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Cidadania e Ética

Cidadania e Ética

1ª edição
2019
Autoria Francesco Napoli
Parecerista Validador Homero Nunes Pereira

*Todos os gráficos, tabelas e esquemas são creditados à autoria, salvo quando indicada a referência.

Informamos que é de inteira responsabilidade da autoria a emissão de conceitos. Nenhuma parte


desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem autorização. A violação dos
direitos autorais é crime estabelecido pela Lei n.º 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Unidade 8
8. A Questão Brasileira

Para iniciar seus estudos


8
Nesta unidade você poderá refletir sobre o que é ser brasileiro e como essa
característica pode fornecer muitas ferramentas intelectuais para pensar
nossa sociedade. Vamos lá?

Objetivos de Aprendizagem
• Identificar as principais características do brasileiro.

• Diferenciar a nossa cultura de outras, em um exercício de analogia.

• Identificar o conceito de jeitinho brasileiro no processo de


construção de sua identidade.

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Cidadania e Ética | Unidade 8 - A Questão Brasileira

Introdução da unidade
Pensar nossas características antropológicas é muito importante para o exercício da cidadania. O Brasil é um país
complexo, repleto de contradições e fonte de muitas teorias que tentam explicar nossa cultura. Nesta unidade,
você conhecerá nossas principais características, de uma perspectiva antropológica, o que lhe possibilitará
ampliar a compreensão de sua própria identidade. Prepare-se para uma viagem a um Brasil que você nunca viu!

8.1 O jeitinho brasileiro

8.1.1 O que é ser brasileiro?

Figura 49 – Mapa do Brasil

Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018.

O historiador e antropólogo Sérgio Buarque de Holanda (1902–1982) elaborou um instigante conceito para
ampliarmos nossa compreensão sobre a identidade brasileira. Trata-se do conceito de “homem cordial”,
desenvolvido no livro “Raízes do Brasil”. Sérgio Buarque afirma que as virtudes elogiadas por estrangeiros, tais
como hospitalidade e generosidade, podem ser vistas como emblemas, que permitem conhecer as identidades
do brasileiro. O termo “cordial”, etimologicamente, compartilha do mesmo campo léxico da palavra “coração”.
Isso demonstra um primeiro passo para entendermos o conceito de cordialidade como algo passional, ou seja,
que dá importância aos sentimentos. Portanto, é um tipo de cordialidade que se dá em um âmbito íntimo, na
esfera privada, em uma relação de oposição à esfera pública, em que há convencionalismo e formalismo social.
O brasileiro tende a ser cordial com seus amigos e família e tem sempre o desejo de estabelecer intimidades,
mas, ao mesmo tempo, tem horror e aversão à formalidade. Sérgio Buarque fala de uma “crise de adaptação
dos indivíduos ao mecanismo social” (HOLANDA, 2002), para se referir ao peso dos vínculos familiares em nossa

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estrutura social. Temos uma espécie de resistência constante ao formalismo social, mas, ao mesmo tempo, temos
uma polidez espontânea, que em outras culturas seria algo forjado, mas que em nós é um jeito natural que se
converteu em padrão. Nas palavras de Sérgio Buarque:

Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode
iludir na aparência – e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em
uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no ‘homem cordial’:
é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso a polidez é de algum modo,
organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo,
podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que
permitirá a cada qual preservar intatas sua sensibilidade e suas emoções (HOLANDA, 2002).

