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EAD

A Bioética e a
Interdisciplinaridade

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Prof. Dr. Mariano Antonio Sehnem

1. OBJETIVOS
• Identificar que o tema da Bioética ultrapassa a sua dimen-
são científica e médica.
• Reconhecer a complexidade que envolve Bioética e inter-
disciplinaridade e procurar construir caminhos de diálogo
e de convergência.
• Analisar o ponto de partida da Bioética moderna, bem
como a Bioética e suas principais fronteiras epistemoló-
gicas.

2. CONTEÚDOS
• Ponto de partida da Bioética moderna.
• Bioética e interdisciplinaridade.
• Bioética e suas fronteiras epistemológicas.
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3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


1) No decorrer do estudo desta unidade será apresentado
a você, alguns filósofos. Antes de iniciar seus estudos é
interessante que você conheça um pouco da biografia
desses pensadores e para saber mais acesse o site indi-
cado.

Edgar Morin
Edgar Morin nasceu em 1921 e, em 1970, fundou, em Paris, o
Centro Internacional de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares.
Para ele, a concepção holística não é apenas a somatória de to-
das as coisas, mas, mais do que isso, é uma integração, ou seja,
todas as coisas estão profundamente interligadas entre si (Gran-
de Enciclopédia Larousse Cultural). Edgar Morin: disponível em:
<http://www.ehess.fr/centres/cetsah/IMAGES/CarolineCuello.
jpg>. Acesso em: 4 set. 2010.

Jean Bernard
Jean Bernard é professor da Faculdade de Medicina de Paris,
Diretor do Instituto Francês de Investigação sobre a Leucemia e
as doenças de sangue, membro da Academia Francesa, mem-
bro da Academia Nacional de Medicina e Presidente honorário do
Comitê Consultivo Nacional para as Ciências da Vida e da Saú-
de. Escreveu, dentre inúmeras obras, A Bioética. Lisboa: Institu-
to Piaget, 1993 (Grande Enciclopédia Larousse Cultural). Jean
Bernard: disponível em: <http://ams.astro.univie.ac.at/~nendwich/Science/SoFi/
portrait.gif>. Acesso em: 4 set. 2010.

Immanuel Kant
Immanuel Kant (1724-1804) foi um importante filósofo alemão.
Em 1781, publicou Crítica da razão pura; em 1785, Fundamentos
da metafísica dos costumes, e, em 1788, escreveu Crítica da razão
prática, obra em que o autor remete a razão ao centro do mundo
(Grande Enciclopédia Larousse Cultural). Immanuel Kant: dispo-
nível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/2f/
Immanuel_Kant_2.jpg>. Acesso em: 4 set. 2010.

Baruch Spinoza
Baruch Spinoza (1632-1677) foi um filósofo holandês. Entrou em
contato com Galileu e o pensamento renascentista de Giordano
Bruno e, depois, foi influenciado por Descartes. Publicou: Princí-
pios da filosofia de Descartes (1663) e Tratado teológico-político
em 1670 (Grande Enciclopédia Larousse Cultural). Baruch Spino-
za: disponível em: <http://philosophy.tamu.edu/~sdaniel/Images/
spinoza1.jpg>. Acesso em: 4 set. 2010.

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Jean Jacques Rousseau


Jean Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo e romancista
suíço de língua francesa, conheceu Voltaire, Diderot e outros
filósofos iluministas, tendo colaborado na produção da Enciclo-
pédia. Publicou diversas obras, com destaque para: O contrato
social e Da educação em que vincula política, moral e educação
(Grande Enciclopédia Larousse Cultural). Jean Jacques Rousse-
au: disponível em: <http://ebooks.adelaide.edu.au/r/rousseau/
jean_jacques/portrait.jpg>. Acesso em: 4 set. 2010.

