para compre-
endê-lo e, consequentemente, ter a chance de amá-lo.

O brasileiro não compreende de forma clara o Brasil, que ama individualmente, por razões
pessoais e sem vínculo necessário com o sentimento do vizinho. Se a “crise de representati-
vidade política” fosse um problema recente, a série de golpes de estado não seria tão longa.
Foram 8 episódios. O Brasil tem mais passadas de perna em suas próprias regras políticas que
os EUA, artigos na Constituição. Foram 4 no século XIX, quando se deu a independência, e ou-
tros quatro no século XX — sem contar as prováveis fraudes eleitorais consequentes da adoção
de urnas eletrônicas.

Ah, claro: contamos não apenas oito golpes de estado, como também oito Constituições.
Não é de se espantar que a identidade política do Brasil tenha perdido o laço com o sete de
setembro de 1822. A sabedoria de José Bonifácio não foi inscrita na pedra, de modo a transfor-
mar em símbolo permanente a mentalidade por influência da qual surge o império do Brasil.
O império, por sua vez, foi posto abaixo pelo Exército, que repete, tardiamente, o movimento
que fragmentara em republiquetas tocadas por ditaduras a américa-latina como um todo. A
coroa fora um símbolo capaz de manter a unidade nacional, a despeito de sedições frequentes
Brasil adentro. Com a queda do segundo reinado, a disputa das oligarquias pelo poder frag-
menta também a aspiração à direção da república, que nunca foi capaz de prover estabilidade
à nação.

Na História do Liberalismo Brasileiro, Antonio Paim, ao registrar o papel de Silvestre Pi-


nheiro na percepção de que o aperfeiçoamento do sistema representativo seria a chave para
estabelecer e consolidar valores democráticos no Brasil, sublinha o impacto desta orientação à
estabilidade política, perdida com o golpe republicano:

“(…) A obra do ilustre homem público forneceu a orientação básica


a partir da qual notável grupo de políticos brasileiros conseguiu asse-
gurar cerca de meio século de estabilidade política, durante o segundo
reinado, feito que não mais se repetiu em nossa história.”

A. Paim. História do Liberalismo Brasileiro. Cap. 5

Para além da identidade política confusa do Brasil como nação, há agravantes. Os grupos
que disputaram o poder político no país viveram com os olhos voltados ao exterior. Na época
em que o mercado interno era escasso, o lucro estava na quantidade de mercadoria despacha-
da nos portos. Enquanto inexistiam instituições de formação profissional e intelectual sólidas,
universidades estrangeiras arrebanhavam aqueles que viriam a desempenhar cargos políticos
relevantes no país. A sociedade brasileira, faz bastante tempo, não têm o hábito de se pergun-
tar o que pode fazer pelo Brasil; e sim o de lamentar o que o Brasil não faz por ela. Como se
uma nação fosse entidade isolada das pessoas que a constituem.

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Ainda na era colonial, D. João VI investiu pesadamente em instituições de cultura, atitude
repetida e ampliada por D Pedro II durante o segundo reinado. Mas o exemplo nunca pros-
perou além dos muros do governo. Ao contrário, o estado sempre foi percebido como gran-
de teta disputada a tapas. A sociedade mesma, com exceção da igreja, não assumiu para si a
missão de fundar suas Instituições. Um ou outro que se aventurou a fazê-lo, como o Barão de
Mauá, terminou sufocado por um ambiente social e político alheio ao mérito da iniciativa e do
empreendedorismo.

Aristocracia republicana e Autoritarismo instrumental

No estudo acima mencionado, Antonio Paim aponta ainda a tese de Oliveira Vianna sobre a
incompatibilidade entre a sociedade brasileira e a tentativa de se estabelecer por aqui o siste-
ma político liberal (democracia representativa, na qual os partidos representam interesses, ou
seja, são partes interessadas da sociedade). Para o teórico do chamado “autoritarismo instru-
mental”:

“O Brasil não possui uma sociedade liberal, mas, ao contrário, pa-


rental, clânica e autoritária. (…) Não há um caminho natural pelo qual
a sociedade brasileira possa progredir do estágio em que se encontra
até tornar-se liberal. assim, concluiria oliveira vianna, o Brasil precisa
de um sistema político autoritário cujo programa econômico e político
seja capaz de demolir as condições que impedem o sistema social de se
transformar em liberal. Em outras palavras, seria necessário um sis-
tema político autoritário para que se pudesse construir uma sociedade
liberal.”

Paim cita o ensaio, de 1974, “A práxis liberal no Brasil: propostas


para reflexão e pesquisa”, de Wanderley G. dos Santos. História do li-
beralismo brasileiro, cap. 23

Na prática, esse tipo de tese pressupõe serem os tomadores de decisão aqueles que indicam
caminhos e estabelecem tradições políticas, presunção esta que implica tanto em se aceitar
como legítimo o Estado regular e administrar a vida social, quanto em perceber o autorita-
rismo como mecanismo transitório eficiente para moldar a vida política conforme as inten-
ções da liderança. Esse modo de pensar faria parte do pensamento político brasileiro desde a
independência, segundo, ainda com base na obra de Paim, o ensaio de Wanderley Guilherme
dos Santos:

“A ideia de que cabia ao estado fixar as metas pelas quais a socie-


dade deveria lutar, porque a própria sociedade não seria capaz de fi-
xá-las tendo em vista a maximização do progresso nacional, é a base
tanto do credo quanto da ação política da elite do brasil do século XIX,
até mesmo para os próprios liberais. Ademais, temia-se que interesses

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paroquiais prevalecessem sobre os objetivos de longo prazo, os quais
deveriam ser os únicos a orientar as decisões políticas, se é que se pre-
tendia transformar o país em uma grande nação algum dia.”

Paim cita o ensaio “A praxis liberal no Brasil: propostas para refle-


xão e pesquisa”, de Wanderley G. dos Santos (1974). História do libera-
lismo brasileiro, cap. 23

De fato, lemos em José Bonifácio um aceno ao modelo da aristocracia republicana, diante


das turbulências que testemunhou logo que a independência se fez:

“As almas no brasil não estão elevadas até o grito forte da liberda-
de, acompanhado de firmeza moderada pela razão. a grande massa
do povo quer independência; mas não por ideia de liberdade constitu-
cional. (…) Sem muito sangue a democracia brasileira, que se possa
estabelecer, nunca se estabelecerá senão quando passar à aristocracia
republicana, ou governo dos sábios e honrados, que é o único que pode
durar e consolidar-se.

José Bonifácio de Andrada e Silva. “Projetos para o Brasil”.

Como amar o que não fizemos, portanto, não nos pertence? Quando o povo brasileiro reu-
niu condições para sentir que a mesma nação que o acolhia era também o fruto de seu traba-
lho? O que é patriotismo, senão a reverência para com um território cuja identidade compre-
endemos e na qual nos enxergamos?

O que é patriotismo
Aristóteles tem uma visão positiva sobre o amor que temos por nós mesmos. Tal sentimen-
to estaria na base do amor dirigido a qualquer outra coisa:

“E-se fundamentalmente amigo de si próprio e por isso cada um tem


de se amar fundamentalmente a si próprio.”

Ética a Nicômaco [1168b10-15]

Esse tipo de sentimento conduz as pessoas à nobreza: um agir bem em respeito a este
amor de si. Consequentemente, criam o hábito de agir pela civilidade em si, o que se traduz
em respeito à dignidade alheia. O respeito máximo à dignidade do próximo se traduz, por sua
vez, em amor à pátria, conjunto de todos aqueles ao nosso redor.

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Muitos confundem, segundo Aristóteles, essa amizade fundamental ao amor próprio rastei-
ro, típico de quem age em prol do interesse imediato, não se preocupando em lesar seja quem
for na busca de satisfação. Esse segundo tipo de auto-estima conduz à trapaça e inviabiliza
o patriotismo, uma vez que as pessoas ao redor são vistas como meios. Até a pátria, conse-
quentemente, ou conjunto de todos aqueles ao nosso redor, é reduzida a meio para se alcançar
metas particulares.

É exatamente esta a relação predominante entre nós. Sobretudo no registro da prática


política, que virou profissão rentável, e não sacrifício ligado ao compromisso pessoal com a
virtude.

Por isso repito-me a pergunta: será que somos patriotas?

A definição de patriotismo não nos ajuda. Mas muitos vão responder que “sim, os brasilei-
ros são patriotas”. Na prática, o amor às circunstâncias particulares ao nosso redor se confun-
de com a reverência ao lugar onde elas se dão. Mas são coisas diferentes.

Pessoas que acorrem às ruas para protestar contra corrupção, censura e arbitrariedade
praticadas pelo judiciário, irresponsabilidade de representantes para com os representados,
etc. não necessariamente fazem isso por amor ao país, mas por indignação ao perceber que
são roubadas, vilipendiadas e humilhadas por pessoas que usam o sistema político contra elas
próprias, tornando sua vida menos próspera, menos segura, menos boa.

Patriotismo é um sentimento positivo. O sentimento predominante da massa horrorizada


com a identidade política brasileira –um monstro engolidor de energias, estraçalhador de vi-
das– é absolutamente negativo. Prova escancarada disso é que o último sete de setembro não
foi uma ocasião para se comemorar a independência do Brasil. Mas uma data propícia a sediar
mais um protesto consequente da profunda e sincera vontade de, um dia, poder comemorá-la
com o orgulho que, por ora, ainda não temos.

E com razão.

Que atire a primeira pedra quem sente amor àquela pátria surrupiada pelos donos do STF;
estuprada pelos asseclas do Congresso; tocada ora como batata-quente, ora como prostituta,
pela mão incerta Executivo – se não o atual, por todos os anteriores.

Como a esperança é a última que morre, resta executar o nosso hino até a eloquência de
suas frases, quem sabe por força do hábito, penetrar a consciência do pior dos insensíveis.

“Já raiou a liberdade no horizonte do Brasil”?

Texto publicado na revista INDEPENDÊNCIA E IDENTIDADE NACIONAL


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Cultura
Som e Beleza: uma visão filosófica da música
Por:Larissa Castelo Branco

Podemos amar outra coisa senão a beleza? Mas é a harmonia que


agrada na beleza; ora, nós já vimos, a harmonia é o resultado da igual-
dade nas proporções. Esta proporção igual não se acha apenas nas be-
lezas que são do domínio do ouvido ou que resultam do movimento dos
corpos, mas ela existe ainda nessas formas visíveis, às quais damos
mais comumente o nome de beleza.

Santo Agostinho

Agraciados somos. O mundo, este organismo tão dinâmico, habitado por uma sociedade
ávida pelo consumo rápido de cultura, exige sempre novidades – o novo cantor, o novo blo-
gueiro, o novo dj, o novo affair da digital influencer – sem parar para apreciar as dádivas que
rodeiam os homens, benesses pelas quais exprimimos nossos sentimentos mais nobres e
virtudes mais engrandecedoras. Dentre estes presentes, está a música.

A música sempre se fez presente nas reflexões da humanidade. A relação é firmada ainda
na Grécia Antiga, sendo um tema de grande valia na organização do Estado grego e no sus-
tento do ethos (a ética). À época, o sistema educacional, paideia, tinha como missão a educa-
ção moral do indivíduo, que para ser considerado um cidadão pleno, deveria ter conhecimen-
to musical, considerado, por sua vez, o guia de condutas para o cumprimento do dever cívico.

Platão, em A República, afirma: “Não há mudanças na estética da música e da poesia sem


mudanças nas leis mais importantes da cidade”. Música e formação de valores estão intrinse-
camente ligados. Platão versa que “o ritmo e a harmonia penetram no fundo da alma humana
e a afetam mais fortemente, tornando-a mais perfeita”. Através dela, nos reconectamos com
nosso âmago, entramos em contato com nossas virtudes, dignidade, disciplina, moral, alegria
e nobreza.

Pare e pense: Quantas vezes você já se sentiu elevado aos céus ao ouvir determinada músi-
ca? Através da boa música, nos reaproximamos da beleza, manifestação divina que atua como
ponte entre os homens e o Criador. A beleza, por sua vez, justifica-se pela harmonia, pela
invocação de sensações aprazíveis e de alívio, tal como surge em 1 Samuel 16:23

“E sempre que o espírito mandado por deus se apoderava


de saul, davi apanhava sua harpa e tocava. então saul sentia
alívio e melhorava, e o espírito maligno o deixava”.

Os efeitos terapêuticos da música são inegáveis, em especial a música clássica, erroneamen-


te relacionada ao elitismo e vista como algo inacessível e de difícil compreensão – o que tem
sua parcela de verdade, a julgar pela invasão das batidas infernais do funk e dos refrões gru-
dentos da música pop.

“A música é o vínculo que une a vida do espírito à vida


dos sentidos. a melodia é a vida sensível da poesia.”

A máxima proferida por Beethoven é providencial. Além dos efeitos terapêuticos, consta-
ta-se que a música clássica aumenta os níveis de dopamina – responsável pelo bem-estar – e
atua nos genes responsáveis pela memória e pelo aprendizado, amenizando a degeneração do
cérebro.

Dentro de uma perspectiva sentimental e até mesmo de fé, creio piamente que Deus nos
presenteou de diversas formas, incluindo os gênios que fizeram a beleza se manifestar em
forma de som. Como não se emocionar, por exemplo, com Ode à Alegria de Beethoven; A
Tempestade de Vivaldi, ou The Second Waltz, de Dmitri Shostakovich? A alma entra em júbilo
com Das wohltemperierte Klavier, de Bach, ou a nostálgica Sleeping Beauty Waltz, de Tchaiko-
vsky ,ainda viva em nossa memória graças à adaptação de A Bela Adormecida pelos estúdios
Disney.

A harmonia e beleza caminham lado a lado com a bondade e a virtude. Se a alma se desvir-
tua, ela se atrai pelo que guarda desarmonia e vulgaridade. O filósofo Boécio defende que, se
a harmonia causa bem-estar no homem é porque seu interior é habitado por um sentimento
semelhante. Logo, a beleza nasce da junção afetiva entre os sentimentos contidos na
obra e em seu receptor.

A música tem o poder de exprimir os sentimentos mais sublimes do ser humano e está

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intrinsecamente ligada à alma: se o homem está feliz, suas composições refletem isto. Assim
como na produção, o hábito de ouvir espelha esta relação: a música causa alegria e animação
a quem ouve. Faça o seguinte exercício, amigo leitor: pelas manhãs, busque inserir canções
alegres e leves em seu dia, como por exemplo Jesus, a Alegria dos Homens, de Bach. Abra seus
ouvidos e sua mente e deixe a música permear seu dia.

Os pequenos também merecem ser contemplados com a música, desde os primeiros meses.
A boa formação musical permite lapidar a personalidade e a alma, cultivando ideais de valori-
zação à beleza, à delicadeza e ao discernimento.

Pense bem: o que uma criança acostumada com Strauss desde o berço sentiria ao
ouvir música contemporânea? Estranhamento, no mínimo. A sensibilidade aguçada permite
identificar harmonia e beleza. Desta forma, a criança educada num ambiente musical se tor-
nará apta a identificar aquilo que não é compatível com seus sentimentos, banindo para longe
o augúrio musical que o progressismo busca vorazmente classificar como arte.

A música é o maior bem que alguém pode herdar. Quando o indivíduo tem sua trajetória
marcada por uma influência musical edificante, não é qualquer coisa que o satisfaz. Não se
trata de ser esnobe, mas sim de questionar a qualidade sonora de tudo que é oferecido por aí.

A visão platônica de que a música implica em grande influência é muito válida. Grandes
transformações sociais são acompanhadas de grandes transformações artísticas e grandes
transformações cultural implicam em mudanças estéticas que marcarão uma época.

Tem-se por exemplo, o estilo barroco predominante na Europa no século 17, caracterizada
pelo uso de muitos adornos, monodia (trechos voltados para uma só voz, opondo-se ao estilo
polífono gregoriano) e pelo ritornello (o retorno a um trecho anterior da canção). Este perí-
odo lançou as bases para a Ópera como a conhecemos hoje e foi berço de nomes como Bach,
Claudio Monteverdi e Antônio Vivaldi. Neste período, também surgem o concerto e a suíte
como gêneros musicais e o virtuosismo – quando o instrumento musical é utilizado ao máxi-
mo. Diversos artistas considerados virtuoses se destacaram no manejo de instrumentos como
órgão, violino e cravo.

Como a arte mais difundida, a música carrega consigo a responsabilidade de refletir ideias,
valores e ideais da sociedade vigente, preservando o passado e adaptando ao novo, sem perder
as raízes, a originalidade e a sensibilidade.

Apreciar a música supera o entretenimento. É um exercício diário de agradecimento pela


possibilidade de proximidade com o suprassumo da arte, e preservar sua qualidade é preser-
var a sociedade.

Se a música for tratada com descaso, o declínio cultural é certo e, consequentemente, o


declínio de nós mesmos. A música transforma vidas, cria memórias e afetos, é capaz de atra-
vessar épocas aflorando sentimentos e trazendo mensagens atemporais.

Então, cuidemos deste presente para que este não se perca ao longo dos tempos.

Texto publicado na revista PRESENTE DE NATAL


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Minha Vizinha Pianista
Por Bruna Torlay

Sob o nome difuso de “povo”, há centelhas de imaginação viva, humor afiado, sensibilida-
de ímpar e inteligência arguta. Há quem se julgue dono da cultura, senhor da história, cultor
das vontades. Quando se cruzam, agem como iluminados nascidos para dar ao mundo uma
peculiar direção. Enquanto exercem a soberba de Fausto, o povo toca sua própria vida, muitas
vezes mais consciente das tolices perenes do mundo do que se imagina por aí.

É o caso de minha vizinha pianista.

Ela mora no quinto andar. Quando uso as escadas para descer do nono ao térreo, já no
sétimo começo a escutar os exercícios. Diminuo o ritmo buscando reconhecer a peça. Quase
nunca sei. O repertório para piano trazido à luz desde Mozart e Beethoven, desde a ascensão
do instrumento moderno que substitui o cravo (barroco na essência e na aparência), supera
em muito minha pequena cultura musical. Mas hoje reconheci. Foi na subida.

Do terceiro andar, comecei a perceber o matiz romântico da melodia. Ela estudava uma
parte do 2º concerto para piano de Rachmaninov, peça extremamente popular e palatável.
Favorita constante dos amadores que escutam concertos.

Uns e outros dizem que música clássica “é chata”. O aprendizado, quando alegre, marca a
memória com sentimentos bons. Quem teve a chance de aprender a apreciar essa forma de
arte, sente imenso prazer ao escutá-la. Sobretudo de surpresa, como fundo inesperado que
surge ao longo de uma escadaria.

Ao alcançar o quinto, aproximei-me da porta e fiquei sentada ali, querendo descobrir se era
aquela peça mesmo. Tive dúvidas. O tom estava diferente. Mas a melodia era semelhante. De
repente, o som parou. Parecia que o relógio chamava a moradora, uma senhora sexagenária
que trabalha como oficial de justiça, a obrigações pontuais.

Lembrei das minhas e retomei as escadas. Mais uma vez muito segura de que a degradante
mentalidade totalitária da esquerda internacional não conseguiu aniquilar a alta cultura por
toda parte. Ela persiste bela e brilhante no coração daqueles que, por uma vida inteira, soube-
ram guardá-la consigo.

Texto publicado na revista CONSTITUIÇÃO DE 1988


O Jardim das Aflições é uma rosa do deserto
Por:Bruna Torlay

Não dá pra dizer que os anos 90 foram estéreis no Brasil, no que diz respeito à cultura.
Toda a areia com que intelectuais universitários cegavam os próprios olhos, andando em cír-
culos no deserto, viu-se em companhia de uma planta de aspecto escultural e floração exube-
rante, presa a caule denso plenamente capaz de guardar, na aridez da paisagem, água e nu-
trientes o bastante para sobreviver. Se a tal rosa foi avistada ou não pelas hordas de tuaregues
aflitos por nuvens de areia, fato é que ela estava lá.

Para qualquer pessoa que se alegra diante de obras-primas, O jardim das aflições revela
todos os aspectos de uma. A escrita é primorosa; a personalidade do autor marca as linhas e
entrelinhas; a estrutura é consciente e feliz, de modo que a sequência dos capítulos produz
na alma impressão semelhante à do Magnificat; o tema é perene; a costura dos argumentos,
hábil e clara; o recurso despretensioso à erudição, sereno e preciso. É um grande livro, cujo
mérito inequívoco só é negado pela falta de méritos (intelectuais ou morais) dos leitores que
se metem a julgá-lo do cúmulo de sua própria ignorância – que sempre vai junto com arro-
gância descarada.