Dessa forma, as relações familiares se estabelecem como o modelo obrigatório de nossa composição social,
havendo uma dificuldade de compreensão da distinção entre as instâncias pública e privada, entre Estado e
família. Esse homem cordial está presente, desde o modo como os portugueses percebiam os indígenas, os vendo
como “ingênuos”, até a nossa cultura atual, na qual os termos “senhor” e “senhora” costumam ser preteridos,
a ponto de incomodar as pessoas que são tratadas com tais pronomes. Tratamo-nos pelo pronome coloquial e
íntimo “você”, preferindo sempre sermos chamados assim, a sermos chamados de “senhor”, mesmo não tendo
intimidade com a pessoa. Normalmente, no Brasil, é comum alguém dizer: “Pode me chamar de ‘você’, não
precisa dizer senhor não...”. Pois o termo “senhor” sugere alguém mais velho e, ao mesmo tempo, carrega uma
forte herança dos quatro séculos de escravidão de nossa história. O senhor de escravos, o senhor de engenho, o
senhor branco com o chicote na mão, sempre representou a “casa-grande” em contraposição à senzala. Nosso
país viveu quatro séculos a partir de uma estrutura social estratificada que coloca cada qual em seu lugar. “Casa-
grande e senzala” é o título de outra obra essencial para compreendermos nossa brasilidade. Escrita por Gilberto
Freyre (1900-1987), ela desmistifica as teses de determinação racial, enfatizando aspectos culturais e ambientais
e refutando a ideia de que a miscigenação teria criado uma raça inferior no Brasil.

O antropólogo brasileiro Roberto DaMatta (1936), em seu famoso livro “O que faz o Brasil, Brasil?”, busca
compreender esses traços de brasilidade, analisando aspectos emblemáticos de nossa cultura, como futebol,
comida, carnaval, trabalho e religiosidade.

Figura 50 – Neymar na copa das confederações em 2013

Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018.

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Segundo DaMatta (1984), o futebol reproduz nossa estrutura social de uma maneira específica, que nos permite
sentirmo-nos representados pelos jogadores de modo mais legítimo que pelos próprios políticos. Pense no
sentimento de nacionalismo. É costume ouvirmos que “o brasileiro só é patriota em época de Copa do Mundo”.
Quando é um feriado cívico, como nossa Independência, em 7 de setembro, ou nossa Proclamação da República,
em 15 de novembro, não temos o hábito de fazer rituais de civismo como os norte-americanos, por exemplo,
fazem, quando do 4 de julho, Independência Estadunidense.

Comparar nossa cultura com outras culturas é um instigante exercício antropológico. Mas deve ser feito sempre
com muita cautela, pois as analogias precisam sempre de contextualização. Comparar nossa cultura com a dos
norte-americanos é algo sempre muito complexo, pois, inicialmente, precisamos pensar esses dois episódios
históricos de modo mais aprofundado, antes de julgarmos, a partir de nosso famoso complexo de vira-lata, que os
americanos são melhores que nós. Sabemos que a independência norte-americana foi uma guerra sangrenta, na
qual os habitantes das colônias do Norte, influenciados pelas ideias iluministas, se articularam para desobedecer
às ordens da coroa inglesa e promoveram uma rebelião, que desembocou na independência.

Posteriormente, o país passou por uma guerra civil, que teve uma segunda vitória do Norte, liberal e minifundiário,
sobre o Sul, conservador e escravocrata, de modo que o discurso democrata, republicano e iluminista prevaleceu.
A independência norte-americana é fruto de mobilização de uma camada considerável da sociedade, de
pessoas brancas e de classe média, motivadas por um ideal de liberdade, igualdade e fraternidade, que está no
imaginário daquele povo de modo muito intenso. Por isso é comum, no dia 4 de julho, em praticamente todas as
escolas de todas as cidades norte-americanas, haver montagens teatrais dos principais episódios da guerra de
independência, em uma constante reverência a seus heróis.

Já no caso da história brasileira, temos um episódio de independência um tanto quanto controverso. Pense: o país
é uma colônia de exploração de Portugal que só fornecia matéria-prima para sua metrópole. Foram praticamente
300 anos, de 1500 até a chegada de Dom João VI, em 1808, nos quais a única coisa que os portugueses
fizeram aqui foi explorar matéria-prima (por meio de monoculturas, como pau-brasil e cana-de-açúcar).
No início do séc. XIX, fugindo de Napoleão e apoiada pela Inglaterra, a corte portuguesa desembarca no Brasil, e
nossa terra é elevada a vice-reino. São criados o Banco do Brasil, Jardim Botânico, Correios, etc., além, é claro, da
“abertura dos portos”, tão desejada pelos ingleses, que insere o Brasil no comércio internacional, quebrando um
monopólio colonial de séculos.

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Figura 51 – Napoleão Bonaparte

Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018.