Hans Küng
Hans Küng nasceu na Suíça em 1928. Em 1962, foi nomeado
pelo Papa João XXIII peritus, ou seja, consultor teológico para
o Concílio Vaticano II. Em 1996, tornou-se presidente da Fun-
dação de Ética Global em Tübengen. Tem uma vasta produção
com destaque para: Igreja católica (2001), As religiões do mun-
do (2004), Teologia a caminho: fundamentação para o diálo-
go ecumênico (1999), e O princípio de todas as coisas (2007)
(Grande Enciclopédia Larousse Cultural). Hans Küng: disponível em: <http://
fratresinunum.files.wordpress.com/2009/02/kung.jpg>. Acesso em: 4 set. 2010.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Vamos prosseguir nossa caminhada com relação ao estudo
introdutório da Bioética.
Desde o início, deixamos claro que há uma relação estreita
da Ética com a sociedade, e uma relação mais íntima da Ética com
a Bioética, uma vez que elas se complementam.
Em seguida, abordamos alguns aspectos históricos evoluti-
vos da Bioética.
Acabamos de analisar, na unidade anterior, alguns conceitos
e princípios que fundamentam e dão sustentação à Bioética como
um novo campo do saber.
O nosso desafio, agora, é mergulhar mais a fundo na Bioética
propriamente dita e verificar toda a complexidade que é entender
o ser humano vivendo em grupo, em sociedade e quais as dificul-
dades daí decorrentes.
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5. PONTO DE PARTIDA DA BIOÉTICA MODERNA


Podemos, inicialmente, afirmar que a Bioética não pode ser
entendida apenas como um campo de saber específico, pois seu
referencial teórico e metodológico e a sua prática cotidiana no en-
frentamento dos problemas situam-se na intersecção da Medicina,
da Biologia com as suas múltiplas ramificações e especializações,
com as ciências humanas, como também com a Ética, o Direito, a
Filosofia e a Teologia entre outros campos.
Já vimos que Potter, em 1971, entendia a Bioética como uma
ponte entre duas culturas: a das ciências e a das humanidades,
que, ainda hoje, aparecem extremamente distanciadas.
Mais que um precursor, Potter dedicou sua vida inteira ao
fortalecimento e à abertura de caminhos para que a Bioética se
incorporasse às diferentes culturas, para que ela se transformasse
num projeto de vida para todos os seres humanos que habitam o
planeta.
Em 2 de julho de 1974, o Presidente norte-americano assi-
nou um Projeto de Lei que ficou conhecido como a Lei Nacional
para a Investigação Científica. Uma vez promulgada a lei, criou-
-se, em seguida, uma Comissão encarregada de estudar e apreciar
os problemas éticos relativos à pesquisa científica nos campos da
Biomedicina e das ciências do comportamento. A criação dessa
Comissão respondia, pelo menos em parte, às duras críticas que
a opinião pública fazia com relação aos abusos cometidos pelos
pesquisadores na manipulação de pessoas e de animais em suas
experiências laboratoriais.
A Comissão tinha como compromisso básico revisar as nor-
mas do Governo Federal sobre a pesquisa científica, visando pro-
teger os direitos e o bem-estar dos cidadãos em geral.
Desde o início, ficou estabelecido que a Comissão não deve-
ria se restringir apenas à identificação de possíveis abusos, mas,
em especial, deveria dedicar-se a formular princípios gerais e os

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mais sólidos e abrangentes que pudessem orientar e guiar a pes-


quisa futura em Biomedicina e nas ciências de conduta.
Como resultado prático, a Comissão, após quatro anos, di-
vulgou o Relatório Belmont, já estudado anteriormente, descre-
vendo e apontando os três princípios gerais e fundamentais que
são: o respeito pelas pessoas, a beneficência e a justiça.
Segundo esse relatório, o princípio do respeito às pessoas
apoia-se em duas convicções morais fundamentais:
• devem-se tratar as pessoas sempre como agentes autô-
nomos;
• devem ser tutelados os direitos das pessoas cuja autono-
mia está diminuída ou comprometida.
Isso quer dizer que o reconhecimento da autonomia alheia
implica sempre que as escolhas das pessoas autônomas sejam res-
peitadas e que não lesem a autonomia e os direitos de terceiros.
O princípio da beneficência inclui, também, a obrigação de
não fazer mal (a não maleficência) como dever moral de agir para
beneficiar os outros.
Já o princípio da justiça é entendido com base na chamada
justiça distributiva, que tem a ver com o que juridicamente é de-
nominado como aquilo que pertence às pessoas ou aquilo que é
devido a elas.
O problema está no fato de que cada país tem a sua legis-
lação, a Constituição, o seu Código Penal e a formulação de suas
políticas públicas, o que fornece e fundamenta uma autonomia de
cada Estado ou Nação.

