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BIOÉTICA GLOBAL: UMA APROXIMAÇÃO COM

A MOBILIDADE DA NOÇÃO DE VIDA

Thiago Abrahão Soares*

RESUMO

O primeiro objetivo deste artigo é analisar o escrito de Fritz Jahr “Bioética: um


panorama sobre as relações éticas do ser humano com os animais e as plantas”
com intuito de destacar o sentido eminentemente global que esta na base do
surgimento do termo Bioética. Veremos que o acréscimo do prefixo “bio”,vida, ao
termo “ética” amplia seu horizonte semântico remetendo tanto ao campo da
responsabilidade moral do homem, neste caso a responsabilidade com a
preservação da vida global, quanto ao campo epistemológico, onde a bioética
passa a ser compreendida como um tipo de saber de caráter multidisciplinar. Ao
final, aproximaremos o saber bioético junto à reflexão sobre a mobilidade da
noção de vida, afim de apresentar por esta via uma tentativa de resposta à
questão: Por que uma bioética global?.

.
Palavras-chave: Bioética, Global, Ciência, Vida, Epistemologia.

ABSTRACT

The first aim of this article is to analyze Fritz Jahr 's paper "Bioethics: a
panorama of the human being’s ethical relations with animals and plants" in order
to highlight the eminently global meaning that is the basis of the emergence of
the term Bioethics. We will see that the addition of the prefix "bio", life, to the term
"ethics" extends its semantic horizon, referring both to the field of moral
responsibility of man, in this case the responsibility for the preservation of global
life, and to the epistemological field, is understood as a type of knowledge of
multidisciplinary nature. In the end, we will approach bioethical knowledge
together with the reflection on the mobility of the notion of life, in order to present
an attempt to answer the question: Why Global Bioethics?.

Keywords: Bioethics, Global, Science, Life, Epistemology.

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*
Bacharel em Direito pela Pontíficia Universidade Católica de MG e Pós graduado em
Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais.
2

1.INTRODUÇÃO – (Conceitos Gerais)

A revolução científica e tecnológica das biociências e das biotecnologias,


em particular a genética e a neurobiologia, produziram novos conhecimentos
aumentando potencialmente o atuação intencional do homem no controle
químico dos processos da vida. As técnicas da engenharia genética (ou
tecnologia do DNA recombinante) permitem manipular diretamente o genoma
dos organismos e também construir sequências de DNA artificialmente. Este é
um importante desafio da bioética global do século XXI, isto é, fazer face ao que
Juliana Gonzalez denomina de “fanstasma do pós homem ou do pós-humano ,
ou seja, do poder crescente das tecnociências programadas para a eugenia, no
sentido amplo do termo, e para a intervenção de maneira física e voluntária no
micro universo do DNA dos seres vivos ao manipulá-lo e modificando sua
constituição natural” (GONZALEZ, p. 70, 2015). É em face deste novo
conhecimento que a Bioética se apresenta como uma unidade aberta do
conhecimento estabelecendo a ponte para o diálogo entre a ciência, a ética e a
sociedade.
1.1– Bioética global na perspectiva de Fritz Jahr.
O termo bioética apareceu pela primeira vez em 1927, em um artigo
publicado na revista Kosmos pelo alemão Fritz Jahr 1, intitulado: “Bioética: um
panorama sobre as relações éticas do ser humano com os animais e as plantas”.
Jahr relata neste artigo, o estado de fragilidade com que chega ao século XX a
concepção de homem e a noção de vida predominante na cultura européia até
século XVIII. Quanto mais se expandia o conhecimento científico, principalmente
no domínio da física, da biologia e da química, mais o entendimento acerca da
vida e do mundo obrigava o homem a retirar seu manto sagrado, expondo
impiedosamente e de uma só vez sua nudez, sua condição propriamente
natural, sua finitude. A lendária frase do anatomista Thomas Huxley ”Eu preferia
ser descendente de macaco do que de bispo", que marcaria a seu debate com
Samuel Wilberforce, na British Association Oxford em 30 de junho de 1860,
___________________
1
Sobre a descoberta do pioeneirismo de Jahr na formulação do termo bioética, assim como sobre
alguns apectos relacionados à sua biografia, ver o artigo de Leo Pessini: As origens da bioética:
do credo bioético de Potter ao imperativo bioético de Fritz Jahr. In Rev bioétic, p. 9-19, 2013
3

