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Revista

Seção de HCPA
Bioética

BIOÉTICA: ORIGENS E COMPLEXIDADE

BIOETHICS: ORIGINS AND COMPLEXITY

José Roberto Goldim

RESUMO
A Bioética surge no século 20 como uma proposta de integração do ser humano à natureza.
A crescente complexidade das intervenções científicas, especialmente na área da saúde,
provocou uma reflexão sobre essas questões. A Bioética, que antes era uma resposta a
problemas, amplia a sua abrangência ao refletir pró-ativamente sobre novas situações, utilizando
um amplo referencial teórico para dar suporte às suas discussões.
Unitermos: Bioética, ética, humanidade, saúde.

ABSTRACT
Bioethics, which has its origin in the 20th century, proposes the integration of human beings
into nature. The increasing complexity of scientific interventions, especially in the health field,
has promoted debates on these issues. Bioethics, which used to be a response to problems,
widens its scope by proactively pondering about new situations, using a comprehensive theoretical
background to support its discussions.
Key words: Bioethics, ethics, humanity, health.

Doutor em Clínica Médica, Biólogo do Grupo de Pesquisa de Pós-Graduação (GPPG), Hospital de Clínicas de Porto Alegre
(HCPA), Porto Alegre, RS. Pesquisador responsável, Laboratório de Bioética e Ética na Ciência, Centro de Pesquisas do
HCPA, Porto Alegre, RS.
Correspondência: Laboratório de Bioética e Ética na Ciência, Centro de Pesquisas do HCPA, Rua Ramiro Barcelos, 2350,
CEP 90035-903, Porto Alegre, RS. E-mail: jgoldim@hcpa.ufrgs.br.

A ORIGEM DA BIOÉTICA sobrevivência. Na primeira fase, Potter qualificou a


Bioética como Ponte (4), no sentido de estabelecer uma
Em 1927, em um artigo publicado no periódico interface entre as ciências e as humanidades que garan-
alemão Kosmos, Fritz Jahr utilizou pela primeira vez a tiria a possibilidade do futuro.
palavra bioética (bio + ethik). Esse autor caracterizou a A Bioética teve uma outra origem paralela em lín-
Bioética como sendo o reconhecimento de obrigações gua inglesa. No mesmo ano de 1970, André Hellegers
éticas, não apenas com relação ao ser humano, mas para utilizou esse termo para denominar os novos estudos que
com todos os seres vivos (1). Esse texto, encontrado por estavam sendo propostos na área de reprodução huma-
Rolf Löther, da Universidade de Humboldt, de Berlim, e na, ao criar o Instituto Kennedy de Ética, então deno-
divulgado por Eve Marie Engel, da Universidade de minado de Joseph P. and Rose F. Kennedy Institute of
Tübingen, também da Alemanha (2), antecipa o Ethics.
surgimento do termo bioética em 47 anos. No final de Posteriormente, no final da década de 1980, Potter
seu artigo, Fritz Jahr propõe um “imperativo bioético”: enfatizou a característica interdisciplinar e abrangente
respeita todo ser vivo essencialmente como um fim em da Bioética, denominando-a de global (5). O seu objeti-
si mesmo e trata-o, se possível, como tal. vo era restabelecer o foco original da Bioética, incluin-
Anteriormente, a criação do termo bioética era do, mas não restringindo, as discussões e reflexões nas
atribuída a Van Rensselaer Potter, quando publicou um questões da medicina e da saúde, ampliando as mesmas
artigo (3), em 1970, caracterizando-a como a ciência da aos novos desafios ambientais. Vale lembrar que o pen-

