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Teoria epidemiológica hoje

fundamentos, interfaces, tendências

Naomar de Almeida Filho


Maurício Lima Barreto
Renato Peixoto Veras
Rita Barradas Barata
(orgs.)

SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros

ALMEIDA FILHO, N., et al., orgs. Teoria epidemiológica hoje: fundamentos, interfaces, tendências
[online]. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1998. 256 p. EpidemioLógica series, nº2. ISBN 85-85676-50-7.
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TEORIA EPIDEMIOLÓGICA HOJE
Fundamentos, Interfaces, Tendências
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ
Presidente
Eloi de Souza Garcia

Vice-Presidente de Ambiente, Comunicação e Informação


Maria Cecília de Souza Minayo

EDITORA FIOCRUZ
Coordenadora
Maria Cecília de Souza Minayo

Conselho Editorial
Carlos E. A. Coimbra Jr.
Carolina Μ. Bori
Charles Pessanha
Hooman Momen
Jaime L. Benchimol
José da Rocha Carvalheiro
Luiz Fernando Ferreira
Miriam Struchiner
Paulo Amarante
Paulo Gadelha
Paulo Marchiori Buss
Vanize Macedo
Zigman Brenner

Coordenador Executivo
João Carlos Canossa P. Mendes
TEORIA EPIDEMIOLÓGICA HOJE
Fundamentos, Interfaces, Tendências

Organizadores
Naomar de Almeida Filho
Maurício Lima Barreto
Renato Peixoto Veras
Rita Barradas Barata

Série EpidemioLógica 2
Copyright © 1998 dos autores
Todos os direitos desta edição reservados à
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ/EDITORA

ISBN 85-85676-50-7

Capa: Guilherme Ashton

Projeto Gráfico: Guilherme Ashton e Carlota Rios


Editoração Eletrônica: Carlota Rios e Ramo» Moraes
Copidesque: Sergio Tadeu Niemeyer Lamarão e Fernanda Veneu
Supervisão Editorial: M. Cecilia Gomes Barbosa Moreira

ESTA PUBLICAÇÃO FOI PARCIALMENTE PRODUZIDA COM RECURSOS PROVENIENTES DO


CONVÊNIO 123/94 - ABRASCO/FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE DO MINISTÉRIO DA
SAÚDE - COM O OBJETIVO DO DESENVOLVIMENTO DA EPIDEMIOLOGIA EM APOIO ÀS
ESTRATÉGIAS DO SUS.

Catalogação-na-fonte
C e n t r o de I n f o r m a ç ã o Científica e Tecnológica
Biblioteca Lincoln de Freitas Filho

A 4 4 7 t Almeida Filho, Naomar de (Org.)


Teoria epidemiológica hoje: fundamentos, interfaces, tendências/Organizado
por Naomar de Almeida Filho, Maurício Lima Barreto, Renato Peixoto Veras e
Rita Barradas Barata. - Rio de Janeiro: FIOCRUZ/ABRASCO, 1 9 9 8 .
256p. (Série EpidemioLógica, 2)

1 . Epidemiologia. I. Barreto, Maurício Lima. II. Veras, Renato Peixoto.


III. Barata, Rita Barradas.

CDD-20.ed. - 6 1 4 . 4

1998
EDITORA FIOCRUZ
Rua Leopoldo Bulhões, 1480, Térreo - Manguinhos
21041-210 - Rio de Janeiro - RJ
Tel.: 590-3789 - ramal 2009
Fax.: (021) 280-8194
Autores
Dina Czeresnia
Departamento de Epidemiologia e Métodos
Quantitativos em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública/FiocRUZ

Douglas L. Weed
Instituto Nacional do Câncer - Estados Unidos

Eduardo Menéndez
Centro de Investigations y Estudios en Antropologia Social - México

Ezra Susser
Universidade de Columbia/Instituto Psiquiátrico do Estado de Nova York -
Estados Unidos

Fermin Roland Schramm


Departamento de Ciências Sociais da Escola
Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ

Juan Samaja
Universidade Nacional de Buenos Aires - Argentina

Luiz David Castíel


Departamento de Epidemiologia da Escola
Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ

Maria de Fátima Militão de Albuquerque


Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva do
Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães/FIOCRUZ

Marilia Bernardes Marques


Escola Nacional de Saúde Pública /FIOCRUZ

Mervyn Susser
Universidade de Columbia - Nova York, Estados Unidos

Milos Jénicek
Universidade McMaster - Canadá
Miquel Porta
Instituto Municipal de Investigação Médica de
Barcelona/Universidade Autônoma de Barcelona - Espanha
e Universidade da Carolina do Norte - Estados Unidos

Pedro Luis Castellanos


Organização Pan-Americana de Saúde - República Dominicana

Pierre Philippe
Universidade de Montreal - Quebec, Canadá

Organizadores
Naomar de Almeida Filho
Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia

Maurício Lima Barreto


Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia

Renato Peixoto Veras


Instituto de Medicina Social e Universidade Aberta
da Terceira Idade da Universidade Estadual do Rio de Janeiro

Rita Barradas Barata


Departamento de Medicina Social/Faculdade de
Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo
Sumário

APRESENTAÇÃO 9

PARTE I: FUNDAMENTOS

1. Epistemologia e Epidemiologia
Juan Samaja 23

2. O Senso Comum e a Filosofia na Epidemiologia


Douglas L. Weed 37

3. Limites da Inferência Causai


Dina Czeresnia & Maria de Fátima Militão de Albuquerque 63

PARTE II: INTERFACES

4. Antropologia Médica e Epidemiologia


Eduardo L. Menéndez 81

5. Metanálise em Epidemiologia
Milos Jénicek 105

6. Epidemiologia Clínica e Molecular: é possível integrar os três 'mundos'?


Miquel Porta 117

7. O Ecológico na Epidemiologia
Pedro Luis Castellanos 129

8. Epidemiologia, Tecnociência e Bioética


Fermin Roland Schramm 149

9. A Epidemiologia e a Biotecnologia
Marília Bernardes Marques 165
PARTE III: TENDÊNCIAS

10. Um Futuro para a Epidemiologia


Mervyn Susser & Ezra Susser 187

11. Teoria do Caos e Sistemas Complexos em Epidemiologia


Pierre Philippe 213

12. Metáforas para uma Epidemiologia Mestiça


Luis David Casúel 225
APRESENTAÇÃO

Fala-se, por toda parte, de u m a crise da saúde pública. N a base deste


rumor, constata-se u m a crise das disciplinas científicas que dão sustentação
às práticas coletivas em saúde, expressa pela incapacidade de tais disciplinas
de explicarem satisfatoriamente os enigmas e os paradoxos do campo. Por
exemplo: apesar das transformações, mais ou menos radicais, dos modelos
de atenção à saúde em todo o mundo, as reais condições de saúde das popu-
lações não têm melhorado na m e s m a proporção. E m outras situações ocorre
justamente o contrário: a despeito da falência dos sistemas assistenciais, a
situação de saúde efetivamente melhorou. Será que as explicações para es-
ses enigmas não seriam encontradas na inadequada base conceituai da plani¬
ficação em saúde, que se vale quase que exclusivamente de uma perspectiva
superficial e ingênua do ponto de vista epistemológico, incapaz de conside-
rar a historicidade e a concretude dos problemas de saúde?
N a s matrizes da investigação populacional em saúde, a epidemiologia
'normal' tem-se mostrado pouco instigante e criativa no que se refere à ca-
pacidade de levantar problemas. A investigação epidemiológica parece vol¬
tada à produção de modelos explicativos óbvios, triviais e imediatistas. Ob-
serva-se então outro paradoxo: enquanto ocorre um explosivo crescimento
de estudos epidemiológicos que fornecem subsídios para a prática clinica e
para intervenções sobre indivíduos, cada vez mais diminui o i m p a c t o da
disciplina c o m o eixo estruturante da saúde pública, debilitando sua capaci-
dade de apoiar tanto as intervenções sobre as populações quanto as decisões
sobre políticas públicas no campo da saúde.
A hipótese diagnostica mais óbvia é que a epidemiologia hoje sofre de
uma séria síndrome carencial: pobreza teórica. N a n c y Krieger (1994) parece
ter finalmente descoberto o que Ricardo B r u n o Gonçalves já há muito tem-
po insistia: a epidemiologia precisa com urgência de mais teoria. Quase com
indignação, Breilh (1995) observa que, neste momento, uma série de críticas
sobre a epidemiologia, que já eram senso c o m u m na cultura científica da
saúde coletiva latino-americana, começa a ser apropriada e difundida na lite-
ratura internacional c o m o se fossem originais. Talvez a principal dessas críti-
cas seja a idéia da carência teórico-epistemológica da disciplina. Porém, para
sermos justos, a síndrome da pobreza teórica não afeta somente a epidemio-
logia, mas grassa por todo o campo da pesquisa em saúde, conforme avalia-
ção recente (e igualmente tardia) de Holmberg & B a u m (1996).
De fato, até agora, o desenvolvimento teórico da epidemiologia tem se
baseado em conceitos problemáticos e parciais, integradores de m o d e l o s
explicativos tímidos e incompletos, deixando de debater criticamente a na-
tureza e as propriedades de seu objeto de conhecimento. Pensar a saúde
c o m o mera configuração de riscos, como se faz com insistência cada vez
maior na epidemiologia anglo-saxônica da qual somos tributários, restringe
inevitavelmente a c o n s t r u ç ã o conceituai desse c a m p o a m o d e l o s teóricos
essencialmente reducionistas, regidos por uma lógica mecânica linearizada.
Este m o d o de praticar a ciência epidemiológica tem c o m o conseqüência a
produção de conhecimentos distanciados dos objetos reais da saúde-enfermi¬
dade, aqueles que na verdade não habitam os sistemas fechados e controlados
dos laboratórios, mas sim compõem os sistemas abertos e caóticos, caracterís-
ticos da realidade histórica e social das populações concretas. Nesse processo
particular de produção de dados, observa-se um desprezo pelo que há de qua-
litativo, interativo, participativo, etnológico na definição dos problemas de saú-
de, o que, conforme defende Sperber (1985), inclui necessariamente os pro-
cessos subjetivos na raiz das representações sociais desses fenômenos.
N e s s e aspecto particular, u m breve e x a m e da história da epidemiolo-
gia revela questões interessantes. Os fundadores da ciência epidemiológica
flagrantemente valorizavam a discussão conceituai e filosófica c o m o uma
etapa crucial para a consolidação da identidade própria da disciplina perante
c a m p o s científicos aproximados. Greenwood, Frost, W i n s l o w e G o r d o n (en-
tre outros n o m e s ilustres) produziram reflexões bastante consistentes de afir-
m a ç ã o teórica da jovem ciência, buscando explicitar o que n a época se de-
signava c o m o a matéria da epidemiologia.
A o t e m p o e m que ampliava seu objeto de intervenção para além das
doenças infecciosas, a epidemiologia buscava, então, retomar a tradição da
medicina social de privilegiar o âmbito coletivo, visto c o m o m a i s do que u m
mero conjunto de indivíduos. Este esforço consciente de construção teórica
e fundamentação filosófica da nascente epidemiologia p r o v o c o u u m profun-
do impasse, posto que, c o m o sabemos, a n o v a ciência havia sido gestada de
dentro do m o d e l o flexneriano de u m a medicina experimental. Felizmente
para seus fundadores, já se produzia o d e s e n v o l v i m e n t o i n d e p e n d e n t e da
estatística moderna, que apresentava a V e l h a novidade' da teoria das proba-
bilidades, p r o p i c i a n d o a formalização do objeto privilegiado 'risco'. Este
aspecto específico, da maior importância para a consolidação da cientifici¬
dade da disciplina, não será aqui aprofundado, devendo o leitor consultar a
decisiva contribuição de A y r e s (1996) no sentido de u m a 'arqueologia' do
conceito de risco neste c a m p o cientifico.
Entretanto, c o m o se fosse concebível haver ciência sem teoria, as g e -
rações que se seguiram não d e m o n s t r a v a m maiores preocupações epistemo¬
lógicas, o que se reflete na pobreza teórico-metodológica de g r a n d e parte
dos textos fundamentais da disciplina a partir da d é c a d a de 60. D u r a n t e
quase 25 anos, até a publicação dos textos Theoretical Epidemiology de Mietti¬
nen (1985) e Modem Epidemiology de R o t h m a n (1986), p o u c o se avançou no
p r o b l e m a específico dos marcos teóricos da disciplina, reduzido a u m a m e r a
questão de definições (Lilienfeld, 1978). A i n d a assim, a partir de então, o
único problema conceituai que parecia monopolizar a atenção no cenário
epidemiológico dos países do N o r t e era o da causalidade e seus correlates.
Observa-se na literatura especializada u m a 'sangrenta' disputa entre popperi¬
anos e indutivistas (Weed, 1986, 1997, 1998; Susser, 1987, 1 9 9 1 ; Pearce &
Crawford-Brown, 1989), aparentemente sem maiores repercussões sobre a
prática teórica e metodológica da disciplina. A y r e s (1996:294) interpreta este
movimento quase que proposital de empobrecimento epistemológico como o
preço da legitimação fácil: em u m a fase de intensa expansão institucional expe-
rimentada pela epidemiologia nas décadas de 60 e 70, "o progresso conceituai da
disciplina restringe-se quase que exclusivamente aos aspectos tecno-metodoló¬
gicos que, no entanto, alcançam marcante versatilidade e penetração".
A situação atual da teoria epidemiológica define-se j u s t a m e n t e pela
constatação da mencionada crise. Finalmente, a malaise epistemológica da nossa
disciplina conseguiu atingir u m certo grau de explicitação, certamente determi-
nada pela incômoda posição de principal suspeito responsável pelas vicissitudes
da saúde pública neste fim de milênio. Nesse contexto, o debate teórico-filosófi¬
co ressurge altamente valorizado, convocando os estudiosos e praticantes da
ciência epidemiológica a questionar seus fundamentos, explorar suas interfaces
e formular discursos competentes indicadores das suas tendências.
A presente coletânea reúne textos a p r e s e n t a d o s c o m o conferências
ou palestras no evento conjunto do III C o n g r e s s o Brasileiro de E p i d e m i o -
logia, II C o n g r e s s o I b e r o - A m e r i c a n o de E p i d e m i o l o g i a e I C o n g r e s s o Lati-
n o - A m e r i c a n o de E p i d e m i o l o g i a . Pelo seu caráter de c o n g r e g a ç ã o transna ¬

cional, esse evento, realizado e m abril de 1 9 9 5 , foi s e m d ú v i d a u m a opor-


t u n i d a d e í m p a r de efetiva interação entre tradições científicas tão distin-
tas. Por u m lado, os m a i s insignes r e p r e s e n t a n t e s das v e r t e n t e s críticas da
e p i d e m i o l o g i a européia e n o r t e - a m e r i c a n a p u d e r a m apresentar as diferen-
tes respostas que estão p r o d u z i n d o frente à crise teórica d o campo. Por
outro, os e p i d e m i ó l o g o s da A m é r i c a Latina p u d e r a m , pela p r i m e i r a vez,
m o s t r a r de forma sistemática (e expor à avaliação crítica d o s seus p a r e s do
N o r t e ) o i m p o r t a n t e conjunto d e reflexões a c u m u l a d a s n a s ú l t i m a s déca-
das n o continente, q u e de certa forma configura u m a v e r t e n t e e p i s t e m o l ó -
gica da e p i d e m i o l o g i a social latino-americana.

FUNDAMENTOS

Por sua óbvia extração filosófica, os textos de Samaja, Weed e Czeres¬


nia & A l b u q u e r q u e foram agrupados na seção Fundamentos.
J u a n Samaja nos apresenta u m a revisão epistemológica da e p i d e m i o -
logia a partir de u m a abordagem historicista, m a p e a n d o c o m clareza e preci¬
são a p r o b l e m á t i c a t e ó r i c o - m e t o d o l ó g i c a da disciplina no m o m e n t o atual.
Identifica a n e c e s s i d a d e de a d i s c i p l i n a r e e x a m i n a r os c o n c e i t o s b á s i c o s ,
as c a t e g o r i a s d e a n á l i s e , os p r o c e d i m e n t o s m e t o d o l ó g i c o s , as r e l a ç õ e s
i n t e r d i s c i p l i n a r e s , enfim, os critérios d e cientificidade q u e a e s t r u t u r a m .
M a s a s u a p r i n c i p a l c o n t r i b u i ç ã o a o o p o r t u n o d e b a t e é ter p r o p o s t o
incluir nesta agenda o Vasto campo da significação' dos processos pa-
tológicos coletivos, destacando o caráter semiótico-narrativo do obje-
to e p i d e m i o l ó g i c o .
Douglas W e e d prefere levantar questões, e m u m a estratégia dialética
de valorizar o debate epistemológico no c a m p o da investigação epidemioló-
gica. Weed pergunta, por exemplo, c o m o d e v e m o s delinear o desenvolvi-
m e n t o da filosofia na epidemiologia. C o m este propósito, faz sentido exami-
nar a utilidade e criticar as escolhas dos pesquisadores quanto a p o n t o s de
vista filosóficos? E m síntese, Weed considera que u m a a b o r d a g e m que tudo
abarca n ã o se encontra e m u m a única escola de p e n s a m e n t o ou temática, no
m í n i m o devido ao fato de que tudo é passível de crítica e p o d e ser aprimora-
do. A p e s a r desta limitação, argumenta o autor, não d e v e m o s abandonar a
busca apenas porque ela se mostra difícil ou forçada, n e m d e v e m o s ser ga-
nanciosos ou apressados na necessária procura de fundamentação filosófica
coerente para a epidemiologia.
N ã o obstante a sua assunção c o m o questão básica da teoria epide-
miológica, Czeresnia & Albuquerque mostram-nos que o tratamento do
p r o b l e m a da c a u s a l i d a d e t e m se caracterizado, neste c a m p o , p o r u m a apro-
x i m a ç ã o i n s t r u m e n t a l do p r o c e s s o de d e t e r m i n a ç ã o q u e n ã o faz justiça à
riqueza e à c o m p l e x i d a d e da análise da situação de saúde. C o m o resultado,
observa-se u m a tendência à definição da d e t e r m i n a ç ã o e p i d e m i o l ó g i c a c o m
b a s e e m atributos individuais, o m i t i n d o o caráter e s s e n c i a l m e n t e g r u p a i
d o s f e n ô m e n o s da saúde n a s coletividades. C o m o objetivo d e avaliar a
consistência e p i s t e m o l ó g i c a das respostas do n e o c a u s a l i s m o frente às se-
veras críticas do p r a g m a t i s m o e do historicismo, as a u t o r a s d i s s e c a m os
m o d e l o s de inferência causal de Holland e Rubin. N o seu texto, Czeresnia &
A l b u q u e r q u e d e m o n s t r a m c o m m a e s t r i a q u e , p o r u m l a d o , os p r e s s u -
postos daqueles modelos requerem situações de aplicação e x t r e m a m e n t e
r e s t r i t a ; p o r outro, o c o n c e i t o b á s i c o d e ' e f e i t o m é d i o c a u s a l ' n ã o c u m -
pre a pretensão de tornar o risco u m estimador universal eficaz tanto
para inferências individuais quanto populacionais.
INTERFACES

N a atualidade assistimos a profundos d e s e n v o l v i m e n t o s na maioria


das ciências que tradicionalmente servem de base para a epidemiologia. N o v o s
modelos teóricos da realidade, paradigmas científicos, avanços metodológi-
cos e tecnológicos, v ê m transformando significativamente nossa capacidade
de entender e de operar sobre a natureza e os processos sociais. Tais desen-
volvimentos têm modificado consideravelmente o c a m p o geral das ciências,
enriquecendo e ampliando, c o m o nunca, a capacidade potencial de c o m p r e -
ender e transformar as condições de vida e saúde das populações. E m face
deste cenário, a busca de alternativas analíticas para u m a renovação da epi-
demiologia será facilitada c o m u m a abertura transdisciplinar para c a m p o s do
conhecimento em que se tenham identificado avanços na construção prática
de novos paradigmas.
Portanto, a epidemiologia deverá estar criticamente atenta às transfor-
m a ç õ e s disciplinares, e m todos os c a m p o s de ciência que lhe fazem interfa-
ce, a fim de equipar-se conceituai e metodologicamente para tratar seus ob-
jetos/sujeitos. D e s s a maneira, será possível revelar a arquitetura da c o m p l e -
xidade e a dinâmica dos processos reais, possibilitando intervenções efetiva-
mente integradoras. A s possibilidades de avanço da epidemiologia se rela-
cionam a transformações nos c a m p o s científicos que subsidiam teoricamen-
te a construção do seu objeto, c o m o a clínica, a biologia, a estatística e as
ciências sociais. Quais serão os efeitos da aplicação desses saberes à ciência
dos processos coletivos da saúde-enfermidade-cuidado? Os textos de M e -
n é n d e z , Jénicek, Porta, Marques, Castellanos e S c h r a m m , agrupados na se-
ção intitulada Interfaces, compartilham justamente o objetivo de responder
a esta questão.
A contribuição de E d u a r d o M e n é n d e z constitui u m esforço de siste¬
matização das complementaridades e divergências entre a epidemiologia e a
antropologia médica, nesse caso definidas de u m a maneira bastante conven-
cional. O principal e mais valioso argumento deste autor é a crítica, a partir
de u m a cuidadosa revisão de vários casos de 'apropriação indébita' de con-
ceitos, ao m o d o c o m o os epidemiologistas têm se instrumentalizado teorica-
mente, às expensas de conceitos antropológicos mal digeridos. E m contra-
partida, M e n é n d e z identifica, e igualmente critica, a tendência à medicaliza¬
ção da antropologia no c a m p o da saúde, produzindo o que d e n o m i n a de
'erosão metodológica' da abordagem etnográfica profunda, substituída por
instrumentos padronizados e por 'etnografias rápidas'.
Milos J é n i c e k e Miquel Porta detêm-se em aspectos específicos da prin-
cipal interface disciplinar da epidemiologia, aquela c o m a clínica. A p e s a r de
u m a história recente de conflitos e disputas territoriais, a m b o s os autores
assinalam u m novo espírito de integração entre os dois c a m p o s disciplinares,
e, nesse aspecto, Porta vai mais adiante, p r o p o n d o u m a articulação 'multiní¬
vel' incluindo o m u n d o molecular. Entretanto, apesar da h u m i l d a d e intelec-
tual c o m que J é n i c e k e Porta se posicionam perante o debate da vocação
interdisciplinar da epidemiologia atual, é Marília M a r q u e s q u e m avalia mais
d e t a l h a d a m e n t e os efeitos sobre a racionalidade e p i d e m i o l ó g i c a d o inter-
câmbio c o m a m o d e r n a biotecnologia. Considerando que a epidemiologia
vive u m a crise de crescimento, ampliando suas interfaces disciplinares e seus
objetos de intervenção, a autora expõe os novos desenvolvimentos das teo-
rias dos sistemas complexos no campo biotecnológico. M a r q u e s termina por
sugerir que, ao contrário do retrocesso que muitos t e m e m , as trocas discipli-
nares c o m a 'nova biologia' fomentarão o avanço de n o v o s p a r a d i g m a s na
própria ciência epidemiológica.
D e u m p o n t o de partida bastante diferente, p o r é m c o m resultados in¬
trigantemente convergentes, Pedro Luis Castellanos t a m b é m desenvolve u m
m a r c o de análise da epidemiologia baseado e m noções de sistemas comple-
xos dinâmicos, no seu caso por referência à obra do economista Herbert
Simon. A b o r d a n d o o problema da análise ecológica e m epidemiologia, Cas-
tellanos detém-se mais nas relações complexas entre subsistemas e nos ní-
veis hierárquicos componentes das situações reais de saúde. Termina sistemati-
zando algumas das contribuições latino-americanas para a construção de uma
'epidemiologia de populações', quase como u m a alternativa à tendência domi-
nante na epidemiologia convencional de fundar-se prioritariamente sobre o indi-
vidual como unidade de análise e nível de modelagem teórica.
Finalmente, contribuindo para o debate sobre os inter-efeitos entre a
epidemiologia e os biopoderes, F e r m i n Schramm p r o p õ e u m eixo dialético
estruturador das relações entre os c a m p o s disciplinares e m pauta: o conflito
entre autonomia e eqüidade. Tal c o m o a maioria dos autores desta coletâ-
nea, S c h r a m m não p o d e evitar tomar c o m o linha de base o tema da comple-
xidade na tecnociência contemporânea, balizando-o sucessivamente e m re¬
lação ao seu impacto sobre as questões teóricas da pesquisa epidemiológica
e as pragmáticas da bioética contemporânea. Para u m a p e r m a n e n t e e ade-
quada integração dos três objetos teóricos, é fundamental u m a postura críti-
ca e reflexiva capaz de explicitar as conexões e redes de saber e poder, ou
seja, as implicações e determinações éticas, políticas e econômicas da p r o -
dução de conhecimento científico e m saúde.

TENDÊNCIAS

A s discussões da seção anterior trouxeram à tona o problema das fron-


teiras disciplinares e, e m conseqüência, levam-nos diretamente a p r o b l e m a ¬
tizar o p a p e l da transdisciplinaridade na epidemiologia d o futuro, c o m o ciên-
cia responsável pela formulação de u m discurso científico sobre a saúde-
e n f e r m i d a d e - c u i d a d o no â m b i t o coletivo. Q u a l q u e r análise a n c o r a d a nas
políticas de transformação da situação de v i d a e saúde das populações re-
quer conceitos e m é t o d o s caracterizados pela diversidade de sua extração,
para que possibilitem a compreensão da complexidade dos sistemas dinâmi-
cos biológicos e históricos, b e m c o m o a formulação de práticas discursivas
capazes de interferir no espaço social da saúde coletiva.
D a d o s alguns balizamentos da esperada m u d a n ç a de p a r a d i g m a s , a
reconstrução da ciência epidemiológica nos níveis epistemológico e teórico
é a temática obrigatória nesta etapa de discussão das tendências do campo.
E m face da urgência deste debate, outro não é o objetivo c o m u m dos textos
de Susser & Susser, Philippe e Castiel, selecionados para c o m p o r esta seção.
C o m o objetivo de subsidiar escolhas sobre o futuro da epidemiologia,
Susser & Susser p r o p õ e m - s e a examinar a condição atual da epidemiologia
e m t e r m o s de sua evolução ao longo de três eras, cada u m a d e m a r c a d a por
u m paradigma: a era das estatísticas sanitárias, c o m o p a r a d i g m a dos mias-
m a s ; a era da epidemiologia das doenças infecciosas, c o m o da teoria do
g e r m e ; e a era da epidemiologia das doenças crônicas, c o m o da caixa preta.
E m torno desse desenvolvimento intelectual, os autores a r g u m e n t a m que o
atual p ar ad ig ma dominante na epidemiologia, o da caixa preta, tem hoje uti-
lidade decrescente e logo será substituído. A s s i m , prevêem u m a n o v a era,
por eles c h a m a d a de era da eco-epidemiologia, na qual será crucial o deli¬
n e a m e n t o de um n o v o m o d e l o capaz de abarcar vários níveis organizacio-
nais, tanto moleculares e sociais q u a n t o individuais. Objetivando integrar
vários níveis e m termos de desenho, análise e interpretação, p r o p õ e m um
paradigma, denominado de caixas chinesas, que poderá sustentar uma epidemi-
ologia orientada para a saúde pública. Advertem ainda Susser & Susser que, para
prevenir u m declínio da epidemiologia criativa nesta nova era, será necessário
não somente u m paradigma científico plausível, mas também redobrada atenção
aos processos sociais que favoreçam uma disciplina coesa e humana.
E m v e z de prescrever c o m o deverá ser o n o v o paradigma epidemioló¬
gico, a c o n t r i b u i ç ã o de Pierre Philippe b u s c a descrever alguns r e s u l t a d o s
concretos já obtidos na investigação e p i d e m i o l ó g i c a q u e p a r e c e m indicar
novas a b e r t u r a s p a r a d i g m á t i c a s para o c a m p o . E m p r i m e i r o lugar, o autor
d e s c r e v e o p a r a d i g m a linear corporificado n a regressão múltipla, n o qual
t o d o s os fatores de risco t ê m efeitos diretos sobre o resultado, e n a 'análise
linear e x p a n d i d a ' , e m q u e efeitos diretos e indiretos estão e m b u t i d o s e m
m o d e l o s hierárquicos. A l é m desses, h á a m o d e l a g e m d i n â m i c a não-linear,
que possibilita a c o m p r e e n s ã o de p r o c e s s o s d i n â m i c o s não-lineares e m re-
des de interações. Fina lm ente , Philippe descreve tentativas de m o d e l a g e m
c o m situações de d i m e n s i o n a l i d a d e m u i t o elevada, irredutíveis à m o d e l a -
g e m d i n â m i c a não-linear. Esse proce dime nto é utilizado q u a n d o o n ú m e r o
de e q u a ç õ e s diferenciais a serem elaboradas e resolvidas é p r o i b i t i v a m e n t e
grande, recomendando-se a m o d e l a g e m estatística fractal p a r a tratar de
sistemas c o m p l e x o s . A b o r d a g e n s fractals p e r m i t e m a sintonia fina dos p r o -
cessos c o m p l e x o s , que p o d e m ser m a i s freqüentes na área da saúde d o que
h a b i t u a l m e n t e se supõe. S e g u n d o o autor, são características d o s sistemas
c o m p l e x o s : alças de r e t r o a l i m e n t a ç ã o , transições de fase, atratores, rea-
ções e m cadeia, auto-organização, dinâmica ' l o n g e - d o - e q u i l í b r i o ' , adapta-
ção e p r o p r i e d a d e s e m e r g e n t e s . T i p i c a m e n t e , a d i n â m i c a não-linear é c o n s -
tituída p o r estruturas c o m p l e x a s e m desenvolvimento, cuja ' p l a n t a ' c o m -
p õ e - s e de u m a hierarquia das escalas de organização. E m b o r a seja i m p u l s i -
o n a d a p e l a entrada de energia proveniente d o a m b i e n t e , esta estrutura c o m -
plexa 'viva' está limitada a u m repertório r e d u z i d o de efeitos e m e r g e n t e s , a
despeito de sua plasticidade. Tais sistemas não e n c e r r a m fatores causais,
s o m e n t e eventos 'contribuintes' d e n t r o de u m a infinidade de escalas.
Finalmente, o texto de Luis David Castiel aborda aspectos teóricos e
conceituais do m é t o d o epidemiológico, com ênfase nas dimensões metafóri¬
cas vinculadas à p r o d u ç ã o científica, de u m m o d o geral, e à p e s q u i s a e m
epidemiologia, e m particular. N e s t a perspectiva, discute as relações da disci-
plina c o m a lógica identitária e as metáforas empregadas, tanto e m t e r m o s
de causalidade c o m o referentes à idéia de 'risco'. Para tal, o autor p r o c e d e a
u m a breve revisão da noção de metáfora, suas relações c o m o c h a m a d o sen-
so c o m u m e c o m a produção de conhecimento. A v a n ç a n d o p r o p o s t a s / q u e s -
tões e m torno de u m a 'epidemiologia das metáforas', Castiel discute proble-
m a s ligados à p e r c e p ç ã o pública de construtos produzidos pela epidemiolo-
gia, descrevendo algumas tentativas de desenvolver métodos que avancem no
conhecimento da situação de saúde-doença das populações, como por exemplo
a incorporação de aspectos qualitativos à pesquisa populacional e m saúde, con-
forme discutido por Menéndez neste volume. Finalmente, Castiel avalia as po-
tencialidades de uma 'epidemiologia contextual' com base e m inovações meto-
dológicas (como, por exemplo, as redes sociohistóricas nos estudos de AIDS), ou
em u m a aparente reabilitação dos estudos ecológicos (Cf. texto de Castellanos
nesta coletânea). Para a implementação e utilidade pragmática desta última pro-
posta, o autor considera relevantes as tentativas de avanços conceituais com
base nas noções de evento ou população-sentinela, no contexto de uma redefini-
ção da estratégia da vigilância epidemiológica.

Os textos que c o m p õ e m este v o l u m e sem dúvida constituem excelen-


te material para u m balanço necessário e oportuno das tendências da teoria
epidemiológica n a atualidade. Praticamente todos os autores revelam-se c o m -
prometidos c o m a fascinante tarefa de pensar os c a m i n h o s que se a b r e m
para a ciência epidemiológica neste final de século.
Nesse sentido, apesar de u m a adesão implícita às aberturas paradig-
máticas possíveis no c a m p o epidemiológico, Weed, Czeresnia & Albuquer-
que, M e n é n d e z , J é n i c e k e P o r t a o c u p a m u m a p o s i ç ã o q u e poderíamos
d e n o m i n a r d e ' s ó b r i a e x p e c t a t i v a ' . E m c o n t r a s t e , os o u t r o s c o l a b o r a d o -
res d e s t a c o l e t â n e a d e f e n d e m p r o p o s t a s , c o m p l e m e n t a r e s e n t r e si, d e
novos paradigmas na epidemiologia. Castellanos, M a r q u e s , S c h r a m m e
Philippe não escondem o entusiasmo pelo chamado paradigma da com-
plexidade, dando ressonância a um debate próprio da ciência contempo-
rânea. Susser & Susser apresentam uma versão mais contida de m u d a n ç a
paradidmática, preconizando uma espécie de neo-sistemismo aplicado à
E p i d e m i o l o g i a , q u e eles d e s i g n a m p o r ' e c o - e p i d e m i o l o g i a ' . F i n a l m e n t e ,
s i n t o n i z a d o s c o m o hermeneutical turn c a r a c t e r í s t i c o d a n o v a e p i s t e m o l o ¬
gia p r a g m a t i s t a , S a m a j a e C a s t i e l c o m p a r t i l h a m u m forte i n t e r e s s e d e
v a l o r i z a ç ã o d o p o t e n c i a l s e m i o l ó g i c o da e p i d e m i o l o g i a , p r o p o n d o u m a
b u s c a d o s e n t i d o n a c o n s t r u ç ã o p r á x i c a da d i s c i p l i n a . E s t a p r o p o s t a é
aliás b a s t a n t e c o n v e r g e n t e c o m u m a ' s e m a n á l i s e e p i d e m i o l ó g i c a ' , n o sen¬
tido i n d i c a d o p o r M a r i o T e s t a ( 1 9 9 7 ) .
Consenso h á e m três pontos. Primeiro, observa-se e m todos os autores
u m a saudável atitude compreensiva, postulando p r i m o r d i a l m e n t e sínteses
integradoras (e. g., 'a epidemiologia mestiça' de Castiel) em lugar das estéreis
disputas e m torno do espólio da epidemiologia do risco. Segundo, conforme
sistematizado nas contribuições de Samaja, W e e d e Schramm, a epidemiolo-
gia deve tornar-se mais h u m a n a e reflexiva, preocupando-se cada v e z mais
c o m os aspectos éticos e políticos da saúde. E m terceiro lugar, c o m o melhor
assinalam Porta, Castellanos e Castiel, é necessário redefinir o caráter utilita¬
rista da disciplina, superando o 'pragmatismo vulgar' dos defensores de u m a
e p i d e m i o l o g i a aplicada, na linha de M a c M a h o n e Terris. N e s s a direção,
Susser & Susser, dignos representantes do otimismo acadêmico columbiano,
o u s a m anunciar o fim dos velhos paradigmas na epidemiologia. Parodiando
a filosofia aplicada de M a n o e l Francisco dos Santos, resta esperar que os
adversários estejam de acordo c o m as jogadas ensaiadas e facilitem a vida do
time dos defensores do n o v o na ciência epidemiológica.

Os Organizadores

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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PARTE I

FUNDAMENTOS

Epidemiology is essentially an inductive science, concerned not


merely with describing the distribution of disease, but equally
or more with fitting it into a consistent philosophy.

;
Wade Hampton I rost
EPISTEMOLOGIA

Ε EPIDEMIOLOGIA*

Juan Samaja

NOTAS PRELIMINARES SOBRE A NOÇÃO DE CIÊNCIA

Que interesse pode ter para a epidemiologia o debate sobre seus fundamentos
epistemológicos? O que a epistemologia tem a dizer para a epidemiologia?
A resposta a estas questões, que e x a m i n a r e m o s neste trabalho, pressu-
p õ e a revisão prévia de certos aspectos da palavra 'ciência', tal c o m o se p o d e
extrair das circunstâncias de sua origem.
Primeiro a metafísica e depois a física (como batismo inicial das 'ciên-
cias particulares') surgiram n o cenário da cultura c o m a pretensão de estabe-
lecer o saber legítimo e efetivo para os h o m e n s : esse que deve ser adotado
c o m o verdadeiro por ser efetivamente verdadeiro.
O surgimento dessas ciências resultou de m u d a n ç a s nas formas da
consciência social que se produziram na transição das sociedades gentílicas

Tradução: Cláudia Bastos


às s o c i e d a d e s já d o t a d a s de Esta dos. E m outras p a l a v r a s , a filosofia e a
c i ê n c i a e m e r g i r a m c o m o a e x p r e s s ã o das n o v a s c o n d i ç õ e s d e d i r e ç ã o so-
cial i n t r o d u z i d a s pela g e s t ã o estatal. C o m e s s e p r o p ó s i t o , elas c o n t r a p u -
s e r a m à força das r e p r e s e n t a ç õ e s éticas e das n a r r a ç õ e s m í t i c o - r e l i g i o s a s
a o p e r a ç ã o eficiente d e seus p r ó p r i o s i n s t r u m e n t o s de s i m b o l i z a ç ã o : os
c o n c e i t o s , j u í z o s e e n c a d e a m e n t o s a r g u m e n t a t i v o s , e, o q u e é d e p a r t i c u -
lar i n t e r e s s e aqui — a eficácia d e suas a p l i c a ç õ e s t é c n i c a s .
E s t e p r o c e s s o se i n i c i a n a A n t i g ü i d a d e , a m a d u r e c e e se a p e r f e i -
çoa a partir da formação dos Estados burgueses. N o seio desta nova
f o r m a d e v i d a , a f i l o s o f i a e as c i ê n c i a s p a r t i c u l a r e s se c o n s o l i d a m c o m o
a o r g a n i z a ç ã o válida e efetiva de c o n h e c i m e n t o , apta a conduzir os
a s s u n t o s centrais na g e s t ã o dos Estados e de sua e c o n o m i a . Os orga-
nismos estatais c o m e ç a r a m a formar seus recursos técnicos (funcio-
n á r i o s d e t o d a s as c a t e g o r i a s ) m e d i a n t e t r e i n a m e n t o s s i s t e m á t i c o s p a r a
o exercício dos procedimentos discursivos (característicos deste m o d o
de m a n e j a r os símbolos e suas c o n s e q ü ê n c i a s operatórias) e m escolas
ou u n i v e r s i d a d e s .
O s c e r i m o n i a i s estatais f o r a m s u b s t i t u i n d o , e m suas l i t u r g i a s reli-
g i o s a s , a c o m u n h ã o d o s m e m b r o s p e l a b u s c a da ' c o m u n h ã o p o l í t i c a ' , re-
c o r r e n d o ao d e b a t e c o r t e s ã o ou ao p a r l a m e n t a r , c o m suas n o v a s 'litur-
g i a s ' : a r e t ó r i c a e a l ó g i c a a c a d ê m i c a s . A s n a r r a ç õ e s m í t i c a s c e d e r a m lu-
gar às teorias e x p l i c a t i v a s na p r o d u ç ã o da c o m p r e e n s ã o ou p r o d u ç ã o de
s e n t i d o . A s f ó r m u l a s m á g i c a s a b r i r a m e s p a ç o às o p e r a ç õ e s m e c â n i c a s ,
e n e r g é t i c a s , c i b e r n é t i c a s etc. — r e a i s ou s i m b ó l i c a s .
C a b e a g o r a r e t o r n a r à q u e s t ã o inicial deste t r a b a l h o : o q u e i m p l i c a
e x a m i n a r os f u n d a m e n t o s e p i s t e m o l ó g i c o s d e u m a d i s c i p l i n a ?
D e a c o r d o c o m o q u e foi d i t o , n ã o e s t á e m j o g o a v e r i g u a r , i n o -
c e n t e m e n t e , q u a i s s ã o s u a s n o ç õ e s b á s i c a s o u p r e l i m i n a r e s e se e s t a s
noções c o i n c i d e m ou não c o m o real, m a s algo muito mais compro-
metedor. O que está efetivamente em j o g o é sua l e g i t i m i d a d e c o m o
f o r m a d e s a b e r , o q u e s i g n i f i c a m u i t o m a i s d o q u e se i n t e r r o g a r s o b r e
a v e r d a d e o u f a l s i d a d e d o s fatos. E s t á e m j o g o o q u e os j u r i s t a s d e n o -
m i n a m " a v e r d a d e f o r m a l " , i s t o é, a s u a a d e q u a ç ã o a o s pressupostos
f o r m a i s d a c o n s c i ê n c i a s o c i a l q u e se t o m a c o m o v á l i d a .
O STATUS EPISTEMOLÓGICO DA EPIDEMIOLOGIA

Quando se debate o estatuto cognitivo de um certo tipo de disciplina ou


campo do saber — neste caso, a epidemiologia — no âmbito acadêmico (aulas,
conferências ou congressos), o que se discute, de uma maneira ou de outra, é a
sua legitimidade, isto é, a sua adequação ou não aos pressupostos formais domi-
nantes da consciência social que ora impõe os cânones de validação.
O debate epistemológico sobre a epidemiologia encerra, ademais, um in-
teresse adicional, já que esta disciplina aspira a estabelecer o saber verdadeiro
sobre a saúde e a enfermidade nas populações humanas, o que implica colocar
em questão o que se entende por normal ou anormal na vida dos homens, nas
sociedades e nos Estados. Mas quem estabelece os critérios de validação?
Pelo exposto anteriormente, infere-se que a epistemologia constitui um
espaço de luta entre posições adversárias em torno do que representa uma 'boa'
legitimação, ou, expresso de uma forma mais direta, de quais são ou deverão ser
as formas institucionalmente válidas de fazer circular o conhecimento.
Dois grandes tipos de orientações têm-se destacado neste debate: o
empirismo e o apriorismo. Pastes têm sido os caminhos mais amplos e mais
freqüentemente trilhados pelos acadêmicos em busca dessa legitimação, por-
que, cada um a seu modo, ofereceu importantes vantagens para a consolida-
ção dos diferentes interesses das classes hegemônicas. Ε c o m o se estas duas
variantes epistemológicas compartilhassem o m e s m o espaço: o do exercício
atual do poder institucionalizado.
Há, ainda, um terceiro caminho que, todavia, tem p e r m a n e c i d o à mar-
g e m destes trajetos hegemônicos: o historicismo, inaugurado por Vico, no
início da modernidade, e desenvolvido inicialmente por Kant e imediatamente
depois por Hegel, sob a denominação de dialética. U m traço decisivo desta via
marginal de legitimação consiste em sua pergunta a respeito do 'nascimento do
novo', formulada por meio da questão do Vir a ser', e não da questão de 'derivar
o que deve ser' ou de 'demonstrar o que não é' Este caminho, à diferença dos
outros dois, caracteriza-se por substituir a questão 'qual é o saber legítimo?' por
'qual é a história formativa deste ou daquele critério de legitimidade?' Ε como se
esta variante epistemológica ocupasse o espaço do desafio ao poder, ou, mais
especificamente, ao poder emergente ainda não instituído.
A questão 'como se produzem os critérios de legitimidade?' foi con-
testada pelo historicismo da seguinte maneira: é legítimo o que coincide com
o aceito c o m o evidente por todos os m e m b r o s de u m a c o m u n i d a d e , e, por
sua v e z , é evidente o q u e é essencialmente congruente c o m os pressupostos
que t o r n a r a m possível seu contrato de fundação. D e u m a maneira propria-
m e n t e epistemológica, u m saber é legítimo quando organiza as representa-
ções de maneira análoga ao contrato que logrou obter u m a resolução transa-
cional suficientemente estável para dar lugar a u m a forma de v i d a social.

EM QUE UM DEBATE EPISTEMOLÓGICO


CONTRIBUI PARA A EPIDEMIOLOGIA?

U m a vez definido, de m o d o genérico, o sentido de u m debate episte-


mológico c o m o o aqui evocado, é importante i n d a g a r de o n d e os principais
m o d e l o s (ou analogias permitidas) extraem a capacidade de se legitimar nas
ciências m o d e r n a s ; d e quais traços da organização social procede a potência
legitimante dos grandes m o d e l o s epistemológicos da cultura m o d e r n a (os
m o d e l o s m e c â n i c o s , processuais, orgânicos, morfogenéticos, praxiológicos
e t c ) . D e acordo c o m o construtivismo dialético defendido aqui, responder¬
se-ia: da própria vida, de seus conflitos e pactos.
Por conseguinte, a tarefa referente ao debate sobre a legitimidade do
saber epidemiológico consistirá e m discutir sobre que processos sociais as
analogias permitidas e os objetos-modelo da epidemiologia c o m o disciplina
têm-se estabelecido. Por exemplo, que analogias tornaram possível a idéia
ingenuamente empirista de que este c a m p o surgiu c o m o resultado d e obser-
vações atentas sobre o cólera realizadas por u m observador talentoso — J o h n
S n o w ? Ou, então, que analogias permitiram a idéia dedutivista, segundo a
qual o nascimento da epidemiologia deveu-se a u m duelo entre 'hipóteses
contrapostas' (por exemplo, a miasmática e m oposição à bacteriológica)?
E, finalmente, o que torna possível a existência de cientistas que se interro-
g a m sobre a origem d e seus conceitos e pretendam fazer sua própria crítica
histórica, desconstruindo seus discursos e rastreando sua g e n e a l o g i a (por
exemplo, G o l d m a n n ou H a b e r m a s ) ?
O EXAME HISTORICISTA DE ALGUNS
DOS PRESSUPOSTOS DA EPIDEMIOLOGIA

E m b o r a não seja possível detalhar aqui os resultados que a epistemo¬


logia historicista alcançou nas últimas décadas de investigação, m e n c i o n a r e -
m o s dois dos mais notórios, os de Michel Foucault e os de Ian Hacking. São
conhecidos os estudos do primeiro sobre o nascimento da medicina, b e m
c o m o sua tese de que aquilo que a sociedade capitalista, nos fins do século
X V I I e inícios do século X V I I I , trouxe de original foi não a m e d i c i n a do
corpo individual, m a s , ao contrário, a medicina social (primeiro c o m o medi-
cina d e E s t a d o e depois c o m o medicina urbana). Para Foucault (1981), a
m u d a n ç a r u m o a u m a medicina do corpo individual aparece recentemente,
na segunda m e t a d e d o século X I X , q u a n d o o p r o b l e m a d a força de trabalho
se torna u m a questão crítica.
Por sua v e z , os estudos sobre os recursos dos Estados foram motiva-
dos por razões muito mais amplas do que o horizonte das questões sanitárias
ou de m e d i c i n a social. Eles estão referidos à emergência dos m o d e l o s de
interpretação d a realidade que surgiam das novas práticas políticas no coti-
diano das ações administrativas das formações estatais. F o r a m os requisitos
relativos ao manejo dos recursos e do funcionamento dos órgãos estatais
que d e r a m o r i g e m a n o v o s m o d e l o s de i n t e r p r e t a ç ã o t a n t o d a s r e a l i d a d e s
sociais q u a n t o d a s n a t u r a i s . E s t e a s p e c t o foi b r i l h a n t e m e n t e a n a l i s a d o
p e l o s e s t u d o s d e H a c k i n g s o b r e o n a s c i m e n t o d a s e s t a t í s t i c a s , e m seu
livro A Domesticação do Acaso (1991). Nele, o autor comprova em que
m e d i d a a i m p o r t â n c i a d a s estatísticas foi reconhecida e fomentada pelos
grandes intelectuais da época, c o m o parte de sua tarefa de prestar assessoria
aos funcionários estatais.
A s principais analogias e paradigmas que constituíram o capital con-
ceitual da e p i d e m i o l o g i a d e r i v a m d a s g r a n d e s t e n d ê n c i a s q u e c a r a c t e r i z a -
r a m as s o c i e d a d e s m o d e r n a s n o s s é c u l o s X V I I , X V I I I e X I X . E s s e capital
c o n c e i t u a i foi o r g a n i z a d o , p o r seu t u r n o , s e g u n d o u m c r i t é r i o l ó g i c o q u e
se p o d e c a r a c t e r i z a r c o m o formal e conjuntista, entendendo p o r tais deno-
m i n a ç õ e s a c o n c e p ç ã o de que as n o ç õ e s são dispositivos classificatórios,
mais ou m e n o s convencionais, de ordenação de u m material que p e r m a n e c e
externo a essas formas.
A grande supremacia obtida por esta maneira de entender a lógica deve-
se ao fato de que ela traduzia para categorias epistêmicas o sentido c o m u m
que imperava nas sociedades m o d e r n a s 'guiadas' pela praxis contratualista
1
interindividual. Esta práxis contratualista é compreensível e m sua especifi-
cidade q u a n d o c o m p a r a d a àquela outra que ela desloca do cenário social —
as relações comunais. C o m efeito, a relação de contrato se diferencia essen-
cialmente das relações comunais pelo fato de q u e os sujeitos de u m contrato
não compartilham vínculos de m ú t u a dependência: constituem indivíduos
diferentes e autônomos que, por mútua vontade, se p õ e m de acordo acerca
do intercâmbio de a l g u m b e m ou serviço externo a eles, e cuja racionalidade
d e p e n d e essencialmente de a l g u m tipo de valor c o m p u t á v e l presente nos
objetos do intercâmbio (Samaja, 1993a).
Para que as relações contratuais pudessem existir e se difundir, foi neces-
sário que ocorresse previamente u m processo de rompimento dos vínculos de
dependência mútua dos membros da comunidade. Talvez seja esta a razão bási-
ca pela qual as relações de intercâmbio não floresceram no interior das comuni-
dades, c o m o mostrou M a x Weber (1978) e m sua História Econômica.
Para que os fenômenos naturais e sociais estudados pela ciência pu-
d e s s e m ser p e n s a d o s , c o m a força da evidência, mediante as categorias de
'conjunto e elementos', e, assim, operacionalizados por m e i o dos m é t o d o s
da contabilidade (somas, diferenças, igualdades), foi necessário que a trama
da vida cotidiana deixasse p a r a trás a evidência dos vínculos familiares e
comunais — argamassa da sociedade e m suas fases iniciais — e que se cons-
truíssem e m seu lugar m e c a n i s m o s contratuais, c o m seu triplo registro: inte¬
rindividualidade, centricidade e associatividade. Tornou-se i g u a l m e n t e ne-
cessário que os sistemas de parentesco fossem desestruturados, como resultado
do desdobramento da crise da propriedade comunal, em benefício do avanço da
divisão do trabalho social e do desenvolvimento do intercâmbio.
A essa supremacia lógica das categorias de conjunto, c o m o a g r e g a d o
de elementos independentes, deve-se tanto a potência quanto os limites do
a d v e n t o da e p i d e m i o l o g i a n a m o d e r n i d a d e , c o m o a d i s c i p l i n a ou o m é t o -
do que busca taxas de morbi-mortalidade e correlações c o m possíveis
fatores c a u s a i s .

1
Adota-se o critério de Bidet (1993) que distingue três dimensões na matriz da modernidade: a
contratualidade interindividual, a 'centricidade' e a associatividade.
D e acordo c o m a lógica dominante, as inferências lógicas, aplicadas
ao trabalho dos cientistas, registra apenas duas aplicações: a d e d u ç ã o - apli-
cação de u m conhecimento sobre a totalidade do conjunto a u m a parte ou
subconjunto — e a indução — a generalização d o que se sabe acerca de u m a
parte do conjunto a todo o objeto. Derivar conclusões particulares (deduzir)
ou produzir u m a generalização (induzir) constituem as operações elementa-
res do raciocínio científico. A s demais formas de operar c o m o conhecimen-
to são postas à m a r g e m pelas teorias metodológicas, pressupondo-se que
sejam irracionais.