ilustrava bem o momento onde o criacionismo clássico fundado a partir da teoria


da fixidez das espécies e da geração espontânea – descendência do
aristotelismo – era confrotado com a origem gradual das espécies e a com a
força evolutiva da seleção natural. Segundo Jahr:

A distinção exata entre o animal e o ser humano [Mensch], que foi


predominante em nossa cultura europeia até o fim do século XVIII, não
pode ser mais defendida. Até a Revolução Francesa, o coração do
europeu lutava por uma unidade de conhecimento religioso, filosófico e
científico; no entanto, essa unidade teve de ser abandonada sob a
pressão por se obter mais informações. (JAHR, p.243, 2011)

Com o desenvolvimento tecno-cientifíco e sua imperativa segmentação do


saber, a teoria moderna sobre o homem perde seu centro de orientação
intelectual. A metafísica, o pensamento religioso e teológico já não serviam mais
de referência para a investigação sobre a natureza do homem e a diversidade da
vida. A epistemologia científica da década de 20 do século passado já havia
consolidado as ciências naturais, principalmente a física como protótipo do
autêntico saber.
O conhecimento científico autêntico é estruturado a partir das noções de
ordem, causalidade, determinismo, lei e previsibilidade. Todas estas noções
constituem a base da física moderna, e se propagaram não só para dentro das
ciências biológicas em geral, como se tornaram o centro gravitacional entorno do
qual giram todas as aréas do conhecimento. Para alguns filósofos do século XX ,
como Ernest Cassirer, o acúmulo de conhecimento, a multiplicação das ciências
particulares e as fronteiras estabelecidas entre os diversos campos do saber
obscureceram mais o problema acerca do homem do que elucidaram seu
conceito. Para Cassirer, o fenônemo da multiplicação e segmentação das
ciências gerou uma desorganização dos saberes sem precedentes. Segundo o
filósofo: “Teólogos, cientistas, políticos, sociólogos, biólogos, psicólogos,
etnólogos e economistas, cada um abordou o problema – sobre o que é o
homem? - a partir de seu próprio ponto de vista. Combinar ou unificar todos
estes aspectos e perspectivas particulares era impossível” (CASSIRER, p.44,
1995). Do ponto de vista da filosofia moral, a primeira metade do século XX não
garantiu aos intelectuais nenhuma dose de confiança para realizarem qualquer
empreendimento no campo da fundamentação da moral – nem a partir da ideia
de liberdade, nem mesmo pela ideia do propósito de uma vida feliz; estes já não
4

deveriam ser mais considerados como valores distintivos e imanentes à natureza


humana. A dimensão ética do ser humano – a sua habilidade em organizar,
normativizar e fundamentar racionalmente valores universais - como qualidade
distintiva do homem em relação aos demais seres estava fadada ao fracasso
frente à forte influência do subjetivismo e do relativismo no pensamento moral
ocidental. Segundo Dilthey:
A doutrina do valor da individualidade é a expressão da cultura alemã
de então e continua a ser considerada dentro de certos limites, uma
verdade social e ética, que já não se pode esquecer. Mas a afirmação
de que o valor da individualidade remete para a sua relação com a
divindade, que, portanto, se deve pensar como originário como
unitariamente posto, pois emana da ordem divina do cosmos, não é
mais do que uma interpretação metafísica indemonstrável da realidade
ética. Pertence às concepções metafísicas que ultrapassam os limites
do experimentável. (DILTHEY, p.117, 1995)