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samento de Potter teve como base a obra de Aldo fosse considerada como filosofia primeira, invertendo a
Leopold, que criou, na década de 1930, a ética da terra subordinação tradicional à lógica e à ontologia (9).
(land ethics) (6). A proposta de Leopold ampliou a dis- Três autores contemporâneos podem auxiliar na
cussão feita por Jahr ao incluir, além das plantas e ani- compreensão adequada dessas questões fundamentais.
mais, o solo e demais recursos naturais como objeto de Adolfo Sanches Vasques caracterizou a ética como sen-
reflexão ética. do a busca de justificativas para verificar a adequação
Em 1998, Potter redefiniu a Bioética como sendo ou não das ações humanas (10). Joaquim Clotet afir-
uma Bioética profunda (deep bioethics). A influência para mou que a “ética tem por objetivo facilitar a realização
uso dessa qualificação foi a ecologia profunda de Arne das pessoas. Que o ser humano chegue a realizar-se a si
Ness (7). A Bioética profunda é “a nova ciência ética”, mesmo como tal, isto é, como pessoa” (11).
que combina humildade, responsabilidade e uma com- Complementando, Robert Veatch dá uma boa defini-
petência interdisciplinar, intercultural, que potencializa ção operacional de ética ao propor que ela é “a realiza-
o senso de humanidade. ção de uma reflexão disciplinada das intuições morais e
A Bioética, dessa forma, nasceu provocando a in- das escolhas morais que as pessoas fazem” (12).
clusão das plantas e dos animais na reflexão ética, já
realizada para os seres humanos. Posteriormente, foi pro-
posta a inclusão do solo e dos diferentes elementos da A BIOÉTICA E A HUMILDADE
natureza, ampliando ainda mais a discussão. A visão
integradora do ser humano com a natureza como um A humildade é uma virtude, ou seja, um traço
todo, em uma abordagem ecológica, foi a perspectiva adequado do caráter de uma pessoa (13). Potter definiu
mais recente. Assim, a Bioética não pode ser abordada humildade como sendo a conseqüência apropriada que
de forma restrita ou simplificada. É importante comen- segue a afirmação “posso estar errado” e exige responsa-
tar cada um dos componentes da definição de Bioética bilidade de aprender com as experiências e conhecimen-
profunda de Potter – ética, humildade, responsabilida- tos disponíveis (14).
de, competência interdisciplinar, competência Durante um longo período da história da humani-
intercultural e senso de humanidade – para melhor en- dade, pensou-se que seria possível conhecer a totalida-
tender a necessidade de uma aproximação da Bioética de das informações sobre um determinado tema. Ao atin-
com a teoria da complexidade. gir esse nível de conhecimento, seria possível conhecer
todo o seu passado e também o seu futuro. A essa possi-
bilidade, foi dado o nome de “demônio de Laplace”, pois
A BIOÉTICA E A ÉTICA quem detivesse todo esse conhecimento tudo poderia
prever.
Atualmente, a ética passou a fazer parte do dis- Werner Heisemberg, na década de 1930, formu-
curso da população, dos meios de comunicação, de pro- lou o princípio da incerteza, demonstrando a impossibi-
fissionais de várias áreas, com seu significado nem sem- lidade de conhecer simultaneamente a posição e a velo-
pre utilizado de forma correta. Talvez devido ao pouco cidade de uma partícula. Essa impossibilidade de poder
conhecimento formal que a maioria das pessoas tem da conhecer tudo provocou, em conseqüência, o “exorcis-
ética, muitas não sabem propriamente o que é a ética, mo do demônio de Laplace” (15).
qual a sua finalidade e como ela atua. Atualmente, é aceito que o tempo é uma variável
Muitas vezes, a palavra ética é utilizada também fundamental em todo e qualquer processo. Ele provoca
como adjetivo, com a finalidade de qualificar uma pes- mudanças, e mais do que isso: associando- o à
soa ou uma instituição como sendo boa, adequada ou indeterminação, os processos não só mudam como po-
correta. Esse uso pode ter sido influenciado pela defini- dem mudar a sua própria maneira de mudar.
ção de ética proposta por George Edward Moore, de que A inclusão das noções de indeterminação e de mu-
ela é “a investigação geral sobre aquilo que é bom” (8). danças provocadas pelo tempo alterou definitivamente
O ideal é sempre utilizá-la na forma adverbial, ou seja, as discussões científicas. Contudo, não houve a esperada
ela própria merecendo ser qualificada – eticamente ade- contrapartida de humildade de grande parte dos cientis-
quada ou eticamente inadequada –, mas não pressupon- tas e de outros profissionais envolvidos com a geração e
do que a ética, no seu sentido substantivo, sempre se aplicação do conhecimento. Hans Jonas, já em 1968, dis-
associe ao bom, ao adequado e ao correto. se que “a humildade seria necessária como um antídoto
Ricardo Timm de Souza afirmou que a maior re- para a ruidosa arrogância tecnológica atual” (16).
volução epistemológica do pensamento ocidental foi a Na Bioética, a humildade é uma característica fun-
proposta por Emanuel Lévinas, ao postular que a ética damental. Ao assumir que a incerteza e a mudança são