RESSURGIMENTO DO HISTORICISMO

S e m dúvida, a supremacia destes paradigmas do nascimento e da m a -


turidade d o capitalismo, cujo melhor e m b l e m a é a teoria newtoniana, está
chegando ao fim. A transformações das sociedades atuais t ê m engendrado
condições extremas d e crise da própria matriz da m o d e r n i d a d e e de seu trí-
plice registro. M a s a esta crise t ê m se somado perspectivas inspiradas e m
notáveis avanços científicos, estreitamente relacionados entre si: a ciberné-
tica, a teoria da informação e da comunicação, a investigação de sistemas
complexos, as estruturas hierárquicas, as investigações semióticas etc.
Ε importante insistir sobre o fato de que todos estes avanços teóricos,
somados à crise da modernidade, p a r e c e m conduzir a u m a inesperada reapa¬
rição daquilo q u e representou o ' p a r a d i g m a m a r g i n a l ' da m o d e r n i d a d e : o
historicismo e a dialética. Todos estes desenvolvimentos, na verdade, con¬
fluem para u m p a r a d i g m a que, adotando a conceituação de B u c k l e y (1982),
p o d e ser t a m b é m denominado de paradigma morfogenético. Pode-se afir-
mar, sem dúvida, que este paradigma retoma a direção da epistemologia his-
toricista de V i c o e a dialética de Hegel e M a r x .
Trata-se d e u m a epistemologia q u e incorpora a idéia d o desenvolvi-
m e n t o de sistemas adaptativos complexos, que não somente p o s s u e m meca-
n i s m o s de conservação das estruturas, m a s , e sobretudo, de p r o d u ç ã o de
novas estruturas, c o m o sistemas intrinsecamente instáveis, inconstantes, e
histórico-evolutivos. Tais m o d e l o s são m e n c i o n a d o s porque proporcionam
ricas analogias p a r a se pensar a saúde e a enfermidade. P e r m i t e m contextua¬
lizar a noção de saúde no âmbito do que se p o d e designar de sistema socio-
cultural, c o m o que se alude a u m a estrutura de processos morfogenéticos,
mediante os quais o sistema se reproduz, incluindo nessa reprodução a pro-
dução de novas formas.

PERSPECTIVAS PARA A EPIDEMIOLOGIA

N o c o n t e x t o de n o v a s a n a l o g i a s e p a r a d i g m a s , q u e p e r s p e c t i v a s se
a b r e m p a r a o d e b a t e e p i s t e m o l ó g i c o sobre a e p i d e m i o l o g i a ? Q u e novos
d e s e n v o l v i m e n t o s , n o â m b i t o da e p i d e m i o l o g i a , p o s s i b i l i t a e s t a forma
d e c o n c e b e r a s a ú d e - d o e n ç a c o m o funções d a a u t o - r e g u l a ç ã o d a r e p r o -
dução social?
C o n f o r m e exposto anteriormente, o limite m a i s significativo dos m o -
delos epidemiológicos que possibilitaram os paradigmas dedutivistas e indu¬
tivistas foi a lógica conjuntista, que forneceu o pa radig ma de base para pen-
sar q u e a avaliação das situações de saúde das sociedades h u m a n a s somente
podia ser efetuada mediante taxas e correlações, ou seja, mediante o cálculo
de casos e sua referência a diferentes denominadores possíveis.
Diferentemente do que se pensa c o m bastante freqüência, não foi a
h e g e m o n i a da medicina clínica que limitou os desenvolvimentos da epide-
miologia. A o contrário, foi a própria epidemiologia, inspirada n a lógica con¬
juntivista, que vinculou seu 'destino' à locomotiva da nosografia e, c o m ela,
ao c ô m p u t o de casos e à sua ponderação c o m relação a diferentes g r u p o s
populacionais. Tanto é verdade que, atualmente, a epidemiologia parece ca-
recer de objeto-modelo, e m u m sentido teoricamente ambicioso.
Efetivamente, se e n t e n d e m o s por objeto-modelo a conceitualização
de u m c a m p o da realidade mediante a seleção de u m conjunto de variáveis,
é necessário reconhecer que a epidemiologia parece carecer de variáveis p r ó -
prias. Se, e m relação às variáveis contextuais, ela lança m ã o das variáveis da
sociologia ou da antropologia, e m relação ao c a m p o da saúde, conforma-se
c o m taxas. O mais alto nível de teorização alcançado c o m a utilização destas
taxas, ao m e n o s na prática dominante deste c a m p o , consiste em aproveitar a
polissemia encerrada na palavra metafórica 'risco'. A pobreza deste nível de
teorização foi examinada e criticada por A l m e i d a Filho e m seu livro A Clíni-
2
ca e a Epidemiologia (1992).
T a l v e z n ã o seja i n t e i r a m e n t e e x a g e r a d o a f i r m a r q u e a ú n i c a n o ç ã o
d e q u e a e p i d e m i o l o g i a d i s p ô s — d e s d e seu a d v e n t o até h o j e , n o s e n t i d o
d e b u s c a r u m a c o m p r e e n s ã o da s a ú d e c o m o f e n ô m e n o social - q u e p o s -
sui h i e r a r q u i a teórica p a r a a l é m de i n d i c a d o r e s e m e s t a d o b r u t o c o n t i n u a
s e n d o a c a t e g o r i a d u r k h e i m i a n a d e a n o m i a . C o m o se s a b e , D u r k h e i m
p r o p ô s q u e os v a l o r e s das taxas d e s u i c í d i o c o n s t i t u í s s e m i n d i c a d o r e s d e
u m a v a r i á v e l teórica q u e e x p r e s s a u m a c o n d i ç ã o r e l e v a n t e d a v i d a d a s
s o c i e d a d e s h u m a n a s . N ã o u m a s i m p l e s m é d i a ou p r o p o r ç ã o , m a s u m a
3
p r o p r i e d a d e objetiva d o s s i s t e m a s n o r m a t i v o s s o c i a i s e de sua p o t e n c i a -
l i d a d e p a r a o r g a n i z a r e c o n t e r a v i d a d o s i n d i v í d u o s . O s o c i ó l o g o francês
d i s t i n g u i u três s i t u a ç õ e s ou c o n d i ç õ e s sociais t í p i c a s , d e f e n d e n d o a a d o -
ç ã o d e u m n o v o c o n c e i t o p a r a interpretar u m a s i t u a ç ã o preponderante
n a s s o c i e d a d e s c o n t e m p o r â n e a s : as t r a n s i ç õ e s a c e l e r a d a s d a s e s t r u t u r a s
e c o n ô m i c a s (atualmente conhecidas c o m o processos de reconversão), que
d e t e r m i n a v a m superposições d e sistemas n o r m a t i v o s i n c o m p a t í v e i s entre
si, dando lugar a esse fenômeno particular batizado por ele d e anomia.
U m a taxa de morbidade refere-se somente a u m número maior ou menor
de episódios; isso, ainda, não constitui u m fato social. A s s i m c o m o M a r x
sustentava que não é a quantia que u m a pessoa tem n o bolso que informa
sobre sua classe social, m a s sim a sua inserção no sistema de produção, não
são essas taxas que revelam a saúde ou a doença das popul ações , m a s sim a
sua distribuição c o m o expressão de algo presente na discursividade da vida
cotidiana de u m a população.

2
O capítulo 2, Risco: objeto-modelo da epidemiologia, ilustra bem esse ponto.
3
"As tendências coletivas têm uma existência própria: são forças tão reais como as forças cósmicas,
ainda que sejam de outra natureza, moldam igualmente o indivíduo de fora, embora isso ocorra por
outras vias.(...) Mas qualquer que seja o nome que lhe é dado, importa reconhecer sua realidade e
concebê-la como um conjunto de energias que determinam nossas ações proveniente de fora, assim
como o fazem as energias físico-químicas cuja ação sofremos. Deste modo são coisas suigeneris e não
entidades verbais" (Durkheim, 1965:249).
NOSOGRAFIA VERSUS SEMIÓTICA
NARRATIVA Ε DISCURSIVA

A s v a n t a g e n s decorrentes d o r e n a s c i m e n t o d o p a r a d i g m a dialético
(morfogenético) consistem, precisamente, e m manter aberta a possibilidade
de pensar a complexidade sem ter que lançar m ã o de u m a redução de u m
nível a outro, do social ao individual, por exemplo. P e r m a n e c e aberta a pos-
sibilidade de compreender os novos planos de realidade que se p r o d u z e m
nas interfaces hierárquicas, c o m o na p a s s a g e m do natural ao cultural. C o m
base neste paradigma, torna-se possível imaginar u m a epidemiologia m e n o s
limitada pela nosografia que c o m p u t a casos e calcula taxas, valendo-se de
eventos individuais, q u e caminha na direção de u m a epidemiologia mais ins-
pirada nos processos normativos (cujo conteúdo é semiótico, comunicacio¬
nal, e não unicamente físico).
Toda nosografia, c o m o resultante de u m tipificação de p r o c e s s o s par-
ticulares, v ê - s e s e m p r e às v o l t a s c o m u m a t e n d ê n c i a a 'fisicalizar' seus
tipos, ao invés de se deixar atravessar pelos seus fundamentos de caráter
sociocultural.
Os desenvolvimentos epistemológicos contemporâneos, decorrentes
especialmente da teoria da informação e da comunicação, p e r m i t e m distin-
guir claramente as relações próprias do nível orgânico, das relações sociais.
A s primeiras i m p l i c a m intercâmbios de energia físico-química, ao passo que
as demais p õ e m e m jogo complexos processos de comunicação ou de inter-
câmbio de informação. A s primeiras r e m e t e m à noção t r a d i c i o n a l de c a u s a
e f i c i e n t e , já as s e g u n d a s r e m e t e m a o s s i g n i f i c a d o s (isto é, a o s efeitos
d e s e n c a d e a d o r e s da t r a n s m i s s ã o de i n f o r m a ç ã o , e m c o n t e x t o s p r a g m á t i -
cos). D e acordo com Buckley (1982:74), "o indivíduo que atua — a pes-
soa p s i c o l ó g i c a — é, e m e s s ê n c i a , u m a o r g a n i z a ç ã o q u e se d e s e n v o l v e e
m a n t é m s o m e n t e u m i n t e r c â m b i o s i m b ó l i c o c o m outras p e s s o a s e m per-
m a n e n t e d e s e n v o l v i m e n t o e p o r m e i o de tal i n t e r c â m b i o " .
O 'fato' relativo à saúde-doença é concebido c o m o u m componente
de u m sistema de processos reais e simbólicos, c o m o a expressão ou o sinal
de que alguns desses processos foi interrompido, violado, bloqueado, pertur-
bado e que os processos encarregados de reequilibrá-los ou não existem ou
não estão operando c o m o deveriam. O p e r a n d o no sentido de restituir o an¬
terior ou de criar u m a nova alternativa de reordenamento, seria então u m a
visão concreta e dinâmica que inclua os componentes simbólico-comunica¬
cionais e m jogo. Isto supõe afirmar que a s a ú d e / d o e n ç a é, desde s e m p r e , u m
fenômeno semiótico-comunicacional, u m a instância d e sentido significativa
p a r a sujeitos da cultura, e não apenas u m fenômeno natural.
Parafraseando Buckley, poderíamos afirmar q u e o objeto das ciências
da saúde é realmente social e a sociedade é, de fato, u m fenômeno psíquico-
semiótico. A epidemiologia terá c o m o objeto-modelo u m objeto que implica
a produção de sentido, devendo suas variáveis explicar o sucesso ou o fra-
casso na produção do sentido.

A PRODUÇÃO DE SENTIDO

O aspecto mais geral da produção de sentido se expressa, no âmbito


formal, de maneira simples: somente há sentido quando a p a r t e é relaciona-
da ao todo ao qual pertence. A relação de significação é u m a função dos
vínculos que unem, de maneira viva, u m a parte ao seu conjunto. E m outras
palavras, somente se compreende aquilo que se p o d e referir a seus processos
de formação ou construção na totalidade e m que está inserido.
D e s s e modo, segundo as recentes investigações cognitivistas, a forma
mais elementar e onipresente de produção de sentido por parte dos seres
h u m a n o s consiste n a narração. A fonte m e s m a da significação p a r e c e derivar
da dinamicidade das estruturas do m u n d o da vida. E m conseqüência, para
u m integrante de u m a configuração cultural, a reprodução de seu m u n d o é
aquilo que é obviamente dotado de sentido, aquilo pelo qual n ã o se pergunta
n e m se narra. A s s i m , não é a narração a criadora originária de sentido, mas
sim a que restaura ou reengendra u m sentido vivido como primário n o m o -
mento e m que ele já se perdeu. "A função da história é encontrar u m estado
intencional que mitigue ou pelo m e n o s torne compreensível o desvio e m
relação ao padrão cultural canônico. Este objetivo é o que empresta verossimilhan-
ça a uma história." (Bruner 1992:61) (grifo do autor).
Mediante a narração, os membros de uma cultura reintroduzem a signifi-
cação onde havia se produzido uma fratura, u m hiato, u m a situação excepcional,
ou, como disse Giddens, a irrupção de "situações críticas" (1995:95).
Os processos de reprodução social constituem o que se pode denominar
'a discursividade esperada da vida'. Quando essa discursividade é interrompida,
a narração constitui o procedimento mediante o qual os membros de u m a cultu-
ra restituem esta discursividade esperada.
Conflitividade e contratualidade parecem ser, portanto, os dois pólos de
uma incessante dialética, no âmbito da qual a sociedade e sua cultura v ã o se
construindo e se preservando. Observamos então como a reprodução e a narra¬
tividade estão articuladas como duas rodas de engrenagens, como dois momen-
tos do mundo da vida humana: a narratividade restitui o sentido no ponto em
que a discursividade esperada (fonte primária de sentido) viu-se interrompida.
A natureza última da sociedade consiste e m inserir-se e m u m constan-
4
te processo de construção, o que implica u m processo contínuo d e recons-
t r u ç ã o d e cada u m a de suas subestruturas — indivíduos, famílias, g r u p o s
primários e secundários, organizações informais, instituições da sociedade
civil, Estados etc. D e acordo c o m Giddens (1995:95),

0 conceito de rotinização, ancorado em uma consciência prática, é vital para a


teoria da estruturação. Uma rotina é algo inerente tanto à continuidade da personalidade do
agente, quando ele anda pelos caminhos das atividades cotidianas, quanto às instituições da
sociedade, que são como são somente em virtude de sua reprodução continuada.

A reprodução social é o conjunto de ações mediante as quais os diver-


sos atores m e n c i o n a d o s satisfazem, e m u m a hierarquia de c o m b i n a ç õ e s , as
necessidades de seus próprios m o d o s de funcionamento, e m conformidade
às regras q u e lhes dão validade — o reconhecimento social. A validação ou o
r e c o n h e c i m e n t o social é a função assimiladora própria das subjetividades
c o m o fenômenos sociais. Essa função expressa o m o v i m e n t o de busca do
equilíbrio dos integrantes na condição de protagonistas de u m presente con-
tratual c o m a m e m ó r i a semiótica de u m a passado conflitivo.
Tomando-se essa nova perspectiva, a patologia, c o m o entidade físico-
computável, perde esse valor fascinante, p e r m a n e c e n d o , contudo, referida à
patologia semiótico-narrativa, isto é, aos processos reprodutivos, ao conflito
e às transações que e m e r g e m dos contextos socioculturais n o â m b i t o dos

4
"A natureza última do real consiste em estar em construção permanente, ao invés de consistir em
uma acumulação-de estruturas já realizadas" (Piaget, 1969:62).
quais é produzida. N a perspectiva da reprodução, o 'caso' deixa de ocupar a
posição central, c e d e n d o esse p o s t o aos c o n t e x t o s , aos a m b i e n t e s e aos
m e c a n i s m o s por i n t e r m é d i o dos quais se r e p r o d u z e m ou r e n e g o c i a m c o n s -
t a n t e m e n t e os p r o c e s s o s que tecem a d i s c u r s i v i d a d e e s p e r a d a da v i d a . A
relação d e c a u s a l i d a d e c e d e a vez à noção, mais rica e complexa, de 'signi-
ficação' e 'estruturação'.
De tudo o que foi exposto, depreende-se que os desenvolvimentos cientí-
ficos e metodológicos contemporâneos exigem da epidemiologia uma profunda
revisão epistemológica, capaz de torná-la apta para reexaminar seus conceitos
básicos, seu objeto, suas categorias de análises, seus procedimentos investigati¬
vos, suas relações interdisciplinares etc. No cenário dessa revisão, deve-se in-
cluir o vasto campo da significação que procura se constituir no âmbito das
situações críticas, campo que configura o processo patológico. Significação que
o ato clínico freqüentemente perde quando limita a história clínica a um mero
registro de fatos. Não importa se fatos biológicos ou sociais, meros fatos dos
quais se eliminou o sentido que lhes é conferido pela narração do paciente, no
momento mesmo em que este narra sua situação crítica, impregnada de vínculos
com os processos de reprodução continuada das instituições e da sociedade glo-
bal. Talvez os objetos dos epidemiologistas, ao solapar a reprodutibilidade da
vida diária, estejam mais próximos destes processos que engendram situações
críticas do que do conteúdo de casos patológicos e das suas associações com
variáveis sociais e econômicas. Em outras palavras, talvez tenha chegado a hora
de completar o conceito de 'significação estatística', que meramente nos infor-
ma que é pouco provável que uma certa associação se deva ou não ao acaso,
lançando mão do conceito de 'significância narrativa', que nos informa que os
processos de estruturação social contêm oposições que produzem conseqüên-
cias perversas, associadas significativamente a essas circunstâncias particulares
narradas por cada paciente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA FILHO, Ν. A Clínica e a Epidemiologia. Rio-Salvador: Apce/Abrasco, 1992.

BIDET, J. Teoria delaModernidad. Buenos Aires: Ed. El cielo por asalto, 1993.

BRUNER, J. Ados de Significado. Madri: Alianza, 1991.

BUCKLEX W La Sociología y la Teoria Moderna de los Sistemas. Buenos Aires: Amorrortu, 1982.

FOUCAULT, M. Microfísica do Voder. Rio de Janeiro: Graal, 1981.

GIDDENS, A. La Constitution de la Sociedad:. basespara la teoria de la estructuración. Buenos


Aires: Amorrortu 1995.

HABERMAS, ].Teoria de la Action Comunicativa. Buenos Aires: Taurus, 1990.

IHACKING, I. La Domestication del Azar. Barcelona: Gedisa, 1991.

PIAGET, J. El Estructuralismo. Buenos Aires: Proteo, 1969.

SAMAJA, J. Epistemologia y Metodologia. Buenos Aires: Eudeba, 1993a.

SAMAJA, J. La reproducción social e la relación entre la salud y Ias condiciones de


vida (elementos teóricos y metodológicos para re-examinar la cuestión de Ias
"relaciones" entre salud y condiciones de vidaj. OPS/OMS, 1993b.

WEBER, M. Historia de la Economia General Cidade do México: Fundo de Cultura


Econômica, 1978.
O SENSO COMUM Ε

A FILOSOFIA N A EPIDEMIOLOGIA*

Douglas L. Weed

Eu não discordaria da idéia de que a epidemiologia é senso


comum. Obviamente, ela é senso comum, e eu gostaria que várias
disciplinas contivessem algum elemento [desse senso comum].
Enterline

N a s últimas duas décadas, os epidemiologistas t ê m t e s t e m u n h a d o a


união de seu m u n d o da ciência e tecnologia c o m o m u n d o da filosofia. O
que poderia ter sido u m casamento entre u m c a m p o que está a m a d u r e c e n d o
e outro já p l e n a m e n t e desenvolvido transformou-se, e m vez disso, e m u m a
relação turbulenta. Essa relação caracteriza-se p o r a b r a n g e r t a n t o s a d e p t o s
a p a i x o n a d o s de d e t e r m i n a d o s p o n t o s de v i s t a s filosóficos, q u a n t o críti-
cos igualmente dogmáticos, levando a filosofia na e p i d e m i o l o g i a a l e m -
brar, às v e z e s , u m fogo c r u z a d o e n t r e d i f e r e n t e s p o s i ç õ e s i n t e l e c t u a i s .
E s t a s i t u a ç ã o se c o m p l e t a c o m q u e i x a s de q u e existiria u m ' c u l t o ' ou um

* Tradução: Cláudia Bastos & Francisco Inácio Bastos


1
'acampamento' de e p i d e m i o l o g i s t a s , adeptos rígidos da filosofia de Karl
Popper (Pearce & Crawford-Brown, 1989; B u c k , 1989; Renton, 1994). N e s -
te estágio inicial do desenvolvimento filosófico na epidemiologia, a lealdade
dogmática a (ou contra) qualquer p o n t o de vista parece, simultaneamente,
desnecessária e imprópria. Certamente, há muitas perspectivas filosóficas
que m e r e c e m ser levadas e m consideração. A l é m disso, não há idéias filosó-
ficas que não encontrem o espaço necessário para seu aprimoramento.
U m a a b o r d a g e m que p e r m i t a selecionar e aplicar idéias filosóficas,
tarefas centrais de uma 'filosofia na epidemiologia', pode ser bastante útil.
Essa expressão foi tomada de empréstimo ao desenvolvimento da investiga-
ção filosófica na medicina, que c o m p r e e n d e três fases cumulativas e pro-
gressivamente mais complexas: filosofia e medicina, filosofia na medicina, e
filosofia da medicina (Pellegrino, 1986). A n a l o g a m e n t e , a evolução dos es-
tudos filosóficos aplicados à epidemiologia envolve filosofia e epidemiolo-
gia, sendo as d u a s atividades p r a t i c a m e n t e i n d e p e n d e n t e s e os conceitos
filosóficos utilizados para identificar p r o b l e m a s relativos ao pensamento
e p i d e m i o l ó g i c a E m segundo lugar, há uma filosofia na epidemiologia, na
qual os m e s m o s problemas são examinados analiticamente de p o n t o s de vis-
ta filosóficos específicos. Finalmente, há uma filosofia da epidemiologia e
seus produtos, em que tem lugar u m a síntese geral de problemas identifica-
dos e e x a m i n a d o s nas duas fases anteriores.
A julgar p e l o e s t á g i o atual da l i t e r a t u r a s o b r e este t e m a ( P e a r c e &
C r a w f o r d - B r o w n , 1 9 8 9 ; B u c k , 1 9 8 9 ; R e n t o n , 1994, entre o u t r o s ) , a epi-
d e m i o l o g i a h a b i t u a l m e n t e p e r m a n e c e na s e g u n d a fase, isto é, filosofia na
e p i d e m i o l o g i a . E m outras p a l a v r a s , os e p i d e m i o l o g i s t a s t ê m c o n s e g u i d o
u l t r a p a s s a r a m e r a i d e n t i f i c a ç ã o de p r o b l e m a s , r e c o r r e n d o ao e m p r e g o de
conceitos filosóficos a s e r e m utilizados n a a n á l i s e d a q u e l e s p r o b l e m a s .
Os p r o b l e m a s e m e r g e m e m três das m a i s r e l e v a n t e s áreas da filosofia: a
ontologia, a epistemologia e a ética (Weed, 1988a). Neste trabalho, a
ênfase r e c a i r á n o s p r o b l e m a s q u e e n v o l v e m a n a t u r e z a d o s p a r a d i g m a s
e p i d e m i o l ó g i c o s , aí i n c l u í d a s a n a t u r e z a da c a u s a e as t e o r i a s s o b r e a
o c o r r ê n c i a d a s d o e n ç a s e a l ó g i c a da i n f e r ê n c i a causai.

1
Existe aí um trocadilho, sutil e intraduzível, envolvendo categorias de análise cultural utilizadas
pela ensaísta norte-americana Susan Sontag, como kitsch, camp e cult. A idéia do autor parece ser a
de adicionar uma pitada de ironia ao fenômeno da adesão de grupos à filosofia de Popper conside-
rado como um 'modismo' (Ν. T.).
O objetivo deste trabalho é expor três princípios do senso c o m u m e
utilizá-los c o m o um guia, com o objetivo de selecionar e aplicar pontos de
vista filosóficos específicos. C o m u m e n t e citadas na literatura epidemiológi-
ca, as perspectivas popperiana e kuhniana são aqui utilizadas para ilustrar os
dois primeiros princípios. Q u a n t o ao terceiro princípio (o geral), serão utili-
zadas as idéias de Aristóteles, Watkins e outros filósofos. Muitas perspecti-
vas filosóficas devem ser levadas em consideração, entre as quais a filosofia
do 'realismo', recentemente discutida no Journal of Epidemiology & Community
Health (Renton,1994) e as diferentes teorias e métodos de bioética contem-
porâneos. Estas perspectivas foram deixadas de lado para u m a utilização
futura destes princípios do senso c o m u m .

TRÊS PRINCÍPIOS DO SENSO COMUM


PARA A FILOSOFIA NA EPIDEMIOLOGIA

PRIMEIRO PRINCÍPIO: é possível obter grandes recompensas na tentati-


va de executar tarefas difíceis sugeridas pelos filósofos, m e s m o que o suces-
so pareça improvável.
U m exemplo perfeito deste princípio pode ser identificado na idéia de
que a ciência passa por revoluções, noção que emerge de forma muito viva
do trabalho de Kuhn (1970). O primeiro princípio afirma que os proveitos
encontram-se à espera daqueles que tentam revolucionar a epidemiologia.
E m b o r a uma descrição detalhada desses m o m e n t o s esteja além da finalida-
de deste trabalho, a história de qualquer ciência comporta m o m e n t o s extre-
m a m e n t e c o n v u l s i o n a d o s , q u a n d o as idéias vigentes são substituídas por
novas. Essas revoluções, ou mudanças de paradigma, resultam, basicamen-
te, de uma curiosa combinação de dois fatores: anomalias cumulativas no
paradigma existente, precipitando uma crise, c aparecimento de um novo
paradigma, ainda não sujeito a essas mesmas dificuldades. ( G o o d m a n , 1 9 9 3 ) .
Mas o que é exatamente um paradigma? Kuhn admitiu não existir uma
definição precisa da estrutura das revoluções científicas. M a s t e r m a n (1970)
realçou este fato, de maneira convincente, ao mencionar 21 usos diferentes
do termo, todos encontrados na obra mais popular de Kuhn. Algumas con¬
fusões daí decorrentes poderiam ser amenizadas pela criação de, ao m e n o s ,
duas categorias: os p a r a d i g m a s globais, neles incluindo todas os esforços
compartilhados por u m a comunidade científica; e os paradigmas particula-
res, referidos a u m esforço específico no interior desta m e s m a c o m u n i d a d e .
Exemplos da perspectiva global p o d e m ser encontrados em trabalhos nos
quais u m a dada disciplina científica — a ciência social, a clínica médica, a
epidemiologia, ou a biologia molecular, p o r exemplo - é discutida integral-
mente c o m o p a r a d i g m a (Yach,1990; Stein & Jessop, 1988, Susser, 1989).
O paradigma 'particularista' contém três subtipos: m o d e l o s , generali-
zações simbólicas (isto é, leis quantitativas) e exemplificações (isto é, pro-
b l e m a s relativos a livros-texto, úteis para o ensino dos princípios e práticas
de u m a disciplina científica m a d u r a ) (Kuhn, 1974). Poucos epidemiologistas
têm discutido modelos teóricos ou analíticos c o m o paradigmas particularis¬
tas. U m b o m exemplo desse uso restrito encontra-se no debate sobre o en-
saio clínico randomizado (Hill, 1983; Horwitz, 1987). E x e m p l o s de paradig-
m a s teóricos incluem, no passado, o contágio e a teoria do m i a s m a , e, m a i s
r e c e n t e m e n t e , o p a r a d i g m a da 'caixa preta' da causalidade a m b i e n t a l e o
p a r a d i g m a dos modelos biológicos dos m e c a n i s m o s de doença (Savitz, 1994;
Skrabanek, 1994). A l g u n s epidemiologistas têm sugerido integrar o paradig-
m a ambiental e o da biologia molecular (Vandenbroucke, 1988). O u t r o s com-
b i n a m os m e s m o s dois paradigmas particularistas e m u m só, o reducionismo
cartesiano, rejeitado, por sua v e z , em favor de u m p a r a d i g m a novo, ainda
mais amplo, caracterizado c o m o u m a teoria sofisticada da causalidade, ca-
paz de integrar conceitos sistêmicos, i n t e r d e p e n d ê n c i a de c a u s a s , fatores
históricos e interesses sociais (Loomis & W i n g , 1990).
A s solicitações para que se definam novos paradigmas apontam, na
verdade, para u m a m u d a n ç a revolucionária no pensamento e p i d e m i o l ó g i c a
Os defensores desta m u d a n ç a p a r e c e m estar convictos, geralmente, de que
ela não a p e n a s é necessária, c o m o t a m b é m trará benefícios. E m b o r a seja
sem dúvida importante levar em consideração a necessidade de m u d a n ç a s e
refletir sobre as vantagens potenciais das novas idéias, é possível modificar
paradigmas sem q u e necessariamente se rejeite o passado. U m e x e m p l o his-
tórico ocorrido no final do século X I X é instrutivo. N a q u e l a ocasião, os epi-
demiologistas passaram a aceitar u m n o v o para di gm a de necessidade causal
que competia c o m o antigo modelo de múltiplas causas suficientes, m a s não
o substituía completamente (Kunitz, 1987, 1988).
A s vantagens de u m a m u d a n ç a paradigmática nos m o d e l o s teóricos
são atraentes e incluem o aprofundamento do conhecimento por m e i o de
u m a explicação aperfeiçoada e a melhor aplicação do conhecimento obtido.
E m t e r m o s epidemiológicos, u m a revolução, ainda que a m p l a n o seu esco-
po, deve proporcionar m o d e l o s teóricos mais adequados sobre a ocorrência
das doenças e métodos mais efetivos de prevenção e controle de doenças.
Ε mais fácil falar a respeito da mudança do que colocá-la em prática. N a
epidemiologia contemporânea das doenças crônicas, há relativamente pouco
desenvolvimento teórico. Se uma parcela significativa de seus praticantes de-
dicasse u m a parcela maior do seu tempo propondo, testando e criticando teo-
rias gerais da ocorrência das doenças, talvez pudesse ocorrer u m a revolução.
Estas teorias devem provavelmente ser compostas de u m a ampla variedade de
formas ontológicas e não necessariamente de u m amontoado de formas reuni-
das sob o guarda-chuva rasgado da causalidade (Anderson, 1991).
T a m b é m aqui é muito mais fácil falar a respeito da m u d a n ç a do que
colocá-la e m prática. O s estudos teóricos em epidemiologia n ã o constam
das listas de prioridades de muitas agências de financiamento. A l é m disso,
há relativamente poucas linhas-mestras que indiquem o que de fato consti-
tui progresso teórico. A perspectiva kuhniana não é muito útil neste caso
porque, no seu âmbito, as prescrições práticas sobre o que, de fato, significa
progresso n ã o constituem u m tema importante. A filosofia popperiana, por
sua v e z , fornece alguma orientação sobre c o m o avaliar se u m a n o v a teoria
e x p l a n a t ó r i a r e p r e s e n t a u m a v a n ç o e m r e l a ç ã o às t e o r i a s concorrentes
(Kuhn,1974b; Popper, 1974; Watkins, 1970; Toulmin, 1970).
Esta avaliação do progresso teórico tem sido codificada e m um conjun-
to de critérios, inicialmente descritos por Buck (1975) para a epidemiologia,
ilustrada, no âmbito da epidemiologia ocupacional, pela problemática do 'efei-
to do trabalhador saudável' (Weed, 1985). Mais recentemente estes critérios
foram utilizados na avaliação de u m a nova teoria, construída c o m base no
componente suficiente do modelo de causalidade e do modelo de ação inde-
pendente (Koopman & Weed, 1990). Estes padrões r e m e t e m ao fato de que
u m a nova teoria mostra-se superior caso explique e corrija os erros da teoria
preexistente, estabeleça predições mais exatas, passe por testes mais rigorosos
do que a concorrente, ou, enfim, unifique teorias previamente não relaciona-
das. Os padrões, considerados separadamente, são, obviamente, insuficientes
para serem adotados c o m o uma linha-mestra para o progresso teórico.
U m a agenda mais abrangente poderia envolver, pelo m e n o s , quatro
etapas fundamentais. E m primeiro lugar, os modelos teóricos existentes seri-
am criticados de m o d o a evidenciar as suas fragilidades. E m seguida, novos
modelos seriam propostos e depois avaliados utilizando os padrões descri-
tos. Finalmente, a 'revolução' ocorreria, na medida em que o novo modelo
consiga ofuscar e substituir o modelo anterior.
Constitui um exemplo bastante ilustrativo dessa abordagem a proposta
de um tipo de modelo causai discreto para a epidemiologia, o modelo causal
do componente suficiente (Rothman, 1976). Os pontos fortes de modelo são
a simplicidade e a capacidade de delinear três noções fundamentais: necessi-
dade causal, suficiência causal e multicausalidade. Esta última noção pode ser
interpretada tanto em termos de múltiplas causas suficientes quanto de múlti-
plos componentes de uma dada causa suficiente. Apesar desses pontos fortes,
desde o inicio o modelo causal dos componentes suficientes foi criticado por
se mostrar falho quanto à proposição de conexões entre as causas que o com-
punham (Koopman, 1977). Esta crítica revelou-se importante porque enfati-
zou o fato de as escalas de mensuração de efeitos combinados, as interações,
serem dependentes das conexões entre as causas que compõem o modelo, ao
passo que o modelo original implicava que todos os efeitos combinados seri-
am mensurados por intermédio de uma escala aditiva simples.
Recentemente, foi proposto um novo modelo de causação em epide-
miologia, c o m p r e e n d e n d o a especificação de quatro c o n e x õ e s específicas
entre causas componentes ao longo dos processos patogênicos: c o m p l e m e n -
tar, e m separado, i n t e r m e d i á r i o e cooperativo-competitivo ( K o o p m a n &
Weed, 1990). O modelo também une estas conexões a formulações estatísti-
cas similares àquelas utilizadas no modelo de ação independente (Weinberg,
1986). C o m base neste novo modelo, denominado teoria da epigênese, fo-
ram deduzidas diversas escalas de mensuração de efeitos c o m b i n a d o s , cor-
r e s p o n d e n d o , c a d a u m a delas, a u m a r e l a ç ã o específica p r o p o s t a entre
c o m p o n e n t e s causais. A teoria da epigênese pode significar progresso teóri-
co, já que estabelece predições mais precisas e detalha um n ú m e r o maior de
observações do que a teoria anterior. Embora o aumento da predibilidade e
da capacidade explanatória possa se mostrar u m a r e c o m p e n s a suficiente,
outras conseqüências também decorrem dessa m u d a n ç a teórica. A teoria da
epigênese não apenas traz aperfeiçoamentos ao modelo causal dos c o m p o -
nentes suficientes, c o m o também estabelece uma ponte sobre o hiato exis¬
tente entre os m o d e l o s causais determinísticos e os m o d e l o s probabilísticos
utilizados nas análises epidemiológicas cotidianas. Só o futuro dirá se, de
fato, este novo m o d e l o representa u m a revolução.

SEGUNDO PRINCÍPIO: há u m preço a ser p a g o por se exigir de u m a esco-


la de p e n s a m e n t o filosófico mais do que ela p o d e oferecer.
Esse princípio significa, utilizando-se a l i n g u a g e m simples do senso
c o m u m , que não convém ser por demais ambicioso. Consideremos, por e x e m -
plo, que se p a g a u m preço por se esperar e m demasia dos p o n t o s de vista
populares — e, para alguns, m a r c a n t e s — de K u h n . C o n f o r m e apresentado
anteriormente, sua formulação constitui u m a tese histórica, m a i s descritiva
do que prescritiva, na qual a ciência é a d e q u a d a m e n t e descrita mediante a
noção de paradigma, c o m o atividades n o r m a l m e n t e aceitas, interrompidas
pelas sublevações muito ocasionais do progresso revolucionário. A s formu-
lações de K u h n são tão aceitáveis e confortáveis que, se a l g u é m d e p e n d e
excessivamente delas, p o d e m ocorrer três efeitos adversos.
O primeiro destes efeitos é que a epidemiologia p o d e c o m p r e e n d e r a
si própria c o m o u m p a r a d i g m a global e operar n o r m a l m e n t e s e m desenvol-
ver teorias passíveis de teste (Masterman, 1970; Feyerabend, 1970;
Watkins, 1975). Este perigo é particularmente agudo para os cientistas en-
volvidos no que Feyerabend (1970) d e n o m i n a ciência n o r m a l , 'não-heróica'
e m e s m o tediosa, pois eles d e s c o n h e c e m a crítica dirigida aos seus conceitos
e métodos. Para aqueles comprometidos c o m a filosofia de K u h n , é funda-
mental c o m p r e e n d e r que um dos perigos a que estão expostos os pesquisa-
dores é o de desenvolver teorias tão amplas que as tornem 'intestáveis', não
somente irrefutáveis, m a s t a m b é m não verificáveis.
O segundo efeito, relacionado ao primeiro, diz respeito à possibilidade
das revoluções científicas e m epidemiologia serem contempladas seriamen-
te c o m o u m a meta prática, realizável pela parcela dos seus praticantes que
optou por u m a orientação kuhniana ou deslizou, passivamente, para ela. Por
ser rara e anômala, u m a revolução no p e n s a m e n t o epidemiológico revela-se
u m a m e t a p o u c o razoável, e m b o r a essencial no longo prazo. O p r o b l e m a vai
além de u m a perda de motivação, u m a v e z que não se dispõe de u m m é t o d o
que subsidie esta revolução. D e acordo c o m K u h n (1970), as revoluções ou
m u d a n ç a s de p a r a d i g m a s não são tributárias dos m é t o d o s propostos, da lógi-
ca ou de provas. Elas ocorreriam de u m a forma abrupta ou então inexisti¬
riam, c o m o algumas experiências de conversão religiosa (Watkins, 1970).
O terceiro efeito, decorrente de u m a dependência excessiva dos pon-
tos de vista de Kuhn, é que a investigação filosófica p o d e ser posta de lado
ou ignorada. D e m o d o a esclarecer de que m o d o essa afirmação estranha
p o d e ser verdadeira, suponhamos que u m filósofo n a epidemiologia escolha
c o m o seu objeto a análise da prática epidemiológica de u m p o n t o de vista
kuhniano. Ele ou ela não prescreverá práticas futuras, m a s antes descreverá
o que os epidemiologistas estão fazendo hoje e e m que consistia sua prática
no passado (Schlesinger, 1988). Q u a n d o confrontado c o m u m a descrição
histórica de sua ocupação de todo o dia, o praticante da disciplina p o d e r i a
f a c i l m e n t e c o n c l u i r q u e e s s a e s p é c i e d e i n v e s t i g a ç ã o filosófica é, n o m e -
l h o r d o s c a s o s , e x c e s s i v a e, n a p e r s p e c t i v a m e n o s favorável, i r r e l e v a n t e .
E s t a a t i t u d e de ' q u e m liga p a r a isso?!' foi e x p r e s s a d e m a n e i r a i n g ê n u a
e m u m t r a b a l h o r e c e n t e , q u e c o m e n t a v a o p a p e l d a s filosofias d e s c r i t i -
v a s n a inferência e p i d e m i o l ó g i c a (Petitti, 1988).
O u t r o e x e m p l o do segundo princípio p r o v é m de u m a d e p e n d ê n c i a
d o g m á t i c a d a filosofia p o p p e r i a n a (Popper, 1968; 1 9 6 5 ; M a c l u r e , 1 9 8 8 ) .
Q u a n d o a l g u é m se mostra excessivamente d e p e n d e n t e da tese d e P o p p e r
sobre o progresso do conhecimento por meio de conjecturas e refutações,
conforme testemunha a inclinação de alguns filósofos atuais na epidemiolo-
gia, há u m preço a pagar. Ε este preço, para o praticante da epidemiologia,
pode representar u m a 'unilateralização' particular do p o n t o de vista: os re-
sultados negativos (refutações) serão salientados de tal m o d o que a impor-
tância dos resultados positivos (corroborações), no sentido de impulsionar a
ação da saúde pública, passa a ser negligenciada. Este p o n t o fundamental
será analisado com maior detalhe e m u m m o m e n t o posterior deste trabalho.
O u t r a deficiência da filosofia popperiana é não abordar de m a n e i r a
a d e q u a d a o conteúdo das teorias (Bronowski, 1974). S e é v e r d a d e q u e a
filosofia popperiana demarca cuidadosamente os limites entre ciência e pseu¬
dociência e, c o m este propósito, procede à análise dos requisitos m e t o d o l ó -
gicos necessários à testagem de u m a teoria, p e r m a n e c e , contudo, relativa-
mente silenciosa sobre os usos da teoria para além da explicação científica.
E m resumo, a filosofia de Popper é essencialmente metodológica, tendo muito
p o u c o a dizer a respeito das distinções ontológicas entre as teorias da ciência
e a tecnologia, por exemplo, (Renton, 1994; Agassi, 1979; B u n g e , 1974). Por
conseguinte, o epidemiologista que se torna ideologicamente c o m p r o m e t i d o
c o m este p o n t o de vista p o d e encontrar nele uma a b o r d a g e m relativamente
útil para investigar a melhor explicação biológica da ocorrência da doença,
m a s p o d e t a m b é m se deparar c o m u m vazio ao utilizá-la na busca de outras
m e t a s da pesquisa epidemiológica, c o m o , por exemplo, o a p r i m o r a m e n t o da
saúde h u m a n a (Gordis,1988).
Finalmente, o fato de a filosofia popperiana ser o b o d e expiatório fa-
vorito n a literatura epidemiológica atual p o d e ser explicado p o r q u e os críti-
cos esperavam que ela viesse a ter mais aplicações à epidemiologia (Susser,
1989). N ã o obstante, é difícil deixar de reconhecer que o trabalho de Popper
nos proporciona alguns conceitos e estratégias úteis. A q u e l e s que criticam o
trabalho de K u h n c h e g a r a m a u m a conclusão semelhante (Popper, 1974;
Watkins, 1970; Toulmin, 1970; Feyerabend, 1970). Deste m o d o , parece que
os epidemiologistas necessitam primeiro escolher um caminho, para e m se-
guida equilibrar o potencial da filosofia e m proporcionar v a n t a g e n s , discuti-
do no primeiro princípio, com o seu potencial e m causar prejuízos, discutido
no segundo princípio. É c o m esta finalidade que o princípio geral é proposto.

PRINCÍPIO GERAL: para que p o s s a m o s escolher e i m p l e m e n t a r as idéi-


as dos filósofos é necessário b e m mais do que está exposto n o primeiro e no
segundo princípios.
Este princípio parece expressar perfeitamente o senso c o m u m : os pri-
meiros dois princípios não constituem u m guia suficiente p a r a a filosofia na
epidemiologia. C e r t a m e n t e há algo m a i s do que r e c o m p e n s a r os achados
extraordinários e 'punir' a ganância. A l é m disso, os filósofos na epidemiolo-
gia considerarão a seleção e a aplicação de qualquer filosofia e m particular
c o m o algo potencialmente útil e criticável. A s s i m , os c o m p o n e n t e s iniciais
deste princípio geral p o d e m ser interpretados c o m o u m a v e r s ã o m e n o s ex-
tremada dos dois primeiros princípios. O primeiro componente, tributário
d o primeiro princípio, é a utilidade: a filosofia deve ser útil p a r a a prática do
epidemiologista. C e r t a m e n t e , isto p o d e n o s colocar às voltas c o m tarefas
difíceis, tais c o m o revoluções e similares, m a s igualmente p o d e fornecer ex-
plicações e insights úteis às nossas p r e o c u p a ç õ e s científicas cotidianas. O
segundo componente, e m parte tributário do segundo princípio, é o da críti-
ca (Weed & Trock, 1986; Skrabanek, 1980). Chave do princípio geral, ele
t a m b é m n o s auxilia na localização de erros e, assim, m o d e r a a tentação de
agir de forma dogmática n o âmbito de qualquer escola do p e n s a m e n t o cien¬
tífico. U m a boa dose desse c o m p o n e n t e deveria ser prescrita, juntamente
c o m a autocrítica (Weed, 1988b), a todo filósofo novato na epidemiologia.
Exemplificaremos, a seguir, o princípio geral. O primeiro exemplo exami-
na a utilidade e as críticas dirigidas à causalidade aristotélica e o segundo aborda
a aplicação das doutrinas de um universo mal-assombrado (haunted universe) de
Watkin aos paradigmas causais em epidemiologia. O terceiro exemplo apresenta
a abordagem popperiana quanto ao progresso na solução de problemas, enfo-
cando o problema da importância relativa de refutações e verificações.

CAUSALIDADE ARISTOTÉLICA (EXEMPLO 1)

A contribuição de Aristóteles ao tema da causalidade está contida em


sua conhecida classificação quaternária: causa material — a coisa a ser modi-
ficada; causa formal — o sentido e m que ela é modificada; causa eficiente — o
q u e transforma a causa material em causa formal; e causa final — o propósito
ou a razão da m u d a n ç a .
Estas causalidades p o d e m ser traduzidas em t e r m o s familiares ao epi¬
demiologista: a causa material é u m i n d i v í d u o e m u m m o m e n t o a n t e r i o r à
e x p o s i ç ã o ; a c a u s a f o r m a l é u m i n d i v í d u o d e p o i s da e x p o s i ç ã o , ou, e m
t e r m o s d o m o d e l o c a u s a l de R u b i n ( H o l l a n d , 1 9 8 6 ) , a r e s p o s t a o b s e r v a -
da a u m a d e t e r m i n a d a e x p o s i ç ã o i n d i v i d u a l ; a c a u s a eficiente é a p r ó p r i a
e x p o s i ç ã o ; e a c a u s a final é a r a z ã o p e l a qual o i n d i v í d u o é e x p o s t o por
o u t r o q u e n ã o a q u e l e i n d i v í d u o (em u m e n s a i o c l í n i c o r a n d o m i z a d o , por
e x e m p l o ) , p e l a e s c o l h a i n d i v i d u a l ( o p t a n d o p o r fumar c i g a r r o s , p o r e x e m -
p l o ) , ou d e v i d o a a l g u m o u t r o p r o c e s s o ( e x p o s i ç ã o à r a d i a ç ã o p o r p r o p r i e -
tários d e i m ó v e i s — p r ó x i m o s ao l o c a l de e x p o s i ç ã o —, ou m i n e i r o s e x p o s -
tos a d e p ó s i t o s naturais d o g á s r a d ô n i o , p o r e x e m p l o ) .
A c a u s a l i d a d e aristotélica é útil à e p i d e m i o l o g i a ? A p e s a r de se m o s -
trar de a c o r d o c o m alguns de n o s s o s preceitos fundamentais, sua aplicabi-
lidade é limitada. S t e h b e n s (1985) observa que a m a n u t e n ç ã o da distinção
entre as n o ç õ e s aristotélicas de causa material e causa eficiente constitui
u m exercício satisfatório d o senso c o m u m , m u i t o e m b o r a a m b a s p o s s a m
ser n e c e s s á r i a s às m u d a n ç a s c a u s a i s . A c r e d i t a r e m c o n c e p ç õ e s opostas
implica a aceitação do que S t e h b e n s considera u m a a r g u m e n t a ç ã o absur¬
da: q u e a existência de u m indivíduo (isto é, a causa material) provoca as
doenças vivenciadas por ele.
Para além da crítica de que s o m e n t e a causa eficiente aristotélica é
relevante para as d i s c u s s õ e s sobre a c o n c e p ç ã o m o d e r n a d e c a u s a l i d a d e
(Taylor, 1 9 6 7 ) , encontra-se a preocupação de que sua classificação p o s s a
'reprimir' os desenvolvimentos posteriores da investigação causal (Lakatos,
1970). E m outras palavras, muitas situações no âmbito da pesquisa epide-
miológica envolvem subtipos de causas eficientes. Os exemplos incluem um
componente de causa suficiente, além de outros m e n c i o n a d o s anteriormen-
te c o m relação ao desenvolvimento da teoria causal em epidemiologia. Se
não h á dúvida de que as quatro causas aristotélicas são importantes para a
epidemiologia, elas, contudo, não têm sido consideradas c o m o tais. A susce¬
tibilidade genética, por exemplo, faz parte de nossa c o n c e p ç ã o habitual de
causa material. A s populações expostas a situações de alto risco ' c o m p õ e m -
se' d e c a u s a s formais. Finalmente, muitos epidemiologistas encontram-se
envolvidos e m discordâncias sobre q u e m é responsável pelas causas finais.
E m suma, a causalidade aristotélica, e m b o r a fundamental, revela-se
incompleta, por aludir de forma apenas indireta à complexidade dos siste-
m a s biológicos, aí incluída a idéia de que os fatores causais p o d e m ser parte
de u m m o d e l o subjacente d e m e c a n i c i s m o biológico. O e x e m p l o a seguir
ilustra a l g u m a s propriedades filosóficas de doutrinas que estão subjacentes à
busca, por parte da epidemiologia, de u m a a b o r d a g e m mais unificada quanto
à etiologia.

As DOUTRINAS DE WATKINS SOBRE


UM UNIVERSO MAL-ASSOMBRADO (EXEMPLO 2 )

E m recente debate, solicitou-se aos epidemiologistas que consideras-


sem as raízes históricas de três abordagens relativas à etiologia do câncer,
descritas anteriormente neste trabalho c o m o exemplos de p a r a d i g m a s parti¬
cularistas: o p aradigma da 'caixa preta' de causação ambiental, o paradi gma
baseado e m m e c a n i s m o s biológicos e u m terceiro c o m b i n a n d o os dois ante-
riores (Vandenbroucke, 1 9 8 8 ; Loomis & W i n g , 1 9 9 0 ) . N e s t e âmbito, são
discutidas as propriedades lógicas das doutrinas metafísicas subjacentes a
estes paradigmas. Tendo em mente o princípio geral proposto, algumas des-
tas propriedades se revelam c o m o p o n t o s frágeis, ao passo que outras se
mostram inteiramente úteis.
C o n s i d e r e m o s as seguintes afirmações: "todos os cânceres têm cau-
sas", " t o d o s os cânceres têm m e c a n i s m o s biológicos", ou a formulação inte¬
gradora " t o d o s os cânceres têm causas embutidas e m m e c a n i s m o s biológi-
c o s " . C a d a u m a destas doutrinas está intimamente associada aos paradigmas
m e n c i o n a d o s ; operando, cada u m a delas, em u m nível exatamente subjacen-
te à s u p e r f í c i e d o p r e c e d e n t e h i s t ó r i c o . Por e x e m p l o , a a l e g a ç ã o d e
V a n d e n b r o u c k e (1988) de que o pa radigma da 'caixa p r e t a ' de c a u s a ç ã o
ambiental é aceito pela comunidade de pesquisadores epidemiológicos p o d e
ser exposto de forma diferente: no interior da comunidade de pesquisadores
epidemiológicos há aqueles que acreditam na doutrina segundo a qual "to-
dos os cânceres têm causas a m b i e n t a i s " . O desenho e a interpretação de
e s t u d o s e l a b o r a d o s sob esta doutrina d e d i c a m p o u c a a t e n ç ã o aos m e c a -
nismos biológicos. D e forma similar, o paradigma mecanicista reflete u m
amplo c o m p r o m i s s o para c o m a doutrina de que " t o d o s os cânceres têm
m e c a n i s m o s biológicos subjacentes".
A s propriedades lógicas dessas doutrinas p o d e m ser ilustradas c o m o
exemplo " t o d o s os cânceres p o s s u e m causas". A p e s a r dos esforços de epide-
miologistas q u e estudam o câncer h á várias décadas, conhece-se hoje u m
n ú m e r o relativamente p e q u e n o de causas definidas desta doença. Isto nos
leva a dizer que só se p o d e estabelecer a existência velada desses cânceres.
E m outras palavras, a doutrina original tem sido inconclusivamente confir-
mada. D e fato, há muito p o u c a esperança de algum dia confirmá-la de m o d o
conclusivo, para além daquilo que nos é proporcionado por u m princípio
indutivo indefensável. Ε o que é mais importante, a doutrina t a m b é m é irre-
futável. Ela não p e r m i t e o teste empírico. O fato de que não se t e n h a m
descoberto as causas de muitos cânceres não prove u m a base lógica para a
rejeição desta hipótese.
Essas doutrinas não p o d e m servir c o m o exemplos de teorias científi-
cas porque não são passíveis de falsificação. U m a v e z que são igualmente
inverificáveis, alcançam a qualidade de formulações metafísicas, p r ó x i m a s
ao conceito de Lakatos (1970) de u m núcleo 'duro' de postulados funda-
mentais e m um programa de pesquisas, ou aos pressupostos ontológicos de
C o l l i n g w o o d (1969). N ã o sendo verdadeiramente empíricas n e m sintéticas,
elas operam n u m a terra de ninguém entre estes dois extremos. Watkins (1957;
1958), n u m 'surto' de licença analógica, denomina-as de "doutrinas de u m uni-
verso mal-assombrado", porque compartilham traços lógicos c o m as alegações
de que u m a casa é mal-assombrada. N e n h u m a evidência conclusiva é forne-
cida, e m qualquer m o m e n t o , e m relação ao fantasma no sótão da v o v ó , e
n e n h u m a observação concebível p o d e servir c o m o u m a refutação decisiva.
N ã o obstante, o fato de que as doutrinas de u m u n i v e r s o m a l - a s s o m -
b r a d o p o s s a m servir de base e ser tão estreitamente a l i n h a d a s a paradig-
m a s e p i d e m i o l ó g i c o s correntes indica q u e elas t ê m u m a g r a n d e influência
sobre a prática e p i d e m i o l ó g i c a . S e r v e m c o m o p r e s c r i ç õ e s m e t o d o l ó g i c a s
gerais, c o n t r i b u i n d o para a d e t e r m i n a ç ã o dos p r o b l e m a s científicos, m e t o -
dologias d e p e s q u i s a e interpretações de resultados p a r a os praticantes da
disciplina (Agassi, 1 9 6 4 ) .

