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Cristiane Daniel1
Leonel Tractenberg2
Abstract: Modernity was a period in which knowledge about the living was organized amid the
ideals of the Enlightenment. This knowledge consists of notions whose history reflects tensions
between conceptions of science, human and life. Conceptions that have consolidated distinct
models about the constitution of a subject the midst of ethical, social and moral values. One of
these notions was the idea of vital force. Its modern formulation consists of the theoretical
ground on which many ideas of philosophy, biology and medicine, are rooted. What would that
idea correspond to? How is it appropriated by thinkers of modernity? In today's life, the life
sciences are also a privileged field of investments of all orders: technological, political,
economic, and aesthetical, among others. This theoretical discussion, explored in depth, will
refer us to fundamental ideas and assumptions, involving our own contemporary visions about
life.
Introdução
1
Psicóloga, Supervisora clínica da Divisão de Psicologia Aplicada do Instituto de Psicologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Email:
cristianedaniel.psic@gmail.com
2
Psicólogo, Professor Adjunto da Faculdade de Administração e Finanças da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ). Doutor em Educação pela UFRJ. E-mail: ltractenberg@uerj.br
https:/doi.org/10.36311/1984-8900.2019.v11.n30.02.p1
O conceito de força vital na modernidade
delas suscitando discussões até hoje. Um exemplo disso é o vitalismo, corrente que,
segundo Canguilhem (1952), se tornou dominante na biologia nascente e na medicina
dos séculos XVIII e princípio do século XIX, travando frequentes debates com sua
corrente adversária, o mecanicismo, que considerava o vitalismo vago e impreciso.
Ao que corresponderia essa ideia de força vital? Como foi apropriada pelos
pensadores da modernidade? Que conceitos filosóficos e científicos sobre a vida e o
vivente têm raízes nessa ideia? Nosso interesse neste ensaio teórico será mostrar como
emergem do solo conceitual da modernidade as condições para o surgimento de um
saber sobre a vida e o homem, articulado pelo conceito de força vital, que acabou por
fundar concepções específicas sobre o vivente que até hoje animam debates científicos.
Para isso, necessitaremos compreender, sobre o pano de fundo das transformações da
modernidade, o conjunto de pressupostos filosóficos e científicos que constituíram as
condições de possibilidade de emergência desse conceito. Por fim, essa discussão nos
remeterá a outras questões fundamentais, envolvendo as visões contemporâneas das
ciências da vida.
3
Palavra que vem do Latim incantare, junção de in-, “em”, e cantare, “cantar”, com o sentido de emitir
palavras mágicas ou sedutoras. Assim, encantar seria lançar uma palavra de magia ou feitiço contra
alguém, mas também seduzir e maravilhar.
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Esse conceito de desencantamento do mundo foi enunciado originalmente por Weber em A ética
protestante e o espírito do capitalismo (1905) e desenvolvido posteriormente na sua conferência A
ciência como vocação (1917) (PIERUCCI, 2013).
superstições. O homem livre, por meio de sua própria vontade, poderia se aperfeiçoar
moral, técnica e politicamente e com isso aprimorar a civilização (CHAUÍ, 2000). A
razão, por sua vez, seria ela mesma aperfeiçoada pelo progresso das civilizações. Esse
mundo guiado pelos ideais da razão, de progresso e de evolução, que excluía Deus,
separava homem e natureza, reafirmando a superioridade do homem, era um outro
mundo, totalmente desencantado e muito diferente do medieval.
A racionalização crescente faz com que nós acreditemos que podemos provar
que não existe nenhum poder misterioso e imprevisível interferindo com o curso de
nossa vida, ou ainda, que podemos dominar tudo, por meio da previsão. Para Weber,
progresso científico desempenha um papel fundamental no processo de racionalização
(FREUND, 2003): tudo poderia ser cientificamente conhecido e explicado pelo método
científico. O avanço da ciência implicaria no progresso humano, pois uma vez que o
conhecimento científico progride continuamente no sentido do acumulo de uma
quantidade sempre maior e mais atualizada de conhecimentos sobre o mundo.