Epicuro
Muitos leitores se apegam à análise atenta que faz o autor da filosofia de Epicuro. Na práti-
ca, ela é um preâmbulo que explica a disposição espiritual ampla de muita gente em abraçar
a sombra da vida em meio à vida, obstruindo na mente a possibilidade de compreendê-la.
Trocando em miúdos, o homem moderno demonstra um encantamento insuperável por
quimeras estapafúrdias, cedendo a esta irracionalidade no exercício mesmo de buscar razões
que expliquem as boas e velhas perguntas perenes: de onde viemos; onde estamos; para onde
vamos?
A filosofia de Epicuro testemunha exemplarmente o fenômeno da auto-ilusão, com todas
as implicações políticas que ele desencadeia. Pessanha é a figura que encarna, a um só tempo,
este fenômeno e a adoração religiosa ao mesmo, como o herói trágico encarna experiências
perenes, passíveis de serem revividas indefinidamente. Nesse sentido, o que motiva a obra não
é exatamente uma pessoa, mas um padecimento singular que se revela, capítulo a capítulo,
presente à realidade maior.

Esta percepção do real no singular certamente passou despercebida pelos melindrados de


plantão, realmente crentes de tratar-se de uma “obra polêmica”. Se o fosse, não culminaria
com uma espécie de prece pela alma do padecido; prece que se estende a cada um que tenha
perdido a alma para aquele grave padecimento. O imbecil coletivo é irmão menor, palavras
do autor, da obra que comento, e compõe-se de outros tantos singulares aptos a ilustrar a
realidade percebida. Mas também essa espécie de repositório, esse museu do bicho empalha-
do servindo de introdução à biologia, é lida como “obra polêmica”, no sentido de provocação
gratuita.

O surdo ouve?
A capacidade de leitura de uma pessoa se limita aos compromissos morais que estabelece
consigo mesma. Se o cerne de sua vida é a disputa de poder, assim lerá todo gesto intelectual
ao seu redor. Se o cerne de sua vida é destruir uma catedral, movida pela sede de instalar sua
tenda de maravilhas sobre o terreno, julgará o protetor da catedral um concorrente a ser es-
magado. Eis o cerne do ataque sistemático à reputação de um autor que ousou compreender
por que motivos uma trupe de feira viveu, a todo custo, para derrubar a catedral.

O único compromisso do pessoal todo acometido pela doença anímica notória em Pessanha
era o embate político. Ainda é. Trata-se de uma equipe de trabalho cuja meta é conquistar o
poder. Essa equipe de trabalho fez da autoridade intelectual um escudo útil sob o qual mar-
char em frente, mimetizando um protótipo antigo que marca a história política do ocidente. É
este protótipo, o modelo imperial romano, ancorado na religião civil, que o autor investiga a
fundo.

O mundo de Pessanha
A cada capítulo, a doença de Pessanha se apequena diante da realidade complexa, que passa
a abrangê-la como detalhe menor. O modelo imperial romano, em suma, repele a liberdade
de consciência individual trazida à luz pela doutrina cristã, que finca sobre o plano horizontal
ligando sociedade e cosmo, mundo humano e mundo natural, o vínculo vertical entre alma e
Deus, indivíduo e verdade – rompendo indefinidamente a antiga síntese entre religião e es-
tado, vida espiritual e poder civil. Embora se tenha procurado restabelecer a ideia de império
associada à religião cristã, a essência desta é refratária à subordinação a qualquer poder tem-
poral. Daí que as tentativas tenham naufragado. A partir do momento que a eficácia da reli-
gião de estado (tal a romana) se descortina ao ocidente cristão, o materialismo, sobre o qual
se escora a religião de César, recupera prestígio e ressurge como solução na moderna tentativa
de recriar o império.

Claro que as hordas que aderiram à clássica formação militar romana (cuja figura é um

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quadrado de gente coberta por um teto de escudos colados uns aos outros), movidas pela
auto-hipnose e insensíveis aos efeitos da liberdade de consciência individual, pisoteiam em
sua marcha quaisquer pedras no meio do caminho – inclusive aquelas chamadas templos,
monastérios ou catedrais. No caso particular do Brasil, as Universidade foram convertidas, de
redutos de meditação, em quartéis de treinamento onde a consciência dos indivíduos é siste-
maticamente massacrada por variados métodos de controle mental.

A Religião Civil
Esta nossa sina é um detalhe da grande outra sina, a ressurreição da religião civil. O mar-
xismo foi o sacerdócio da classe política a que Pessanha pertenceu. A marca da “religião civil”
é a síntese entre poder político (casta de mandatários) e poder sacerdotal (casta dos prote-
tores do espírito). Só uma reflexão desta profundidade nos permite notar bem porque era
imoral não ser de esquerda no Brasil. Para alguns, ainda é. Aqui, o esquerdismo foi elevado a
horizonte espiritual absoluto.

O fenômeno, contudo, não é local e diz respeito a um conflito muito anterior e mais abran-
gente. Genial mesmo é vincular esta nossa mazela ao drama que marca o ocidente. Por isso,
a obra tende a perdurar, ao contrário de toda parafernália vazia que se produziu nas tendas
vagabundas da submissão política.

Hipnose, explosões e liberdade


Outro dia, achei num sebo uma coleção de novelas do Thomas Mann editada pelo círculo
do livro. Abre o volume a obra “Mário e o mágico”, cuja paisagem é um vilarejo onde predomi-
na o pendor ao controle, o esfacelamento da liberdade. A grande figura da novela é um hipno-
tizador perverso que faz da redução de indivíduos a joguetes um espetáculo, cujo término se
dá quando um pobre infeliz, para salvar a dignidade pisoteada pelo mágico, atira contra ele.

O hipnotizador tem todos os traços da vilania. O próprio autor confessa ter nele uma repre-
sentação de líderes fascistas, esses domadores de homens. A atitude de Mário, que interrompe
seu teatro de domínio, produz alívio. Antes de compor estas notas ao Jardim das Aflições, pen-
sava comigo: “Olavo está para Mário como o mágico, para a caterva de prestidigitadores que,
estalando o chicote, subjuga sua platéia. Eis que surgiu alguém capaz de reconhecer como
vexaminoso um espetáculo de degradação coletiva e tomou coragem de dar um fim a ele”.

A analogia talvez se deveu à memória que o Jardim me trouxe de percepções despertadas


por outra obra.

Meu romance favorito é “A montanha mágica”, romance que mostrou-me (após anos de
noites mal dormidas em razão do sentimento de que a filosofia – à época eu lia justamente a
moderna – não passava de um cão perseguindo o próprio rabo) “onde nos havia levado o so-
nho”. Bem, na obra, o sonho (ou os últimos séculos de discussões filosóficas sobre a natureza e
finalidade dos homens e do mundo) nos leva a uma mina de um campo de batalha da I guerra
mundial, que destroça num instante o protagonista do longo romance de ideias.

A gente passa dias, semanas ao lado de Hans Castorp, alma perdida em busca de compre-

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ensão, ansiosa por entrever o sentido da vida – que nunca surge. Anos escoam. Angustia-nos
a morbidade a que ele se abandona, espécie que é de paciente dos delírios infinitos da menta-
lidade moderna. A certa altura, porém, ele é arrancado do marasmo inofensivo e ressurge, no
livro, correndo sobre o campo de batalha; correndo; correndo até… cruzar a mina e ir-se pelos
ares. E o autor repete: “para onde nos levou nosso sonho?”

Quando eu li O jardim das Aflições, fiz-me novamente esta pergunta, sentindo que o autor,
longe de apontar lanças a desconhecidos – como tantos apontaram a ele – procurava ofere-
cer a almas perdidas no meio da floresta uma clareira, no centro da qual pudessem ver-se,
primeiro; e depois, libertas do escudo romano sob os quais marchavam sem norte, olhar ao
redor para redescobrir o sentido da vida, não na morte do espírito em nome de César, mas na
expressão mesma da consciência, da qual a liberdade é o reflexo – imaterial, invisível, eterno.

Um grande livro. A rosa daquele deserto a que esteve reduzida a cultura brasileira.

Texto publicado na revista TRIBUTO A OLAVO DE CARVALHO


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Defensores celestes do Brasil
Por: Leônidas Pellegrini

São Pedro de Alcântara, o Padroeiro apagado


Grande místico espanhol do século XVI, São Pedro de Alcântara, primeiro Padroeiro do Bra-
sil, foi apagado da memória nacional por interesses da baixa politicalha republicana

A história de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Padroeira do Brasil, é bastante conhe-


cida. No entanto, nem todos conhecem a de São Pedro de Alcântara, primeiro Padroeiro de
nossa terra.

Nascido em Alcântara, na Espanha, em 1499, e batizado como Juan de Sanabria, procedia


de família nobre. De inteligência privilegiada, entrou na Universidade de Salamanca ainda
muito novo, aos 12 anos, e aos 16, escondido da família, ingressou no Convento de São Fran-
cisco, em Majarretes. Foi quando adotou o nome de Pedro. Desde essa época adotou uma vida
de austeras penitências e jejuns rigorosos, e profunda oração.

Aos 20 anos, em 1519, antes mesmo que fosse ordenado sacerdote, foi enviado como Supe-
rior para fundar o Convento de Badajoz, e aos 25 anos foi ordenado sacerdote. Foi designado
como Superior em Robledillo, depois em Placencia, e depois novamente em Badajoz. Em 1532,
obteve licença para recolher-se a uma vida mais contemplativa no Convento de Santo Onofre
da Lapa, também em Badajoz.
Em 1538, foi eleito Ministro Provincial da Província de São Gabriel. Durante esse período,
redigiu para seus religiosos um estatuto mais rigoroso, que posteriormente, em 1559, recebeu
autorização do Papa Paulo IV para ser difundido no exterior, dando novo vigor à religiosidade
franciscana.

O apostolado de Frei Pedro estendeu-se para Portugal, onde ele foi conselheiro espiritual
de Carlos V, Imperador do Sacro Império Romano Germânico, e do rei D. João III. Pregando
à Corte portuguesa, converteu inúmeros nobres à renúncia ao mundo e ao ingresso na vida
religiosa. Além disso, foi diretor espiritual de Santa Tereza de Ávila, que se lembra dele como
Santo ainda em vida. Foi ele quem ajudou a Santa Madre de Ávila, por exemplo, a entender
que seus arrebatamentos místicos eram procedentes da ação divina, e não obra do diabo.

E por falar em arrebatamentos, São Pedro de Alcântara também vivia em frequentes tran-
ses místicos, que ocorriam a qualquer hora, inclusive durante suas atividades do dia a dia,
como quando pedia esmolas nas ruas de Portugal e Espanha. Além disso, diversos companhei-
ros frades testemunham que, assim como ocorria a São José de Cupertino, Frei Pedro levitava
durante as Missas que celebrava.

São Pedro de Alcântara morreu em Arenas de São Pedro, em Ávila, em 18 de outubro de


1562, aos 63 anos. Foi beatificado por Gregório XV em 1622, e canonizado por Clemente IX,
em 1669. Deixou escrita uma obra-prima da espiritualidade católica, o Tratado da Oração e da
Meditação.

Apagado por razões políticas

Em 1826, a pedido de D. Pedro I – cujo nome se devia à devoção de seu pai, D. João VI, ao
Santo franciscano espanhol – São Pedro de Alcântara, por um decreto do Papa Leão XII, foi
declarado Padroeiro do Brasil. No entanto, esse decreto acabou sendo esquecido, apagado
mesmo da memória dos brasileiros, e isso por razões políticas – ou, antes, da baixa politicalha.

Afinal, São Pedro de Alcântara, cujo nome (e não apenas o nome, visto que D. Pedro I tam-
bém era seu devoto) estava muito intensamente ligado a nossos dois imperadores (também
eles Pedros de Alcântara), era uma lembrança incômoda para aqueles que queriam justificar o
golpe de Estado de 1889, com o qual a República foi implantada.

Um decreto de Pio XI, de 1930, elevou a Padroeira do Brasil Nossa Senhora Aparecida. No
entanto, um decreto não anulou o outro. Junto com a Virgem de Aparecida (de quem D. Pedro
I também era devoto e diante da qual ele se prostrou não muito antes do Grito do Ipiranga),
São Pedro de Alcântara foi um importante Intercessor pelo Brasil, e ainda pode continuar sen-
do, caso os brasileiros se lembrem dele e a ele também roguem pelo país.

Um Intercessor como esse, aliás, faz-se essencial para nosso contexto de “República de
politicalha”. Afinal, como já mencionado, por sua pregação e exemplo de vida ele converteu ao
amor a Jesus inúmeros príncipes do Portugal de sua época, fazendo-se um verdadeiro evange-
lizador das Cortes. Então, por que não recorrermos a ele para a conversão dos cada vez piores
políticos do Brasil de hoje?

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Esforcemo-nos, portanto, para reabilitar a figura de São Pedro de Alcântara nos corações
dos fiéis brasileiros. E, para que nossos dirigentes e todos aqueles que optam pela vida pública
no Brasil sejam arrebatados pelo mesmo amor a Deus com que São Pedro de Alcântara con-
verteu tantas almas, peçamos:

São Pedro de Alcântara, rogai por nós e pelo Brasil!

Texto publicado na revista BICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA 20


Nossa Senhora é a Rainha do Brasil, e nenhum presidente
será capaz de tirá-la desse trono

A história de Aparecida remonta a outubro de 1717, quando o governador da Capitania de


São Paulo e Minas, Dom Pedro de Almeida (Conde de Assumar) passava por Guaratinguetá
(SP), a caminho de Vila Rica (MG). Como sua passagem pela vila acontecia em uma sexta-fei-
ra, o Conde, que era um bom católico, pediu para comer peixe.

A população local preparou uma festa para receber o bom Conde e sua comitiva, e a difícil
missão da pesca em uma ocasião de pouco peixe ficou sob responsabilidade de Domingos Gar-
cia, Filipe Pedroso e João Alves. Os três oraram a Nossa Senhora e lançaram-se ao rio Paraíba,
sem grande sucesso na empreitada. Antes de desistirem, na altura do Porto Itaguaçu, João
Alves lançou a rede novamente, e o rio lhe entregou uma imagem de Nossa Senhora da Con-
ceição, mas sem a cabeça. O pescador lançou de novo a rede e, desta vez, pegou a cabeça que
se encaixou perfeitamente na pequena imagem. Lançou a rede uma última vez, e a quantidade
de peixes que pegaram quase fez a canoa afundar. Foi o primeiro de muitos milagres de Nossa
Senhora Aparecida.

A imagem permaneceu por 15 anos na casa de Filipe Pedroso, onde as pessoas se reuniam
para rezar a Nossa Senhora da Conceição. Depois, construíram um pequeno oratório em Ita-
guaçu, que em pouco tempo já não comportava o grande número de fiéis que recebia. Então,
Vigário de Guaratinguetá resolveu construir uma capela no morro dos Coqueiros, que ficou
pronta em 1745. Mas o número de visitantes não parou de crescer e, em 1834 começaram as
obras da igreja que é conhecida hoje como Basílica Velha, dedicada em 1888 (em 1908, passou
a chamar-se Basílica Menor).

Também em 1888, a Princesa Isabel ofereceu à santa uma bela coroa feita de ouro, enfei-
tada com rubis e diamantes. Foi nesta ocasião em que a Princesa, sabendo da possibilidade
de não vir a ocupar o trono do Brasil, (o que viria a se confirmar com o Golpe da República),
ofereceu-o a Nossa Senhora. Em 1904, a imagem milagrosa recebeu a coroa que havia sido
doada pela Princesa 15 anos antes. Junto com a coroa, ganhou o manto azul anil, bordado com
ouro. Ironicamente, estava presente na ocasião o então presidente do Brasil, Rodrigues Alves.
A confirmação oficial de Nossa Senhora como Padroeira e Rainha do Brasil aconteceu em 16
de setembro de 1930, por um decreto de Pio XI.

A devoção a Nossa Senhora Aparecia não parou de crescer, assim como as visitas de romei-
ros à Sua Imagem milagrosa. Tanto que, em 1955, começou a construção da atual Basílica,
consagrada em solenidade presidida por São João Paulo II em 4 de julho de 1980. Hoje ela é a
maior Basílica Mariana do mundo.

É importante assinalar aqui, por fim, que a condição de Nossa Senhora como Rainha do
Brasil deve ser reconhecida sobretudo por nós, seus filhos. Esta Sua realeza parece estar um
tanto, amortecida, esquecida, apagada de nossos corações. Mas nunca se esqueçam que a
Ela o futuro do Brasil foi confiado duas vezes: em 1822, pelo então Príncipe Regente e futuro
Imperador Dom Pedro I, que se ajoelhou diante da imagem milagrosa em reconhecimento de
Sua Majestade; e em 1888, por sua neta, a Princesa Isabel, que como já mencionado, confiou a
Maria um trono que jamais poderá ser usurpado por qualquer presidente.

A exemplo de nossos antepassados soberanos, ajoelhemo-nos diante de nossa Rainha, e a


Ela peçamos:

Nossa Senhora da Conceição Aparecida, rogai por nós e pelo Brasil, e livrai-nos do mal do
comunismo!

Texto publicado no DOSE DE FÉ


22
Santos Anjos da Guarda

Hoje é celebrado o dia dos Santos Anjos da Guarda, festa que começou na Espanha, ainda
no século V, e espalhou-se pela Europa, até ser oficializada pelo Papa Clemente X em 1670,
que fixou a data em 2 de outubro.

Os Anjos da Guarda são seres espirituais que nos acompanham desde a nossa concepção
até depois da nossa morte (a não ser para quem é condenado ao inferno). Sua função é nos
proteger dos perigos tanto físicos como espirituais. Eles sabem o que se passa em nossos cora-
ções, e se fazem presentes em nossas vidas tanto quanto nós permitimos, invocando-os e cla-
mando por sua intercessão. Por isso, respeitam nosso livre arbítrio e não interferem em nossa
vontade se não oramos nesse sentido – rezar para nosso Anjo da Guarda diante das tentações
do dia a dia constitui uma poderosa arma contra o maligno e pavimenta nosso caminho rumo
à santidade.
Anjo da Guarda do Brasil
Inúmeros santos, como São Pio de Pietrelcina, Santa Francisca Romana, Santa Catarina de
Sena e Santa Rosa de Lima, entre dezenas de outros, viam, escutavam e conversavam com
seus Anjos da Guarda, com quem nutriam franca amizade. Isso porque nossos Anjos são ami-
gos enviados a nós especialmente por Deus, e se revelam a manifestação de Seu imenso amor
e Sua misericórdia para conosco.
Façamo-nos Anjos
Padre Paulo Ricardo, em uma Resposta Católica, chama atenção para o fato de que os Anjos
também devem ser imitados: “Também nós devemos ser Anjos da Guarda para as outras
pessoas. “Também nós devemos fazer de tudo para que elas cheguem ao Céu. E assim, estare-
mos imitando nossos Anjos e sendo verdadeiros guardiões de nossos irmãos, para que um dia,
juntos, possamos ver no Céu a Face de Deus”.
Rezem pelo Brasil
Por último, cabem aqui uma observação e um apelo finais: não só as pessoas possuem
Anjos da Guarda, mas também cada país tem o seu. São Anjos que intercedem pelo bem dos
povos de cada nação do planeta. Peço, portanto, que, para além das urnas, rezem para que o
Anjo da Guarda do Brasil interceda por nosso país contra o mal das ideologias que em especial
têm tomado de assalto e destruído a América Latina neste momento. Não apenas hoje, mas
hoje especialmente hoje, rezem pelo Brasil.

Santo Anjo do Brasil, rogai por nós!

Santos Anjos da Guarda, rogai por nós!

Texto publicado no DOSE DE FÉ 24


O Cruzado e o Comunista
Por: Vitor Marcolin

A política que, contrariamente ao pensamento reinante nos quintais da internet, diz respei-
to ao poder — e não a valores abstratos –, pode fazer-nos rir efetivamente. Basta observar a
ética — na acepção mesma de comportamento – dos meninos que brincam de troca-troca de
elogios no fundo dos quintais:

— “Nós temos de defender os valores da civilização ocidental, pô!” — começa por dizer o
suposto dono da conta que exibe, a título de foto de perfil, a imagem de um cruzado com a
espada em riste.