MODELO POPPERIANO RELATIVO AO PROGRESSO


NA RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS (EXEMPLO 3)

U m terceiro exemplo do princípio geral introduz u m m é t o d o sugerido


por Popper (1979), possivelmente útil c o m o u m guia de p r o g r e s s o e m pro-
blemas metodológicos de base filosófica. O m é t o d o n ã o foi descrito origi-
n a l m e n t e p a r a ser usado por epidemiologistas e poderia, o b v i a m e n t e , ser
e x a m i n a d o de forma mais completa. E m resumo, primeiro, propõe-se u m
problema. A seguir, são sugeridas soluções hipotéticas. Estas soluções são
então criticadas de m o d o a que os erros p o s s a m ser descobertos. Finalmente,
u m novo problema é proposto, no âmbito do qual, se h á p r o g r e s s o efetivo,
são corrigidos os erros intrínsecos e esclarecidas as soluções propostas para
o p r o b l e m a anterior. Obter progresso mediante a utilização deste m é t o d o de
solução d e p r o b l e m a s requer que se resolva u m p r o b l e m a por meio da solu-
ção de u m outro problema, mais fundamental, que incorpora e corrige as
soluções propostas para o anterior.
APLICAÇÃO DO MÉTODO

O PROBLEMA

C o n s i d e r e m o s o p r o b l e m a da importância relativa de resultados nega-


tivos (refutações) e resultados positivos (verificações) e m u m a situação na
qual u m a hipótese epidemiológica é testada contra observações. A refutação
de u m a hipótese ocorre q u a n d o predições razoavelmente precisas fracassam
na obtenção de observações razoavelmente precisas que lhes sejam equiva-
lentes. A verificação de u m a hipótese epidemiológica, por outro lado, ocorre
q u a n d o predições razoavelmente precisas se i g u a l a m a o b s e r v a ç õ e s razoa-
v e l m e n t e precisas. O que é mais importante, a refutação ou a verificação de
u m a hipótese epidemiológica?

SOLUÇÃO DEDUTTVISTA

A refutação é m a i s i m p o r t a n t e , p o r q u e n o s s a m e t a é e x p l i c a r fenô-
menos observáveis. A melhor estratégia nesse sentido é expor nossas
h i p ó t e s e s e x p l i c a t i v a s d e s s e s f e n ô m e n o s aos testes m a i s s e v e r o s q u e p u -
d e r m o s reunir. N e s t a s c i r c u n s t â n c i a s , p o d e r e m o s a p r e n d e r c o m b a s e n a s
r e f u t a ç õ e s , i s t o é, c o m b a s e n o s n o s s o s erros d e p r e d i ç ã o . E s t a s falhas
são o q u e m a i s i n t e r e s s a a o s c i e n t i s t a s ( F e y n m a n , 1 9 8 5 ) . I m p e l i d o s p e l a
busca da verdade, seremos encorajados a tentar n o v a m e n t e e m nossa
busca de melhores explicações.

SOLUÇÃO INDUTTVISTA

A verificação é o mais importante, por duas razões: p r i m e i r a m e n t e ,


p o r q u e os cientistas estão mais interessados e m estabelecer explicações de
caráter g e n é r i c o do que jogá-las fora, e é m e l h o r construí-las valendo-se de
hipóteses que tiveram suas predições verificadas por m e i o de observações.
A segunda razão no sentido de preservar a importância da verificação é de
q u e cada p e s s o a o r i e n t a d a p a r a a p r á t i c a sabe q u e , h a b i t u a l m e n t e , agi-
mos no cotidiano baseados nas regularidades assumidas, verificadas pe-
las n o s s a s a ç õ e s .
AVALIAÇÃO DE ERROS

A s críticas que p o d e m ser endereçadas a cada u m a destas soluções


i n c l u e m os erros discriminados a seguir.
O erro na primeira solução hipotética, diretamente derivada de u m a
filosofia dedutivista, é que ela parece falhar na avaliação do m u n d o das ocor-
rências práticas diárias. Ε difícil imaginar u m mundo e m que se procuram ati-
vamente exemplos negativos por intermédio de testes precisos de nossas hipó-
teses e no qual, ao m e s m o tempo, ignoramos os sucessos de nossas predições.
O erro n a segunda solução hipotética, derivada de u m a filosofia indu¬
tivista, é q u e esta falha e m levar e m consideração os erros ocasionais, e,
a l g u m a s v e z e s , até m e s m o as falhas espetaculares da ciência. Ela t a m b é m
negligencia os problemas mais c o m u n s no âmbito da predição que inferni¬
z a m o dia-a-dia da pesquisa epidemiológica. Ε difícil imaginar u m m u n d o
e m que p r e s t e m o s atenção somente a instâncias confirmatórias e i g n o r e m o s
nossas falhas, por mais triviais que sejam.
Apesar da possível existência de outros erros subjacentes a cada u m a
destas soluções, aqueles listados anteriormente são decorrentes de omissões.
Como, então, extrair vantagens dos componentes livres de erro destas solu-
ções, corrigindo, simultaneamente, os erros decorrentes da omissão? Os su-
cessos dependem de nossa habilidade e m propor u m n o v o problema e uma
nova solução, que tanto expliquem como corrijam as tentativas anteriores.

UM NOVO PROBLEMA: QUAIS SÃO


AS OBRIGAÇÕES DOS EPIDEMIOLOGISTAS?

UMA SOLUÇÃO

A primeira delas é buscar o conhecimento (uma m e t a da ciência); ou-


tro é aplicá-lo de m o d o beneficente (uma meta de u m a tecnologia da saúde)
(Weed, 1 9 9 4 ) . Se as m e t a s da e p i d e m i o l o g i a são tanto científicas q u a n t o
tecnológicas, então os epidemiologistas d e v e m procurar estabelecer hipóte-
ses m a i s universais para as doenças m e d i a n t e o seu d e s e n v o l v i m e n t o e a
tentativa de refutá-las, ao m e s m o tempo em que também lançam m ã o da-
quelas hipóteses que foram verificadas e as utilizam para aprimorar a saúde
da população. Neste sentido, a meta da ciência — melhor explicação — e a
meta da tecnologia — melhor aplicação — são simultaneamente alcançadas
(Agassi, 1980).
A solução para o segundo problema corrige e explica as soluções rela-
tivas ao primeiro problema. Enquanto as metas de inferência científica são
quase inteiramente preenchidas pela refutação, as decisões dos tecnólogos
no sentido da ação exigem verificação. Requerem, mais precisamente, verifi-
cação de u m a hipótese útil no contexto das refutações de hipóteses alterna-
tivas. E m suma, a ciência requer refutação; a tecnologia requer verificação.
Dessa maneira, tem se obtido algum progresso no que tange à importância
complementar dos resultados positivos e negativos.

'CRÍTICA' Ε UTILIDADE

U m a das dificuldades encontradas na utilização do m é t o d o de solução


de problemas popperiano é que ele parece promover o pensamento em uma
única direção: de um problema para outro problema, 'mais fundamental'.
Por outro lado, encoraja o pensamento inovador, o raciocínio dedutivo e o
p e n s a m e n t o crítico, três formas de raciocínios fundamentais na epidemiolo-
gia (Graham, 1988; Fraser, 1987).

CONCLUSÃO

Este trabalho examinou alguns princípios, no intuito de selecionar e


aplicar a filosofia à epidemiologia. A s idéias filosóficas se revelaram tanto
úteis quanto passíveis de crítica. Diversas questões p e r m a n e c e m sem res-
posta: quantas críticas serão necessárias para que possamos incorporar uma
idéia filosófica aparentemente útil? Existem diferentes graus de críticas e
níveis de utilidade? Estas questões sugerem a necessidade de respostas que,
provavelmente, p o d e m ser fornecidas mais a d e q u a d a m e n t e c o m o compo-
nentes adicionais do princípio geral, ou c o m o novos princípios específicos
similares ao primeiro e ao segundo princípios. Cada esforço é u m passo adi-
ante r u m o a u m a filosofia da epidemiologia, passo maior do que este traba-
lho permite dar. Dois tópicos p e r m a n e c e m : a autocrítica e, indo mais adian-
te, a defesa da argumentação de que os princípios são, de fato, princípios do
senso c o m u m .
U m a crítica mais ampla que p o d e ser dirigida a este trabalho é de que
ele não é realmente necessário para que os epidemiologistas p o s s a m levar
e m conta u m a visão filosófica explícita q u a n d o da proposição de n o v o s pro-
b l e m a s e soluções para aqueles p r o b l e m a s , no m o m e n t o da discussão de
conceitos e métodos estabelecidos, ou n o exercício da epidemiologia do dia-
a-dia. Por outro lado, fundamentos filosóficos implícitos — por exemplo, no-
ções ontológicas subjacentes — p o d e m influenciar os debates metodológicos
e as perspectivas sobre conceitos tradicionais c o m o saúde e d o e n ç a (Nijhuis
& V a n der M a e s e n , 1994). Fazendo coro a outros autores (Susser, 1989;
Schlesinger, 1988; Pettiti, 1988; Murphy, 1989), c o n c o r d a m o s que é respon-
sabilidade daqueles que investigam a fundo este assunto demonstrar a im-
portância da filosofia. U m caminho neste sentido é examinar e m que m e d i d a
a reflexão filosófica modifica a prática. Por exemplo, identificar o ensaio
clínico r a n d o m i z a d o c o m o u m paradigma metodológico é algo que poderia
ser utilizado no sentido de efetuar a m u d a n ç a nos praticantes da epidemiolo-
gia cujos estudos não se a d e q u a m aos padrões exatos dos melhores testes
randomizados. A m u d a n ç a , no entanto, p o d e estabelecer u m a interpretação
d e m a s i a d a m e n t e estreita da utilidade da filosofia. Existe algo a ser dito quanto
à utilidade teórica ou conceituai. O s exemplos de Aristóteles e Watkins de-
m o n s t r a m que a filosofia t a m b é m é útil quando proporciona u m a explicação
mais adequada para práticas já existentes. A filosofia; ao lado de outras dis-
ciplinas humanísticas, oferece, igualmente, muitas outras v a n t a g e n s , inclu-
indo a perspectiva de flexibilidade, criatividade, p e n s a m e n t o crítico e outras
habilidades e atitudes cognitivas relevantes (Weed, 1995.)
Podem ser dirigidas críticas aos três princípios em si mesmos. Talvez
estejam errados e devam ser descartados. Apesar de haver u m amplo espaço
no âmbito do princípio geral para componentes adicionais, eles são inquestio-
navelmente incompletos. Finalmente, parece ser razoável perguntar se eles
constituem, de fato, princípios do senso c o m u m . N o c a m p o da epidemiolo¬
gia, a expressão 'senso c o m u m ' é bastante popular e encerra u m peso retóri-
co considerável (Susser, 1986; Stehbens, 1985; Murphy, 1989; Evans, 1976;
Feinstein, 1988). Entretanto, ao se consultar o dicionário (College Dictionary),
lê-se que o t e r m o significa "sólido j u l g a m e n t o prático, que i n d e p e n d e de
conhecimento especializado ou treinamento". D a d a esta definição, os três
princípios para a filosofia na epidemiologia só se revelam exemplos de senso
c o m u m se e m e r g e m de algumas atividades ou experiências que representam
conhecimento não especializado, isto é, conhecimento cujo aquisição prece-
d e o treinamento epidemiológico formal.
Poucas atividades o b e d e c e m a essas exigências. U m livro-texto recen-
te de epidemiologia (Rothman, 1986) sugere que p o d e ser fecundo nos vol-
t a r m o s para as experiências de infância. Consideremos, então, por exemplo,
a o b r a de contadores de histórias c o m o os I r m ã o s G r i m m (Campbell, 1990).
C e r t a m e n t e suas narrativas não são especializadas. A l é m disso, a maioria de
nós escutou esses contos clássicos antes de nossa escolarização. E m b o r a
alguns deles sejam peculiares a determinadas culturas, uma de suas característi-
cas transculturais típicas consiste na habilidade em descrever, de forma diverti-
da, temas úteis à tomada de decisões (Mathers & Hodgkin, 1989). Chesterton
(1957), ensaísta inglês, formulou essa idéia de maneira brilhante: "O reino das
fadas não é outra coisa que o país ensolarado do senso comum".
C o m base nesse argumento, os três princípios para a filosofia na epide-
miologia propostos no presente trabalho constituem genuíno senso c o m u m .
Eles são fundamentalmente semelhantes aos t e m a s e n c o n t r a d o s e m u m a
história bastante familiar. Trata-se do conto "Rumpelstiltskin" dos I r m ã o s
G r i m m , cuja síntese e comentários constam do apêndice.

APÊNDICE

Para alguns, o conto "Rumpelstiltskin" deve ser tão familiar que não é
necessário repeti-lo. M a s para outros, especialmente para aqueles que nunca
escutaram o conto ou esqueceram as suas peripécias e personagens, a sinop-
se a seguir será útil.
U m moleiro, que queria obter a proteção do rei, vangloriava-se de que
sua filha poderia, ao tecer a palha, transformá-la em ouro. O rei, que queria
u m a esposa tanto quanto o ouro para sustentá-la, aceitou a oferta do moleiro
e ofereceu à donzela a coroa, caso ela realizasse a façanha.
A donzela, p a r a sua e n o r m e surpresa (e de todas as outras pessoas),
fiou três aposentos cheios de fios de ouro, mas só conseguiu realizar esse
feito depois q u e obteve, secretamente, dons mágicos de u m anão. Se pelos
dois primeiros aposentos cheios de fios de ouro, a m o ç a p a g o u ao anão c o m
ninharias, o terceiro aposento, exigência adicional do rei, foi p a g o mediante
a promessa de entregar ao anão seu primeiro filho.
A l g u m t e m p o mais tarde, o anão retornou para receber seu p a g a m e n t o
final. Compreensivelmente, a donzela, já então rainha, mostrou-se profun-
d a m e n t e perturbada. Impressionado c o m seu desespero, o anão ofereceu à
rainha u m a segunda chance. Se ela adivinhasse o seu nome, o anão permiti-
ria q u e ela conservasse a criança.
A rainha, que agora tinha condições para e m p r e e n d e r u m a investiga-
ção de grandes proporções, teve êxito na descoberta do n o m e daquele que a
extorquia — Rumpelstiltskin — e salvou o seu filho. O anão, por sua vez, foi
direto para o inferno após partir-se ao meio c o m suas próprias mãos.
Três aforismos e m e r g e m desta história.
Primeiro, a realização de u m feito, especialmente naquelas situações
em que o resultado excede todas as expectativas ordinárias, acarreta grandes
recompensas. Por exemplo, a filha do moleiro t o m o u a si, e c o m sucesso, a
tarefa aparentemente impossível de fiar ouro a partir da palha, g a n h a n d o o
trono c o m o recompensa.
Segundo, é terrível o preço a ser p a g o pela g a n â n c i a . C o m o Rumpels-
tiltskin v e m a descobrir, u m a criança significava u m p a g a m e n t o demasiado
elevado pela sua mágica.
Por último, o aforismo geral: a vida n ã o é simples o suficiente p a r a que
possa ser resumida a apenas duas tonalidades: branco (primeiro aforismo) e
preto (segundo aforismo). Ela reveste-se, habitualmente, de alguns tons de
cinza, resultantes da combinação dos dois primeiros aforismos, além de u m a
dezena de outros. U m exemplo claro do aforismo geral, entendido c o m o u m a
c o m b i n a ç ã o dos dois primeiros, p o d e ser encontrado no p e r s o n a g e m do rei.
Ele certamente não era tão terrivelmente solitário a ponto de precisar lançar
m ã o de u m a estratégia tão improvável para obter u m a esposa, m a s , ao final,
foi g e n e r o s a m e n t e recompensado. Diante do exposto, é tentador invocar
apenas o primeiro aforismo — a recompensa para u m a realização imprevista,
se n ã o fosse pela ganância do monarca. Foi a sua cobiça insaciável que i m p e -
diu que o desafio fosse interrompido depois que o primeiro (ou o segundo)
aposento já estavam cheios de fios de ouro. M a s será que o rei p a g o u pela
sua ganância, c o m o prescrito pelo segundo aforismo? A leitura de duas ava-
liações distintas de "Rumpelstiltskin" não deixa isso claro. Faz sentido pen-
sar que a rainha tenha c o b r a d o o seu preço. Talvez o rei não tenha prestado
m u i t a atenção a isso.

O autor expressa seus agradecimentos a Naomar Almeida Filho,


Phillip Davis, Alfred Evans, William Mayer, Jorn Olsen,
Diana Pettiti, Dimitrios Trichopoulos, Bruce Trock e
J. P. Vandenbroucke pelos comentários proveitosos sobre
uma versão inicial deste trabalho.

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LIMITES DA

INFERÊNCIA CAUSAL

Dina Czeresnia &


Maria de Fátima Militão de Albuquerque

INTRODUÇÃO

U m a questão considerada fundamental na epidemiologia é a conceitua¬


ção e a operacionalização metodológica da causalidade. Identificar causas é
u m a das maneiras pela qual o p e n s a m e n t o científico aborda a explicação dos
fundamentos que originam o aparecimento de u m fenômeno. A causa seria
u m agente eficaz, cujo desvendamento garantiria u m maior conhecimento
do fenômeno estudado, visto ser possível intervir sobre u m efeito q u a n d o se
r e m o n t a à sua causa.
A causalidade foi introduzida na epidemiologia c o m base na busca da
causa verdadeira e específica da doença. Essa a b o r d a g e m g a n h o u legitimi-
dade c o m a identificação de agentes específicos responsáveis pela transmis-
são de d o e n ç a s infecciosas. N o entanto, e m decorrência da necessidade de
contornar a 'ignorância' a respeito dos processos causais das c h a m a d a s do-
enças não-transmissíveis ou crônico-degenerativas, o tratamento conceituai
e m e t o d o l ó g i c o da causalidade deslocou-se p a r a a quantificação p r o b a b i ¬
lística do risco. A b u s c a da identificação de fatores de risco n u m a r e d e de
múltiplas c a u s a s contribuiu c o n s i d e r a v e l m e n t e para o d e s e n v o l v i m e n t o m e -
t o d o l ó g i c o da e p i d e m i o l o g i a (Susser, 1 9 8 5 ) , q u e , l a n ç a n d o m ã o de u m a
crescente matematização, vem utilizando recursos estatísticos cada vez
m a i s sofisticados.
O conceito de risco e suas implicações na epidemiologia t ê m sido
e s t u d a d o s por vários autores (Goldberg, 1990; A l m e i d a Filho, 1 9 9 2 ) . A s
questões debatidas referem-se, e m geral, às reduções operadas ao se desta-
carem da realidade c o m p l e x a e mutante cadeias causais independentes, quan-
tificadas por meio de relações lineares.
O risco é u m a m e d i d a de associação estatística, incapaz de inferir di-
retamente a causalidade. Bradford Hill, e m 1965, já definia critérios, adapta-
dos dos cânones causais de J o h n Stuart Mill, para avaliar a natureza causal
ou n ã o de u m a associação epidemiológica encontrada (Rothman, 1986).
D e m o n s t r a r que as estimativas de risco poderiam evidenciar u m a rela-
ção de causa e efeito fortalecia o caráter científico da pesquisa epidemiológi-
ca, respaldando m e d i d a s adotadas eventualmente para enfrentar os proble-
m a s de saúde pública. Entre os famosos critérios de Hill, o de 'plausibilidade
biológica' aponta para u m a fragilidade importante do conceito de risco. E m
última instância, segundo esse critério, a biologia é que seria capaz de legiti-
mar as associações estimadas nos estudos epidemiológicos.
Dessa forma, ao substituir a identificação da causa pela estimativa pro¬
babilística do risco, a epidemiologia teria construído sua identidade baseada
em u m conceito que n ã o tem autonomia. Partindo da p r e m i s s a de que a
construção da a b o r d a g e m do risco foi decorrente da 'ignorância' dos p r o c e s -
sos causais nas c h a m a d a s doenças crônicas, não se poderia afirmar que tem
ocorrido u m a superação da c o m p r e e n s ã o causalista da doença e m favor de
u m a c o m p r e e n s ã o probabilística.
N a verdade, o raciocínio epidemiológico ainda traz, na sua essência, a
força do p e n s a m e n t o causai. Isso fica evidente nas investigações recentes
sobre a etiologia da imunodeficiência adquirida (AIDS). A s pesquisas esta-
v a m orientadas para a localização da causa da imunodeficiência. Por analo-
gia ao m o d e l o da hepatite B, afirmou-se a natureza transmissível da doença,
passando-se a buscar o agente causal. N e s t e sentido, é significativo o fato de
q u e , durante esse processo, os estudos que estimaram u m a forte associação
entre os casos de AIDS e o uso do nitrito de amila foram apontados como
equivocados por não disporem de u m a base biológica consistente (Vanden¬
broucke & Pardoel, 1989).
A o m e s m o tempo, tem-se reafirmado que o estudo de cofatores em
u m a a b o r d a g e m multicausal amplia a compreensão das causas envolvidas na
variabilidade da expressão das doenças. O s estudos epidemiológicos, reali-
zados c o m base e m modelos multifatoriais, relacionaram eventos clínicos e
biológicos no interior de u m a matriz de experiência social e de comporta-
m e n t o h u m a n o (Rose, 1988), possibilitando u m a a b o r d a g e m mais complexa
da etiologia das doenças.
Seria necessário, p o r é m , analisar a lógica de c o n s t r u ç ã o d o s m o d e l o s
d e risco e c o m o , por seu i n t e r m é d i o , é a p r e e n d i d o o significado das doen-
ças e das formas sociais d e lidar c o m elas. O conceito d e risco t e m contri-
buído decisivamente para o desenvolvimento metodológico da epidemio-
logia, c o n s o l i d a n d o práticas de i n t e r v e n ç ã o sanitária q u e p r i v i l e g i a m ape-
los a m u d a n ç a s c o m p o r t a m e n t a i s individuais. Os c h a m a d o s fatores de ris-
co (hábito de fumar, c o n s u m o de álcool, uso de d r o g a s , a l i m e n t a ç ã o defi-
ciente, falta d e e x e r c í c i o s , p r o m i s c u i d a d e etc.) t e n d e m a responsabilizar os
i n d i v í d u o s pelo s u r g i m e n t o de suas d o e n ç a s , d e s l o c a n d o a ênfase de ações
coletivas de saúde.
Este trabalho discute a base de construção do conceito de risco, se-
g u n d o o m o d e l o de inferência causal de Rubin, desenvolvido na âmbito da
estatística a p l i c a d a ( H o l l a n d , 1 9 8 6 ) . A e x p l i c i t a ç ã o d a s p r e m i s s a s deste
m o d e l o torna visível as passagens lógicas a s s u m i d a s na c o n s t r u ç ã o deste
conceito, permitindo entendê-lo por dentro. Essa vertente matematizada da
epidemiologia tenta demonstrar que a estatística é capaz de inferir causali-
dade, ao invés de simplesmente evidenciar associações estatísticas, estiman-
do e m u m m o d e l o o que é definido c o m o o efeito concreto de u m a causa.
Por m e i o da estatística, a epidemiologia, ao incorporar, e m m o d e l o s , teorias
que expressam m e c a n i s m o s de fenômenos biológicos, conquistaria u m mai-
or grau de autonomia e cientificidade para a disciplina. Nesta perspectiva, a
definição da identidade da epidemiologia estaria ancorada, fundamentalmente,
na estatística e na biologia.
C a b e t a m b é m c h a m a r atenção para o fato de que este p r o c e s s o de
m a t e m a t i z a ç ã o do m é t o d o e p i d e m i o l ó g i c o sofre a influência das m u d a n -
ças q u e v ê m o c o r r e n d o no â m b i t o das ciências naturais, cujo estatuto de
cientificidade é privilegiado por esta vertente da e p i d e m i o l o g i a . N e s t e sen¬
tido, d i s c u s s õ e s c o m o a do conceito de objetividade v ê m i n f l u e n c i a n d o o
n ú c l e o da disciplina por intermédio da estatística.

As PREMISSAS DO MODELO DE INFERÊNCIA CAUSAL

Apresentam-se, a seguir, as formulações básicas do m o d e l o de infe-


rência causal de Rubin (Holland, 1986).
O foco de atenção da inferência causal deve se deslocar da busca das
causas dos efeitos para a busca dos efeitos das causas. N o raciocínio causal, falar
que A causa Β é relativo a outra causa que inclui a condição 'não-A'. Isso implica
comparar a exposição à causa com a não-exposição, ou, na linguagem da experi-
mentação, o tratamento com o não-tratamento ou a ausência de controle.
Para a inferência causal, é fundamental que cada unidade seja potencial-
mente exposta a qualquer uma das causas. Nesse sentido, é igualmente funda-
mental o modo pelo qual os indivíduos são alocados nos grupos de comparação. Além
disto, esta concepção exclui os atributos pessoais como passíveis de serem causas.
O papel do t e m p o é importante. A causa ocorre e os indivíduos (uni-
dades) existem e m u m contexto temporal específico. A l é m disso, as m e d i d a s
das características dos indivíduos, que c o m p õ e m as variáveis estudadas, tam-
bém d e v e m ser feitas em tempos particulares.
Inferir causalidade diz respeito a efeitos de causas em indivíduos (unidades)
específicos. Os efeitos de causas ocorrem na singularidade. Isto implica o chamado
'problema fundamental da inferência causal', ou, em outras palavras, é impossível
observar simultaneamente o valor do tratamento e do não-tratamento (A e não-A)
na mesma unidade. A inferência causal, desse modo, seria impossível.
Q u a n d o as unidades são indivíduos, recorre-se à estatística c o m o so-
lução, substituindo a impossibilidade de observar o efeito causal e m u m in-
divíduo específico pela possibilidade de estimar o 'efeito causal m é d i o ' e m
u m a população de indivíduos.
Essa estratégia exige que se trabalhe com amostras da população. Ε neces­
sário, portanto, garantir que todos os indivíduos da amostra sejam passíveis de
serem expostos igualmente ao tratamento e ao não-tratamento. Faz-se isso por
meio da alocação dos indivíduos nos grupos de comparação de maneira aleatória.
Rubin (Holland, 1986) acrescenta, ainda, c o m o questão fundamental
a ser considerada neste modelo, a assunção do 'valor estável de tratamento
da u n i d a d e ' ( S U T V A ) . Isto significa que os indivíduos são i n d e p e n d e n t e s
entre si, estabelecendo-se a priori que o valor do resultado d o tratamento
para u m indivíduo independe do tratamento ou não dos demais. Esta pre-
missa garantiria que o efeito médio, estimado a partir da amostra, seria igual
ao efeito médio calculado c o m base na população.
Evidentemente, essa assunção não é plausível em todas as circunstân-
cias, u m a vez que restringe o g r u p o a u m a soma de indivíduos, sem conside-
rar suas relações. Essa questão v e m sendo desenvolvida no contexto dos
estudos de eficácia vacinai em doenças transmissíveis, nos quais o conceito
de i m u n i d a d e de g r u p o aponta para a necessidade de transpor esse limite do
m é t o d o (Halloran et al., 1991). Neste sentido, a explicitação das premissas
da inferência causal, ao tornar evidente alguns dos seus limites, contribui
para o desenvolvimento metodológico.
Entretanto, cabe chamar atenção para o fato, ao qual se voltará mais
adiante, de que as reduções decorrentes desses artifícios matemáticos apre-
sentam problemas não somente no que se refere às das doenças transmissíveis.
U m p o n t o fundamental dessa abordagem, que concebe o procedimen-
to estatístico da inferência causal distinto do da simples associação, é distin-
guir a d i m e n s ã o epidemiológica dos conceitos e m contraposição a u m a di-
m e n s ã o simplesmente estatística. T e n d o c o m o base essa distinção, enfatiza-
se a necessidade da explicitação prévia de teorias e m o d e l o s que expressem
as características biológicas dos p r o c e s s o s estudados. Esta v i s ã o provoca
modificações no conteúdo e na metodologia de avaliação dos conceitos de
interação e de confusão. Para que p o s s a m o s entender as implicações deste
desenvolvimento metodológico, será necessário caracterizar os conceitos de
interação e confusão.

INTERAÇÃO ENTRE CAUSAS Ε CONFUSÃO

O estudo da relação causa e efeito em epidemiologia, c o m o se viu,


desenvolve-se c o m base na necessidade de se estimar u m a m e d i d a de efeito
(risco) entre exposição e doença. Nesse processo, a identificação de intera-
ção entre causas e de confounding, ou confusão, é considerada fundamental.
Caracteriza-se a existência de interação, dentro de um m e s m o meca-
nismo causal, quando, na presença de dois ou mais fatores de risco, o efeito
resultante é diferente do simples efeito combinado pelos efeitos individuais
(Rothman, 1986). E m relação ao confounding (ou confusão), pode-se defini-lo
c o m o uma mistura de efeitos, isto é, c o m o a superposição do efeito de um
fator de risco independente sobre a relação estimada entre a exposição e o
evento (Rothman, 1986).
N o â m b i t o da e p i d e m i o l o g i a , h á u m a i n t e n s a p o l ê m i c a a r e s p e i -
to da o p e r a c i o n a l i z a ç ã o d e s t e s d o i s c o n c e i t o s . M a s q u a l s e r i a a m e t o -
d o l o g i a mais a d e q u a d a para a sua avaliação no contexto dos estudos
epidemiológicos?
N o caso da interação, por exemplo, coloca-se em discussão se é mais
apropriado utilizar modelos aditivos ou modelos multiplicativos. N o s primei-
ros, a combinação dos efeitos individuais é feita pela soma das diferenças de
riscos atribuíveis, ao passo que nos segundos a interação é avaliada pelo pro-
duto dos riscos relativos ou odds ratio (Rothman, Greenland & Walker, 1980).
O m o d e l o de análise é freqüentemente escolhido apenas em virtude
da simplicidade e da conveniência estatística. Esse procedimento, sem refe-
rência aos m e c a n i s m o s biológicos envolvidos, torna a definição de interação
arbitrária e dependente do modelo adotado. Portanto, a interação estatística
expressaria apenas a interdependência entre fatores dentro dos limites de um
dado modelo de risco (Rothman, 1986; Siemiatycki & T h o m a s , 1981).
Ε neste sentido que se ressalta que a pesquisa epidemiológica deveria
ir além da m o d e l a g e m estatística, priorizando a etapa explanatória da análi-
se, cujo objetivo é a busca de explicações para as relações observadas, seja
identificando a presença de confounding na estrutura do estudo, seja verifican-
do a causação baseada em um m o d e l o biológico subjacente.
A interação deve, portanto, ser vista como uma característica biológica
do fenômeno estudado, cujo mecanismo deve ser explicitado previamente à
escolha de um modelo de análise estatística (Rothman, Greenland & Walker,
1980). A questão também está presente na discussão do confounding. Neste
caso, faz-se igualmente necessário definir previamente quais são as variáveis a
serem controladas. Ser confounder não é uma característica inerente a qualquer
variável, ocorrendo somente no contexto de um estudo particular.
U m a v a r i á v e l d e c o n f u s ã o d e v e r i a ter as s e g u i n t e s c a r a c t e r í s t i c a s
(Miettinen & Cook, 1981): ser u m fator de risco para a doença entre os não
expostos; estar associada c o m a exposição na população e m estudo; e não
ser u m a variável intermediária na seqüência da exposição para o evento.
N o contexto de estudos experimentais, a possibilidade de alocação
aleatória dos indivíduos tem sido classicamente considerada u m a estratégia
eficaz para garantir a comparabilidade entre g r u p o s de tratamento e, assim,
prevenir a confusão. Foi, portanto, no contexto de estudos observacionais,
nos quais a alocação aleatória dos indivíduos em g r u p o s de comparação é
impossível, que se sentiu maior necessidade de desenvolver conceitos e es-
tratégias para melhor abordar a confusão (Rothman, 1986).
D e m o d o semelhante ao que foi observado em relação à interação, a
abordagem do confounding na epidemiologia tendeu, muitas v e z e s , a se res-
tringir ao â m b i t o técnico da estatística. Ε neste sentido q u e M i e t t i n e n &
C o o k (1981) e Greenland & Robbins (1986) — t o m a n d o p o r base o critério
de 'colapsabilidade', que remete o julgamento da existência ou não de con-
fusão à etapa da análise dos dados — criticam a conceituação de confounding.
C a s o o controle da variável de confusão, por estratificação ou técnicas mul¬
tivariadas, não m u d e a estimativa de efeito, isto é, quando a estimativa bruta
é igual à estimativa ajustada por estratos, a medida de efeito é dita 'colapsá¬
vel', ou seja, não existe confounding.
Este critério, que se baseia simplesmente na análise técnica dos dados,
p o d e levar a falsas conclusões. Porém, u m outro tipo de conceituação consi-
dera que a confusão se origina das diferenças 'inerentes' ao risco, entre a
população de expostos e não expostos. O u seja, estas diferenças existiriam
m e s m o se a exposição estivesse inteiramente ausente de a m b a s as popula-
ções (Greenland & Robbins, 1986).
Por conseguinte, prevenir confounding seria garantir a comparabilidade
ou a intercambialidade entre os grupos expostos e os não expostos. N a au-
sência de exposição, a proporção de casos entre os expostos e os n ã o e x p o s -
tos seria a m e s m a (Greenland & Robbins, 1986). Desse m o d o , a assunção de
intercambialidade e comparabilidade dos g r u p o s é o que tornaria o efeito
identificável, a p r o x i m a n d o as c o n d i ç õ e s do estudo d o s f u n d a m e n t o s do
m o d e l o de inferência causal.
A m u d a n ç a na conceituação do confounding reforça a idéia de que é
importante dispor de u m a teoria explicitada a respeito do fenômeno biológi¬
co estudado. Reforça, igualmente, a necessidade de u m a definição prévia de
quais são as variáveis importantes a serem consideradas n o modelo. Esta
m u d a n ç a desloca, t a m b é m , a lógica da utilização da m o d e l a g e m matemática
na análise multivariada.

A ESCOLHA DO MODELO DE ANÁLISE:


O PAPEL DA SUBJETIVIDADE

N a etapa da análise dos dados, o desenvolvimento de técnicas de aná-


lise multivariada proporciona, mediante o uso de m o d e l o s m a t e m á t i c o s , uma
maneira de controlar o confounding e verificar a interação (Rothman, 1986).
U m a das m a n e i r a s de utilizar a m o d e l a g e m é considerar, no modelo, todas as
variáveis p o t e n c i a l m e n t e envolvidas e suas interações. N e s t e c a s o , tería-
m o s u m m o d e l o dito ' s a t u r a d o ' , q u e está de certo m o d o c o e r e n t e c o m
u m a p o s t u r a de i g n o r â n c i a p r é v i a a respeito d o f e n ô m e n o e s t u d a d o . T r a n s -
fere-se, d e s s a f o r m a , a função d e e s c o l h e r q u a i s d e l a s são p e r t i n e n t e s
p a r a a e t a p a de a n á l i s e , o q u e o c a s i o n a p e r d a de p r e c i s ã o e q u a l i d a d e
(Oppenheimer, 1992).
U m outro tipo de abordagem estabelece que o modelo estatístico deve
reproduzir matematicamente o que ocorre na natureza, assumindo u m conjunto
de restrições. Isto implicaria optar por incluir apenas as variáveis consideradas
importantes. Neste caso, ganhar-se-ia em precisão, mas, correr-se-ia o risco de
não incluir nenhuma variável que pudesse provocar confounding. Esta estratégia
exigiria, de fato, assunções detalhadas sobre processos que muitas vezes são
p o u c o conhecidos (Oppenheimer, 1992).
O u t r o aspecto dessa m e s m a a b o r d a g e m ressalta o fato de que a ade-
quação a u m a função matemática não constitui u m objetivo e m si m e s m o . O
processo de m o d e l a g e m , ao adequar dados, p o d e apagar características es-
senciais do processo biológico e m estudo (Greenland, 1979). D e s s a forma,
cabe ao investigador definir previamente a teoria adequada ao processo bio-
lógico e m estudo, avaliar qual é a função matemática que tem m e l h o r condi-
ção de expressá-lo e determinar quais são as variáveis importantes no m o d e -
lo. C o m o afirma O p p e n h e i m e r (1992): " D e s d e que o verdadeiro estado da
natureza é desconhecido, a magnitude do viés n ã o p o d e ser conhecida. Por-
tanto, a escolha é subjetiva e sujeita a erro".
Essa perspectiva de análise aproxima-se de u m a concepção de estatís-
tica probabilística n ã o convencional, n a qual o conceito de probabilidade
n ã o parte da assunção de ignorância prévia da distribuição d o fenômeno
estudado, m a s sim quantifica u m a crença anterior, utilizando u m a distribui-
ção de probabilidade subjetiva. O s dados são então usados para atualizar
esta distribuição pela regra de Bayes (Oppenheimer, 1992).
A alternativa bayesiana, apesar de antiga, v e m sendo resgatada, de uns
tempos para cá, em virtude da ampliação dos recursos técnicos proporciona-
dos pela c o m p u t a ç ã o eletrônica (Breslow, 1990). A l é m disso, ela expressa
u m a concepção de objetividade distinta daquela que a estatística probabilís-
tica padrão utiliza. D e certa forma, esta retomada é u m reflexo da crescente
discussão que v e m ocorrendo a respeito do conceito de objetividade no âmbito
das ciências naturais.
U m argumento ao qual essa perspectiva recorre é o de que obter dados
objetivos d e u m a análise estatística requer u m input subjetivo. O reconheci-
m e n t o da subjetividade inerente à interpretação de dados permite que novas
evidências p o s s a m ser integradas ao conhecimento anterior (Berger & Berry,
1988), o que constitui, na verdade, u m a crítica ao conceito de objetividade
dos modelos de análise convencionais. Estes, por sua vez, t a m b é m depen-
d e m das intenções do investigador, por exemplo, ao optarem por colher de-
t e r m i n a d o s d a d o s e m detrimento de outros. A subjetividade n ã o explícita
seria, assim, muito mais perigosa, porque é apresentada c o m o neutra e obje-
tiva (Berger & Berry, 1988).
A estatística bayesiana, portanto, relativiza o valor de v e r d a d e do dado
quantitativo, assumindo-o c o m o u m a construção. O dado, desta forma, já
não é visto c o m o u m a mensuração do real, e m que a objetividade e o rigor
são garantidos pela neutralidade e isenção de valor d o investigador.
Provavelmente inspirado nesta concepção de probabilidade, Greenland
(1990) questiona a alocação aleatória dos indivíduos em g r u p o s de c o m p a -
ração c o m o a m e l h o r forma de prevenir a confusão em estudos epidemioló-
gicos experimentais. Cada indivíduo teria u m a probabilidade própria de ex-
perimentar u m evento, independentemente da exposição e m estudo. Portan-
to, os indivíduos não seriam igualmente informativos. A alocação aleatória
n ã o evitaria a possibilidade de essas diferenças tornarem a estimativa do
risco subdimensionada ou superdimensionada, apenas tornando-a estatisti-
c a m e n t e n ã o enviesada (Greenland, 1990).
D e s s a forma, a 'aleatorização' só seria útil na prevenção de confusão
n o caso de variáveis n ã o c o n h e c i d a s Se as variáveis são conhecidas e p o d e m
ser m e d i d a s , é m e l h o r considerar essas diferenças n o estudo, utilizando-se
u m m o d e l o de análise estatística b a y e s i a n o (Greenland, 1990). A n c o r a d a
nessa concepção, u m a questão que se apresenta, no âmbito de estudos ob¬
servacionais, é a crítica à propriedade da utilização de estatísticas probabi¬
lísticas baseadas n a rejeição da hipótese nula e no valor de p . N e l a t a m b é m
fica evidenciado que, muitas vezes, ao invés de se trabalhar c o m m o d e l o s de
análise inadequados, seria melhor interpretar os dados de m o d o não proba¬
bilístico. Isto poderia ser feito, entre outras formas, valorizando-se estudos
descritivos b e m trabalhados, por meio de gráficos e tabelas (Greenland, 1990).
U m d e s d o b r a m e n t o possível deste processo, e sem dúvida promissor,
seria conseguir superar metodologicamente outros modos clássicos de controle
de viés que pressupõem a neutralidade do investigador, como é o caso dos estu-
dos 'duplo-cego' e da utilização de placebos em estudos experimentais.

DISCUSSÃO

N o decorrer deste texto, descreveram-se os desenvolvimentos meto-


dológicos suscitados por u m a vertente da epidemiologia m o d e r n a , q u e se
fundamenta no m o d e l o de inferência causai de Holland e Rubin. Este mode-
lo explicita as suas premissas, com o objetivo de estimar uma medida de efeito —
o risco — entre exposição e doença. Por essa razão é que esta perspectiva privile-
gia os conceitos de interação e confusão. Busca-se ressaltar como, na discussão
interna da epidemiologia, as abordagens desses conceitos v ê m se tornando cada
vez mais complexas e como este processo vem sofrendo a influência de uma
concepção de probabilidade que reconhece a subjetividade como elemento de
construção de rigor científico.
Neste p o n t o do trabalho, retoma-se a discussão sobre a operacionali-
z a ç ã o da lógica da inferência causai, t e n d o por m e t a identificar a s p e c t o s
internos e premissas do m é t o d o que apresentam alguns problemas.
D e início, i m p o r t a destacar a idéia de que para a inferência causal é
importante contextualizar temporalmente os indivíduos, as causas e a ocor-
rência de efeitos (Holland, 1986). Caberia indagar com que conceito de tem-
p o este m o d e l o opera.
N o âmbito da discussão da inferência causal, Holland (1986) conside-
ra, implicitamente, duas maneiras de pensar a temporalidade. E m condições
de laboratório, por exemplo, trabalhando fenômenos físicos, seria possível
supor o t e m p o c o m o reversível, isto é, poder-se-ia repetir e m laboratório as
condições iniciais de u m a experiência. A experiência anterior não interferiria
nas subseqüentes.
N o caso dos fenômenos biológicos estudados pela epidemiologia, as
c o n d i ç õ e s iniciais dá experiência não retornam. O t e m p o é irreversível e
unidirecional. Sendo assim, o que significaria contextualizar temporalmente
u m estudo epidemiológico? N ã o implicaria t a m b é m trabalhar a dimensão do
t e m p o c o m o história? S e m dúvida, m e s m o no contexto da biologia, as trans-
formações evolutivas vão de encontro à crença de invariabilidade, fixidez e
universalidade dos seres vivos. Isto se torna mais flagrante n o caso de p o p u -
lações h u m a n a s , que são mediadas pela linguagem e pela história, construin-
do singularidades individuais e sociais. D e s s a forma, o que seria construir
u m a m e d i d a de efeito (risco) temporalmente contextualizada? A t é que pon-
to esta m e d i d a pretende, ao contrário, expressar características universais do
h o m e m , abstraindo o m o v i m e n t o e a diversidade?
Essas indagações remetem à necessidade de se pensar como, interna-
m e n t e à lógica da inferência causal, é construída a medida d e efeito (risco).
C o m o já visto, para a inferência causal, o problema fundamental residiria na
impossibilidade de observar, simultaneamente, o efeito da exposição e da
não exposição no m e s m o indivíduo. C o m o solução, propõe-se o cálculo do
'efeito causal m é d i o ' , trabalhando c o m g r u p o s de população que p o s s a m ser
comparáveis. O risco, segundo esta lógica, seria, portanto, u m a m e d i d a de
efeito para a inferência individual. O g r u p o , nesse caso, seria utilizado c o m o
forma de viabilizar operacionalmente a inferência individual.
Caberia analisar, por conseguinte, a propriedade da estimativa d o 'efeito
causal m é d i o ' para a inferência individual. O que se questiona é o fato deste
método, ao contornar o p r o b l e m a fundamental da causalidade, proceder pri-
meiro a u m a p a s s a g e m do nível individual para o g r u p a l , voltando e m segui-
da para aquele.
O que acontece nestas passagens? Será que a condição da individua-
lidade é preservada? O risco só corresponderia à singularidade se os indivíduos
fossem homogêneos. Porém, m e s m o a epidemiologia não opera c o m a supo-
sição de h o m o g e n e i d a d e dos indivíduos. Ela busca, c o m o artifício metodo-
lógico, a comparabilidade dos grupos, por intermédio de uma distribuição
h o m o g ê n e a das heterogeneidades individuais. O risco, então, não seria um
conceito passível de ser transposto para singularidades sem mediações (Al-
meida Filho, 1992).
Esta construção metodológica é coerente com a visão que distingue
risco, c o m o medida de probabilidade individual, de uma derivação deste, a
razão de densidade de incidência — c o m o medida capaz de estimar a força da
m o r b i d a d e em p o p u l a ç õ e s ( M o r g e n s t e r n , K l e i n b a u m & K u p p e r , 1980;
K l e i n b a u m , K u p p e r & M o r g e n s t e r n , 1982). A d u p l i c i d a d e de objetivos
de m e d i d a s c o n s t r u í d a s c o m b a s e na m e s m a lógica c a u s a l p o d e r i a ser
vista c o m o a m b i g ü i d a d e , pois a e p i d e m i o l o g i a se define c o m o o estudo de
d o e n ç a s cm p o p u l a ç õ e s .
T o d a v i a , a a b o r d a g e m individual do risco deixa clara a sua intenção
de servir c o m o subsídio à prática clínica e à avaliação da tecnologia médi-
ca. A d o m i n â n c i a desse objetivo na prática da e p i d e m i o l o g i a m o d e r n a tem
s u b s u m i d o a a b o r d a g e m populacional ligada à tradição da saúde pública
(Wing, 1993).
Caberia analisar também as implicações da utilização do 'efeito causal
m é d i o ' c o m o medida populacional. Neste caso, esbarramos na premissa do
modelo da inferência causal (SUTVA) que assume a independência entre os
indivíduos que pertencem ao g r u p o estudado, c o m o já foi apresentado.
No caso das doenças infecciosas, a assunção de independência é mais
facilmente questionada. O estudo destas doenças utiliza conceitos c o m o os
de infecção, suscetibilidade e imunidade. As relações entre esses diferentes
conceitos, por sua vez, p r o d u z e m o conceito de 'imunidade de g r u p o ' , o
qual não p o d e ser reduzido à soma das imunidades individuais e acaba deter-
minando a dinâmica de transmissão (Nokes & Anderson, 1988; Greenland
& Robbins, 1992). Pode-se dizer que o conceito de transmissão preserva um
conteúdo relacional que tende a ser desconectado na conceituação das do-
enças não-transmissíveis ou crônico-degenerativas.
Certamente é esse o motivo de se considerar o SUTVA mais apropria-
do, no caso dos estudos de doenças crônicas. Todavia, c o m o afirmar que
questões consideradas c o m o fatores causais de d o e n ç a s crônicas - fumo,
alimentação, violência, agentes tóxicos etc. - são não-transmissíveis? Será
que esses n ã o são p r o b l e m a s transmitidos p o r i n t e r m é d i o da relação dos
h o m e n s entre si e c o m a natureza? Será que compreendidas c o m base na sua
d i m e n s ã o cultural, estas questões não deveriam ser trabalhadas n a perspec-
tiva da 'imunidade de g r u p o ' ou de 'suscetibilidade de g r u p o ' ? S e m dúvida,
no m o d e l o do SUTVA, a população não é concebida c o m o u m a organização
que produz conseqüências para a situação de saúde dos indivíduos.
Q u a n d o a q u e s t ã o é identificar a causa da distribuição desigual de
doenças entre populações e não a causa dos casos, a lógica da independência
dos indivíduos n ã o seria a mais a d e q u a d a (Robbins & G r e e n l a n d , 1986).
S e n d o assim, a construção metodológica do risco, enquanto 'efeito causal
m é d i o ' , apresenta limites que precisam ser considerados n o m o m e n t o de sua
aplicação c o m o estimador, tanto para as inferências individuais quanto para
as populacionais.
S e m dúvida, o desenvolvimento do m é t o d o produz passagens lógicas
inevitáveis na perspectiva de viabilizar sua operacionalização, c o n t o r n a n d o
questões c o m o o 'problema fundamental da inferência causal'. N o entanto,
corre-se o risco de esquecer e assumir c o m o verdadeiras as reduções consi-
deradas inevitáveis do p o n t o de vista da lógica interna d o método. A passa-
g e m lógica poderia apagar características fundamentais do fenômeno estu-
dado. Desta forma, quando o m é t o d o é trabalhado sem a c o m p r e e n s ã o do
significado das reduções que opera, pode transformar u m artifício operacio-
nal e m artefato. O método, se reificado, estreita as possibilidades de compre-
ensão da realidade.
Cabe, então, levantar u m a questão óbvia, m a s não tão ó b v i a a ponto
de ser respondida na prática do processo de investigação: quais são os pro-
blemas para os quais u m m é t o d o é ou não é adequado? E m relação ao con-
teúdo deste texto, poder-se-ia indagar de forma mais específica: para que
q u e s t õ e s é p e r t i n e n t e a a b o r d a g e m q u e b u s c a avaliar o efeito da causa
contra a 'não-causa', isolando relações (ou cadeias) causais independentes?
D e s l o c a n d o a discussão para u m a d i m e n s ã o mais prática, p o d e r í a m o s
dizer que essa tem sido u m a maneira considerada apropriada de estudar o
efeito de exposições individuais, c o m o avaliação da eficácia de m e d i c a m e n -
tos, procedimentos clínicos e vacinas. Neste contexto, deve-se ressaltar que
o aprimoramento metodológico descrito neste trabalho teria algo a contri¬
buir: tornaria possível, por exemplo, a criação de desenhos de estudo que
conseguissem ultrapassar a necessidade de controlar o 'viés' por meio da
suposição de neutralidade. Sem dúvida, conseguir superar as necessidades
técnicas de alocação aleatória, duplo cego e utilização de placebos, sem per-
der o estatuto de cientificidade, seria um desafio de m o d o algum irrelevante.
Principalmente, quando se reivindica concretamente que a testagem de efi-
cácia de drogas e vacinas possa ser realizada em uma perspectiva de maior
rigor ético (Rothmann & Edgar, 1992; Horton, 1989).
Por outro lado, porém, sabe-se que o desenvolvimento metodológico
descrito p e r m a n e c e preso a uma concepção de causalidade linear, que isola
um aspecto que varia, ao passo que supõe os demais constantes.
A o c o n s i d e r a r e m as relações entre i n d i v í d u o s e g r u p o s de indiví-
d u o s , a s s i m c o m o as m u d a n ç a s q u e o c o r r e m entre estes c o m a p a s s a g e m
do t e m p o , os m o d e l o s d i n â m i c o s em e p i d e m i o l o g i a p e r m i t e m abordar
interações mais complexas (Nokes & Anderson, 1988). Ao trabalharem
c o m c o n c e i t o s d i s t i n t o s — tais c o m o limiar, p o n t o de e q u i l í b r i o , fluxo
etc. — p e r m i t e m u m a o u t r a a b o r d a g e m da q u e s t ã o da c a u s a l i d a d e .
Isso, contudo, não evita que se tenha de defrontar, novamente, com o
problema de c o m o abordar a passagem do tempo e as interações complexas
em fenômenos de saúde em populações h u m a n a s sem considerar o caráter
histórico do tempo. A demarcação do campo disciplinar da epidemiologia
restrito à biologia e à estatística, sem dúvida, dificulta esta possibilidade.
Finalmente, merece reflexão o fato de o pensamento científico trans-
formar a base da qual algo surge na causa que o produz, e t a m b é m a idéia de
que a revelação da causa ocupa um lugar mais importante na explicação de um
fenômeno. Pois, "não só as aparências nunca revelam espontaneamente o que se
encontra por trás delas. Nenhuma coisa, nenhum lado de uma coisa se mostra
sem que ativamente oculte os demais" (Arendt, 1992:392).
Esta é uma característica incontornável do processo de construção do co-
nhecimento: ao optar por revelar e explicar algo, inevitavelmente oculta-se um
outro lado; ao selecionar determinadas causas, temas, conceitos e métodos, exclu-
em-se outros. Ε as opções correspondem a interesses, valores e necessidades.
Ε preciso ressaltar que a teoria antecede ao método. Ε é intrínseca à
teoria a natureza subjetiva do pensamento e da ação, refletindo interesses e
necessidades humanas. O conteúdo de verdade de u m a teoria não está dado
a prion, independente de um juízo de valor. Ε o método, c o m o conjunto de
estratégias de investigação e de técnicas de análise, não deve estar alienado
da teoria, p o r meio da utilização de modelos formais que g a n h a m vida pró-
pria (Gonçalves, 1990).
Compreender a base da construção teórica e metodológica de u m campo
de conhecimento não se justifica apenas para evidenciar os limites que redu-
zem a dimensão dos problemas, m a s t a m b é m para permitir pensar c o m o
resolver problemas devidamente formulados, otimizando as possibilidades de
integrar as metodologias que possam explicá-los da melhor forma possível.

