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Cidadania e Ética

Cidadania e Ética

1ª edição
2019
Autoria Francesco Napoli
Parecerista Validador Homero Nunes Pereira

*Todos os gráficos, tabelas e esquemas são creditados à autoria, salvo quando indicada a referência.

Informamos que é de inteira responsabilidade da autoria a emissão de conceitos. Nenhuma parte


desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem autorização. A violação dos
direitos autorais é crime estabelecido pela Lei n.º 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Unidade 4
4. Bioética

Para iniciar seus estudos


4
A Bioética tem se tornado um assunto midiático quando estamos
tratando, por exemplo, de pesquisas envolvendo seres vivos. Nesta
unidade, você aprenderá sobre os principais aspectos relativos a ela, assim
como aprofundar nos aspectos sociais que envolvem tal conceito.

Objetivos de Aprendizagem
• Analisar a relação entre a Bioética e os principais aspectos
referentes à sociedade e à pesquisa.

• Identificar os impactos da Bioética na vida cotidiana.

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Cidadania e Ética | Unidade 4 - Bioética

Introdução da unidade
Bioética é um dos assuntos que você ouvirá cada vez mais nos próximos anos. Reflete um aspecto essencial de
nossa vida em sociedade e tem impactos profundos nas empresas e nas normatizações das nações. No seu cerne,
encontra-se o debate sobre quais são os limites da vida humana diante das tecnologias e da pesquisa científica.

4.1 O que é bioética


A Bioética é um campo recente do conhecimento cuja origem encontra-se nas tentativas de resposta às mudanças
e desafios surgidos no século XX, principalmente nas esferas coletivas, ambientais e também individuais. Traz
consigo uma visão ética ampliada em relação à valorização da vida no planeta, exigindo, portanto, uma postura
consciente, responsável e virtuosa de todos os seres humanos. Fátima Oliveira, pesquisadora do tema, afirma que:

O termo Bioética apareceu nos meados de janeiro de 1971, quando o biólogo e oncologista
Rensselaer Potter, da Universidade de Wisconsin, Madison, EUA, publicou o livro Bioética: a ponte
para o futuro. Segundo o autor, ‘bio’ para representar o conhecimento biológico dos sistemas
vigentes, e ‘ética’ representa o conhecimento dos sistemas de valores humanos (OLIVEIRA, 2004).

A palavra Bioética possui duas raízes: ética vem de ethos, que é o caráter de nosso comportamento, e bios vem
de “vida”, indicando, portanto, que estamos buscando o melhor comportamento, o mais virtuoso e responsável
para com a vida. Não somente a vida humana, mas todo o ecossistema vivo que existe em nosso planeta.

Figura 16 – Postura consciente

Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018.

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4.1.1 A bioética e o antropomorfismo

O ser humano tem por característica essencial a capacidade de emitir juízos de valor. Em outros termos, julgamos
as coisas como belas, feias, certas, erradas, boas e más. Normalmente, fazemos isso com base em uma perspectiva
estritamente humana, ou seja, vemos o mundo de modo sempre antropomórfico. O antropomorfismo é um
conceito filosófico que denuncia algo que parece óbvio, mas que é muito complexo: a forma por meio da qual
vemos o mundo é sempre uma perspectiva humana. E o humano é sempre limitado e sujeito ao erro. Você já
parou para pensar como o homem sempre se acha o centro das coisas? Chamamos isso de antropomorfismo.
Por exemplo, se os elefantes pudessem imaginar um deus, este teria tromba e orelhas grandes. Nós humanos
antropomorfizamos as coisas e sempre as concebemos pela nossa própria concepção de mundo. Estamos
acostumados a pensar o certo e o errado, por exemplo, com base em nós mesmos, ou seja: seres humanos
pensando o que é certo e errado para os próprios seres humanos. Se classificamos o ato de roubar como errado,
isso tem implicações que devem valer para toda nossa sociedade. Você consegue imaginar o que aconteceria
com a sociedade se roubar não fosse algo proibido? Portanto, o certo e o errado, e os motivos a eles associados,
possuem um objetivo explícito: o ser humano e a sua sociedade.

Nem sempre todas as respostas foram dadas. Muitos comportamentos são frutos do costume, ou seja, não
possuem uma justificativa completamente racional. Todos esses aspectos são relativos à ética e à moral, objetos
de profundo estudo dos filósofos.