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componentes sempre presentes, assume-se, igualmen- Atualmente, discutir apenas a preservação do


te, que os resultados das reflexões são sempre passíveis ambiente natural passou a ser uma tarefa difícil e até
de discussão. A humildade permite reconhecer que não mesmo ultrapassada. A diferenciação entre objetos ar-
são definitivos nem imutáveis. tificiais e objetos naturais, que pode parecer imediata e
sem ambigüidade, na realidade não o é. Essas diferenças
não são nem imediatas nem estritamente objetivas (17),
A BIOÉTICA E A tamanho o grau da intervenção humana e das inter-re-
RESPONSABILIDADE lações existentes.
A preservação apenas de ambientes naturais
Os conhecimentos e discussões gerados pela intocados por si só os tornaria artificiais, pois, ao protegê-
Bioética e pela ecologia contribuíram para ampliar a los, estariam sendo impostas barreiras artificiais de acesso
noção de responsabilidade. Durante muito tempo, ela e utilização. As reservas e parques naturais são exem-
era associada apenas aos deveres existentes entre seres plos dessa ambigüidade entre o natural e o artificial, entre
humanos contemporâneos e geograficamente próximos. o natural e o naturalizado (Lenoir).
Peter Singer desencadeou, no início da década de Na área da saúde, essa questão também está cada
1970, um grande debate sobre os direitos dos animais. vez mais presente. Distinguir os processos de ação natu-
Fritz Jahr, em 1927, já havia proposto, segundo suas pró- rais do organismo humano dos provocados por inter-
prias palavras, um imperativo bioético: “Respeita, em venções externas a ele pode ser difícil e, em determina-
princípio, cada ser vivo como uma finalidade em si e das situações, impossível.
trata-o como tal, na medida do possível” (1). O próprio As intervenções, quando avaliadas de uma pers-
título de seu artigo propunha uma visão da Bioética como pectiva ecológica, deixam de ter apenas uma conotação
sendo um “panorama sobre as relações éticas dos seres individual, passando a merecer uma discussão com as
humanos para com os animais e as plantas”. A inclusão demais pessoas direta ou indiretamente envolvidas. A
das plantas na discussão bioética é ainda altamente ino- ética da razão comunicativa de Karl-Otto Apel deu uma
vadora, mesmo nos dias atuais. importante contribuição nesse sentido. Ao levar em con-
Em 1948, Aldo Leopold, em seu texto sobre ética ta as conseqüências diretas e indiretas das ações realiza-
da terra, fez outra ampliação dessa discussão, quando das e por utilizar o discurso argumentativo exercido por
postulou o direito das gerações futuras a receberem um todos os indivíduos para obter normas consensuais, tor-
ambiente preservado (6). Nessa mesma tradição, Hans na-os co-responsáveis por todas as ações (18).
Jonas, em 1968, propôs um outro imperativo, com a fi- Hans Jonas, ao propor a ética da responsabilida-
nalidade de prevenir possíveis conseqüências das ações de, já havia dito que “nenhuma ética anterior tinha de
humanas: “Nas tuas opções presentes, inclui a futura levar em consideração a condição global da vida huma-
integridade do ser humano entre os objetos da tua von- na e o futuro distante ou até mesmo a existência da es-
tade” (16). pécie. Com a consciência da extrema vulnerabilidade
A expansão dessa discussão sobre direitos e deve- da natureza à intervenção tecnológica do homem, surge
res com a inclusão de todos os seres vivos, tanto con- a ecologia” (19) – ecologia que veio trazer uma nova e
temporâneos quanto ainda não existentes, amplia a res- complexa visão da inserção dos seres humanos no con-
ponsabilidade e a perspectiva atual da Bioética, como já junto da natureza.
haviam antecipado Fritz Jahr e Van Rensselaer Potter.
A ecologia profunda, de Arne Ness, que serviu de
base para a terceira definição de Bioética de Potter, já A BIOÉTICA E A COMPETÊNCIA
havia rompido com a perspectiva usual da relação dos INTERDISCIPLINAR
seres humanos com a natureza, no sentido de domínio
sobre a mesma – em que o ambiente natural era visto A competência interdisciplinar é, das característi-
apenas como um recurso para ser desfrutado, conside- cas citadas na definição de Potter, a que mais apresenta
rando os demais seres vivos como inferiores – e de centrar confusão e ambigüidade. Várias palavras são utilizadas
essas discussões políticas apenas no âmbito nacional. A de forma confusa, como se fossem sinônimos, e à pró-
sua proposta visava gerar uma relação harmoniosa com pria palavra interdisciplinaridade têm sido atribuídos
a natureza, reconhecendo-a como tendo valor intrínse- diferentes significados.
co e buscando o reconhecimento da igualdade entre A interdisciplinaridade, segundo Valdemarina B.
as diferentes espécies, e esta perspectiva deveria ser dis- de Azevedo e Souza, só ocorre quando existe interação
cutida na abrangência de biorregiões, além de reconhe- de pessoas; ela necessita da troca de saberes e opiniões.
cer as tradições das minorias (7). As condições necessárias para que a interdisciplinaridade