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PARTE II

INTERFACES

Ε necessário que reflitamos sobre a situação atual das relações entre


as disciplinas científicas particulares e destas com a filosofia; é necessário que
questionemos a separação instituída e praticada entre as ciências, portanto,
que questionemos o tipo de divisão do trabalho que as domina.

C o r n e l i u s Castoriadis
ANTROPOLOGIA MÉDICA Ε

EPIDEMIOLOGIA*

Eduardo L. Menéndez

Este trabalho analisa algumas características complementares e diver-


gentes entre epidemiologia e antropologia médica. C o n v é m deixar claro, desde
o início, que, ao nos referirmos a estas duas disciplinas, a s s u m i m o s que esta-
m o s colocando entre parênteses as tendências diferenciais e até conflituosas
1
e contraditórias que o p e r a m no interior d e cada u m a delas.
Os p o n t o s que abordaremos de forma esquemática são: e n u m e r a ç ã o
de características similares, complementares e diferenciais; análise de alguns
aportes da antropologia médica; e o possível processo de erosão da proposta
antropológica.

Tradução: Cláudia Bastos


Assinalamos que a análise estará referida, quase sempre, às propostas dominantes em ambas as
disciplinas, e que isto não supõe ignorar a existência de outras correntes tanto antropológicas como
epidemiológicas.
ELEMENTOS COMPLEMENTARES Ε DIVERGENTES

A epidemiologia e a antropologia abordam o processo s a ú d e / e n f e r m i -


d a d e / a t e n ç ã o c o m base e m disciplinas, objetivos e instituições distintas, de-
senvolvem-se em momentos diferentes e suas relações são recentes e m termos
de campos técnico-científicos mutuamente reconhecidos (Bastide, 1967; Caudill,
1953; D u n n & Janes, 1986; Opler, 1959; Trostle, 1986a, 1986b). Assumindo,
em conseqüência, que a inserção científica/técnica e o desenvolvimento de ambas
as disciplinas são diferenciados, trataremos primeiro d e assinalar os aspectos
substantivos que p e r m i t e m observar convergências metodológicas entre an-
tropologia m é d i c a e epidemiologia.
E m princípio, deve-se assumir que os dois campos tratam de conjuntos
sociais de alguma natureza, e estes podem ser pensados em termos de grupos
domésticos, ocupacionais ou de idade, estratos sociais etc. Para eles, a unidade
deve ser a l g u m tipo de conjunto social e não o indivíduo.
A t u a l m e n t e , as correntes dominantes e m a m b a s as disciplinas reco-
n h e c e m que as explicações/interpretações da maioria dos p r o b l e m a s a in-
vestigar se referem a u m a multiplicidade de causas e questionam as interpre-
tações unicausais. A maneira de lidar c o m a m u l t i c a u s a l i d a d e p o d e v a r i a r
s e g u n d o o p r o b l e m a e / o u m a r c o m e t o d o l ó g i c o utilizado. I s s o leva algu-
mas investigações a lidarem c o m uma notória diversidade dispersa de
fatores e x p l i c a t i v o s , ao p a s s o q u e o u t r a s b u s c a m e n c o n t r a r u m efeito
e s t r u t u r a l q u e o r g a n i z e os d i v e r s o s fatores i n c l u í d o s , q u e r p o r m e i o d e
u m a r e d e c a u s a l ( p r o p o s t a de T e r r i s ) , q u e r a t r a v é s d e u m a concepção
s e g u n d o a q u a l os d i v e r s o s p a d e c i m e n t o s se refiram a u m a m e s m a causa-
lidade básica (proposta de Cassei).
T a n t o a epidemiologia c o m o a antropologia médica supõem a existên-
cia de a l g u m processo de evolução relativo ao processo s a ú d e / d o e n ç a / a t e n -
ção (processo s / d / a ) específico, que, no caso da epidemiologia, p o d e se re-
ferir ao m o d e l o de história natural da doença e, no caso da antropologia, à
história social da doença, ou à trajetória do paciente entendida c o m o fato
social. Para além das notórias discrepâncias, o terreno c o m u m seria entender
a enfermidade c o m o processo.
U m quarto ponto de convergência refere-se ao fato de que antropolo-
gia e epidemiologia r e c o n h e c e m que as condições de vida — sejam elas deno-
m i n a d a s formas de vida operária, subcultura adolescente ou estilo de vida
do fumante - têm relação com a causalidade, desenvolvimento, controle ou
solução dos problemas de saúde. O conceito estilo de vida é o que parece ter
conseguido melhor acolhida entre os epidemiologistas, revelando-se c o m o
parte constitutiva de toda uma g a m a de padecimentos crônicos e de deter-
minadas Violências'.
Por ultimo, diríamos que as duas disciplinas tendem a propor uma concep-
ção preventivista do adoecer, na qual se articulam diferentes dimensões da rea-
lidade, com o objetivo de limitar a extensão e a gravidade dos danos à saúde.
Poderíamos prosseguir na e n u m e r a ç ã o de outros pontos c o m p l e m e n ¬
tares considerados significativos, mas o importante a assinalar é que, a des-
peito de cada um destes pontos de acordo, p o d e m o s detectar diferentes graus
de conflito que p o d e m chegar ao antagonismo entre as propostas da antro-
pologia médica e da epidemiologia.
Se v i e r m o s a rever cada um dos aspectos apresentados, p o d e r e m o s
observar que, embora ambas as disciplinas lidem com conjuntos sociais, a
epidemiologia descreve muito freqüentemente agregados estatísticos, ao passo
que a antropologia trabalha preferencialmente com ' g r u p o s naturais'. Este
ponto, que não desenvolveremos, deve ser considerado decisivo com rela-
ção à construção e significado do ' d a d o ' referido ao processo s / d / a . Por
outro lado, m e s m o quando as duas disciplinas trabalham c o m u m a concep-
ção multicausal, a epidemiologia dominante insere no biológico ou no bioe¬
cológico o eixo da causalidade, ao passo que a antropologia médica o insere
2
e m fatores de tipo cultural ou socioeconômico. A l é m disso, deve-se subli-
nhar que a tendência a buscar u m a causalidade específica continua domi-
nando a aproximação epidemiológica, a despeito da p a s s a g e m ao primeiro
plano das doenças crônico-degenerativas, das violências e das drogadições.
A epidemiologia tende a considerar o processo evolutivo da enfermi-
dade em termos biológicos. A l é m disso, é nela dominante u m a aproximação
m e t o d o l ó g i c a a-histórica c o m relação ao processo saúde/doença/atenção
que não deve ser considerada casual. A utilização predominante de séries de
curta duração por parte da epidemiologia não supõe u m fato conjuntural,

2
l i s t a a f i r m a ç ã o n ã o i g n o r a q u e a e p i d e m i o l o g i a social c o l o c a o e i x o d e s e u s i n t e r e s s e s na d i m e n s ã o
e c o n ô m i c o - p o l í t i c a , a p r e s e n t a n d o p o n t o s d e c o n t a t o c o m a d e n o m i n a d a a n t r o p o l o g i a m é d i c a crí-
tica. D e v e m o s , n o e n t a n t o , r e c o r d a r q u e a e p i d e m i o l o g i a social n ã o inclui i n f o r m a ç õ e s d e n a t u r e z a
sociocultural ou ideológica, c o m o t a m p o u c o o fazem a l g u m a s tendências da antropologia médica
com relação aos processos econômico-políticos.
expressando realmente sua concepção a-histórica. N o conjuntural, série his-
tórica breve de cinco a dez anos, estaria o peso do biológico c o m o constan-
te, ao p a s s o q u e a estruturação histórica se m o s t r a desnecessária à c o m -
p r e e n s ã o do desenvolvimento da enfermidade. A i n d a que, em nível mani-
festo, a epidemiologia trabalhe fundamentalmente c o m séries históricas cur-
tas, n ã o é este o determinante de sua opção metodológica. A necessidade de
encontrar a solução, ou pelo m e n o s explicação para problemas imediatos, e a
de p r o p o r soluções para episódios agudos ('surtos'), b e m c o m o a desconfi-
ança a respeito dos dados 'antigos' e t c , constituem razões compreensíveis,
p o r é m n ã o h á dúvida de que a ignorância da m é d i a e longa duração histórica
o b e d e c e ao predomínio de u m m o d e l o médico biologicista.
N o c a s o d o c o n c e i t o estilo de v i d a , o b s e r v a m o s q u e , se a a n t r o p o -
l o g i a o c o n s i d e r a holístico, a e p i d e m i o l o g i a t e n d e a r e d u z i - l o à c o n d u t a
de risco, c o r r o e n d o a c o n c e p ç ã o t e ó r i c o - m e t o d o l ó g i c a c o m b a s e n a qual
foi p r o p o s t o . E s t e c o n c e i t o foi d e s e n v o l v i d o p o r diferentes correntes
t e ó r i c a s s o c i o l ó g i c a s e p s i c a n a l í t i c a s (Coreil et al., 1 9 8 5 ) c o m o o b j e t i v o
d e p r o d u z i r u m a a r t i c u l a ç ã o entre a b a s e m a t e r i a l e i d e o l ó g i c a q u e o p e r a
n o d e s e n v o l v i m e n t o das e n f e r m i d a d e s . T r a t a - s e d e constituir u m c o n c e i -
to m e d i a d o r e n t r e o nível m a c r o (estrato social) e o d o s g r u p o s i n t e r m e -
d i á r i o s e x p r e s s o p o r m e i o d e sujeitos c o n s i d e r a d o s c o m o membros/ex-
pressão destes.
A s necessidades explicativas/aplicativas da epidemiologia despojaram
este conceito d e sua articulação m a t e r i a l / i d e o l ó g i c a e m t e r m o s holísticos e
r e d u z i r a m sua aplicação ao risco subjetivo o u g r u p a i específico. D e u m a
perspectiva antropológica, o hábito alcoólico não é u m risco distinguível das
condições globais c o m base nas quais o sujeito produz sua vida. Ε o contex­
to global q u e é posto e m questão por intermédio d o estilo de vida. Pensar
isoladamente o risco de beber, fumar ou de comer determinados alimentos
p o d e ser eficaz para intervir e m nível de condutas individuais, m a s anula o
efeito abrangente do problema. N ã o é por acaso que as violências estejam
entre os fatos m e n o s estudados pela epidemiologia latino-americana, e que
fenômenos c o m o suicídio, acidentes e homicídios sejam despojados de suas
implicações estruturais e convertidos e m fenômenos de risco. E m síntese,
se, para a epidemiologia, o estilo de vida representa u m a variável a mais,
para a antropologia, integra u m a forma global de vida, da qual o risco seria
parte constitutiva.
A antropologia continua p r o p o n d o u m a prevenção de tipo estrutural,
e m termos econômico-políticos ou culturais, ao passo que a epidemiologia
precisa se a d e q u a r a p a d r õ e s 'realistas' e m função d a s políticas de saúde
dominantes que n ã o colocam na prevenção estrutural o eixo de suas inver-
sões n e m de seus interesses.
T o c a m o s , neste ponto, e m u m aspecto i m p o r t a n t e , q u e n ã o analisa-
r e m o s aqui, m a s q u e d e v e ser incluído e m u m a análise das c o n v e r g ê n c i a s e
divergências. S ã o os l u g a r e s diferentes q u e a a n t r o p o l o g i a e a e p i d e m i o l o -
gia o c u p a m no â m b i t o d o setor de saúde ou, se preferirem, dentro d o Esta-
do. Seu status e sua significação, tanto técnica q u a n t o política, são diferen-
tes: u m a a p a r e c e c o m o u m a 'disciplina teórica e a c a d ê m i c a ' , q u a n d o m u i t o
vinculada a Organizações Não-Governamentais (ONGs) em termos de
i n v e s t i g a ç ã o / a ç ã o ; já a outra se m o s t r a orientada, pelo m e n o s ideologica-
m e n t e , p a r a as práticas, s e g u n d o a definição q u e a elas é d a d a p e l o s obje-
3
tivos g o v e r n a m e n t a i s .

DIFERENCIAÇÕES Ε DISTANCIAMENTOS:
A APROPRIAÇÃO DE CONCEITOS

A s tendências assinaladas mostram-se condicionadas por u m a série de


processos, que v ã o desde o metodológico até o institucional, aqui comenta-
remos apenas os que facilitam a interpretação das divergências.
A antropologia parte, e m sua aproximação ao processo de s / d / a , de
u m a c o n c e p ç ã o unilateralmente sociogênica. A quase totalidade das tendên-
cias antropológicas são sociogênicas, desde o m a r x i s m o até o interacionismo
simbólico, p a s s a n d o pelo culturalismo integrativo, o c o n s t r u c i o n i s m o e o
estruturalismo. É e m função deste pressuposto c o m u m que todas as tendên¬

3
Estas conclusões são pertinentes à América Latina, mas merecem ser ponderadas. Nas instituições
em que o antropólogo tem um status similar ao de um médico, sua situação é semelhante ou, de um
modo geral, ainda mais 'subalterna'. Parte do trabalho antropológico - e também médico - tem
lugar nas ONGs e em termos de investigação/ação. Isto, porém, não permite concluir que seu
trabalho não seja 'teórico' ou 'acadêmico', mas sim que deveria ser realizada lá uma análise deste
tipo de atividade para observar qual é a natureza do trabalho predominante.
cias p r o p õ e m q u e o nível de a n á l i s e m a i s e s t r a t é g i c o p a r a e x p l i c a r o p r o -
c e s s o s / d / a c o r r e s p o n d a ao n í v e l s o c i o e c o n ô m i c o o u s o c i o c u l t u r a l , e
n ã o ao b i o l ó g i c o . E s s a o p ç ã o a d q u i r e c a r a c t e r í s t i c a s r a d i c a i s e m t o d a s as
t e n d ê n c i a s , c o m e x c e ç ã o da e c o l o g i a cultural e d o m a t e r i a l i s m o m e c a n i ¬
cista, c o n s t i t u i n d o esta ú l t i m a u m d o s p o u c o s r e p r e s e n t a n t e s d o b i o l o g i ¬
c i s m o na a n t r o p o l o g i a m é d i c a .
C o m relação ao processo s / d / a , a epidemiologia parte do patológico,
isto é, da enfermidade medicalizada, ao passo que a antropologia p a r t e do
processo sociocultural e político-econômico que inclui o fenômeno conside-
rado patológico. A l g u m a s correntes teóricas antropológicas o p e r a m , inclusi-
ve, c o m forte tendência a despatologizar ou reduzir o patológico ao processo
social 'normal'. Esta tendência tem sido criticada pelos sanitaristas, que ar-
g u m e n t a m — muitas vezes, de forma correta — que o relativismo antropológi-
co e a ênfase n a cultura c o m o 'verdade' levam a u m a redução da significação
dos processos patológicos. N ã o obstante, d e v e m o s sublinhar que, se a epi-
demiologia ancora seu eixo de análise no processo patológico, a antropologia
médica o faz na estrutura sociocultural.
T e m o s investigado, nos últimos anos, o problema do alcoolismo no
México, utilizando c o m o conceito central o de 'processo de alcoolização', ao
qual r e m e t e m o s os conceitos de 'alcoolismo', 'alcoólicos' e 'dependência'.
O processo de alcoolização inclui todos aqueles processos sociais conside-
rados decisivos na estruturação do alcoolismo c o m o fenômeno patológico,
n o r m a l e coletivo e, e m conseqüência, remetemos a ele não somente os con-
ceitos b i o m é d i c o s pertinentes, c o m o os processos individuais ( M e n é n d e z ,
1990a; M e n é n d e z & Di Pardo, 1994).
J á e m 1943, H o r t o n p r o p u n h a que, para u m antropólogo interessado
no p r o b l e m a d o alcoolismo, era tão relevante estudar os alcoólicos crônicos
quanto os bebedores sociais e a população que não bebe. Afinal, é por m e i o
das representações e práticas dos diferentes conjuntos sociais que podería-
m o s obter u m a explicação/interpretação do fenômeno e m t e r m o s da estru-
tura sociocultural e não somente do fenômeno patológico e m si. A l é m disso,
o c o n s u m o patológico e suas conseqüências seriam explicados n ã o somente
pelos sujeitos alcoolizados, mas t a m b é m pelo conjunto de atores inseridos
no sistema social (Horton, 1943).
Existe, pois, u m p o n t o de convergência, que simultaneamente se cons-
titui u m dos principais p o n t o s de a n t a g o n i s m o potencial, e expressão do
processo de medicalização. Referimo-nos à p r o d u ç ã o e ao uso de conceitos
por parte das duas disciplinas.
U m a revisão, m e s m o superficial, dos conceitos e m p r e g a d o s pela epi-
demiologia, a saúde pública ou a medicina social p e r m i t e constatar o óbvio:
seus conceitos básicos foram, em grande parte, cunhados e utilizados pre-
v i a m e n t e pelas ciências sociais e antropológicas. Conceitos c o m o necessida-
des, c o m u n i d a d e / o r g a n i z a ç ã o da c o m u n i d a d e / d e s e n v o l v i m e n t o comuni-
tário, g r u p o e ciclo d o m é s t i c o , p a r t i c i p a ç ã o social, c l a s s e s o c i a l / e s t r a t o
social/níveis socioeconômicos, pobreza, redes sociais, níveis educacio-
nais, ocupação/trabalho/processos de trabalho/níveis ocupacionais,
s e x o / g ê n e r o , estilo d e v i d a , e s t r a t é g i a s de s o b r e v i v ê n c i a / e s t r a t é g i a s d e
v i d a foram f o r m u l a d o s , u t i l i z a d o s , m o d i f i c a d o s e a t é m e s m o d e s c a r t a d o s
p e l a s c i ê n c i a s sociais e a n t r o p o l ó g i c a s antes de serem apropriados ou rein-
ventados pelas ciências da saúde.
E s t e s c o n c e i t o s s ã o fruto d e u m p r o c e s s o t e ó r i c o e m e t o d o l ó g i -
co acerca do qual a maioria dos epidemiologistas parece não deter in-
formações abrangentes. Deve-se sublinhar, a esse respeito, que todos
e s t e s c o n c e i t o s se r e f e r e m a t e o r i a s e s p e c í f i c a s e q u e p e l o m e n o s u m a
parte deles (necessidades, comunidade, redes sociais, estilo de vida)
foi d e s e n v o l v i d a p o r t e n d ê n c i a s q u e u t i l i z a v a m p r e f e r e n c i a l m e n t e t é c -
nicas qualitativas.
E m relação ao que estamos assinalando, pelo m e n o s e m alguns países
da A m é r i c a Latina, nota-se algo interessante sobre a utilização de conceitos
c o m o medicalização, controle social e cultural, relação entre o cultural e o
biológico ou articulação entre o n o r m a l e o patológico, já que p o d e m ser
utilizados c o m o conceitos sem passado socioantropológico ou, o que é mais
significativo, c o m o conceitos elaborados p o r filósofos ou e p i s t e m ó l o g o s .
A s s i m , n a A m é r i c a Latina, alguns destes conceitos são referidos, dentro do
c a m p o das ciências da saúde, às obras de Foucault ou C a n g u i l h e m , ignoran-
do o importante v o l u m e de investigações empíricas e p r o d u ç ã o teórica, ela-
b o r a d a s , d e s d e a d é c a d a de 1920, pelas ciências sociais e antropológicas,
que trabalharam a fundo alguns deles. Estes resultados, possivelmente, se-
riam mais úteis para os epidemiologistas d o que os conceitos formulados
pelos filósofos franceses.
O objetivo, aqui, não é negar a importância dos aportes de Foucault
ou Canguilhem, mas c h a m a r atenção para a necessidade de recuperar a m a s ¬
sa de m a t e r i a l a n t r o p o l ó g i c o , p r o d u z i d a , e m sua m a i o r i a , c o m b a s e e m
trabalhos de campo. Deve-se, também, esclarecer que não recuperamos
a i m p o r t â n c i a d e toda e s s a p r o d u ç ã o , m a s c o n s t a t a m o s sua e x i s t ê n c i a e
a t e s t a m o s q u e d e v e r i a ser c o n h e c i d a e avaliada e m t o d a s u a significação.
S e os sanitaristas e c l í n i c o s q u e r e t o m a m os d e l i n e a m e n t o s i n t e r p r e t a t i ¬
v o s c o n h e c e s s e m m a i s a fundo n ã o s o m e n t e u m d e seus r e f e r e n t e s m a i s
evidentes — refiro-me a Geertz — m a s também a produção antropológica
n o r t e - a m e r i c a n a , b r i t â n i c a , c a n a d e n s e e francesa entre 1 9 2 0 e 1 9 6 0 , p o -
deriam observar que o que certas correntes interpretativas atuais têm
feito, b a s i c a m e n t e , é aprofundar u m c a m p o q u e já h a v i a p r o d u z i d o con-
tribuições notáveis, hoje esquecidas ou negadas.
A falta de reconhecimento de que estes e outros conceitos utilizados
atualmente pelas ciências da saúde p o s s u e m u m a história conceituai expres-
sa, de forma quase paradigmática, não somente o desconhecimento das refe-
ridas ciências acerca da produção antropológica, m a s t a m b é m da a-historici¬
dade das disciplinas originárias (em termos metodológicos) do m o d e l o m é -
dico h e g e m ô n i c o .
Todavia, e é isto q u e interessa ressaltar, este d e s c o n h e c i m e n t o tem
conseqüências negativas n o trabalho epidemiológico, acarretando, por u m
lado, q u e t e n h a m o s de lidar, c o m certa freqüência, c o m a redescoberta do
óbvio, significando p e r d a de tempo, desperdício de recursos, i n c o r r e ç õ e s
conceituais e m termos técnicos etc. D e v e m o s ter claro que ignorar o p r o c e s -
so de c o m o os conceitos foram produzidos e, sobretudo, aplicados implica
deixar d e observar a capacidade que estes conceitos v ê m demonstrando, ao
l o n g o d o tempo, de explicar e possibilitar o enfrentamento dos problemas
esboçados. S u p õ e deixar de observar, por o u t r o lado, c o m o efetivamente
foram aplicados os referidos conceitos, e se o p r o b l e m a reside n o conceito
4
ou na natureza da aplicação.
Conceitos que foram ou estão sendo utilizados por epidemiologistas —
tais c o m o os de necessidade, c o m u n i d a d e , participação social ou s e x o / g ê n e -
ro — têm, na A m é r i c a Latina, u m a história teórica e de investigação aplicada.
A l g u n s deles se difundiram de forma notável, e x p r e s s a n d o n ã o somente

4
Para uma revisão desta natureza, ver a análise da participação social em saúde na América Latina,
realizada por Ugalde (1985).
m o d i s m o s , mas também estímulos teórico-práticos e financeiros, diretos ou
indiretos, que acentuaram tendências de investigação de l o n g o curso.
O conceito de gênero - restrito durante anos aos redutos de sociólo-
gas, historiadoras e ativistas feministas - irrompeu nos anos 80 e 90 em
estudos sobre planificação familiar ou saúde reprodutiva. Existe, agora, u m a
avalanche de investigações que o têm c o m o um de seus eixos. Está cada vez
mais despojado de seus conteúdos heurísticos e i m p u g n a d o r e s , dado o pro-
cesso de produção de conhecimento em que v e m sendo incluído.
D e nossa perspectiva, o uso de conceitos se refere, conscientemente
ou não, a teorias que os produziram no âmbito de u m determinado marco
referencial, que supõe discrepância, complementaridade ou antagonismo c o m
outros marcos teóricos. Os conceitos são construções provisórias que, pelo
m e n o s em antropologia, não são 'neutras'; referem-se a determinadas ten-
dências. Esta contextualização parece estar ausente de boa parte da produ-
ção epidemiológica, que, inclusive, elabora teorias explicativas sobre as quais
estes referentes teóricos se omitem.
A p e n ú l t i m a destas teorias é a da transição e p i d e m i o l ó g i c a . C o m o
s a b e m o s , ela foi p r o p o s t a nos E s t a d o s U n i d o s no início da d é c a d a de 70
e a p l i c a d a por a u t o r e s l a t i n o - a m e r i c a n o s d u r a n t e a s e g u n d a p a r t e d o s
a n o s 80. O q u e i n t e r e s s a d e s t a c a r é q u e o c o n c e i t o d e ' t r a n s i ç ã o e p i d e -
m i o l ó g i c a ' — s a i b a m ou n ã o os q u e o utilizam — está r e l a c i o n a d o a u m a
p r o p o s t a e v o l u c i o n i s t a / d e s e n v o l v i m e n t i s t a da s o c i e d a d e , f o r m u l a d a g e -
r a l m e n t e e m t e r m o s tipológicos, s u s t e n t a n d o - s e t e o r i c a m e n t e na a s s i m
d e n o m i n a d a teoria da m o d e r n i z a ç ã o . Esta teoria foi m u i t o difundida nas
d é c a d a s d e 50 e 6 0 , t e n d o c o m o a l g u n s de seus p r i n c i p a i s e x p o e n t e s
s o c i ó l o g o s e a n t r o p ó l o g o s l a t i n o - a m e r i c a n o s . C r i t i c a d a d u r a n t e os a n o s
60, d e i x o u de ser utilizada e m fins desta d é c a d a e nos a n o s 7 0 . A d i s c u s -
são teórica acerca da t r a n s i ç ã o - que, por o u t r o lado, t a m b é m tem raízes
5
na d é c a d a de 3 0 - n ã o está p r e s e n t e na m a i o r i a d o s t r a b a l h o s q u e a
utilizam na A m é r i c a Latina. A teoria é e m p r e g a d a c o m b a s e e m d a d o s
e m p í r i c o s , t r a b a l h a d o s c o m o se o c o n c e i t o não estivesse referido a certas

5
Ver a d i s c u s s ã o s o b r e o continuum folk-urbano relativo à A m é r i c a L a t i n a . V á r i o s d o s p r i n c i p a i s
teóricos desta proposta, e m particular Redfield e Foster, desenvolveram-na a partir da realidade
m e x i c a n a . N ã o é por acaso q u e as tipologias transicionais i n c l u e m características d o processo
s / d / a , d a d o que certos autores são alguns dos 'pais fundadores' dos estudos e t n o m é d i c o s referentes
à A m é r i c a Latina.
c o n c e p ç õ e s teóricas que, conforme foi demonstrado no caso da m o d e r n i z a -
ção, implicavam a aceitação de determinadas concepções ideológicas a res-
peito do desenvolvimento.
O fato de que atualmente se tenha recuperado a teoria da transição
está relacionado não somente a u m a aproximação científica, m a s t a m b é m à
recuperação das propostas político-econômicas dominantes e m grande parte
dos países latino-americanos, já que a teoria da transição se articula às pro-
postas neoliberais e neoconservadoras.
E m sua versão epidemiológica, a proposta da transição não apre-
s e n t a a s p e c t o m a n i f e s t o d e t e o r i a e se a p ó i a , b a s i c a m e n t e , n a i n f o r m a -
ção sobre a tendência histórica dos d a n o s à saúde e dos perfis e p i d e m i o l ó ¬
gicos. Isto significa que o conceito é utilizado 'descritiva' e não
' t e o r i c a m e n t e ' . P o r é m , d e v e - s e r e c u p e r a r o f u n d a m e n t a l : o c o n c e i t o de
t r a n s i ç ã o se refere a t e o r i a s q u e o o r i e n t a m n a s u a a n á l i s e d o s d a d o s
empíricos. Essas teorias têm sido analisadas quanto à consistência, e
c o n s t a t a r a m - s e n e l a s falta d e c a p a c i d a d e e x p l i c a t i v a e i n c o n g r u ê n c i a s
6
teórico-ideológicas.
O último p o n t o q u e assinalamos ressalta os méritos da discussão acer-
ca do que se entende por 'descritivo' e m antropologia e epidemiologia. Para
tal, d e v e m o s partir da epidemiologia dominante, que é descritiva, m a s assu-
mir t a m b é m que u m dos traços básicos do trabalho antropológico é a etno¬
grafia, t a m b é m descritiva. Constata-se, e m conseqüência, que a descrição, a
p r o d u ç ã o do dado se revela prioritária para ambas. A questão é precisar o
que cada u m a delas entende por produção do 'dado', já que aqui residem
algumas das principais divergências.

6
Todo conceito é constituído por duas facetas: uma teórica, outra operacional. A epidemiologia
descritiva tem-se preocupado sobretudo com esta última. Reduzir a interpretação aos dados, sem
incluir marcos referenciais teóricos, conduz a uma espécie de oportunismo interpretativo, dado que
não se explicita por que determinados dados são trabalhados e outros não são incluídos. Torna-se
ainda mais necessário quando se trata de formular interpretações teóricas como ocorre com a
'teoria' comentada ? Por que a transição se reduz à análise dos perfis de mortalidade e não inclui os
perfis de morbidade, já que nestes continuam a prevalecer as enfermidades 'tradicionais'? Que
explicação fornecer para a presença de homicídios e cirrose hepática tanto no perfil tradicional
como no transitional? Se enfocamos a violência, até onde vai a transição como modelo, se temos,
lado a lado, a situação dos EUA, com altas taxas de homicídio, e a dos países da Comunidade
Econômica Européia, com taxas reduzidas? Onde inserir fenômenos como o cólera, a AIDS OU a
tuberculose, considerando seu aumento e suas características de doenças transmissíveis e mortais?
Q u a n d o lemos e analisamos trabalhos de saúde pública ou de epide-
miologia clínica que fazem referências e p r o p õ e m incluir e m suas investiga-
ções aspectos c o m o estratégias d e sobrevivência, g r u p o s domésticos, pro-
cessos ideológico-culturais, estilos de vida ou 'simplesmente v i o l ê n c i a s ' , e
o b s e r v a m o s os d a d o s empíricos que nos apresentam e analisam, torna-se
evidente q u e h á u m a concepção diferencial não explicitada naquilo q u e se
entende por cada u m destes aspectos e sobre o tipo de ' d a d o ' a ser produzi-
do. S u p o m o s que pelo m e n o s para u m a parcela dos epidemiologistas ocorre-
rá o m e s m o c o m relação ao dado antropológico. Este p o n t o é particularmen-
te importante e constitui u m dos eixos diferenciais que t ê m d e ser especifica-
7
dos pelos profissionais das duas áreas.

ALGUMAS CARACTERÍSTICAS
BÁSICAS DO ENFOQUE ANTROPOLÓGICO

A antropologia médica, b e m como outras disciplinas sócio-histó¬


ricas, têm produzido materiais empíricos e teóricos que supõem apor-
tes e p o s s i b i l i d a d e s d e a r t i c u l a ç ã o c o m a p e r s p e c t i v a e p i d e m i o l ó g i c a ,
sempre e quando existir realmente uma vontade de articulação e uma
alienação. E m seguida, enumeraremos alguns aportes socioantropoló¬
gicos da epidemiologia.
A p r i m e i r a c o n t r i b u i ç ã o refere-se à p r o p o s t a d e u m a e p i d e m i o l o g i a
s o c i o c u l t u r a l , q u e r e c u p e r e os significados e as p r á t i c a s q u e os c o n j u n t o s
sociais a t r i b u e m a seus p a d e c i m e n t o s , p r o b l e m a s , s e n t i m e n t o s . D e v e - s e
r e c o r d a r q u e esta já v e m s e n d o p r o d u z i d a d e s d e o final d o s é c u l o X I X .
D u r a n t e os p r i m e i r o s c i n q ü e n t a anos deste século, foi se enriquecendo m e -
diante contribuições pontuais que possibilitaram sua e x p a n s ã o a partir das
décadas de 60 e 70.

7
Para dar um exemplo facilmente reconhecível, muito freqüente nos anos 70 e 80: quando epide¬
miologistas e sociólogos utilizavam o nível educacional - entendido como educação formal - para se
referir à sua relação com comportamentos maternos ou com migração, havia um pressuposto não
explícito de que estes níveis se referiam a fatores culturais. Esta significação emergia, sobretudo, na
discussão dos resultados.
O primeiro aporte sistemático é a investigação de D u r k h e i m (1897)
sobre o suicídio, ainda hoje u m a alternativa teórica para pensar o dado epi-
8
demiológico. Posteriormente, os trabalhos de D u n h a n e Faris (sobre a e s -
quizofrenia e m C h i c a g o ) , de M a u s s (sobre as técnicas d o corpo), de D e v e ¬
reux (suicídio e h o m o s s e x u a l i s m o entre os M o h a v e ) , d e M e a d e B a t e s o n
(problemas infantis e m Bali), e d e D e Martino (tarantulismo n o sul da Itália)
constituíram propostas de articulação dos processos culturais e sociais c o m
relação à interpretação de enfermidades e problemas, e possibilitaram a e x -
pansão desta a b o r d a g e m a partir dos anos 60 e 70 (Young, 1982; Paul, 1988).
Esta articulação supôs a contínua inclusão de marcos referenciais teóricos
9
antropológicos, sociológicos e filosóficos (Bibeau, 1 9 8 7 ) .
A possibilidade de criação de u m a epidemiologia sociocultural se apoia
no r e co nhe cimento da existência de u m a estrutura epidemiológica nos con-
juntos sociais — que servirão de matéria-prima para reconstruí-la. Este reco-
nhecimento, por sua vez, está correlacionado à existência do que d e n o m i n a -
m o s 'epidemiologia prática' e m todos os tipos de agentes de cura — que ope-
ra nos m é d i c o s de família e generalistas, nos curandeiros populares e nos
especialistas alopatas e de outros sistemas médicos. Esta epidemiologia prá-
tica expressaria não somente diferenças — a proposta dominante — c o m o tam-
b é m p o n t o s d e similaridade e articulação c o m o saber popular ( C a m p o s ,
1990; M e n é n d e z , 1990b, 1990c).
A epidemiologia sociocultural deve se referir tanto às representações
quanto às práticas. Partes significativas da antropologia médica e da epide-
miologia analisam somente as representações dos conjuntos sociais. Ε ne¬

8
Criticável em muitos aspectos, a proposta durkheimiana contém, não obstante, alguns aportes que
diferenciam e legitimam a aplicação do enfoque socioantropológico ao processo s / d / a . Suas contri-
buições se referem às necessidades de estudar o processo s / d / a em termos de representações
coletivas e de práticas (rituais), como também de construir o dado a partir da teoria e de uma
metodologia da ruptura. Na realidade, não se pode compreender de fato Bachelard, Canguilhem ou
Foucault, passando por Mauss e Bourdieu, sem rever Durkheim em profundidade. O principal
problema de sua proposta reside na 'eliminação' do sujeito, ou, mais precisamente, no fato de que
as significações são referidas às representações e às praticas dos conjuntos sociais e não aos indiví-
duos, eliminando uma das principais fontes de sentido. Desta perspectiva, sua análise do suicídio em
termos de representações e práticas coletivas é uma 'provocação metodológica'.
9
De uma perspectiva epidemiológica, os trabalhos de Cassei (1955, 1960) e de alguns psiquiatras
culturais (Bastide, 1967; Corin, 1988) estabeleceram as possibilidades de articulação, ao incorporar
as dimensões socioculturais. Com relação a isto, não é casual que a experiência 'etnográfica' destes
epidemiologistas se reporte ao contato com grupos não-ocidentais.
cessário modificar esta maneira de construir a informação, e, c o m base nesta
perspectiva, assumir que as representações d e v e m ser referidas a indicado-
res objetivos - por exemplo, análises bioquímicas - , e às práticas que a po-
pulação p r o d u z , n ã o necessariamente idênticas às representações.
Por conseguinte, deve-se assumir q u e os conjuntos sociais lidam c o m
u m n ú m e r o maior de representações d o que de práticas c o m relação a u m
processo s / d / a determinado. A s práticas s u p õ e m u m a variedade de sinteti-
z a ç ã o / s e l e ç ã o das representações e m função da ação. Isto deve ser referido
n ã o somente ao saber popular, m a s t a m b é m ao dos agentes de cura, aí in-
cluído o saber médico.
O processo s / d / a deve ser entendido c o m o u m a construção social; os
10
conjuntos sociais vão construindo u m perfil epidemiológico integrado. Deve-
se sublinhar, no entanto, que representações e práticas sobre cada u m a das
enfermidades e de suas características clínicas e epidemiológicas não se re-
v e l a m c o m o algo estruturado, emergindo, de fato, c o m o reações perante si-
tuações específicas. R e c o n h e c e m o s u m processo de constituição histórica
do saber dos conjuntos sociais, que deve ser reconstruído no trabalho antro-
pológico (Bibeau, 1993).
Os aspectos enumerados são alguns dos integrantes d o núcleo central
da proposta antropológica e que se estruturam e m torno do reconhecimento
de que o processo s a ú d e / d o e n ç a / a t e n ç ã o constitui u m dos c a m p o s — para
alguns, o principal — e m torno do qual os conjuntos sociais p r o d u z e m u m
maior n ú m e r o de representações e de práticas. Estas representações e práti-
cas d e s e m p e n h a r i a m v á r i a s tarefas fundamentais articuladas entre si, que
i n c l u e m desde permitir u m a interpretação e ação c o m relação às doenças

10
Com o termo 'integrado', queremos assinalar que o perfil inclui o conjunto de padecimentos,
sofrimentos, dores e problemas, sintetizando concepções e práticas provenientes de diferentes
saberes. Esta qualidade de síntese provisória é necessária para assegurar o processo de reprodução
social. Em vários trabalhos realizados ou supervisionados por nós, temos verificado, reiteradamen¬
te, que os grupos atuam frente a uma enfermidade segundo uma normatividade social dada. Porém,
caso o tratamento selecionado não funcione, eles recorrem a outras estratégias de intervenção,
determinadas por sua capacidade/possibilidade de utilização das mesmas. Assim, as mães abando-
nam o diagnóstico de indigestão ou 'mau-olhado' e o ressignificam como gastroenterite, caso as
ações não dêem resultado e vice-versa (Menéndez, 1985,1990c; Osório, 1994; Mendoza, 1994). A
codificação de enfermidades dos 'curandeiros' e dos 'médicos', construída e 'coisificada' por toda
uma corrente de investigações antropológicas, constituiu-se com base na observação quase exclu-
siva das representações, sem referência às práticas. No âmbito das práticas, a enfermidade emerge
como processo de síntese.
r e c o n h e c i d a s c o m o a m e a ç a s , até possibilitar a articulação da r e l a ç ã o dos
sujeitos e g r u p o s sociais c o m a estrutura social, sobretudo e m nível ideológi-
c o / c u l t u r a l (Stein, 1 9 8 5 , 1990).
D o processo s / d / a , constam desde ações cotidianas relativas à solu-
ção de p r o b l e m a s , até a elaboração de interpretações que expressam os nú-
cleos centrais das i d e o l o g i a s / c u l t u r a s d o m i n a n t e s / s u b a l t e r n a s d o s diferen-
tes g r u p o s que interagem e m u m a sociedade determinada. U m a v e z que os
conjuntos sociais necessitam produzir u m a interpretação — isto é, conferir
sentido e significado a seus sofrimentos —, a enfermidade e suas representa-
ções e práticas são, para a antropologia, parte constitutiva dos sujeitos.
U m aspecto nuclear da perspectiva antropológica que v e m adquirindo
relevância nos últimos anos a respeito da investigação e da ação do processo
s / d / a é o que se refere ao uso de técnicas qualitativas na obtenção de infor-
m a ç ã o e d e análise. A ênfase às políticas de atenção primária, por u m lado, e
a modificação d o perfil epidemiológico, por outro, favoreceram o reconheci-
m e n t o da importância desta a b o r d a g e m qualitativa, a o m e n o s c o m relação a
d e t e r m i n a d a s enfermidades e estratégias.
D e v e - s e sublinhar que a r e c u p e r a ç ã o da a b o r d a g e m qualitativa rela-
tiva à i n v e s t i g a ç ã o d o p r o c e s s o s / d / a teve o r i g e m n o s países capitalistas
centrais, e, e m particular, a partir d o d e s e n v o l v i m e n t o d a s í n d r o m e d e i m u ¬
nodeficiência a d q u i r i d a (AIDS). E m p o u c o t e m p o , as c a r a c t e r í s t i c a s d a e n -
f e r m i d a d e e d o s sujeitos e g r u p o s p o r t a d o r e s e v i d e n c i a r a m a s l i m i t a ç õ e s
da a b o r d a g e m estatística p a r a a o b t e n ç ã o de i n f o r m a ç ã o estratégica c o m
a l g u m tipo de utilidade explicativa e prática e m t e r m o s d o s c o m p o r t a m e n -
tos dos g r u p o s d e risco. A m e d i d a q u e se desenvolvia a p r o d u ç ã o d e infor-
m a ç ã o , os d a d o s referentes a o h o m o s s e x u a l i s m o , b i s s e x u a l i s m o , r e l a ç ã o
entre prostituição e AIDS, aí incluída a prostituição infantil e t c , t o r n a v a
a i n d a m a i s e v i d e n t e a n e c e s s i d a d e d e trabalhar c o m a b o r d a g e n s d o tipo
qualitativo. P o r é m — e isto é o que interessa ressaltar — o que se 'descobriu'
a respeito da AIDS não é diferente do que já sabíamos a respeito de outras
enfermidades e problemas, diante d o s quais a a b o r d a g e m estatística evi-
d e n c i a v a suas limitações. N ã o d i s p o m o s de d a d o s (ou os q u e t e m o s n ã o
são confiáveis) c o m relação a u m a série de e n f e r m i d a d e s p a r a a m a i o r i a
dos p a í s e s d a A m é r i c a Latina. A falta de l e g i t i m i d a d e científica d e c o r r e
não somente da pouca confiabilidade nos sistemas de captação institucional,
m a s dos i n s t r u m e n t o s estatísticos aplicados e m investigações epidemiológi¬
cas. A desconfiança se refere, basicamente, a dois tipos de informações: em
primeiro lugar, à confiabilidade quanto aos valores relatados em termos de
mortalidade ou de morbidade e, em segundo lugar, à qualidade estratégica
da informação obtida.
E m conseqüência, na maioria dos países da A m é r i c a Latina, a infor-
m a ç ã o epidemiológica não é confiável ou é inexistente para problemas c o m o
infanticídio, suicídio, alcoolismo, drogadição, homicídio, violência intrafa¬
miliar, violações, aborto, síndromes culturalmente delimitadas, cirrose hepá¬
tica e automedicação. Quase todos estes padecimentos e problemas, da m e s -
ma forma que a AIDS, têm relação c o m o 'ocultamento' intencional ou fun-
cional da informação. Sua solução ou abrandamento se referem à mudança
de c o m p o r t a m e n t o de sujeitos e conjuntos sociais envolvidos.
Deve-se recordar que vários dos padecimentos assinalados constitu-
em algumas das principais causas de mortalidade e m vários países latino-
americanos, e m nível geral ou em g r u p o s de idade específicos. Isto é, a falta
de aplicação de técnicas qualitativas para obtenção de informação e análise
obedece a outras causas que, em grande parte, estão relacionadas à concep-
ção metodológica utilizada na construção da informação e a sobredetermi¬
11
nação do modelo médico hegemônico.
O sub-registro de i n f o r m a ç õ e s a respeito de p a d e c i m e n t o s cuja na-
tureza é a dos p r o b l e m a s já assinalados d e v e , por seu turno, ser articulado
ao tipo de i n f o r m a ç ã o acerca d e s t e s p a d e c i m e n t o s , p r o d u z i d a e m nível
estatístico. S e , por exemplo, o b s e r v a m o s a natureza do ' d a d o ' p r o d u z i d o
e p i d e m i o l o g i c a m e n t e para u m p r o b l e m a c o m o o alcoolismo, inclusive e m
12
países c o m tradição de investigação neste c a m p o c o m o o M é x i c o , vemos
q u e as variáveis e m p r e g a d a s c o n t i n u a m a ser indefinidamente reiteradas,
sem gerar aportes substantivos diferenciais depois de quase trinta anos de
pesquisas epidemiológicas.

11
O fato d e q u e a p r e o c u p a ç ã o e a c o m p i l a ç ã o d e i n f o r m a ç õ e s m a i s c o n f i á v e i s a r e s p e i t o d e p r o b l e ¬
m a s / p a d e c i m e n t o s c o m o v i o l ê n c i a intrafamiliar, s í n d r o m e d e e s p a n c a m e n t o d e c r i a n ç a s , v i o l a ç õ e s ,
situação de d o e n ç a s mentais ou contaminação, tenha sido p r o d u z i d o por O N G s c não por serviços
de saúde públicos ou privados reforça o q u e dissemos.
12
A m o r t a l i d a d e por alcoolismo, medida por m e i o de indicadores diretos e indiretos, constitui u m a
d a s três p r i n c i p a i s c a u s a s d e m o r t e n o M é x i c o V e r M e n é n d e z & Di P a r d o ( 1 9 8 1 ) e M e n é n d e z
(1990a).
E m todas elas, conclui-se que o alcoolismo ocorre e m h o m e n s de de-
t e r m i n a d a s idades, e m sua maioria pertencentes a certos estratos sociais,
que professam determinada religião, que têm nível educacional formal e es-
tilo de vida determinados. A i n d a que se fale em considerar os padrões de
c o n s u m o e as dinâmicas culturais; e que alguns se p r o p o n h a m a estudar os
saberes dos conjuntos sociais — u m a v e z que consideram o alcoolismo c o m o
parte da religiosidade popular —, ou a informação não se p r o d u z , ou, c o m
raras exceções, adquire as características de u m a i n f o r m a ç ã o manifesta e
reiterada, operacionalizada e m termos de variáveis epidemiológicas. A l é m
disso, o M é x i c o realizou, nos últimos cinco anos, dois inquéritos sobre adi-
ções, aí incluído o alcoolismo, e m nível nacional (SSA, 1990 & 1993). P o -
rém, seus dados seguem reiterando o uso das variáveis já conhecidas, sem
que se produza a informação estratégica que possibilitaria u m tipo d e inter-
pretação e de ação diferente face às ações dominantes.
A Pesquisa Nacional de Saúde (SSA, 1994), investigando a ocorrência
de enfermidades crônicas por g r u p o s de idade, codificou a diabetes mellitus,
a hipertensão, as bronquites, as cardiopatias, as artrites, a desnutrição, a tu-
berculose, a epilepsia, a cegueira, a surdez, o atraso mental e outras causas.
N o entanto, não detectou a cirrose hepática em termos de morbidade — u m a
das dez principais causas de mortalidade — c o m o a primeira ou segunda cau-
sa de m o r t e e m g r u p o s e m idade produtiva, e c o m o a principal causa de
hospitalização nos serviços de gastroenterologia, c o m u m a evolução de 8 a
12 anos. O u seja, a cirrose hepática, a exemplo do alcoolismo, suscita igual-
mente p r o b l e m a s para os epidemiologistas.
A p a s s a g e m ao primeiro plano das enfermidades crônico-degenerati¬
v a s t a m b é m favoreceu o reconhecimento das técnicas qualitativas, dada a
crescente importância conferida aos estilos de vida tanto e m relação às cau-
sas, quanto ao controle e sobretudo ao auto-controle destas enfermidades. A
ênfase recente colocada na experiência do sujeito enfermo e na convivência
com o 'seu' padecimento, bem c o m o a importância dada ao 'autocuidado'
c o m o expressão que p o d e assegurar maior esperança e qualidade de vida,
reforçam ainda mais a significação das técnicas qualitativas.
A s últimas referências nos c o n d u z e m a outro fator que tem impulsio-
nado o desenvolvimento da aproximação qualitativa. A s propostas de aten-
ção primária — não somente as de atenção primária integral e seletiva, m a s
t a m b é m as de atenção primária médica — supõem a inclusão de estratégias
c o m o participação social e organização comunitária, a utilização de práticas
populares ou o estímulo à educação para a saúde. Todas estas estratégias
supõem a necessidade de produzir informação clínica ou epidemiológica es-
tratégica, e é neste aspecto que as técnicas qualitativas se tornam decisivas.
Deve-se assumir e m toda sua significação que a maior parte da informação a
ser obtida de m o d o a impulsionar a maioria destas estratégias se refere a
processos sociais, culturais, ideológicos e políticos, e que, além disso, supõe
incluir a ação, c o m base nos serviços e sobretudo nos atores sociais. Se isso
for efetivamente assumido, e não somente c o m o proposta burocrática ou
modismo, impõe-se a utilização de u m a a b o r d a g e m qualitativa. Conseqüen-
temente, se a preocupação c o m a Atenção Primária (AP) e c o m os Sistemas
Locais de Saúde (SILOS) é real, estes objetivos pressupõem o desenvolvimen-
to de uma epidemiologia não apenas do patológico, m a s igualmente dos 'com-
portamentos normais', assim como, por princípio, u m a relação c o m a estru-
tura e a organização social em nível local. Este ponto torna meritória uma
discussão desenvolvida c o m base na análise, por exemplo, das propostas de
13
A P e de c o m o estas são realmente levadas a c a b o .