Depois que Napoleão foi derrotado, a corte portuguesa retorna à Portugal, mas deixa o príncipe herdeiro
Dom Pedro I, que, inicialmente fica com a incumbência de administrar o vice-reino. Pressionado pela nobreza
portuguesa, Dom João VI declara seu desejo de tornar o Brasil colônia novamente, ou seja, rebaixá-lo da condição
de vice-reino, fato que desagrada a nobreza brasileira, que incentiva Dom Pedro a se rebelar. Então, Dom João VI
ordena que Pedro I retorne a Portugal, mas ele desobedece e fica. É o famoso nove de janeiro de mil oitocentos e
vinte e dois, conhecido como o “Dia do Fico”. Mas, aquelas imagens que nos vêm à mente, por terem habitado os
livros didáticos por gerações, nas quais Dom Pedro I, diante de uma multidão, comunica que, para o bem de todos
e a felicidade geral da nação, ele desobedeceu a seu pai. É uma falaciosa romantização. Assim como aquela outra
imagem, na qual Dom Pedro I gritou, às margens do rio Ipiranga, “independência ou morte!”, que também ignora
o fato de o episódio da independência brasileira praticamente não ter tido participação popular.

Figura 52 – Monumento da Independência em São Paulo

Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018.

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Nossa independência foi, na verdade, apenas uma briga de pai e filho, que se deu na esfera privada. Ao nosso povo,
nunca foi dada sequer a possibilidade de ser pensado como nação. Por isso, esse episódio não tem nossa adesão,
diferentemente dos norte-americanos, que veem em seus antepassados uma parcela de responsabilidade por
sua constituição como nação. Até mesmo porque, depois da independência, o Brasil continuou nas mãos das
mesmas pessoas que antes eram os algozes. Um país que era colonizado por portugueses, ficou independente
por meio de um português, membro da corte e com interesses bem distantes daqueles do povo que aqui
habitava. Por isso, quando temos um feriado de 7 de setembro, a maioria de nós não se lembra direito que se
trata da independência. Na verdade, costumamos dizer que, para nós brasileiros, tanto faz se é um feriado civil ou
religioso, nossa preocupação é se haverá um recesso ou não.

De qualquer forma, se faz sempre necessário questionar o significado dessa “independência”, na medida em que
nossa dependência política de Portugal se transferiu para uma dependência econômica da Inglaterra. Inclusive
existiu um episódio, no qual Dom João VI, quando percebeu que não haveria como recuperar sua principal
colônia, impôs uma multa considerada impagável, para seu filho, D. Pedro I. Sua intenção era fazê-lo desistir da
independência e, ao mesmo tempo, atender às reivindicações da nobreza portuguesa, que exigia sua principal
colônia de volta. A Inglaterra, com interesses econômicos na independência brasileira, ofereceu a exorbitante
quantia na forma de empréstimo para D. Pedro, que aceita, e o Brasil se torna independente, a partir de uma
dívida externa impagável e uma dependência política em relação à Inglaterra.

O primeiro dos empréstimos externos feitos pelo Brasil foi obtido no ano de 1824, no valor de
3,7 milhões de libras esterlinas. Ficou conhecido como “empréstimo português”, destinado a
cobrir as dívidas do período colonial, mas que, na prática, significava um pagamento à coroa
portuguesa pelo reconhecimento da independência do Brasil.

Já no futebol, somos capazes de realizar um ritual cívico muito mais legítimo, já que os jogadores normalmente
têm origem humilde, são mulatos, negros, ou seja, são pessoas como nós. Não esses homens brancos que
promovem independências e proclamam a república de acordo com seus interesses. Por isso, durante décadas,
as copas do mundo eram momentos muito importantes de demonstração de amor pela brasilidade. Não aquele
patriotismo, quase ufanista, dos norte-americanos, mas, sim, um amor espontâneo a um jeito de ser, que se
explicita na forma poética de lidar com esse esporte tão técnico.