— “Mano, cala a boca!, você diz isso porque vive numa torre de marfim, e desconhece o
sofrimento do povo. Nós precisamos mesmo é de lutar pela justiça social!” — responde o outro
que atende pelo nome de Marx de Almeida, e que administra a sua conta a partir do seu Ipho-
ne.

A precipitação nos julgamentos, a falta de prudência e de justiça sempre foram a tônica do


comportamento dos jovens; o advento da internet só fez amplificar a irreflexão dos autores
dos bate-bocas. Mas não só: com os favores da internet nós nos tornamos – com extraordiná-
ria facilidade – expectadores de divertidíssimos embates. O diálogo acima é um exemplo.

Absolutamente desprovidos da consciência de que estão a falar sobre abstrações, ambos os


contendedores lançam-se numa disputa em prol da defesa dos seus “valores”, dos seus mo-
delos de sociedade perfeita, das suas cosmovisões, das suas teorizações. Estas, claro, revelam
o estado de confusão descrito pelo professor Olavo de Carvalho como a “paralaxe cognitiva”,
quando o eixo das teorizações está deslocado do eixo da experiência real. O pior é que o emi-
nente Sr. Marx de Almeida e o Sr. Cavaleiro Cruzado, quando interpelados sobre o que estão
fazendo, respondem: “Política”.

Não que eu esteja, como disse a sapiência da Dilma, a “puxar a brasa para a minha sardi-
nha” — porque não sou da canhota –, mas o socialista de Iphone é o mais deslocado da reali-
dade. Isto porque, se ele sair com a obstinação de um cachorro magro a procurar onde, obje-
tivamente, jaz a realização bem sucedida das suas ideias, jamais a encontrará. Seu oponente,
por sua vez, depois de sair da adolescência, talvez comece a perceber a presença real e con-
creta de conjunturas que saíram precisamente daquele mundo ideal. A civilização ocidental,
embasada na moral cristã, trouxe sim à existência inúmeros benefícios à humanidade; além, é
claro, de defender a liberdade do indivíduo.

Mas o diálogo segue:

— “Nós precisamos lutar pelo fim do racismo, do machismo e da homofobia tão caracte-
rística desses fascistas extremistas! Eu estou cansado de ver mulher ser morta, mêo; estou
cansado de injustiça, de intolerância, de violência!” — torna, melancólico, Marx de Almeida.

— “Você só fala asneira! Fica aí pagando de bom moço preocupado com o outro. Diz aí: o
que foi que você já fez objetivamente para ajudar, por exemplo, uma mulher vítima de violên-
cia?” — pergunta, com notável lucidez, o Cruzado.

— “Cara… mêo… você… Eu já participei de duas marchas pró-feminismo na minha cidade,


entendeu? Eu sei do que estou falando!” — responde Marx, constrangido.

— “Quer saber?, e você, Cavaleiro Cruzado gostosão, o que você já fez contra o avanço do
comunismo, hein?! Ficou aí rezando o seu Terço, feito um beato esquisito? Hein?! Fala! Palha-
ço!” — disse mais Marx de Almeida.

— “Sim, imbecil, eu rezei o meu Rosário. Acredite, é mais eficiente do que ajudar a segurar
faixas pró qualquer coisa na avenida” — respondeu, esperançoso, o Cavaleiro.

Texto publicado na revista DELÍRIOS DA ESQUERDA


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O Rosário e as potências que regem os acontecimentos do mundo.
Por: Henriete da Fonseca

Numa conferência, Pe. José Kentenich fala sobre o Rosário revelar não apenas as nossas
dificuldades, mas as potências de fundo que regem os acontecimentos do mundo, ocultas e
invisíveis – e diz, portanto, o quanto precisa ser conhecido o seu poder. Os efeitos do Santo
Rosário não se estendem apenas a nós individualmente, ou às nossas famílias e próximos;
na verdade, ele tem um alcance inimaginável e, dado o difícil tempo em que vivemos, parece
urgente compreender isso melhor. Em primeiro lugar, ele chama a nossa atenção para o fato
de que o nosso grande problema com a fé não é crer nas verdades que a religião ensina, pois
até mesmo algo tão sublime quanto a presença de Jesus na Eucaristia nós cremos! A maior
dificuldade com a nossa fé se dá em relação ao governo do mundo: como é possível que, em
meio a tantos desvios, guerras, e o avanço incólume do mal, pode estar presente o Deus Pai, o
Deus da vida?

Estamos perplexos com o rumo da nação brasileira; com o que ocorre em toda a América;
com os eventos mundiais e com a guerra em andamento, calamidade das calamidades; assim
que eclodir estaremos todos no flagelo anunciado pelas profecias, para as quais temos feito
ouvidos de mouco. Dirão: nem todos! É verdade, alguns rezam, e rezaram por mais de sessen-
ta dias ininterruptos, debaixo de sol e chuva, em grupos, de forma pública, coisa de que nunca
se ouvira falar na história do nosso país, pedindo a Deus, com rosários e súplicas, que impe-
disse o avanço do mal nas proporções em que estamos esperando; enfim, pedindo livramento
das mãos do inimigo, que avança sobre nós e nossas famílias e nos tira a liberdade – coisa que,
aliás, Deus mesmo não faz, sendo este o modo de agir apenas do velho conhecido, homicida
desde o princípio.

Vamos aos fatos: muitos de nós sentimos a fé abalada neste início de ano, alguns dizem
estar decepcionados e querem abandonar o barco. Pois então, como está, afinal, a nossa fé?
Parece, inclusive, que nossa esperança é mais uma expectativa de que realizações humanas
coincidam com nossos desejos do que qualquer outra coisa. Nós rezamos, nós pedimos a Deus,
e nele confiamos; mas, decepcionados, não estamos entendendo bem o desenrolar dos aconte-
cimentos. Na verdade, é que estamos olhando apenas para um lado deles, o de fora.

Podemos ser esclarecidos pelo Rosário, disse o Pe. Kentenich, começando por ver um outro
lado, aquele que verdadeiramente move o de fora, como alma a dar forma a um corpo. Por-
que as forças visíveis no plano de frente, os homens que enxergamos, são apenas “os bonecos
no teatro do mundo”. Estamos acostumados a ver apenas os poderes visíveis que governam
o mundo, mas seria inteligente confiar apenas nestas forças? Ele também fala que grandes
espíritos conseguem enxergar além das figuras de frente. Levantando o véu das aparências
para além das figuras, veem o entrelaçamento entre os poderes de ambos os lados. É verdade
que esses espíritos hoje rareiam, mas sempre teremos as luzes da graça rezando; e, principal-
mente, se rezamos o Santo Rosário. Aqui está um outro problema; afinal, rezar, nós rezamos!
O que significa então tudo isso? Deus não nos ouve? Onde está?

Para começar, os verdadeiros atores da história do mundo não são os que os livros mos-
tram, ou mesmo os que as notícias da mass media veiculam. Quem são, afinal, essas forças
que dirigem as guerras e os eventos mundiais? Onde estão esses poderes que hoje em dia
geram todo o caos? Podemos perguntar: “como são as potências de fundo, ocultas e invisíveis,
que usam todos os seres humanos, para o bem ou para o mal? Importa saber de antemão que
todos os homens, como seres humanos, são instrumentos de uma potência de fundo, oculta e
invisível! Estas potências já estavam em luta antes da existência do ser humano”. Houve, como
sabemos, uma grande batalha (que ainda está em andamento) desde que o velho conhecido,
Lúcifer, proclamou: non serviam! A luta é uma luta da fé contra a antifé, como dizia Goethe;
a luta de Deus contra Satanás. Mas, dirão: Satanás é apenas uma criatura, como o bom Deus
pode permitir tal coisa? Grande mistério de Deus se deixar combater deste modo! No entanto,
mesmo diante desse mistério, muita coisa Deus nos permite ver, e por justos motivos, pois nos
criou mesmo assim; desde então, os dois poderes, as duas potências, Deus e Satanás, lutam
permanentemente para atrair os homens a si – são as potências de fundo que usam as potên-
cias de frente, do plano visível. Ingenuamente perguntamos por que Deus deu tanto poder a
Satanás?, porque não o mata logo de uma vez e nos deixa seguir tranquilamente na estrada da
vida? Afinal, Deus é onipotente e criatura nenhuma lhe é páreo.

Como qualquer criança, também podemos perguntar: por que não acaba logo com ele?;
por que deixa tanto poder para ele?; por que toda essa confusão? Segundo o Padre Kentenich,
e concordo com ele, é porque “Deus é um pedagogo inveterado da confiança e da liberdade”!
Deseja das suas criaturas, livremente criadas, um “sim” livre! É algo grandioso esse agir de
Deus! Sua singular pedagogia faz questão sempre da nossa escolha, pois não há amor com-
pulsório. Ele nos ama e quer ser amado, e para garantir aos homens a livre escolha deu poder
ao demônio, que age no fundo do Inferno e também aqui sobre a terra. Sem querer entrar em
questões teológicas necessárias para melhor compreensão desse mistério, gostaria, no entanto,
de falar sobre a relação do Santo Rosário com essa escolha e dar uma ideia do cenário em que
estamos.

28
Transcorrido há bem mais de meio século, para ser exata, há 73 anos, o relato do Pe. Kente-
nich soa-nos atual: “Constatamos que hoje a maior parte das pessoas, assim nos parece, está
entregue a Satanás. Não é que sejam declarados adoradores de Satanás, mas se encontram
na esfera de influência satânica (...). Satanás é cheio de astúcia, conhece melhor que nós a
natureza humana. É um psicólogo refinado. (...) Deus o dotou de modo extraordinário, a fim
de que os homens encontrem alguém que exija decisões corajosas a favor de Deus”. Não há
pessimismo em suas palavras. Ao colocar a questão assim, nos mostra, inclusive, que somos
grandemente valorizados por Deus, que nos prova, assim como provou aos anjos, e por isso
o Anjo caído (perdido) nos persegue, ele tem muito interesse em nos envolver para que não
possamos ser aprovados (salvos).

Pois bem, em linhas gerais, ao mostrar que o Rosário desvenda as grandes potências de
fundo, ocultas e invisíveis, que regem os acontecimentos do mundo, o Padre afirma ainda que
o Rosário determina a nossa posição e indica o lugar que devemos ocupar dentro desses acon-
tecimentos. Também diz que o Rosário nos fornece os meios para travarmos e decidirmos,
mesmo na política atual, as grandes batalhas. Percebam como isso é fora do comum!, implica
nos caminhos da divina Providência, em como eles se realizam no tempo atual e conosco.

Para muitos santos da Igreja, o Rosário é a oração que representa o escudo da fé de que nos
fala São Paulo, sem o qual não teríamos meios de vencer a luta, e estamos na batalha espiritu-
al mais acirrada de todos os tempos. Não nos enganemos, pois ela é decisiva! Devemos vestir
a armadura de Deus se quisermos sair vitoriosos, ou seja, salvos. O Rosário é esta armadura
de batalha e de luta que a Virgem Maria nos entregou, para que possamos enxergar as arma-
dilhas, e para termos sempre diante dos olhos o entendimento, não só de toda a situação do
mundo, mas do grande plano salvífico de Deus e do plano das desgraças de Satanás. Assim,
defendemo-nos. O Rosário indica o lugar que devemos ocupar na batalha em torno deste pla-
no de Deus, e ainda nos dá a força para defender esta posição, na prática.

Precisamos ter mais discernimento sobre o que estamos vivenciando atualmente, pois há
uma grande prova de fé para a humanidade. Se rezarmos bem o Rosário, saberemos onde
está o real poder oculto e qual é seu centro, pois “No centro do Rosário está Jesus que veio
para destruir as obras de Satanás, junto com Sua Bendita Mãe, a Auxiliadora Permanente na
Obra da Redenção.” São inseparáveis nesta tarefa que o Pai lhes deu. Há uma visão católica do
mundo de que “o Rosário revela a quem ora”. Temos nosso lugar nesta grandiosa visão: ao re-
zarmos, dizemos sim a Deus porque nos colocamos ao lado de Jesus e de Sua Mãe, colaboran-
do, assim, com a graça dispensada por Deus para nossa salvação e derrota do inimigo. Somos
também uma potência no tempo atual, para a Glória de Deus e da querida Mãe de Deus, a
Senhora do Rosário.

Texto INÉDITO
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História
Mário, O Velho
Por: Roberto Lacerda

Como o Brasil produziu e esqueceu um dos mais bri-


lhantes filósofos desde a Escolástica

Geralmente me preocupo em escrever a introdução dos artigos de Vida e Legado sem “en-
tregar de bandeja” os biografados. No entanto, na edição deste mês me foi concedida a honra
de “biografar” o mais eminente filósofo brasileiro; uma das mentes mais brilhantes desde a
Escolástica.

Por isso, sem delongas, lhes informo o (gigante) nome deste mês: Mário Ferreira dos San-
tos (1907 – 1968), ou apenas O Velho. Se para ser assim chamado na antiguidade era neces-
sário um descendente ilustre – mas não tanto – e se seguia esse termo ao próprio nome (vide
Catão e Plínio), o filósofo brasileiro recebe esse ‘tratamento carinhoso’ por discípulos (diretos
ou indiretos) e críticos.

Dele disse o filósofo Olavo de Carvalho (74), numa de suas aulas, que seria um dos raríssi-
mos a se sentar numa mesa com Platão (427 a.C. – 347 a.C.), Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.)
e São Tomás de Aquino (1225 – 1274) e conseguir conversar – ao lado de Eric Voegelin (1901
– 1985).
Breve resumo de uma curta vida
Ao pequeno, o gigante parece sempre viver pouco, prin-
cipalmente quando d’uma morte ‘repentina’ aos 61 anos. O
que não impediu Mário, O Velho, de desenvolver seu pró-
prio sistema filosófico, formar discípulos, fundar editoras
(Logos e Matese) e traduzir obras de grandes pensadores
como Blaise Pascal (1623-1662), John Duns Scot (1266-
1308), Walt Whitman (1819 – 1892), Friedrich Nietzsche
(1844-1900) e Immanuel Kant (1724-1804), além de outros
gigantes como Aristóteles e São Tomás de Aquino.

Também foi profícuo escritor, havendo por isto a neces-


sidade de fundar suas editoras. Numa época de tecnicismo
e filosofia ‘profissional’, este filho de um português – dono
de uma companhia teatral itinerante – pensava, criava e
publicava suas obras buscando pela originalidade.

E tanto produziu, que o Professor Carlos Aurélio Mota de Souza, no artigo “Por que reler
Mário Ferreira dos Santos hoje?“, publicado na Revista de Filosofia da Editora Escala, afirma
que há 29 obras inéditas do filósofo brasileiro.

Talvez não tivesse um problema cardiovascular levado O Velho prematuramente, em 11 de


abril de 1968, e estariam publicadas, para proveito de nossa degradada intelectualidade.

O Velho e a Cultura

31
Com algo de ‘patriota’, apesar de sua fidelidade ao anarquismo libertário, reclamava da
colonização do pensamento brasileiro, que impediria os intelectuais desta nação de desenvol-
verem algo próprio, lhes restando a cópia malograda do estrangeiro.

Possivelmente concordaria com ele outro gigante (da literatura), Ariano Suassuna (1927-
2014), que dizia “não troco meu ‘oxente’ pelo ‘ok’ de ninguém”. Aliás, foi Mário um ferrenho
defensor da cultura, porém, diferente do que alegam alguns intelectuais, não considerava
cultura qualquer arremedo de costumes e comportamentos.

Na mesma obra na qual afirma que “a cultura é livre por natureza”, também critica a ascen-
são do barbarismo e sua penetração nas civilizações através da cultura. Invasão Vertical dos
Bárbaros não é somente um livro “mais conhecido”, mas um ensaio com dignidade de monu-
mento.

Sua clareza assusta aos espíritos hipersensíveis de nosso século, ao ponto da É-Realizações
se ver obrigada a introduzir uma nota para suavizar o impacto de sua linguagem objetiva e
(como seu sistema filosófico) concreta. Acontece que O Velho manda às cucuias seu anarquis-
mo libertário e literalmente defende o uso da força para retirar determinadas culturas do bar-
barismo – para “piorar” (aos olhos dos emocionados) o filósofo fala que as culturas bárbaras
precisam de “religião e chibata”, se quisermos que abandonem os comportamentos malignos
(o infanticídio indígena no Brasil é um indicativo).

Ora, se algum antropólogo moderninho ler ou ouvir tal afirmação, o mínimo que se pode
esperar é um ruído de “racista” partindo de seus trêmulos lábios, enquanto lágrimas escorrem
copiosamente por sua face e ele liga para sua mãe, ou publica alguma fanfic na internet.

Afinal, levar religião e ordem aos povos que matam seus semelhantes em rituais, praticam
infanticídio e assassinam deficientes, não é bem quisto pelo meio desses “estudiosos” e as
ONG’s que lhes financiam. Somente o homem civilizado – pela religião, afinal cultural advém
de culto – deve ser punido por suas transgressões. Mário, O Velho, usaria sua chibata libertá-
ria nessa “intelligentsia”.

Sua Filosofia
Não analisarei aqui o sistema filosófico de Mário Dias Ferreira dos Santos. Primeiro, porque
não estou à altura desse desafio, segundo, porque este artigo viraria um livro. Porém, como é
impossível falar sobre o legado de um filósofo, sem falar sobre sua filosofia, tentarei discorrer
brevemente sobre este tópico, sem me perder.

Sendo O Velho um crítico da ”colonização intelectual” no Brasil e defensor do desenvol-


vimento da nossa própria filosofia, não deixaria de empreender essa aventura, tentada pelo
cearense Raimundo de Farias Brito (1862-1917).

Dá o brasileiro ao seus sistema o nome de filosofia concreta, que difere do sistema de


mesmo nome do francês Gabriel Honoré Marcel (1889 – 1973). Marcel propõe um sistema
baseado na tradição fenomenológico-existencial, para o qual a filosofia não iniciou a partir de
abstrações, mas da experiência concreta. A realidade forneceria estruturas concretas a partir

32
das quais desenvolveríamos nossos pensamento que, por sua vez, se voltaria novamente para
essas estruturas, sendo então capaz de as compreender e “iluminar as questões sobre a pró-
pria Vida”.

Marcel seria o pai do existencialismo cristão francês, principalmente após sua conversão
à Igreja Católica Apostólica Romana, em 1929. Essa virada não eliminou seu “concretismo”,
porém, alterou a direção de sua filosofia, que ele mesmo passou a definir como “socratismo
cristão”.

Bem, retornando ao biografado original…


Mário desenvolveu sua filosofia concreta a partir da
compreensão unificada da realidade, contudo, com ele-
vado rigor matemático – sentimos aqui a influência do
grego Pitágoras -, analisando dialeticamente as ”desco-
bertas filosóficas” contemporâneas e as comparando às
heranças recebidas pela tradição.

Talvez os principais exemplos de utilização do método


pelo próprio filósofo sejam as obras “Filosofias da Afir-
mação e da Negação” e “Análise Dialética do Marxismo”,
que possuem edições pela É-Realizações (aqui e aqui).
Também recomendo “Lógica e Dialética”, da editora Pau-
lus; “Filosofia e Cosmovisão“, É-Realizações; “Pitágoras
e o Tema do Número”, IBRASA; “O Uno e o Múltiplo em
Platão”, IBRASA; “Cristianismo, a Religião do Homem”,
EDUSC e “Métodos Lógicos e Dialéticos”, Logos.

Se tentar me aprofundar, leitor, é possível que me torne obscuro e lhe confunda mais do
que elucide. Recomendo – àqueles que se sintam aptos à empreitada que adquiram a edição
crítica da É-Realizações/Filocalia, com as notas do professor Luís Mauro Sá Martino e bi-
bliografia que abrange quase todas as citações e referências de Mário Ferreira dos Santos na
composição dessa obra.

As recomendações seguiram os critérios de importância e disponibilidade editorial. Re-


sumindo, escolhi aqueles que mais ajudam na compreensão do sistema filosófico de Mário
Ferreira dos Santos, dentre os disponíveis no mercado.

O Professor

É inegável a influência de Mário em diversas áreas das ciências como ontologia, história,
oratória, retórica, psicologia, epistemologia, teologia, religiões, sociologia e filosofia matemáti-
ca. Imaginemos, portanto, a influência direta sobre outras mentes.

Olavo de Carvalho (provavelmente o maior filósofo brasileiro deste século) jamais negou
sua dívida intelectual com Mário Ferreira dos Santos, e o mesmo podemos dizer do anarquista

33
Jaime Cubero (1926 – 1998). Ainda na lista de pensadores
que beberam dessa fonte temos Luiz Felipe Pondé, Car-
los Aurélio Mota de Souza, Stanislavs Ladusãns (1912 –
1993), Martim Vasques da Cunha, José Monir Nasser etc.