D A S EROSÕES METODOLÓGICAS Ε MEDICALIZAÇÕES

Há poucos anos, alguns dos mais destacados antropólogos médicos


atuais, entre os quais Lock, atentaram para o perigo da m e d i c a l i z a ç ã o da
antropologia médica, ao m e n o s nos Estados Unidos e no Canadá. Esta dis-
cussão se assentava sobre u m aspecto que pode ser desconhecido dos sani¬
taristas e também dos antropólogos latino-americanos. Referimo-nos ao fato
de que, nos Estados Unidos, a antropologia médica é a disciplina antropoló-
gica de acentuada expansão nos últimos dez anos; a primeira ou segunda
especialidade c o m maior número de m e m b r o s ativos, produz o maior núme¬

13
É ó b v i o q u e as p r o p o s t a s d e i n v e s t i g a r a ' s a ú d e p o s i t i v a ' , a ' q u a l i d a d e d e v i d a ' o u o s r e c u r s o s q u e
o s s u j e i t o s / g r u p o s d e t ê m p a r a enfrentar s e u s p a d e c i m e n t o s p r e s s u p õ e m a u t i l i z a ç ã o , a i n d a m a i s
i n t e n s a , d c u m a a p r o x i m a ç ã o d e tipo qualitativo.
ro de revistas especializadas recentes, obtém maior número de postos de tra-
balho e é também u m dos campos com maiores recursos de financiamento.
Esta expansão está relacionada c o m vários dos aspectos analisados,
e m particular c o m a aplicação da a b o r d a g e m antropológica à investigação e
à ação e m A P c o m relação às enfermidades crônicas, AIDS, drogadição, vio-
lências e saúde reprodutiva, assim c o m o c o m relação aos fatores ocupacio¬
nais e de financiamento.
O perigo de medicalização da antropologia era referido, no que con-
cerne aos países centrais, à ênfase na especialização antropológica, correlata
à especialização médica; ao fato de o maior n ú m e r o de investigações antro-
pológicas optarem pelo enfoque ecológico-cultural, o mais similar e m sua
c o n c e p ç õ e s m e t o d o l ó g i c a s e técnicas ao e p i d e m i o l ó g i c o , a u m c r e s c e n t e
domínio de investigações de corte empirista, a u m a crescente subordinação
teórico-metodológica ao m o d e l o m é d i c o h e g e m ô n i c o etc.
N o s s a experiência na A m é r i c a Latina não p o d e ser referida a estes
processos, pelo m e n o s do m o d o c o m o têm sido analisados pelos antropólo-
g o s norte-americanos, canadenses e britânicos. H á outros processos q u e ex-
p r e s s a m nossas condições específicas.
N o entanto, existem alguns fatos que compartilhamos c o m esses paí-
ses — e m g r a n d e medida, porque foram inventados e receberam impulso de
antropólogos e sanitaristas norte-americanos c o m base e m suas investiga-
ções na A m é r i c a Latina. U m dos mais destacados e que experimentou relati-
va expansão está ligado ao desenvolvimento de tecnologias rápidas de ob-
tenção de informação e de análise. Deste modo, têm sido produzidos vários
manuais de 'etnografia rápida', referentes à obtenção d e i n f o r m a ç ã o epide-
miológica e de serviços de saúde (Scrimshaw & Hurtado, 1988; H e r m a n &
Bendey, 1992). A t é o n d e é de nosso conhecimento, na A m é r i c a Latina, equi-
pes de saúde, médicos e paramédicos têm utilizado as 'etnografias r á p i d a s '
referidas ao processo s / d / a . E m b o r a entre os introdutores desta tecnologia
p o s s a m ser e n c o n t r a d o s antropólogos, g e r a l m e n t e n o r t e - a m e r i c a n o s , sua
operacionalização não tem ficado, em geral, a cargo desses profissionais.
A s etnografias rápidas partem de u m fato o b s e r v a d o reiteradamente
e m nosso trabalho antropológico, e que tem permitido fundamentar a signi-
ficação das abordagens qualitativas. O trabalho c o m p o u c o s informantes,
m a s em profundidade, permite construir o perfil epidemiológico de u m g r u -
po determinado, possibilitando igualmente a inclusão de informações eco¬
nômicas, políticas e socioculturais. A l é m disso, a epidemiologia obtida a par-
tir daí permite 'encontrar' informações a respeito de enfermidades g e r a l -
m e n t e o b s c u r e c i d a s ou inexistentes nas pesquisas e p i d e m i o l ó g i c a s , assim
c o m o interpretações estabelecidas c o m base no p o n t o de vista dos atores,
que p e r m i t e m estabelecer atividades específicas.
Porém, esta forma de trabalho antropológico supõe o dispêndio de
muito tempo, se p e n s a r m o s e m termos comparativos c o m o trabalho epide¬
miológico. A d e m a i s , supõe u m a aproximação de natureza holística, que, ain-
da que não se c u m p r a e m sentido integral, opera c o m o m a r c o referencial de
nosso trabalho.
A proposta de 'etnografias rápidas' supõe despojar o trabalho antropo-
lógico n ã o somente de seu m a r c o referencial holístico, m a s t a m b é m de sua
profundidade. Esta forma de trabalho p r o m o v e o e n g e n d r a m e n t o de coisas
semelhantes ao que já se tem produzido, por exemplo, sobre o conceito de
'estilo de vida', isto é, corrói a capacidade teórico-prática da a b o r d a g e m an-
tropológica. Estas modificações advêm, e m grande parte, das concepções de
A P m é d i c a e, e m certa medida, de A P seletiva, e p o d e m ter potencialidade
operativa. Todavia, e m termos práticos, impossibilitam obter parte d o nú-
cleo da p r o p o s t a antropológica, caracterizada por permitir o acesso às signi-
ficações das representações e das práticas.
Esta proposta encobre u m fato decisivo. A l g u n s dos que a têm p r o m o -
vido têm u m a ampla experiência no trabalho antropológico no que diz res-
peito aos g r u p o s de seu interesse, e é e m função deste saber vivenciado que
eles t ê m elaborado recursos de intervenção não-transmissíveis, p o r é m n u m a
a p r e n d i z a g e m d e m o r a d a e próxima.
O u t r o fato que não se mostra suficientemente p o n d e r a d o é o da utili-
zação de trabalhadores de saúde locais, para a realização deste tipo de inves-
tigação. A experiência antropológica, assim c o m o os p r o g r a m a s de A P inte-
grais, têm atestado c o m constância a factibilidade d e produzir agentes de
cura locais que d o m i n e m técnicas biomédicas, e se revelado igualmente ca-
pazes de engendrar u m a epidemiologia local (Kroeger, M o n t o y a - A g u i l a r &
B i c h m a n , 1989). Esta possibilidade, porém, está baseada, quanto à produ-
ção de dados epidemiológicos (aí incluídos os 'dados antropológicos'), no
fato de que estes trabalhadores sejam m e m b r o s do g r u p o no âmbito do qual
trabalham. Q u a n d o esta metodologia se revela apropriada e m t e r m o s de in-
vestigação, m a s é utilizada por pessoas que não têm esta inserção ou não
d e t ê m o saber a c u m u l a d o anteriormente assinalado, o resultado p o d e ser
problemático.
C o m relação ao analisado, há u m p o n t o q u e interessa destacar sobre a
forma c o m o as técnicas de tipo qualitativo estão sendo utilizadas, ao m e n o s
nas áreas a que temos acesso, pelo pessoal de saúde, já que esta apropriação
supõe u m a transformação e m dois sentidos. E m primeiro lugar, os instru-
m e n t o s teórico-metodológicos p o d e m ser reduzidos a técnicas despojadas
d e seu instrumental teórico. E m segundo, por exigência das fontes de finan-
ciamento, as urgências e as necessidades de produzir resultados p a s s a r a m a
determinar o uso das técnicas e não, do m a r c o teórico. T a n t o e m termos de
investigação c o m o de investigação-ação, c o m relação a aspectos da realida-
de e problemas que justamente requerem u m a metodologia baseada e m grande
14
m e d i d a no tempo, estão sendo aplicadas metodologias de u r g ê n c i a .
A ênfase no qualitativo, o 'falar' de etnografias, m a s c o m característi-
cas rápidas, a inclusão de u m a terminologia q u e se refere a significações,
sentidos, representações e saberes, a conversão d e instrumentos q u e poten-
cialmente p r o d u z e m 'etnografias profundas' e m instrumentos que g e r a m da-
dos urgentes, tudo isso supõe a necessidade de começar a esclarecer o senti-
d o deste enfoque, que tende a se apropriar de u m corpo de palavras que se
referem a u m a metodologia de natureza antropológica, m a s q u e estão sendo
ressignificadas c o m base e m u m a concepção não qualitativa do ' d a d o ' pro-
duzido, o que, na prática, tende a separá-lo da referência teórica.

14
Devemos deixar claro que a urgência na produção de resultados não constitui uma particularidade
das ciências da saúde. Há muitos anos, quando parte dos sociólogos 'redescobriu' o qualitativo,
alguns instrumentos qualitativos foram convertidos em técnicas rápidas. Um dos exemplos mais
precoces foi a conversão das histórias de vida socioantropológicas em histórias de vida estruturadas
de aproximadamente uma página e meia e constituída por uma enumeração de variáveis similar a
um perfil demográfico e ocupacional. Nos últimos anos, foram realizados vários experimentos
interessantes que obtiveram rápida difusão. Um deles é a aplicação do critério de 'saturação' às
entrevistas em profundidade ou às histórias de vida, o que, entre outras coisas, implicou a impossi-
bilidade de construir padrões de comportamentos 'reais'. Outro diz respeito ao desenvolvimento
dos 'grupos focais', manejados com as mesmas características aplicadas nas "entrevistas mercadoló-
gicas". Um último exemplo é o que postula a entrevista única como o meio pelo qual emergem as
representações e práticas dos sujeitos com problemas tais como AIDS, questões no âmbito da saúde
reprodutiva ou violações. Para além de fundamentações metodológicas, uma parte do desenvolvi-
mento destas técnicas tem relação com as urgências e as imposições dos financiamentos. Em
conseqüência, um segmento dos antropólogos também está alterando suas formas qualitativas de
abordagem.
Entretanto a ênfase no qualitativo p o d e dar lugar a várias deforma-
ções, tais c o m o o hiperempirismo e o ateoricismo, ou a u m a qualidade duvi-
dosa da informação. E m outras palavras, p o d e chegar a reproduzir as carac-
terísticas dominantes e m grande parte da p r o d u ç ã o epidemiológica e socio-
lógica que, paradoxalmente, questiona. A p r o d u ç ã o d o d a d o e a análise qua-
litativa s u p õ e m u m vigoroso controle epistemológico e m nível artesanal, b e m
15
c o m o u m questionamento de tais urgências.

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15
Não desconhecemos a utilização de técnicas qualitativas no trabalho da saúde pública latino-america-
na, que no caso do México refere-se quase que exclusivamente ao uso de serviços de saúde (SSA, 1994;
Miranda et al., 1993), mas consideramos que esta utilização não somente é muito escassa, mas
também não está integrada ao trabalho epidemiológíco, figurando como um produto paralelo.
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METANALISE EM

EPIDEMIOLOGIA*

Milos Jénicek

Há u m lugar para a metanálise na epidemiologia e vice-versa? A res-


posta é u m sonoro sim, porém c o m limitações igualmente sonoras. O passa-
do, o presente e as possíveis tendências do futuro poderão confirmar isto.

E M TERMOS HISTÓRICOS

V i v e m o s e m uma era excitante, u m a época de revoluções tecnológicas


na medicina preventiva, na saúde pública, na prática clínica. Vacinas criadas
geneticamente, m a p e a m e n t o subcelular em epidemiologia molecular, méto-
dos avançados de diagnóstico por imagens — como a tomografia computado-
rizada axial e a ressonância magnética — estão-se tornando mais acessíveis
para u m a parcela cada v e z maior da população, ainda que a u m custo que

* T r a d u ç ã o : Ângelo S.Meira & Francisco Inácio Bastos


cresce de m o d o alarmante. O uso em larga escala de métodos mais tradicio-
nais de prevenção primária e secundária — c o m o a vacina B C G , triagem do
câncer ou alteração comportamental e m cardiologia —, c o m impactos fre-
qüentemente pouco conhecidos sobre doenças e camadas da comunidade,
rapidamente subtrai recursos do orçamento nacional de saúde. B u s c a - s e a
relação custo/benefício melhor possível e m todos os níveis de planejamento
e cuidados e m saúde. Escolhas entre programas e problemas concorrentes
no âmbito da saúde não p o d e m ser feitas intuitivamente, n e m baseadas ape-
nas na experiência. U m a análise sistemática de pesquisa e intervenção em
saúde torna-se u m a necessidade.
A o l o n g o deste século, persiste u m h i a t o entre a r i g o r o s a p e s q u i s a
b á s i c a e clínica e a t o m a d a de d e c i s õ e s no â m b i t o de p o l í t i c a s d e s a ú d e e
cuidados médicos. Estamos acostumados e treinados a desenvolver a
c o n t e n t o e s t u d o s o r i g i n a i s , c o m o e n s a i o s c l í n i c o s e de c a m p o , m a s só h á
p o u c o t e m p o e s t a m o s a p r e n d e n d o a p ô r e m prática u m a a b o r d a g e m r i g o -
rosa q u a n d o t o m a m o s d e c i s õ e s c o m b a s e no a m p l o e s p e c t r o de e x p e r i ê n -
cias i s o l a d a s . Por e x e m p l o , o c o n t r o v e r s o risco de c o m o r b i d a d e s e n v o l v i -
d o no a m p l o uso de d r o g a s anti-inflamatórias n ã o - e s t e r ó i d e s ou r e p o s i -
ção h o r m o n a l em m u l h e r e s n a p ó s - m e n o p a u s a só p o d e ser a v a l i a d o e m
b a s e s a m p l a s , c o m estratégias m a i s a p r o p r i a d a s do q u e os e s t u d o s analí-
ticos o b s e r v a c i o n a i s i s o l a d o s ou e n s a i o s clínicos. A m e t a n á l i s e p o d e au-
xiliar neste a s p e c t o .
A metanálise — integração de resultados de estudos independentes
vinculados a u m a m e s m a questão — ainda não tem vinte anos (Glass, 1976;
Light & Pilemer, 1984), ao passo que sua aplicação em medicina e ciências
afins da saúde tem apenas dez (Einarson et al. 1985; L ' A b b e , D e t s k y &
O ' R o u r k e , 1987; J é n i c e k , 1989).
Apesar de recente, esse c a m p o corre o risco de tornar-se vítima de sua
própria popularidade. Se, nos anos 70, apenas u m p u n h a d o de metanálises
era publicado a cada ano, hoje, mais de 500 avaliações sistemáticas que uti-
lizam o rótulo de metanálise são divulgadas no m e s m o intervalo de tempo.
U m a nova safra de metanalistas profissionais se p r o p õ e a dedicar-se
apenas a esse tipo de pesquisa e avaliação. Essa atividade está-se tornando
progressivamente mais b e m delineada e definida. O primeiro livro-texto de
metanálise em medicina foi publicado há m e n o s de dez anos (Jénicek, 1987),
e o s e g u n d o s o m e n t e e m 1994 (Petitti). Capítulos c o n t e n d o m e t a n á l i s e s
t a m b é m constituem, cada vez mais, partes de livros-texto em epidemiologia
(Fletcher, Fletcher & Wagner, 1988; Hennekens & Buring, 1987; Jénicek, 1995).

O PRESENTE

Já conhecendo sua evolução, p o d e m o s assim definir metanálise


(Jénicek, 1995):

Em psicologia e educação, de onde provém, metanálise é o processo de uso de métodos


estatísticos para combinar resultados de diferentes estudos. O novo procedimento não se detêm
nas distintas características referentes à qualidade dos estudos originais. Em medicina e nas
ciências médicas associadas, metanálise é uma avaliação sistemática, organizada e estruturada
e uma síntese de um problema que desperta interesse, baseada em resultados de estudos
independentes da questão (causa da doença, efeito do tratamento, método diagnóstico, prog-
nóstico etc). No sentido epidemiológico, os resultados de diferentes estudos tornam-se uma
nova unidade de observação e o objeto do estudo é um novo conglomerado (cluster) de
informações, semelhantes aos grupos de objetos nos estudos originais. Ε um 'estudo de
estudos' ou 'epidemiologia de seus resultados'. Por conseguinte, a metanálise apresenta hoje
em dia quatro objetivos e propósitos: confirmar informações, localizar erros, buscar descober-
tas adicionais e criar novas idéias para pesquisas posteriores.

A partir do ensaio clínico, a metanálise se expande e m direção a outros


campos, c o m o estudos de valores normativos (Staessen et al., 1990), ocor-
rência de doenças (Mahoney & Michalek, 1991), fatores etiológicos por meio
de pesquisa observacional (Fleiss & Gross, 1 9 9 1 ; J o n e s , 1992), prognóstico
(Mitra & M a c R a e , 1991), ou validade das tecnologias de diagnóstico (Irwig,
Littenberg & Petitti, 1991).
Há metanálise na epidemiologia? Ou epidemiologia na metanálise, como
sugere o título do texto? A resposta é afirmativa para a m b o s os casos; além
disso, a epidemiologia e a metanálise mostram-se mutuamente benéficas. A
metanálise na epidemiologia reforça nossa certeza sobre a(s) etiologia(s) das
doenças, efetividade de programas de saúde ou curso, ocorrência e dissemi-
nação das doenças.
Por outro lado, a vasta experiência de epidemiologistas clássicos e clí-
nicos foi colocada a serviço da metanálise. Critérios epidemiológicos rigoro¬
sos aplicados à saúde comunitária e à pesquisa clínica realizada à beira do
leito são hoje utilizados na avaliação da qualidade dos estudos originais. Há,
t a m b é m , u m a crescente tendência que vincula a metanálise qualitativa à sua
1
'prima', a metanálise quantitativa. V i s a n d o a u m a melhor integração quan-
titativa, os estudos originais são p o n d e r a d o s e / o u estratificados de acordo
com sua qualidade e características.
O maior avanço p r o m o v i d o pela metanálise, do p o n t o de vista epi-
demiológico, é a expansão da metodologia de avaliação do impacto de in-
tervenção. O clássico 'efeito de t a m a n h o do estudo', nesta disciplina, tem
c o m o base a i n t e g r a ç ã o e a interpretação de p a r â m e t r o s estatísticos. E m
medicina e saúde pública, u m a avaliação e síntese de razões d e p r o d u t o s
c r u z a d o s (odds ratios) (Yusuf et al., 1985; Collins & L a n g m a n , 1 9 8 5 ) , ris-
cos relativos (Stampfer et al., 1982) e atribuíveis (Himel et al., 1 9 8 6 ) , e,
possivelmente (no futuro), frações etiológicas ou taxas de eficácia de ele-
m e n t o s de proteção revelam-se ainda mais interessantes (Jénicek, 1995).

TENDÊNCIAS PREVISÍVEIS

A m b a s as tendências — metanálise na epidemiologia e epidemiologia


na metanálise — p o d e m ser antecipadas tanto no âmbito da metodologia quanto
no das suas aplicações.
N a s pesquisas clínicas, epidemiológicas e e m saúde pública, o maior
benefício, provavelmente, não será nossa maior competência para estimar
alguns v a l o r e s característicos sobre d e t e r m i n a d o c a m p o de pesquisa, tais
c o m o riscos ou efeitos decorrentes da doença. N a verdade, u m efeito de
2
desdobramento e entrelaçamento de tal pesquisa dedutiva e m metanálise
estará relacionado, sobretudo e cada vez mais, ao r u m o t o m a d o pela análise
e pela interpretação da heterogeneidade dos resultados. Avaliações de estu-
dos 'extrínsecos' de seus diferentes estratos, segundo diversas classificações,
p o d e r ã o levar à geração de novas hipóteses e interpretações, mediante u m a

1
No original kin (N.T.).
2
No original spin-off (NT.).
a b o r d a g e m indutiva e m metanálise, combinada à dedução por m e i o de um
processo interativo (Jénicek, 1995).
N a formulação de políticas nacionais de saúde, a definição de prioridades
e a alocação de força de trabalho e recursos serão levadas a termo, cada vez
mais, valendo-se de uma avaliação metanalítica de uma situação. Os governos
estão-se tornando mais conscientes de tal necessidade. E m diversos países, já
existe uma infra-estrutura, com instituições específicas, que procedem a avalia-
ções sistemáticas de programas, políticas e tecnologias em saúde. Seu propósito
é a fiscalização da efetividade da assistência médica.
A Força-Tarefa Canadense p a r a Avaliação Periódica do E x a m e M é d i -
co (Periodic Health Examination M o n o g r a p h , 1980), o Escritório Canaden-
se de Coordenação da Avaliação Tecnológica e m Saúde e instituições pro-
vinciais afins, c o m o o Escritório de Avaliação T e c n o l ó g i c a e m S a ú d e do
Q u e b e c , representam importantes veículos para o e m p r e g o da metanálise
e m seu sentido metodológico mais amplo.
A Comissão de Avaliação de Tecnologia Médica do Congresso dos EUA
(Committee for Evaluating Medical Technologies in Clinical Use, 1985) e a Divi-
são de Metodologia do Escritório Geral de Contabilidade dos EUA (Silberman,
Droitcour & Sculin, 1992; Droitcour, Silberman & Chelimsky, 1993;
United States General Accounting Office, 1994) têm utilizado, cada vez mais,
métodos metanalíticos e correlates para determinar a alocação de recursos e a
definição de prioridades em políticas e programas de saúde. Oriunda do Reino
Unido, de onde se expandiu para outras partes do mundo, a Rede Colaborativa
Cochrane (Chalmers, 1993) compreende centros nacionais e redes e m países
como Canadá, Escandinávia, Itália e Austrália. N a França, mantida c o m recur-
sos p r i v a d o s , a A g ê n c i a N a c i o n a l para o D e s e n v o l v i m e n t o da Avaliação
( A N D E M ) também persegue objetivos similares (Mattillon & Durieux, 1994).

DETERMINANDO PRIORIDADES
PARA A PREVENÇÃO DE DOENÇAS

U m problema de saúde só se torna prioridade para a intervenção quando


é freqüente e grave. Para solucioná-lo, é necessário dispor de meios efetivos
para o seu controle, bem c o m o manter a população-alvo do programa de
saúde dentro do alcance.
A avaliação metanalítica é requisito para determinar prioridades em
qualquer nível de prevenção (Jénicek, 1995). N a prevenção primária, o co-
nhecimento sobre o risco, a história natural da doença e as modalidades de
intervenção efetiva são combinados a uma avaliação metanalítica da efetivi-
dade do p r o g r a m a considerado e à confirmação adicional, por meio da aná-
lise da decisão, de que o programa é, de fato, a melhor opção. O m e s m o se
aplica à prevenção secundária, à qual se acrescenta o conhecimento sobre o
curso clínico da doença, seus fatores prognósticos e marcadores.
F i n a l m e n t e , a p r e v e n ç ã o terciária necessita, s o m a n d o - s e a tudo já
3
mencionado, de um conhecimento sólido da auxometria da doença, e ainda
uma v e z , da confirmação por meio da metanálise de que o p r o g r a m a em
análise realmente funciona, e que a análise de decisão indica que tal progra-
ma é, de fato, uma escolha preferível dentro de um leque de alternativas.
Atualmente, a metanálise tem sido utilizada principalmente na avalia-
ção do impacto (efetividade) de uma intervenção. Seria igualmente útil ter
um melhor conhecimento, baseado na metanálise, de outros componentes
da avaliação de prioridade de um programa de saúde? Isso ainda precisa ser
avaliado.

NAS POLÍTICAS EDITORIAIS DE PERIÓDICOS MÉDICOS

Artigos de revisão com base na metanálise de questões e problemas


formulados a priori serão cada vez mais preferíveis a "safaris intelectuais nos
bosques, onde as espécies caçadas devem ser observadas, perseguidas e en-
contradas". Algumas iniciativas v ê m tentando padronizar tais revisões (Mul¬
row, 1987; Squires, 1989; Haynes et al. 1990; O x m a n & Mulrow 1987).
A p ó s um período de certa relutância (Goldman & Feinstein 1979; Sha-
piro, 1994), os estudos metanalíticos são hoje bem recebidos pelos conse-
lhos editoriais de um n ú m e r o crescente de periódicos médicos de alto nível,
que, até mesmo, os solicitam. (Goodman, 1991).

1 V o c á b u l o n ã o d i c i o n a r i z a d o nos l é x i c o s h a b i t u a i s , t a n t o da l í n g u a p o r t u g u e s a c o m o inglesa, deriva-


d o de t e r m i n o l o g i a g r e g a : au.xos (relativo a c r e s c i m e n t o ) e metros (medição), significando "avaliação
da p r o g r e s s ã o " .
NA PESQUISA MÉDICA EM GERAL

A m e t a n á l i s e t e m c o n t r i b u í d o p a r a a a b o r d a g e m s i s t e m á t i c a relati-
v a à i n t e g r a ç ã o de p e s q u i s a , do m e s m o m o d o q u e a e p i d e m i o l o g i a contri-
b u i u p a r a a q u a l i d a d e de e s t u d o s originais. A r e v i s ã o s i s t e m á t i c a das p e s -
q u i s a s está-se t o r n a n d o c a d a v e z m a i s u m p a d r ã o .
Ε p r e v i s í v e l q u e as r e v i s õ e s da l i t e r a t u r a m é d i c a e m teses de p e s -
q u i s a d e s e n v o l v i d a s n o s p r o g r a m a s d e t r e i n a m e n t o sejam escritas m a i s
freqüentemente c o m o r e s u l t a d o de r e v i s õ e s s i s t e m á t i c a s d o q u e como
u m ' q u e m d i s s e o q u ê ' n a literatura m é d i c a , c o m o o q u e o b t e m o s m e d i -
ante qualquer busca e recuperação computadorizada de informações
médicas.
A m e t a n á l i s e está-se t o r n a n d o u m a a b o r d a g e m m e t o d o l ó g i c a c o m
b o a a c e i t a ç ã o n a p e s q u i s a e m e p i d e m i o l o g i a clínica. R e c e n t e m e n t e , dois
m e s t r e s d i p l o m a d o s e m e p i d e m i o l o g i a clínica foram p r e m i a d o s n a Uni-
v e r s i d a d e d e M o n t r e a l p e l a r e a l i z a ç ã o de m e t a n á l i s e s da função d o s anti-
c o r p o s m o n o c l o n a i s n a p r e v e n ç ã o e c o n t r o l e da rejeição a g u d a a t r a n s -
p l a n t e s d e ó r g ã o s s ó l i d o s (Carrier, J é n i c e k & Pelletier, 1 9 9 2 ) , e da efeti-
v i d a d e da q u i m i o t e r a p i a adjuvante à c i r u r g i a d o c â n c e r d o c o l o n e d o
reto ( D u b é , H e y e n & J é n i c e k , 1 9 9 4 ) . Por q u e i s s o n ã o p o d e r á a c o n t e c e r
na s a ú d e p ú b l i c a e m u m futuro p r ó x i m o ?

N O S PROGRAMAS DE TREINAMENTO EM SAÚDE

A m e t a n á l i s e v e m s e n d o i n t r o d u z i d a c o m o u m a d i s c i p l i n a de ' i m -
p a c t o ' e m v á r i o s c u r s o s d e férias e e m c u r s o s r e g u l a r e s d e e s c o l a s de
s a ú d e p ú b l i c a . N o m o m e n t o , oferece-se u m c u r s o r e g u l a r de m e t a n á l i s e
e m c i ê n c i a s de s a ú d e na U n i v e r s i d a d e de M o n t r e a l , e m n o s s o p r o g r a m a
de p ó s - g r a d u a ç ã o e m s a ú d e c o m u n i t á r i a .
É n e c e s s á r i o que, n o m a g i s t é r i o , se a d o t e esta t e n d ê n c i a , se deseja-
m o s c o n t a r c o m p r o c e s s o s de t o m a d a d e d e c i s ã o m a i s a d e q u a d o s por
p a r t e d o s g o v e r n o s e das i n s t i t u i ç õ e s d e s a ú d e .
APLICAÇÕES Ε PROGNÓSTICOS

Espera-se, c o m algumas reservas (Brook, 1993; Swales, 1993), q u e a


metanálise v á ser utilizada nas decisões clínicas sobre pacientes individuais.
Esse potencial de aplicação ainda deve ser explorado.
J á n a área d e p e s q u i s a , a m e t a n á l i s e n ã o irá salvar o r i g i n a i s m e d í o -
cres, n e m t o r n a r o b s o l e t o s b o n s estudos. N ã o h á b o a síntese d e p e s q u i s a
s e m u m s ó l i d o t r a b a l h o q u e l h e sirva d e base. Q u a n t o à r e l a ç ã o c o m a
e p i d e m i o l o g i a , a m b a s c o n t i n u a r ã o e x e r c e n d o u m a i n f l u ê n c i a m ú t u a fa-
vorável, levando a epidemiologia a transceder o domínio dos estudos
originais singulares, e 'ressuscitando' a metanálise das cinzas de u m a in-
t e g r a ç ã o n u m é r i c a m e c â n i c a pura.
O rápido incremento dos mecanismos de busca e recuperação c o m p u -
tadorizada d a literatura médica, aliado à disponibilidade d e software destina-
dos à elaboração de revisões sistemáticas, fará c o m q u e a metanálise seja
testada fora d o m u n d o acadêmico e d a avaliação, administração e planeja-
m e n t o d a s políticas d e saúde.

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EPIDEMIOLOGIA CLÍNICA

Ε MOLECULAR: É POSSÍVEL

INTEGRAR OS TRÊS 'MUNDOS'?

Miquel Porta

INTRODUÇÃO

É fácil p o l e m i z a r sobre a c h a m a d a e p i d e m i o l o g i a clínica e a epide-


miologia molecular, a s s i m c o m o sobre as relações entre a b i o l o g i a e a
e p i d e m i o l o g i a e, e m u m nível mais geral, sobre os m é t o d o s da investigação
dita básica e da investigação dita aplicada. A i n d a que a l g u m a s destas con-
trovérsias sejam honestas e e n r i q u e c e d o r a s , outras d i s t o r c e m e simplifi-
c a m extraordinariamente as posições do ' o p o n e n t e ' (pois, às v e z e s , parece
que se trata de i n i m i g o s ) . Estas p o l ê m i c a s são simplistas e, de n o s s o p o n t o
de vista, bastante estéreis.
De imediato, vê-se que adotar essa atitude é mais c ô m o d o do que
reconhecer as limitações que possamos ter em nossa prática profissional e
no conhecimento de outras especialidades, áreas ou 'mundos'. Ε mais fácil
do que criar um ambiente de trabalho em que haja uma aceitação tácita de
que compartilhamos da ignorância. T a m p o u c o é difícil pregar as virtudes do
trabalho transdisciplinar. O mais árduo é colocar em prática essas boas in¬
tenções. A palavra integração é uma das chaves para isso (Wynder, 1 9 9 4 ) , e
creio que seria proveitoso nos aprofundarmos em sua natureza e em suas
implicações, à luz, por exemplo, de conceitos c o m o transdisciplinaridade,
reducionismo, ecletismo, pragmatismo etc. Embora não seja uma proposta
muito brilhante, é a única que p o d e m o s oferecer aqui.
N a realidade, o tema de que tratamos se reduz a esta pergunta: c o m o
p o d e m o s integrar de forma coerente as visões, crenças, prática, m é t o d o s ,
conhecimentos das ciências básicas, clínicas e de saúde pública? A pergunta
p o d e p a r e c e r — ou, m e s m o , ser — enganosa. Ε n ã o e s q u e ç o as ciências
sociais, que têm figurado em meu trabalho já há muitos anos. N ã o obstante,
a verdade é que meus conhecimentos epistemológicos — e em geral, minhas
luzes filosóficas — são absolutamente exíguos. O que posso oferecer-lhes
são, apenas, alguns fragmentos da minha prática de investigação. l i s t a práti-
ca, c o m todas suas limitações, compreende o esforço integrador a que acabo
de m e referir. N ã o é muito, e provavelmente padece de um excessivo prag-
m a t i s m o e ecletismo.
Por tudo isso, nesta primeira parte, gostaríamos de sintetizar algumas
idéias sobre as questões que hoje nos c o n g r e g a m neste debate. Por serão
enunciadas sob o formato de quatro teses. Na segunda parte, expõem-se
alguns aspectos do estudo PANKRAS II, uma tentativa de trabalho transdisci¬
plinar que tenho a felicidade de chefiar com o dr. Francisco X. Real e nossas
respectivas equipes.

QUATRO IDÉIAS

• Os estudos sobre as bases moleculares do câncer devem:


a) estender-se para além do laboratório, de m o d o a se inserir no contexto
clínico e populacional, mediante uma metodologia rigorosa (geralmente,
com um forte componente 'epidemiológico');
b) ser valorizados na medida em que p o d e m se aproximar da 'cabeceira do
leito do paciente' (a prática clínica cotidiana) e traduzir-se em termos
úteis no âmbito da assistência clínica;
c) integrar-se com os estudos sobre as causas ambientais do câncer (por
exemplo, ocupacionais, dietéticos) e avaliar em que medida p o d e m con¬
tribuir para os programas de intervenção (promoção da saúde, preven-
ção das enfermidades);
d) avaliar as técnicas que utilizam com base em standards de confiabilidade
e exatidão, habituais nos estudos b e m conduzidos de investigação clini-
ca e epidemiológica.
• O ' c i s m a ' e n t r e c i ê n c i a s b á s i c a s , c l í n i c a s e de s a ú d e p ú b l i c a
(Fletcher, 1992) é prejudicial para os três 'níveis' ou ' m u n d o s ' , tanto em
termos práticos quanto do conhecimento científico. Ainda que n e m todos os
estudos possam ou devam abarcar os três níveis de uma vez, é necessário um
número maior de estudos mais aprofundados, para promover esta integração.
• Em todo projeto de investigação que procure integrar as ciências
básicas e as de saúde pública, a medicina clínica — por seu conhecimento dos
padrões diagnósticos e terapêuticos e, em geral, do raciocínio clínico predo-
minante nos centros sanitários — desempenha um papel central como gera-
dora de hipóteses, c o m o referente prático e c o m o fonte de informação acer-
ca de possíveis vícios de seleção e de informação (Porta, 1990).
• É praticamente inevitável que a investigação básica e a epidemioló-
gica, q u a n d o seu objeto de estudo são 'pessoas h u m a n a s ' , suscitem uma
reflexão sobre as condições reais da prática da medicina. Esta reflexão pode
e deve ser formalizada em estudos específicos sobre os serviços assisten¬
ciais, tornando-se operativa e integrando-se c o m o uma dimensão adicional
dos estudos. Isso ocorreria de forma similar com relação à análise do estado
de saúde de uma comunidade.
C o m relação ao item do primeiro tópico, caberia acrescentar 'e vice-
versa', uma vez que os estudos epidemiológicos t a m b é m p o d e r i a m rever
suas premissas e métodos com maior freqüência, e indagar se o seu objeto de
estudo ou suas hipóteses exigem a modificação dos pressupostos e rotinas
habituais, se não seria conveniente afastar-se da ortodoxia epidemiológica,
por vezes tão auto-suficiente, tão convencida de deter a verdade metodoló-
gica frente aos investigadores 'básicos' e 'clínicos'. A lógica dos experimen-
tos habituais e m muitos laboratórios, por exemplo, sua concatenação de hi-
póteses, resultados e desenhos poderiam ser perfeitamente aplicáveis a al-
guns estudos epidemiológicos, ou a algumas fases da análise de tais estudos,
quando as bases de dados constituem um imenso conjunto de amostras pas-
síveis de serem analisadas de múltiplas formas (Vandenbroucke, 1990; Cole,
1993). Pode ser, talvez, que essa lógica a posteriori n ã o seja aplicável, m a s é
benéfico formular a questão (Taubes, 1995).
A l g o semelhante poderia ser dito das rotinas c o m as quais, às v e z e s ,
são efetuados os cálculos sobre o tamanho amostral, baseadas não raramen-
te em alguma 'pirueta' sobre a magnitude do efeito esperado.
Sobre o segundo tópico, deveria haver u m a reflexão sobre os privilégios
encerrados neste 'cisma': cada ' m u n d o ' c o m seus congressos, revistas, gru-
pos de maior ou menor influência, n o r m a s , códigos etc. Tem-se a sensação
de que poucas vezes a cultura de u m mundo, sequer a de u m a especialidade
dentro dele, se expõe à de outro m u n d o ou nível.

GENES, 'SERES HUMANOS' Ε POPULAÇÕES

E n q u a n t o diversos g r u p o s de investigadores se esforçam e m ampliar


os conhecimentos acerca dos m e c a n i s m o s etiopatogênicos das d o e n ç a s , par-
te considerável d o saber existente não é utilizada. Isto é especialmente grave
n o caso da prevenção e do controle de diversas doenças crônicas (Wynder,
1994). Por exemplo, e m que medida e c o m o os conhecimentos obtidos gra-
ças à técnica da P C R (reação em cadeia da polimerase) p o d e m contribuir
para a prevenção e o controle do câncer de colo uterino? E m que m e d i d a os
recursos gastos na detecção do H P V (vírus do papiloma h u m a n o ) deveriam
ser investidos em e x a m e s de Papanicolau?
A prática da m e d i c i n a e da saúde pública é, de u m m o d o geral, alheia
ao afã dos investigadores. A s s i m , p a r a dar u m e x e m p l o p r ó x i m o a n o s s o
trabalho, nos centros sanitários e s p a n h ó i s existe u m a notável v a r i e d a d e de
enfoques diagnósticos sobre suspeita de câncer de p a n c r e a s e de câncer do
sistema biliar, c o m o foi e v i d e n c i a d o no E s t u d o PANKRAS II — e c o m o , s e m
d ú v i d a , s a b e m a q u e l e s q u e e x e r c e m a m e d i c i n a . A T a b e l a 1 reflete, e m
p a r t e , essa v a r i a b i l i d a d e (Porta et al., 1994). A o m e s m o t e m p o , p e r s i s t e m
l a c u n a s a c e r c a de questões de g r a n d e r e l e v â n c i a clínica. C o m o , p o r e x e m -
plo, detectar de forma m a i s p r e c o c e estes t u m o r e s ? Q u e s e q ü ê n c i a de exa-
m e s c o m p l e m e n t a r e s p e r m i t e obter, c o m rapidez, u m d i a g n ó s t i c o c o r r e t o ?
Q u e a l g o r i t m o d i a g n ó s t i c o é m a i s eficiente? C o m o a u m e n t a r a t a x a de
ressecabilidade? Qual é o papel específico do diagnóstico anatomopatológi¬
co nos pacientes mais velhos? C o m o distinguir a origem de certos tumores
periampulares? C o m o melhorar a sobrevida e a qualidade de vida destes pa-
cientes? C o m o aumentar a participação dos pacientes no processo de toma-
da de decisões e t c ?

Tabela 1 - E x a m e s d i a g n ó s t i c o s r e a l i z a d o s n o s p r i m e i r o s 120 c a s o s
de câncer de pancreas exócrino e verificação cito-histo¬
lógica, nos cinco hospitais participantes do estudo
PANKRAS II ( P o r t a et a l . , 1 9 9 4 a )

*
Outras alterações genéticas.
Efetivamente, o grau de d i s s e m i n a ç ã o ou estágio e m que, de m o d o
geral, estas patologias c h e g a m ao m é d i c o — e não, d i g a m o s , ao cirurgião ou
ao oncologista — indica que algo não funciona b e m no sistema de atenção
primária. Q u a n d o é possível tomar decisões terapêuticas p o n d e r a d a s , es-
tas têm u m a d i m e n s ã o m a r c a d a m e n t e paliativa. A relevância clínica destas
q u e s t õ e s é evidente para todos e constitui s o m e n t e u m e x e m p l o menor,
m a s ilustrativo. M u i t o s profissionais — quer se sintam p r ó x i m o s ou distan-
tes da c h a m a d a e p i d e m i o l o g i a clínica — têm contribuído efetivamente para
aprimorar o conhecimento de tais questões e da prática profissional cor-
respondente. E m outras palavras, d e f e n d e m o s que os rótulos ('epidemio-
logia clínica' etc.) são m e n o s relevantes do que os frutos obtidos e p o d e m
continuar a balizar a integração do raciocínio e dos m é t o d o s da e p i d e m i o -
logia c o m os de outras disciplinas.
Outro ponto de referência próximo é o Hospital do M a r de Barcelona.
Por intermédio do seu Registro de T u m o r e s sabemos que, atualmente, 8 9 %
dos doentes c o m câncer de pâncreas ou de vesícula biliar ingressam no hos-
pital por intermédio do Serviço de Emergência (somente 1 1 % são admis-
sões p r o g r a m a d a s ) . O intervalo entre o primeiro sintoma e a primeira con-
sulta no hospital tem, em média, 61 dias ( 2 6 , 7 % d e m o r a m mais de três me-
ses). J á o tempo transcorrido entre a primeira consulta no hospital e o diag-
nóstico é, em média, de 25 dias (superior a um mês em 3 1 % dos doentes).
Ainda de a c o r d o c o m os dados do Registro, sabe-se que o tratamento dos
cânceres de pancreas e vesícula biliar tem um objetivo radical em apenas
3 7 % dos casos. Existe um estudo acerca da extensão dos tumores em 6 9 %
dos doentes e, no m o m e n t o do diagnóstico, 2 5 % dos pacientes apresentam
doença disseminada à distância (regional, 6%; local, 3 8 % ) . Podem-se cons-
tatar algumas outras cifras — preocupantes, do nosso p o n t o de vista — sobre
os pacientes com câncer do tubo digestivo, que ingressam em nosso hospital
por meio do serviço de emergência (Fernandez et al., 1995).
Estas cifras s e r i a m a b s o l u t a m e n t e d i v e r g e n t e s d o h a b i t u a l ? N ã o
c r e m o s . Por que, então, t r a z e m o s ao d e b a t e t e m a s tão c o t i d i a n o s na clí-
nica, a p a r e n t e m e n t e tão afastados do m u n d o do l a b o r a t ó r i o e até m e s m o
de a l g u m a s e p i d e m i o l o g i a s ? Porque e s t a m o s c o n v e n c i d o s de q u e , e m pri-
m e i r o lugar, é n e c e s s á r i o e possível investigar f o r m a l m e n t e estas q u e s -
tões. E m s e g u n d o lugar, p o r q u e é p o u c o ético e, de um m o d o g e r a l , fútil
levar a cabo c e r t a s formas de i n v e s t i g a ç ã o e p i d e m i o l ó g i c a s e m q u e esta
se b a s e i e n a p r á t i c a clínica e tenha r e p e r c u s s ã o sobre ela. E m terceiro,
p o r q u e n ã o é p o s s í v e l realizar i n v e s t i g a ç ã o de b o m p a d r ã o (básica, clíni-
ca ou e p i d e m i o l ó g i c a ) s e m c o n e x ã o c o m a p r á t i c a c l í n i c a , c a s o esta in-
v e s t i g a ç ã o a s p i r e a u m alto g r a u d e v a l i d e z e r e l e v â n c i a ( F l e t c h e r , 1 9 9 0 ;
P o r t a , 1990; 1 9 9 4 ) .
N ã o obstante, é surpreendente a ausência de referência a estas ques-
tões p o r p a r t e de n u m e r o s o s i n v e s t i g a d o r e s e m b i o l o g i a c e l u l a r e m o l e -
cular, a s s i m c o m o d e v e - s e d e s t a c a r os i m p o r t a n t e s deficits m e t o d o l ó g i -
c o s n o s e s t u d o s e m q u e se b a s e i a m certas p r o p o s t a s d e a p l i c a ç ã o ao con-
texto c l í n i c o d a s d e s c o b e r t a s d a b i o l o g i a . U m e x e m p l o são os e s t u d o s
q u e p r o p õ e m q u e a d e t e c ç ã o de m u t a ç õ e s no g e n e k-ras teria u t i l i d a d e
clínica n o d i a g n ó s t i c o d o c â n c e r d e p a n c r e a s — n a s q u a i s , o b v i a m e n t e , o
P C R d e s e m p e n h a u m p a p e l f u n d a m e n t a l — e q u e v i o l a m c l a r a m e n t e di-
v e r s o s r e q u i s i t o s q u e d e v e m ser o b e d e c i d o s p o r u m e s t u d o de a v a l i a ç ã o
de p r o v a s d i a g n o s t i c a s ( M a l a t s et al., 1 9 9 4 ; H e r n a n d e z A g u a d o & Gar-
cia, 1 9 9 3 ) . N a r e a l i d a d e , a c r e n ç a n a u t i l i d a d e d i a g n o s t i c a d e s t e m é t o d o
de d e t e c ç ã o r e p r e s e n t a u m n o v o e e v i d e n t e e x e m p l o d a s g r a v e s c o n s e -
q ü ê n c i a s d a falta d e d i á l o g o e n t r e os três ' m u n d o s ' q u e p r o t a g o n i z a m
esta e x p o s i ç ã o .
E m consonância c o m o que acabamos de expor e c o m a 'tese' inicial
de n ú m e r o 4, a equipe de investigadores do estudo PANKRAS I I decidiu abor-
dar formalmente a problemática que intuímos a partir da leitura da Tabela 1,
tratando-a c o m o u m subprojeto do referido estudo (Porta et al., 1994a; Porta
et al., 1994b; Malats et al., 1995) Os objetivos deste subprojeto são apresen-
tados, sinteticamente, a seguir:
• analisar os padrões de utilização (freqüência e seqüência) das téc-
nicas diagnosticas utilizadas para a diagnose das patologias m e n c i o n a d a s ,
nos cinco hospitais participantes do estudo PANKRAS II, b e m c o m o os fatores
associados a estes padrões, tanto os relativos ao paciente e sua doença, c o m o
os relativos ao hospital;
• avaliar qualitativa e q u a n t i t a t i v a m e n t e o r e n d i m e n t o clínico dos
p a d r õ e s principais de utilização, conferindo u m a ênfase especial à base do
diagnóstico (histologia, citologia, clínica), às c o m p l i c a ç õ e s clínicas das téc-
nicas, ao i m p a c t o sobre as decisões terapêuticas (re-secção cirúrgica, qui-
m i o t e r a p i a ; i n t e n ç ã o d o t r a t a m e n t o ) e à e v o l u ç ã o d o d o e n t e (reinterna¬
ç õ e s , s o b r e v i d a ) . E s t e objetivo inclui t a m b é m o estudo do g r a u de correla¬
ção entre a certeza diagnostica, avaliada m e d i a n t e u m a a d a p t a ç ã o de n o s -
sa classificação CCD-IHM (Porta et al., 1 9 9 4 b ) , e a a v a l i a ç ã o c l í n i c a do
paciente, v i s a n d o , ainda, a efetuar u m a a p r o x i m a ç ã o à relação c u s t o - b e n e ¬
fício e custo-efetividade dos principais p a d r õ e s d i a g n ó s t i c o s ; e
• avaliar a possibilidade do impacto dos padrões diagnósticos e do
grau de certeza diagnostica associado a cada u m deles sobre as estimativas
do risco das 'exposições', acerca das quais o estudo coleta informações por
m e i o de entrevista (ocupação, hábitos tóxicos, alimentos, antecedentes pa-
tológicos etc.) c o m pacientes que c o m p õ e m os grandes g r u p o s diagnósticos
do estudo (câncer de pâncreas, câncer das vias biliares extra-hepáticas, pan-
creatite crônica, outras patologias benignas do pancreas), b e m c o m o avaliar
a possível relação entre a base diagnóstica e a classificação errônea das ex-
posições entre os 110 pacientes cujos familiares foram t a m b é m entrevista-
dos de forma independente.
J á que aludimos à técnica do PCR, e u m a v e z que este processo é, atu-
almente, emblemático de tantas coisas, talvez não seja supérfluo sublinhar
que o PCR carece de função, caso não se obtenha pelo m e n o s u m a amostra
citológica do tumor. C o m o isto n e m sempre é possível e já que n e m sempre
as amostras citológicas são ótimas (devido ao material hemático, ao escasso
n ú m e r o de células tumorals etc.), a avaliação da possível efetividade do PCR
g a n h a e m consistência metodológica — e e m realismo — n o âmbito de um
trabalho c o m o o mencionado. O progresso parece substancial c o m relação à
i m e n s a m a i o r i a de investigações efetuadas até o m o m e n t o (no c a m p o d o
g e n e k-ras e d o câncer pancreático-biliar). Porém, indubitavelmente, e m fun-
ção dos resultados do nosso e de outros estudos, deverão ser desenvolvidos
outros projetos que superem as limitações que, sem dúvida, afetam nosso
estudo. D e i x a r e m o s aqui apenas esboçadas as discussões sobre o equilíbrio
entre complexidade metodológica e logística e entre pertinência e relevância
científicas (Porta & Sanz, 1993).

OUTRO EXEMPLO DE BUSCA DE INTEGRAÇÃO

D e s c r e v e m o s a seguir outro estudo que t a m b é m integra o PANKRAS II


(Porta et al., 1994a). Seus objetivos são:
• avaliar a metodologia de mensuração da dose interna de compostos
organoclorados e m amostras de soro, tecido tumoral e tecido não-tumoral
do pancreas e de vias biliares extra-hepáticas;
• analisar a dose interna de m e t a b o l i t e s do DDT e outros organoclora-
dos, tais c o m o os PCBS, e m soro de pessoas sãs ('controles' a m i g o s dos 'ca-
sos'), e m tecido n o r m a l de p a n c r e a s exócrino (procedente de controles -
doadores de órgãos falecidos), e m amostras de tecido e de soro de pacientes
c o m pancreatite crônica, no soro e tecido tumoral de pacientes c o m câncer
de pancreas e no soro e tecido tumoral de pacientes c o m câncer do sistema
biliar extra-hepático;
• analisar, nos quatro g r u p o s anteriores, a correlação entre as exposi-
ções ocupacionais a compostos organoclorados (estimadas por matrizes de
trabalho — exposição, a partir das entrevistas c o m os pacientes) e a dose
interna destes compostos; e
• analisar, nos casos de câncer d e p a n c r e a s , a possível a s s o c i a ç ã o
entre as exposições ocupacionais e a dose interna dos c o m p o s t o s organoclo-
rados, c o m a presença ou ausência de mutações no c ó d o n 12 do oncogene
k-ras, b e m como, nos casos c o m mutações, analisar o espectro das m e s m a s
e m função das exposições ocupacionais e a dose interna d e organoclorados.
N a Figura 1, esquematizam-se estas idéias. Gostaríamos que ela refle-
tisse u m certo esforço no sentido de integrar, de forma coerente, conheci-
m e n t o s , raciocínios, m é t o d o s e técnicas de várias disciplinas, c o m o medici-
na clínica, biologia, farmacogenética e epidemiologia. O PCR revela-se u m
instrumento de e n o r m e valor, e não é despropositado pensar q u e este valor
se ampliará, caso se confirmem os indícios de que é possível detectar muta-
ções e m células neoplásicas obtidas de sangue periférico e de suco pancreá¬
tico (Tada et a l , 1993; Miki et al., 1993). Naturalmente, deveremos verifi-
car se estes avanços — de índole essencialmente tecnológica — contribuirão
para aprimorar o diagnóstico, aumentarão nossos conhecimentos etnológicos ou
serão somente uma peça a mais do imenso puzzle dos estudos mecanicistas.
FIGURA 1 - Modelo causal (hipótese) sobre exposições ocupa¬
cionais, dose interna de metabolitos de D D T e ou
tros c o m p o s t o s o r g a n o c l o r a d o s , e ativação do g e n e
K-ras no c â n c e r de p â n c r e a s exócrino, pancreatite
crônica e c â n c e r do s i s t e m a biliar e x t r a - h e p á t i c o

(Ρ) Polimorfismos genéticos associados à ativação/desativação dos agenetes xeno¬


bióticos.
(1) Os dados sugerem apenas que algumas exposições ocupacionais e ambientais
podem participar na gênese de algumas pancreatites crônicas idiopáticas.
(2) As evidencias epidemiológicas são marcantes, no sentido de que existe uma de-
terminada conexão causal.
(3) Λ participação do gene k-ras na via etiopatogênica situada entre determinadas
exposições ocupacionais e o câncer somente foi estudada na leucemia mielóide
aguda. A hipótese é que as exposições que atuam por intermédio de k-ras são
distintas para os cânceres de pâncreas e das vias biliares.
(4) Desconhecem-se os fatores que ativam k-ras e que acarretam as mutações tão
freqüentes no câncer de pâncreas. Esta análise constitui um objetivo central do
estudoPANKRASIIem sua totalidade.
(5) O álcool seria um exemplo destes fatores: sem dúvida, desconhece-se a causa da
pancreatite crônica mais freqüentemente do que a da pancreatite aguda.
(6) Existem estudos muitos sugestivos de que a pancreatite crônica (algum subtipo?
aquela ocasionada por algum grupo específico de agenetes?) é um dos fatores
de risco para o câncer de pancreas.
(7) De modo semelhante às hipóteses relacionadas à Via 2', aquelas relacionadas à
Via 7' puderam ser postas à prova por meio da informação obtida com base na
entrevista do paciente e do resumo estruturado das histórias clínicas.
(8) Exemplo de confounding a ser controlado mediante as estratégias epidemiológicas
habituais.

O b s . 1 . A figura e a s n o t a s a e l a relativas c o n s t i t u e m u m a simplificação, c o m o b j e t i v o s s i m p l e s -


mente ilustrativos
2. A s v i a s e t i o l ó g i c a s de interesse p r i m á r i o n o e s t u d o estão i n d i c a d a s e n t r e p a r ê n t e s e s .