Contudo, esta percepção da impossibilidade de combinar as ciências


particulares entre si e do fracasso antecipado de qualquer teoria moral
comprometida com a fundamentação de princípios éticos universais, não é
interiorizada em sua maior amplitude pelo teólogo Fritz Jahr. O que de mais
significativo resultou deste movimento de cientifização fora para Jahr:
A equiparação fundamental do ser humano e do animal como objeto da
psicologia. Hoje, a psicologia não se restringe aos seres humanos, mas
aplica também os mesmos métodos para os animais; e, segundo
pesquisas anatômico-zoológicas comparativas, foram feitos cotejos
instrutivos entre a alma humana e a alma do animal. (JAHR, p.243,
2011)

A possibilidade de aplicar a psicologia e sua metodologia ao reino dos


seres vivos era vista com extremo otismismo por Jahr, mas por qual razão? E
ainda, por que a psicologia aparece como a ciência ponte que permitiu Jahr criar
o termo bioética? Segundo o teólogo:
A Psicologia moderna leva todos os seres vivos para dentro dos limites
de sua pesquisa. Nessas circunstâncias, é apenas uma conseqüência
direta o fato de R. Eisler falar, em suma, de uma Biopsicologia (estudo
da alma de todos os seres vivos). A partir da Biopsicologia é necessário
apenas um passo até a Bioética, isto é, até a aceitação de obrigações
morais não apenas perante os homens, mas perante todos os seres
vivos. (JAHR, p.2, 2005)

Na decáda de 20 do século XX, a psicologia era por excelência a ciência


que investigava os fenômenos da vida psíquica e sua relação com o
comportamento humano. Seu objeto de estudo eram as leis e forças que
constituiam o mundo anímico do ser humano. Jahr entendia que a ampliação
5

das leis da psicologia para todo o reino animal poderia fortalecer a ideia de que
todos os seres vivos possuem uma vida anímica, e, que, portanto, de alguma
forma partilham uma espiritualidade comum 2. Certamente, a concepção de Jahr
sobre “vida anímica”, isto é, sobre a dimensão espiritual do homem, ultrapassa o
significado que os termos “alma” ou “espiríto” possuem dentro da psicologia.
Neste sentido, é possível destacar o sentido eminentemente religioso atribuído
por Jahr ao termo “vida anímica”.
A psicologia era a chave para o reconhecimento de que também os
animais, devido à sua dimensão ontológica, deveriam ter suas vidas respeitadas
pelo homem. Uma vez fundamentada esta hipótese, a psicologia se tornaria,
então, uma biopsicologia, e a tradição ética restrita ainda ao dever moral do
homem com o seu semelhante, se tornaria uma bioética. Eis aí a maior intuição
de Fritz Jahr; a importância de pensar a vida humana a partir da sua
interdependência com as demais formas de vida, e a partir daí, reestabelecer a
relação entre a ética e a ciência, solidificando a responsabilidade moral do
homem na preservação da vida global. É neste sentido que Rawlinson diz que a
pespectiva bioética de Jahr “aborda a ciência biológica de um ponto de vista
internacional e ecológico. Jahr defende que a biologia e a ciência médica devem
ser reforçadas pelo pensamento ético com intuito de servir à vida” (Rawnlinson,
p 33, 2011). Sob esta ótica, a hipótese de que a bioética é uma ética aplicada,
isto é, uma ética normativa restrita somente à dimensão da clínica e da pesquisa
médica, soa como um acorde desafinado, um acidente tonal.