Para Rossi (1996), o discurso do progresso constitui a ideologia dominante da
modernidade, que preconizava uma ordem social fundada na aposta de transformação,
com a imagem da ciência moderna desempenhando um papel decisivo e determinante
nesse processo. Acompanhando o progresso da ciência e do saber, viria o progresso do
homem. E, a partir do Iluminismo, essa ideia de progresso vai sendo paulatinamente
associada à ideia de luta e de conquista, à competição entre o homem e a natureza, e ao
culto do homo faber racional e civilizado, capaz de domesticar a natureza e os povos
bárbaros. Para ilustrar essa visão, Rossi (1996) recorre às discussões do século XVII
sobre a origem da civilização, como surgida de uma barbárie primitiva. Essa ideia se
manifestava na crença de que os primeiros seres humanos que habitavam a terra eram
fundamentalmente diferentes dos homens civis, que a sua mentalidade era, em certa
medida, semelhante a das crianças e dos camponeses incultos – uma mentalidade
primitiva, distante do pensamento racional e da dimensão científica. Esta ideia já estaria
solidamente presente na cultura europeia do final do século XVII e atravessaria toda a
cultura do século seguinte.
Esse entrelaçamento entre razão, ciência e progresso, esteve sempre
acompanhado do desenvolvimento paralelo e interdependente das técnicas e
tecnologias. Desenvolvimento este que culminou na construção da máquina a vapor na
Inglaterra no século XVIII, dando início à primeira Revolução Industrial. É verdade que
muito antes do Renascimento, pensadores e filósofos já depositavam interesse em
5
Os chamados “filósofos naturais” da Idade Média e do Renascimento equivalem principalmente aos
físicos da atualidade, mas também aos biólogos, químicos e outros estudiosos das ciências da natureza.
de forças, ela não teria papel a desempenhar na explicação científica das causas que
diferenciavam o vivente. Essas forças deveriam ser inerentes a alguma coisa mais
substancial que elas. Assim, Leibniz acreditava que a essência da matéria não era a
extensão cartesiana, mas o movimento, de forma que toda parte da matéria se compunha
de um número infinitamente grande de pontos minúsculos em contínuo movimento.
Levando igualmente em conta as 'forças ativas' como a energia cinética, Leibniz definiu
a matéria como um complexo de forças (ROSS, 2001).
Contudo, em sua reflexão posterior, chegou à conclusão de que o movimento
tinha de se fundamentar na energia, a energia o que existia num ponto e constituía a
essência da matéria. O mundo consistiria em pontos-partículas de energia
permanentemente em movimento. Leibniz chamou esses pontos-partículas de energia de
mônadas e teorizou sobre suas propriedades. Nos Princípios da natureza e da graça
fundados na razão, de 1714, Leibniz declarou que monas é uma palavra grega que
significa a unidade ou o que é uno. Segundo o filósofo,
calculados todos os eventos futuros e até mesmo ser desvelada a história passada do
universo. Além disso, as mônadas apresentam dois aspectos complementares: forma e
matéria. Uma mônada poderia ser uma forma, espírito ou alma, na medida em que fosse
espontânea, ativa e voltada para um propósito; ou material, pertencendo ao mundo dos
corpos materiais na medida em que fosse acomodada às ações de outras substâncias.
A dimensão corporal, portanto, seria inevitável para todos os seres criados
(ROSS, 2001). Por sua vez, a dimensão ativa, espontânea, orientada para uma
finalidade, característica da mônada, seria, para Leibniz, uma enteléquia6, alma ou
princípio vital, que estaria presente apenas nos corpos orgânicos. Dessa forma, como
Lacerda (2014) afirma, Leibniz inventou a noção de organismo: o corpo orgânico não
era meramente uma máquina, pois todo corpo orgânico era dotado de uma alma ou
princípio vital que o anima. O corpo orgânico que era material e, por isso, da ordem do
contínuo, era dividido atualmente ao infinito. Suas partes eram materiais, mas seus
requisitos eram as mônadas ativas e espontâneas. Já um objeto material ou corpo
inorgânico não era nada mais que a soma de mônadas materiais. Importante notar, que
foi neste ponto que Leibniz postulou a diferença entre os corpos orgânicos e os corpos
inorgânicos.