Devido a sua verve anarco-libertária, que o levaria a


militar nesse movimento pós-Estado Novo, jamais acei-
tou cargos em instituições oficiais, preferindo ministrar
aulas particulares para poucos discípulos e manter as
atividades independentes de tradutor, escritor e editor.

Conhecimento enciclopédico

A obra magna de Mário Ferreira dos Santos está dividida em apenas 56 volumes. Sim, 56
volumes! É a Enciclopédia de Ciências Filosóficas e Sociais. O Velho se dedicou 16 anos para a
publicação do que Olavo de Carvalho chama de “um dos pilares da filosofia”.

E Nietzsche?

Mário Ferreira dos Santos inicialmente fez sucesso


com o livro ”O Homem que Nasceu Póstumo”, baseado
em seus estudos sobre vida e pensamento de Friedrich
Nietzsche.

Inclusive, é do filósofo nascido em Tietê, interior de


São Paulo, uma das melhores traduções ao português
da obra “Vontade de Potência”. A interpretação dada ao
pensamento do prussiano merece atenção.

Para O Velho, antes de ser filósofo ou filólogo, ou


mesmo crítico cultural, Nietzsche era poeta. Isso significa que o prussiano enxergava a reali-
dade com imaginário de poeta. Isso explica sua atitude frente ao mundo, que se assemelha ao
poeta brasileiro Camilo Castelo Branco.

Mesmo quando Nietzsche afirma que “Deus está morto”, tal soa mais como uma denúncia
sobre a sociedade de seu tempo e o processo de secularização total da vida alemã, do que uma
defesa apaixonada do ateísmo.

O Super-Homem, que estaria acima do Bem e do Mal, ao qual o Ser Humano estava perse-
guindo na intenção de se tornar uma divindade, ou o próprio Deus, seria uma ‘profecia’ re-
sultante de uma mente sagaz e estóica. Tão exageradamente estóica, que estaria na estrada do
niilismo.

Não que o filósofo brasileiro tenha afirmado diretamente tais conclusões, mas é o que se
aduz partindo de sua análise sobre o prussiano.

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Uma curiosidade antes do fim
Se perdemos um grande ator, jamais saberemos, mas se deixarmos a obra e a memória
de Mário Ferreira dos Santos serem esquecidas, de fato perderemos um dos pilares de nossa
história cultural e filosófica.

O homem é um fim e não um meio. Utilizá-lo, transformá-lo


em peça de um mecanismo, é ofender a sua dignidade.

Mário Ferreira dos Santos

Texto publicado na revista FILOSOFIA


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Eleições não são fenômeno de bilheteria
Por: Bruna Torlay

A visão de uma hecatombe produz no espectador distante um misto de horror, admiração


e prazer designado “sublime”. Ver o caos psíquico do Coringa, por exemplo, exteriorizado em
anarquia dramática, violenta e incontrolável comove qualquer pessoa que ainda tenha uma
alma. A tal ponto que só gente muito tacanha deixou de ver o filme de Todd Philips estrelado
por Joaquim Phoenix por “razões políticas”.

Fenômeno de bilheteria inequívoco, Coringa se tornou o longa-metragem para maiores de


18 anos mais lucrativo da história.

Já a visão de postes vulgares a serviço de oligarquias em permanente disputa de poder


sendo votados pela mesma população que virão a escorchar, por mais trágico que pareça a
alguns, não emociona; decepciona, quando muito. E dia seguinte evapora da memória.

Por quê?
A hecatombe concreta — massacre de inúmeras almas no mundo em prol de uma finalida-
de que as extrapola — é e sempre será um motivo poético de força extraordinária. Já o desinte-
resse crônico de elevado número de almas em conduzir o próprio destino político — misto de
indiferença, tédio, cegueira espiritual e arrogância vulgar — é até algo indigno de admiração,
sem que seja, contudo, digno de desprezo.

Por isso um conservador de carteirinha não teria motivos para desabar em frenesi me-
lancólico caso Boulos ou Manuela D’Ávila viessem a vencer o governo de suas cidades. Já ver
a figura política mais próxima às suas convicções virar caricatura do Coringa causa-lhe, ao
contrário, alegria frenética, ou pelo menos muita diversão.

A mentalidade revolucionário é fruto de caos psíquico e espiritual, de fato. Robespierre


foi uma espécie de Coringa desvairado, como o viria a ser também a cúpula da SS. Boulos e
D’Ávila são profissionais da política assessorados por marketeiros competentes. Toda a sua
rede de apoio, com o impacto social subsequente, deriva dos maiores interessados em seu
sucesso: o pessoal que manda no mundo e vive para conservar esse poder espalhando vírus,
regras non-sense, mentiras de toda espécie, sofismas e muita pólvora por baixo dos panos,
sempre que necessário.

Enquanto obras de arte que nos ajudam a perceber a natureza do caos e as razões pro-
fundas de sua permanência no mundo emocionam, o resultado de eleições fraudulentas ou
obscuras (fatos comuns no ciclo moderno da história) nos conduz a pensar sobre que relação
pode haver entre ambiente democrático e processo eleitoral.

Democracia direta mediterrânea

Atenas, na antiga Grécia, de fato experimentou a Democracia. [*] O poder político era com-
partilhado pelo grupo de pessoas que tinha algo a ver com a existência, conservação e prospe-
ridade daquela cidade. Todos os cidadãos produtivos eram elegíveis, excetuados aqueles de má
reputação, índole duvidosa ou crimes nas costas, para concorrer às diversas funções políticas
do governo, atribuídas aos interessados por… sorteio.

Sorteio?

Sim. Sorteios abertos a qualquer um.

Os generais, ou estrategos, assim como os chefes da cavalaria, eram os únicos cargos re-
servados aos ricos, ou aristocratas, e votados pelo povo, uma vez que liderar batalhas exigia
perícia e situação financeira estável. Uma regra devida menos a acordos com as classes altas,
que a bom senso do próprio povo, que não via vantagem em eleger general de guerra alguém
que trabalhasse para viver (portanto, não tivesse meios de se dedicar integralmente à defesa
da cidade), nem dispusesse do treino necessário para a guerra.

Os aristocratas, Platão sendo um grande exemplo disso, não viam lá muita beleza no siste-
ma. É claro que não funcionava às maravilhas. Mas se o povo queria liberdade, se sua priori-
dade era decidir pessoalmente o rumo de seu destino, era preciso assumir o ônus da imperfei-
ção.

O discurso comum de oligarquias é oferecer “o melhor governo”, “o melhor sistema”, “o


melhor dos mundos”.O povo ateniense preferia ser livre. Então inscrevia o nome numa “cédu-
la” e punha a cabeça a sorteio para carregar, durante um ano, o fardo de alguma tarefa cru-
cial ao andamento da cidade; ou integrar a Assembleia para votar cada saída, a começar pelo
orçamento, apresentada por quem compunha o governo.

Os atenienses se alternavam no Executivo, no Legislativo e no Judiciário, por assim dizer.


Não havia castas no conjunto de funcionários públicos. Tampouco os militares podiam ser
tidos como uma, quando dependiam do voto popular para manter os postos. Todo ano –dura-
ção de cada cargo. As funções atribuídas por sorteio não eram, como as militares, passíveis de
“reeleição”.

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Havia corrupção; havia incompetência; havia lerdeza burocrática. Mas o responsável direto
por isso era o povo que se auto-governava, e não grupos desconectados com os problemas
concretos da vida ateniense. Limitar a duração de cada mandato a um ano, sem reeleição, era
o freio que moderava os problemas intrínsecos ao sistema. A vigilância era geral e recíproca.
Todos eram iguais diante da lei.

“O preço da liberdade é a eterna vigilância”, diz a máxima.

“Mas quem vigia os vigias?”, diz uma outra.

Os atenienses não sonhavam com um governo perfeito. Apenas se alternavam no imperfei-


to que tinham para evitar que esse lhes fosse usurpado.

Democracia representativa tropical

Parece que os brasileiros desejam, a um só tempo, distância do fardo em desenhar o pró-


prio rumo, e ganhar de presente, pelas mãos de bons heróis, o governo perfeito. E maqui-
nalmente apertam botões que lhes prometem as duas coisas. Consequentemente, carregam
a cada dois anos o fardo da traição de anti-heróis e a usurpação do sonho por um governo
perfeito.

Como diz uma terceira máxima, “melhor um pássaro na mão…”

Escrevo essas ninharias um dia antes de meus concidadãos “se decidirem” entre Bruno Co-
vas e Guilherme Boulos — duas faces da mesma tesoura, destinada a compartilhar, quanto ao
papel, o mesmo corte. É claro que muitos acreditam ter parte nesta “decisão” que definirá o
“seu” futuro. Talvez por acreditarem piamente que o termo “democracia” tenha alguma coisa
a ver com pressionar números sobre o teclado de uma máquina que, ao contrário de qualquer
maquininha de cartão bancário, não fornece uma segunda via da operação.

Por isso acabei ensaiando essa alusão à Constituição dos Atenienses, modelo de governo
democrático repleto de defeitos, mas democrático ainda assim, ouvindo “Smile”, o clássico de
Charlie Chaplin que caiu como uma luva a um dos maiores sucessos de bilheteria do cinema
recente.

Francis Bacon costumava diminuir o valor das Filosofias gregas por se assemelharem a
crianças incapazes de gerar; enquanto a filosofia moderna se assemelharia a uma senhora da
fertilidade, por sua capacidade de “extrair” frutos da especulação — ou artefatos tecnológicos
do conhecimento científico. Maquinário inteligente este que exprimia o poder do homem so-
bre a natureza; espécie de reconquista do paraíso perdido.

Uma tese milenarista repensada por um racionalista que sonhou remodelar o mundo.

De fato, os gregos não inventaram máquinas sofisticadas como as velozes urnas da Smart-

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matic. Paradoxalmente, com feijões de cores distintas e plaquinhas de cera, criaram e manti-
veram uma prática que, entre os modernos, existiu mais em sonho, ou em frágeis teorias: a tal
da experiência democrática.

Se foram crianças quanto ao poderio tecnológico, nós é que estamos na infância da política.
Simplesmente porque, em nossa ágora, o povo, ao que parece, não tem grande coisa a ver com
isso…

“[…] If you smile through your fear and sorrow, smile, and maybe
tomorrow, you’ll see the sun come shining through for you […]”

Nat King Cole

Texto publicado na revista O SIGNIFICADO DAS ELEIÇÕES


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Anamnese: memória, futebol, e política
Por: Paulo Sanchotene

Em meio às preocupações cotidianas, me chega uma mensagem via WhatsApp: “Paulo, por
favor, escreve a coluna sobre futebol deste mês, ou eu não terei paz aqui em casa.” Era o mari-
do da chefe.

Li e pensei: “Bah!” Afinal, gaúchos usamos bah para tudo. Que tal a pressão e a responsa-
bilidade?! Não poderia deixar o amigo na mão. Ainda assim, não consegui escrever o texto
logo. Só sentei à frente do computador na manhã do último dia do prazo. Justo, afinal a edição
deste mês é sobre o Brasil, e poucas coisas são mais brasileiras que futebol e deixar algo para
a última hora.

Na última vez em que a Na Marca da Cal foi publicada, eu disse como o futebol está enrai-
zado no imaginário nacional, mostrei exemplos da nossa linguagem cotidiana, e tracei um
paralelo entre a história do futebol no Brasil e a história política da República brasileira. Tudo
é compatível com o tema deste mês. Portanto, para evitar ficar repetitivo, resolvi tomar outro
rumo.

Fiz um exercício anamnético, de buscar em mim uma manifestação da brasilidade [afinal,


sou brasileiro]. O futebol faz parte da minha formação como pessoa, e isso se deve muito ao
fato de ter nascido no Brasil. Pelo futebol, por exemplo, é que me apaixonei por vexilologia e
heráldica [se não sabes o que significam, checa o dicionário].

Assim, voltei a textos que escrevera sobre o assunto e selecionei os que seguem abaixo. A
coluna, como o futebol, está dividida em duas partes com um intervalo no meio. No primeiro
tempo, o foco é individual; no segundo, político. Espero que seja do agrado do leitor.

“Apita o árbitro. Começa a partida!”


(I) Minha relação com o futebol é, inegavelmente, espiritual. Eu creio piamente que se pode
ascender aos céus através dele. É o momento em que viro pagão; quando experimento e com-
preendo a veneração dos gregos pelos jogos. Eu creio nos deuses do futebol, pois o jogo é, sim,
algo transcendente. Futebol é cultura, afinal. É por isso que os hermanos estão certos quando
dizem que a bola é imaculada. Se é fato que se faz uma força sobrehumana para provar o con-
trário, ainda assim, no fim, o campo de jogo permanece solo sagrado sempre.

Outrossim, enojam-me os fariseus e os hereges incapazes de vivenciar além do que concre-


tamente acontece. Eu, por exemplo, sou gremista porque gosto de futebol; não, o contrário. O
jogo vem primeiro; o time, depois. O resultado é muito menos relevante que a partida. Vitó-
rias e derrotas passam, dinheiro e poder se esvaem, as pessoas se renovam. O tempo a tudo
que é efêmero e acidental destrói; o futebol, no entanto, continua. (20/05/2014)

(II) O meu momento mais marcante num estádio de futebol aconteceu no Olímpico em
1994. O Grêmio vinha invicto e liderava o Grupo A na primeira fase do Brasileiro. Em 8 de
setembro perdeu, em casa, a invencibilidade e a liderança do grupo. Eu tinha 13 anos (quase
14), e estava furioso com a derrota.

Havíamos ganho a Copa do Brasil há pouco, e eu me achava torcedor do clube mais fodásti-
co do mundo. Então, aquele guri abobado achou que seria interessante expor a raiva ainda no
túnel de saída do estádio:

– Não venho mais! Só torço para time invicto!

Um senhor atrás de mim ouve e, para minha sorte, resolve compartir de sua experiência:

– Larga de bobagem, guri. Há pouco tempo estávamos na B. Essa derrota não foi nada.

Essa aula de humildade me vacinou inclusive para os anos espetaculares que viriam logo a
seguir. De todas as coisas que vivenciei no Olímpico, nenhuma supera o “larga de bobagem”.
Ganhar, perder, tudo faz parte do jogo. Numa partida de futebol, o pior é o resultado final.
Não importa qual seja, pois o resultado final é sinal que o jogo acabou. No entanto, o que real-
mente interessa é o durante. (30/11/2012)

(III) São quinze para as dez enquanto espero o ônibus. Fez um calor à tarde, e a neve der-
reteu. Está gelado e úmido, agora, à noite. De repente, me vieram lembranças de Porto Alegre
e das noites frias de inverno no Olímpico. Não sei por que, mas penso na minha antiga casa e
no futebol.

Estivesse lá, poderia muito bem estar no estádio acompanhando um jogo qualquer. A esta
altura, estaria acabando o primeiro tempo. Os corneteiros das cadeiras estariam reclamando,
independentemente do placar. O vendedor de café já teria passado algumas vezes atrapalhan-
do a vista. Seria xingado pelos corneteiros sempre. Com razão, diga-se. Pior café do mundo!
Nem com frio se encarava.

Alguém lembraria do quentão. “Proibiram.” “É, proibiram.” E tinha uísque também. “Bah!
Não era uísque, era Natu.” “Verdade, mas melhor que nada.” “Com certeza.” O jogo ainda se-

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guiria. Estaria agora nos acréscimos, que o digníssimo filho de uma égua do juiz achara sufi-
ciente.

“Como assim, dois minutos? E os dez que o goleiro deles passou no chão?” Esses nunca
contam. No rádio, o comentarista falaria a enésima asneira. “Como é que pode? Eu pago para
vir e enxergo melhor que ele que recebe.” Puto, desligaria o rádio. “Não sei porque o trouxe!”
Próximo jogo, o radinho estaria lá de novo ligado. Faz parte, acho.

Acabaria o primeiro tempo. O pessoal se levantaria. Alguns aplausos. Algumas cornetas. O


casal perto se beijaria. Me lembraria da esposa em casa, mas futebol é programa meu. Ela não
gosta. Respeito. Olharia em volta. Para o público. Tudo igual a sempre.

A vida tem sentido às vezes… (20/02/2014)

“Termina o Primeiro Tempo!”

Não vejo a hora de a Copa começar. Será uma bagunça, afinal é Brasil. Só o que funcionará
será aquilo sob a batuta da FIFA porque ela sabe o que é, o que faz, o que quer e o que precisa.

Mas é, afinal, Brasil. Assim, também será uma festa. Daquelas que só a bagunça, o bom hu-
mor e a paciência são capazes de proporcionar. Será nossa oportunidade de mostrar ao mun-
do tanto os nossos infindáveis limões como nossa imorredoura capacidade de transformá-los
em caipirinha.

Copa do Mundo, sê bem-vindo de volta à tua casa. Não repares a bagunça e te aconchega
onde encontrares espaço. Não parece, mas te aguardávamos ansiosamente. Fazem mais de
sessenta anos. Estávamos com saudades! (20/05/2014)

“E a bola volta a rolar para a segunda etapa!


(I) Alguém pode perguntar: “Sancho, qual é a tua posição política?” Para esses, respondo
que política e futebol são temas equivalentes, sendo mais fácil de entender minha resposta
pelo futebol. Eu sou gremista e amo futebol. Entre um futebol SEM o Grêmio e um fute-
bol SÓ com o Grêmio, eu prefiro um futebol sem o Grêmio. O mesmo vale para a política.
(14/06/2016)

(II) Ser de direita, no Brasil, significa torcer para um time da Série C do campeonato políti-
co.

A Série A dessa liga, aliás, lembra muito o Campeonato Pernambucano:

– tem três grandes, mas um ganha mais que os outros (Sport/PT);

– quando o principal não ganha, só um dos rivais é campeão (Santa Cruz/PSDB);

– contudo, em compensação, o vice é sempre o mesmo (Náutico/PMDB);

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– eles se acham muito diferentes uns dos outros, mas para quem é de fora parecem ser
todos iguais.

Todos eles são vermelhos! (20/01/2015)

(III) Eleições são como futebol. Mesmo independentes nutrem mais simpatia por um time
que por outro. Nos Estados Unidos, eleições são como futebol em Minas ou no RS: dois times
disputam hegemonia, enquanto um bando de outros, bem menores, participam sem maior
relevância.

Eleições são como futebol. A escolha de um lado apenas revela o lado que se torce, mas não
define a posição de ninguém. Pode-se ser mais parecido com um torcedor do outro lado do
que com o colega de arquibancada.

Eleições são como futebol. São envolventes, apaixonantes e divertidas; e, como futebol,
o resultado parece ser importante, sentimos como se fosse importante, mas, no fundo, não
definem nada.

Tão importante quanto quem vencerá um pleito é saber quem são os eleitos e acompanhar
como esses atores políticos se comportarão após o reajuste de forças. (04/11/2014)

(IV) Pensar o próprio lado é dever constante, mas não é isso que os críticos da manifestação
pública argumentam. O problema é outro; bem diferente. O futebol pode ser paradigmático
nisso. Afinal, não existe setor da vida em que “trocar de lado” gere mais polêmica. Ora, mui-
tos pais, e muitos pais conservadores, aceitariam melhor ouvir do filho “mudei de sexo” que
“virei torcedor do rival”!

Pegue-se, por exemplo, um gremista. [Eu sou gremista.] Deveria ele sentir vergonha de ser
gremista por causa dos gremistas imbecis? Não poderia ele admirar e identificar-se com vá-
rios colorados, sem que isso significasse ser “menos gremista” ou “nada gremista”? Por haver
colorados excelentes, isso torna impossível existirem colorados babacas?

Pois é assim que funciona a política, e é por isso que é tão importante governar em diálogo
com a oposição. O imbecil está em todo lugar. Ele não conversa e nem ouve; só fala e impõe.
Ele sempre se acha “o certo”, independentemente do que defenda. O fato de um imbecil con-
cordar contigo numa determinada conclusão é acidente. A presença do imbecil ao teu lado
não é sinal de que tu estejas errado.

Tu estás errado! Tu não sabes o quanto, nem onde, mas estás. Por isso, há a necessidade
de conversar-se com quem discordamos. Apenas assim descobrimos nossos próprios erros.
(17/08/2015)

(V)Primeira regra da boa convivência política: “Apoiar e/ou votar em ‘A’, ‘B’ ou ‘D’, ou sim-
plesmente abster-se, não torna ninguém moralmente superior ou inferior ao outro.”