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2
Este é o caráter eminentemente religioso por trás da origem do termo bioética. Em um artigo
publicado em 1928, intitulado “A morte e os animais” diz Jahr “ Em um plano espiritual, surgiram
também paralelos interessantes entre o homem e o animal para que ambos compartilhassem a
‘proximidade’ psicológica e fisiológica [nahestehen]. Não devemos achar esse aspecto
preocupante; pelo contrário, devemos nos orgulhar de que as descobertas dos seres humanos
aventureiros nos tempos modernos já constam na parte mais importante das Sagradas Escritu -
ras. Gênesis, o primeiro livro de Moisés, fala sobre a ‘alma’ dos animais (Gen 9:16). O pregador
Salomão também pressupõe que eles têm alma, de forma semelhante aos seres humanos, e
pergunta de modo duvidoso: ‘Como é que alguém pode ter a certeza de que o so pro de vida do
ser humano vai para cima e que o sopro de vida do animal desce para a terra?’ (Jahr, p.245,
2011)

Segundo Jahr:
Nós estamos a caminho do progresso. A proteção dos animais ganha
cada vez mais espaço e mais adeptos (....) Nossa educação já fez
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grandes progressos nesse aspecto, mas temos de chegar a ponto de


ter como prumo pra nossas ações ao imperativo bioético que diz:
Respeita todo ser vivo essencialmente como um fim em si mesmo e
trata-o, se possível, como tal. (JAHR, p.4, 2005)

Jahr utilizou o termo bioética com o intuito de justificar a ideia de que todos
os seres vivos possuem uma ‘proximidade psicológica e fisiológica’, e que o
respeito pela a vida em sua totalidade é a abertura para se pensar uma nova
consciência moral constítuida tanto pelas relações entre o seres humanos entre
si quanto pela sua relação com a diversidade biológica. Contudo, o neologismo
criado por Jahr não exerceu grande influência em seu tempo.
A década de 20 foi um período de verdadeira tensão em termos políticos,
econômicos e culturais não somente na Alemanha, como em todo continente
europeu. A grande depressão de 1929 e suas conseguências no plano
internacional juntamente com a ascensão do partido nazista rumo ao controle do
poder e da opinião pública, certamente foram fatores que obscureceram
qualquer forma de humanismo fundado sob uma perspectiva global. Com efeito,
o termo bioética desde sua origem é marcado pela intuição de que uma ética da
vida tem por finalidade estabelecer uma relação sem restrições com qualquer
ciência, politíca, ordenamento jurídico, religião ou sistema econômico. É a partir
deste pressuposto que, por exemplo, Jahr relata sua insatisfação com o pouco
progresso das regulamentações legais na prevenção dos crimes contra os
animais3. O fato é que o acréscimo do prefixo “bio” ao termo “ética” enseja além
da responsabilidade moral do homem na preservação da vida global, a
possibilidade para se pensar a bioética como um espécie de saber ou disciplina
de caratér multidisciplinar4.
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3
Foi preciso esperar até 1978 para que as intuições de Jahr adquirisem força o suficiente para
se materializarem na Declaração Universal dos Direitos dos Animais proclamada em assembléia
pela Unesco em Bruxelas, no dia 27 de janeiro de 1978 . Eis o fundamento central da
convenção, considerar que “o reconhecimento pela espécie humana do direito à existência das
outras espécies animais constitui o fundamento da coexistência das outras espécies no mundo
(...)”
4
A declaração universal sobre bioética e direitos humanos de 2005 reconhece no art.2, o quão
necessário é “fomentar um diálogo multidisciplinar e pluralista sobre as questões da bioética
entre todas as partes interessadas e no seio da sociedade em geral”.
7

Jahr possuia desde o inicio de sua formação intelectual um interesse


acadêmico bastante diversificado, tendo também atuado como professor na
educação de base por 8 anos, conforme menciona Pessini:

Seus estudos iniciais foram feitos na Fundação Francke, ligada ao


pietismo protestante de seus idealizadores (August Hermann Francke e
Phillipp Jakob Spener). Na universidade, Jahr estudou filosofia, música,
história, economia nacional e teologia. Durante o verão de 1915
trabalhou como voluntário de guerra e em 1921 recebeu as sagradas
ordens, como pastor. Jahr começou a ensinar em 1917 e até 1925
trabalhou como professor em 11 diferentes escolas de ensino
elementar. (PESSINI, p.12, 2013)