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ocorra são as seguintes: a existência de uma linguagem tiva). Essa nova maneira de entender o funcionamento
comum; objetivos comuns; reconhecimento da necessi- dos seres vivos alterou definitivamente a visão de
dade de considerar diferenças existentes; domínio dos linearidade e unidirecionalidade das ações (22).
conteúdos específicos de cada um dos participantes; e Reconhecer que as interações podem ocorrer de
elaboração de uma síntese complementar (20). forma múltipla e que atuam de forma diferenciada nos
Essa síntese complementar já era prevista na processos de equilíbrio foi uma das grandes contribui-
dialética de Heráclito como produto da oposição entre ções de Jean Piaget. Além da realimentação, que gera a
a tese e a antítese. A síntese é uma maneira nova e mais regulação do sistema, Piaget incorporou também a no-
complexa de abordar uma mesma questão (21). ção de operação do sistema, baseada na pré-alimenta-
Carlos Roberto Cirne-Lima comentou que a tese ção. Ela é uma antecipação de possíveis situações futu-
do pensamento pós-moderno é a de que “a razão, una e ras, isto é, uma pré-correção, que ocorre em decorrên-
única, morreu, vivam as múltiplas razões com seus cia das experiências prévias do indivíduo (23). A pré-
relativismos”. A pós-modernidade, ao negar a existên- alimentação é pró-ativa. Dessa forma, o processo de
cia de princípios ou leis universais, pode gerar uma frag- controle do sistema ocorre com base na operação (pré-
mentação das diferentes visões de mundo. Apesar des- alimentações) e na regulação (realimentações) (24).
sas críticas, uma vantagem desse tipo de posicionamento Assumir que o indivíduo se acomoda frente ao
é que ele gera, talvez, maior humildade e tolerância, por outro ou que o outro assimila a ação do indivíduo é usu-
dar mais atenção aos demais envolvidos (21). al. A inovação de Piaget foi entender dialeticamente
Uma perspectiva mais contemporânea permite essa interação. Nessa abordagem, não é o indivíduo nem
reconhecer que os pensamentos analítico e dialético não o outro, mas sim o espaço de troca existente entre eles
são excludentes. O pensamento analítico traz consigo que possibilita a ocorrência dessas interações. Essa nova
maior clareza, mas tem o risco da fragmentação, da perspectiva gerou a necessidade de se entender, tam-
compartimentalização de saberes. O pensamento bém, como ocorrem as diferentes formas de equilíbrios,
dialético, por outro lado, tem a vantagem de permitir a desequilíbrios e reequilíbrios (25).
inclusão da totalidade dos elementos considerados, po- A forma mais clássica de equilíbrio biológico é a
rém também pode gerar uma postura totalitária (21). da homeostase. Ela foi descrita por Walter D. Cannon