6. BIOÉTICA E INTERDISCIPLINARIDADE
Falar das “fronteiras” da Bioética é uma tarefa bastante com-
plicada, porque envolve a compreensão dos paradigmas e das in-
ter-relações da epistemologia, isto é, envolve o ser humano, que é
o ser mais complexo do planeta Terra.
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O conceito Paradigma pode ser definido como um modelo, um


conjunto de ideias e valores capazes de situar os membros de
uma comunidade em determinado contexto, de maneira a possi-
bilitar a compreensão da realidade e a atuação, com base em va-
lores comuns. Dessa forma, o paradigma engloba todo o referen-
cial teórico-prático, todo um conjunto de saberes e conhecimentos
produzidos, acumulados e transmitidos de geração para geração,
mantendo vivas as tradições e costumes de um povo (Thomas
Kunh).

O conhecimento, então, vai sendo construído com base nas


experiências, na solução prática dos problemas, arquitetadas na
forma criativa de pensar, discernir, comparar, enfim, de fazer esco-
lhas diante de uma situação desafiadora.
Utilizamos o termo “fronteiras” entre aspas, porque compar-
tilhamos da concepção holística de Edgar Morin, que se autodeno-
mina “sequestrador” de saberes e de conhecimentos e defende a
tese de que não há, efetivamente, fronteiras reais entre as ciências
exatas, biológicas e humanas. Todas essas coisas estão intimamen-
te interligadas entre si, de tal modo que a fronteira é artificial, exis-
tindo apenas na cabeça das pessoas.
As nossas Escolas e os Currículos estão organizados, de um
modo geral, de forma estanque e fragmentados, o que nos fornece
uma visão de mundo compartimentalizada com uma nítida sepa-
ração entre as ciências exatas (as que possuem leis universais), as
ciências da natureza (que têm causa e efeito) e as ciências huma-
nas ou sociais (que têm conceitos e paradigmas diferenciados de
uma região para a outra).
Considerando as diferenças e diversidades econômicas, polí-
ticas e socioculturais entre os países do mundo e levando em con-
ta os limites que o sistema educacional nos apresenta em termos
curriculares, poderíamos afirmar que não é por acaso que há uma
“grade” curricular nas Escolas, em que cada docente mora na sua
“gaiola de ouro”, ou na sua “torre de marfim” sem estabelecer
uma abordagem interdisciplinar.

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Segundo Morin, a transdisciplinaridade contém dois elemen-


tos básicos: primeiro, trata-se de algo mais que a mera intensifi-
cação do necessário diálogo entre as distintas áreas e disciplinas
científicas, porque a questão que precisa ser explicitada é a da mu-
dança de paradigma epistemológico; em segundo lugar, o diálogo
entre as ciências será mais profundo se houver uma transmigração
de certos conceitos fundantes por meio das diversas disciplinas
– em especial, a junção dos conceitos “complexidade” e “auto-or-
ganização” como base e fundamento do enfoque transdisciplinar.
Portanto, a concepção transdisciplinar é uma nova postura,
um novo olhar do educador e do educando numa visão dinâmica e
integradora dos fatos e dos conhecimentos científicos.
A Bioética, nesse sentido, não é uma metafísica, mas é um
conhecimento pragmático e processual resultante de quase todas
as áreas científicas. O seu estudo e aprofundamento podem trazer
benefícios inestimáveis, salvar e prolongar vidas humanas.
Em contrapartida, ela precisa ser tratada e estudada com
responsabilidade, porque tanto pode trazer aplicações vitoriosas,
como também pode produzir resultados ambíguos e perigosos.