O sentido do termo bioética tal como aparece na sua origem já implicava a


ideia de que a construção do saber bioético, tanto no plano discursivo quanto no
plano prático, deveria ocorrer a partir de uma zona de intersecção entre as
diversas ciências; uma região onde nem mesmo o pensamento religioso e a
dimensão do sagrado são excluídos. Todos os saberes convergem da unidade
para a totalidade da vida. Este é o caráter multidisciplinar intrínseco à sua
própria origem. O pensamento ecológico é a via pela a qual a diversidade e o
antagonismo confluem para a existência de uma organização comum. Do ponto
de vista do pensamento ético, a bioética está intrinsecamente conectada com
uma concepção acerca da natureza humana bem menos antropocêntrica que a
tradicional ética aristotélica - fundada na busca pela felicidade a partir do uso
prático da sabedoria - e a tradição kantiana - fundada na obediência das leis
morais que definem a liberdade.

1.2 – A mobilidade da noção de vida: Por que uma bioética global?

Tão logo nos aparece a oportunidade de refletir sobre a noção de vida


somos invadidos pela sensação de que estamos diante de algo que se
apresenta sob inúmeros aspectos e a possibilidade de articulá-los em conjunto
parece não existir. Já criamos tantos adjetivos para o substantivo “vida” quanto
ciências para analisá-la. É assim que falamos em vida política, vida física, vida
biológica, vida social, vida ecônomica, vida psíquica, vida espiritual e não para
por aí. Sob a perspectiva da astronomia e da recente astrobiologia, a hipótese
de que a vida biológica (energia+carbono+água) é um privilégio somente do
planeta terra se encontraria sob uma frágil sustentação. Pensada a partir da
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unidade de medida astrônomica, a vida na terra representa um evento


extraordinariamente organizado e aleátorio. A medida em que avançamos além
das fronteiras do nosso sistema solar e passamos a pensar o nosso sistema
planetário como parte de um contexto galáctico, cujo diâmetro é estimado da
ordem de 100 mil anos-luz, abrigando bilhões de estrelas e planetas, a
existência de sistemas estelares – como o nosso sistema solar – já não figura
como uma exceção no universo, assim como a existência da vida. Em
contrapartida, quanto mais nos afastamos da terra, quanto mais a inserimos num
contexto galáctivo, mais a sua distinção e singularidade se destacam. Após
quase seis decádas, desde o inicio das primeiras pesquisas científicas na busca
por sinais de vida extraterrestre inteligente em 1960 5, nenhuma frequência de
rádio ainda foi detectada e teve sua mensagem decodificada pelos
radiotelescópios espalhados pela América central, América do norte e China –
ao menos publicamente. Apesar das estimativas da equação de Drake, a vida
inteligente e a diversidade biológica continuam sendo a característica
fundamental e singular do nosso planeta. Até o momento, o que sabemos é que
foi, aqui, em nosso planeta, que a vida como diz Morin “superou desde há quatro
bilhões de anos a desintegração e a morte, proliferou e conquistou os mares ,
as terras e os ares.” (MORIN , p 393, 2001).
Ao situarmos a vida num contexto global, isto é, no contexto da
diversidade, dos diferentes ecossistemas – biosfera – fomos capazes de avançar
na compreensão de seu sentido mais básico e fundamental, traduzido pelo
axioma de base da biologia molecular, qual seja: A vida em um sentido
fundamental é um sistema químico capaz de realizar o processo de metabolismo
e se reproduzir. Este é o seu mecanismo de funcionamento fundamental. A vida
na sua unidade é o elemento comum de toda totalidade viva - o DNA.
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5
A busca científica por vida inteligente fora da terra se inicio com o monitoramento em busca de
sinais de rádio que pudessem ser emitidos por supostas civilizações inteligentes. Estas
pesquisas foram iniciadas pelo astrônomo e astrofísico da Universidade de Cornell, nos Estados
Unidos, Frank Drake com base em um princípio fundamental, qual seja: Uma civilização
extraterrestre inteligente que queira se comunicar por mensagens usará ondas eletromagnéticas
na frequência das ondas de rádio. A famosa “Equação de Drake” resulta na estimativa do
número provável dessas civilizações fora da terra. No século XXI, com o surgimento da
Astrobiologia a busca pela vida fora da terra se tornou menos ambiciosa e gera menos ceticismo
dentro da comunidade científica. Parece que nos dias atuais é bem menos provável
encontrarmos vida inteligente - civilização tecnológica - fora da terra do que formas de micro-
organismos. Um sinal concreto de formas primitivas de vida – vida anaeróbicas, por exemplo – já
seria louvável.
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O fenômeno da vida pressiona nosso intelecto a pensá-la como um sistema