Sócrates questionou a Grécia Antiga acerca do motivo de seguir o que era considerado certo. Aristóteles buscou
compreender o que devia ser feito para se comportar de forma virtuosa e traçou um caminho mediano entre o
excesso e a falta. Kant, um filósofo iluminista, elevou a questão ao traçar um aspecto que seria universal, ou seja,
abarcaria a todos. Em todos esses mais de vinte e cinco séculos de pensamento, o foco sempre foi o ser humano,
seu comportamento e seus impactos na sociedade.

Na história do pensamento ocidental, o homem sempre esteve no foco da reflexão filosófica. O Iluminismo,
movimento do século XVIII, é antropocêntrico, ou seja, tem o homem como centro das reflexões em detrimento
da visão teocêntrica, a qual prevaleceu durante toda a Idade Média, que tinha Deus como centro. Diante disso, a
contemporaneidade apresenta uma série de novas demandas éticas que precisam ser contempladas.

Na modernidade, o estado laico é a base da ética. Estado laico significa uma concepção de estado que separa
religião e governo, de modo que a diversidade religiosa seja garantida e nenhuma religião específica tenha poder
político. Essa concepção aparece, pela primeira vez na história da humanidade, no Iluminismo. Kant inaugura um
pensamento ético que se desvincula de toda a religião, construindo uma base racional e sólida para pensarmos
o comportamento humano por nós mesmos, sem tutores ou autoridades eclesiásticas.

Nesse ponto, estão as bases da ética profissional, que entende que a religiosidade fica restrita à vida pessoal
do indivíduo, ou seja, à esfera privada; e na vida profissional, ou seja, na esfera pública, o indivíduo deve agir
conforme a razão, a ciência e a objetividade. Este pressuposto básico do republicanismo e do estado de direito
permite que os cientistas possam atuar sem que a religião direcione suas ações.

Se toda a ética contemporânea parte do pressuposto iluminista e do Estado laico, questões oriundas dos avanços
da própria ciência ainda não foram devidamente compreendidas, pois poucos filósofos tiveram a consciência de
ampliar o foco para além do ser humano, de modo a refletir a respeito dos demais seres vivos. Apesar do respeito
pelos animas de estimação e domésticos, sempre se observou uma separação entre os seres vivos: os racionais,
e, portanto, éticos, e os irracionais, ou bestiais. Ao que parece, o sentido da ética era exclusivo para os seres
humanos. Reginaldo José Horta, filósofo que estuda a ética não especista, afirma que:

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A visão imperante no ocidente baseia-se na crença de que o mundo foi criado para o bem do
homem e de que as outras espécies devem se subordinar a seus desejos e necessidades. O relato
bíblico da criação, interpretado como uma concessão divina da autoridade do homem sobre
a natureza e os animais, assim como a filosofia grega, responsável por demarcar as diferenças
fundamentais entre os gêneros de vida humana e animal, consolidaram a noção de que o
propósito de tudo o que existe é proporcionar o domínio e usufruto humano. (HORTA, 2015)

A origem desse pensamento, na modernidade, se deve à René Descartes, filósofo francês do século XVI que
desenvolveu um pensamento que coloca o homem em um lugar diferenciado dos outros animais, pois, na
filosofia cartesiana, a existência está associada ao pensamento racional. “Penso, logo existo” é algo que é
exclusivamente humano, portanto, segundo Descartes, os animais não teriam alma, e seus corpos seriam como
máquinas biológicas, as quais nos cabe conhecer e manipular ao nosso bel-prazer. Descartes, com seu método,
influenciou o cientificismo do século XIX e, quando a ciência se separa da filosofia, associando-se à Revolução
Industrial, esta visão de que os animais são objetos de estudo prevaleceu durante muito tempo. São recentes os
discursos de defesa dos direitos dos animais.

4.1.2 Os animais têm direitos?

Trata-se de uma questão polêmica. A utilização de animais não humanos (ANH) em laboratórios de pesquisa, de
origem cartesiana, é uma prática comum e tem sido considerada um aspecto decisivo para o desenvolvimento
da ciência, principalmente no que tange à investigação biomédica. Porém, seu emprego tem sido polêmico e
desperta vários debates que vêm se ampliando nos últimos 30 anos. Hoje em dia, denominada Animal Ethics, a
ética envolvendo ANH é um campo do conhecimento filosófico oriundo da ética que se preocupa com a crítica ao
antropocentrismo e com a necessidade de se estabelecer limites para a utilização de ANH em pesquisas científicas.