O futebol é um esporte criado pelos ingleses e, desde sempre, teve sua prática associada a táticas e técnicas.
O Brasil, na sua precariedade, reinventou esse esporte, valorizando as jogadas individuais, o drible, o blefe,
o improviso e a intuição. É nesse sentido que ouvimos que o futebol inglês pode ser comparado à prosa, e o
brasileiro, à poesia. Aquela “malandragem”, traço tão atribuído à brasilidade, se explicita no campo e promove
identificação e representatividade. O jogador brasileiro não quer saber de táticas e essa característica se explicita
em ditados populares, tais como “bola pro mato, que o jogo é de campeonato”. A partir disso, podemos pensar
o quanto aquele 7x1, da Copa de 2014, foi emblemático em nossa história recente, no que concerne à formação
de nossa identidade nacional.

Roberto DaMatta (1984) afirma que o futebol é um esporte que tem as regras muito claras para qualquer brasileiro,
diferentemente da nossa “selva legislativa”, que somente os juristas conhecem e tiram da manga leis de toda
ordem, demonstrando nossa ignorância diante das regras do jogo democrático. Então, de acordo com DaMatta

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(1984), o futebol proporciona uma experiência de representatividade muito intensa, que passa por uma relação
de passionalidade, que se explicita no amor pelo time. Por muito tempo, ouvimos que religião, futebol e política,
não se discutem. Porém, esse ditado, apesar de revelar um traço de nossa cultura, ao mesmo tempo é muito ruim
para a própria democracia. Você pode verificar que, com o advento da Internet e suas redes sociais, a política
se tornou um assunto familiar, que se dá de um modo até então inédito em redes sociais, como o Facebook e o
WhatsApp. Você se vê discutindo política com aquele seu tio de outro estado, coisa que não aconteceria sem a
rede social. Toda essa passionalidade futebolística é transferida para a política, que transforma nossa ideia de
democracia em um jogo de vencedores e perdedores, provocando muitas distorções em nosso entendimento de
o que ela realmente é.

8.1.2 O trabalho

O trabalho também é um fator importante para compreendermos nossa identidade. No Brasil, temos uma
origem católica, que concebe a ideia de trabalho de modo pejorativo, como um castigo. O termo “trabalho” vem
do latim tripalium, que era um instrumento de três paus, utilizado para torturar as pessoas durante o Império
Romano. Portanto, para nós, brasileiros, o trabalho é visto como algo ruim, que se faz na rua e nunca na casa. Não
é à toa que o trabalho de empregada doméstica só foi regularizado, passando a ser considerado pela legislação
trabalhista, em pleno séc. XXI. Em casa não se fala de dinheiro nem se trabalha. Vamos fazer uma comparação com
a noção norte-americana de trabalho: para os estadunidenses, o trabalho tem um fim em si mesmo, gerando o
termo workaholic, para o qual não há um termo que traduza, podendo ser interpretado como alguém viciado em
trabalho.

Essa característica norte-americana, oriunda da formação puritana, que tem origem no calvinismo, acabou
gerando uma noção de que o trabalho é algo sagrado e que todo fruto do trabalho é algo bem quisto por Deus.
Calvino foi aquele reformador religioso, que no séc. XVI, faz uma nova proposta de interpretação dos textos
bíblicos, assim como fizeram com Lutero e Henrique VIII, cindindo a fé cristã, retirando da igreja católica o
monopólio do cristianismo. Calvino discordava da igreja católica no que tange à usura, ou seja, comprar algo e
vendê-lo a um preço superior. Isso era considerado um pecado durante a Idade Média.

Boa parte da burguesia adere ao calvinismo na Inglaterra e é perseguida pelo rei inglês Henrique VIII, que havia
rompido com o Papa e criado, por motivos pessoais, o anglicanismo. Por causa de perseguições religiosas, vários
ingleses migram para as Treze Colônias americanas e se tornam colonos, estabelecendo-se no Norte e herdando
a noção de trabalho como um desejo divino e promessa de prosperidade. Ainda hoje é comum encontrarmos
em discursos de igrejas protestantes o elemento da prosperidade financeira inserido no contexto religioso,
como em adesivos nos vidros traseiros dos carros com a frase “foi Deus que me deu”, o que no catolicismo já
não é bem visto.