7. BIOÉTICA E SUAS FRONTEIRAS EPISTEMOLÓGICAS


Tentar estabelecer clara e formalmente as fronteiras rigoro-
sas de cada campo do saber é quase que uma tarefa desnecessá-
ria, uma vez que cada disciplina ou área de conhecimento tem a
sua especificidade e a contribuição a dar com referência à explica-
ção da vida humana.
Há um leque para tentar dividir, classificar e descrever as
fronteiras dos diversos campos do conhecimento da Bioética com
relação aos demais campos do conhecimento.
Contudo, abordaremos, nesta unidade, a classificação utili-
zada por Jean Bernard.
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A Bioética e as fronteiras com a Filosofia


A Ética é um tema recorrente da Filosofia; não é exclusivo
dela, mas tem sido abordado por Sócrates, que foi o pioneiro em
criticar as regras da sociedade grega como injustas e ambíguas. O
filósofo, ao questionar profundamente a ética das aparências na
estrutura e organização da sociedade grega, foi condenado à mor-
te, embora não tenha deixado nada escrito.
Platão, por sua vez, possui uma vasta produção e o trabalho
mais importante é a República, no qual expõe suas ideias políti-
cas, filosóficas, estéticas, éticas e jurídicas. A sua filosofia culmina
com a ética: a ideia do bem é, no seu modo de entender, a ideia
suprema. Para uma realização, deve tender a todo procedimento
humano, ou seja, o bem é imperativo moral para todos.
Para Platão, há quatro tipos fundamentais de virtude:
• a sabedoria ou prudência, própria da parte racional da
alma;
• a coragem, virtude da vontade, temperança própria da
sensibilidade humana;
• a justiça, nascida do equilíbrio, que se deve estabelecer
entre todas as disposições éticas e sociais.
Aristóteles forma o tripé dos autores clássicos que consegui-
ram sistematizar, grosso modo, o pensamento humano ocidental.
Enquanto Sócrates e Platão construíram as bases filosóficas, Aris-
tóteles, as bases científicas.
Houve uma Filosofia e uma Ciência antes deles, mas a orien-
tação dada por eles fez toda a pesquisa filosófica e científica pos-
terior se basear nos resultados que eles nos deixaram.
Até a época moderna de Galileu Galilei (1564-1642), que
introduziu o método científico propriamente dito, toda a ciência
ocidental era, fundamentalmente, aristotélica. Ele produziu uma
vasta literatura sobre a Ética, que teve uma influência quase “bíbli-
ca” em toda a sociedade europeia medieval.

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Na era moderna, Immanuel Kant e Baruch Spinosa dedica-


ram-se mais a fundo na discussão do tema e, contemporaneamen-
te, o estudo e a discussão da Ética situam-se em todos os campos
do conhecimento.
Segundo Bernard (1993), os filósofos podem ser divididos,
de maneira geral, em três grupos distintos: os indiferentes, os arti-
ficiosos e os renovadores.
Os indiferentes consideram os avanços da Medicina de for-
ma emotiva e preferem manter-se equidistantes da agitação e da
polêmica.
Já os artificiosos procuram utilizar, com talento, tanto os
progressos da Medicina como da Biologia, mas, em contraparti-
da, negligenciam a revolução terapêutica. Dessa forma, acabam
esquecendo que a Medicina alimenta estudos e pesquisas para os
filósofos e diminui o sofrimento dos seres humanos.
Na terceira categoria, estão os renovadores, que percebem
a importância das recentes descobertas biológicas e médicas, de-
bruçam-se sobre a tarefa nada fácil de analisar o que é normal
e o que é patológico, percebendo que os progressos da Biologia
“iluminam” e trazem novas alternativas para temas e problemas
especificamente filosóficos.
Com base nessa visão e concepção é que se estabeleceram
intercâmbios reflexivos, anteriormente desconhecidos ou impos-
síveis de acontecer.
Portanto, podemos concluir que a Filosofia passa a ser uma
importante auxiliar no estudo, no debate e na solução de proble-
mas da Bioética.

A Bioética e as fronteiras com a Teologia


Os teólogos estão fundamentados na sua fé, que é algo ínti-
mo, interior, e os cientistas estão embasados no empirismo posi-
tivista; ambos, convencidos da posse da verdade, assumiram, du-
rante séculos, uma postura rígida, excludente e antagônica.
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As fronteiras existentes entre a ciência e a Teologia eram, na


verdade, elevados muros, fortificações e muralhas. Por esses mo-
tivos, foram condenados Galileu, Giordano Bruno e tantos outros,
por meio da Inquisição, um tribunal eclesiástico vigente por quase
toda a duração da Idade Média.