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Gosto, futebol, religião e política se discutem, sim. Não se trata nem de que poderiam ser
discutidos, mas que DEVAM ser discutidos. É obrigatório que sejam discutidos, é necessário
que sejam discutidos; mas desde que a regra da boa convivência política seja respeitada.

Se a atitude do outro te parece incompreensível, lembra que provavelmente a tua também


parece incompreensível ao outro. Se algo é auto-evidente para ti, mas nem tanto para outras
pessoas, talvez seja a hora de questionar teus próprios fundamentos. Já te perguntaste: “por
que penso assim?” No mínimo, as respostas para essa pergunta podem servir para demons-
trar ao outro porque tua posição é uma, e não a dele.

Essa pergunta, aliás, é idêntica a do outro. Se tu te perguntas “por que ele pensa assim?”,
é grande a chance do outro fazer-se a mesma pergunta em relação a ti. Ao perguntar-te “por
que penso assim?”, consegues estabelecer um elemento de conversão entre tu e o outro.

A conversão é o que permite conversar, pensar juntos. Juntos; não, um contra o outro.
Mesmo que a forma seja de um debate, o confronto tem como objetivo melhorar a posição de
ambos; mesmo se as diferenças de opinião sejam mantidas no final.

A única maneira de compreender, ao outro e a si mesmo, é aproximar-se, perguntar, e con-


versar. Se a conversa servir para reduzir a incompreensão inicial, o diálogo cumpriu sua fun-
ção. Porém, é bom sempre lembrar, qualquer conversa só é possível respeitando-se a primeira
regra exposta acima. (27/10/2014)

“Fim de papo. O árbitro encerra o jogo!”

Texto publicado na revista O SIGNIFICADO DAS ELEIÇÕES 44


Educação
Processos de amadurecimento humano e retidão política
Por: Marcelo Danucalov

Há exatos 29 anos eu terminava a leitura do livro Passagens, Crises Previsíveis da Vida


Adulta, de Gail Sheehy. Este foi meu primeiro contato com os supostos processos de amadu-
recimento da condição humana, tema pelo qual nutro grande interesse, em virtude de traba-
lhar diretamente com a temática do comportamento, tanto em clínica psicoterápica como na
docência e em consultorias.

Nesta obra, a autora sobrevoa uma historicidade genérica de nossa espécie e identifica os
potenciais desafios existenciais que estarão à espreita quando chegarmos aos vinte, aos trin-
ta, aos quarenta anos – e assim, sucessivamente. Contudo, Sheehy não se propõe a discursar
sobre os supostos estágios de maturação de nossa psique, da nossa alma, da nossa personali-
dade, nem como esses estágios impactariam a avaliação de tais desafios.

É fácil perceber que a passagem do tempo deixa marcas evidentes em nosso corpo. A inser-
ção na temporalidade mancha de maneira indelével o veículo físico que conduz nossa alma.
Contudo, muitos de nós temos dificuldades para crer que os processos de amadurecimento
sutis, ou seja, o amadurecimento de nossa personalidade, possa passar por estágios previsí-
veis, ainda que sejam potenciais e corram o risco de nunca se atualizarem na concretude da
vida.

Doze camadas da personalidade

Dentre as ideias que o professor Olavo de Carvalho nos apresenta destaca-se, entre outras,
sua intrigante concepção das doze camadas da personalidade humana. As camadas correspon-
dem a uma divisão cronológica ou, segundo o próprio autor, a uma escala de evolução ideal. A
cada nova etapa concretizada, o indivíduo expande substancialmente seu horizonte de cons-
ciência, passando a perceber a complexidade do tecido social com mais clareza e, consequen-
temente, motivando-se a agir no mundo levando em consideração alguns aspectos que não
estão ao alcance daqueles que ainda não dilataram suficientemente o seu olhar. Todavia, como
dito acima, as camadas podem não florescer, vindo a óbito na forma de sementes. Quando
isso ocorre, ficamos aprisionados em estágios inferiores, nos quais a leitura da realidade sistê-
mica é seriamente prejudicada. Isso tolhe o desenvolvimento da virtude da prudência e, como
veremos, contamina qualquer intenção de atuar com retidão política.

Críticos do professor Olavo de Carvalho asseveram que a teoria das doze camadas da per-
sonalidade humana não se ancora em nenhuma base científica sólida. Todavia, o próprio
professor nos estimula a exercitar a prática meditativa para investigar a realidade que nos
abarca, assim como nossa própria inserção nas referidas camadas. Mas, atenção! A medita-
ção proposta aqui não tem base budista ou yoguica. Não propõe a desidentificação voluntária
das modificações da mente. Seu objetivo é nos estimular a proceder no sentido contrário da
lógica. A meditação é para as humanidades o que o teste de laboratório é para as ciências
objetivas. Logo, se quisermos averiguar os diferentes níveis maturacionais que nos definem,
precisamos aprender a nos movimentar do raciocínio lógico para o pensamento imaginativo
e, posteriormente, das abstrações para a concretude do real. Falando de maneira simplificada,
teremos que reaprender a contemplar o óbvio.

Como diriam os antigos gregos, a verdadeira teoria tem relação com a visão.

Um vivente que proporcionasse o pleno florescimento de suas doze sementes motivacionais


seguiria o seguinte roteiro:

1. Fugiria da dor e buscaria o bem estar físico;

2. Procuraria satisfazer instintos e inclinações naturais de base hereditária/genética;

3. Assimilaria signos e símbolos básicos que lhe permitissem efetuar sua primeira inserção
no mundo social, ainda que o outro não lhe fosse percebido como um verdadeiro outro,
e sim como um adversário;

4. Buscaria ser amado, experienciar prazeres e afetos e almejaria o reconhecimento por


parte de terceiros (pessoas, instituições, Estado etc);

5. Buscaria identificar em si suas habilidades e competências, colocando-se à prova em


situações desafiadoras;

6. Almejaria obter resultados concretos em sua vida, adaptando pela primeira vez os seus
quereres aos quereres de um outro, agora percebido como um outro legítimo e não
como uma mera extensão de seus desejos mais comezinhos;

7. Identificaria em si um papel social e intencionaria ser útil em seu campo de atuação,


honrando acordos, quer fossem de ordem jurídica ou tácita;

8. Realizaria uma síntese de toda sua vida assumindo plena responsabilidade pelas delibe-
rações efetuadas durante sua trajetória existencial;

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9. Se esforçaria para deixar legados que pudessem impactar a sociedade e a cultura;

10. Agiria por meio de uma moral que pudesse ser universalizada;

11. Teria pretensões de deixar uma marca indelével na história da humanidade;

12. Por fim, seria conduzido pelo ideal da eternidade.

É imperativo deixar claro que as camadas vão se sobrepondo. Sendo assim, quem está na
camada seis será prioritariamente motivado a atingir resultados concretos na vida, e para isso
terá que relacionar-se de maneira mais profunda com uma outra consciência. Contudo, este
hipotético indivíduo que habita o plano existencial da camada seis ainda possui as camadas
anteriores e precisará satisfazer as necessidades básicas de cada uma delas. Ou seja, o ama-
durecimento vai proporcionar a cada um de nós uma expansão da capacidade perceptiva de
maneira que nossas principais motivações estarão sempre conectadas ao mais recente flores-
cer de nossa personalidade.

Há alguns anos, venho seguindo as orientações do professor Olavo de Carvalho e elas tem
me auxiliado a identificar algumas peculiaridades relacionadas às manifestações dos proces-
sos de amadurecimento da personalidade humana em três segmentos distintos:

• na compreensão das características da minha própria alma;

• no cuidar cooperativo das almas de meus alunos e daqueles que buscam meu auxílio
como psicoterapeuta;

• no estudo do comportamento social que reflete a média das almas que compõe a nossa
nação.

No primeiro caso, este exercício foi e continua sendo útil para que eu possa desnudar meus
comportamentos e identificar onde me aloco existencialmente. Por meio desta investigação,
obtive a força necessária para transcender posturas outrora infantilizadas e excessivamente
vitimistas. No segundo caso, as orientações concederam a mim um instrumental docente e
psicoterapêutico de grande utilidade e que tem se mostrado eficaz a todos aqueles que, assim
como eu, se sentiam ou se sentem incomodados com seus déficits maturacionais e almejam
ampliar suas visões de si mesmos e do mundo que os abarca. No terceiro caso, tem permitido
que eu realize algumas leituras dos contextos social e político do Brasil e que, infelizmente ou
felizmente, me fizeram enxergar uma dura realidade.

Em que pé estamos?
Atuando no mundo acadêmico há trinta e três anos, tive a oportunidade de conviver com
um número considerável de consciências. Aplicando a esta experiência o método meditativo
do professor Olavo de Carvalho, arrisco a hipótese, sem medo de sofrer represálias ou ser acu-
sado de arrogante, de que uma parcela considerável dos adultos que compõe a nossa socieda-
de ainda habita a camada quatro, ou seja, um plano existencial adequado aos adolescentes.

Neste estágio, as necessidades básicas de amor ainda não foram suficientemente supridas,

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o que impele a pessoa a ter um comportamento ego-centrado e que facilita a manifestação de
posturas pautadas no vitimismo, na amargura e, em alguns casos, na agressividade ressenti-
da. O indivíduo camada quatro ainda nutre a crença de que todos deveriam reconhecer nele
valores que, de fato, não possui. Seu restrito horizonte de consciência não permite que perce-
ba contradições bastante evidentes e exaustivamente apontadas pelo professor Olavo de Car-
valho em sua vastíssima obra, e mais recentemente, por Bruno Garschagen nos livros Direitos
máximos, deveres mínimos: o festival de privilégios que assola o Brasil e Pare de acreditar no
governo: por que os brasileiros não confiam nos políticos e amam o Estado?

Imaturidade e inépcia política


O indivíduo adulto que ainda se apresenta na camada quatro apresenta uma visão obnubi-
lada pelo déficit maturacional, o que o torna presa fácil de retóricas populistas, socialistas, co-
munistas, assistencialistas e vitimistas. Todas elas patrocinadoras da crença de que um Estado
gigante e provedor é direito de todos os cidadãos. A restrição de sua capacidade contemplativa
simplifica demasiadamente sua interpretação da realidade, ao mesmo tempo em que facilita
sobremaneira a abdicação da responsabilidade individual sobre os rumos que concede à sua
própria existência.

Por este motivo é sempre muito desanimadora a percepção de que a atuação política res-
ponsável pressuponha um nível mínimo de amadurecimento da consciência humana. Arrisco
a dizer que a retidão política só se manifesta a partir do atingimento da camada sete. Talvez
por isso é que o professor Olavo tenha dedicado toda sua carreira ao resgate daquilo que ou-
trora já foi realidade em nosso país, ou seja, a existência de uma sólida cultura que facilitava o
desenvolvimento do senso imaginário de seus cidadãos.

Estudos formais e vida filosófica

Como muitos brasileiros, outrora nutri fetiche por certificados, títulos, honras e pompas.
Em minha trajetória acadêmica, obtive alguns papéis que não hesitei enquadrar e expor, num
típico comportamento de pavão que se orgulha da vistosa cauda. Todavia, o acaso me reserva-
va uma surpresa. Em um dado momento, entrei em contato com as ideias do professor Olavo.

Este fato foi um divisor de águas que repercutiu em minha vida profissional, em minha
vida pessoal e até mesmo na maneira como decidi educar meu filho. Cada linha lida se asse-
melhava a um violento soco no estômago. Cada página absorvida desnudava a vergonha que
eu sentia por ter defendido ideias que agora me pareciam totalmente descabidas, infundadas e
infantilizadas. Cada livro degustado assemelhava-se a uma surra que me deixava com hemato-
mas e escoriações por semanas, meses. Cada aula, uma lição de sabedoria e humildade.

Por tudo isso, muito me entristece a maneira como um homem de tamanha envergadura é
tratado em seu próprio país. Nosso jornalismo é vil e insiste em retratá-lo como um charlatão
de quinta categoria. Nossa academia está apodrecida e cerceia aberta e descaradamente qual-
quer menção a seu nome, qualquer tentativa de debater seu riquíssimo pensamento. Nossa
educação chafurda no lodo e continua sua missão de imbecilizar nossos jovens, aprisionando-

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-os nos níveis mais baixos do desenvolvimento psíquico.

Todavia, podemos ser esperançosos. Desde a publicação de O imbecil coletivo e da des-


coberta de Olavo de Carvalho por um séquito de alunos desejosos de conhecimento, muita
coisa mudou. Este é, talvez, um dos maiores legados educacionais da história brasileira. Olavo
iluminou mentes, produziu alunos competentíssimos e continua a realizar seu honestíssimo
trabalho de expansão do horizonte de consciência de todos que se permitam ser provocados
em suas certezas e que, segundo o próprio Olavo, não queiram tratar suas opiniões como bi-
chinhos de estimação, sucedâneos de afeto, carinho e ternura.

Este é um dos maiores presentes que que o professor Olavo de Carvalho nos concedeu, e a
ele eu só posso ofertar minha eterna gratidão.

Texto publicado na revista TRIBUTO A OLAVO DE CARVALHO


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Aprender a ser criança; ensinar a ser adulto
Por: Paulo Sanchotene

Cenário: Num parque, Idomeu brinca com crianças observado por Egídio; as crianças
saem correndo, deixando os amigos sozinhos.

Personagens: Egídio, Idomeu, algumas crianças

Cena
[Egídio] Vem cá, tu não te cansas de brincar com as crianças, não?

[Idomeu] Canso, claro. Como não? Estou exausto agora!

[Egídio] Estou vendo, mas demorou bastante…

[Idomeu] Sempre gostei de crianças. Tenho jeito de “tiozão”. Confesso que, se tenho algum
arrependimento durante a faculdade foi não ter trabalhado de recreacionista.

[Egídio] Tu pareces ter jeito com eles. Sorte dos teus filhos.

[Idomeu] Eu disse “tiozão” e não “paizão” por um bom motivo. Ser pai é diferente. É mui-
to mais fácil ser “tio” que pai. Os meus já estão grandes, e ainda não encontrei a medida.

[Egídio] Mas qual é o problema?

[Idomeu] Eu não tenho paciência com os guris e tenho muita dificuldade de propor brin-
cadeiras.

[Egídio] Tu? Minha impressão é bem diferente. Tu sabes ser criança.

[Idomeu] Obrigado. Para mim, a melhor definição de “adulto” é “saber quando se pode
ser criança.” Criança é sempre criança. Isso vai mudando com o amadurecimento, mas não se
pode matar a “criança dentro da gente”.
[Egídio] Mas se tu sabes disso e consegues ser criança, onde está a dificuldade para ti?

[Idomeu] Acho que tem algo a ver como quando fui criança. Nunca fui de inventar brinca-
deira, mas de participar. Não era o líder do grupo. Sempre fui introspectivo. É mais fácil para
mim entrar na brincadeira deles que os convidar para brincar. Agora, principalmente nesta
era digital, sou eu quem teria que os ensinar a brincar, mas não consigo. Quando me pedem
para inventar uma atividade, não me vem nada na cabeça!

[Egídio] Eu não acredito.

[Idomeu] Mas é verdade. Não só é difícil propor uma brincadeira, como o pouco que pro-
ponho raramente é recebido com entusiasmo.

[Egídio] Te entendo. Não sei se acredito, mas te entendo. Te vejo aí todo animado com as
crianças, nem consigo imaginar como não se entusiasmarem.

[Idomeu] Hahahahaha! Estás me vendo num bom momento, inspirado; sem pressão. É
mais fácil. Sou mais do ímpeto do que do planejamento.

[Egídio] Tampouco creio que percas a paciência fácil…

[Idomeu] Bah! Verdade. Te disse isso. Mas, infelizmente, isso se passa comigo.

[Egídio] Mas, como? Tu estavas aí, lidando com a piazada numa tranquilidade…

[Idomeu] É diferente quando não são só teus filhos. Não sei bem explicar, mas realmente é
mais fácil ser “tio” que pai. Se a gente vira “criança” com os filhos, como fazer para preservar
a autoridade? A gente nunca deixa de ser pai, e é nesse equilíbrio que me atrapalho. Quando
me atrapalho, acabo perdendo a paciência e descontando neles. Absurdo, ridículo, até; mas
acontece. Acho que não me tornei adulto o suficiente. Pelo jeito, ainda não sei quando posso
ser criança.

[Egídio] Sabes melhor do que eu, ao menos. Há quem evite esses problemas nunca sendo
criança.

[Idomeu] Sim. Muita gente faz isso. Cria-se um distanciamento. Me lembra de uma frase
do filme “Pantera Negra”: “tu és um bom homem; e é difícil para um bom homem ser um
bom rei.” Nesse caso, o pai seria um rei, sem intimidade com os súditos. É mais fácil assim
preservar autoridade. Aliás, no “Crônicas de Gelo e Fogo” [Game of Thrones] tem uma passa-
gem sobre isso também. Todo mundo adorava um príncipe bonachão, mas ele foi obrigado a
mudar quando assumiu, pois um rei “precisa matar a criança dentro de si” para poder gover-
nar. É a mesma coisa.

[Egídio] Isso é bom e necessário, então?

[Idomeu] Para um rei, talvez; mas para um pai? Há limites para essa analogia. Apesar de
haver certas vantagens, “é difícil para um bom homem ser um bom rei”, ainda acho que os
filhos ganham com a proximidade do pai. Se eu posso dar-lhes isso, não comprometendo a

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família, é minha obrigação seguir esse caminho. Meus filhos precisam ter em mim uma refe-
rência de bom homem e de bom pai.

[Egídio] Mas os teu erros não prejudicam?

[Idomeu] Prejudicam, claro; mas erros fazem parte do aprendizado. Para ser bom pai e
bom homem, é preciso praticar. O processo pelo qual meus filhos passam, eu também passo.
Estamos sempre em constante amadurecimento. Mas, de novo, é fundamental preservar a
criança em nós.

[Egídio] Por quê?

[Idomeu] Por diversas razões. Primeiro, para evitar tornar-se um “eterno adolescente”.
Como diria C.S. Lewis, não fazer criancices por receio de parecer criança é uma baita crianci-
ce.

[Egídio] Sério que ele disse isso?

[Idomeu] Sério. A frase não é bem essa, mas é nessa linha. Foi uma resposta a quem lhe
perguntava se não tinha vergonha de ler contos-de-fada em público. A frase é algo como: “há
tempos que deixei de fazer coisas infantis, como me preocupar se outros me tirariam para
imaturo por fazer coisas de criança.” Sou cheio de defeitos, mas esse medo eu não tenho!

[Egídio] A frase parece contraditória.

[Idomeu] “Parece, mas não é. Denorex!”

[Egídio] Hahahahahaha! Que desenterrada!

[Idomeu] Estamos ficando velhos… Ok. Voltemos. “Coisas infantis” ou “de criança” têm
dois sentidos diferentes. Um sentido é positivo; o outro, negativo. Lewis os usa para devolver a
acusação: “Sou maduro, logo posso agir como criança; ao contrário de vocês, que agem como
criança ao tentarem parecer maduros.” E criança que tenta evitar parecer criança é um ado-
lescente.

[Egídio] Mas criança que age como criança é criança.

[Idomeu] Sim. O adulto, o homem maduro, é aquele capaz de diferenciar isso. Não precisa
ficar evitando agir como criança porque sabe a hora de se portar como adulto e sabe a hora de
se portar como criança; quando não, como ambos ao mesmo tempo. É isso que busco. Não só
para mim, mas para meus filhos, também.

[Egídio] Mas por que é tão importante preservar um lado “criança”?

[Idomeu] Espera aí. Só eu falo hoje? Não vais opinar nada?

[Egídio] Gosto de aprender contigo. Quero te ouvir primeiro. Nem toda aula precisa ser
debatida, não?

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[Idomeu] Tudo bem, mas como eu vou saber se não estou falando bobagem?

[Egídio] Tu estás te ouvindo falar. Tu tens que pensar para responder. Isso já é um come-
ço. E sempre podemos voltar ao assunto depois, não?

[Idomeu] Certo.

[Egídio] Até agora, não me parece que estejas falando bobagem.

[Idomeu] Que bom! Mas entre falar bobagem e estar errado tem uma distância…

[Egídio] Tem, mas pára de me enrolar e me diz por que devemos preservar um lado crian-
ça.