Essa noção de trabalho como algo valorizável é fácil de ser percebida em filmes norte-americanos, nos quais uma
pessoa de classe média, em uma bela casa no subúrbio, usa um cortador de grama de última geração, que ele
acabou de adquirir e está fazendo inveja em seu vizinho, ou no diretor de escola, que pinta casas no verão, ou no
jovem de classe média, que trabalha em uma lanchonete.

Já em nossa cultura, pelo peso do legado escravocrata, todo trabalho braçal é considerado inferior e deve ser
feito por outra pessoa. Na década de 1990, a Shell testou no Brasil um modelo de negócio muito comum nos
EUA, o posto de gasolina self service, no qual o motorista desce do carro, põe a gasolina e paga na recepção. Não
houve adaptação desse modelo entre os brasileiros, que sempre preferiam os postos com frentistas. Tal episódio
corrobora essa tese, segundo a qual desvalorizamos o trabalho braçal.

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8.2 As distorções
Para compreendermos melhor essas distorções, precisamos adentrar uma característica muito marcante de
nossa brasilidade. O traço que mais representa nossa cultura brasileira, segundo DaMatta (1984), é a mistura.
Essa facilidade que temos de mesclar coisas díspares e fazê-las funcionar. Segundo DaMatta (1984), tudo no
Brasil é fruto de misturas. Isso vai dos pratos típicos – quase todos os principais pratos típicos das cozinhas de
cada estado brasileiro são baseados em misturas: mexido, feijoada, moqueca, etc. – até nossas etnias, religiões e
estrangeirismos.

Comecemos pensando na mescla de etnias que compõem o povo brasileiro. A miscigenação inicia-se com a
chegada dos primeiros portugueses que costumavam violentar as indígenas. Depois temos o crescimento
vertiginoso do tráfico negreiro, trazendo africanos de diversas regiões e etnias diferentes que, aqui, são
consideradas apenas escravos. Há muito mais miscigenação na senzala do que na casa-grande. Assim, por
mais que não haja como discernir um brasileiro de outros povos, apenas por seus traços físicos, há, na nossa
sociedade, uma prevalência de brancos nas classes dominantes e negros, mulatos, indígenas, etc. nas classes
mais marginalizadas. Essa ausência de um fenótipo característico nacional faz do Brasil um país de muitas caras.
Inclusive, é famoso o boato segundo qual o passaporte brasileiro é o mais falsificado no exterior, pois nele cabe
qualquer foto sem levantar suspeitas.

Em termos de religião, também temos muitos trânsitos, que são incomuns em outras nações. O Brasil assistiu a
um processo de sincretismo religioso que mesclou elementos das mitologias africanas ao catolicismo imposto
pela coroa. O que vemos hoje é um hibridismo que se expressa, por exemplo, nos ritmos afro-brasileiros
tocados durante a procissão de nossa senhora do Rosário em Minas Gerais ou nos orixás baianos, que têm seus
correspondentes nos santos católicos. Muitos brasileiros têm também o hábito de frequentar mais de uma
religião. É comum pessoas serem católicas, mas tomarem um passe espírita ou frequentarem um terreiro de
umbanda. Na verdade, sempre fomos famosos no mundo por nossa tolerância religiosa, fruto desse sincretismo.

Figura 53 – Congado

Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018.

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Outro aspecto de mistura está no modo como nós aceitamos, muito facilmente, palavras estrangeiras em nosso
vocabulário. Nossa relação com a língua portuguesa é um verdadeiro emblema dessa condição. Por ter sido uma
língua imposta, nunca a assumimos de fato. Todo brasileiro tem dificuldades com a gramática de sua própria
língua. Existem certos tempos verbais que não são utilizados na fala coloquial, e o nosso sotaque é, sem dúvidas,
de todos os países de língua portuguesa no mundo, o mais distante do sotaque dos próprios portugueses.
Podemos dizer que reinventamos a língua portuguesa, a ponto de, em softwares ou mecanismos de busca na
Internet, sempre que há uma lista de idiomas para escolher, é possível ver “português Portugal” e “português
brasileiro”, o que não ocorre com Guiné Bissau ou Timor Leste.

Fique atento!

A língua portuguesa é instituída como oficial em Portugal, Guiné-Bissau, Angola, Cabo


Verde, Brasil, Moçambique, Timor Leste, São Tomé e Príncipe e Guiné Equatorial.