A Inquisição nasceu da intenção de combater as heresias popu-


lares que se multiplicavam na Europa a partir do século 12. Ini-
cialmente, foi confiada aos tribunais ordinários, mas, em 1231,
tornou-se “Tribunal Permanente”, dirigido por um Bispo, encarre-
gado pelo “Papado” de lutar contras heresias. Tanto Galileu como
Giordano Bruno tiveram de enfrentar a Inquisição, sendo o último
queimado na fogueira (Grande Enciclopédia Larousse Cultural).

Precisamos destacar que os cientistas, em geral, acreditam


demasiadamente na potencialidade da ciência: como se ela pu-
desse trazer as soluções mais variadas e avançadas, na tentativa de
superar problemas e limites até hoje existentes e, portanto, apos-
tam todas as suas fichas nesse campo.
Em contrapartida, os teólogos têm consciência de que o ser
humano não é um ser pronto e acabado, e que ainda não se co-
nhece o seu o pleno desenvolvimento mental e espiritual. Mais do
que nunca, há uma percepção e um certo consenso do exagerado
expansionismo material, econômico e financeiro e uma extrema
pobreza espiritual do homem contemporâneo.
Em outras palavras, há, na prática, um enorme descompasso
entre o avanço da ciência e da tecnologia, em detrimento dos va-
lores humanos e do crescimento interior. O diálogo entre a ciência
e a religião será objeto de estudo e aprofundamento na próxima
unidade, contudo, será enfatizado agora também.
Por inúmeras vezes, há posturas muito rígidas de ambas as
partes (ciência e religião) e, ao reunir cientistas e teólogos para
discutir os temas atuais da Bioética, a compreensão e um diálogo
produtivo tornam-se muito difíceis, ou quase impossíveis.

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Há, atualmente, uma enorme lacuna entre as gerações, na


qual o ser humano nunca viveu de forma tão solitária, vazia e frus-
trada. O uso intensivo do micro-ondas, do telefone celular, da TV
e da internet criou uma distância mental entre as pessoas. Nas
famílias de classe média, por exemplo, há tantos aparelhos de TV
quantos forem os moradores.
Uma pesquisa feita pela CET (Companhia de Engenharia de
Tráfego), em novembro de 2007, em São Paulo, revelou que 62%
dos automóveis que circulam diariamente na cidade têm apenas
um ocupante, que é o motorista.
Isso significa dizer que o automóvel, o micro-ondas, a TV e a
internet são os símbolos máximos do individualismo exacerbado e
presente na sociedade.
Por isso, o diálogo entre a ciência e a religião, no início do
século 21, busca um maior consenso para canalizar esforços con-
vergentes no sentido de elaborar uma “agenda mínima comum”,
na qual todos os seres humanos que estão descontentes e indigna-
dos com a exclusão social, a injustiça e a desumanidade busquem
a construção de uma sociedade mais fraterna e feliz.

A Bioética e as fronteiras com a Política


A Ciência Política é a esfera do poder, isto é, do poder de
decisão para adotar esse ou aquele caminho a trilhar.
Platão foi o inventor da Política ao escrever o livro A Repúbli-
ca, que dividiu em três partes: a primeira é a exposição e proposi-
ção de uma comunidade ideal (utópica) governada pelos filósofos;
na segunda, ele apresenta o seu pensamento filosófico; e, na ter-
ceira, expõe as várias formas de governo, decidindo, no final, pela
aristocracia como a melhor delas.
Assim que os agregados humanos atingiram um certo grau
de desenvolvimento da cultura, passaram a estabelecer hierar-
quias entre seus membros e a adotar conjuntos de normas regula-
doras das relações entre grupos.
202 © Antropologia, Ética e Cultura