[Idomeu] Ao tentar ensinar meus filhos, fico impressionado com o que acabo aprendendo
com eles. As crianças vêem o mundo de uma perspectiva diferente. Quando perdemos nosso
lado criança é como se deixássemos de reconhecer toda uma dimensão do mundo.Crianças
têm imaginação aguçada, uma curiosidade infinita, e uma inclinação de transformar tudo em
brincadeira. Isso são coisas que não podemos perder jamais.

[Egídio] Mas ser criança não é só isso.

[Idomeu] Não. Mas é por isso que amadurecer é importante. Não estou defendendo um
“complexo de Peter Pan”. Longe disso. Tem um ensinamento de São Paulo que gosto muito:
“Experimentai de tudo e ficai com o que é bom”. Deve-se ficar com o que é bom do ser crian-
ça. Crianças confundem alegria e prazer com felicidade; só querem fazer o que lhes dá vonta-
de e quando dá vontade; são impacientes; acham que o universo gira ao redor delas… É preci-
so ensiná-las a mudar isso; mas isso, não aquilo que elas têm de bom.

[Egídio] Mas como?

[Idomeu] Pelo exemplo. Sendo um adulto, um pai, capaz de ser criança quando possível
ou desejável. Chegará a hora em que as crianças entenderão. Nesse momento, não serão mais
crianças. Capaz até de passarem a nos mostrar onde erramos; pelo menos, é o que espero.

[Egídio] Mantermos o nosso lado criança serve até para ensinar as crianças a se tornarem
adultos.

[Idomeu] É o que eu acho. Isso também ocorre com o “pai-rei”, mas às custas do lado
criança. O paradigma é diferente. Acho que perdemos ao nos tornarmos adultos assim.

[Egídio] Será?

(uma criança entre em cena e se dirige aos dois adultos)

[Criança] Papai! Papai! Papai!

[Idomeu] Filho, não é assim que se chega numa conversa. Tu sabes.

[Criança] Desculpa, papai. Com licença. Posso falar?

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[Idomeu] Melhor assim. Podes falar.

[Criança] Eu queria que tu parasses de conversar sobre esse negócio chato de política para
brincar com a gente.

[Idomeu] Egídio, acho que vamos ter que seguir nossa conversa noutra hora. O dever me
chama!

[Egídio] Hahahahaha! Bom seria se todos os deveres fossem divertidos assim. Posso brin-
car junto?

[Criança] Claro, tio! Oooooobaaaaa!!!! Pessoal, o tio Egídio vai brincar conosco também!

– FIM –

Texto publicado na revista HOMENAGEM ÀS CRIANÇAS E À INFÂNCIA


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O fantástico mundo real
Por: Marcelo Gonzaga

O primeiro contato que temos com o mundo da fantasia ocorre, em geral, muito cedo.
Mesmo que não tenhamos a recordação efetiva de ouvir alguém nos contando histórias, é um
evento tão comum que todos concebemos com facilidade, naturalidade e nostalgia a imagem
de uma criança ouvindo uma história antes de dormir.

Colecionar narrativas, tradição tão nobre quanto antiga, perdeu muito de sua importância
e é, em muitos casos, considerada somente um passatempo infantil bastante obsoleto. Um ho-
mem maduro teria – dizem – coisas mais importantes para ocupar seu tempo, e se um jovem
se mostra muito dedicado à literatura imaginativa, dá indícios preocupantes de irresponsabili-
dade e escapismo. [1]

Esse entendimento, por óbvio e respeitável que possa parecer a alguns, é bastante recente.
Para não retroceder a tempos imemoriais, em que os homens registravam histórias nas pare-
des das cavernas, ou aos grandes monumentos erigidos pelos antigos egípcios para contar as
histórias de seus feitos, basta começar pelo exemplo dos gregos. Homero e Hesíodo não eram
lidos, cantados e repetidos como mero divertimento; abrangiam a quase totalidade da vida
grega. Discussões filosóficas, demandas judiciais, ritos religiosos, estudo da gramática eram
alguns dos tópicos extraídos do cânone homérico; o ideal moral da kalokagathia, tão caro para
a grecidade, tem Aquiles como seu máximo representante. O teatro, por sua vez, era tão im-
portante que o comparecimento era compulsório. Édipo rei, Antígona, a Oresteia, As nuvens,
As aves; a comédia e a tragédia suscitavam reflexões e discussões que definiriam decisões polí-
ticas da cidade. E ainda temos Platão, que nos deixou sua filosofia na forma de diálogos.

Os helênicos integraram poesia e drama à vida de forma magistral, mas não foram os úni-
cos a fazer isso. Toda civilização possui um conjunto de histórias que a explica, justifica e nor-
teia; os sumérios – aparentemente – inauguraram a moda com a Epopeia de Gilgamesh, os
hindus têm os Vedas, o Mahabharata e o Ramayana, os japoneses, o Kojiki e o Nihonshoki, os
nórdicos, os Eddas, os maias, o Popol Vuh. Cada uma dessas narrativas, aliada a toda a tradi-
ção nacional, regional e familiar, é responsável por construir um senso de unidade entre todos
aqueles que compartilham dessas histórias. Muitos islâmicos veem o Corão como resposta
suficiente a todos os anseios humanos. A Bíblia, sem prejuízo de sua sacralidade, é a narrativa
mais importante do Ocidente. Essa necessidade narrativa é tão poderosa que mesmo nossa
sociedade, orgulhosa de seu cientificismo e ceticismo, teve que recorrer a um mito de criação:
“No início, toda a matéria estava concentrada num único ponto, minúsculo, até que, de repen-
te, explodiu e deu origem a todas as coisas.” Revestida da aparência de verdade revelada, não
é mais crível do que as alternativas e, convenhamos, bem menos interessante.

Teoria do discurso de Aristóteles


A expressão “necessidade narrativa” não é uma hipérbole, é uma realidade; ao menos se
estiver correta a interpretação do professor Olavo de Carvalho sobre a teoria do discurso de
Aristóteles (e, óbvio, se a teoria de Aristóteles estiver correta.[2] Nela, todo e qualquer discur-
so humano pode se apresentar de quatro maneiras diferentes: o discurso poético, o retórico,
o dialético e o lógico ou analítico. O primeiro é o que dá forma ao conteúdo da imaginação, e
por isso mesmo é o que goza do menor grau de credibilidade; é o discurso daquilo que é pos-
sível. Mas menos crível não significa menos importante, já que ele é a condição de existência
de todos os outros tipos de discurso. O discurso retórico, por sua vez, precisa partir de uma
base comum para tratar daquilo que é verossímil. A verossimilhança, ou seja, a aparência de
verdade, é suficiente para sua finalidade: convencer alguém de algo. O discurso dialético, mais
minucioso, não se contenta com uma crença comum; seu objetivo é depurar o pensamento,
crença ou conceito até que ele seja provável, normalmente mediante objeções e comparações.
Finalmente, temos o discurso lógico, que trata do certo a partir de premissas já previamente
admitidas como certas.

Importante ressaltar que algo pode ser só possível. Contudo, não pode ser certo, nem
provável, nem verossímil sem ser também possível. Toda nova possibilidade aberta é todo um
universo de novas causas, consequências e relações até então ignoradas. Se ninguém conside-
rasse possível voar, nenhum esforço teria sido feito nesse sentido. Se Emma Bovary não gas-
tasse seu tempo lendo romances sentimentais e folhetins, talvez não enxergasse no adultério
uma alternativa à sua infelicidade (penso no que aconteceria se Flaubert lhe tivesse oferecido
a leitura de Tristão e Isolda, ou melhor, a história de Ana Bolena). Alonso Quijano, depois de
uma boa quantidade de romances de cavalaria, resolve adotar o nome D. Quixote de la Man-
cha e sair à procura de aventuras dignas de seus heróis. Aos descrentes, trago o exemplo da
escritora nigeriana Chimamanda Adichie; ela conta que começou a ler e escrever muito cedo,
e suas primeiras histórias tratavam de conversas sobre o frio e a neve entre meninas loiras
de olhos azuis, apesar de nunca ter tido contato com nada disso. Sua imaginação era moldada
mais por aquilo que lia do que pelo que vivia.

Ninguém está imune ao poder das narrativas porque nossa própria biografia é vista dessa
forma. Justamente por isso o poder de uma história pode ser devastador. Otelo acabou ma-
tando Desdêmona por ter acreditado na trama de Iago (Bentinho, em Dom Casmurro, fica
impressionado com a peça e sai transtornado, certo da culpa de Capitu); imagino quantos

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não teçam ardilosas vinganças por um mísero lenço desaparecido. Possibilidades são constan-
temente criadas – ou eliminadas – no trabalho com a imaginação. Considerem que nunca se
tratou tanto e com tanta leviandade de política quanto nos últimos tempos; curiosamente, a
literatura utópica e distópica, gênero quase inexistente antes da Modernidade, lotam qualquer
livraria. Um estudo constatou que mais de 700 romances desse tipo são publicados na Rússia
pós-soviética por ano. [3] Best-sellers como Jogos Vorazes e Divergente, e suas respectivas
versões cinematográficas, têm ainda um agravante: são protagonizados por adolescentes.
Após o contato com essas histórias, vários salvadores-mirim se enchem de audácia, prontos
para matar ou morrer por uma grande causa.

Paradoxalmente, uma história pode restringir a imaginação ao invés de ampliá-la. Essa


suposta contradição pode ser resultado do acúmulo de incontáveis narrativas idênticas, ou do
profundo envolvimento emocional a uma narrativa específica, rejeitando todas que a amea-
cem. O segundo caso é o mais simples de entender, mas mais difícil de resolver. É a negação
da prudência, a alternativa do fanático. Javert, o inspetor de polícia da obra de Victor Hugo,
recusava-se a acreditar na possível bondade de um criminoso; Jean Valjean, por um encon-
tro fortuito, era a exceção à regra. Apesar dos inúmeros indícios dados por Valjean ao longo
da história, Javert precisou ficar à mercê de seu nêmesis para reconhecer que poderia estar
errado. A consciência da precariedade de seu sistema de crenças foi insuportável para ele, e
suicidou-se pouco depois.

A perfeita coincidência entre realidade e imaginação só existe para Deus, e desejar que a
realidade se adeque às nossas preferências particulares é de uma arrogância sobre-humana,
angelical até. O leitor, ao contrário das personagens, tem acesso aos pensamentos e sentimen-
tos dos envolvidos na ação, e sabe perfeitamente suas intenções; isso nos mostra que Javert
é um homem fanático, mas muito honesto e orgulhoso de sua função, Valjean é um homem
arrependido que tenta, a todo custo, ser bom, Fantine é uma moça ingênua que tomou péssi-
mas decisões, Cosette é uma moça que, apesar de uma infância difícil e traumática, consegue
ser feliz, Marius é um revolucionário irresponsável que aprende a ser mais prudente, o bispo
Myriel é um homem santo, e o casal Thenardier é criminoso e inescrupuloso. Não são forças
cósmicas em conflito, como Javert (e muitos como ele) julgava; são simplesmente humanos
sendo humanos, com mais ou menos sucesso na empreitada. Mesmo a correta administração
da justiça, tão almejada pelo inspetor, exige que se veja a coisa tal como ela é, e não a partir de
estereótipos prontos e convenientes.

A outra alternativa – a repetição temática – é mais problemática, porque toda fofoca de


senhoras, toda briga de bar, todo relato de passeio é uma história, e nós somos continuamente
saturados de histórias ordinárias. Se, somando-se a isso, dedicamos o pouco tempo disponível
a consumir mais delas, nossa imaginação fica viciada, e não conseguimos distinguir o essen-
cial do transitório.

Harry Potter, que não tem nada de inocente, [4] pode ser resumido como a história de um
pré-adolescente deslocado que se descobre especial; vai à escola, faz amigos e inimigos, vive
aventuras e volta para casa. É praticamente O Diário de um Banana, mas com magia. Tam-
bém pode ser lido como a versão antropomórfica d’O Patinho Feio, com a dualidade trouxas-
-bruxos. Apesar de seguir a estrutura da “Jornada do Herói,” parece algo artificial. Star Wars,

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O Hobbit e O Senhor dos Anéis, por exemplo, o fazem de forma mais fluida e palatável; mais
crível, se preferirem. Odisseias fazem bem para a saúde; elas nos mostram que a vida pode
ser muito mais do que insistem em dizer. Só cuidado para não confundir dramas humanos
profundos e verdadeiros com problemas pequenos e mundanos disfarçados por efeitos espe-
ciais.

O homem comum vive preso à ilusão da vida ordinária, e isso o torna extremamente vulne-
rável a apelos retóricos; incapaz de imaginar opções diversas das oferecidas pelo senso co-
mum, sua vontade é facilmente dirigida. A dialética não tem utilidade alguma, porque o mito
a que se agarrou já é expressão mesma da verdade, confundindo-se com um postulado lógico.
Não é de espantar que alguém nessas condições entenda que o mundo já foi exaustivamente
interpretado, e o que vale, agora, é transformá-lo. O único jeito de escapar para a realidade
é desenvolvendo a imaginação. O primeiro passo é um dos mais difíceis, pois envolve o reco-
nhecimento da insipiência do gosto pessoal: comece a ler boa literatura.

As grandes obras literárias são aquelas que vão educar nossa fantasia. Depois desse trei-
namento, estaremos aptos a absorver coisas mais duvidosas, que sem sombra de dúvida
possuem seu charme especial. O outro ponto exige ter boa vontade no momento da leitura, a
chamada suspensão de descrédito. Levantar objeções a cada página ou cena impedem que se
extraia algo de produtivo; aproveite a experiência como se não existisse nada de mais verda-
deiro no mundo, e deixe a análise para depois. É como não ler a Divina Comédia por rejeitar a
cosmovisão cristã; perde-se uma riquíssima reflexão sobre a alma humana – e uma experiên-
cia gráfica impressionante – por um motivo literariamente irrelevante. Esses dois passos são
suficientes para que a fantasia comece a operar sua função desanuviadora na mente e acabe
com muitas das ilusões verossímeis que carregamos. Se isso não for incentivo suficiente,
aproveitem o deleite estético que uma boa história sempre proporciona.

1 C. S. Lewis deu uma contribuição inestimável


sobre a palavra “adulto” como termo elogioso: preo-
cupar-se em ser ou não adulto, admirar o adulto, são
sinais próprios da infância e da adolescência; quando
permanecem na meia-idade ou mesmo na juventude,
denotam inequívoco retardamento mental.

2 Cf. Aristóteles em Nova Perspectiva: Introdução


à Teoria dos Quatro Discursos.

3 The Post-Soviet Politics of Utopia: Language,


Fiction and Fantasy in Modern Russia.

4 Recomendo o comentário de Roger Scruton


sobre a obra do bruxinho.

Texto publicado na revista TRIBUTO A OLAVO DE CARVALHO 58


Humor
O Brasil precisa de falta de seriedade
Por: Paulo Sanchotene

Precisava falar com um amigo, e ele estava na espera do médico. O assunto não levou 15
segundos para ser tratado, mas o papo, como de costume, se alongou e descambou para um
festival de bobagens. Lá pelas tantas, ele comenta algo assim:

– Se o brasileiro usasse a criatividade para resolver problemas, ao invés de fazer piadas, o


país não estaria neste buraco.

Como convém quando conversamos, fui obrigado a contestá-lo. Afinal, fazer piadas é a
melhor maneira de resolver problemas. Seguindo o script dos nossos encontros, ele retrucou.
Trouxe o fato de países com povos bem-humorados normalmente serem cheios de questões
sócio-econômicas graves. E me desafiou:

– Qual seria a solução? Colocar o Tiririca no Congresso?

Respondi-lhe que não vejo problema algum ter palhaços no Congresso. Nossos líderes po-
líticos e nossos burocratas carecem de humor. Infelizmente, são pessoas que se levam a sério
demais; e é nessa seriedade que reside o problema. Meu amigo ouviu isso, gostou, e disse:

– Bah! Isso daria uma tese, não? O humor na política… Precisamos escrever sobre isso.

A idéia dele é boa, mas o trabalho não poderia ser só sobre isso. Uma tese teria que falar
também do deboche no espaço público — o que não deixa de ser humor na política; apenas
trataria política de modo mais amplo. Disse-lhe que se fôssemos escrever (ou quando fôsse-
mos escrever) meu título para tal estudo seria “As Virtudes da Falta de Seriedade”.
– Mas aí não correríamos o risco de sermos mal recepcionados?

Esse meu amigo é um eterno otimista. Desde quando nós somos bem recepcionados?!
Nosso histórico é um festival de mal-entendidos, de bolas-foras, de coisas ditas e feitas fora de
hora, fora de lugar, fora de tom… É evidente que nos tornamos amigos, e é evidente que um
trabalho desses será mal compreendido.

Afinal, como saber se um trabalho desses é sério ou não é sério, ou o que, dentro do traba-
lho, seria sério e o que não seria sério? A chave-de-leitura estaria na epígrafe. O trabalho já
tem título e epígrafe!

– Está quase pronto!

Na verdade, ainda falta muito; o que é bom — desculpa perfeita para mais conversas. Até
por isso que o trabalho, acho, nunca ficará pronto… Pelo menos, já tem tema, título e epígrafe.
A frase que abriria o estudo seria: “O contrário de ‘engraçado’ não é ‘sério’, mas ‘sem-graça’.”
(G.K. Chesterton)

A frase, aliás, é muito melhor em português do que no original em inglês. Afinal, “engraça-
do” significa “estar tomado de graça”; o oposto de “sem-graça”. O bom humor é inspirado; é
divino. Nada pode ser mais sério do que isso.

Espero que a consulta do meu amigo no médico não demore muito…

(Uruguaiana, 20.12.2016)

Texto publicado na COLUNA SEMANAL 60


Zoeira: o deboche como virtude ou brasil: filho de Hermes (Mercúrio)
Por: Paulo Sanchotene

Ela é, de fato, libertadora em qualquer tempo e lugar. Porém, se ela mostra-se revolucio-
nária para outros povos, deveria ser fato público e notório que, no Brasil, não há nada mais
conservador que a zoeira.

A zoeira gradativamente tornou-se o lubrificador social no Brasil, o elemento unificador


nacional, a forma de relação entre as pessoas, grupos sociais e instituições estatais e particula-
res, nosso elo de amizade, a expressão da nossa liberdade. Exemplos abundam (com trocadi-
lho). Levar-se muito a sério pode até ser algo bem gaúcho, os argentinos estão aí para não me
deixar mentir, mas é a atitude mais anti-brasileira possível.

No nosso país, por mais paradoxal que seja aos não-iniciados, não há possibilidade de or-
dem política sem zoeira. A experiência brasileira é demonstrativa que uma comunidade políti-
ca, como qualquer outra, tem por base a amizade. Afinal, a zoeira só é possível entre amigos.
A ordem política brasileira é dependente do bom exercício da zoeira. Até porque, sem ordem,
a zoeira perde o sentido.

Polidez e cortesia são ferramentas para tratar com pessoas desconhecidas, quando não há
intimidade. São formas de se demonstrar distanciamento social. Por outro lado, é através do
deboche que amigos verdadeiros se tratam mutuamente. A zoeira, portanto, é um sinal de
aproximação, de amizade, e de amor.

Sentir-se ofendido pelo deboche é uma maneira de dizer: “Não sou seu amigo.” Tal ato,
essencialmente anti-brasileiro, é uma manifestação do pior dos pecados políticos.
O deboche público promove virtudes. É igualitário; significa “tu és igual a mim”.

Como convite para a retribuição debochada, é capaz tanto de promover humildade, naque-
les em posição social superior, quanto de promover coragem, naqueles em posição social infe-
rior. O deboche, pois, tem o poder de rebaixar quem esteja inebriado pela vaidade e de elevar
quem esteja soterrado em auto-depreciação.

Entre Apolo e Dionísio, o Brasil é melhor descrito por Hermes: o deus dos pastores e dos la-
drões, dos túmulos e dos mensageiros, antigo deus da fertilidade; transgressor e preservador
dos limites. O deus grego da zoeira.

Nesta época em que celebramos nossa secessão do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algar-
ves, proponho um brinde: ‘A Hermes!’

Texto publicado na COLUNA SEMANAL


62
O humor salvará o Brasil
Por: Bruna Torlay

Em 2011, Gregory Wolfe, a fim de recuperar o humano em uma era ideológica, resolveu
embarcar numa ampla, profunda e linda fundamentação do juízo segundo o qual a beleza
salvará o mundo. A frase é de Dostoievski, e ele estava coberto de razão. Mas não vejo nos bra-
sileiros um apurado senso do belo em sua plenitude. Vejo mais uma inclinação predominante
a um aspecto especial da beleza. O humor. Significa dizer que, se a beleza salvará o mundo, o
humor salvará o Brasil.