A incorporação de conceitos da teoria geral de sis- como sendo um equilíbrio dinâmico de um determi-
temas, como os de sistemas fechados e abertos, é funda- nado estado, obtido a partir das interações dos dife-
mental para a adequada compreensão da rentes elementos envolvidos (26). A esse equilíbrio
interdisciplinaridade necessária à Bioética. Os sistemas de estado, foi acrescido o equilíbrio de processo, de-
fechados têm interação apenas entre os seus próprios nominado de homeorrese, que é o responsável pela
elementos. Os sistemas abertos, por sua vez, mantêm manutenção, ao longo do tempo, de diferentes
interação também com elementos externos, trocando homeostases. A homeorrese é o processo dinâmico e
informações dentro e fora de seus limites (22). histórico que permite a preservação de uma sucessão
Durante muito tempo, a relação profissional-pa- de diferentes eventos. A homeostase é conservadora,
ciente, por exemplo, foi considerada como sendo um mantém o seu equilíbrio anterior ao desequilíbrio
sistema fechado, onde apenas esses dois elementos con- imposto. Já as reequilibrações, com a participação da
tavam. Com a crescente participação da família, das homeorrese, não retornam às suas condições e equilí-
empresas de seguro e de outros profissionais prestadores brios anteriores, senão em alguns casos. Geram, isto
de serviço, o sistema teve que ser aberto para ser ade- sim, novos e melhores equilíbrios, permitindo a auto-
quadamente entendido. organização (25).
Outra grande contribuição da teoria dos sistemas As estruturas próximas ao equilíbrio são repetitivas
foi o reconhecimento da existência de relações não-li- e universais, sempre tendo a perspectiva de ir da ordem
neares e da realimentação. Um efeito pode ser determi- à desordem. As estruturas distantes do equilíbrio, ao
nado por mais de uma causa, caracterizando uma rela- contrário, são específicas e únicas, permitindo ir da de-
ção convergente ou multicausal. Da mesma forma, uma sordem a uma nova ordem. Essas estruturas que geram
única causa pode gerar mais de um efeito, recebendo a novas ordens, novos equilíbrios, que se auto-organizam,
denominação de relação divergente. A possibilidade de são chamadas de estruturas dissipativas (15).
que um efeito ou conseqüência altere a sua própria cau- De acordo com o tetragrama de Edgar Morin (27),
sa é a base da realimentação. Assim, a relação causa/ a passagem da ordem para o caos se dá pelo aumento do
efeito pode ser invertida, gerando a possibilidade da ocor- número de interações. Por outro lado, quando um siste-
rência de um ciclo de ações que podem se estimular (re- ma está em estado caótico, pode surgir um evento ou
alimentação positiva) ou se inibir (realimentação nega- processo organizador que gere uma nova ordem. O mai-