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O ECOLÓGICO NA

EPIDEMIOLOGIA

Pedro Luis Castellanos

INTRODUÇÃO

N o s s o p o n t o de partida será assumir que a epidemiologia é u m a disci-


plina básica da saúde pública. Sua função principal é a descrição e a explica-
ção dos fenômenos e problemas de saúde de conglomerados h u m a n o s , vi-
sando a sua transformação. Isto não nega que os conceitos, m é t o d o s e técni-
cas da epidemiologia tenham aplicação útil a outros fins, mas sim que eles
contribuem para a delimitação do que, segundo nossa experiência, é o cam-
po específico da epidemiologia.
A s a ú d e p ú b l i c a foi s u b s i d i a d a , n o s s é c u l o s X V I I I e X I X , p o r u m a
teoria da s a ú d e e p o r e s t u d o s e p i d e m i o l ó g i c o s q u e d e m o n s t r a r a m e enfa-
t i z a r a m as r e l a ç õ e s entre os p r o b l e m a s d e s a ú d e de c o m u n i d a d e s e suas
c o n d i ç õ e s d e v i d a , e n t ã o e s s e n c i a l m e n t e e n t e n d i d a s c o m o c o n d i ç õ e s sa-
nitárias b á s i c a s , f o r m a s de a l i m e n t a ç ã o e c o n d i ç õ e s d e trabalho. P i o n e i -
ros c o m o V i r c h o w d e s t a c a r a m e n f a t i c a m e n t e estas r e l a ç õ e s e a i m p o r -
tância de transformar as c o n d i ç õ e s de v i d a p a r a m e l h o r a r a s a ú d e das
p o p u l a ç õ e s . P o d e m - s e citar, c o m o e x e m p l o , a l g u n s t r a b a l h o s p i o n e i r o s
sobre freqüência e d i s t r i b u i ç ã o das d o e n ç a s , c o m o o e s t u d o e c o l ó g i c o de
D u r k h e i m (1982) sobre freqüência e d i s t r i b u i ç ã o do s u i c í d i o a s s o c i a d a
às c u l t u r a s p r o t e s t a n t e s e católicas na E u r o p a O c i d e n t a l , as d e s c r i ç õ e s
de Farr (1991) sobre a saúde dos t r a b a l h a d o r e s das m i n a s e os e s t u d o s de
S n o w (1991) s o b r e o cólera na I n g l a t e r r a , os de V i l l e r m e ( 1 9 9 1 ) sobre a
s a ú d e d o s t r a b a l h a d o r e s e m diferentes r a m o s da i n d ú s t r i a têxtil na Fran-
ça e os de Casal (1991) sobre as c o n s e q ü ê n c i a s de u m a a l i m e n t a ç ã o p o u -
co v a r i a d a e p o b r e e m p r o t e í n a s a n i m a i s , na E s p a n h a . N a A m é r i c a Lati-
na, p o d e m o s citar os t r a b a l h o s de Finlay ( 1 9 9 1 ) , e m C u b a , s o b r e o p a p e l
d o s m o s q u i t o s na t r a n s m i s s ã o d a febre a m a r e l a , os d e C a r r i ó n ( 1 9 9 1 )
sobre a v e r r u g a p e r u a n a e os de C h a g a s ( 1 9 9 1 ) , no Brasil, sobre a tripa¬
nossomíase americana.
Naquela época, os estudos epidemiológicos contribuíram para d e m o n s -
trar que a relação entre a situação de saúde e as condições do meio ambiente
era mediada pelas condições de vida e de trabalho das populações e pelos
agentes etiológicos. Estabeleceram-se, assim, as bases para a busca inces-
sante dos agentes etiológicos e seus m e c a n i s m o s de transmissão e para uma
saúde pública ancorada nas ciências positivas. C o m o tal, esta saúde pública
enfatizou as intervenções para melhorar o meio ambiente e as condições de
vida das populações.
Posteriormente, com o franco predomínio da clínica no c a m p o da saú-
de, os conceitos e métodos da medicina preventiva se fizeram predominan-
tes na saúde pública. A proposta preventivista nasceu mais v i n c u l a d a ao
p e n s a m e n t o médico clínico e, em conseqüência, sua aspiração básica é redu-
zir os riscos de doença. Sua principal preocupação tem sido entender por
que as pessoas adoecem, e não mais saber o motivo de as populações terem
determinado perfil de saúde, ou por que determinados problemas de saúde
p r e d o m i n a m em certas populações.
Esta m u d a n ç a a p a r e n t e m e n t e sutil de p a r a d i g m a na s a ú d e p ú b l i c a
— de u m a v i s ã o p o p u l a c i o n a l a u m a v i s ã o de i n d i v í d u o s d o e n t e s — tem
e s t a d o a s s o c i a d a a u m a t r a n s f o r m a ç ã o de g r a n d e e n v e r g a d u r a na p r á t i c a
e p i d e m i o l ó g i c a p r e d o m i n a n t e . A e p i d e m i o l o g i a foi c a d a v e z m a i s requi-
sitada para p r o c e d e r ao e s t u d o das a s s o c i a ç õ e s entre riscos e p r o b l e m a s
de s a ú d e i n d i v i d u a i s , v i n d o a a s s u m i - l o c o m o prioritário. A s s i s t i m o s , hoje,
a um p a r a d o x o : a p e s a r do e x p l o s i v o d e s e n v o l v i m e n t o t é c n i c o e t e c n o l ó ¬
g i c o n o c a m p o da e p i d e m i o l o g i a e da v e r t i g i n o s a p r o d u ç ã o de p e s q u i s a s
epidemiológicas no mundo contemporâneo, cada vez a epidemiologia
c o n t r i b u i m e n o s p a r a a c o m p r e e n s ã o d o s p r o b l e m a s de s a ú d e d a s p o p u -
l a ç õ e s e c a d a v e z m a i s as i n t e r v e n ç õ e s d e s a ú d e p ú b l i c a t e n d e m a se
concentrar em intervenções sobre indivíduos.
As conseqüências dessa situação para a saúde das populações têm
sido importantes. N ã o que a saúde pública centrada em intervenções
s o b r e os i n d i v í d u o s n ã o t e n h a o b t i d o s u c e s s o s , a l g u n s i n c l u s i v e d e g r a n d e
i m p a c t o e t r a n s c e n d ê n c i a , m a s e s s a p r á t i c a c o n t r i b u i u p a r a q u e as i n -
t e r v e n ç õ e s s o b r e as p o p u l a ç õ e s n ã o t e n h a m t i d o o m e s m o d e s e n v o l v i -
mento. C o m o recentemente indagou o ex-diretor de Promoção da Saú-
d e d o C a n a d á , L a v a d a P i n d e r ( 1 9 9 5 : 1 - 2 ) , " o q u e t e r i a a c o n t e c i d o se
t o d o s os e l e m e n t o s d o c a m p o d a s a ú d e t i v e s s e m r e c e b i d o a m e s m a ê n -
fase e se os e s t i l o s d e v i d a n ã o t i v e s s e m r o u b a d o a l u z d o s refletores
por tanto tempo?".
R o s e (1992) c h a m o u a atenção para os limites de u m a saúde pública
fundamentada e m estratégias de intervenção sobre indivíduos e para a ne-
cessidade de u m a saúde pública q u e a s s u m a estratégias p o p u l a c i o n a i s de
intervenção. Destacou ainda que, m e s m o não sendo excludentes, o predo-
mínio de cada u m a delas confere u m a racionalidade e u m a direcionalidade
ao conjunto da saúde pública, mais orientada quer a ser subsidiária da clíni-
ca, quer a transformar as condições de vida e os perfis da saúde das popula-
ções, c o m ênfase na p r o m o ç ã o da saúde.
A saúde pública, c o m o b e m destacou u m recente editorial do American
Journal of Public Health (1994), lida c o m populações, diferentemente da clíni-
ca, que lida c o m indivíduos. A epidemiologia, portanto, mais d o que o estu-
do da saúde e doença e m populações, deve se ocupar d o estudo da saúde e
doença de populações humanas.
A esta altura, é necessário precisar o que entendemos por popula-
ç õ e s . N ã o se trata d e q u a l q u e r c o n j u n t o d e i n d i v í d u o s , a g r u p a d o s se-
g u n d o os c r i t é r i o s u t i l i t á r i o s d o p e s q u i s a d o r . E m n o s s a p e r s p e c t i v a , u m
atributo essencial de toda população é a interação entre seus membros.
C o m o toda interação gera organização e hierarquias, no sentido atribu-
í d o p o r S i m o n , u m a p o p u l a ç ã o é, p o r t a n t o , u m a g r u p a m e n t o d e s u b p o ¬
p u l a ç õ e s q u e i n t e r a g e e n t r e si c o m o s i s t e m a s c o m p l e x o s e h i e r á r q u i c o s
indecomponíveis.
Claro que existem muitas formas de a g r u p a m e n t o s de indivíduos
e p o p u l a ç õ e s p a s s í v e i s d e s e r e m e s t a b e l e c i d a s p o r u m i n v e s t i g a d o r de
a c o r d o c o m as e s p e c i f i c i d a d e s d o p r o b l e m a e m e x a m e , m a s o q u e q u e -
r e m o s d e s t a c a r a q u i é q u e n e m t o d a s p o d e m ser c o n s i d e r a d a s p o p u l a -
ções no sentido em que estamos definindo este conceito. N e m todo
a g r u p a m e n t o de indivíduos e subpopulações constitui u m a totalidade
funcional da qual e m e r g e m qualidades (comportamentos que lhe são
p r ó p r i o s ) e, p o r t a n t o , n e m t o d o a g r u p a m e n t o p o d e ser c o n s i d e r a d o u m
nível o r g a n i z a c i o n a l d a r e a l i d a d e .
É importante distinguir a abordagem individual da populacional,
ao m e s m o t e m p o e s t a b e l e c e n d o as r e l a ç õ e s entre a m b a s . Ε c o m u m afir­
m a r q u e a clínica a b o r d a os p r o b l e m a s d e s a ú d e d e i n d i v í d u o s e a e p i d e -
m i o l o g i a os de p o p u l a ç õ e s . M a s e m q u e c o n s i s t e m e s s a s diferenças? A s
d i f e r e n ç a s m a i s i m p o r t a n t e s n ã o são d a d a s p e l o n ú m e r o d e p e s s o a s estu-
d a d a s , m a s s i m p e l o nível n o qual os p r o b l e m a s e f e n ô m e n o s e m e s t u d o
são a b o r d a d o s . A partir d e s t a p e r s p e c t i v a , o nível d e a b o r d a g e m a c a r r e t a
c o n s e q ü ê n c i a s n a d e f i n i ç ã o de p r o b l e m a s de p e s q u i s a , d e c a t e g o r i a s e
variáveis, de 'amostras', dos indicadores e dos procedimentos de análise,
i n t e r p r e t a ç ã o e inferência. B a s e a n d o - s e i g u a l m e n t e n e s t e p o n t o d e v i s t a ,
a m b o s os n í v e i s de a b o r d a g e m n ã o só n ã o são e x c l u d e n t e s , m a s se super-
p õ e m c o m o n e c e s s i d a d e . Ε p r e c i s o , a i n d a , avaliar o q u e p o d e r í a m o s c h a -
m a r d e ' c o e r ê n c i a de n í v e l ' d o s e s t u d o s e p i d e m i o l ó g i c o s s o b r e a s a ú d e
das p o p u l a ç õ e s . I m p l i c a a i n d a a n e c e s s i d a d e de desenvolver p r o c e d i m e n t o s
adequados para articular variáveis de diferentes níveis em um mesmo
e s t u d o , s e m v i o l e n t a r a e s p e c i f i c i d a d e de c a d a nível (cross level bias).
Em nossa perspectiva, a epidemiologia tem uma importante con-
tribuição a dar para esta m u d a n ç a de r u m o da saúde pública. Para
isto, p o r é m , terá de enfrentar o desafio de r e c u p e r a r o nível p o p u l a -
cional, a g o r a n ã o m a i s c o m o subsidiário de estudos i n d i v i d u a i s , m a s
c o m o o u t r o n í v e l d a r e a l i d a d e . Por c o n s e g u i n t e , t e r á d e a s s u m i r u m
outro desafio: resolver suas limitações conceituais, metodológicas e
técnicas como disciplina.
E m u m a l i n g u a g e m m a i s c o m u m na e p i d e m i o l o g i a c o n t e m p o r â n e a ,
estas p r o p o s t a s p o d e m ser a s s u m i d a s c o m o a n e c e s s i d a d e de r e i v i n d i c a -
ção d o s c h a m a d o s e s t u d o s e c o l ó g i c o s , s o b r e t u d o n o q u e se refere ao e s -
tudo das populações.
A REALIDADE COMO SISTEMA COMPLEXO Ε Ε SEMI-ESTRUTURA

Considerando o pensamento d e S i m o n s sobre a arquitetura d o m u n d o


natural e 'artificial', esta p o d e ser entendida c o m o u m sistema c o m p l e x o e
hierárquico, indecomponível. Isto significa dizer que, a cada nível que aborde-
mos seu estudo, esta arquitetura está composta por outros subsistemas que inte-
ragem entre si e, por sua vez, o nível estudado interage com outros subsistemas
de seu m e s m o nível, fazendo parte de u m sistema m a i o r .
Cada totalidade que estudamos c o m o universo constitui, n a realidade,
um c o m p o n e n t e d e u m a totalidade maior, composta p o r sistemas m e n o r e s ,
os quais t a m b é m p o d e m ser estudados c o m o totalidade e m outro nível d e
a b o r d a g e m . O que define cada nível d e realidade são suas qualidades emer-
gentes, p r o d u t o da interação entre os subsistemas que o c o m p õ e , dentro dos
limites estabelecidos pelo sistema maior d o qual fazem parte. Estas qualida-
des emergentes não estão presentes nas unidades (sistemas) que c o m p õ e m o
nível, m a s sua potencialidade está, só aparecendo como produto da organiza-
ção e interação entre elas. Estas formas particulares de organização e interação
expressam, por sua vez, o processo que lhes deu origem, de tal maneira que
nenhum nível é somente o somatório dos processos e estruturas que podemos
estudar em u m nível inferior. Estes processos são semelhantes aos da morfogê¬
nese, na qual o embrião, e m cada estágio evolutivo, constitui u m ser com uma
estrutura e funcionalidade substancialmente diferente d o estágio anterior.
Estas qualidades emergentes assumidas e m termos d e ' c o m p o r t a m e n -
tos' apresentam, n a realidade, u m a variedade reduzida, limitada pelas carac-
terísticas da sua própria estrutura (subsistemas interativos) e pela forma c o m o
se insere e m sistemas maiores (contextuais). A aparente complexidade q u e
os c o m p o r t a m e n t o s d e cada sistema adotam representa mais u m a expressão
da forma c o m o esta limitada capacidade d e variação d e c o m p o r t a m e n t o s se
combina, se adapta, e m cada circunstância. Para usar as palavras d e Simon
(1981), " o h o m e m , visto c o m o u m sistema d e c o m p o r t a m e n t o é, e m grande
parte, reflexo d a complexidade d o m e i o e m que v i v e " .
Estas descobertas trouxeram importantes esclarecimentos sobre os
processos d e p e n s a m e n t o e d e resolução d e problemas p o r parte d o s seres
h u m a n o s e abriram caminho para pesquisas sobre inteligência artificial e a
construção de sistemas experts — sistemas autômatos que p o d e m aprender
por intermédio da própria experiência. Por suas aplicações às organizações
administrativas, S i m o n mereceu o Prêmio N o b e l de E c o n o m i a e m 1978.
Ε difícil dizer que todos os objetos de nossas pesquisas têm a arquite-
tura e funcionalidade de sistemas complexos, hierárquicos e quase i n d e c o m ¬
poníveis. M a s p o d e m o s afirmar que, c o m base e m nossa experiência, não
encontramos até agora u m exemplo que escape a essa formulação.
Os exemplos destas qualidades emergentes são numerosos e estamos
bastante familiarizados c o m eles. O poder, por exemplo, é u m fenômeno que
não existe e m n e n h u m indivíduo e m particular, emergindo apenas no pro-
cesso de interação entre indivíduos e m conglomerados sociais. A consciên-
cia n ã o está e m neurônio algum, e m e r g i n d o apenas n a interação entre os
neurônios no sistema nervoso central complexo. A vida não existe e m m o l é -
cula alguma, emergindo apenas da interação entre elas e m u m a organização
celular. A 'imunidade de g r u p o ' não é somente conseqüência do estado imu¬
nológico dos indivíduos do grupo, m a s t a m b é m de suas interações. O c o m -
p o r t a m e n t o dos atores sociais não é só expressão de sua dinâmica interna,
mas t a m b é m da interação c o m outros atores.
A i m a g e m de caixas chinesas ou de bonecas russas inclusas possibili-
ta, na prática, a investigação científica, à m e d i d a que facilita a delimitação
racional dos problemas da pesquisa. Ε por esse motivo que, para u m a disci­
plina c o m o a astrofísica, por exemplo, u m a galáxia p o d e ser considerada u m a
unidade q u e , interagindo c o m outras, forma u m a totalidade, um cluster de
galáxias, o qual, por sua v e z , faz parte de u m superclusters (clusters de clusters)
que constituem u m a totalidade maior. E m outro estudo, todavia, a galáxia
p o d e ser considerada c o m o a totalidade maior da qual fazem parte os siste-
mas solares, que, por sua v e z , são formados por planetas, sóis e luas intera-
gindo. Q u e nível de a b o r d a g e m é o mais correto? D e p e n d e do p r o b l e m a que
está sendo enfocado.
N o campo da saúde, estamos familiarizados com estas 'hierarquias'. Coti¬
dianamente, trabalhamos com indivíduos constituídos por sistemas e aparelhos,
compostos, por sua vez, por células, e estas por outros níveis de organização. Os
indivíduos, por sua vez, são integrantes de famílias, constituindo populações
(bairros, grupos sociais) que sempre fazem parte de populações maiores.
Trabalhamos c o m realidades que constituem sistemas abertos para cima
e para baixo, e m níveis que incluem uns aos outros, de m o d o quase infinito
para os fins práticos da investigação científica. A s s i m , qualquer fenômeno
que e s t u d e m o s estará indubitavelmente afetado, e m algum g r a u , pelas inte-
rações que ocorrem e m níveis infinitamente distantes acima ou abaixo. En-
tretanto, n e m todas estas interações têm o m e s m o efeito sobre os fenômenos
estudados e m u m d e t e r m i n a d o nível. A s de alta freqüência e intensidade
c o s t u m a m estar mais relacionadas às variações de curto prazo, ao passo que
as de baixa freqüência c o s t u m a m se vincular, sobretudo, às variações de
longo prazo. Independentemente do nível de abordagem, as interações de
alta freqüência e intensidade c o s t u m a m corresponder aos níveis inferiores e
as de baixa freqüência e intensidade aos níveis superiores.
Para os fenômenos correspondentes a u m d e t e r m i n a d o nível da reali-
dade, as interações dos níveis inferiores, à m e d i d a que nos afastamos em
direção a níveis cada v e z mais inferiores, p o d e m chegar a ser de tanta inten-
sidade e freqüência que são irrelevantes, exceto pela influência q u e p o d e m
ter exercido no processo de gênese dos sistemas que c o m p õ e o sistema cor-
respondente ao nosso nível de a b o r d a g e m . D a m e s m a maneira, à m e d i d a
que nos afastamos e m direção a níveis superiores, as interações p o d e m che-
gar a ser de tão baixa freqüência e intensidade que se tornam irrelevantes
para os fenômenos e m estudo, exceto pelo impacto que possa haver ocorri-
do, na estrutura e dinâmica do nível de nossa a b o r d a g e m , o processo de
integração sucessiva e m subsistemas maiores. A s s i m , por exemplo, se estu-
d a m o s a cobertura de vacinação e m u m estado ou região, torna-se pratica-
mente irrelevante o efeito das interações entre os diferentes componentes
do ciclo de Krebs-Henseleit no metabolismo da uréia nas pessoas da referida
área. A i n d a que possa existir algum efeito, este se expressará muito prova-
velmente m e d i a n t e v a r i a ç õ e s n o c o m p o r t a m e n t o d a s famílias. Também
se torna p r a t i c a m e n t e irrelevante o efeito das interações entre superclusters
d e g a l á x i a s . S e e x i s t e a l g u m efeito, será sentido, por e x e m p l o , e m v a r i a -
ç õ e s n a s c o n d i ç õ e s c l i m á t i c a s d o p a í s o u da r e g i ã o . N ã o o b s t a n t e , as
i n t e r a ç õ e s entre os diferentes g r u p o s de p o p u l a ç ã o d a á r e a , entre as fa-
m í l i a s d e c a d a g r u p o e entre cada g r u p o e o conjunto da sociedade p o d e m
ser muito relevantes.
Por outro lado, é fácil entender que, em qualquer nível, o sistema p o d e
ser d e c o m p o s t o de múltiplas maneiras, dependendo do 'recorte' utilizado.
A o ser estudado, u m cluster de galáxias pode ser decomposto em galáxias, em
sistemas solares, e m planetas, e assim até quase ao infinito, até partículas
subatômicas. Cada u m deles é u m a totalidade em determinado nível inferior.
Entretanto, se quisermos estudar processos e fenômenos emergentes nos clus-
ters de galáxias, só serão considerados assim quando entendermos o cluster de
galáxias c o m o u m a totalidade composta por galáxias, c o m u m a determinada
estrutura e interações entre si como unidades, com u m a história genética.
D e s t a forma, as interações mais relevantes para o estudo e m u m de-
terminado nível são aquelas que, na prática, c o r r e s p o n d e m às desse m e s m o
nível e aos níveis imediatamente superior e inferior ao nosso nível de abor-
d a g e m . Isto habitualmente é recuperado c o m a d e n o m i n a ç ã o de variáveis
estruturais, contextuais e analíticas. Esta condição não é inerente à própria
variável, e sim ao nível de a b o r d a g e m : u m a m e s m a variável p o d e ser estru-
tural para u m nível, analítica para o seguinte e contextual para o inferior
(Samaja, 1 9 9 3 ) .
E m outras palavras, se o nosso objeto de estudo é representado c o m o
um sistema complexo, c o m u m a hierarquia, no sentido dado por Simon a este
conceito, perde-se pouca informação quando estudamos u m determinado ní-
vel e m função das interações entre os subsistemas imediatamente inferiores.
As subpartes pertencentes às diferentes partes só atuam de forma passiva como
u m todo; os detalhes de sua interação com níveis inferiores são irrelevantes e
p o d e m permanecer ignorados. Suas propriedades coletivas são mais importan-
tes. Para u m a descrição tolerável de u m a realidade c o m o sistema complexo,
basta u m a insignificante fração de todas as interações possíveis.
D e acordo c o m esta forma de entender nossos objetos de estudo, as
famílias são universos quando estudamos indivíduos, m a s unidades q u a n d o
estudamos um g r u p o c o m o universo. Os g r u p o s são unidades q u a n d o estu-
d a m o s populações. A s populações são unidades quando estudamos popula-
ções maiores e assim sucessivamente. Isto significa dizer que n ã o só as vari-
áveis, m a s t a m b é m as unidades de análise terão u m caráter distinto q u e não
é inerente a elas m e s m a s , e sim ao nível de abordagem.
Qual o nível correto? Consideramos que depende do p r o b l e m a que
e s t u d a m o s . O i m p o r t a n t e a g o r a é que deve haver u m a coerência entre o
p r o b l e m a tal c o m o foi definido, as unidades de informação e de análise, as
variáveis, os indicadores e, t a m b é m , o universo para o qual fazemos inferên-
cia c o m base e m nossos resultados.
Quais as unidades de análise corretas? Consideramos que d e p e n d e do
nível no qual definimos e a b o r d a m o s o p r o b l e m a de pesquisa, e o m e s m o é
válido e m relação às variáveis. N ã o há dúvidas de que boa p a r t e da validade
e utilidade dos estudos epidemiológicos reside na escolha de unidades de
análise adequadas. A experiência do pesquisador, b e m c o m o sua familiarida¬
de c o m o objeto de estudo e o problema têm papel muito importante na
escolha d e unidades de análise e variáveis adequadas, seja o nosso p o n t o de
partida o desenho do estudo, a definição do problema, a identificação do
nível d e a b o r d a g e m ou ainda a definição de unidades de análise e variáveis.
A l g u m a s pistas p o d e m nos guiar. U m a delas é observar se os c o m p o -
nentes internos de nossas unidades de análise interagem entre si formando
u m a unidade funcional, do ponto de vista dos fenômenos e processos em
estudo. O u t r a é observar se as unidades de análise i n t e r a g e m entre si no
nosso nível de abordagem.
Se confeccionarmos u m e s q u e m a no qual apareçam as interações so-
ciais e m diferentes níveis de organização, será mais fácil identificar as acu-
mulações de interação densa, que, muito provavelmente, oferecerão a ima-
g e m de u m a estrutura hierárquica c o m o a que definimos.
Certamente, não há motivos para esperar que a decomposição do desenho
completo e m seus componentes funcionais possa ser única. Sempre existirão
decomposições alternativas; mas este tipo de raciocínio nos ajuda a compreen-
der qual é o nível dos estudos populacionais e qual o dos estudos de individuais
em epidemiologia, assim como suas possíveis aplicações e limitações. Isto confe-
re u m marco mais amplo para revisar o papel do ecológico na epidemiologia.

O ECOLÓGICO COMO UM NÍVEL DA


REALIDADE EM EPIDEMIOLOGIA

Q u a n d o nos referimos a estudos ecológicos e m epidemiologia, geral-


m e n t e não estamos falando da incorporação das contribuições da ecologia
c o m o disciplina no estudo da interação entre os seres vivos e o ambiente.
Tratamos de u m determinado tipo de estudo epidemiológico e m que as uni-
dades de análise e as variáveis preditivas não correspondem ao nível indivi-
dual, m a s sim ao populacional. Isto pode ser entendido de duas maneiras. U m a
se refere a estudos nos quais a população constitui não só a unidade de análise
mas também variáveis e o universo sobre o qual se inferem os resultados. Neste
caso, utilizam-se coletivos como unidades de estudo, inclusive populações de
populações — o universo de referência são, t a m b é m , coletivos de população.
A outra m a n e i r a se refere a estudos nos quais os valores de indivíduos (ris-
cos individuais) são inferidos c o m base em valores m é d i o s de u m g r u p o
(Poole, 1994).
Freqüentemente, argumenta-se que os estudos ecológicos têm p o u c a
abrangência para avaliar hipóteses de risco e m decorrência da c h a m a d a 'fa-
lácia ecológica' (Lilienfeld & Lilienfeld, 1980; Rothman, 1986) — entendida
c o m o o erro cometido ao se inferir o risco individual c o m base e m informa-
ções correspondentes ao g r u p o ou à população. D e acordo c o m este p o n t o
de vista, os estudos ecológicos p o d e m ser úteis para a geração de hipóteses,
m a s a sua t e s t a g e m , considerada mais importante, é reservada para o traba-
lho c o m d a d o s e m nível individual ( K l e i n b a u m , K u p p e r & M o r g e n s t e r n ,
1982). D e fato, na maioria das vezes, as variáveis de g r u p o são consideradas
variáveis de confusão, que d e v e m ser controladas no desenho ou na análise,
p o r q u e afetam a validade das associações encontradas.
Utilizando o 'teorema da covariância', Robinson (1950) d e m o n s t r o u
m a t e m a t i c a m e n t e pela primeira v e z , e m 1950, q u e a c o v a r i â n c i a total de
duas variáveis p o d e ser expressa c o m o o somatório de u m c o m p o n e n t e in¬
t r a g r u p o e u m c o m p o n e n t e intergrupo (ecológico). Posteriormente, D u n -
can, Cuzzort & D u n c a n (1961) utilizaram este teorema para expressar as
relações entre os coeficientes de regressão intragrupo e intergrupo.
M o r g e n s t e r n (1992) havia c h a m a d o a atenção, em 1982, que os p r o -
pósitos básicos dos desenhos ecológicos eram gerar e / o u testar hipóteses
causais (etiológicas na linguagem de Morgenstern) e avaliar a efetividade das
intervenções em populações. Entretanto, não deixou de enfatizar as limitações
em ambos os tipos de estudo, como conseqüência da falácia ecológica. Este
autor usou a expressão cross level bias como ponto-chave para avaliar a validade
dos estudos ecológicos. E m essência, esse tipo de viés (bias) ocorre q u a n d o
u m a variável preditiva ecológica é utilizada para analisar o comportamento
de u m a variável e m nível individual.
Posteriormente, Greenland & M o r g e n s t e r n (1992), estudando a rela-
ção entre a exposição à doença nos níveis individual e coletivo, demonstra-
ram q u e o coeficiente de correlação n o nível ecológico p o d e ser dividido em
três componentes: efeitos individuais, confoundings e efeitos de modificação.
E s t e tipo de p r o p o s t a foi atualizado e a m p l i a d o m a i s r e c e n t e m e n t e por
Greenland & Robins.
N a realidade, pareciam existir evidências e argumentos suficientes para
documentar as conseqüências desta 'falácia ecológica'. A s correlações entre
g r u p o s n e m sempre existem ou se c o m p o r t a m de forma semelhante e m nível
individual, devido a u m a variação dos riscos individuais no interior de cada
conglomerado ou população, que seguem u m m o d e l o não-linear. A maioria
dos autores contemporâneos chegou à conclusão de que, para validar hipó-
teses de risco individual, é necessário trabalhar com g r u p o s de indivíduos
c o m a m e n o r variação possível entre eles, em termos de exposição a fatores
e processos de risco. A s variáveis de nível coletivo d e v e m ser controladas
como confundidoras.
R e c e n t e m e n t e , S c h w a r t z (1994) c h a m o u a a t e n ç ã o p a r a estas con-
s e q ü ê n c i a s , e m b a s a n d o - s e e m u m a p e r s p e c t i v a geral da v a l i d a d e d o s e s -
t u d o s e p i d e m i o l ó g i c o s . S e g u n d o ele, a falácia e c o l ó g i c a , tal c o m o é co¬
m u m e n t e u t i l i z a d a , reforça três n o ç õ e s i n t e r - r e l a c i o n a d a s : a d e q u e os
m o d e l o s d e n í v e l i n d i v i d u a l são m a i s e s p e c í f i c o s d o q u e os d e n í v e l e c o -
l ó g i c o ; a d e q u e as c o r r e l a ç õ e s e c o l ó g i c a s são m e r o s s u b s t i t u t o s d a s cor-
r e l a ç õ e s e m n í v e l i n d i v i d u a l , isto é, q u e os d e s e n h o s e c o l ó g i c o s são uti-
l i z a d o s q u a n d o n ã o p o d e m o s rea liza r d e s e n h o s i n d i v i d u a i s ( c o n s i d e r a -
d o s s u p e r i o r e s ) ; e a d e q u e as v a r i á v e i s d e g r u p o n ã o ' c a u s a m d o e n ç a s ' ,
n ã o p o d e n d o ser c o n s i d e r a d a s causais. A a r g u m e n t a ç ã o de S c h w a r t z pa-
rece d e m o n s t r a r o q u e se a p r e s e n t a a seguir.
• A i n d a que os estudos ecológicos trabalhem freqüentemente com
informação m e n o s específica e depurada, isto se deve ao uso freqüente de
registros e dados secundários, não sendo inerente à sua condição de desenho
ecológico. E m muitos casos, nos estudos ecológicos podem-se obter infor-
mações muito mais confiáveis do que nos individuais — por exemplo, quando
se referem às variáveis de ingresso, c o n s u m o alcoólico ou abortos induzidos.
Portanto, mais que u m a limitação, esta deve ser considerada u m a van-
t a g e m dos desenhos ecológicos, ao permitir freqüentemente utilizar dados
secundários apesar de suas deficiências. Todavia, assim c o m o os individuais,
os desenhos ecológicos p o d e m se basear e m dados primários e informações
muito específicas e, às vezes, menos enviesadas do que os estudos individuais.
O problema de vigiar o possível efeito de variáveis de confusão é igualmente
válido para os estudos de indivíduos e de populações.
• Os desenhos ecológicos atuam e m diferentes constructos da reali-
dade. A discrepância entre as correlações neste nível e o individual p o d e ser
considerada c o m o u m a contribuição à compreensão dos riscos dos indivídu-
os. N e n h u m dos dois níveis tem u m a capacidade absoluta de predizer o c o m -
p o r t a m e n t o de u m indivíduo em particular, m a s a m b o s contribuem para co-
nhecê-lo melhor.
• Muitas das variáveis causais de problemas de saúde corresponde-
rem a níveis a g r e g a d o s e não somente a indivíduos.
A i n d a que suas propostas considerem as questões da epidemiologia
c o m o questões de indivíduos e, portanto, a utilidade dos desenhos ecológi-
cos é discutida e m função de sua utilidade para estudar estes p r o b l e m a s
individuais, Schwartz trouxe contribuições significativas ao desmontar mui-
tas das premissas utilizadas para desacreditar os estudos ecológicos.
O elemento-chave é que a maioria destas propostas se refere ao nível
individual c o m o o nível de estudo dos problemas de saúde. O nível ecológi-
co é considerado outra forma de desenhar estudos para avaliar os p r o b l e m a s
de saúde de indivíduos. O que não foi d o c u m e n t a d o c o m a m e s m a intensi-
dade são as conseqüências decorrentes de se limitar o âmbito da validação
de hipótese às variáveis e aos dados de nível individual. T a m b é m n ã o foram
suficientemente documentadas as limitações dos estudos de nível individual
para estudar p r o b l e m a s de nível populacional.
R e c e n t e m e n t e , K o o p m a n & L o n g i n i (1994) d e m o n s t r a r a m q u e , p e l o
m e n o s p a r a as d o e n ç a s i n f e c c i o s a s , o m a r c o c o n c e i t u a i c o n s i d e r a d o ha-
b i t u a l m e n t e p a r a d i s c u t i r a falácia e c o l ó g i c a não era a d e q u a d o , u m a v e z
q u e os r e s u l t a d o s , e m t e r m o s de d o e n ç a , e m c a d a i n d i v í d u o n ã o d e p e n -
d i a m da a ç ã o c a u s a l s o b r e a i n t e r a ç ã o d o s i n d i v í d u o s c o m o g r u p o , o q u e
significa dizer q u e a s s u m i a m u m a d i n â m i c a linear da i n f e c ç ã o n a s p o p u -
l a ç õ e s . Estes a u t o r e s d e s t a c a m q u e o efeito d a s c a u s a s s o b r e u m indiví-
d u o m o d i f i c a a f o r m a c o m o ele i n t e r a g e c o m os outros e, p o r t a n t o , o
efeito das c a u s a s s o b r e eles; a i n f e c ç ã o t e m u m a d i n â m i c a n ã o - l i n e a r n a s
p o p u l a ç õ e s . Por c o n s e g u i n t e , os e s t u d o s e m nível i n d i v i d u a l t ê m g r a n d e s
l i m i t a ç õ e s p a r a i n c o r p o r a r esta c o m p l e x a d i n â m i c a , q u e só p o d e ser a p r e -
endida em estudos ecológicos que definam a realidade como u m sistema
c o m p l e x o . C o m o e x e m p l o , eles c o m e n t a m u m e s t u d o d e d o m i c í l i o s , n o
M é x i c o , s o b r e a e x p o s i ç ã o ao v e t o r d o d e n g u e . A análise e m nível indivi¬
dual quase demonstrou a não existência de associação entre a exposição a
vetores e à infecção. N o entanto, a análise agregada demonstrou forte asso-
ciação. A explicação, segundo K o o p m a n & Longini, não reside na falácia
ecológica, e sim na dinâmica real da infecção na população, que apresenta
um caráter não-linear.
Susser (1994a; 1994b), por sua vez, revisou os desenhos ecológicos
c o m base na perspectiva da lógica do desenho e da lógica da análise. De
acordo c o m esta perspectiva, a falácia ecológica é definida c o m o a suposi-
ção de que u m a associação em um nível de organização pode ser inferida a
outro. Neste momento, interessa destacar que, de acordo c o m este autor, o
cross level bias descrito por Greenland & Morgenstern e outros pode ocorrer
em qualquer direção, quando se tiram conclusões sobre indivíduos a partir
de estudos populacionais, ou sobre populações e g r u p o s a partir de estudos
individuais. Isto coloca em evidência a idéia de que o ecológico constitui um
nível de organização diferente do individual.
Parecem, pois, estar definitivamente maduras as condições para esta-
belecer que os desenhos ecológicos p o d e m ser tão potentes quanto os indi-
viduais para formular e provar hipóteses, e que as p r e o c u p a ç õ e s sobre a
falácia ecológica são válidas para a m b o s os estudos.
O p o n t o que precisamos destacar, agora, é que o nível ecológico é
essencial para os estudos epidemiológicos, quando se assume esta disciplina
c o m o um pilar da saúde pública. Se a saúde pública atua essencialmente
sobre populações, se estão-se desenvolvendo estratégias de intervenção po-
pulacional que não n e g a m as intervenções sobre indivíduos, mas as redefi-
nem c o m o marco explicativo dos problemas de saúde mais relacionado às
condições de vida das populações, então a epidemiologia tem de assumir o
ecológico c o m o nível básico de trabalho.
Por conseguinte, os estudos ecológicos não são (ou não são somente)
uma das alternativas de desenho para o estudo dos problemas de saúde indi-
viduais, mas sim o nível adequado para o estudo da saúde das populações.
Assim, como foi ressaltado por Almeida Filho, todos os desenhos epidemio-
lógicos — tanto os observacionais quanto os de intervenção, tanto os trans-
versais quanto os longitudinais - p o d e m ser realizados no nível individual
b e m c o m o no nível agregado (ecológico).
Por outro lado, como existe uma variedade de desenhos ecológicos em
epidemiologia, ainda é necessário enfatizar que os estudos sobre saúde de
populações não só precisam incorporar desenhos ecológicos q u a n d o utili-
z a m unidades de análise que são coletivos h u m a n o s , c o m o t a m b é m conside-
rar a realidade c o m o u m sistema complexo, c o m diferentes níveis de totali-
dade sistemicamente articulados.
C o m base na perspectiva da saúde coletiva — isto é, de populações —, a
p r o b l e m á t i c a d e articular v a r i á v e i s de diferentes níveis, i n c o r p o r a r a u m
estudo de populações variáveis que correspondem em nível de indiví-
duos ou de subpopulações e variáveis que correspondem a unidades popula-
cionais maiores, das quais fazem parte do nosso nível de a b o r d a g e m , adquire
grande importância. Dito de outra maneira, c o m o incorporar variáveis analí-
ticas e contextuais que se relacionam c o m as variáveis que são estruturais
e m nosso nível de abordagem.
C a b e reconhecer que seja qual for o nível e m que a b o r d e m o s a saúde
das populações (indivíduos e subpopulações que interagem entre si), tere-
m o s de trabalhar, quase que necessariamente, c o m variáveis de níveis infe-
riores e superiores, a m e n o s que a s s u m a m o s a restrição de estudar exclusiva-
m e n t e variáveis estruturais d o nível de a b o r d a g e m , o que, sem dúvida, p o d e
levar a c o n h e c i m e n t o s úteis, m a s limitados. O i m p o r t a n t e é a s s u m i r esta
dificuldade c o m o u m desafio a ser superado e m nossos desenhos.
A i n d a assim, seja qual for nosso nível de abordagem, lidaremos c o m
processos de caráter qualitativo que n ã o são a d e q u a d a m e n t e expressos ou
recuperáveis mediante u m a formalização matemática — pelo m e n o s , n ã o nos
seus aspectos mais relevantes para os fenômenos e m estudo. Esta outra fon-
te de complexidade, inerente às formas de consciência e conduta e às mu-
d a n ç a s de q u a l i d a d e nos p r o c e s s o s de interação, t e m u m a oportunidade
maior de ser incorporada q u a n d o trabalhamos desenhos populacionais.
A falácia e c o l ó g i c a constitui u m a espécie de alerta p e r m a n e n t e p a r a
q u e m estuda a saúde de i n d i v í d u o s . Ε preciso t o m a r d e t e r m i n a d o s cuida­
dos q u a n d o se i n c o r p o r a m variáveis populacionais. A i n d a n ã o t e m o s u m a
e x p r e s s ã o c o n s a g r a d a p a r a nos alertar sobre os riscos d e i n c o r p o r a r variá-
veis de i n d i v í d u o s e m estudos de população. São os riscos tradicionais d o
r e d u c i o n i s m o e do mecanicismo. T a m p o u c o t e m o s u m a p a l a v r a c o n s a g r a -
da p a r a alertar sobre as possíveis c o n s e q ü ê n c i a s de utilizar d e s e n h o s de
caráter linear p a r a estudar realidades c o m p l e x a s . P r o v a v e l m e n t e , este fato
está r e l a c i o n a d o c o m a i n g e n u i d a d e , ou, q u a n d o se trata d e definir inter-
v e n ç õ e s , c o m a prepotência.
ALGUNS AVANÇOS PARA UMA
EPIDEMIOLOGIA DE POPULAÇÕES

E n t r e os a v a n ç o s na direção de u m a e p i d e m i o l o g i a de p o p u l a ç õ e s ,
g o s t a r í a m o s d e destacar a i m p o r t â n c i a d a i n c o r p o r a ç ã o d o c o n c e i t o de ter-
ritório. E m b o r a n ã o seja recente a utilização de u n i d a d e s territoriais para
e s t u d o s e p i d e m i o l ó g i c o s , é n o v i d a d e a i n c o r p o r a ç ã o da n o ç ã o de território
c o m o e s p a ç o - p o p u l a ç ã o , isto é, u m a u n i d a d e n a q u a l i n t e r a g e m p o p u l a -
ções c o m o u m â m b i t o de c o n v e r g ê n c i a histórica de m ú l t i p l o s p r o c e s s o s ,
d e s d e a definição do clima até as r e l a ç õ e s de i n t e r a ç ã o entre i n d i v í d u o s ,
grupos e subpopulações.
Deve-se levar e m conta, t a m b é m , que o território é essencial para a
concretização do Estado e dos órgãos do poder público. Portanto, a execu-
ção de intervenções sociais tende a ter u m a organização territorial. Se a isto
acrescentarmos o fato de que os territórios, se considerados espaço-popula-
ção, t e n d e m a estabelecer hierarquias e a atuar c o m o sistemas complexos e
quase i n d e c o m p o n í v e i s , disporemos de ferramentas de pesquisa muito po-
derosas que ainda não foram suficientemente exploradas e desenvolvidas.
C o m o exemplo de uso de unidades territoriais c o m o espaço-popula-
ção e m estudos epidemiológicos, p o d e m o s citar os estudos sobre perfis dife-
renciais de m o r t a l i d a d e s e g u n d o níveis de d e s e n v o l v i m e n t o e c o n ô m i c o e
social, c o m base nas c h a m a d a s T á b u a s Reduzíveis de Mortalidade, publica-
das pela O P S / O M S na sua mais recente edição do relatório quadrianual
Condições de Saúde nas Américas (OPS, 1994).
Outra contribuição fundamental foi feita por Samaja (1993), c o m sua
p r o p o s t a da 'matriz de dados'. O autor enfrenta especificamente a proble-
mática da articulação de variáveis de diferentes níveis e m u m m e s m o estu-
do. E m v e z de fechar os desenhos e m d e t e r m i n a d o nível de a b o r d a g e m ('an-
c o r a g e m ' , segundo sua denominação) por temer o reducionismo e o mecani¬
c i s m o — falácia ecológica e m sentido descendente e ascendente, diríamos,
entre os epidemiólogos —, o autor defende a necessidade de utilizar variáveis
de diferentes níveis e articulá-las entre si, de tal m a n e i r a q u e as variáveis
analíticas de nosso nível de a b o r d a g e m sejam definidas c o m o as estruturais
d e u m nível inferior. N a verdade, as variáveis contextuais d e n o s s o nível
p o d e m ser estruturais de u m nível superior e a s s i m s u c e s s i v a m e n t e .
E m u m d e t e r m i n a d o nível, u m a variável p o d e ser definida c o m o es-
trutural, analítica ou contextual, d e p e n d e n d o dos termos nos quais seja de-
finida. Portanto, se é definida c o m o contextual, deverá ser abordada e m um
nível superior; se é definida c o m o analítica deverá ser abordada em um nível
inferior, e se é contextual, no m e s m o nível de nosso estudo. Isto significa
dizer que, e m u m m e s m o estudo, não só p o d e m o s utilizar variáveis de dife-
rentes níveis para enriquecer nosso conhecimento d o p r o b l e m a investigado,
c o m o t a m b é m nossas unidades de análise p o d e m ser — e muito provavel-
mente, d e v e m ser — de diferentes níveis em u m m e s m o estudo.
Escaparia aos objetivos deste trabalho, e provavelmente à nossa capa-
cidade, a tentativa de u m a revisão exaustiva da potência destes desdobra-
m e n t o s para nossa investigação epidemiológica sobre a saúde de popula-
ções. Entretanto, q u e r e m o s enfatizar que este tipo de contribuição abre um
c a m i n h o muito promissor para u m a epidemiologia mais potente.
O u t r a c o n t r i b u i ç ã o f u n d a m e n t a l d e v e ser a t r i b u í d a aos a v a n ç o s r e -
a l i z a d o s no r e c o n h e c i m e n t o da i m p o r t â n c i a e u t i l i d a d e d o s d e s e n h o s cha-
mados qualitativos em epidemiologia, e no desenvolvimento metodoló-
gico para articular variáveis e técnicas 'qualitativas' com 'quantitativas'
no m e s m o e s t u d o . Isto p r e s s u p õ e o r e c o n h e c i m e n t o de d o i s fatos t r a n s -
c e n d e n t e s . E m p r i m e i r o lugar, a p o t ê n c i a d a s t é c n i c a s e t n o g r á f i c a s , d e
v a l i d a ç ã o consensual, e e m geral de c a r á t e r h e u r í s t i c o , p a r a o b t e r a infor-
m a ç ã o q u e d i f i c i l m e n t e c o n s e g u i d a de forma confiável p o r m e i o d e re-
g i s t r o s , e s t u d o s s e c c i o n a i s e c e n s o s t r a d i c i o n a l m e n t e u t i l i z a m o s e m epi-
demiologia. E m segundo, o reconhecimento de que o quantitativo é so-
m e n t e u m a d i m e n s ã o da r e a l i d a d e , q u e as m u d a n ç a s d e q u a l i d a d e e de
e s t a d o c o n s t i t u e m n ã o a e x c e ç ã o , m a s sim p a r t e d o c o m p o r t a m e n t o habi-
tual de t o d o o sistema.
A revisão dos conceitos básicos sobre inferência foi outro passo im-
portante. C o m o escaparia aos objetivos deste trabalho proceder a u m a am-
pla revisão dos t e r m o s desta revisão, destacaremos somente dois aspectos.
E m primeiro lugar, a revalorização da abdução, ao lado da i n d u ç ã o e da
dedução, c o m o m é t o d o de produzir conhecimento; e relacionada a ela, a
recuperação do conceito de espécime c o m o enriquecimento do tradicional
conceito de amostra. Samaja, da Universidade de B u e n o s Aires, foi prova-
v e l m e n t e q u e m trabalhou de maneira mais sistemática e trouxe estes concei-
tos à lógica do desenho e da análise e m epidemiologia.
No âmbito epistemológico, é necessário destacar novamente as con-
tribuições de A l m e i d a Filho, criticando sistematicamente os conceitos de
inferência e seu uso na epidemiologia contemporânea, sobretudo quando
abordados com base em perspectiva ecológica e antropológica.
Finalmente, gostaríamos de destacar as contribuições sobre a reprodu-
ção social c o m o modelo explicativo das condições de vida e os perfis de
saúde das populações e g r u p o s sociais. Este desenvolvimento surgiu em di-
ferentes países da América Latina. Certamente são relevantes as contribui-
ções de Breilh, no Equador, de Samaja, na Argentina, de Laurel, no México,
as nossas e as de muitos outros pesquisadores. O encontro destes desenvol-
vimentos teóricos com o conjunto de desenvolvimentos metodológicos que
sucintamente acabamos de descrever anuncia u m a fecunda produção de co-
nhecimentos sobre a realidade da saúde de nossos povos.
Em outra linha de pensamento, poderíamos destacar os avanços obtidos
ao repensar os conceitos de vigilância epidemiológica, das técnicas de vigilância-
sentinela, dos conceitos de indicadores e variáveis 'traçadoras' e muitos outros
progressos de nível técnico que estão acontecendo.
A i n d a precisa ser verificado quanto do d e s e n v o l v i m e n t o conceitual,
m e t o d o l ó g i c o e técnico da e p i d e m i o l o g i a de nível individual é recuperável
para os níveis p o p u l a c i o n a i s , e quanto é necessário reconceituar e desen-
volver. Esta revolução interna no c a m p o da e p i d e m i o l o g i a e da saúde pú-
blica ocorre em uma é p o c a em que o c a m p o geral das ciências está sendo
e s t r e m e c i d o por incontáveis avanços que t e n d e m a d e r r u b a r muitas das
premissas básicas da ciência moderna. E n t r e elas, d e s t a c a m - s e o apego à
predição, sua visão causalista, estática e a-histórica das u n i d a d e s de análi-
se, b e m c o m o a incorporação da noção de caos no m u n d o aprazível dos
c o m p o r t a m e n t o s lineares dos sistemas, no d e s e n v o l v i m e n t o de u m a mate-
mática capaz de dar conta do não-formal, de u m a nova v i s ã o g e o m é t r i c a ,
agora não-euclidiana, de u m a física que superou a m p l a m e n t e a visão me-
cânica, de u m a biologia que cada vez mais incorpora u m a visão dinâmica
da o r g a n i z a ç ã o e e v o l u ç ã o dos seres v i v o s , de ciências sociais que valori-
zam cada vez mais o antropológico, e muitos outros avanços que se m e s -
clam em um h e t e r o g ê n e o e contraditório m o v i m e n t o de construção de uma
ciência que m u i t o s tentam c h a m a r de p ó s - m o d e r n a .
Cremos não ser possível afirmar, ainda, o quanto estes avanços - que
já estão tornando obsoletas muitas das premissas das ciências ditas moder-
nas - serão úteis ao nosso esforço de repensar a epidemiologia c a d a v e z mais
c o m o u m a disciplina que estuda a saúde de populações e n ã o a p e n a s a saúde
e m populações, cada v e z m a i s c o m p r o m e t i d a c o m a saúde pública e coleti-
va. Podemos, sim, advertir c o m segurança que d e v e m o s nos manter alerta
e m relação a esses avanços. N ã o poderíamos p e r m a n e c e r ancorados a uma
visão estática da nossa disciplina e manter nossos conceitos e m é t o d o s pri-
sioneiros da a b o r d a g e m individual da saúde, ainda que e m n o m e da c h a m a -
da epidemiologia m o d e r n a que todos a p r e n d e m o s u m dia, m a s que, e m mui-
tos aspectos, v e m c o m e ç a n d o a ser considerada limitada e obsoleta.