Recorde você, a depender de sua idade, os tipos humanos elaborados por Chico Anysio
ou as esquetes impagáveis, mesclando registro do burlesco a linguajar adolescente, do mais
recente Hermes & Renato. A base do riso é o consenso prévio com relação ao assunto evoca-
do. Onde há riso, reside algum aspecto do consenso. Significa dizer que, quando falta humor,
sobra divisionismo. Mais dividida a sociedade, menos propensa a unificar-se num instante
diante do belo – ou do riso, esquecendo as diferenças diante de UM, ao menos UM ponto de
consenso.

A beleza salvará o mundo porque está acima de todo olhar que nela se perde; que nela reco-
nhece o eterno que paira, solene, sobre a miséria nossa de cada dia. O humor salvará o Brasil
porque funde, num espasmo peculiar de alegria, a compreensão recíproca entre os participan-
tes do discurso em cena.

Os partidos não salvarão o Brasil. Esse político não salvará o Brasil. Aquele prometido não
o fará tampouco. Apenas o consenso moral é ele mesmo a semente de uma harmonia social
possível. E bem, considerando que nosso problema atual mais esdrúxulo é desejar com toda
a alma apedrejar o adversário político da vez, resta ao humor salvar o Brasil; afinal, a única
relação saudável entre um povo e seus políticos é aquela atravessada pelo humor.

Sócrates não debochou dos sofistas à toa. Ele tinha um ponto: costurar o laço entre o dis-
curso, a fala — instrumento do acordo — e a verdade. Com vendedores de mentiras no cami-
nho, dificilmente a restauração que ele procurava estabelecer seria viável.

Enquanto tantos de nós cedermos à insanidade de crer cegamente nos vendedores de ilu-
sões que prometem a salvação nas próximas 72 horas, estaremos perdidos. A partir do mo-
mento que mudarmos o canal para a sátira feita por humoristas a respeito desses pilantras,
acharemos o remédio necessário.

Dostoievski estava certo ao dizer que a beleza salvará o mundo. De minha parte, contudo,
insisto que apenas o humor salvará o Brasil.

Texto publicado na COLUNA SEMANAL


64
Política
As palavras que usamos: Direito
Por Bruna Torlay

(di.rei.to) a. 1. Que fica à direita de quem está olhando de frente (braço direito; olho direito)
2. Que é mais hábil com a mão, pé ou perna direitos; DESTRO 3. Que é reto, linear; DIRE-
TO 4. Cujo comportamento é considerado honrado, louvável etc. (rapaz direito); CORRETO;
HONESTO 5. Que é justo, correto; CERTO: Não foi uma atitude direita, mas ainda dá para
corrigir. 6. Com boa aparência; ARRUMADO; COMPOSTO: Seu cabelo não está direito. sm.
7. Aquilo que é justo e certo 8. O que deve ser possível a cada um na vida em sociedade, e de
acordo com suas leis, sua ética etc.: O direito é todos terem acesso à saúde e a uma boa edu-
cação. 9. Poder, prerrogativa legal: Ter acesso à educação e à saúde são direitos do cidadão 10.
Autoridade ou prerrogativa de cobrar algo para si: Ela chegou primeiro, tem o direito de esco-
lher o lugar. 11. Autorização de poder superior (ger. para o exercício de uma atividade): Com
o diploma adquiriu o direito de advogar. 12. Ciência das normas e leis que regulam a vida em
sociedade, ou um de seus aspectos (direito comercial; direito penal) 13. Ciência que estuda as
leis das sociedades, individual ou comparativamente: Formou-se em direito. 14. O lado de um
tecido, roupa, colcha etc. que foi feito para ficar exposto adv. 15. Bem, corretamente, normal-
mente: Fez a tarefa direito, com atenção e capricho.: Ande direito, não arraste os pés!. [F.: Do
lat. directus. Ideia de ‘direito’, usar pref. ort(o)-.]

É fato conhecido que o direito romano constitui um dos pilares da civilização ocidental. É
necessário, portanto, compreender a essência do direito romano e que pontos fortes o torna-
ram tão sólido como tradição.
O senso comum entende que praticar o direito tem algo a ver com buscar a justiça. Jovens
desprovidos de cultura clássica, mas de alguma forma exasperados em contribuir para que se
faça justiça, tendem a sonhar com faculdades de direito. Indivíduos que praticam arbitrarie-
dades (agem conforme sua conveniência particular, e não conforme a justiça) usando a toga
de juiz escandalizam até um vendedor ambulante que nunca ouviu falar de Cícero. A sede do
homem comum por ver o errado ser punido e o certo, respeitado, é curiosamente constante
ao longo da bizarra história do mundo.

Aristóteles invoca a virtude da justiça como pilar da própria política, ou gerenciamento da


vida em comum. O filósofo grego define essa virtude como a capacidade de dar a cada um o
que lhe pertence, independentemente de sentimentos com respeito ao conflito em análise.
O homem justo é aquele que reconhece tanto o mérito de alguém que lhe desagrada; quanto
o crime da pessoa que lhe agrada. O homem justo é aquele que não confunde amizade com
justiça, e sabe que, se não podemos ser amigos de todos, pelo menos é possível agir bem com
o próximo quando se é justo com qualquer pessoa.

Esse tipo de atitude mantém sociedades apaziguadas; conflitos resolvidos; ânimos sacia-
dos. Onde há justiça, há pacificação. O direito surge como instrumento político inspirado na
prática dessa virtude. As leis, portanto, são regras que auxiliam cidadãos a julgar os conflitos
conforme o que é justo, e não conforme a sua conveniência.

Cícero, o advogado brilhante e teórico da justiça, escreveu uma obra chamada “Das Leis”
para explicar as três maneiras que orientam o agir correto das pessoas: a racionalidade, os
costumes e as leis. Ao se refletir sobre o certo e o errado, o justo e o injusto, alcançamos uma
noção perene de direito, que vale em todos os tempos e para todas as pessoas. O nome dessa
noção é Direito natural, até hoje definida como:

Direito natural: Jur. Conjunto de regras e doutrinas fundamentadas no bom senso, na sen-
sibilidade para com a natureza humana, na equidade, e, portanto, não dependente de circuns-
tâncias em sua adequação e sua prevalência em sistemas jurídicos

A segunda parte da obra de Cícero contempla a segunda maneira que orienta as decisões
das pessoas ao enfrentar conflitos: os costumes dos antepassados, cristalizados em tradições e
consoantes à sua religião. Cícero vivia em Roma e faz uma análise acurada das principais re-
gras de conduta extraídas da religião romana. Na história do direito, essa orientação se define
por:

Direito consuetudinário: Jur. Conjunto de normas não escritas baseadas nos usos e costu-
mes dum povo; direito costumeiro.

A terceira e última parte dessa obra fundadora sobre a essência do direito aborda, final-
mente, as cartas de leis que os povos elaboram a fim de sistematizar o trabalho dos juízes e
informar com clareza a população sobre o conjunto de atos não toleráveis naquela comunida-
de. A esse conjunto de regras damos o nome de direito positivo (porque se afirma o dever dos
cidadãos; e se afirma a consequência atrelada aos crimes não tolerados), também designado:

Direito normativo: Jur. Conjunto de normas obrigatórias impostas pelo Estado, que inclui

66
o direito escrito e o consuetudinário; direito positivo, direito objetivo.

Enquanto o Direito consuetudinário se distingue de comunidade para comunidade, o Direi-


to natural é um horizonte comum entre povos de costumes distintos, porque exprime a es-
sência da justiça, noção anterior às leis escritas pelos homens, assim como aos costumes que
se consolidam ao longo do tempo. Por isso, Cícero chega a interpretar o Jus gentio romano
(direito aplicável aos estrangeiros que tinham tratados com Roma) como extensão do Direito
natural. Na prática, o Direito das gentes, hoje designado “direito internacional”, é uma espécie
de meio caminho entre direito natural e direito positivo.

[…] O jus gentium romano passou a aplicar-se àquelas relações en-


tre os estrangeiros (peregrini) entre si e com os cives romanos. Tra-
tava-se de um conjunto de ordenações cujos destinatários eram seres
humanos, não organizações políticas. Além disso, consistia num direi-
to intra gentes, não inter gentes. A partir de 242 a.C., era ministrado
por um praetor peregrinus, uma figura itinerante; fator que permitiu
que seus editos pudessem harmonizar propostas culturais e tradições
jurídicas distintas. O pretor precisava, pois, privilegiar os acordos re-
ais, não os vínculos formais, a substância, em vez da forma, pois esta é
própria de uma só comunidade e não se pode universalizá-la com faci-
lidade. Nos contratos, deveria privilegiar a volutas, o consensus, ain-
da que a forma fosse precária. Essa qualidade destaca-se do restante
do direito romano. Mesmo nos seus primórdios, já se delineia a tarefa
fundamental desse ramo: “governar as relações entre os ‘estranhos’,
entre seres que não pertencem à mesma tribo, ao mesmo clã, à mesma
nação, à mesma cultura, mas que compartilham somente uma humani-
dade comum”. O jus gentium encerra consigo a exigência de um direito
universal, de um direito que deveria ser, em princípio, aceito por todos
os homens, deveria ser um ramo não nacional, mas aberto à diferença.

Esse ramo pertencia, de fato, ao Direito Positivo, mas diversos ele-


mentos o aproximavam do Direito Natural. Como o orgulho romano
impedia que se adotasse, de maneira direta, regras jurídicas externas,
o jus gentium recepcionava e reelaborava os usos e costumes dos ou-
tros povos. Introduziu-se assim um corpo de jus aequum, que pouco
tem a ver com a doçura ou a mitigação dos rigores da lei – conforme
uma definição bastante corrente, no Brasil, de eqüidade. Tratava-se
antes de uma preferência pela vontade real, em vez de uma fórmula
instrumental; uma exigência de universalidade para favorecer a comu-
nicação. Ademais, a noção de bona fides, de fidelidade com a palavra
empenhada, ocupava posição central. A boa fé revela-se fundamental
para a estabilidade e perenidade das relações comerciais e constitui
uma garantia de credibilidade pessoal. Além de relações comerciais,
Roma estabelecia com os estrangeiros relações de patronato, amicitia
e hospitium. O jus gentium, assim, ocupava-se também da preservação
dos mores. Esses conteúdos éticos tornavam o Direito das Gentes mais
próximo do Direito Natural do que do Direito Positivo.

67
MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. O Direito das Gentes:
entre o direito natural e o direito positivo. Revista Jus Navigandi

O abstracionismo cada vez mais radical das teorias políticas e jurídicas modernas, soma-
do ao surgimento dos Estados Nacionais, apartaram o atual direito internacional do clássico
Direito das gentes, que predominara ao longo de toda a Idade média, com análises sofisticadas
quanto à soma de conteúdo ontológico, ético e instrumental que o perfaziam.

Quanto mais os Estados se tornam maiores que os indivíduos no plano chamado realidade,
mais abstrato se torna o direito; menos voltado à relação entre as pessoas e a noção universal
de justiça, e mais afinado à noção abstrata de Estado consolidada por Hegel, cujo pensamento
se assemelha a um trator geral apto a esmagar almas singulares.

O advento das Constituições sociais no final do século XIX (que aportam por aqui durante o
Estado Novo getulista), cuja característica é listar o [imenso] conjunto de deveres de um Esta-
do para com a população, seja qual for a escolha dos indivíduos que a constituem, por dirigir-
-se mais a um ente abstrato (estado) que a seres-humanos concretos (pessoas capazes de agir
de modo justo ou injusto), acaba diluindo o direito natural como horizonte da Justiça.

Consequentemente, o direito positivo, sempre falho e particular, já não é passível de cor-


reção, e os seres-humanos justos são relegados a um detalhe insignificante, e não mais uma
inspiração, no que diz respeito ao ofício do Judiciário.

Texto publicado na Revista ESPECIAL ROMA


68
A morte da verdade e o império da desinformação
Por: Ronaldo Mota

Ou a vida na era que recusa Aristóteles e aclama a mediocridade sorrateira dos sofistas

“Se bem que, pensou ele ao reajustar os números, aqui-


lo nem falsificação era. Tratava-se apenas de substituir um
absurdo por outro. Quase todo o material com que lidavam
ali, no Ministério da Verdade, era desprovido da mais ínfi-
ma ligação com o mundo real - faltava até o tipo de ligação
contido numa mentira deslavada. As versões originais das
estatísticas não eram menos fantasiosas que suas versões re-
tificadas. Na maioria das vezes, Winston e seus colegas eram
simplesmente obrigados a tirá-las da cartola.”

George Orwell, 1984

Graças à discussão entre Donald Trump e um jornalista da CNN, em fevereiro de 2017, a


expressão “fake News”, ou notícias falsas, tomou conta do imaginário nos EUA e no Brasil
de modo especial. Atualmente, temos até o Inquérito das Fake News e a CPI das Fake News!
Quando Donald Trump acusou a CNN de forjar notícias falsas, o seu “you are fake news” foi
recepcionado pelas massas como uma realidade incontestável: a mídia profissional mente e
manipula.

Os grandes meios de comunicação rapidamente perceberam a recepção positiva dessa acu-


sação por parte das pessoas e não demoraram a reagir. Logo, tornou-se habitual que jornais
rotulassem como inimigos da liberdade àqueles que criticavam a grande mídia e, muito rapi-
damente, apoderaram-se da expressão “fake news”, inicialmente usada contra eles por perfis
pessoais na internet, passando a aplicá-la, ad nauseam, às mídias sociais.

Mas o que tudo isso tem a ver com o legado grego na cultura ocidental? Na verdade, infeliz-
mente, eu diria que tem mais a ver com a perda de valores que o mundo grego legou ao Oci-
dente. Aliás, o mais intrigante de tudo é que, mesmo repudiando valores do mundo grego, o
Ocidente sempre retorna, de alguma forma, a problemas que já foram discutidos pelos gregos
centenas de anos antes de Cristo.

Segundo Giovanni Reale e Dario Antiseri:

“Seja como termo, seja como conceito, a filosofia é consi-


derada pela quase totalidade dos estudiosos como uma cria-
ção própria do gênio dos gregos.”.

Não apenas de modo genérico, mas de modo muito concreto e específico, o pensamento
grego foi fundamental para o surgimento daquilo que chamamos de Civilização Ocidental.
E dentre os pensadores gregos um, acima de todos, formulou de forma magistral princípios
fundamentais para se entender o ser humano e o mundo. Sobre esse pensador, G. W. F. Hegel,
em suas Palestras sobre a História da Filosofia, afirmou:

“… ele é um dos mais ricos e universais (profundos) gênios


científicos que jamais existiu, um homem ao qual nenhuma
época pode pôr ao lado um igual.”.

Dante Alighieri, no IV canto do Inferno, o descreveu desse modo:

traemmoci così da l’un de’ canti,

in loco aperto, luminoso e alto,

sì che veder si potien tutti quanti.

colà diritto, sovra ‘l verde smalto,

mi fuor mostrati li spiriti magni,

70
che del vedere in me stesso m’essalto.

poi ch’innalzai un poco più le ciglia,

vidi ‘l maestro di color che sanno

seder tra filosofica famiglia.

tutti lo miran, tutti onor li fanno:

(inferno, iv, 15-20; 130-133)

Era Aristóteles, seguido por Sócrates e Platão, aquele a quem o príncipe dos poetas italia-
nos descrevia desta forma. E não podemos afirmar que seja mera figura de linguagem, típica
de textos poéticos, pois aquele consagrado pelos medievais como Doctor Angelicus, Tomás
de Aquino, em todos seus escritos indicava os pensadores gregos cada um pelo seu primeiro
nome, abrindo apenas uma exceção para Aristóteles, a quem chamava, invariavelmente, de o
Filósofo.

Aristóteles

Como afirma Giovanni Reale, em sua monumental tradução comentada da Metafísica de


Aristóteles:

“De fato, aristóteles apresenta o próprio nascimento do


pensamento filosófico com os pré-socráticos como um adven-
to do logos que se substitui ao mito na explicação das coisas.
e, com efeito, é justamente esse o modo pelo qual a filosofia
entendeu no passado e entende ainda hoje a própria identida-
de, sem exceção.”.

É realmente incrível o poder intelectual que esse pensador grego, que viveu há mais de 300
anos antes de Cristo, exerce sobre o Ocidente e sobre o Mundo.

“O certo é que, em seu conjunto, a lógica ocidental tem


suas raízes no organon de aristóteles, que, portanto, como
dizíamos, continua sendo um marco na história do pensa-
mento ocidental.”.

Enfim, poderíamos coletar centenas de afirmações de filósofos e de eruditos comprovan-


do a importância de Aristóteles para a formação da Civilização Ocidental. Todavia, o que nos

71
importa no momento é o conceito de verdade que encontramos em sua Metafísica, pois ele
nos permitirá avaliar com mais profundidade toda essa tragédia vivida hoje pelo Ocidente, o
império da desinformação.

A verdade

Segundo Aristóteles, verdadeiro é dizer que o ser é ou que o não-ser não é. A afirmação que
se encontra no IV livro da Metafísica é cristalina e deixa claro que a verdade pode se verificar
na expressão de um juízo justo sobre os seres. Por exemplo, se ao ver um homem eu digo ‘isto
é um homem’, estou falando a verdade. Todavia, se ao ver um homem eu digo ‘isto não é um
homem’ estou mentido. No primeiro caso temos a verdade e no segundo, a falsidade. Exa-
tamente por isso, São Tomás de Aquino dirá, no De Veritate, que a verdade consiste na ade-
quação entre a coisa e o intelecto (veritas est adaequatio rei et intellectus). Ou seja, quando o
que pensamos sobre alguma coisa está de fato adequado àquilo que esta coisa é na realidade,
então temos uma verdade.

Este conceito de verdade, que norteia todo o pensamento aristotélico, coadunou com aquilo
que os grandes doutores cristãos entendiam por verdade. Santo Agostinho ensinou que “ver-
dadeiro é o que é”, Santo Hilário afirmou que a “verdade é declarativa e manifestativa do ser”,
Santo Anselmo declarou que “a verdade é a retidão perceptível só pela mente” e, por fim, de
modo magistral Santo Tomás ensinou que a “verdade de nosso intelecto está em conformar-se
com o seu princípio, isto é, com as coisas de que tira o conhecimento.”.

Realmente, é essa noção de verdade, exposta sob vários ângulos pelos cristãos, que decorre
claramente dos ensinamentos de Aristóteles. O conhecimento humano tem início na experi-
ência, que por meio dos sentidos capta as coisas, continua na abstração intelectual, que nos
fornece os conceitos, e progride pelo exercício da razão. O conhecimento verdadeiro, para
Aristóteles e para os cristãos, é o entender, ainda que de modo limitado, as coisas que existem
fora de nós, distintas de nós e independentes de nós. Quando aquilo que penso ou entendo so-
bre as coisas está de acordo com o que elas são de fato, então, tenho a verdade. O homem não
cria a verdade, ele a alcança; o intelecto humano não cria a realidade, ele conforma-se a ela.

Disso decorre, evidentemente, que a informação é boa quando relata a verdade dos fatos,
isto é, quando está de acordo com a realidade das coisas, que não dependem da interpretação
de ninguém e que existem por si. Nesse sentido, um bom jornalista seria aquele que relata os
fatos o mais precisamente possível, independente da interpretação que ele tenha ou prefira
sobre estes fatos. Nesta mesma linha de raciocínio, o melhor comentarista seria aquele que
mais entende a realidade, aquele que melhor entendeu as coisas das quais fala e, por fim,
aquele que as explica melhor para o público que o acompanha. Todavia, não é bem isso que
ocorre em nossos dias…

A morte da verdade

72
“Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que nada
reconhece como definitivo e que deixa como última medida
apenas o próprio eu e as suas vontades.”

Muito antes do nascimento daquilo que costumamos chamar de filosofia moderna, essas
concepções de verdade e conhecimento foram recusadas e criticadas. A filosofia escolástica,
que atingiu seu ápice no século XIII com Santo Tomás de Aquino, começou a ser demolida já
no século XIV, por pensadores como Guilherme de Ockham, por exemplo.