A principal característica da organização política da Idade


Média foi a formação dos feudos, entidades intermediárias entre
o soberano e o cidadão comum. Os senhores feudais exerciam sua
autoridade sobre todos os habitantes de seus domínios e o regime
era monárquico, ou seja, era o rei quem representava a lei.
Na era moderna, aparece a figura do Estado como uma ins-
tância jurídico-administrativa, supraideológica e suprapartidária
que deveria administrar toda a sociedade. Afirmamos que “deve-
ria administrar”, pois iremos verificar que, na prática, não foi isso
o que aconteceu.
Thomas Hobbes (1588-1679), como vimos anteriormente,
escreveu o livro Leviatã, obra em que justifica a presença da mo-
narquia absoluta como o regime que melhor se adapta à natureza
humana.
Segundo ele, o Estado surgiu e é necessário devido à preci-
são de controlar as violências dos homens entre si.
Contudo, é importante aqui destacar o pensamento político
de Jean Jacques Rousseau, autor do livro Contrato Social, obra em
que aponta o regime democrático como aquele que melhor prote-
ge os direitos dos cidadãos.
Rousseau não admite que o povo delegue seus direitos nem
mesmo a uma assembleia eletiva, ou seja, o poder de participação
e de decisão deve pertencer à totalidade dos cidadãos. Evidente-
mente, essas ideias e princípios inspiraram os líderes da Revolução
Francesa em 1789, contribuindo para a destruição da monarquia
absoluta, extinção gradativa dos privilégios da nobreza e do clero
e a tomada do poder pela burguesia.
A democracia de fato e de direito, na qual os cidadãos têm
um peso real na tomada de decisões, está ainda muito precária no
mundo inteiro: há ditaduras veladas e países nos quais a democra-
cia ainda tem uma vida muito tenra, como no caso do Brasil.

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© A Bioética e a Interdisciplinaridade 203

Não podemos ter uma visão ingênua e nos iludir no que se


refere à dimensão política; quem tem poder econômico tem, tam-
bém, poder político e, com certeza, não quer perder esse poder.
Quem trabalha na educação, por exemplo, precisa estudar
e analisar as ambiguidades e contradições que contêm as institui-
ções, os partidos, os sindicatos, as igrejas e as organizações sociais
para não se tornar presa fácil no jogo de interesses na esfera po-
lítica.
As fronteiras entre a Bioética e a Política precisam conter
uma constante vigilância e uma análise crítica vigorosa: o avan-
ço da ciência e da tecnologia pode abrir portas e gerar benefícios
para toda a sociedade, mas pode, também, trazer e produzir gra-
ves abusos e destruições.
Nessa direção, as campanhas de vacinação obrigatórias rea-
lizadas no Brasil e em outros países do mundo são as responsáveis
pelo quase desaparecimento de doenças como varíola, difteria,
poliomielite entre outras doenças e epidemias.
Em contrapartida, as fábricas e indústrias bélicas, os enormes
investimentos em estratégias de guerra, a medicina esteticista e as
derrubadas criminosas das florestas estão, todos os dias, exibindo
os seus milhões de dólares de lucros escandalosos e imorais.
A violação das fronteiras da Bioética e da Política é trágica
para a maioria da humanidade, pois os cientistas (que não estão
neutros nesse jogo de interesses) produzem teorias, conhecimen-
tos, paradigmas que passam a ser dogmas científicos para pautar
e fundamentar sua ação predatória generalizada.
Nunca é demais perguntar quais são as políticas públicas,
quanto de investimento é feito nos seres humanos e na gestão so-
cial e quanto é a fatia orçamentária para a pesquisa tecnológica.
É razoável aceitar, por exemplo, a morte de um bebê que não
tem cérebro, mas é totalmente inaceitável que morram milhões de
crianças no mundo inteiro pelo fato de não possuírem um prato de
comida.
204 © Antropologia, Ética e Cultura