O desenvolvimento da ciência moderna conduziu a humanidade a um patamar tecnológico de grandes


proporções. Deixamos as montarias para utilizarmos o automóvel, aumentamos cem vezes nossa capacidade de
produzir alimentos e fomos capazes de conhecer e dominar as menores frações da matéria.

Os séculos XIX e XX são marcados pelo amadurecimento do método científico e, com ele, inúmeros dilemas
surgiram, sendo um deles, a questão sobre se a ciência teria algum limite para com os seres vivos. Resultados
positivos na clonagem e o domínio na geração de seres vivos in vitro colocaram o cientista numa posição “divina”
diante da possibilidade de se criar vida.

Saiba mais

No ano de 1996, os cientistas Ian Wilmut e Keith Campbell conseguiram criar o primeiro
mamífero clonado com êxito por meio de uma célula adulta. Tratava-se da ovelha Dolly,
uma pesquisa científica que foi um marco para o avanço da investigação genética e que
aconteceu depois de 270 tentativas falhadas.

A divulgação da existência de Dolly ocorreu somente em 1997, quando os especialistas


estavam certos de que ela era saudável e ia sobreviver. A ovelha morreu aos seis anos, quando
se decidiu sacrificá-la na sequência de uma infeção pulmonar, e o corpo foi exposto desde
então no Museu Nacional de Edimburgo.

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Figura 17 – Dolly – primeiro clone produzido pelo ser humano

Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018.

Em uma outra direção, o século XX também se destacou pelo crescimento dos produtos industrializados. Se
tomarmos o exemplo dos medicamentos e de alguns produtos de beleza, iremos descobrir que muitos só
puderam ser desenvolvidos por meio de testes em animais. Muitos desses testes significavam um certo nível
de sofrimento.

4.1.3 Progresso da ciência?

A ideia de progresso é uma ideologia positivista do século XIX, que parte do pressuposto cartesiano de domínio
da natureza. A ciência delineia-se como área separada da filosofia no seio do Positivismo, então o discurso do
progresso está impregnado nela. O positivismo é uma doutrina filosófica do século XIX que tinha o método
científico como base. Seu principal representante foi Augusto Conte.

Porém, esse discurso, que sempre repetiu que devemos transformar a natureza em nome do progresso, já está
desgastado. Certamente você já ouviu, várias vezes, frases como: “devemos aterrar esse pântano em nome do
progresso!”; “vamos derrubar essa floresta em nome do progresso!”; “vamos demolir esse prédio e construir
outro mais moderno em nome do progresso”. “Em nome do progresso” já fizemos várias coisas desprovidas de
acerto e chegamos ao ponto de colocar nosso próprio planeta em risco. Portanto, o termo que hoje substituiu o
famigerado termo “progresso” é “sustentabilidade”.

A ciência é uma instituição que tem história e diversos momentos distintos. A ciência, como nós a conhecemos
hoje, surge no séc. XIX, e podemos dizer que ainda está aprendendo a dar seus primeiros passos, mesmo com
todo esse suposto “avanço”. Será que a ciência está evoluindo mesmo? O que significa evoluir?

Marilena Chauí, filósofa brasileira, afirma que o discurso de progresso da ciência é uma falácia. Segundo ela, “a
ciência não caminha numa via linear contínua e progressiva, mas por saltos ou revoluções” (CHAUÍ, 1999). Portanto,
não há um caminho delimitado para a ciência percorrer cuja finalidade é pré-estabelecida, pelo contrário, a ciência

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segue um caminho escuro, sem saber onde vai chegar; e as novas teorias não necessariamente substituem as
antigas. Por exemplo, é a física newtoniana que faz o velocímetro dos carros operar e é com ela que conseguimos
lançar um foguete no espaço. A teoria de Einstein provocou uma ruptura epistemológica na física, pois Einstein não
conseguia compreender o movimento dos corpos no espaço por meio da física newtoniana, então foi necessário
inventar outra teoria, que não é melhor nem mais “evoluída” que a newtoniana, apenas diferente.