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or organizador é a informação (22). Esta nova ordem, Os participantes podem ter estilos de interação
por sua vez, propiciará novas interações, que possibili- colaborativo ou não-colaborativo. As suas interações
tarão esta alternância de estados de ordem e caos, em podem ser estáticas ou dinâmicas. As ações desempe-
grau crescente de complexidade. Morin denominou esta nhadas no jogo podem ser simétricas ou assimétricas.
perspectiva entre ordem e desordem de dialógica, pois As movimentações podem ser ordenadas de forma que
antes de se oporem de forma excludente, estes estados as decisões sejam seqüenciais ou simultâneas. As in-
geram um ao outro sucessivamente. Caso não ocorra formações disponibilizadas podem ser perfeitas ou im-
um evento organizador, o sistema se desintegra devido perfeitas, nas decisões seqüenciais ou então completas
ao estado de caos em que se encontra (28). ou incompletas nas simultâneas. A condição de equilí-
Dentro desta perspectiva, um ponto interessante brio do jogo pode basear-se em chances iguais, que é
a ser discutido, é a questão de como conciliar mudança denominada de estratégia pura, ou desiguais. Caracte-
e permanência em um processo. Demócrito já havia afir- rizando uma estratégia mista (31). Todas estas carac-
mado que tudo no universo é fruto do acaso e da neces- terísticas podem ser transpostas às questões avaliadas
sidade. Jacques Monod retomou este tema e caracteri- pela Bioética.
zou o acaso como o elemento gerador das mudanças e a Uma importante questão que não pode ser es-
necessidade como sendo a responsável pela coerência quecida é que mesmo havendo a avaliação analítica
do processo (17). A necessidade gera coerência no pro- das características de um processo existem dois fato-
cesso e não obrigatoriamente antevisão ou antecipação res que sempre influenciam o processo de tomada de
de um estado final pré-planejado. decisão, que são o sistema de crenças e os desejos das
Todos estes processos e propostas permitiram cri- pessoas envolvidas. Assumir estes dois fatores amplia
ar a possibilidade de uma perspectiva realmente em muito a complexidade dos problemas, pois cada
pluralista. Nesta visão, a realidade é tida como uma, di- um dos participantes pode ter crenças e desejos pe-
versa e transformável, as posições contrárias são possi- culiares e concorrentes. O chamado modelo racional
bilidades de novas sínteses e a mediação de conflitos é para tomada de decisões, proposto por Francisco Ara-
feita com participação e negociação efetiva (29). újo Santos incorpora estes dois elementos que podem
Nesta nova perspectiva plural de encarar a reali- provocar alterações desde a etapa de percepção das
dade, novas lógicas são possíveis de serem utilizadas, evidências que geram a necessidade de tomar uma
sendo a Teoria dos Jogos uma delas. A própria Bioética decisão (32).
pode utilizar a Teoria dos Jogos na avaliação de proble- Finalizando as questões referentes a
mas. Nesta Teoria as possibilidades são avaliadas atra- interdisciplinaridade, já estavam presentes desde o iní-
vés das alternativas possíveis, das regras estabelecidas, cio das discussões mais sistemáticas sobre a Bioética.
dos fatos que já ocorreram e do dever-ser, através das Van Rensselaer Potter, no seu primeiro artigo, publi-
estratégias e táticas utilizadas (30). cado em 1970, afirmava que “esta nova ética
Segundo Duílio de Ávila Bérni existem várias ca- (Bioética) pode ser chamada de ética interdisciplinar,
racterísticas que devem ser avaliadas quando um pro- definindo interdisciplinaridade de uma maneira es-
cesso está sendo avaliado utilizando-se a Teoria dos pecial para incluir tanto a ciência como as humani-
Jogos. A natureza da escolha é a primeira delas. Deve- dades, mas este termo é rejeitado pois não é auto-
se avaliar se os participantes farão uma escolha since- evidente” (3). Mais recentemente, Onora O’Neall
ra ou uma escolha estratégica. O tipo de jogo, se estra- ressaltou ainda mais esta característica quando defi-
tégico ou baseado no acaso, ou de azar, como se diz niu que a “Bioética não é uma disciplina, nem mesmo
coloquialmente. A condição de entrada no jogo pode uma nova disciplina; eu duvido se ela será mesmo uma
ser considerada fraca, quando o participante pode op- disciplina. Ela se tornou um campo de encontro para
tar por jogar ou não, ou forte quando existe coerção numerosas disciplinas, discursos e organizações en-
impedindo a manifestação de sua vontade. A quanti- volvidas com questões levantadas por questões éti-
dade de jogadores e o número de estratégias possíveis cas, legais e sociais trazidas pelos avanços da medici-
são duas outras características. A determinação ou na, ciência e biotecnologia” (33).
indeterminação na maneira de jogar é importante de Os problemas propostos para reflexão bioética fi-
ser caracterizada. A forma de distribuir os recursos cam mais claros quando discutidos dentro de uma pers-
advindos do jogo pode assumir três modos básicos: jo- pectiva interdisciplinar. Muitas das ferramentas apre-
gos de soma zero, quando um ganha e outro perde obri- sentadas - convergência, divergência, realimentação
gatoriamente, jogos de soma positiva, quando existe a positiva e negativa, homeostase, homeorrese, processos
possibilidade de todos os participantes ganharem, e de tomada de decisão – podem facilitar a compreensão
jogos de soma negativa, quando todos podem perder. e auxiliar na busca de possíveis soluções.