A Bioética e as fronteiras com o direito


As fronteiras entre duas propriedades, entre municípios ou
entre dois países costumam ser precisas, a não ser que haja algum
conflito entre as partes.
As fronteiras entre a Bioética e o Direito, no entanto, ainda
são muito imprecisas e nebulosas. Nem todas as leis são passíveis
de interpretação dúbia ou conflituosa e, em se tratando de proble-
mas novos da Bioética, em que não se estabeleceu uma jurispru-
dência, torna-se mais difícil um posicionamento.
Num primeiro momento, o Direito pode adotar uma atitude
silenciosa, isto é, enquanto não pode prever os progressos da ciên-
cia e da tecnologia, é razoável uma postura de cautela.
Contudo, temos os adeptos progressistas, de forma que os
que estão mais abertos e dispostos a aceitar as inovações estarão
sujeitos a entrar no mérito da questão e a adotar posições mais
flexíveis.
Há uma diversidade de situações perante os avanços nas
pesquisas e investigações que não permite ao legislador que ela-
bore um código completo e minucioso em que se possam prever
todas as eventualidades.
Como meio termo, podemos imaginar uma lei-quadro na
qual estão elencados e explicitados os princípios básicos, sem en-
trar em detalhes, o que pode facilitar uma determinada tomada
de posição.
No entanto, dependendo das situações prementes, como se
decidir com relação à eutanásia, o aborto, as células-troco embrio-
nárias, e que carecem de uma legislação mais rigorosa, será difícil
chegar a um consenso.
As questões que envolvem a repetição de experiências e a
solidez das decisões poderão figurar num segundo grupo no Direi-
to, que terá mais tempo para a sua consolidação.

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© A Bioética e a Interdisciplinaridade 205

A Bioética e as fronteiras geográficas


Segundo Bernard (1993), as fronteiras geográficas, sem dú-
vida, são fatores preponderantes para se entender os difíceis con-
tornos da Bioética. Cada país, região e seu povo caracterizam-se
por possuir língua, costume, tradição, valores próprios que vão
imprimir certa solidez organizativa daquele grupo humano espe-
cífico.
Há, hoje, uma riqueza e, ao mesmo tempo, um problema
que engloba o multiculturalismo: o pluralismo e a diversidade cul-
tural que geram preconceitos, xenofobia e discriminações profun-
das e injustas.
No Japão, por exemplo, é proibido por lei extrair um órgão
de uma pessoa, logo após a constatação da sua morte; os japone-
ses ricos, porém, atravessam o Oceano Pacífico para efetuarem,
em São Francisco, um transplante de fígado ou de coração.
No Brasil, a venda de um rim vivo é permitida e pode ser
averiguada por meio de pequenos anúncios nos jornais e revistas.
A fecundação artificial é interditada pela Igreja Católica, mas
largamente aceita e mesmo aconselhada por diversas Igrejas Pro-
testantes.
As variações geográficas podem ser entendidas por variados
fatores. Em primeiro lugar, há, de fato, as diferenças culturais, em
que cada povo constrói suas casas, tem sua própria arte culinária,
suas festas que remontam a séculos, há milênios e que fazem par-
te constitutiva de sua história. Reside aí a riqueza incomensurável
do multiculturalismo.
Em segundo lugar, há as diferenças religiosas. A doutrina bu-
dista, por exemplo, é diferente da católica, do protestantismo, do
islamismo, do hinduísmo e assim por diante. Não se pode, porém,
admitir atitudes fundamentalistas, intolerâncias, preconceitos e
oposições irredutíveis. Há a necessidade de se buscar os pontos
de convergência, segundo Hans Kung , em seu livro As religiões do
mundo: em busca dos pontos comuns.
206 © Antropologia, Ética e Cultura