8.2.1 Síndrome de vira-lata

É interessante refletirmos sobre essa relação que temos com a nossa própria língua, de modo a questionar um
outro aspecto de nossa cultura, que é a “síndrome de vira-lata”. Temos uma tendência a dizer que as coisas
brasileiras são piores, por serem brasileiras. O próprio termo “importado” é utilizado por nós como um adjetivo
vantajoso. Dizemos: “Veja essa minha caneta nova, é importada!”, como se o simples fato de não ser feita no Brasil
já a colocasse em uma condição de objeto de desejo por provavelmente ter maior qualidade. Quanto tempo não
convivemos com o exemplo do café, que ganhou o selo “tipo exportação” para garantir a qualidade. Ou seja, o
café distribuído no mercado nacional é o pior, e o “tipo exportação”, aquele que iria para o exterior, é melhor. Para
nós, sempre o pior. É esse o complexo de vira-lata.

Ainda pensando a partir do complexo de vira-lata, no que tange à língua portuguesa, dizemos que nosso
desconhecimento de sua gramática se dá por nossa preguiça, falta de inteligência ou precariedade do ensino.
Mas, antes de tudo, podemos dizer que nossa forma de lidar com o português representa também uma espécie
de resistência, na medida em que essa língua nos foi imposta de modo arbitrário, em detrimento de línguas
africanas e indígenas. Ela é a língua do colonizador, do senhor da casa-grande. O português era a língua de
quem estava com o chicote na mão. Então, o sem número de variações que foram introduzidas a essa língua
pode ser interpretado como um ato de resistência por parte dos povos escravizados. É necessário desmistificar
esse complexo de vira-lata, não no sentido de exaltar tudo o que é brasileiro, mas, sim, de reconhecer nossas
virtudes e limitações.

8.3 O jeitinho brasileiro e o desafio ético


O jeitinho brasileiro é considerado, por nós, uma coisa pejorativa. Normalmente, quando se fala de jeitinho, o que
está em jogo é um privilégio e alguém tirando vantagem em uma situação eticamente questionável. Mas vamos
começar falando do lado bom do jeitinho: o jeitinho como o talento de inventar soluções para problemas, também
chamado de “gambiarra”. Aquele improviso, que nos permite adaptar elementos que não necessariamente foram

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criados para determinada função. Na verdade, o Brasil está acostumando com essa necessidade de adaptar as
coisas, pois nossa condição de precariedade nos deu essa habilidade.

Normalmente, quando nos destacamos em algum esporte, existe algo dessa habilidade como característica
do brasileiro. O futebol, citado anteriormente, é o melhor exemplo, mas temos a Fórmula 1, que também pode
ilustrar essa característica. Ayrton Senna, famoso piloto brasileiro, costumava dizer que o fato de ele ter aprendido
a dirigir na cultura brasileira e, principalmente, no trânsito brasileiro, o deixou em vantagem em relação aos seus
adversários europeus, pois entre estes era muito comum alguém nunca ter tido sequer uma multa de trânsito na
vida e, entre nós brasileiro, isso é bem mais raro. Em outras palavras, para dirigir aqui no Brasil, além de saber as
regras de trânsito e dominar as técnicas de direção, se faz necessário uma outra habilidade: aquela que temos
de ter para furar um sinal de madrugada, quando estamos em uma esquina perigosa. É uma recomendação que
aprendemos desde pequenos. Para toda regra, há exceções. Não é aconselhável permanecer parado e vulnerável
em um cruzamento deserto. Você deve, com muita prudência e um olhar atento, furar o sinal e prosseguir.
Essa habilidade se tornou uma característica de nossa forma de dirigir automóveis, e Senna dizia que seus
adversários tinham sido criados em culturas nas quais nunca houve a necessidade de transgredir as leis de
trânsito. Por isso, eles não teriam essa “malandragem” que, nós, brasileiros, aprendemos com naturalidade.

Figura 54 – Trânsito em São Paulo

Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018.