aberto. Qualquer definição dada ao termo “vida” deve levar em consideração o
fato que a vida comporta em sua constituição elementos organizados de forma
eventualmente contráditoria, aleátoria, incerta e imprecisa. A importância de
alguns dos pressupostos da epistemologia da complexidade proposta por Morin
é a noção de que a vida é uma “complexidade viva”, um fenômeno organizado a
partir da interação entre qualidades opostas. A vida comporta em si mesma a
ordem e a desordem, ela é simultaneamente uma unidade e uma pluralidade,
uma singularidade que determina a totalidade e vice-versa. No entanto, a força
da vida está na sua reprodução, na ruptura constante de sua unidade, na sua
mobilidade organizacional – sociedades, ecossistemas – é pela sua diversidade
que curiosamente pressupomos uma ascentralidade comum, uma unidade
fundamental. É assim, que segundo Morin:
Os seres provenientes do mesmo tronco tornam-se dissemelhantes,
estranhos, desconhecidos, inimigos, embora cada um destes estranhos
e inimigos conserve a inalterável identidade comum. A unidade da vida
quebra-se desde o início; a unidade da vida quebra-se
incessantemente (...) A partir de todas estas dissociações e rupturas
criam-se novas unidades complexas onde se agrupam os
diversificados, os dissemelhantes, os concorrentes, e até os inimigos.
(MORIN, p. 402, 2001)

Nietzsche, em uma passagem intrigante do aforismo 121 do livro III da obra


“A gaia Ciência”, nos diz que: “a vida não é argumento; entre as condições para
a vida poderia estar o erro.” De fato, se levarmos às últimas consequências a
intuição do filosófo chegaremos ao modelo molecular do DNA e as cinco
capacidades básicas do gene. O fato da replicação do DNA não ser
completamentente ordenada é que torna possível a formação de uma nova
molécula de DNA contendo uma nova informação expressa na forma de novas
moléculas de proteína. A mutação ou os chamados erros de cópia é uma
condição fundamental para toda a diversidade da vida e a própria evolução
atráves da seleção natural. Mesmo com o avanço científico-tecnológico não
somos ainda capazes de elaborar uma definição única e completa para o
fenômeno da vida. O que resulta disto é o fato de que, segundo Morin:
Nenhuma das definições da vida deve excluir as outras. Assim como a
noão de vida não poderia ser reduzida a uma substância ou uma
essência, não poderíamos dar à vida uma definição somente física,
biológica, elementar, totalitária, organizacional, somente existencial.
Toda a definição da vida que privilegia um só termo ridigidifica-a e
mutila-a. (....) Assim , a noção de vida deve ser concebida
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intensivamente – no seu foco , o individuo vivo – e extensivamente – na


sua totalidade de biosfera (MORIN, p. 391, 2001).