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A BIOÉTICA E A COMPETÊNCIA a definição inicial de Jahr, é possível afirmar que a


INTERCULTURAL Bioética é uma reflexão compartilhada, complexa e
interdisciplinar sobre a adequação das ações que envol-
A competência intercultural poderia ter sido in- vem a vida e o viver.
cluída na própria questão da interdisciplinaridade, pois
é fruto do reconhecimento da humildade e da tolerân-
cia entre diferentes grupos e culturas. A Bioética tem REFERÊNCIAS
que assumir esta perspectiva intercultural de compre-
ensão da realidade para poder ser utilizada de forma 1. Jahr F. Bio=Ethik. Eine Umschau über die
conseqüente e abrangente. ethichen Beziehung des Menchen zu Tier und
Um dos maiores estudiosos na questão Pflanze. Kosmos 1927;24:2-4.
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dade; o conceito individual de masculinidade e femini- 4. Potter VR. Bioethics: bridge to the future.
lidade; s formas de lidar com conflitos e incertezas e a Englewood Cliffs: Prentice Hall; 1971.
perspectiva de longo prazo (34). 5. Potter VR. Global bioethics: building on the
Um grande número de populações de diferentes Leopold legacy. East Lensing: Michigan State
países já foi avaliado através destas características obten- University Press; 1988.
do-se resultados bastante inovadores. Em todos os países 6. Leopold A. Sand County Almanac and sketches
também existem peculiaridades culturais regionais que here and there. New York: Oxford; 1989.
também devem ser consideradas. O importante é lem- 7. Naess A. The shallow and the deep, long-range
brar que não existe um só modo de encarar a realidade ecology movements: a summary. Inquiry.
que seja considerado correto. A pluralidade deve ser igual- 1973;16:95-100.
mente aqui considerada como fundamental, contudo, sem 8. Moore GE. Princípios éticos. São Paulo: Abril
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do, desde que respaldado por uma cultura local. 9. Souza RT. Razões plurais. Porto Alegre:
EDIPUCRS; 2004.
10. Vasques AS. Ética. 20a ed. Rio de Janeiro:
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seres humanos migraram de um comportamento egoís-
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ta, onde o outro é utilizado por mim para atingir aos
virtudes. São Paulo: Martins Fontes; 1996.
meus objetivos, para o altruísmo, quando um indivíduo
14. Potter VR. Script do vídeo (42 minutos) elaborado
se doa integralmente ao outro. No dizer de Augusto
e apresentado especialmente para o IV Congresso
Comte, criador do termo, altruísmo é “viver para ou-
Mundial de Bioética (4-7 de novembro/1998) em
trem”. Mas existe um estágio posterior onde não há nem
Tóquio. Transcrição e tradução por Léo Pessini.
o uso nem a doação, mas sim uma troca sincera entre os
O Mundo da Saúde. 1998;22(6):370-4.
participantes, quando ocorre a solidariedade (35).
15. Prigogine I, Stengers I. Order out of chaos.
André Comte-Sponville definiu “Bioética, como
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se diz hoje, não é uma parte da Biologia; é uma parte da 16. Jonas H. Ética, medicina e técnica. Lisboa: Vega
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mente humana; deveres do ser humano para com outro 17. Monod J. O acaso e a necessidade. Petrópolis:
ser humano, e de todos para com a humanidade” (36). Vozes; 1989.
Este senso de humanidade é inerente e fundamen- 18. Weber T. Ética e filosofia política: Hegel e o
tal à Bioética. Pensar Bioética é pensar de forma solidá- formalismo Kantiano. Porto Alegre: EDIPUCRS;
ria, é assumir uma postura íntegra frente ao outro e, 1999.
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Com base nestas colocações a respeito da defini- as novas tarefas da Ética. In: Jonas H. Ética, medicina
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