Outro traço positivo do jeitinho brasileiro está em nossa irredutível informalidade. De certa forma, nossa histórica
estratificação social nos legou um modo muito próprio de lidar uns com os outros. É como se as formalidades
pertencessem à casa-grande, na qual ficam os senhores, e, aqui na senzala, fôssemos, de certa forma, iguais, pois
estaríamos no “mesmo barco”. Isso gerou uma solidariedade muito grande entre os brasileiros, que estabelecem
relações profundas de afeto e cumplicidade, desde um menino que pede um copo d’água na rua até um
vizinho que está disposto a doar uma xícara de farinha; das gigantescas campanhas de agasalhos até uma visita
inesperada, na hora do almoço, que é recebida com dizeres do tipo: “Chegou na hora certa” e “Põe mais água
no feijão!”. Sabemos que, entre os europeus, por exemplo, essas coisas seriam consideradas indelicadezas. O
próprio sorriso que trocamos tão espontaneamente, em outras culturas é considerado parte de uma intimidade
necessária para tal aproximação, que nós, muito naturalmente, já fazemos sem cerimônias. Nossa comida é
sempre farta e nossas festas não têm hora pra acabar.

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Essas características, como informalidade e proximidade, acabaram gerando um outro traço desse jeitinho,
que é a nossa necessidade de eufemismos para dizer as coisas que, se ditas de modo direto, soam grosseiras.
É comum que brasileiros achem outros povos indelicados, pois nossa forma de lidar com certos assuntos é
realmente peculiar. Nós preferimos que um amigo diga que vai a nossa casa, mesmo sabendo que a chance de
isso se efetivar é mínima, a ele dizer que não vai, e isso soar uma grosseria. Não temos “coragem” de dizer “não”,
preferimos dizer “talvez”, mas já querendo dizer não. Temos receio de magoar os outros com uma recusa, então
trocamos frases, como: “Olá! Quanto tempo, sumido! Pois é, você precisa ir lá em casa! Vou sim! Vamos marcar!
Isso mesmo! Vamos sim! Abraço até mais! Até!”, e ninguém nunca marca o tal encontro.

8.3.1 “Para os amigos, tudo! Para os inimigos, a lei”

Esse ditado nos mostra uma característica muito presente em nossa cultura: seguir a lei é algo para quem é
inferior e anônimo. Assim é o mundo da rua, no qual as pessoas estão na “batalha” do dia a dia, “correndo atrás”
de seu sustento, em um mundo que não sabe quem você é. Diferentemente do mundo da casa, em que sua
pessoalidade é valorizada. A tese de DaMatta (1984) consiste em compreender essa relação entre casa e rua a
partir de uma dialética, na qual o brasileiro tenta continuar tendo os privilégios das relações familiares, na rua.
Um bom exemplo é o fato de nas escolas primárias as crianças chamarem as professoras de “tia”. No momento
em que um ritual de formalidade poderia ser introduzido na vida social da criança, preferimos repetir na escola
a informalidade que temos em casa. Nosso país sempre teve uma série de foros privilegiados em sua história.
Durante a colonização, o clero tinha foro privilegiado, pois só podia ser julgado pela Igreja. Os nobres também
tinham foro privilegiado, por estarem próximos do poder, e a lei era para os plebeus. Hoje temos um percentual
de políticos com foro privilegiado que é discrepante em relação à maioria dos países democráticos. Essa forma
de percepção se prolonga e atinge praticamente todas as classes sociais em diferentes graus. O fato de, no Brasil,
o curso superior dar direito a uma cela especial, já demonstra esse argumento. O incômodo da classe média, que
bateu panelas em 2016, com a ascensão das classes D e E em termos de padrão de consumo, também pode ser
visto como mais uma consequência desse tipo de percepção.