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EPIDEMIOLOGIA,

TECNOCIÊNCIA Ε BIOÉTICA

Fermin Roland Schramm

INTRODUÇÃO

T e n t a m o s a r t i c u l a r , a q u i , três t i p o s de o b j e t o s t e ó r i c o s : o e p i -
d e m i o l ó g i c o , o t e c n o c i e n t í f i c o e o b i o é t i c o . A a r t i c u l a ç ã o s e r á feita a
p a r t i r d o p o n t o d e v i s t a da d i a l é t i c a e n t r e os d o i s p r i n c í p i o s é t i c o s
prima facie da a u t o n o m i a (da p e s s o a ) e da e q ü i d a d e ( e n t r e p e s s o a s ) .
C o n s i d e r a m o s tais p r i n c í p i o s h e u r i s t i c a m e n t e p e r t i n e n t e s p a r a e n f r e n -
tar u m a p e r g u n t a r e l e v a n t e p a r a a s a ú d e p ú b l i c a : q u a i s s ã o os e f e i t o s
e p i d e m i o l ó g i c o s e s p e r a d o s d o d e s e n v o l v i m e n t o da c o m p e t ê n c i a tec¬
n o c i e n t í f i c a c o n t e m p o r â n e a , b u s c a n d o m e l h o r a na q u a l i d a d e d e v i d a
individual (pessoal) e r e s p e i t a n d o o p r i n c í p i o de e q ü i d a d e em saúde
e n t r e i n d i v í d u o s ( p e s s o a s ) — i s t o é, o p r i n c í p i o d a d i s t r i b u i ç ã o e q ü i ¬
t a t i v a d a s o p o r t u n i d a d e s e n t r e os i n d i v í d u o s de u m a p o p u l a ç ã o ?
O DESAFIO DA COMPLEXIDADE Ε A DIALÉTICA
AUTONOMIA / EQÜIDADE

Intuitivamente, do p o n t o de vista d o saber-fazer e p i d e m i o l ó g i c o , a


p r i m e i r a p e r g u n t a n ã o se refere p r i n c i p a l m e n t e a i n d i v í d u o s e m si, m a s
a g r u p o s e sociedades de indivíduos — ou ' p o p u l a ç õ e s ' , entendidas c o m o
conjuntos de 'interações' entre indivíduos. A s s i m , o objeto da epidemiologia
parece estar vinculado, preferencialmente, mais ao princípio ético da eqüi-
dade, d o que ao da autonomia.
C o n t u d o , p o d e - s e t a m b é m c o n s i d e r a r a h i p ó t e s e de q u e o p r i n c í p i o
ético prima facie m a i s p e r t i n e n t e p a r a este objeto da e p i d e m i o l o g i a é o da
b e n e f i c ê n c i a (ou b e n e v o l ê n c i a ) , de a c o r d o c o m a t r a d i ç ã o da ética m é d i -
ca, o u d e o n t o l ó g i c a , d e o r i g e m h i p o c r á t i c a . E s t a foi a t e s e d e f e n d i d a
p e l o b i o e t i c i s t a D o u g l a s W e e d na p a l e s t r a A new ethic for epidemiology du-
r a n t e o III C o n g r e s s o B r a s i l e i r o de E p i d e m i o l o g i a , e m 1 9 9 5 . P o r é m , o
p r i n c í p i o da b e n e f i c ê n c i a , e m b o r a i m p o r t a n t e n a s d i s c u s s õ e s da é t i c a con-
t e m p o r â n e a ( c o m o q u a l q u e r p r i n c í p i o ético prima facie), está m u i t o m a i s
v i n c u l a d o à p o s t u r a d o m é d i c o n a r e l a ç ã o c o m o p a c i e n t e — p o r t a n t o , às
r e g r a s de c o n d u t a da d e o n t o l o g i a c o n c e b i d a t r a d i c i o n a l m e n t e — d o q u e
ao c o n t e x t o de justiça e e q ü i d a d e r e q u e r i d o p a r a d i r i m i r as q u e s t õ e s d e
saúde em termos públicos.
D o p o n t o de vista ético, os p r o b l e m a s e p i d e m i o l ó g i c o s p a r e c e m pri-
vilegiar a a b o r d a g e m m a c r o é t i c a (Gostin, 1991). O e p i d e m i o l o g i s t a , ao ter
de escolher entre ser n o r t e a d o pelo princípio da a u t o n o m i a da p e s s o a ou
p e l o da e q ü i d a d e entre p e s s o a s , escolherá coerentemente o s e g u n d o . P r i o -
riza, assim, os interesses da p o p u l a ç ã o , considerada v e r d a d e i r o alvo do seu
enfoque disciplinar. C o m o v e r e m o s , o p r o b l e m a n ã o é tão simples, e m b o r a
seja possível sustentar q u e , do p o n t o de vista da assim c h a m a d a objetivi-
d a d e científica, o e p i d e m i o l o g i s t a n ã o está p r i m o r d i a l m e n t e i n t e r e s s a d o
e m v a l o r e s , p r i o r i d a d e s e e s c o l h a s , limitando-se a registrar o c o r r ê n c i a s e m
p o p u l a ç õ e s e m u m território d e t e r m i n a d o , p o i s estas s e r i a m os ú n i c o s
fatos relevantes p a r a suas análises d i s c i p l i n a r e s . N o entanto, o q u e está
i m p l i c i t a m e n t e e m questão, aqui, é a s e p a r a ç ã o entre fatos e valores, isto
é, a p r ó p r i a lei d e H u m e aplicada aos p r o b l e m a s da e p i d e m i o l o g i a .
C o m efeito, c o m o tentaremos demonstrar a seguir, e m u m m u n d o se¬
cularizado o n d e o respeito dos direitos da pessoa (a começar, portanto, pelo
de autonomia) se torna prioritário para o exercício concreto de cidadania de
cada um, e de todos, a relação entre autonomia e eqüidade n ã o p o d e ser, sem
mais, enfrentada de forma dicotômica, m a s deve, e m princípio, ser pensada
de forma que chamaremos complexa.
D a d a s estas premissas, se considerarmos somente a população c o m o
pertinente para a análise epidemiológica e, portanto, somente o nível m a c r o -
ético, u m a outra pergunta surgiria imediatamente: c o m o conciliar, em u m a
sociedade laica e pluralista (democrática), os interesses da população, sinte¬
tizáveis no princípio de eqüidade, c o m o princípio da autonomia, que res-
ponsabiliza cada u m dos m e m b r o s de u m a população e o t o r n a u m cidadão,
u m indivíduo c o m direitos e deveres correspondentes?
Esta questão não é ociosa para o epidemiologista, pois implica, por
exemplo, não poder usar informações sobre u m a d e t e r m i n a d a pessoa sem o
seu c o n s e n t i m e n t o esclarecido, m e s m o q u a n d o tais informações são rele-
vantes para a prevenção e a proteção da saúde da população c o m o u m todo.
Caso contrário, o epidemiologista, ao infringir o princípio prima fade da auto-
nomia, seria passível das medidas legais previstas e m u m a sociedade deter-
minada. Esta questão polêmica foi dirimida em 1991 pelo International C o m -
mittee of Medical J o u r n a l Editors, ao proibir toda publicação de informa-
ções que p u d e s s e m levar à identificação de pacientes, sem seu consentimen-
to e após devida informação ( I C M J E , 1991).
D e toda forma, esta discussão evidencia un conflito latente entre os
dois princípios prima facie e abre a questão se eles p o d e m ser conciliados e m
d e t e r m i n a d a s circunstâncias, a serem avaliadas e m cada caso concreto.
A n t e s , p o r é m , é preciso distinguir dois níveis — o lógico e o prático -
e m ética. Como, e m nível lógico, os dois princípios p a r e c e m excluir-se um ao
outro — pelo m e n o s se entendermos lógica no sentido tradicional, apoiada
no princípio de não-contradição — trataremos apenas do nível prático.
E m nível prático, a questão não é tão é m e n o s simples. Consiste, em
essência, no seguinte: é possível abordar os princípios de a u t o n o m i a e de
eqüidade, escapando de u m a a b o r d a g e m dicotômica e excludente, para en-
frentar os problemas éticos de forma complexa? E m caso afirmativo, a ques-
tão da eqüidade terá de estar relacionada a outras questões, relativas à dinâ-
mica entre direitos e deveres dos atores concretos da vida social, ou seja, os
indivíduos que, em princípio, são autônomos, logo, responsáveis por seu agir
e pensar. Por u m lado, eles se interrelacionam c o m outros indivíduos, em
princípio igualmente autônomos, e, por outro, d e t e r m i n a m , desta ou daque-
la forma, a qualidade de suas vidas e a dos outros.
C o m o existem pontos de vista, desejos e interesses conflitantes em
qualquer vida e m c o m u m (e até em cada pessoa), nasce a exigência de resol-
ver tais conflitos, operação n o r m a l m e n t e feita por u m a instância terceira e
mediadora, à qual os conflitantes delegam parte de sua autonomia, confor-
m e a confiabilidade desta e m respeitar a avaliação eqüitativa dos interesses
e dos v a l o r e s considerados pertinentes para a qualidade de v i d a e m cada
g r u p o ou sociedade.
M u i t o superficialmente, é este o contexto e m que deve ser pensada a
q u e s t ã o da e q ü i d a d e e m saúde e, a c r e d i t a m o s , enfrentadas as d i s c u s s õ e s
atuais tanto e m bioética quanto e m epidemiologia.
Para tratar este 'desafio da c o m p l e x i d a d e ' (Bocchi & Ceruti, 1985),
abordaremos, a seguir, três caminhos (ou pistas), de acordo c o m o p o n t o de
vista da epidemiologia, da tecnociência e da ética.
Procedendo desse modo, nos situamos, em primeiro lugar, no contex-
to da c h a m a d a transição epistemológica em epidemiologia, que p o d e ser ca-
racterizada, essencialmente, c o m o a p a s s a g e m de um p a r a d i g m a da causali-
dade e do risco para u m 'paradigma da complexidade' — essencialmente não-
dicotômico e c o m base no m é t o d o da interrelação, da interdefinibilidade e da
interdisciplinaridade dos p r o b l e m a s epidemiológicos a serem enfrentados
(Schramm & Castiel, 1992).
Por isso, a questão epidemiológica t a m b é m será relacionada à questão,
que c h a m a r e m o s ético-política, e q u e pergunta se o desenvolvimento tecno-
lógico constitui fator relevante na busca da eqüidade e m saúde e, portanto,
u m indício de aumento da qualidade de vida. Trata-se aqui, p a r a utilizar u m a
expressão heideggeriana ao avesso, da 'pergunta pela ética' (Die Frage nach
der Ethik), indissociável, no nosso entender, da 'pergunta pela técnica' (Die
Frage nach der Technik) (Heidegger, 1990).
C o m o se sabe, Heidegger nunca desenvolveu uma 'pergunta pela éti-
ca' coerente, em consonância c o m a sua 'pergunta pela técnica'. Trata-se de
um fato admirável, se considerarmos suas conclusões sobre a objetivação e
a instrumentalização do m u n d o da vida pela Técnica, na época da metafísi-
ca realizada pelo saber-fazer tecnocientífico. D e fato, o filósofo a l e m ã o con¬
siderou a T é c n i c a (que designamos aqui como tecnociência) o último está-
gio da metafísica (a metafísica realizada pela T é c n i c a ) . N o m u n d o contem-
porâneo, então, a vontade de poder h u m a n o seria u m poder total de 'apro-
priação' (Ereignis) do m u n d o da vida, propiciado pela competência técnica.
Neste processo de apropriação, o m u n d o c o m o u m todo tornar-se-ia mero
'fundo de r e s e r v a ' (Bestand) para qualquer tipo de m a n i p u l a ç ã o , inclusive
u m a verdadeira 'criação' de matéria e vida. Hoje, p o d e r í a m o s dizer, assisti-
mos a um poder de poiesis ('criação') que se torna literalmente u m a auto-
poiesis ('auto-criação'). C o m efeito, c o m o o próprio Heidegger alertara du-
rante u m a entrevista concedida à emissora de televisão alemã Z D F em 1969,
pouco t e m p o antes de morrer, hoje existiria u m perigo b e m maior para o futu-
ro da humanidade do que o 'destrutivo', representado pela criação do plutô¬
nio: aquele 'construtivo' representado pelo próprio conjunto de leis (Ge-setz)
do dispositivo técnico (Ge-stell), que permitirá que " e m u m tempo previsível,
seremos capazes de fazer o h o m e m , de construí-lo na sua própria essência
orgânica da forma como precisamos: homens capazes e incapazes, inteligentes
e e s t ú p i d o s " (Haar, 1983:385-386). A p e s a r destas reflexões, Heidegger não
desenvolveu uma reflexão ética de acordo com elas. Esta tarefa caberá a dois
de seus ex-alunos (Jonas, 1979; Anders, 1980).

O DESAFIO DA COMPLEXIDADE PARA A EPIDEMIOLOGIA

N ã o entraremos na questão de saber se é epistemologicamente perti-


nente utilizar o termo 'paradigma' quando referido ao desafio da complexi-
dade relativo à saúde das nossas sociedades. N ã o que as questões epistemo¬
lógicas n ã o sejam importantes; ao contrário, são indispensáveis para dimensio-
nar corretamente a concepção que encara a epidemiologia como uma ciência
humana (Susser, 1989), isto é, como integrante daquele processo geral de en¬
frentamento dos vários tipos de crise disciplinar que atravessa nossa modernida-
de tardia/pós-modernidade, e que se concretiza na tentativa de superação da
dicotomia entre as ciências naturais (em princípio objetivas e a-históricas) e as
ciências sociais (inseparáveis da subjetividade e da historicidade).
Esta tentativa implica, concretamente, u m a aproximação e uma reva-
lorização dos estudos h u m a n í s t i c o s (Santos, 1987:43), d e v i d o àquilo que
p o d e r í a m o s chamar 'transição paradigmática do p o n t o de vista da observa-
ção p a r a o p o n t o de vista do observador' (Schramm, 1994).
D o p o n t o de vista epistemológico, a necessidade desta transição do
representational (o que H e i d e g g e r denominava metafísica da representação)
para o c o m p l e x o é relativamente consensual no debate contemporâneo, ape-
sar das críticas epistemológicas v i n d a s da filosofia analítica, que q u e s t i o n a m
o uso da categoria de complexidade.
C o m efeito, para situar esta transição, fala-se cada v e z mais, recorren¬
do-se a u m t e r m o talvez infeliz, em 'ciência pós-moderna' (Santos, 1989),
isto é, u m a "transição paradigmática, entre o paradigma da m o d e r n i d a d e (...)
e um n o v o paradigma (...) ainda sem n o m e e cuja ausência de n o m e se desig-
na por p ó s - m o d e r n i d a d e " (Santos, 1994: 34). Esta transição é indicada, e m
particular, por u m questionamento radical dos efeitos do saber-fazer tecno-
científico e por u m a desconfiança crescente e m relação aos m e i o s d e sua
legitimação por parte de um sujeito epistêmico supostamente imparcial e desen-
carnado, de uma razão separada das emoções, de u m a mente separada de u m
corpo e de u m mundo em que, de fato, o sujeito se enraíza e se realiza como
'mente encarnada' (embodied mind) (Varela; Rosch & Thompson, 1991).
A epidemiologia parece não escapar desta transição, c o m o já foi de-
monstrado no próprio II Congresso Brasileiro de Epidemiologia (Costa &
Souza, 1994:117-26, 273-275) e, mais recentemente, no III C o n g r e s s o Bra-
sileiro de Epidemiologia, cujo l e m a era " a epidemiologia na busca da eqüi-
dade e m saúde". Para justificar esta afirmação, citaremos dois exemplos re-
tirados das atas do II Congresso.
O primeiro é o texto " C a o s e causa e m e p i d e m i o l o g i a " (Almeida Filho,
1994), essencialmente u m a crítica à utilização das categorias de causalidade
e multicausalidade e m epidemiologia. Para o autor, a m b a s estariam sempre
a q u é m da complexidade encontrada nas situações concretas da práxis, irre-
dutíveis à m e r a 'virtualidade' da textualidade e intertextualidade, c o m o ele
afirma, p o l e m i z a n d o c o m os textos do sociólogo Souza Santos (Santos, 1987
e 1989). Contudo, deve-se lembrar que o próprio autor v e m tentando, desde
então, responder às críticas, relacionando a transição epistemológica, descri-
ta nas publicações anteriores (1987 e 1989), a u m a transição designada c o m o
'societal' (Santos, 1994). A l m e i d a Filho propõe, então, u m a r e t o m a d a da
a b o r d a g e m sistêmica e m epidemiologia, requerida pelos objetos c o m p l e x o s
(como seriam reconhecidamente t a m b é m os objetos atuais da epidemiolo¬
gia), afirmando que é preciso pensar u m a epidemiologia que não seja mera-
mente inferential (aliás, já criticada por aquilo que c h a m a de 'minimalismo
contra-indutivo', de origem popperiana), m a s referencial e histórica, "capaz
de alimentar u m a prática, e não m e r a m e n t e produzir u m a técnica [pois] isto
significa integrá-la e m u m a n o v a epistemologia (...) da reflexividade e da
d e s c o n s t r u ç ã o " (Almeida Filho, 1994: 122).
E m nosso entender, isso significa preocupar-se m e n o s com indícios e
modelos, típicos da theoria epidemiológica (e da sua 'crítica', ou meta-teoria
epistemológica), e mais c o m u m a epidemiologia voltada para situações prá-
ticas e contextos reais, referências típicas de u m a prática e p i d e m i o l ó g i c a
indissociável de u m a crítica ético-política. E m outras palavras, trata-se de
vincular a análise epistemológica a preocupações de filosofia prática ou éti-
ca. Pode-se, então, concordar c o m o argumento do autor de que se, por um
lado, é sempre possível p e n s a r m o s e m termos de texto e intertextualidade
quando consideramos um corpus teórico disciplinar definido — quando a rea-
lidade (epidemiológica ou outra qualquer) for encarada do p o n t o de vista da
s i g n i f i c a ç ã o — p o r o u t r o , i s s o se t o r n a p r o b l e m á t i c o do p o n t o de
vista da referência, pois, neste caso, o 'real' conserva toda a sua carga ame-
açadora, amplamente imprevisível e desconhecida, tornando-se u m a verda-
deira resistência ao conhecimento (Schramm, 1993). D e fato, c o m o sinteti-
zou magistralmente Guimarães Rosa, "o real não está n e m n a saída nem na
chegada, ele se dispõe para a gente é no m e i o da travessia".
Ε esta 'travessia' é exatamente o caminho das pedras que o sanitarista
tem de enfrentar, m e s m o quando esteja 'simplesmente' teorizando, inclusive
q u a n d o enfrenta este real m o d e l i z a n d o - o c o m o 'realidade virtual', isto é,
quando usa os instrumentos propiciados pelas assim c h a m a d a s tecnologias
da inteligência artificial.
O segundo exemplo é o texto " F u n d a m e n t o s conceituais e m epide-
m i o l o g i a " (Czeresnia et al., 1994), e m que os autores afirmam que " a cons-
ciência cada v e z maior da precariedade e provisoriedade da v e r d a d e (...) leva
a u m a concepção pluralista" e que "encontrar verdades provisórias, precá-
rias e ao m e s m o t e m p o verdadeiras torna-se cada vez mais c o m p l e x o " , razão
pela qual "considerar esta noção de complexidade abre novas perspectivas
na construção do c o n h e c i m e n t o " (1994:273-275). A questão levantada nes-
te texto, m a s t a m b é m e m parte no texto anterior, representa, e m nosso en-
tender, u m a tentativa de conciliar o pluralismo metodológico, implícito na
a b o r d a g e m das situações sanitárias concretas, enraizadas e m u m contexto
social e cultural particular (ou local), sem abrir mão de uma relativa generaliza-
ção (global) que não se constrói necessariamente pelo paradigma descontextua¬
lizado e desencarnado da objetividade mas, talvez, por um certo consenso (ou
'rede' entre olhares diferentes em conexão entre si). Neste caso, porém, mais
do que u m a certeza da verdade, teríamos uma metáfora da verdade.

O DESAFIO DA COMPLEXIDADE Ε A TECNOCIÊNCIA

D e s i g n a m o s 'tecnociência' u m a configuração concreta da racionalida-


de científica, típica da nossa época, na qual o tradicional p r i m a d o da teoria
sobre a prática (na forma da técnica) vem sendo paulatinamente substituído
pelo primado da prática sobre a teoria ou, melhor, por u m a teoria que deve
necessariamente ter a sua finalidade prática no ato técnico, concretizar-se
e m prática técnica.
O predomínio da teoria sobre a prática, da ciência (ou epistéme) sobre a
técnica (téchne) é antigo. C o m e ç a c o m a própria filosofia g r e g a — Platão e
Aristóteles n e g a m a cidadania aos trabalhadores m a n u a i s nas suas cidades
ideais (Gille, 1978:362-363) - e atravessa a cultura ocidental sem questio-
namentos importantes até a época moderna. Na própria m o d e r n i d a d e , conti-
nua vigente sob a forma da assim c h a m a d a ciência p u r a que "situava-se em
u m a esfera de verdade para além de qualquer consideração prática e moral
(...) em si a ciência seria necessariamente boa, ou, pior, neutra (...), ao passo
que somente sua utilização teria a ver c o m a apreciação m o r a l " (Hottois,
1990:16). Nesta concepção, o problema da escolha e da responsabilidade só
viria a se tornar relevante c o m a ciência aplicada na forma da técnica. Isso
acontece, paulatinamente, c o m a ciência m o d e r n a que opera u m primeiro
deslocamento "do lado do operatório", embora m a n t e n d o substancialmente
"a clivagem entre teórico e t é c n i c o " (Hottois, 1990: 16).
C o m a transformação contemporânea da ciência em tecnociência, a cliva-
gem entre teoria e prática (na forma da técnica) desaparece, vindo a ser substi-
tuída, inicialmente, por uma vinculação "tanto no sentido de uma tecnicização
da ciência quanto [no] de uma cientifização da técnica" (Stork, 1977: 41) e,
posteriormente, por uma verdadeira subsunção da primeira à segunda. Assim,
c o m o J a c q u e s Ellul já afirmara em 1954, " a ciência tem se t o r n a d o u m meio
da técnica" (Ellul, 1954: 8). E m suma e apesar do fato de que a interação
entre ciência e técnica não implica que se confundam — pois " a ciência tem o
progresso do conhecimento por objetivo, ao passo que a tecnologia visa a
transformação da realidade d a d a " (Ladrière, 1977:57) —, a ciência na idade
da tecnociência p o d e ser considerada instrumento de u m a atividade de m a -
nipulação essencialmente criadora, tanto do m u n d o físico-químico quanto
do biológico, criando, respectivamente, matérias e organismos que n ã o exis-
tem na natureza.
D e s t a forma, o saber na idade da competência tecnocientífica torna-
se essencialmente operatório, o que implica necessariamente ter de enfrentar
a questão do poder (não esqueçamos o lema de Francis B a c o n na alvorada
da ciência moderna: 'saber é poder') e, portanto, ter de considerar a dimen-
são ético-política inscrita nos efeitos deste saber operatório.
Entretanto, o problema levantado pela primazia do operatório sobre o
teórico é não apenas ético-politico, m a s t a m b é m especificamente e p i s t e m o -
lógico. Para Pierre Lévy, o desdobramento 'inteligente' da técnica do final do
século X X constitui um dos maiores desafios tanto para os epistemologistas,
que não teriam ainda pensado adequadamente sobre a questão, quanto para
a sociedade c o m o u m todo, pois " u m a reapropriação mental do fenômeno
técnico nos parece u m pré-requisito indispensável para a instauração pro-
gressiva de u m a tecnodemocracia", sob a forma de u m a

ecologia cognitiva [baseada na] idéia de coletivo pensante homens-coisas, coletivo dinâmico
povoado por singularidades atuantes e subjetividades mutantes, tão longe do sujeito e x a n ¬
gue da epistemologia quanto das estruturas formais dos belos dias do 'pensamento 68'.
(Lévi, 1 9 9 3 : 1 1 )

Mais especificamente, no contexto de 'reafirmação da filosofia práti-


ca' que se v e m delineando desde os anos 60 nas culturas anglo-saxônica e
n o r t e - a m e r i c a n a , e s s e n c i a l m e n t e p r a g m á t i c a s , as q u e s t õ e s éticas relativas
ao poder tecnocientífico criador (ou biotecnocientífico, se incluirmos a cria-
ção não só de matéria, mas t a m b é m de formas de vida), a m p l a m e n t e desco-
nhecido nas suas conseqüências para o m u n d o dos seres vivos e, e m particu-
lar, para os h u m a n o s , constituem questões inéditas, que, por u m a série de
razões, d e v e m ser encaradas adequadamente.
E m primeiro lugar, porque, admitindo que a responsabilidade é direta-
m e n t e proporcional ao poder de manipulação e criação, nos encontramos,
atualmente, c o m esta forma de poder, em u m a situação antes desconhecida
pelas sociedades históricas tradicionais, regidas por n o r m a s e valores e m b a ¬
sadas no princípio de autoridade ou em leis tidas c o m o naturais, isto é, regi-
das por princípios absolutos (e não prima facte).
E m segundo lugar, porque a radicalidade e a amplitude deste poder
levam as competências manipuladora e criadora a se tornarem n ã o somente
globalizantes (no sentido de u m a rede de interconexões atuantes sobre o
conjunto do m u n d o vivido), mas ainda potencialmente definitivas (como é
o caso das manipulações genéticas em células g e r m i n a i s ) , interessando, em
princípio, t a m b é m a qualidade de vida das gerações futuras, o que coloca
toda u m a série de questões éticas e, talvez, jurídicas (se a d m i t i r m o s a perti-
nência de confrontar 'direitos atuais' e 'direitos potenciais').
E m terceiro, porque a própria lógica interna da tecnociência (aquela
que H e i d e g g e r chamava a 'essência' da Técnica, ou Gestell) implica u m a es-
pécie de 'imperativo tecnológico' inercial, segundo o qual tudo aquilo que
sabemos fazer v a m o s inevitavelmente fazê-lo cedo ou tarde (Anders, 1980).
O u então, se decidirmos, por alguma razão, que não v a m o s fazê-lo, os custos
e os esforços para tanto seriam de tal magnitude que por necessidade (falta
de recursos, esgotamento de matérias-primas, falta de consenso político etc.)
acabaríamos reproduzindo as m e s m a s práticas do passado e, muitas v e z e s ,
repetindo os antigos erros. A este respeito, vale a p e n a l e m b r a r o alerta 'pre¬
ventivista' lançado pelo filósofo H a n s J o n a s :

o poder imenso da nossa tecnologia tem na prevenção seu dever principal, sua maior respon-
sabilidade, [pois] também a tecnologia pacifica com a qual hoje a humanidade conquista o
seu dia a dia sobre o planeta esconde em si um potencial daninho (...) que não é nem
intencional nem imediato, mas rastejante, que acompanha suas obras realizadas como uma
assombração crescente e, freqüentemente, tanto mais necessária quanto maior for seu
sucesso. (Jonas, 1987:33)

E m quarto lugar, porque não é seguro que os avanços da tecnociência


consigam dar conta da assim chamada transição paradigmática, inclusive da tran-
sição epidemiológica, na qual se combinam, de maneira complexa, antigas e
novas ameaças sanitárias, a saber (simplificando), doenças infecciosas d o 'sub-
d e s e n v o l v i m e n t o ' (como diarréia e cólera), novas doenças infecciosas (como
a AIDS) e do 'desenvolvimento' (como as crônico-degenerativas e o estresse).
Existem, evidentemente, muitas outras razões que p o d e r i a m ser cita-
das aqui, m a s isso transcende nossa tarefa, essencialmente ilustrativa.
E m síntese, saber se o desenvolvimento tecnocientífico constitui u m avan-
ço na busca de uma melhor qualidade de vida de populações e indivíduos é uma
questão complexa e em aberto, merecendo, muitas vezes, u m a análise específica
de cada caso concreto para avaliar cautelosamente os prós e os contras. Mas, por
outro lado, parece também ser impensável conceber u m a qualidade de vida,
atual e futura, que não esteja proporcionada pela competência da tecnociência,
pois as transformações 'criadoras' atuantes parecem dificilmente reversíveis. J á
entramos no campo da bioética propriamente dita.

O DESAFIO DA COMPLEXIDADE PARA A BIOÉTICA

D o p o n t o de vista da bioética, o desafio da c o m p l e x i d a d e significa


assumir a competência e os artefatos da tecnociência c o m o fatos relevante
para o próprio saber-fazer do sanitarista epidemiólogo. Isso configura novas
formas de responsabilidade.
Se levarmos em conta o que foi afirmado até aqui, admitindo que não
é m a i s possível fundamentar nossos saberes na observação desencarnada de
u m observador tido c o m o imparcial, m a s u n i c a m e n t e situá-los na de u m
observador concreto e contextualizado e m u m território — tanto epidemioló-
gica quanto tecnocientificamente —, isso implica considerar a responsabilidade
destes saberes que requerem novas formas de poder (e de seu controle).
D e fato, a legitimação por este saber — que, na época da metafísica
realizada, é imediatamente u m saber-fazer 'criador' — n ã o p o d e m a i s ser pro-
curada e m a l g u m princípio de autoridade h e t e r ô n o m o (Deus, Lei da Nature-
za ou S e r ) , m a s só p o d e ser gerado 'publicamente' pela própria 'autonomia'
deste m e s m o observador, seja ele u m indivíduo (pesquisador) ou u m g r u p o
(a c o m u n i d a d e científica), fruto de u m a prática comunicatfva c o n s e n s u a l
( m e s m o que m í n i m a ) que avalia a utilidade deste saber para a resolução de
p r o b l e m a s , a c o m e ç a r pela redução do sofrimento e da injustiça q u e afetam
a qualidade de vida das pessoas.
Aliás, o próprio p a r a d i g m a pragmático-lingüístico exclui o reducionis¬
mo, se acreditarmos nas declarações de Richard Rorty, u m dos principais
representantes do p r a g m a t i s m o na atualidade, na entrevista "Contra Platão,
novos m o d o s de falar", publicada pelo Jornal do Brasil, e m 26 de m a i o de
1994: "Para nós, pragmatistas (...) o que importa é inventar meios de dimi-
nuir o sofrimento h u m a n o e aumentar a igualdade h u m a n a " .
Ε esta 'autonomia' consiste, literalmente, em dar-se suas próprias leis,
não dedutíveis de algo fora de si. Isso implica, c o m o escreveu o romancista
Vassili G r o s s m a n , que para o h o m e m c o n t e m p o r â n e o a a u t o n o m i a , ou a
liberdade, deva ser considerada c o m o " a base e o sentido, a infra-estrutura
das infra-estruturas" (Grossman, 1983:179).
Resumindo, na abordagem complexa da questão da observação, todo
observador é necessariamente inseparável da observação (como as ciências
h u m a n a s e sociais afirmam há praticamente u m século). Ele é, de fato, um
ator-autor. E m outras palavras, o Homo sapiens que observa e interpreta (su-
jeito epistêmico) é Homo faber e Homo creator que forma e transforma (sujeito
técnico) e, portanto, responsável pelas suas criações (sujeito ético), junto
aos outros h u m a n o s (sujeito social), c o m os quais inventa as formas de con-
vivência (sujeito político).
Esta conclusão, aparentemente óbvia para o cientista social, parece
valer t a m b é m para a epidemiologia. Como afirma o relatório do II Congresso, "a
explicitação do valor, o reconhecimento da subjetividade propiciariam o resgate
do sentido ético da ciência" pela construção de uma perspectiva do "saber que
avalie as suas conseqüências sociais e nos oriente a tomar decisões", consciente
do fato de que " a crítica do caráter dominantemente instrumental da ciência e da
epidemiologia não reduz, pelo contrário, amplia a responsabilidade c o m a
dimensão prática do saber" (Czeresnia et al., 1994: 274-275).
Esta preocupação não é nova na reflexão filosófica. Bastaria só lem-
brar, e m época contemporânea, Rorty quando afirma, na entrevista citada,

nós, pragmatistas, (...) não consideramos a verdade como a finalidade da investigação. 0

sentido da investigação é conseguir que seres humanos concordem sobre o que fazer,

conseguir consenso sobre os fins a serem obtidos e os meios para atingi-los, [pois] não há

separação profunda entre teoria e prática, porque toda 'teoria' que não seja um jogo de

palavras é prática.
Isso responderia, aliás, às preocupações expressadas por A l m e i d a Fi-
lho, quando, muito apropriadamente, criticou aqueles que só enfrentam o
real c o m o u m texto, e continuam insistindo na interpretação segundo a qual
" m e s m o que destruam cidades c o m explosões atômicas (...) continuam [en-
carando isso c o m o ] efeitos de t e x t o " (Almeida Filho, 1994:125). C o m o tam-
b é m sintetizou o teórico do 'princípio da responsabilidade', H a n s J o n a s ,

a origem do homem é a própria origem do saber e da liberdade e, graças a este dom

extremamente ambíguo, a inocência de um sujeito que é plenitude de vida deixa o lugar

para a tarefa da responsabilidade que age e opera em um domínio da separação entre bem

e mal. (Jonas, 1 9 9 1 : 2 6 - 2 7 )

CONSIDERAÇÕES FINAIS

C o m o v i m o s inicialmente, os princípios de autonomia e de eqüidade


são prima facie, ou seja, não-absolutos, admitindo, por conseguinte, exceções.
Neste caso, e m b o r a 'logicamente' contraditórios (pelo m e n o s em u m a lógica
de primeira o r d e m que respeite o princípio d e não-contradição), p o d e m 'pra-
ticamente ser' conciliados e m casos concretos.
Este parece ser o caso dos objetos da epidemiologia, na medida em
que se respeitem os interesses sanitários de u m a população frente aos indivi-
duais. Entretanto, u m a população t a m b é m é formada por indivíduos, em
princípio a u t ô n o m o s e responsáveis. Se aceitamos essa afirmação, p o d e m o s
formular o princípio de eqüidade c o m o aquele que respeita a igual conside-
ração de todos os interessados individuais (as autonomias) e m u m a situação
d e t e r m i n a d a . D e fato, n o caso de u m a população, este objeto conceitual
n e m sempre é operacional e deve-se, portanto, recuar para objetos m e n o s
totalizantes ou intermediários ( S c h r a m m & Castiel, 1992), pensando, por
exemplo, e m populações diferenciadas e m subgrupos ou até e m indivíduos.
Desta forma — m a s isso mereceria u m a análise mais aprofundada, que não é
possível fazer aqui —, graças à igual consideração dos interesses e m jogo,
obter-se-ia u m 'princípio m í n i m o de i g u a l d a d e ' (Singer, 1994: 33) que, ao
respeitar as diferenças dos interesses individuais — ou melhor, a relevância
de cada u m no conjunto de u m a população (entendida c o m o o conjunto das
interrelações individuais), ao invés de subsumi-la e m u m princípio de igual-
dade abstrato — t a m b é m tornaria possível resgatar, c o m a individualidade da
pessoa, sua responsabilidade perante os outros indivíduos (e até perante to-
dos os seres sencientes), decorrente das suas interrelações c o m outras indi-
v i d u a l i d a d e s e subjetividades.
D e v e m o s levar e m conta, t a m b é m , o aprofundamento, por princí-
pio, d a r e s p o n s a b i l i d a d e d o h o m e m c o n t e m p o r â n e o , e m p r i n c í p i o a u t ô -
n o m o , q u e se t o r n o u , g r a ç a s a o p o t e n c i a m e n t o da sua competência
t e c n o c i e n t í f i c a , u m ser c a p a z d e a u t o c r i a r - s e (e a u t o d e s t r u i r - s e ) c a d a
vez mais. O a b a n d o n o do princípio de autoridade h e t e r ô n o m o traz no
seu i n t e r i o r e s t a n o v a f o r m a ' r a d i c a l ' d e c i d a d a n i a , a i n d a a m p l a m e n t e
d e s c o n h e c i d a , m a s n e m p o r i s s o i r r e l e v a n t e . D e fato, a t e c n o c i ê n c i a
c o m o nova forma de c o m p e t ê n c i a h u m a n a , q u a n d o a s s u m i d a pela
reflexão filosófica, implica u m i m b r i c a m e n t o das d i m e n s õ e s lógica e
prática que, embora distinguíveis, obrigam a recolocar a questão do
s e n t i d o da é t i c a , da p r ó p r i a e t i c i d a d e , e n ã o s o m e n t e d e u m a o u o u t r a
moral particular. Esta é u m a das tarefas da bioética: questionar-se so-
b r e o q u e é, e t i c a m e n t e falando, a t e c n o c i ê n c i a . A b i o é t i c a é e m u m a
das v e r t e n t e s m a i s p r o m i s s o r a s d a f i l o s o f i a d a c i ê n c i a , n a é p o c a da
t e c n o c i ê n c i a e da n o s s a t r a n s i ç ã o e p i s t e m o l ó g i c a , q u e é t a m b é m d e t r a n -
s i ç ã o e p i d e m i o l ó g i c a e, t a l v e z , é t i c a .

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A EPIDEMIOLOGIA
1
Ε Α BIOTECNOLOGIA

Marilia Bernardes Marques

A PROPOSTA DA EPIDEMIOLOGIA DA COMPLEXIDADE

Iniciamos mencionando, de m o d o sintético, as funções básicas d a ra-


cionalidade epidemiológica (Mazzáfero, 1987), a saber:
• fornecer as bases científicas da prevenção d e doenças e traumatismos,
identificando os agentes e as causas e analisando o hospedeiro e os fato-
res ambientais;
• determinar a importância relativa das diversas causas d e doença, incapa-
cidade e morte, c o m o objetivo de estabelecer prioridades p a r a a pesqui-
sa e m saúde e para a intervenção sobre a saúde;

1
O título deste artigo é, de certo modo, um 'plágio' intencional do título que Naomar de Almeida
Filho deu ao famoso texto de 1992, A Clinica e a Epidemiologia. Aqui desenvolvemos o tema por nós
apresentado no Congresso de Epidemiologia de 1995, em Salvador, retomando alguns dos argu-
mentos apresentados no Apêndice, incluído na segunda edição daquele livro: U m Dilema Epide¬
miológico: neo-causalismo ou pós-causalismo? (Almeida Filho, 1997).
• identificar o risco ou a probabilidade de u m indivíduo de uma população vir
a desenvolver uma doença durante um dado período de tempo;
• avaliar a efetividade de programas, serviços e tecnologias de saúde.
Fazem parte, portanto, da racionalidade epidemiológica, funções cien-
tíficas e funções políticas, cujos limites são p o u c o nítidos. E m outras pala-
vras, atribuem-se à racionalidade epidemiológica funções científicas na p e s -
quisa e m saúde e funções políticas nas políticas públicas de saúde e de ciên-
cia e tecnologia.
N o exercício de suas funções científicas, a racionalidade epidemioló-
gica tem oscilado, em diferentes m o m e n t o s históricos, entre diversos m o d e -
los teóricos ou enfoques do processo s a ú d e / d o e n ç a . Basta citar o enfoque
mágico-religioso das sociedades ditas primitivas, o m o d e l o sanitarista da época
da Primeira Revolução Industrial, o modelo social de V i r c h o w e Ramazzini,
o biológico ou unicausal da segunda metade do século X I X e princípios do
século X X , de K o c h e Pasteur, e, a partir dos anos 50 do século X X até a
atualidade, os m o d e l o s multicausal de Leavell & Clark, o da rede de causali-
dade, de M a c M a h o n e Pugh, o ecológico de Susser, o materialista ou históri¬
co-estrutural de Berlinguer, Laurell, Breilh e outros, o econômico da teoria
do capital humano, o interdisciplinar de Frenk, A r r e d o n d o , e outros, todos
culminando e m propostas integradoras, pretendendo alcançar n o v a s frontei-
ras explicativas para as interfaces biológico/social, individual/coletivo, sis-
t e m a / a m b i e n t e (Arredondo, 1992; S c h r a m m & Castiel, 1992).
E m busca de respostas eficazes de saúde pública, a epidemiologia sempre
expressou uma postura crítica, mantendo-se em u m estado de constante investi-
gação das situações nas quais os problemas de saúde de uma comunidade — a
saúde coletiva — são gerados e / o u mantidos (Nájera, 1987). Nesse percurso, a
epidemiologia incorporaria determinantes de diferentes ordens (biológica, eco-
nômica, ambiental, cultural) e ofereceria uma visão integrada, ainda que insufici-
ente, do processo saúde/doença, em toda a sua complexa dinâmica.
Para A l m e i d a Filho, entretanto, os modelos teóricos da epidemiologia
são todos essencialmente reducionistas. Neles, o objeto de conhecimento, a
saúde, é reduzido a u m a mera configuração de riscos, orientados por u m a
lógica de causalidade linear, na qual predomina a abordagem instrumental e
mecanicista do processo de determinação. Assinala o autor: " a futilidade de
postular u m a determinação exclusivamente causal e linear escamoteando a
riqueza e a complexidade das relações entre matéria (o substrato físico-quí¬
mico-biológico), forma (o contexto ecológico-econômico-social-político) e
o imaginário social da saúde-doença" (1997:183).
E m seu texto, A l m e i d a Filho registra, ainda, a e m e r g ê n c i a de duas
abordagens alternativas — a dos modelos matemáticos não-lineares e a dos
m o d e l o s sistêmicos dinâmicos —, que d e n o m i n a de pós-causalistas e para os
quais p r o p õ e u m novo tipo de p r o g r a m a de investigação, a por ele designada
epidemiologia da c o m p l e x i d a d e . S e g u n d o o autor,

um diálogo com as matemáticas não-lineares certamente propiciará uma superação dos mode-
los de análise atualmente em uso na Epidemiologia, permitindo uma exploração de novas
equações eformas de representação dasfunções epidemiológicas, incorporando e superando as
limitadas ferramentas probabilísticas da estatística. (Almeida Filho, 1 9 9 7 : 1 9 8 )

A opção pela epidemiologia da complexidade deverá permitir "enri-


quecer e superar o velho conceito de causa da Epidemiologia contemporâ-
nea, c o m u m a abertura para distintos níveis e categorias de determinação,
além da velha causa, potencialmente mais capazes de dar conta da comple-
xidade dos objetos concretos da saúde coletiva" (1997:199).
A p ó s tomar c o n h e c i m e n t o da a r g u m e n t a ç ã o o p o r t u n a m e n t e desen-
volvida por A l m e i d a Filho refletimos sobre a proximidade entre essa insatis-
fação c o m os modelos de compreensão da problemática da causalidade e m
epidemiologia, c o m a noção de crise de crescimento, tal c o m o concebida por
Santos (1989:18). Referindo-se à relação entre reflexão epistemológica e crise
da ciência, este autor, recorrendo a uma expressão de K u h n (apud Santos, 1989),
define a crise de crescimento como a que ocorre no interior da matriz disciplinar
de u m dado ramo da ciência e que é revelada pela insatisfação com métodos e
conceitos básicos até então usados sem qualquer contestação. E m geral, esta
insatisfação decorre da existência de alternativas viáveis, m e s m o quando ainda
não são plenamente conhecidas e aceitas. Este é, precisamente, o caso das
duas alternativas pós-causalistas referidas por A l m e i d a Filho, c o m p o n e n t e s
da sua proposta de u m a epidemiologia da complexidade.
U m segundo tipo de crise da ciência indicado por Santos (1989), a
crise de degenerescência, é equivalente ao questionamento da própria forma
de inteligibilidade do real peculiar a um dado p a r a d i g m a científico, mantido
o sentido kuhniano desta noção. N ã o se restringindo a certos instrumentos
metodológicos e conceituais disciplinares, a crise de degenerescência impli¬
ca transformações muito mais amplas e profundas do q u e a crise de cresci-
mento enfrentada p o r u m a dada matriz disciplinar, no caso, a saúde coletiva
e, e m especial, a epidemiologia.
A l e m b r a n ç a da diferenciação estabelecida por Santos v e i o e m b o a
hora, sobretudo tendo em conta a freqüência c o m que se observa a utiliza-
ção da expressão 'paradigmas epidemiológicos', d e s c o m p r o m i s s a d a de qual-
quer explicação a respeito do que se pretende exprimir ao transpor a noção
de paradigma para a matriz disciplinar da epidemiologia. Esta vulgarização
está i m p o n d o ao t e r m o paradigma u m certo desgaste p r e m a t u r o e i m p r o c e -
dente, no ambiente da saúde coletiva brasileira.
Por outro lado, tem relevância o e m p r e g o do conceito de paradigma
tecnológico para a análise da biotecnologia moderna. Este conceito foi e é
a m p l a m e n t e utilizado nas mais recentes e criativas abordagens teóricas da
m u d a n ç a tecnológica, da inovação tecnológica, no c a m p o dos estudos eco-
nômicos e que estão correspondendo à introdução de u m n o v o paradigma
2
microdinâmico. Essa expressão, tal c o m o desenvolvida por D o s i (1982),
t a m b é m resultou da transposição do conceito de p a r a d i g m a científico de
K u h n para o âmbito tecnológico. Expressa, entretanto, as drásticas m u d a n -
ças observadas na estrutura industrial, c o m o advento das denominadas no-
vas tecnologias, c o m o a microeletrônica e a informática (tecnologias da in-
formação e comunicação) (Marques, 1991).
A idéia de paradi gma tecnológico corresponde a verdadeiras revolu-
ções tecnológicas, traduzindo fenômenos profundos que levam à emergên-
cia de novos produtos e serviços e m todos os ramos da economia. U m b o m
exemplo foi a revolução provocada pela energia elétrica, c o m efeitos pene-
trantes e m toda a economia, favorecendo inúmeras inovações radicais e in-
crementais e modificando a estrutura de custos e as condições de produção
e distribuição de todo o sistema econômico (Marques, 1991).
N o v a s tecnologias paradigmáticas são, portanto, aquelas baseadas na
ciência e que, dando origem a novos produtos, processos e serviços, propi-
ciam espetaculares incrementos de produtividade e competitividade e intro¬
d u z e m m u d a n ç a s expressivas na esfera do trabalho.
N a atualidade, os impactos difusos causados por essas m u d a n ç a s tec-
nológicas paradigmáticas sobre as economias nacionais e nos planos social,

2
Para uma apresentação sistematizada destas correntes, ver Possas (1989).
cultural e institucional v ê m colocando, internacionalmente, novas interroga-
ções a respeito da intervenção do Estado e do controle social sobre a ciência
e a tecnologia.
Considerando ser p o u c o apropriada a transposição do t e r m o paradig-
m a para a matriz disciplinar da epidemiologia, preferimos dizer que ela vive,
hoje, u m a crise de crescimento. A teoria da complexidade poderá abrir u m a
via transdisciplinar real para a sua renovação. C o m efeito, e m b o r a o debate
c o n t e m p o r â n e o sobre sistemas c o m p l e x o s apenas c o m e c e a engatinhar, é
muito provável que a racionalidade epidemiológica v e n h a a encontrar u m
c a m i n h o alternativo no terreno da complexidade (Tarride, 1995).
A t u a l m e n t e , poucas áreas da ciência transdisciplinar estão avançando
tão rapidamente c o m o aquelas associadas às teorias do caos, fractals e com-
plexidade. O pressuposto dessas novas teorias é alcançar a inteligibilidade
do universo utilizando conceitos c o m o 'desordem organizadora', 'complexi-
dade', 'auto-organização', ' c a o s ' etc. Estas teorias estão atingindo discipli-
nas e domínios teóricos diversos, c o m o a física, a química, a biologia, a ci-
bernética, a teoria dos sistemas, as n e u r o c i ê n c i a s , a inteligência artificial.
Ilya Prigogine, sem hesitar, afirmou que estes novos enfoques configuram o
advento de u m a nova racionalidade científica (Pessis-Pasternak, 1992).
3
Ingressaremos, agora, no terreno teórico da c o m p l e x i d a d e , c o m base
e m M a i n z e r (1994) - m e s m o cientes dos riscos de pinçar alguns fragmentos
desse c a m p o teórico tão atraente quanto árduo.
Mainzer considera que o pensamento linear tornou-se obsoleto. A teo-
ria dos sistemas complexos não-lineares, ao contrário, por n ã o poder ser re-
duzida às leis naturais da física, apesar dos seus princípios m a t e m á t i c o s , vai-
se firmando c o m o u m a abordagem bem-sucedida. Sua aplicabilidade ocorre
nos mais diversos r a m o s das ciências naturais, da física quântica do laser e da
meteorologia à m o d e l a g e m molecular e às simulações, c o m auxílio de c o m -
putadores, do crescimento celular em biologia.
N e s s e a m p l o espectro de aplicações, M a i n z e r (1994) destaca c o m o
u m a das mais excitantes teses contemporâneas a idéia, originada na neuro-
ciência computacional, de que até m e s m o a mente h u m a n a é g o v e r n a d a pela
dinâmica não-linear dos sistemas complexos, das redes cerebrais complexas.

3
Para um aprofundamento do tema, consultar, entre outros, Prigogine & Stengers (1992), Lorenz
(1996), Lewin (1994), Gleick (1990).
O sistema n e r v o s o , m e s m o de o r g a n i s m o s s i m p l e s , a c i o n a as atividades
paralelas de bilhões de neurônios para avaliar, categorizar e responder aos
meios exterior e interior.
A s ciências sociais e h u m a n a s , por sua v e z , t a m b é m estão reconhe-
cendo que os principais problemas da humanidade são globais, c o m p l e x o s e
não-lineares e que m u d a n ç a s mínimas ou locais no sistema ecológico, eco-
nômico ou político p o d e m causar u m a crise global.
S e g u n d o a teoria dos sistemas complexos não-lineares, todo e qual-
quer sistema macroscópico — pedras ou planetas, nuvens ou fluidos, plantas
ou animais, populações animais ou sociedades h u m a n a s — consiste de ele-
mentos c o m p o n e n t e s , c o m o átomos, moléculas, células, organismos. Essa
teoria comporta u m a metodologia interdisciplinar, explicativa da emergên-
cia de fenômenos macroscópicos — que p o d e m ser tão diferentes quanto
ondas de luz, nuvens, reações químicas, plantas, animais, populações huma-
nas, m e r c a d o s , conjuntos de células cerebrais etc. — por m e i o das interações
não-lineares de elementos microscópicos e m sistemas complexos.
Complexidade não significa apenas não-linearidade, mas também u m nú-
mero imenso de elementos simples com muitos graus de liberdade. E m sistemas
complexos, o comportamento dos elementos simples não pode ser previsto —
sequer para o momento seguinte — tampouco traçado para trás. Portanto, a evo-
lução de distribuições probabilísticas deve substituir a descrição determinística.
U m dado padrão macroscópico deriva da cooperação não-linear des-
ses elementos simples, que p o d e m ou não ser microscópicos, a partir do
p o n t o e m que a interação energética do sistema, que é dissipativo ou aberto,
c o m o seu ambiente alcança algum valor crítico.
Os sistemas abertos m a n t ê m sua estrutura pela dissipação e c o n s u m o
de energia e foram denominados por Prigogine estruturas dissipativas. E m
t e r m o s filosóficos, a estabilidade da estrutura emergente é garantida por al-
g u m balanço entre não-linearidade e dissipação. Muita interação não-linear
ou muita dissipação destruirão a estrutura.
Os fenômenos macroscópicos são caracterizados por parâmetros de
ordem, não reduzidos e m nível micro — dos átomos, moléculas, células, or-
g a n i s m o s — dos sistemas complexos. Parâmetros de ordem, d e n o t a n d o ca-
racterísticas do sistema e m sua totalidade, são propriedades reais dos fenô-
m e n o s macro, c o m o campos de potência, poder social ou econômico, senti-
m e nt os , p e n s a m e n t o s etc.
E m termos mais qualitativos, diz-se que velhas estruturas tornam-se
instáveis e ' q u e b r a m ' pela m u d a n ç a nos parâmetros de controle. E m termos
mais matemáticos, a visão microscópica de um sistema c o m p l e x o p o d e ser
descrita por meio de equações evolutivas de um vetor de estado, no qual
cada componente depende do espaço e do tempo, aplicáveis a sistemas em
que ocorra u m a competição entre parâmetros.
N o quadro matemático dos sistemas complexos não-lineares, diversos
m o d e l o s já foram sugeridos para simular a origem molecular da vida. N o
marco dos sistemas complexos, a questão da emergência da v i d a é conside-
rada no sentido da auto-organização dissipativa. Tanto na ontogênese (cres-
cimento de u m dado organismo) quanto na filogênese (evolução de espé-
cies), estamos diante de sistemas dissipativos complexos, cujo desenvolvi-
m e n t o p o d e ser explicado pela evolução macroscópica de parâmetros de or-
dem, causada pela interação não-linear (microscópica) de moléculas, células
e m fases transitivas, distantes do equilíbrio térmico.
A teoria dos sistemas complexos t a m b é m nos p e r m i t e simular e anali-
sar a causalidade não-linear de sistemas ecológicos na natureza. Trata-se de
sistemas dissipativos complexos de plantas e animais c o m interações meta¬
bólicas não-lineares entre si e c o m o ambiente. A s formas nos sistemas bio-
lógicos são descritas por parâmetros de ordem. O organismo multicelular
m a d u r o ou adulto pode ser interpretado c o m o o atrator do crescimento orgâ-
nico. O s atratores, na evolução biológica, são os ciclos ou oscilações perió-
dicas da natureza.
M a i n z e r (1994) exemplifica: o balanço complexo do equilíbrio natural
é i m e n s a m e n t e prejudicado pelo m o d o linear da produção industrial, no qual
p r e d o m i n a a crença de que as fontes de energia, água, ar etc. são inesgotá-
veis e p o d e m ser usados infinitamente sem perturbar o balanço natural. Os
procedimentos industriais e a oferta contínua de bens não levaram em conta
os efeitos sinergéticos que deles iriam resultar, c o m o o buraco na c a m a d a de
ozônio sobre o planeta Terra. A evolução da vida passa, desse m o d o , a con-
fundir-se c o m a da sociedade humana.
N o quadro dos sistemas complexos, o comportamento de populações
h u m a n a s é explicado pela evolução de parâmetros de o r d e m (macroscópi-
cos), causada pelas interações não-lineares (microscópicas) de seres h u m a -
nos ou subgrupos h u m a n o s (Estados, instituições, partidos políticos e t c ) .
Neste caso, o atrator é a ordem econômica ou social.
E m s u m a , esta a b o r d a g e m s u g e r e q u e a r e a l i d a d e física, social e
m e n t a l é n ã o - l i n e a r e c o m p l e x a , ao p a s s o q u e os p r o b l e m a s e c o l ó g i c o s ,
e c o n ô m i c o s e p o l í t i c o s da h u m a n i d a d e t o r n a r a m - s e g l o b a i s , c o m p l e x o s e
n ã o - l i n e a r e s . U m d e s d o b r a m e n t o i m p o r t a n t e é q u e ela desafia o c o n c e i t o
d e r e s p o n s a b i l i d a d e i n d i v i d u a l e sinaliza a n e c e s s i d a d e de n o v o s m o d e -
los de c o m p o r t a m e n t o coletivo. F i n a l m e n t e , c o m o M a i n z e r ( 1 9 9 4 ) d e s -
taca, a a b o r d a g e m d o s s i s t e m a s c o m p l e x o s c o l o c a n o v o s desafios e p i s t e ¬
m o l ó g i c o s e p a r a a ética.
A i n d a q u e o d e t a l h a m e n t o d e s t a s t e o r i a s e s c a p e a o e s c o p o e às
d i m e n s õ e s d e s t e t e x t o , é i m p o r t a n t e frisar q u e é v e r d a d e i r a m e n t e e s p a n -
tosa a e x c i t a ç ã o q u e a j u s t a p o s i ç ã o d e d e s c o b e r t a s , d e s e n v o l v i m e n t o s e
aplicações de análises derivadas dessas áreas emergentes da matemática
e da física e s t á c a u s a n d o n o s c í r c u l o s científicos i n t e r n a c i o n a i s . D e v e ser
d e s t a c a d o , c o n t u d o , q u e , a l é m da c o n s i d e r á v e l excitação, t a m b é m existe
m u i t o c e t i c i s m o a esse respeito.
Qual é a substância desses n o v o s métodos analíticos? Eles estão aju-
dando a avançar na compreensão da biologia e do c o m p o r t a m e n t o h u m a n o ?
Quais são suas promessas e que p r o b l e m a s apresentam para a estrutura da
experimentação científica? A s respostas a essas questões c o m e ç a m a ser da-
das em diferentes espaços disciplinares. N o Brasil, o c a m p o da saúde coleti-
va inaugura sua participação nestes debates, já tendo outros autores, além
do próprio A l m e i d a Filho (1997), oferecido suas contribuições (Possas &
M a r q u e s , 1994; Tarride, no prelo; Schramm, 1996).
N o s s a s preocupações, aqui, dizem respeito a algumas questões. Existe
ligação entre o terreno da complexidade e o n o v o arquétipo do conhecimen-
to científico introduzido pela moderna biotecnologia, c o m as tecnologias do
Projeto G e n o m a ? M a i s especificamente, existe relação entre essa n o v a raci-
onalidade científica que v e m da bioquímica e da biologia molecular e u m a
epidemiologia da complexidade?
Consideramos estas questões procedentes, levando-se e m conta a real
possibilidade de modificação de estruturas genéticas e moleculares, por meio
das m o d e r n a s técnicas da bioquímica e da biologia molecular e que confe-
rem grande precisão às atividades de pesquisa e desenvolvimento e m saúde.
Afinal, na prática, já estamos testemunhando u m deslocamento dos procedi-
mentos casuísticos, sobretudo na descoberta de agentes e m e c a n i s m o s fisio¬
patogênicos, assim c o m o de novas substâncias.
Todas essas inovações tecnológicas são extremamente relevantes do
p o n t o de vista da epidemiologia, porque, entre outras razões, além de esta-
rem despejando no mercado u m a série de produtos mais eficazes, estão cau-
sando u m a verdadeira explosão de novos dados e informações. C o m o vere-
m o s a seguir, o universo da pesquisa biomédica já convive c o m u m a nova
racionalidade científica.