Guilherme de Ockham, discutindo o problema do universais, construiu uma maneira de


ver o conhecimento humano que é expressão de um “dos empirismos mais radicais que se
conhece”. No nominalismo de Ockham não existe mais adequação entre o intelecto humano e
as coisas do mundo. A ideia universal de homem, por exemplo, não se adequa a uma realidade
fora do intelecto humano, ela é apenas um nome inventado arbitrariamente pela nossa mente
para abarcar dados individuais. Desse modo, nada mais nos resta senão a experiência sensível.
O conhecimento em Ockham parece confundir-se com a percepção sensível e o próprio con-
ceito de verdade como adequação é reduzido ao status de mera invenção do intelecto humano.

As consequências lógicas desse modo de ver as coisas virão com o tempo e serão explicita-
das pela filosofia moderna de diversos modos. Ao se negar que as ideias universais correspon-
dam a algo na realidade, muitos pensadores irão concluir que estas ideias são invenções da
mente humana. Portanto, o homem não conhece a realidade de fato e, desse modo, chegamos
ao ceticismo, ao subjetivismo e ao relativismo moderno.

Isso não aconteceu da noite para o dia e nem todos os pensadores trilharam o mesmo
caminho. São séculos de evolução do erro. Partimos de Guilherme de Ockham, passando por
Nicolau de Autrecourt, Francis Bacon, John Locke, René Descartes, David Hume e finalmente
Emmanuel Kant, depois do qual o relativismo triunfou de vez no Ocidente.

Ora, afirmar que a verdade é subjetiva ou relativa é o mesmo que lançar-se no abismo do
ceticismo, onde a verdade não sobrevive. A verdade está morta.

A morte da verdade nos conduz, inevitavelmente, ao espetáculo trágico-cômico do mundo


da desinformação, onde a ditadura do relativismo impera e o diálogo entre os seres humanos
se reduz a mera sofistica.

A grande mídia

“A desinformação tornou-se a peste bubônica da nossa


vida contemporânea.”

Diante desse quadro estarrecedor da morte da verdade no mundo moderno, quando fala-
mos de mídia não podemos esquecer que há inúmeras formas de se convencer as pessoas e al-

73
terar os costumes de uma sociedade sem precisamente lançar-se mão de argumentação direta
ou mentiras. Já Platão, na República indicava o poder formativo das artes bem como a relação
entre elas e o caráter humano:

“Mas também a pintura está cheia delas, bem como todas


as artes desta espécie. Cheia está a arte de tecelagem, de
bordar, de construir casas, e o fabrico dos demais objetos.
em todas estas coisas há, com efeito, beleza ou fealdade. E a
fealdade, a arritmia, a desarmonia, são irmãs da linguagem
perversa e do mau cárter; ao passo que as qualidades opos-
tas são irmãs e imitações do inverso, que é o cárter sensato e
bom.”

E para não ficarmos entre os gênios da antiguidade, cabe lembrar que Albert Einstein, em
sua obra Como vejo o Mundo, afirmou que, para se implantar novos costumes na sociedade
moderna,

“[…] Muito se adquiriu nestes setenta e cinco anos, e mui-


to se propagou graças à literatura e ao teatro.”, “A arte, mais
do que a ciência, pode desejar esforçar-se por atingir o aper-
feiçoamento moral e estético.”.

Sendo assim, nossa abordagem aqui se limitará a uma parte bem pequena dos artifícios
usados para se controlar uma sociedade, imprimindo-lhe novos hábitos e a submetendo a
novas formas de poder. Lembraremos, aqui, apenas do jornalismo.

Leão Renato Pinto Serva, jornalista profissional, em sua tese acadêmica que deu origem à
obra Jornalismo e desinformação, declarou:

“O jornalismo como o conhecemos hoje omite as circuns-


tâncias determinantes dos fatos. Os meios de informação,
portanto, criam clones dos fatos, parecidos com seu objeto
apenas o suficiente para que haja verossimilhança”.

A afirmação é assustadora, mas o autor não atribui isso à interesses escusos dos jornalistas,
necessariamente. Leão Serva passa grande parte de seu estudo analisando processos naturais,
não intencionais, que podem levar à desinformação:

“Esses processos desinformantes são essenciais ao traba-


lho jornalístico. Omissão, sonegação, submissão, deforma-

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ção, saturação, neutralização e redução são consequências do
processo de edição que, embora “naturais”, invertem a voca-
ção expressa do jornalismo: a missão de informar.”.

De qualquer modo, Leão Serva reconhece que há também procedimentos voluntários, por
parte das edições ou dos jornalistas, que produzem uma “percepção alterada” da realidade e
termina concluindo que:

“Por tudo isso, o jornalismo, tal como está disposto nos


meios de comunicação atuais, pratica ao mesmo tempo técni-
cas de informação e de desinformação.”.

Tanto Leão Serva quanto Elisabeth Noelle-Neumann, em sua obra A espiral do silêncio,
procuram preservar, sobre muitos aspectos, a imagem dos profissionais de jornalismo, mas
são obrigados a reconhecer que a mídia interfere na concepção da realidade de seus telespec-
tadores.

Fato é que, para além dessas abordagens mais circunspectas sobre o papel da mídia na
promoção da desinformação, como difusão de notícias que obscurecem os fatos e terminam
por falsear a realidade, existe um tipo de desinformação militante e profissional que está mais
arraigado nas redações de jornais do que se imagina.

Segundo o Tenente-General Ion Mihai Pacepa, militar de alta patente e chefe da agencia
de inteligência romena comunista, que se refugiou no EUA em 1978, a desinformação “é uma
ferramenta secreta de inteligência” e, “de acordo com os manuais de desinformação altamente
secretos” aos quais ele teve acesso, é uma verdadeira ciência.

“A desinformação tornou-se a peste bubônica da nossa


vida contemporânea. Marx usou de desinformação para des-
crever o dinheiro como um instrumento odioso de exploração
capitalista. A desinformação de Lênin trouxe o comunismo
utópico de Marx à vida. Hitler recorreu a desinformação para
retratar os judeus como uma raça inferior e nojenta, de modo
a assim racionalizar o holocausto. Desinformação também
foi uma ferramenta utilizada por Stálin para empobrecer um
terço do mundo e para transformá-lo em uma corrente de
Gulags.”

Esse tipo de desinformação é a profissionalização da mentira e do engano com o objetivo


de se vencer uma guerra, ainda que seja apenas uma guerra política ou cultural. Os artífices
desse tipo de desinformação não têm qualquer apreço pela realidade dos fatos ou pela ver-
dade. Aliás, diga-se de passagem, sequer existem fatos ou verdades para os profissionais da
desinformação. Entretanto, Ion Mihai Pacepa nos faz uma observação muito importante para

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entendermos mais profundamente a natureza desse tipo de desinformação. Segundo ele:

“Existia uma condição principal para que a desinformação


obtivesse sucesso, e era a de que a notícia deveria sempre ser
construída em torno de um “cerne de verdade” que lhe em-
prestaria credibilidade.”

Resumindo, se vai mentir, seja convincente. A mentira precisa convencer e para isso ela
precisa parecer com realidade. Aquele que será desinformado precisa acreditar que a informa-
ção que recebe é real. A aparência de realidade é fundamental para que a desinformação seja
eficaz.

Ora, curiosamente, Aristóteles, no início do IV livro da Metafísica, afirma que “a sofística é


conhecimento aparente”.

Essa constatação de Aristóteles, feita há mais de 2300 anos atrás, por incrível que pareça,
resume em sua essência o problema das fake news que propusemos no início desse artigo.
Afinal de contas, se vivemos num mundo cético, onde a verdade está morta, o que resta ao
discurso humano senão a aparência de saber? O que resta ao discurso humano senão a apa-
rência de conhecimento? O que resta à modernidade relativista senão o discurso retórico
vazio e sofístico?

Sabemos que os sofistas negavam a possibilidade de se conhecer, na medida que, como


Protágoras, negavam a possibilidade de se distinguir o verdadeiro do falso. Aliás, Protágoras,
o mais celebrado entre os sofistas, foi o criador da máxima “o homem é a medida de todas as
coisas”, negando desse modo o conhecimento objetivo da realidade e tendo seu axioma cele-
brado como a “magna carta do relativismo ocidental”.

Graças a Sócrates, Platão e Aristóteles, que refutaram os sofistas, sabemos que essa pre-
missa de Protágoras degenera em negação do conhecimento; sabemos também que aqueles
que negam o conhecimento e a verdade não podem discursar senão sofismando. A mentira é
rigorosamente seu fardo. Um mundo sem verdade é o reino da sofística e todo discurso hu-
mano torna-se apenas uma arma útil na disputa pelo poder, estabelecendo-se assim o império
da desinformação.

Texto publicado na Revista ESPECIAL ANTIGA GRÉCIA


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A certeza política e seus inimigos
Por: Paulo Sanchotene

Cenário: Num parque, dois amigos estão sentados no chão compartindo um mate.

Personagens: Egon e Idomeu

CENA

[Egon] Mas, te digo, é impressionante como não há nada que preste na Esquerda!

[Idomeu] Como assim?

[Egon] Como assim “como assim”?

[Idomeu] Nada presta?

[Egon] Nada.

[Idomeu] Nem ninguém?

[Egon] Olha, é como a história aquela: quando cria a pessoa, Deus oferece três qualidades:
inteligência; honestidade; e ser de Esquerda. Porém, a pessoa pode escolher apenas duas. As-
sim, quem é honesto e de Esquerda, não é inteligente; quem é inteligente e de Esquerda, não é
honesto; e quem é inteligente e honesto, não é de Esquerda.

[Idomeu] Hahahahahahahahaha!!!! Tchê, “se não fosse pela minha modéstia, eu seria
perfeito”!

[Egon] Hahaha!!! É por aí…


[Idomeu] Então, tudo aquilo que não presta é de Esquerda. Certo?

[Egon] Exatamente.

[Idomeu] Então, na Direita, só haveria “gente fina, elegante, e sincera”. É isso?

[Egon] Nah… É política. A Direita está cheia de aproveitadores.

[Idomeu] Está bem. Há, pois, o que não preste na Direita.

[Egon] Sim, mas esses tipos não são de Direita.

[Idomeu] Seriam o quê, então?

[Egon] Parasitas!

[Idomeu] Mas como é que se percebe a diferença?

[Egon] Não te entendi.

[Idomeu] Imagina que eu seja alguém novo na política. Estou perdido ainda, querendo
entender como o jogo funciona. Como eu faço para distinguir quem seja realmente de Direita
dos parasitas que estejam na Direita?

[Egon] Simples. Os parasitas só pensam neles mesmos.

[Idomeu] Hmmmm… Tudo bem. Os que se apresentam afirmando “Vote em mim, para
que eu tenha poder e dinheiro!”, esses são os aproveitadores. É isso?

[Egon] Sério! Só tu para vires com um exemplo desses.

[Idomeu] Sou um novato, perdido ainda na política. Não te esqueças.

[Egon] Certo. Não. Claro que não. Ninguém votaria em alguém assim.

[Idomeu] Se ninguém se apresenta assim, como eu diferencio o parasita de quem não


seja?

[Egon] Fica mais fácil de fazer isso depois de eleito.

[Idomeu] Bah! Espera… Deixa eu pensar… Tranqüilo. Aceito que seja mais fácil. Esque-
çamos a campanha por ora. Digamos que, sem saber a diferença, votei num aproveitador de
Direita, e ele acabou eleito. Observando o trabalho do sujeito, não poderia eu, novato, acabar
ficando com a impressão de que “é impressionante como não há nada que preste na Direita”?

[Egon] Podes, mas seria uma falsa impressão.

[Idomeu] Mas é semelhante à tua impressão sobre a Esquerda. Por que a tua seria verda-
deira? Não haveria uma Esquerda autêntica distinta dos seus parasitas?

[Egon] Existe, mas é como na piada que contei: na Esquerda, ou são corruptos ou estão

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errados; quando não, ambas as coisas simultaneamente!

[Idomeu] Mas quando na Esquerda apontam que o candidato parasita da Direita é um


aproveitador corrupto, ladrão safado, sendo ele isso mesmo, eles não estariam certos?

[Egon] Sim.

[Idomeu] E eu, que votei na Direita, não estaria errado em desacreditá-los?

[Egon] Sim.

[Idomeu] E tu, terias votado em quem?

[Egon] Queres saber se eu teria votado no corrupto?

[Idomeu] Quero.

[Egon] Mas só teria essa opção?

[Idomeu] Sim. É um segundo turno entre um picareta de Direita e um candidato da Es-


querda autêntica.

[Egon] Posso votar em branco?

[Idomeu] Neste meu exemplo, não.

[Egon] Nesse caso…, eu acho… que ainda votaria na Direita.

[Idomeu] Estás reconhecendo que o parasita esse é de Direita.

[Egon] Não. Não estou. Ao menos, ele não é de Esquerda.

[Idomeu] Ajuda-me aqui. Sou novato. Tu és de Direita e votaste no sujeito. Outros tantos
de Direita fariam igual. Como eu, ou qualquer pessoa de fora, poderia perceber tal sutileza?
Afinal, a Direita estaria apoiando esse candidato.

[Egon] Votar não é apoiar.

[Idomeu] Interessante distinção. Aceito-a. Estás dizendo-me, pois, que, após a eleição, irias
para a Oposição junto com a Esquerda.

[Egon] Não. Faria uma oposição à Direita.

[Idomeu] Entendi. Farias como o M.B.L. faz com o Bolsonaro, por exemplo.

[Egon] Tu não te agüentas, não? Precisas sempre vir com bobagem. O M.B.L. é parasita.
Seria totalmente diferente.

[Idomeu] Não é o que eles dizem…

[Egon] Eles que falem as asnices que quiserem. Para começar, liberal é de Esquerda.

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[Idomeu] Liberal como o Paulo Guedes, o Onyx Lorenzoni, o Ricardo Salles… Todos minis-
tros do governo Bolsonaro. Há vários esquerdistas no governo, então. É isso?

[Egon] Havia o Henrique Mandetta e o Sérgio Moro; e o Onyx foi rebaixado.

[Idomeu] Certo. Porém, o Onyx segue no governo, mesmo que à frente de uma pasta me-
nor, e ainda sobraram o Salles e, principalmente, o Guedes. São todos de Esquerda?

[Egon] Não.

[Idomeu] São parasitas?

[Egon] Podem ser…

[Idomeu] Como poderíamos saber isso?

[Egon] Já te disse. Basta comprovar que sejam corruptos ou que estejam contra o governo

[Idomeu] Mas tu mesmo disseste que poderia fazer oposição a um governo de Direita
eleito com teu voto. Como ir contra o governo poderia ser evidência de que alguém não seja
de Direita?

[Egon] Fácil. Este governo é de Direita.

[Idomeu] Este governo? Que tinha Mandetta e Moro até anteontem…

[Egon] Mas saíram!

[Idomeu] Então, o governo não era de Direita, mas agora é.

[Egon] Sempre foi de Direita. Está ficando mais.

[Idomeu] Quando sair o Guedes, então, aí, ficaria completamente de Direita?

[Egon] Pára de trazer o Guedes!

[Idomeu] Mas tu disseste que liberais são de Esquerda…

[Egon] Os liberais que são contra o governo o são.

[Idomeu] Ah! Isso é diferente. Tua definição de Direita, pois, é apoiar o governo.

[Egon] Não. O governo é de Direita, logo apoiá-lo é ser de Direita.

[Idomeu] Mas aí voltamos à questão do M.B.L. Segundo disseste, tu não terias problemas
em fazer oposição de Direita a um governo eleito pela própria Direita. O M.B.L. faz – ao me-
nos, alega fazer – oposição de Direita a um governo eleito pela Direita. Eu ainda não entendi.
Como o teu julgamento seria melhor do que o deles?

[Egon] Ah… Pára! Que pergunta ridícula! Eu já te disse, e, mesmo que não tivesse dito, tu
sabes muito bem por quê.

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[Idomeu] Não sei, mesmo. Formalmente, as situações são idênticas. Estou tentando des-
cobrir como alguém recém chegado na política pode aprender a diferenciá-las. A tua palavra,
certa ou não, eu não sei, é uma. Há quem diga o oposto. Há quem afirme, inclusive, ser a
Direita quem não preste – só tendo corruptos e ignorantes; e que a Esquerda não pode ser
julgada pelos malfeitos de seus parasitas. Como o novato acreditaria em ti ao invés de nos
outros? Por que tu estás certo, e eles, errados?

[Egon] Tchê, por favor, basta ver o resultado do comunismo na História.

[Idomeu] Mas tu disseste que até os liberais são de Esquerda, e podemos concordar que
eles estão longe de serem comunistas. Ademais, a Esquerda fala que esses exemplos não
seriam representativos do que eles defendem, da mesma forma que tu colocas que a Direita
ruim não seria Direita. E ainda há a questão do nazismo…

[Egon] Que “questão do nazismo”? Nazismo não é de Direita!

[Idomeu] Hahahahahahaha! Mas já?! Eu acabei de dizer que tu afirmas que tudo que não
presta não seria de Direita, e tu comprovaste logo em seguida. Mas a Esquerda não pode fazer
o mesmo. Por quê? Qual a diferença entre tu e o sujeito de Esquerda que pensa da Direita o
que tu pensas da Esquerda; que detesta os parasitas da Esquerda, mas os prefere sobre toda a
Direita?

[Egon] Ora, ele está errado!

[Idomeu] Por que ele está errado?

[Egon] Porque sim! Que saco! Tu és de Direita. Tu sabes a resposta!

[Idomeu] Eu acho que sei, mas sempre posso estar errado. É normal que eu esteja errado,
inclusive. Achei que tu pudesses me ajudar a entender por que eu estaria certo.

[Egon] Te ajudo! Segue na Direita que está bom.

[Idomeu] Segundo tua opinião.

[Egon] Sim, e segundo a tua também. Larga de frescura!

[Idomeu] Minha opinião é fraca, e número, apesar de ser um bom sinal, não conclui nada.
Eu converso justamente para mudar de opinião; para melhorar minha opinião. Todavia, até
agora, não conseguiste me convencer sobre o que te faz diferente do M.B.L. ou da Esquerda.

[Egon] Olha… Existem dias em que tu acordas inspirado. Tu ficas insuportável. Esse negó-
cio de usar Sócrates para me convencer que esquerdista, liberal, progressista, comunista, esse
pessoal que jamais aceitaria – são incapazes de – sentar conosco e conversar civilizadamente,
merece nossa consideração é um desrespeito ao Sócrates! Isso não é filosofia. Isso é suicídio!
E, se queres saber, é principalmente uma falta de respeito com todos aqueles que sofreram
nas mãos dessa gente.

[Idomeu] Já ouvi algo parecido de um amigo, mas sobre a Direita.

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[Egon] Boa sorte tentando conversar com eles. Te disse. Não adianta!

[Idomeu] Mas tu acabaste de falar que tampouco adianta contigo. Se tu estás certo sobre
eles, eles não estariam certos sobre ti?

[Egon] Não. Se houvesse a possibilidade, por menor que fosse, de sentar com eles e fazê-
-los perceber o erro, eu não veria problema algum.

[Idomeu] E se eles pudessem sentar contigo e fazer-te perceber o teu erro, será que eles
teriam problema com isso?

[Egon] Mas eu não estou errado!

[Idomeu] Então, qual o receio que tu tens da maiêutica socrática?

[Egon] Pára! Nem vem. Faz isso com eles.

[Idomeu] Mas eu faço com eles. Inclusive conheço gente na Esquerda mais aberta do que
tu.

[Egon] Bom para eles…

[Idomeu] Ótimo para eles, e melhor ainda para mim. Mas, tudo bem, respeito limites.
Como queres, encerro aqui. Posso, contudo, saber o que tu achas do Churchill?

[Egon] Bah! Um herói! Um baita exemplo da luta da Direita contra o nazismo.

[Idomeu] Pois nosso papo me lembrou de uma anedota sobre ele. Não sei se conheces.
Queres ouvi-la?

[Egon] Claro! Pode falar.

[Idomeu] A anedota que eu ouvi é a seguinte: certa feita, na primeira sessão legislativa,
Churchill convidou um jovem novato para acompanhá-lo. Na Câmara dos Comuns, governo e
oposição sentam-se em lados opostos, ficando frente à frente durante as sessões. Churchill e
o novato foram para o setor que lhes correspondia. Já sentados, o novato, observando a mo-
vimentação dos colegas, comentou: “Ah! Então lá é onde sentam os nossos inimigos!” Pron-
tamente, Churchill o corrigiu: “Não, meu caro. Lá, sentam os nossos adversários. Os nossos
inimigos sentam aqui, do mesmo lado que a gente.”

Texto publicado na Revista ANATOMIA DOS INIMIGOS 82


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