Chauí afirma que:

Há, porém, uma razão mais profunda para nossa crença no progresso. Desde a Antiguidade,
conhecer sempre foi considerado o meio mais precioso e eficaz para combater o medo, a
superstição e as crendices. Ora, no caso da modernidade, o vínculo entre ciência e aplicação
prática dos conhecimentos (tecnologias) fez surgirem objetos que não só facilitaram a vida
humana (meios de transporte, de iluminação, de comunicação, de cultivo do solo, etc.), mas
aumentaram a esperança de vida (remédios, cirurgias, etc.). Do ponto de vista dos resultados
práticos, sentimos que estamos em melhores condições que os antigos e por isso falamos em
evolução e progresso. Do ponto de vista das próprias teorias científicas, porém, a noção de
progresso não possui fundamento. (CAHUÍ, 1999)

Vários episódios colocam em xeque esta crença no progresso da ciência, desde a bomba atômica, esse emblema
do século XX, até episódios isolados, que até hoje deixaram marcas na história da ciência. Em 1930 ocorreu o
episódio conhecido como “o desastre de Lübeck” que consistiu na morte de 75 dos 100 adolescentes – sem o
consentimento de seus responsáveis – submetidos a um teste com uma vacina desenvolvida para prevenção da
tuberculose.

Em 1931, a Alemanha definiu as chamadas Diretrizes para Novas Terapêuticas e Pesquisa em Seres Humanos,
o que não impediu que, durante a Segunda Guerra Mundial, fossem cometidas atrocidades – sob o nome de
“pesquisa” – com judeus, ciganos e outros grupos perseguidos pelo nazismo.

Em 1963, na cidade de Nova York, nos EUA, mais precisamente no Hospital Israelita de Doenças Crônicas, 22
idosos doentes – sem consentirem – receberam injeções de células cancerígenas vivas. Tais episódios provocaram
um abalo na tradicional confiança dos pacientes em relação aos seus médicos.

Aos poucos, a questão formou-se de modo inevitável: qual é o custo do desenvolvimento científico? Existe
algum limite para a pesquisa? Devemos deixar o cientista livre para pesquisar de qualquer modo, em nome dos
benefícios que a humanidade terá à sua disposição?

Para responder a essas questões, devemos ponderar se o ser humano é ou não um meio para que a humanidade
se desenvolva. Esse é o dilema de qual é o valor da vida e quais os limites do uso da força e da coesão. Na mesma
direção, somos levados quando deixamos de nos perceber como os únicos seres vivos que sofrem com as
pesquisas.

Devemos permitir que os animais sofram em nome do nosso desenvolvimento científico e tecnológico? Se a vida
é algo a ser preservado, por quais motivos negamos essas questões aos demais seres vivos? A Bioética surge,
portanto, nesse contexto em que a ciência, o desenvolvimento e o valor da vida são colocados em questão.

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4.2 Preceitos da bioética


Nas décadas de 1980 e 1990, a disciplina de Bioética se institucionalizou. As autoras Dirce Guilhem e Débora
Diniz afirmam que:

(...) no que se refere à pesquisa biomédica, um elemento decisivo para essa mudança de
mentalidade tenha sido a formação de um discurso crítico com relação à pesquisa científica,
não aceitando mais a premissa de que o desenvolvimento da ciência estaria acima de qualquer
suspeita para o bem-estar e a saúde da humanidade. Começaram, portanto, a surgir dúvidas, dos
pontos de vista ético, jurídico, econômico e mesmo político, sobre certos avanços relacionados
à experimentação humana, ao controle comportamental, à engenharia genética, à saúde
reprodutiva, ao transplante de órgãos, dentre tantos outros temas atualmente analisados pela
bioética. (DINIZ, 2007)

O autor Reich desenvolveu um conceito de Bioética que contempla os aspectos de sistematização,


interdisciplinaridade e pluralismo. Em sua obra intitulada Enciclopédia de Bioética, ele afirma que:

Bioética é o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão moral, decisões, condutas
e políticas – das ciências da vida e atenção à saúde, utilizando uma variedade de metodologias
éticas em um cenário interdisciplinar. (REICH, 1995)

A Bioética faz uso do principialismo, prática que se fundamenta em elementos de prima facie, ou seja, possuem
validade à primeira vista, mas que não são absolutos. Veja quais são estes princípios:

Princípio da beneficência

Beneficência está ligada a fazer o bem, ou seja, buscar aquilo que seria o bem para o maior número de pessoas.
Como o conceito de “bem” é estritamente filosófico, entra em questão a necessidade de não “absolutizá-lo”,
de modo que seja necessário fazer um cálculo que seja capaz de prever os benefícios e os riscos. Esse exercício
implica uma necessidade de conhecimento técnico e filosófico, necessariamente interdisciplinar para que o
máximo de benefícios para o máximo de pessoas seja o objetivo, de modo que o mínimo de danos seja causado.

Princípio da não maleficência

Se beneficência está ligada ao conceito filosófico de “bem”, maleficência lida com o conceito de “mal”. Esse
princípio parte do pressuposto que evitar o mal, ou seja, evitar qualquer dano intencional aos outros indivíduos
já é visar ao bem do outro.

Princípio do respeito da autonomia

Autonomia, em grego, significa estabelecer suas próprias normas (nomos), portanto o princípio da autonomia diz
respeito à nossa capacidade de agir intencionalmente.

Princípio da justiça

O princípio da justiça garante a equidade no acesso à saúde de modo que bens e recursos sejam distribuídos de
modo justo.

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Figura 18 – Medicina mal praticada

Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018

É possível perceber que tais princípios agem sobre muitos contextos, em especial na prática da medicina e suas
pesquisas e superam os tipos de pesquisas realizadas no passado, no qual o indivíduo não possuía escolha e
tampouco era tratado como um ser com dignidade.

Em muitos aspectos, quando assumimos que deve haver uma Bioética envolvida, estamos lidando exclusivamente
com uma busca pela essência do que deve agir sobre todas as formas de vida, preservando autonomias e
liberdades.

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Saiba mais

Para melhor exemplificar a questão de normatizações a favor da prática médica, reflita sobre
este trecho das Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina:

Art. 4º A formação do médico tem por objetivo dotar o profissional dos conhecimentos
requeridos para o exercício das seguintes competências e habilidades gerais:

I - Atenção à saúde: os profissionais de saúde, dentro de seu âmbito profissional, devem estar
aptos a desenvolver ações de prevenção, promoção, proteção e reabilitação da saúde, tanto
em nível individual quanto coletivo. Cada profissional deve assegurar que sua pratica seja
realizada de forma integrada e contínua com as demais instâncias do sistema de saúde, sendo
capaz de pensar criticamente, de analisar os problemas da sociedade e de procurar soluções
para os mesmos. Os profissionais devem realizar seus serviços dentro dos mais altos padrões
de qualidade e dos princípios da ética/bioética, tendo em conta que a responsabilidade da
atenção à saúde não se encerra com o ato técnico, mas sim, com a resolução do problema de
saúde, tanto em nível individual como coletivo (...). [Brasil, 2001, p. 1]

Fonte: BRASIL, 2001.

4.3 Temas contemporâneos da bioética


A Bioética tem como objetivo criticar a postura demasiada antropocêntrica do homem, que se coloca em um
lugar privilegiado em detrimento das outras espécies, das quais dependemos para viver. A perspectiva segundo
a qual o homem rompeu com a natureza e fundou a cultura fez com que o homem se colocasse nesse “outro
lugar”, separado da natureza e com o objetivo de dominá-la. Porém, somos uma espécie animal como qualquer
outra que está no planeta Terra há milhões de anos em uma complexa trama de processos evolutivos. Contudo,
o homem se sente emancipado da natureza por meio dessa ruptura (natureza-cultura) que é a base da própria
condição humana.

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Figura 19 – René Descartes – séc. XVII

Fonte: SHUTTERSTOCK,2018.