É aqui que o jeitinho brasileiro também pode significar algo que afronta os limites da ética. Para o brasileiro,
sempre há uma terceira via entre o “pode” e o “não pode”. Sempre deve haver um caminho alternativo, que
garanta certa flexibilidade no que tange à lei. Por exemplo, você está dirigindo com a documentação de seu
veículo em condição irregular. Você é parado por um policial, uma pessoa simples, que está exercendo seu papel
na esfera pública na condição de agente da lei, que se dirige a você na condição de cidadão infrator. Ele quer te
multar. Muitos brasileiros, diante de uma situação desse tipo, vão tentar um diálogo que buscará elementos da
esfera privada, tentando reduzir o aspecto formal daquela situação, na qual um agente da lei está diante de um
cidadão infrator, para algo mais informal, com frases do tipo: “Seu guarda! O senhor é de Montes Claros? Meu
pai é de lá! Sou o filho do Seu Fulano…”. Essa fala tem como intenção encontrar um jeito de não ser multado, de
modo que aquela situação ganhe os contornos das relações que se estabelecem na esfera privada, no reino da
casa, em que essas relações são passionais e informais e se dão a partir de uma rede de trocas de favores. Roberto
DaMatta afirma que:

O “jeito” é um modo e um estilo de realizar. Mas que modo é esse? É lógico que ele indica algo
importante. É, sobretudo, um modo simpático, desesperado ou humano de relacionar o impessoal
com o pessoal; nos casos – ou no caso – de permitir juntar um problema pessoal (atraso, falta
de dinheiro, ignorância das leis por falta de divulgação, confusão legal, ambiguidade do texto
da lei, má vontade do agente da norma ou do usuário, injustiça da própria lei, feita para uma
dada situação, mas aplicada universalmente etc.) com um problema impessoal. Em geral, o jeito

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é um modo pacífico e até mesmo legítimo de resolver tais problemas, provocando essa junção
inteiramente casuística da lei com a pessoa que a está utilizando (DAMATTA, 1984, p. X).

Outro ritual de nossa sociedade brasileira caracterizado por Roberto DaMatta (1984) é o: “Você sabe com quem
está falando?”, no qual o brasileiro impõe-se reivindicando um privilégio. DaMatta nos diz que:

“Jeitinho” e “Você sabe com quem está falando?” são, pois, os dois polos de uma mesma situação.
Um é um modo harmonioso de resolver a disputa; o outro é um modo conflituoso e um tanto
direto de realizar a mesma coisa (DAMATTA, 1984, p. X).

Nossa democracia é uma das maiores do mundo. Temos um sistema de voto direto, que envolve quase 150
milhões de eleitores. Mas nossa noção de cidadania ainda tem muito a ser desenvolvida, pois há, segundo
DaMatta (1984), em nossa sociedade, um abismo entre a casa e a rua. Temos em nossa casa um contexto de
relações completamente diferente daquelas que se sucedem na rua. Nas palavras de DaMatta:

No fundo, vivemos em uma sociedade onde existe uma espécie de combate entre o mundo
público das leis universais e do mercado; e o universo privado da família, dos compadres,
parentes e amigos[...] A obediência às leis configura na sociedade brasileira uma situação de
pleno anonimato e grande inferioridade. Todos os brasileiros navegam socialmente realizando
um cálculo personalizado de sua atuação. O resultado é que toda instituição brasileira está sujeita
a dois tipos de pressão, uma universalista, que vem das normas burocráticas e legais, a outra
é determinada pelas redes de relação. E como prestígio social é algo que se localiza na teia de
relações - e nas relações - tanto quanto nos indivíduos, uma pessoa pode efetivamente colocar
à disposição de outra, suas redes de relações pessoais, fazendo com que todas as instituições
possam se tornar eficientes (DAMATTA, 1984, p. X).

Portanto, nosso objetivo, segundo DaMatta (1984), deve ser aproximarmos a casa da rua, de modo que possamos
assumir esse compromisso ético e nos compreendermos como cidadãos.

Síntese da unidade
Nesta unidade, você pôde ver as principais características de nossa cultura brasileira, suas relações com questões
éticas e democráticas e nossa tarefa de construir uma autêntica democracia.

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Considerações finais
Refletir a nossa própria cultura é sempre um desafio, pois há uma tendência
de nos percebermos por uma ética etnocêntrica, que não permite que
vejamos nossas contradições. Por isso, esse exercício antropológico de
espantar-se com o familiar e de familiarizar-se com o que é considerado
excêntrico é sempre muito revelador e tem sempre um caráter filosófico.
Esperamos que você aprofunde essas reflexões e se perceba cidadão
deste país que inventamos a cada dia.

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