Definitivamente, não é nossa intenção fazer uma apologia à desordem. Ao


contrário, o que pretendemos é compreender como pouco a pouco as noções de
acaso, desordem, desequilíbrio, irregularidades, imprevisibilidade etc obtiveram
força suficiente para se dissiparem pelas ciências do século XX e XXI. E mais,
como estas noções passaram a ser relevantes quando pensadas de modo
dialógico, como estado de coisas cujo antagonismo conflui para criação de
novos sistemas vivos, isto é, de novas unidades auto-organizadoras. De fato, só
faz sentido falar da relação construtiva entre opostos no contexto do cosmos e
da organização viva, isto é, do próprio sistema vivo, ou da vida em sentido
amplo, caso contrário, se fosse para fundamentar de modo unilateral a ordem e
a desordem como pares excludentes, inevitavelmente, seriamos levados à uma
disputa paroquial. A física, por exemplo, desde o século XIX só lidava com
equações lineares como ferramenta aplicada ao movimento exato e
determinado. Esta posição em prol da ordem e da linearidade fora obviamente
fortalecida ideologicamente dentro das comunidades cientificas. Como nos diz
Capra e Ian Stewart:
Esse hábito tornou-se tão arraigado que muitas equações eram
linearizadas enquanto ainda estavam sendo construídas, de modo que
os manuais de ciência nem mesmo incluíam as versões não-lineares
completas. Em consequência, a maioria dos cientistas e dos
engenheiros veio a acreditar que praticamente todos os fenômenos
naturais poderiam ser descritos por equações lineares. "Assim como o
mundo era um mecanismo de relojoaria para o século XVIII, ele foi um
mundo linear para o século XIX e para a maior parte do século XX.
(Capra, p.95, 2012)

Quando passamos a agir somente pela força do hábito, e, então, passamos


a compreender nosso próprio comportamento simbólico como sendo algo natural
e necessário, neste instante, de um modo ou de outro, silenciamos e deixamos a
nossa dimensão crítica num estado de latência. Como mostra Capra:
A exploração dos sistemas não-lineares ao longo das últimas décadas
tem exercido um profundo impacto sobre a ciência como um todo, pois
está nos obrigando a reavaliar algumas noções muito básicas sobre as
relações entre um modelo matemático e os fenômenos que ele
descreve. Uma dessas noções refere-se à nossa compreensão da
simplicidade e da complexidade. (Capra, p.96, 2012)

O fato é que a gravitação desencadeia todo tipo de regularidades a partir


do movimento. A rotação da terra sobre si mesma enseja a regularidade dos
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ciclos geofísicas, define a alternância do clima e prolonga-se até a organização


do sistema vivo. A gravitação instala-se como um padrão indispensável para a
compreensão dos sistemas vivos. É compreensível que esta propriedade de
ordem do todo estenda-se também para as partes que o compõe, ao mesmo
tempo, é certo também que a desordem e o desequilíbrio que também compõe
as relações entre as partes estenda-se para o todo. Em se tratando da
organização do sistema vivo, como aponta Fritjof Capra, há um padrão cuja a
propriedade mais importante “é a de que é um padrão de rede. Onde quer que
encontremos sistemas vivos — organismos, partes de organismos ou
comunidades de organismos — podemos observar que seus componentes estão
arranjados à maneira de rede. Sempre que olhamos para a vida, olhamos para
redes” (Capra, p.67, 2012). Em termos matemáticos nos parece que a vida
interage melhor com as equações não-lineares.
Segundo Morin no Método II – A vida da vida - a possibilidade de
entrevermos a conexão necessária entre elementos antagônicos e a
reciprocidade entre as partes e o todo, fora traçada pela a noção biológica de
ecossistema. Com efeito, o termo “ecossistema” remete ao conjunto de
interações dos seres vivos (biocenose) numa unidade geofísica (biótopo)
determinada. Este termo significa também um novo modo de compreender o
meio, uma vez que o biótopo é afetado e modificado pelas as interações que
ocorrem em seu interior. O que se depreende desta noção é que, vista mais de
perto, a biocenose aparece com uma cadeia complexa de interações, a vida
aparece como parte de uma rede, esta é, pois, a teia da vida cuja organização e
manutenção abriga em si a reprodução e a predação, a vida e a morte, a ordem
e desordem6.