Uma grande questão que se coloca na contemporaneidade é, justamente, qual a medida dessa ruptura, pois
já houve, na história do pensamento ocidental, filósofos, como René Descartes, que afirmaram que o homem
chegaria a dominar a natureza por completo, por meio da razão. Pensadores contemporâneos como Nietzsche e
Freud começam a questionar, em tom de denúncia, essa postura demasiada antropocêntrica, retomando, com
base em Charles Darwin (século XIX), esse fato, que é impossível de ser ignorado: somos uma espécie como
qualquer outra, fazemos parte do planeta e estamos sujeitos à natureza, dependendo de recursos naturais, assim
como todas as outras espécies. Ademais, a natureza está dentro de nós, não apenas no sentido biológico, na
medida em que somos fruto de um processo de milhões de anos de evolução da vida, mas também no sentido
de uma perspectiva psicanalítica. Temos uma herança arcaica e um laço indissolúvel com nossos ancestrais por
meio do inconsciente. Freud, no ensaio intitulado “O Mal-Estar na Civilização” afirma que:

Nunca dominaremos completamente a natureza, e o nosso organismo corporal, ele mesmo parte
dessa natureza, permanecerá sempre como uma estrutura passageira, com limitada capacidade
de adaptação e realização. (FREUD, 2011)

Por isso, falar de ruptura com a natureza é algo que sempre deve ser devidamente problematizado. Faz-se
necessário um equilíbrio. De certa forma, o homo sapiens rompeu com a natureza em vários aspectos, mas, por
outro lado, sempre seremos parte da natureza e ela estará sempre dentro de nós. Em outros termos, essa ruptura
nunca se concretizará, pois nunca dominaremos por completo a natureza, na medida em que somos parte dela.

Desde a modernidade, o discurso segundo o qual o homem dominaria a natureza prevaleceu e influenciou o
cientificismo até o século XIX, desembocando no conceito do progresso. Como vimos, essa perspectiva de
leitura do mundo, que compreende o progresso como um constante processo de domínio da natureza, precisa
ser questionada. Esse discurso nos levou, já no século XX, a uma percepção de que nosso modo de lidar com o
planeta está desequilibrando ecossistemas que demoraram milhões de anos para se formar. E, pior que destruir
o planeta, estamos destruindo a nós mesmos. Karl Marx (1818-1883) foi o primeiro pensador a constatar que o
sistema capitalista é insustentável e, por isso, tenderia à autodestruição.

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Na verdade, precisamos nos descolar dessa leitura antropocêntrica e nos lembrar de que o homem, na verdade,
nunca destruirá o planeta Terra, mas sim destruirá a si mesmo, o que, ironicamente, seria muito saudável para
o planeta, que rapidamente recuperaria seus ecossistemas, permanecendo por mais alguns milhões de anos,
incólume, em nosso pacato sistema solar. A natureza produziu esta espécie que se autodenominou homo sapiens
e o máximo de destruição que essa inusitada espécie poderia provocar seria a autodestruição.

Saiba mais

Charles Darwin (1809-1882) revolucionou a ciência ao propor a teoria da evolução, que


afirma que as espécies sobrevivem por meio da seleção natural e adaptação. A teoria da
evolução é a base não só da Biologia moderna, mas também de toda a ciência, inclusive nas
áreas humanas.

A noção de meio ambiente que o senso comum tem parte de um pressuposto de ruptura
entre natureza e cultura, como se o homem não fizesse parte da natureza, pois o meio
ambiente é sempre o “outro lugar”; “lá na natureza”.

Figura 20 – Floresta tropical

Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018.

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Um dos movimentos que fizemos em direção à superação dessa visão antropocêntrica é a Ecologia. O termo
Ecologia tem uma origem etimológica que remete a essa necessidade de pensar o meio ambiente como algo
que nos engloba. Ecologia significa o estudo da casa ou morada – em grego óikos –, do ponto de vista científico,
há uma ampliação desse conceito: Ecologia é o estudo da relação dos organismos ou grupos de organismos com
seu meio ambiente e é um dos campos da Bioética.

4.3.1 Bioética do aborto à eutanásia

A ética em pesquisas com seres humanos é um novo campo do conhecimento que promove uma interface entre
os saberes, aproximando a ciência da ética, evitando que erros do passado voltem a se repetir.

Figura 21 – DNA artístico

Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018.

No Brasil, a Resolução CNS nº 196/96 surgiu como um verdadeiro divisor de águas na ética em pesquisas que
envolvem seres humanos, já que resgatou recomendações internacionais, diretrizes e documentos publicados
até a época de sua criação, garantindo a proteção dos indivíduos participantes de pesquisas em todo o Brasil.