Em terceiro lugar, devem ser levados em consideração os fa-


tores econômicos: a pobreza é sempre um estímulo significativo
para a venda de bebês, de órgãos humanos, o comércio de sangue,
de fígado, de rim entre outros.
Destaquem-se, ainda, as diferenças médicas: não somente
a presença física da Medicina, uma vez que há lugares e regiões
onde ela inexiste ou se apresenta totalmente precária, mas aque-
las aliadas às políticas públicas de saúde de um sistema preven-
tivo, e não apenas curativo, como é o caso do “Sistema de Saúde
Brasileiro”, em que temos um “Ministério de Doenças” e não de
“Saúde”.
A listagem das diferenças geográficas poderia ser estendida
e ampliada, mas o importante é que cada um de nós tenha consci-
ência de que essas diferenças existem e precisam ser reconhecidas
e, sobretudo, respeitadas.
Há, atualmente, uma tendência no sentido de se criar “Co-
mitês de Ética” nas instituições, nas empresas, nos Estados e em
regiões estratégicas que deverão discutir, elaborar e divulgar, pela
mídia, suas decisões e posicionamentos, tentando aproximar as
pessoas das organizações jurídicas e civis, buscando sempre ações
mais convergentes.
Os Comitês locais, regionais, nacionais e internacionais têm
uma tarefa premente e importante: promover encontros, debates
e simpósios bem como a produção de uma legislação que demo-
cratize os estudos e pesquisas, as descobertas científicas para toda
a sociedade, em especial, a adoção de medidas preventivas quan-
to à saúde pública, ao planejamento familiar, em relação a uma
alimentação mais correta, à adoção de atividades físicas que pos-
sam contribuir para uma efetiva melhoria da qualidade de vida de
todas as pessoas, indistintamente.
Esses Comitês, num primeiro momento, podem desempe-
nhar um papel mais consultivo e informativo do que propriamente
jurídico ou político, e o seu poder está, fundamentalmente, na éti-
ca e na preservação dos valores humanos.

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© A Bioética e a Interdisciplinaridade 207

Leitura Complementar–––––––––––––––––––––––––––––––––
O global é mais que o contexto, é o conjunto das diversas partes ligadas a ele de
modo inter-retroativo ou organizacional. Dessa maneira, uma sociedade é mais
de um contexto: é o todo organizador de que fazemos parte. O planeta Terra é
mais do que um contexto: é o todo ao mesmo tempo organizador e desorganiza-
dor de que fazemos parte. O todo tem qualidades ou propriedades que não são
encontradas nas partes, se estas estiverem isoladas umas das outras, e certas
qualidades ou propriedades das partes podem ser inibidas pelas restrições pro-
venientes do todo. Marcel Mauss dizia: “É preciso recompor o todo”. É preciso
efetivamente recompor o todo para conhecer as partes (MORIN, 2002, p. 37).
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8. QUESTÃO AUTOAVALIATIVA
Sugerimos, neste tópico, que você procure responder às
questões a seguir, que tratam da temática desenvolvida nesta uni-
dade, bem como que as discuta e as comente.
A autoavaliação pode ser uma ferramenta importante para
testar seu desempenho. Se encontrar dificuldades em responder
a essas questões, procure revisar os conteúdos estudados para
sanar suas dúvidas. Este é o momento ideal para você fazer uma
revisão do estudo desta unidade. Lembre-se de que, na Educação
a Distância, a construção do conhecimento ocorre de forma coo-
perativa e colaborativa. Portanto, compartilhe com seus colegas
de curso suas descobertas.
2) Potter dedicou sua vida inteira para fortalecer e cons-
truir caminhos para que a Bioética se transformasse
num projeto de vida para todos os seres humanos que
habitam o planeta Terra, fato que ainda está muito dis-
tante de acontecer.
Pesquise na mídia uma matéria jornalística que conte-
nha preconceito, xenofobia ou algum tipo de discrimi-
nação religiosa, sexual, étnica, ideológica ou de gênero.

9. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, tivemos a oportunidade de conhecer o pon-
to de partida da Bioética moderna, bem como os temas relacio-
208 © Antropologia, Ética e Cultura

nados à Bioética e à interdisciplinaridade, como às suas fronteiras


epistemológicas.
Já na próxima unidade, poderemos estudar o processo de
secularização e o momento em que a ciência encontra a religião.
Até a próxima!

10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BERNARD, J. A Bioética. Lisboa: Instituto Piaget, 1993.
BRAGA, K. S. Bibliografia sobre Bioética Brasileira: 1990 – 2002. Brasília: Letras Livres,
2002.
DINIZ, D. Conflitos morais e Bioética. Brasília: Letras Livres, 2002.
GARRAFA, V. Pesquisas em Bioética no Brasil de hoje. São Paulo: Gaia, 2006.
VIDAL, M. Dez palavras chave em moral do futuro. São Paulo: Paulinas, 2003.
VIEIRA, T. R. Bioética e Direito. São Paulo: Jurídica Brasileira, 2003.
MORIN, E. Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez, 2002.

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