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6
Dirá Morin: “Devemos considerar o meio não mais apenas como ordem e limitação
(determinismo, condicionamentos do “meio”), não somente como desordem (destruição,
devoração, risco), mas também como organização, a qual, como toda organização complexa,
sofre/ comporta produz desordem e ordem. (....) o meio concebido como a união de um biótopo e
de uma biocenose é plenamente um sistema, ou seja, um todo se organizando a partir de
interações entre componentes (biológicos e geofísicos); é plenamente uma unidade complexa ou
Unitas multiplex, que comporta uma extraordinária diversidade de espécies, unicelulares
vegetais, insetos, peixes, pássaros, mamíferos (dois milhões de espécies de insetos, um milhão
de espécies de plantas, 20 mil espécies de peixes, 8700 espécies de pássaros na biosfera).
(Morin, p.36, 2001
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A relação entre o biótopo e a biocenose é, pois, uma organização que se


auto regula, ela é independente de qualquer aparelho de controle e regulação, o
sistema vivo torna-se, aqui, um espaço com menos finalidades e mais
espontaneidade. Ora, a organização viva é, para falar com Bachelard, um
obstáculo epistemológico para a ciência definida segundo os modos tradicionais,
e o que marca sua espontaneidade 7, é o fato de as interações no âmbito da
biocenose/biótopo acarretarem processos de realimentação e reconfiguração
que afetam tanto o todo quanto as partes.

2 – CONCLUSÃO

A esta altura nos colocamos, então, a seguinte questão proposta pela


UNESCO em comemoração das duas decádas do programa de bioética; Por
que uma bioética global?. Primeiramente, a bioética está a serviço da vida,
portanto, está simultaneamente a serviço de nossas vidas. É por isto que não é
possível restringir o conhecimento produzido pelo saber bioético a um único
setor da vida. O saber bioético se faz presente tanto no quadro de uma
orientação política e nas tomadas de decisões individuais quanto na discussão
sobre os potenciais prejuízos e riscos que o saber tecnológico e científico podem
causar à própria vida, em sentido amplo.
Como bem sintetiza Potter:
Enquanto se aprende sobre as formas pelas quais as células controlam
suas atividades, os cientistas estão aprendendo a como controlar a
vida com a adição de substâncias químicas ao ambiente. Ao aprender
como controlar a vida, contudo, estamos forjando uma espada de dois
gumes (POTTER, p.83, 2016)

Não importa por qual pespectiva o conhecimento do controle da vida seja


estudada, existirão sempre segundo Potter “subprodutos não-intencionais”. O
que Potter designa de subprodutos não-intencionais são os efeitos não
prevísiveis e potenciamente danosos oriundos do conhecimento físico, químico e
biológico. É face a estes desafios que a bioética busca por meio da política
orientar o saber científico. Em suma, a bioética é global porque o fenômeno que
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7
Segundo Capra, esses processos de realimentação não-lineares constituem “a base das
instabilidades e da súbita emergência de novas formas de ordem, tão típicas da auto-
organização” (Capra, p.96, 2012)
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ela estuda se constitui a partir da relação entre a unidade e a totalidade;


singularidade e diversidade. A bioética é global porque o interesse na
preservação da vida deve superar o interesse em degradá-la por meio de
políticas econômicas locais. Em tempos onde a noção de uma política global não
entra na pauta dos governos espalhados pelo globo, o saber bioético se faz
necessário em qualquer programa educacional. É a tomada de consciência
social e crítica que materializa e permite o saber bioético provocar mudanças no
real. Neste sentido, ressaltamos a observação de Rawlinson para quem “a falta
de uma concepção crítica do poder e de uma aproximação crítica do capital e da
riqueza, conduz a bioética a utilizar regularmente a forma de análise custo e
benefício das relações como base para a tomada de uma decisão ética”
(Rawlinson, p.35, 2016) .

3 – REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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