As questões debatidas em Bioética na atualidade sobre qual seria o início da vida humana podem ser colocadas
com base em dois princípios morais diferentes: o Princípio da Sacralidade da Vida (PSV) e o Princípio do Respeito à
Autonomia da Pessoa (PRA). De acordo com o primeiro princípio, que costuma ser bem aceito na cultura brasileira
devido à nossa formação cristã, a vida consistiria em um bem – de origem divina, ou mesmo natural –, possuindo
uma espécie de estatuto sagrado e que nunca poderia ser interrompida, nem mesmo com qualquer tipo de
autorização, de quem quer que seja. Já o princípio do respeito à autonomia da pessoa confere ao indivíduo uma
autonomia sobre sua vida, o que justifica o desejo da eutanásia em casos extremos, por exemplo.

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Mesmo o próprio responsável legal não teria o direito de optar pela eutanásia. Nessa
perspectiva, a vida seria sempre considerada digna de ser vivida, independentemente de
suas condições específicas ou de qualquer tipo de sofrimento.

Saiba mais

Assista ao filme “Mar Adentro” do cineasta chileno-espanhol Alejandro Amenábar.

A ética nos permite refletir sobre o aborto e a eutanásia de uma perspectiva filosófica. Dessa forma, podemos
ultrapassar a visão religiosa e adentrar a realidade de modo mais incisivo. O aborto pode ser discutido com
base em preceitos religiosos, mas essa discussão acaba por negligenciar um fator que tem urgência em nossa
sociedade atualmente: antes de tudo, o aborto deve ser encarado como uma questão de saúde pública.

Existe um fato inexorável: mulheres vão optar pelo aborto, e a ilegalidade faz com que elas tenham de recorrer
a clínicas clandestinas e métodos extremamente invasivos e desumanos. As mulheres de classe alta utilizam
sua influência para conseguir uma clínica de qualidade (e sabemos que não é difícil encontrar um profissional
que realize o procedimento). Por outro lado, as mulheres menos abastadas, que são a maioria, envolvem-se em
situações insalubres em clínicas clandestinas sem nenhum acompanhamento psicológico ou até profissional.
Há relatos de mulheres que realizam abortos com agulhas de crochê manipuladas por pessoas sem nenhuma
formação na área da saúde.

O número de abortos clandestinos no Brasil é desconhecido justamente pela proibição, mas muitos de nós
conhecemos alguém que já abortou, o que nos permite inferir que essa prática é recorrente. A proibição acaba
por não permitir que a mulher possa acessar o sistema de saúde e apresentar sua demanda, que teria o auxílio de
um assistente social e de um psicólogo, podendo até evitar o aborto. Tendo isso em vista, especialistas a favor da
legalização acreditam que ela pode, na realidade, diminuir o número de abortos.

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Figura 22 – Protesto a favor da legalidade do aborto

Fonte: SHUTTERSTOCK, 2018.

Outro aspecto importante dessa questão é a autonomia da mulher sobre seu corpo. Sabemos que nossa sociedade
tem como base moral uma cultura machista e heteronormativa que hierarquiza os gêneros, colocando o homem
em uma posição privilegiada em detrimento da mulher. A própria lei do aborto, por exemplo, é uma lei criada por
homens. Portanto, a causa da legalização do aborto transcende a questão religiosa e adentra as pautas como
saúde pública, feminismo e liberdade.

Síntese da unidade
Nesta unidade, você pôde conferir como que a modernidade trouxe novos desafios aos seres humanos,
especialmente envolvendo a tecnologia e a vida. A Bioética é uma busca por garantir que a vida seja o limite das
experiências humanas.

O homem sempre se sentiu alheio à natureza, vendo-a como uma ameaça. Isso proporcionou uma relação
de destruição da natureza que, hoje, converteu-se em um discurso de Ecologia, de direito dos animais. Como
também ficou claro que somos parte dessa natureza, vieram os discursos ligados ao ser humano, como aborto e
eutanásia.

Nesta unidade, você pôde adquirir subsídios teóricos para pensar essas questões de modo mais aprofundado e
desenvolver pontos de vistas mais críticos. Esperamos que você tenha gostado!

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Considerações finais
As questões relacionadas à Bioética não se esgotam na abordagem desta
unidade. Diante das novas tecnologias e do crescimento da população
mundial, estaremos sempre à mercê de novos debates, pois a vida não
pode ser deixada em segundo plano.

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