Assim, segundo Ross (2001), para Leibniz o que definia um organismo era o
fato de cada parte dele depender de sua relação com esse todo particular que lhe daria
sua própria identidade. Ao contrário dos corpos inorgânicos, que têm essencialmente
partes intercambiáveis feitas de uma substância aparentemente homogênea, as partes de
um organismo eram peculiares a cada organismo. Isso significa que cada parte tem de
alguma maneira de ser capaz de refletir a unidade complexa do organismo como um
todo, e que, cada parte também tem de ser um organismo complexo com suas próprias
partes orgânicas e assim por diante7.
Assim, podemos dizer que Leibniz, ainda no início do século XVIII, reelabora e
atualiza o conceito aristotélico de princípio vital em sua teoria das mônadas,
6
Conforme o Glossário de Termos Leibnizianos (Disponível em: http://www.leibnizbrasil.pro.br/leibniz-
glossario.htm Acesso em: 26/01/2016), na sua obra Monadologia, Leibniz utiliza o termo enteléquia
como sinônimo de “força metafísica primitiva, aquela força de agir constitutiva da substância”, e
tardiamente, como referência à alma: “Alma - Realidade imaterial e dinâmica que funda a unidade e a
identidade de um vivente, a alma é um princípio de vida e de unidade para um corpo orgânico. Substância
simples, princípio ativo, pode-se denominar também forma ou força primitiva, tardiamente, enteléquia”.
7
Isso nos sugere, de forma impressionante, uma intuição acerca de teorias biológicas modernas relativas à
especificidade dos órgãos e das células do corpo, bem como acerca de noções matemáticas modernas
como a de fractalidade, propriedade que se refere à característica de invariância de escala e auto-
semelhança (a ideia de que o todo está na parte e vice-versa).
8
“Nous pouvons donc proposer que le vitalisme traduit une exigence permanente de la vie dans le vivant,
l´identité avec soi-même de la vie immanente au vivant” (p.105)
9
Somente em meados do século XIX, por meio de uma série de experiências, o químico Pierre Eugene
Marcellin Berthelot (1827-1907) conseguiu sintetizar compostos orgânicos, refutando essa concepção
vitalista.
Assim, até hoje os debates entre vitalismo e mecanicismo provoca tensões que
repercutem em questões contemporâneas da biologia10, tendo um lugar permanente nas
ciências da vida, embora assuma diferentes formas e envolva novos conceitos.
Considerações finais
10
Ver, por exemplo, Aboud, Moura e Menezes (1999); Ferreira (2003); e Puttini e Pereira Jr. (2007).
11
Canguilhem (2015), por exemplo, publicou em 1973 na Encyclopédie Universalis um extenso verbete
histórico do conceito “Vida” na biologia e nas ciências da vida. Após discorrer sobre toda a história do
conceito de vida, desde Aristóteles, passando pelos representantes do mecanicismo como Descartes, pelos
representantes do vitalismo e a noção de organismo, Canguilhem fala sobre a vida como informação.
Atlan vão fornecer os elementos de uma teoria da auto-organização12. Nos anos 70 e 80,
da teoria dos sistemas dinâmicos, brotam novos conceitos como o de caos e bifurcações
que conciliam determinismo e imprevisibilidade; e fractais que inserem a totalidade na
localidade e vice-versa, fornecendo um arcabouço conceitual e matemático para tratar
fenômenos complexos da natureza e da sociedade. Esses novos conceitos e teorias têm
colocado em questão diversas disjunções caras à modernidade e à ciência moderna –
entre sujeito e objeto, organização e entropia, local e global, determinismo e
imprevisibilidade, mas também entre vida e morte, orgânico e inorgânico. O avanço da
epigenética e das neurociências trouxeram a baila questões como, por exemplo, as
levantadas por Gregory Bateson sobre a evolução orgânica e o processo de emergência
da mente, que retomavam elementos do pensamento de Lamarck e da corrente vitalista
(SILVA e DUARTE, 2016). Assim, muito embora hoje o vitalismo não seja mais a
corrente dominante, esses conceitos e teorias fornecem novos elementos que reacendem
antigos debates travados com o mecanicismo.
Referências
12
Atlan propõe o princípio de ordem a partir do ruído, segundo o qual os sistemas auto-organizadores
utilizam, para evoluir, o ruído, ou seja, as perturbações aleatórias do meio.