SOBRE A MODERNA BIOTECNOLOGIA

A evolução histórica da biotecnologia é marcada por três fases: a bio-


tecnologia de primeira geração, que inclui o uso secular da fermentação na
produção de bebidas, alimentos e combustível; a de segunda geração, cuja
grande arrancada se deu no período do pós-Segunda Guerra Mundial, graças
à aplicação dos processos de fermentação à produção de antibióticos; e fi-
nalmente, a de terceira geração, t a m b é m denominada de nova ou moderna,
relacionada ao desenvolvimento das técnicas de engenharia genética duran-
te a década de 70.
A definição de b i o t e c n o l o g i a m o d e r n a ou de terceira g e r a ç ã o p a s -
saria a incluir as t e c n o l o g i a s d o D N A r e c o m b i n a n t e ( D N A r ) , d o anticor-
p o m o n o c l o n a l ( A c M o n ) ou t é c n i c a s d e fusão celular o u h i b r i d o m a s , sín-
tese g ê n i c a , o s e q ü e n c i a m e n t o g ê n i c o , t é c n i c a s de c u l t u r a d e c é l u l a s ou
de t e c i d o s , as t e c n o l o g i a s de f e r m e n t a ç ã o , a p u r i f i c a ç ã o e m l a r g a escala e
a enzimologia (Blumenthal, Gluck & Wise, 1986). A expressão 'enge-
n h a r i a g e n é t i c a ' refere-se, e m g e r a l , às t é c n i c a s de D N A r , A c M o n , sínte-
se e s e q ü e n c i a m e n t o g ê n i c o .
A expressão biotecnologia é aplicada a este conjunto de tecnologias
intensivas e m ciência. H á pelo m e n o s três décadas, estas tecnologias v ê m
disputando c o m as tecnologias da microeletrônica e da informática a posi-
ção de principal revolução tecnológica d o século X X , a i n d a aguardando,
portanto, sua plena ascensão à condição de tecnologia paradigmática.
Prospectivas tecnológicas otimistas atribuem à biotecnologia moder-
na o potencial de deflagrar, no futuro próximo, mudanças significativas nas
características econômicas da saúde pública, antecipando a importância cres¬
cente no mercado mundial de produtos para diagnóstico e vacinas, e m com-
paração c o m produtos terapêuticos. D e v i d o à sua elevada especificidade, os
anticorpos monoclonais (AcMon) já estão encontrando u m a a m p l a varieda-
de de aplicações na epidemiologia e na clínica, alcançando a escala de pro-
d u ç ã o industrial.
A s áreas da medicina que, provavelmente, serão as mais afetadas pelo
desenvolvimento da biotecnologia são o câncer, doenças infecciosas e para-
sitárias, os problemas cardiovasculares e metabólicos, as doenças relaciona-
das c o m o sistema n e r v o s o central e os problemas genéticos. O s r u m o s atu-
ais das atividades de pesquisa e desenvolvimento tecnológico ( P & D ) farma-
cêuticas estão descortinando novas oportunidades estratégicas para as polí-
ticas d e saúde, c o m o a m u d a n ç a no foco da pesquisa m é d i c a das doenças
a g u d a s para as doenças crônicas. Esta m u d a n ç a já resultou no desenvolvi-
m e n t o de drogas novas e promissoras e de novas aplicações de substâncias
conhecidas, usadas em distúrbios que afetam a crescente população de ido-
sos, sobretudo nos Estados Unidos.
A p e s a r d a s i n ú m e r a s c o n t r o v é r s i a s , as t é c n i c a s d e D N A r e de hi¬
b r i d o m a s v ã o d e i x a n d o claras e v i d ê n c i a s da sua c o n t r i b u i ç ã o p a r a a t r a n s -
f o r m a ç ã o da m e d i c i n a . G r a ç a s aos A c M o n , p o r e x e m p l o , u m e n o r m e in-
t e r e s s e c o m e r c i a l p a s s o u a c e r c a r os kits d i a g n ó s t i c o s , p o r q u e sua utili-
z a ç ã o in vitro d i s p e n s a os c u s t o s o s testes a p r o b a t ó r i o s e x i g i d o s p e l a F o o d
and D r u g A d m i n i s t r a t i o n ( F D A ) , n o s E s t a d o s U n i d o s , p a r a o u t r o s p r o -
d u t o s f a r m a c ê u t i c o s . O s e g m e n t o de d i a g n ó s t i c o s m é d i c o s é o p r i m e i r o
d o m e r c a d o d a s a ú d e a utilizar p r o d u t o s d e b a s e b i o t e c n o l ó g i c a e é o q u e
m a i s c r e s c e . N a p r ó x i m a d é c a d a , será t r a n s f o r m a d o d e m o d o r a d i c a l p e l a
m o d e r n a biotecnologia. Técnicas sofisticadas de m a p e a m e n t o gênico,
A c M o n a l t a m e n t e e s p e c í f i c o s , testes c o m b a s e e m m a t e r i a l g e n é t i c o (son-
das d e D N A e de R N A ) e sofisticados b i o s s e n s o r e s t ê m p e r m i t i d o q u e
produtos diagnósticos biotecnológicos sejam produzidos em quantida-
des comerciais e com custos competitivos em relação a outros produtos
existentes no mercado (Marques, 1993).
Encontra-se i g u a l m e n t e e m d e s e n v o l v i m e n t o u m a p r ó x i m a g e r a ç ã o
de vacinas baseadas na tecnologia de D N A r para doenças c o m o AIDS, hepa-
tite B, malária, raiva, varicela, otite média, doenças infecciosas respiratórias
a g u d a s e c r ô n i c a s , c o m o as p n e u m o n i a s p o r Streptoccocus pneumonia e
Haemophilus tipo B, artrite reumatóide, câncer, lupus e outras. C o m o todas
elas são responsáveis por elevados coeficientes de morbidade e mortalidade
nos países da A m é r i c a Latina e Caribe, a p r o d u ç ã o de v a c i n a s eficazes é
e x t r e m a m e n t e desejável para a região. A engenharia genética oferece novas
estratégias para o desenvolvimento de vacinas que não p o d e m ser feitas c o m
os métodos convencionais e também permite o desenho e a fabricação de
vacinas muito mais seguras. Por estas razões, u m a parcela considerável das
vacinas existentes e das novas será derivada, futuramente, de m o d e r n o s pro-
cessos biotecnológicos.
D r o g a s órfãs — isto é, produtos que não estimulam os investimentos
privados e m função da sua pequena, ainda que importante, d e m a n d a ou de
outras limitações dos mercados específicos — t a m b é m estão sendo alvo das
biotecnologias. Parece q u e as b i o t e c n o l o g i a s de terceira g e r a ç ã o poderão
originar ferramentas técnicas que contribuirão para os investimentos diretos
nestes m e d i c a m e n t o s , incluindo produtos para prevenção e tratamento de
defeitos genéticos raros e doenças negligenciadas, c o m o as parasitárias en-
dêmicas no Terceiro M u n d o .
A democratização de tecnologias e serviços de alta eficácia e baixo
custo e que já estão ingressando no m e r c a d o — tal c o m o a reação e m cadeia
da polimerase (PCR), para citar apenas u m a — provavelmente terá u m pro-
fundo efeito acelerador do desenvolvimento de outras inovações tecnológi-
cas em biotecnologia. Esta tendência traduz as m u d a n ç a s radicais, próprias
do n o v o p a r a d i g m a da pesquisa biomédica. Nele, está ocorrendo u m verda-
deiro salto da experimentação p a r a a formulação conceituai, servindo a ban-
c a d a do laboratório cada v e z mais ao propósito de c o m p r o v a r diretamente
certas associações causais d o que a gerar dados (Tzotzos, 1993). A s técnicas
de seqüenciamento estão introduzindo u m n o v o horizonte n a pesquisa bio-
lógica, a u m e n t a n d o em muito a habilidade de predizer, manipular e dese-
nhar as propriedades das moléculas.
A s biotecnologias modernas, especialmente a engenharia genética,
expectativas de que terão u m efeito pervasivo, fractal, importante no c o m -
plexo médico-industrial, detonando t a m b é m ramificações sucessivas de ino-
v a ç õ e s t e c n o l ó g i c a s p a r a diversos outros setores industriais. Acredita-se,
portanto, que conduzirão a u m a nova revolução tecnológica, paradigmática,
graças à qual a medicina terá sua eficácia e sua produtividade aumentadas
no que diz respeito ao confronto c o m certas doenças.
LIMITES DA EPIDEMIOLOGIA CRÍTICA

Retornemos à questão da racionalidade epidemiológica. A o longo de


seu desenvolvimento lógico e histórico, a saúde coletiva brasileira tem reite-
rado o seu compromisso com a solidariedade para com os indivíduos social-
mente marginalizados ou, c o m o se tem dito mais recentemente, os excluí-
dos. Responsabilizando-se pelo ponto de vista coletivo ou comunitário no
estudo da saúde de populações, passou a se perceber, cada vez com mais
radicalidade, c o m o uma espécie de guardiã do interesse público na geração
da resposta da medicina às necessidades de saúde em uma sociedade, reve-
lando u m compromisso emancipatório com a Verdade' , em seus ideais de
renovação das práticas de saúde.
S a b e m o s , entretanto, que as atividades científicas e tecnológicas em
saúde não são guiadas exclusivamente pelos juízos positivos e m a n a d o s da
racionalidade epidemiológica — que, entre nós, cada vez mais se confunde
com vontade política de satisfazer necessidades ou demandas de saúde. Sen-
do a racionalidade epidemiológica sempre invocada c o m o o c o m p o n e n t e
mais importante na seleção de prioridades para a política de saúde, tanto na
definição da nova agenda — dos acidentes, violências e doenças crônico-
degenerativas — quanto da agenda inacabada — das doenças infecciosas e
parasitárias — a sua influência é, entretanto, relativizada e m i n i m i z a d a na
prática, pela forte presença de outras racionalidades e interesses - econômi-
cos, burocráticos, corporativos (Possas, 1994).
Ainda que, eventualmente, interesses particulares possam coincidir com
interesses públicos, certos interesses privados caminham, com freqüência,
em u m a direção oposta à dos interesses de saúde de coletividades. E n t r a m ,
portanto, em contradição com a racionalidade epidemiológica, que se pre-
tende a guardiã do interesse público. Esta contradição sempre foi muito evi-
dente nas atividades de pesquisa e desenvolvimento tecnológico de
prioridades fortemente direcionados pelos interesses do segmento industrial
q u í m i c o - f a r m a c ê u t i c o , estão p a s s a n d o g r a d a t i v a m e n t e a ser direcionadas
sobretudo pelos objetivos estratégicos e comerciais da indústria biotecnoló¬
gica relacionada à saúde.

As doenças atualmente priorizadas pelas atividades científicas e pela


P & D industrial são as doenças virais, o câncer, o diabetes, a esclerose, a
artrite reumatóide e as doenças cardiovasculares. D a d o s recentes fornecidos
pela revista The Economist (23 a 29 de agosto de 1997) revelam que a pesqui-
sa e m malária recebe, aproximadamente, U S $ 60 milhões por ano, ao passo
que para a pesquisa sobre asma são destinados U S $ 140 milhões, e para a
doença de Alzheimer U S $ 300 milhões. A pesquisa e m AIDS c o n s o m e U S $
950 milhões anuais. A prioridade conferida pelas empresas farmacêuticas ao
investimento na P & D de cada u m a dessas doenças guarda u m a relação dire-
ta c o m as expectativas das vendas potenciais de futuros p r o d u t o s específi-
cos no mercado mundial. Eis, portanto, u m a situação típica e m que a racio-
nalidade e c o n ô m i c a tem u m peso maior do que a epidemiológica.
N a atualidade, as indústrias farmacêuticas mais competitivas no ranking
internacional realizam v o l u m o s o s investimentos e m P & D nas biotecnolo-
gias de terceira geração. Nestas atividades, observam-se novas interfaces e
vínculos com as grandes universidades e com pesquisadores conceituados.
Pelas razões e evidências anteriormente apresentadas, j u l g a m o s que
procede — no singular m o m e n t o contemporâneo de que s o m o s testemunhas
e participantes, véspera de u m n o v o milênio e t a m b é m do n o v o paradigma
tecno-econômico que atravessará a medicina — manter vivas as expectativas
e m relação aos possíveis impactos da biotecnologia m o d e r n a sobre a racio-
nalidade epidemiológica da solidariedade aos excluídos sociais e do compro-
misso emancipatório com a verdade.
M a s cabe perguntar se esta sofisticação tecnológica crescente da pes-
quisa biomédica não irá contribuir para o desprestígio da saúde coletiva, ao
provocar u m a possível descaracterização ou desvalorização da natureza so-
cial vis-à-vis u m a ênfase na natureza biológica dos processos que cercam a
saúde e a doença.
C r e m o s q u e não. A o contrário, a s s i s t i m o s hoje a u m v e r d a d e i r o re¬
c r u d e s c i m e n t o d o s d e s a f i o s q u e as q u e s t õ e s s o c i a i s t r a d i c i o n a l m e n t e
colocam para a pesquisa biomédica, suscitados, exatamente, pela emer-
g ê n c i a d e s s a s n o v a s t e c n o l o g i a s . Por o u t r o l a d o , c o n s i d e r a m o s q u e os
desafios t e ó r i c o s , e p i s t e m o l ó g i c o s e éticos q u e estão s e n d o introduzidos
p e l a g e n é t i c a m o l e c u l a r são reais, i n é d i t o s e p a r a d i g m á t i c o s . Isto o c o r r e
p o r q u e u m a n o v a e v i g o r o s a a b o r d a g e m está, e m ú l t i m a i n s t â n c i a , a m -
p l i a n d o o c o n h e c i m e n t o s o b r e a b a s e g e n é t i c a da s a ú d e e d a d o e n ç a e das
funções e s s e n c i a i s da v i d a , i n c l u s i v e o d e s e n v o l v i m e n t o h u m a n o e o fun-
c i o n a m e n t o d o cérebro.
GENOMA: A COMPREENSÃO DA VIDA, DA SAÚDE
Ε DA DOENÇA NO QUADRO DA COMPLEXIDADE

O t e r m o g e n o m a define, de m o d o amplo, a totalidade dos genes e das


seqüências de D N A no núcleo de u m a célula. O sistema g e n ô m i c o de qual-
quer célula de metazoários superiores c o n t é m de 10.000 a 100.000 genes
estruturais e regulatórios, cujas atividades, orquestradas e m conjunto, cons-
tituem o p r o g r a m a de desenvolvimento subjacente à ontogênese, a partir do
óvulo fertilizado (Kauffman, 1993).
O g e n o m a é u m sistema no qual um grande n ú m e r o de genes e seus
p r o d u t o s regulam, direta e indiretamente, u m as atividades d o outro. Seu
aspecto cibernético, sistêmico lhe p e r m i t e alcançar estados de arbitrarieda-
de, de complexidade.
Kauffmann (1993:412) considera que o propósito adequado da biolo-
gia molecular não é m e r a m e n t e analisar a estrutura e a dinâmica do compor-
tamento do genoma. E, t a m b é m , compreender por que os g e n o m a s têm a
arquitetura e o c o m p o r t a m e n t o observados e c o m o p o d e m evoluir e m de-
corrência de mutações contínuas. O autor sugere que se construam teorias es-
tatísticas das estruturas e dos comportamentos esperados de tais redes ou siste-
mas complexos. A s propriedades esperadas, seriam, então predições testáveis
das teorias. Se confirmadas em organismos, seriam consideradas típicas ou
genéricas do conjunto do sistema regulatório genômico.
A pesquisa biomédica está gradualmente convergindo p a r a a crença
de que o g e n o m a determina a forma, o desenvolvimento, a c o m p o s i ç ã o quí-
mica e todas as funções de u m organismo, seja ele u m m i c r o o r g a n i s m o ou
u m o r g a n i s m o superior.
O arquétipo c i b e r n é t i c o , s i s t ê m i c o , d o g e n o m a i n s t i g a a i n t e r p r e t a -
ção do fenômeno da doença como u m distúrbio informacional — um dé-
ficit, u m defeito, u m a r e d u n d â n c i a ou u m a d e s o r d e m r e g u l a t ó r i a —, e m
nível g e n é t i c o ( D r e w s , 1 9 9 6 ) . A d e q u a n d o - s e a este n o v o a r q u é t i p o p a r a
a c o m p r e e n s ã o d a d o e n ç a , o p r o p ó s i t o central d o d i a g n ó s t i c o m é d i c o
p a s s a a ser, c a d a v e z m a i s , d e t e c t a r e s t a d o s i n f o r m a c i o n a i s p a r t i c u l a r e s .
S e g u i n d o este n o v o a r q u é t i p o , m u d a t a m b é m o e x p e r i m e n t o terapêutico,
p a s s a n d o a ser o seu objetivo, progressivamente, reparar u m distúrbio infor-
macional ( D r e w s , 1996:9).
Este n o v o cânone repousa na análise direta, cada v e z mais mecânica e
repetitiva, da informação colecionada em livrarias de D N A e e m experimen-
tos específicos, individualizados para cada gene. Este empreendimento mo-
numental, de probabilidade de sucesso incerta, já criou u m novo ambiente
intensivo em informação para a pesquisa médica molecular, n o qual cientis-
tas v a r r e m livrarias digitais de genes e abordam seletivamente, por intermé-
dio de meios farmacológicos moleculares, alvos biológicos relevantes para
u m dado processo físio-patológico.
Esta n o v a racionalidade científica está motivando u m a expansão fa-
bulosa no e m p r e g o de técnicas genômicas e de seqüenciamento de DNA
( c D N A ) . P o d e m o s afirmar que o processo central da descoberta de drogas
farmacêuticas está sendo redirecionado por este novo arquétipo teórico.
Graças a estes esforços de pesquisa, u m a autêntica indústria g e n ô m i c a
está sendo impulsionada, voltada para a fabricação de dispositivos automa-
tizados para o seqüenciamento de D N A e, i n c l u s i v e , d e l i v r a r i a s d e
c D N A . N o s tempos atuais, bases de dados contendo pequenas parcelas de
D N A seqüenciado, bem c o m o a seqüência de D N A de u m gene inteiro, ad-
quiriram um valor incomensurável para a pesquisa farmacêutica. Computa-
dores poderosos e robótica avançada potencializam a força destes procedi-
mentos que despejam, rapidamente, sobre longos segmentos de genes ex-
pressados, consideráveis quantidades de informação, valiosas para a com-
pleta identificação dos genes.
Permanece, entretanto, ainda e m suspense, a demonstração de quão
efetiva será esta estratégia baseada na informação genética, no que se refere
à g e r a ç ã o de n o v o s a g e n t e s c l i n i c a m e n t e ativos (Weinsteim et al., 1997:
343-349). Isto ocorre porque a determinação da função biológica de u m a
seqüência particular de aminoácidos é, de longe, o passo mais importante e
difícil. A compreensão da função biológica é necessária para o uso de genes e de
produtos gênicos no diagnóstico e no tratamento da doença humana. Este desa-
fio vive momentos de extrema incerteza e requer uma permanente criatividade
(Caskey et al., 1995). A p e s a r disto, esta estratégia já g a n h o u u m valor inco-
mensurável para a indústria da biotecnologia relacionada à saúde humana.
N o plano da pesquisa básica, o arquétipo do g e n o m a está possibilitan-
do u m n o v o e extraordinário quadro de referências para os conhecimentos
sobre as origens da vida. A partir de Pasteur, a química e a biologia experi-
m e n t a m u m a crescente confluência, no estudo das origens da vida c o m o u m
fenômeno químico, estabelecendo u m a ligação entre estrutura e evolução,
isto é, a estrutura química das biomoléculas tem sido conectada ao processo
evolucionário que as originaria. A informação evolucionária a r m a z e n a d a nos
12 pares de bases que constituem os diferentes aminoácidos já está p e r m i -
tindo identificar g r u p o s químicos funcionalmente interessantes. Foi b e m -
sucedida a p r i m e i r a m o d e l a g e m da conformação estrutural de prot eí nas ,
valendo-se de dados de seqüenciamento, usando informação evolucionária,
dando início ao desenho racional de biomoléculas, por meio do qual a fun-
ção é racionalmente desenhada. Os conhecimentos sobre a catalise, por exem-
plo, estão e m pleno florescimento. U m a hipótese é que a função catalítica
teria tido c o m o origem coleções de seqüências aleatórias de R N A , na 'sopa
4
primordial'.

EM BUSCA DOS ELOS ENTRE O ARQUÉTIPO DO GENOMA Ε A


PROPOSTA DE UMA EPIDEMIOLOGIA DA COMPLEXIDADE

A s s i m c o m o Almeida Filho (1997), p e n s a m o s que a epidemiologia, no


Brasil, está precisando respirar o ar fresco de novos tratamentos teóricos e
metodológicos. Esta guinada é essencial para configurar u m a nova identida-
de acadêmica para a epidemiologia e assegurar a superação da atual crise de
crescimento em que se encontra mergulhada.
Afinal, a história nos conduziu a um cenário que nos obriga a refletir
sobre o n o v o paradigma científico que emerge da pesquisa biomédica, no
qual o ser h u m a n o consegue remodelar a plasticidade molecular das estrutu-
ras vivas e está prestes a deter u m conhecimento inédito sobre os sistemas
vivos complexos.
S e m dúvida, a h u m a n i d a d e está renovando seus conhecimentos sobre
as estruturas vivas, sua organização, as relações entre seus c o m p o n e n t e s e
ampliando a capacidade de predizer comportamentos. Estas transformações
inserirão, c o m certeza, a racionalidade epidemiológica nesta nova racionali¬

4
Para informações atualizadas a esse respeito, ver os Anais do Simpósio Internacional "Da Geração
Espontânea à Evolução Molecular" do Ano Pasteur. Rio de Janeiro: Institut Risteur/Fiocruz, fev.
1995.
dade científica. É, pois, muito provável que, em breve, v e n h a m o s a teste-
m u n h a r a substituição radical, na epidemiologia, dos m o d e l o s reducionistas
deterministas pela s í n t e s e / a n á l i s e / s í n t e s e dos sistemas adaptativos comple-
xos. Afinal, os sistemas vivos — sejam eles os tecidos, os organismos, comu-
nidades, ecossistemas - constituem, talvez, os mais ricos exemplos da com-
plexidade organizada.
Esta tendência é assegurada e amplificada pelo espetacular poder compu-
tacional já disponível para cada pesquisador. Acreditamos que este poder, conju-
gado à possibilidade de operar em redes globais de comunicação, por estar, por si
mesmo, abrindo oportunidades sem precedentes para a bioinformática, também
descortinará novos desafios para a racionalidade epidemiológica.
Alguns autores, entretanto, pensam com ceticismo que, apesar de a gené-
tica molecular estar dando u m novo impulso ao desenvolvimento de modelos
filosóficos de causas e obrigando à concepção de novos desenhos de estudos
epidemiológicos e de técnicas analíticas, isso não acarretará necessariamente
u m a mudança nos seus atuais modelos teóricos (Struchiner, 1994:285-319). Para
outros, a genética molecular estaria apenas renovando as visões reducionistas
que subordinam tudo quanto é humano à hereditariedade genética e também
estaria aproximando-se, perigosamente, do darwinismo social.
D e acordo c o m essas visões pessimistas, estaríamos, m a i s u m a v e z ,
diante de u m m e r o reducionismo explanatório, tentando explicar toda a bio-
logia pela genética ou por interações físico-químicas. Só que agora o velho
reducionismo explanatório estaria sendo levado ao seu m o m e n t o extremo,
por força deste ultratecnicismo que se processa na biologia.
N ã o p e n s a m o s assim. A expectativa é que, entre nós, as discussões
sobre este n o v o arquétipo não se reduzam à produção de textos enfadonhos,
excessivamente teóricos, retomando a velha e superada controvérsia do pri-
m a d o das causas externas ou das internas. Afinal, os graves dilemas éticos
suscitados pelos projetos do g e n o m a h u m a n o e da diversidade h u m a n a , os
desafios da regulamentação voltada para a problemática da biossegurança,
os impactos sobre os custos do desenvolvimento de n o v a s drogas e vacinas,
as disputas e m torno dos aspectos comerciais da p r o p r i e d a d e intelectual,
sobretudo n o capítulo dos direitos patentários, são algumas das muitas con-
trovérsias que se v ã o descortinando internacionalmente c o m a emergência
das m o d e r n a s biotecnologias e de suas aplicações em saúde e que vão intro-
duzindo a complexidade no p a n o r a m a científico contemporâneo.
O n o v o arquétipo do g e n o m a está descortinando os mais instigantes
dilemas e desafios para o projeto médico social d a epidemiologia, da saúde
coletiva. U m desses desafios, talvez o maior de todos, é pensá-lo no terreno
da dinâmica dos sistemas complexos não-lineares. Edgard M o r i n fez algu-
mas observações sobre o tema:

As extraordinárias descobertas da organização simultaneamente molecular e infor¬


macional da máquina viva conduzem-nos não ao conhecimento final da vida, mas às portas do
problema da auto-organização.

Elucidando a base molecular do código genético, a biologia começa a descobrir o


problema teórico complexo da auto-organização viva, cujos princípios diferem dos das nossas
máquinas artificiais mais aperfeiçoadas.

O princípio de explicação da ciência clássica não concebia a organização enquanto


tal. Reconheciam-se organizações (sistema solar, organismos vivos), mas não o problema da
organização. Hoje, o estruturalismo, a cibernética, a teoria dos sistemas operam, cada uma a
sua maneira, avanços para uma teoria da organização, e esta começa a permitir-nos entrever,
mais além, a teoria da auto-organização, necessária para conceber os seres vivos. (Morin,
1996:24,28,29)

Finalmente, ao referir-se à necessidade de u m princípio de complexi-


dade, M o r i n (1996:30) afirma que este

se esforça por abrir e desenvolver amplamente o diálogo entre ordem, desordem e organização,
para conceber, na sua especificidade, em cada um dos seus níveis, os fenômenos físicos,
biológicos e humanos. Esforça-se por obter a visão poliocular ou poliscópica, em que, por
exemplo, as dimensõesfísicas, biológicas, espirituais, culturais, sociológicas, históricas daqui-
lo que é humano deixem de ser incomunicáveis.

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P A R T E III

TENDÊNCIAS

Podemos levantar a questão das novas dimensões suscetíveis de


desaparecer espontaneamente neste fim de milênio, como conseqüência de uma
tecnocultura que escapa cada vez mais às leis e ao direito consuetudináno
(ou por acaso se castiga uma máquina, inocente por definição?)

Paul Virilio
UM F U T U R O PARA A

EPIDEMIOLOGIA*

Mervyn Susser & Ezra Susser

A EVOLUÇÃO DA EPIDEMIOLOGIA

A idéia subjacente q u e caracterizou os primórdios d a epidemiologia


quantitativa n o século XVII foi a p r e o c u p a ç ã o c o m a saúde pública e as
disparidades n a s taxas de mortalidade n o s diferentes estratos sociais. O p e -
queno comerciante J o h n Graunt, n o seu livro datado d e 1662, Natural and
Political Observations made upon the Bills of Mortality, relata a distribuição social
da morte e m Londres e, e m especial, as conseqüências mortais d a peste. Ο
m é d i c o W i l l i a m Petty, a m i g o de Graunt e seu patrono n a Sociedade Real, foi
o primeiro autor a esboçar, e m seu livro Political Arithmetick (1667), u m méto-
do d e cálculo d o s custos da mortalidade.
A a b o r d a g e m utilitária q u e eles e outros adotaram revelava-se inteira-
m e n t e d e a c o r d o c o m as justificativas p r e d o m i n a n t e s n o s p r i m ó r d i o s d a

Tradução: Francisco Inácio Bastos, Carlos Magno M. Pinheiro & Francisco Trindade
ciência moderna nos séculos X V e X V I . Impulsionada pelas duas forças gê-
meas do capitalismo e da ética protestante, a ciência foi 'sancionada', con-
forme a expressão de Robert M e r t o n (1973), pela utilidade econômica e pela
glorificação de Deus. Essa ideologia fomentou descobertas passíveis de apli-
cação técnica imediata na astronomia, na navegação, na fabricação de armas
de fogo, na ótica e e m muitos outros campos.
C o m a aceleração do fluxo de descobertas no decorrer dos séculos, a
ciência a b a n d o n o u suas raízes utilitárias para se tornar u m fim e m si mesma.
D u r a n t e algum tempo, contudo, isso não foi verdade para a epidemiologia,
que preservou u m a preocupação central c o m a saúde pública e sua distribui-
ção na sociedade.
Assim, diante das misérias da Inglaterra do século X I X — vanguarda da
industrialização e da urbanização acelerada —, a epidemiologia moderna pouco a
p o u c o t o m o u forma, emergindo, plenamente, c o m o m o v i m e n t o sanitário
(Simon, 1887; Rosen, 1993). A partir de então, podem-se distinguir pelo menos
três eras na epidemiologia, cada uma portadora do próprio paradigma dominan-
te: era das estatísticas sanitárias, com seu paradigma — os miasmas; era da epide-
miologia das doenças infecciosas, com seu paradigma — a teoria do germe; e era
da epidemiologia das doenças crônicas, com seu paradigma — a caixa preta.
O Quadro 1, a seguir, descreve cada uma delas em seu contexto histórico.

Q u a d r o 1 — As três eras na evolução da e p i d e m i o l o g i a moderna


ESTATÍSTICAS SANITÁRIAS Ε MIASMAS

A teoria dos m i a s m a s foi dominante entre os sanitaristas na m a i o r par­


te do século XIX. A s estatísticas sanitárias revelam o pesado tributo pago
e m doença e morte nos bairros pobres da Inglaterra, França, A l e m a n h a , Es-
candinávia e Estados Unidos, precursores dos c a m p o s de refugiados, favelas
e bairros de periferia do m u n d o subdesenvolvido dos nossos dias. A hipótese
sanitária dos m i a s m a s — tentativa de c o m p r e e n d e r essas condições - atri-
buiu-as ao ' e n v e n e n a m e n t o ' secundário às e m a n a ç õ e s pútridas originárias
do solo, á g u a s e ar. Pensava-se, então, que as causas ambientais exerciam
amplas e múltiplas influências sobre a morbidade e a mortalidade, e as esta-
tísticas sanitárias, coletadas para comprovar seus efeitos, eram, e m grande
medida, indiferenciadas, isto é, relacionadas mais à m o r b i d a d e e à mortali-
dade globais d o que a doenças específicas. Somente em 1839, na Inglaterra,
William Farr c o m e ç o u a usar u m a classificação de diagnósticos específicos
para a elaboração das estatísticas nacionais de mortalidade (Farr, 1885).
S i s t e m a s de e s g o t o e d r e n a g e m , c o m p l e m e n t a d o s p e l a c o l e t a d e
lixo, p e l o s b a n h o s p ú b l i c o s e p o r m e l h o r h a b i t a ç ã o s e r i a m os r e m é d i o s
q u e d i s p e r s a r i a m os m i a s m a s , r e d u z i n d o a m o r b i d a d e e a m o r t a l i d a d e
( c o m o , de fato, o c o r r e u ) e ' b a n i n d o ' a p o b r e z a (o q u e n ã o a c o n t e c e u ) . O
p r i n c i p a l d e f e n s o r — e, e m a l g u n s c a s o s , o c r i a d o r — d e s s a s i n o v a ç õ e s foi
E d w i n C h a d w i c k ( 1 8 4 2 ) , r e f o r m i s t a q u e sustentava q u e a d o e n ç a g e r a d a
p e l o a m b i e n t e físico p r o v o c a v a p e n ú r i a . S e u c o n t e m p o r â n e o , Friedrich
E n g e l s , foi u m r e v o l u c i o n á r i o q u e , ao d o c u m e n t a r as m a z e l a s d o s traba-
l h a d o r e s das fábricas de M a n c h e s t e r , c o m p r e e n d e u a p o b r e z a c o m o cau-
sa e n ã o c o n s e q ü ê n c i a d a s suas m a z e l a s (Susser, 1 9 7 3 ) . A m b o s , p o r é m ,
c o n c o r d a v a m q u e estas q u e s t õ e s e r a m sociais e q u e as m e d i d a s a d e q u a -
d a s p a r a r e s o l v ê - l a s t e r i a m q u e atingir t o d a a s o c i e d a d e .
Vale notar que, p a r a enfatizar os valores sociais e a v i s ã o de saúde
pública dos primeiros sanitaristas, a estatística c o m e ç o u a se dedicar, literal-
mente, à análise das condições e dos d a d o s relativos a estes estudos. A então
r e c é m - c o n s t i t u í d a S o c i e d a d e E s t a t í s t i c a d e L o n d r e s ( L o n d o n Statistical
Society) preocupava-se, principalmente, c o m a compilação dos d a d o s ne-
cessários à consecução destes estudos. Louis René V i l l e r m é , na França, e
William Farr, na Inglaterra, pioneiros da epidemiologia, são apenas dois en-
tre os muitos que trabalharam para o avanço da saúde pública nesta direção.
Os epidemiologistas, e m sua maioria autodidatas, eram, c o m freqüên-
cia, à época, heróis m é d i c o s (Brockington, 1965). O s jovens profissionais
ficavam entusiasmados diante dos desafios que lhes eram colocados pelos
padrões emergentes de doença, que pareciam deitar raízes e m u m ambiente
1
horrendo de miséria urbana. Chief medical officer d o C o n s e l h o Nacional d e
S a ú d e da Inglaterra, J o h n S i m o n foi capaz, no intervalo de p o u c o s anos (o
trabalho teve início e m 1858) de reunir e m torno de si u m a brilhante equipe
— 17 m e m b r o s ao todo, oito deles eleitos, por mérito, para a Real Sociedade.
Esses epidemiologistas m a p e a r a m o excesso de mortalidade n o país, por re-
gião e e m relação às condições de habitação, aos cuidados dispensados à
infância e a d o e n ç a s específicas. E s t u d a r a m u m a a m p l a g a m a de atividades
produtivas e ocupações e detectaram riscos diversos secundários a partícu-
las e metais p e s a d o s , e condições gerais de trabalho. Realizaram, igualmente,
inquéritos nacionais sobre condições alimentares, infestação de carnes por
parasitas e contaminação alimentar.
Esses resultados fundamentais foram alcançados c o m base nos estu-
dos p r o m o v i d o s na era dos m i a s m a s , p o r é m o seu p a r a d i g m a n ã o p o d e r i a
s o b r e v i v e r i n a l t e r a d o a o s a v a n ç o s da m i c r o b i o l o g i a . S u a m o r t e c o l o c o u
u m p o n t o final n a era sanitária. A t e n a c i d a d e d e a l g u m a s b r i l h a n t e s figu-
ras d o m o v i m e n t o — c o m o E d w i n C h a d w i c k e F l o r e n c e N i g h t i n g a l e , q u e
se o p u s e r a m à r e v i s ã o d e s u a s t e o r i a s , ao i n v é s d e se s u b o r d i n a r e m à
n o v a b i o l o g i a — a t r a i u o e s c á r n i o d o s c i e n t i s t a s d a á r e a m é d i c a q u e , até
e n t ã o , n ã o t i n h a m l o g r a d o êxito. A s s i m , a p e r s p e c t i v a a m p l a p e l a q u a l
eles se b a t i a m , g r a d u a l m e n t e , p e r d e u força. O e n r e d o d r a m á t i c o da n o v a
m i c r o b i o l o g i a n ã o seria f a c i l m e n t e c o n t e s t a d o .
U m a d a s i r o n i a s da h i s t ó r i a da s a ú d e p ú b l i c a é que, se p o r u m l a d o ,
os s a n i t a r i s t a s e s t a v a m e r r a d o s n a sua teoria c a u s a i s o b r e e m a n a ç õ e s p ú -
t r i d a s , p o r outro, d e m o n s t r a r a m c o r r e t a m e n t e c o m o e o n d e p r o c u r a r c a u -
sas e m t e r m o s d e p r o c e s s o d e c o n c e n t r a ç ã o (clustering em determinados
s e g m e n t o s / e s p a ç o s d e m o r t a l i d a d e e da m o r b i d a d e . A s r e f o r m a s q u e aju-
d a r a m a p r o m o v e r e m m a t é r i a d e d r e n a g e m , t r a t a m e n t o d e d e j e t o s , su-
p r i m e n t o de á g u a e s a n e a m e n t o c o n c o r r e r a m , d e u m m o d o g e r a l , p a r a
m e l h o r i a s s i g n i f i c a t i v a s n a s a ú d e . E l e s e s t a v a m e q u i v o c a d o s q u a n t o às

1
Cargo hoje equivalente ao de Ministro da Saúde (N.Org.).
e s p e c i f i c i d a d e s b i o l ó g i c a s , m a s n ã o q u a n t o a se a t r i b u i r a c a u s a l i d a d e ao
a m b i e n t e e m u m s e n t i d o a m p l o (Susser, 1 9 7 3 ) .

DOENÇAS INFECCIOSAS Ε TEORIA DO GERME

E m 1840, J a k o b Henle publicou u m tratado muito b e m fundamenta­


do, estabelecendo a seguinte hipótese (já esboçada por alguns precursores,
c o m o Fracastorius): a infecção por organismos minúsculos constituía u m a
causa fundamental de doença (Rosen, 1937; Henle, 1938; Shryock, 1972).
A p e s a r d o trabalho seminal que J o h n S n o w realizou n o c a m p o da epidemio-
2
logia analítica entre 1849 e 1854, a respeito da causalidade ' o r g a m s m i c a '
d o cólera (Snow, 1855), 25 anos se p a s s a r a m antes que H e n l e fosse reabili-
tado. A demonstração, por Louis Pasteur, de que u m o r g a n i s m o vivo era o
agente de u m a epidemia q u e afetava os bichos-da-seda g a n h o u ressonância
e m 1865 (Vallery-Radot, 1901), a ela se seguindo estudos da infecção e con-
tágio e m doenças h u m a n a s , c o m o a tuberculose, o carbúnculo (antraz) e a
lepra ( V i l l e m i n , 1 8 6 5 ; H a n s e n & Looft, 1 8 6 5 ; I r g e n s & B i e r k d a l , 1973).
Finalmente, e m 1882, Robert Koch, que havia sido aluno de Henle, reco-
n h e c e u q u e u m a microbactéria era a causa da tuberculose (Koch, 1912).
Henle, Snow, Pasteur e K o c h p o d e m ser c o n s i d e r a d o s os fundadores sim-
b ó l i c o s da n o v a era.
E m b o r a H e n l e n ã o d i s p u s e s s e d e m e i o s d e i n t e r v e n ç ã o e Pasteur
atuasse primordialmente nas questões comerciais relativas às d o e n ç a s que
a m e a ç a v a m a indústria da seda e a viticultura, a m b o s explicitaram e compar-
tilharam de u m a perspectiva de saúde pública n o q u e diz respeito à preven-
ção da doença. A despeito dessas origens, o n o v o p a r a d i g m a d a d o e n ç a que
se estabeleceu e m decorrência d o trabalho de a m b o s — a teoria d o g e r m e —,
acabou p o r se restringir à perspectiva estritamente laboratorial de u m m o d e -
lo d e causalidade específica (Evans, 1976; 1993) - ou seja, agentes específi-
cos relacionados, u m a u m , a doenças específicas.

2
Procuramos conservar a relativa indeterminação do termo "organismic" do original, mais compatí-
vel com as formulações da época de Snow do que utilizar a terminologia atual - "microorganismos"
e similares (N.T.).
A teoria d o g e r m e e sua v i s ã o c o r r e s p o n d e n t e sobre causas específi-
cas d o m i n a r a m as ciências m é d i c a s e a saúde pública d e s d e o ú l t i m o quar-
tel d o século X I X até, pelo m e n o s , a m e t a d e d o século X X . A g e n t e s espe-
cíficos e r a m identificados c o m base n o i s o l a m e n t o e na cultura d o s locais
afetados p o r d o e n ç a s c a u s a d a s p o r m i c r o o r g a n i s m o s , na sua t r a n s m i s s ã o
e x p e r i m e n t a l e na r e p r o d u ç ã o das lesões. A s respostas a p r o p r i a d a s visa-
v a m a limitar a t r a n s m i s s ã o por m e i o da aplicação de v a c i n a s , d o i s o l a m e n -
to dos afetados e, e m última instância, da cura pela a d m i n i s t r a ç ã o de anti-
bióticos e quimioterápicos. D i a g n ó s t i c o s c o m base e m d e s c o b e r t a s l a b o r a -
toriais, a i m u n i z a ç ã o e o tratamento se a p e r f e i ç o a v a m a cada a v a n ç o cien-
tífico. A teoria dos m i a s m a s foi r e l e g a d a ao m e s m o e s q u e c i m e n t o e m que
caíra a idéia d o flogisto.
S i m u l t a n e a m e n t e , a e p i d e m i o l o g i a das p o p u l a ç õ e s , das e x p o s i ç õ e s
a m b i e n t a i s e da d i n â m i c a social das d o e n ç a s , tributária da teoria d o s m i a s -
m a s , e n t r o u e m d e c l í n i o , s e n d o substituída pela ênfase a o c o n t r o l e d o s
a g e n t e s infecciosos. A e p i d e m i o l o g i a d e então era m a i s u m a atividade se-
cundária d o q u e u m a ciência criativa assentada sobre as próprias b a s e s . A
nova era c o n s e r v o u , c o m dificuldades e g u a r d a d a s as suas especificidades,
os a v a n ç o s e p i d e m i o l ó g i c o s d o século X I X , n o que c o n c e r n e ao d e s e n h o e
ao d e s e n v o l v i m e n t o d e pesquisas de c a m p o , à e l a b o r a ç ã o d e sistemas esta-
tísticos nacionais referentes a d a d o s vitais e às análises estatísticas d e g r a n -
des n ú m e r o s . O s adeptos da filosofia tradicional da saúde p ú b l i c a p e r d e -
r a m prestígio e p o d e r na hierarquia m é d i c a e foram m e s m o objeto de e s -
cárnio, d e forma semelhante ao q u e continua a ocorrer, e m m u i t o s locais,
n o s dias de hoje.
A busca por outras causas de doenças no meio ambiente, que não as mi¬
crobiológicas, praticamente deixou de existir. A s s i m , nos Estados Unidos,
Joseph Goldberger (1918), com seu trabalho sobre a pelagra, começado em 1914
e terminado nos anos 20, opôs-se à maré dominante da noção de infecção, ao
estabelecer a deficiência nutritional como causa da pelagra. Isso é ainda mais
significativo, se levarmos em conta que ele e Edgar Sydenstricker demonstraram
que, no Sul rural, a deficiência alimentar era decorrente da pobreza dos planta-
dores e de outros trabalhadores presos à armadilha da estrutura econômica da
lavoura do algodão.
Nesse m e s m o período, a busca de u m a etiologia viral para o flagelo
crescente da poliomielite justificava-se plenamente. Todavia, a concentra¬
ção de recursos nas atividades de pesquisa laboratorial e m busca de um mi-
croorganismo acarretou u m a certa negligência quanto a descobertas-chave
no âmbito da epidemiologia e tornou inúteis as estratégias de prevenção
implementadas. Ivar W i c k m a n , na Suécia, já em 1905, e W a d e H a m p t o n
Frost, nos Estados Unidos, uma década depois, concluíram, c o m base em
dados epidemiológicos, que a transmissão disseminada de infecção subclíni¬
ca causada por algum agente desconhecido constituía o fator subjacente às
epidemias de verão - que atingiam, especialmente, as crianças das classes
mais abastadas.
A ironia da era sanitária foi então invertida nesse ponto. Se não resta
dúvida de que, dentro de seu âmbito restrito, os formuladores da teoria do
g e r m e e s t a b e l e c i a m relações c a u s a i s precisas p a r a m u i t a s d o e n ç a s , cabe
observar, no entanto, que sua visão estreita retardou o uso criativo de suas
descobertas em prol d e u m progresso efetivo da ciência epidemiológica.
A f i r m a m alguns que o declínio das d o e n ç a s infecciosas nos países desen-
v o l v i d o s na primeira m e t a d e do século X X , ápice do p a r a d i g m a da teoria
do g e r m e , deve m e n o s aos avanços científicos — aí incluído o uso de vaci-
nas e antibióticos, do que à nutrição ou à m e l h o r i a no p a d r ã o de vida
( M c K e o w n , 1976a; 1 9 7 6 b ) . E m b o r a u m a análise mais detida não sustente
o a r g u m e n t o contra o papel da ciência, não resta d ú v i d a s o b r e o papel
fundamental do d e s e n v o l v i m e n t o e c o n ô m i c o e da m u d a n ç a social (Susser,
1973; McKinlay, 1981).
Q u a i s q u e r q u e sejam as c a u s a s , os g r a n d e s flagelos d a s d o e n ç a s
c o n t a g i o s a s foram p o s t o s sob c o n t r o l e nos p a í s e s d e s e n v o l v i d o s . Q u a n d o
os p r i n c i p a i s a g e n t e s i n f e c c i o s o s p a r e c i a m ter s i d o i d e n t i f i c a d o s e as
doenças contagiosas não mais d o m i n a v a m o quadro das doenças letais,
a força d o p a r a d i g m a da t e o r i a d o g e r m e d i m i n u i u . P o u c o s , c o m n o t á -
veis exceções c o m o René D u b o s (1959, 1965), a n t e c i p a r a m o recru¬
d e s c i m e n t o das d o e n ç a s c o n t a g i o s a s ou as n o v a s e p i d e m i a s g l o b a i s . C o m
a p r e d o m i n â n c i a emergente das doenças crônicas de causas desconhe-
c i d a , sob q u a l q u e r p a r a d i g m a c a u s a l d i g n o de c r é d i t o , o a m b i e n t e físico
e social teve de ser, m a i s u m a v e z , r e c o n s i d e r a d o .
As DOENÇAS CRÔNICAS Ε A CAIXA PRETA

A S e g u n d a G u e r r a M u n d i a l serve c o m o u m divisor d e águas que assi-


nala o início da era da d o e n ç a crônica e do p a r a d i g m a da caixa preta. Pouco
d e p o i s d o t é r m i n o d o conflito, e m 1 9 4 5 , já era e v i d e n t e que, n o m u n d o
desenvolvido, a ascensão da mortalidade decorrente das d o e n ç a s crônicas
ultrapassara a decorrente das doenças infecciosas. A ascensão n ã o se devia
apenas ao envelhecimento da população. Especificamente entre os h o m e n s
de m e i a - i d a d e , o i n c r e m e n t o da prevalência d a úlcera péptica, da d o e n ç a
coronariana e d o câncer de p u l m ã o era rápido e assustador o suficiente para
que p u d é s s e m o s denominá-lo epidêmico (Morris, 1957).
Nesse m e s m o momento, quimioterápicos e antibióticos já faziam parte
do arsenal terapêutico. Os seus potentes efeitos pareciam fornecer evidências
claras de que as principais causas das doenças infecciosas haviam sido contro-
ladas. Só mais tarde percebeu-se que esses medicamentos não eram o fator
primordial para o contínuo declínio das doenças infecciosas na primeira meta-
de do século XX e que, ademais, não seriam capazes de prevenir devastadoras
epidemias globais na metade seguinte ( M c K e o w n , 1976a; 1976b).
A epidemiologia predominante de nossos dias traduz o esforço d e en-
tender e controlar as novas epidemias d e doenças crônicas. T a m b é m nesta
ocasião, a nova era foi, no início, guiada pelos conceitos da saúde pública.
A s doenças crônicas, q u e a m e a ç a v a m d e forma mais explícita a saúde públi-
ca, tornaram-se o objeto primordial da investigação epidemiológica e os gru-
pos estudados foram recrutados entre aqueles sob risco manifesto, especial-
m e n t e os h o m e n s de meia-idade.
A epidemiologia das doenças crônicas firmou-se q u a n d o foram r e g i s -
trados os seus primeiros resultados irrefutavelmente relevantes. Estudos de caso-
controle e coorte sobre as relações entre fumo e câncer de pulmão, b e m como os
primeiros estudos de coorte sobre a doença coronariana, que definiram o coles¬
terol sérico e o fumo como fatores de risco, demonstraram o poder do m é t o d o
observacional e conferiram-lhe suas credenciais (Susser, 1985).
3
Esses estudos trouxeram consigo o imprimatur invisível do p a r a d i g m a
da caixa preta, q u e relacionava exposição a resultado, s e m q u e isso implicas¬

3
Termo latino que significa 'imprima-se' e expressava a autoriíação, por parte da censura, de impres-
são de um livro (N.T.).
se qualquer obrigação de interpolar fatores intermediários, ou m e s m o a pa¬
togênese, embora n e m todos negligenciassem tal interpolação. C o m o na era
sanitária, os epidemiologistas defrontavam-se com importantes doenças le-
tais de origem inteiramente desconhecida. D e início, por força das circuns-
tâncias, eles recorreram a estudos estritamente descritivos da distribuição
das doenças e à busca de possíveis fatores que implicavam riscos ampliados
(Morris, 1957). Q u a n d o c o m e ç a r a m a testar as observações emergentes, eles
contaram c o m o engenho dos seus desenhos e lançaram m ã o de circunstân-
cias oportunas de m o d o a chegar às suas conclusões. R a r a m e n t e recorreram
a u m a análise estatística complexa.
Os estudos do câncer de pulmão revelaram-se especialmente influen-
tes e m conferir credibilidade ao n o v o paradigma. A patogênese havia sido
superada. A s s i m , a descoberta biológica mais substancial, que referendava a
relação f u m o / c â n c e r de pulmão, limitou-se a u m a evidência indireta: a de-
monstração, por parte de Kennaway e colaboradores, de que o alcatrão apli-
cado à pele de c a m u n d o n g o s era carcinogênico (Burrows & Kennaway, 1932).
D e fato, p o r mais quatro décadas, não foi estabelecida n e n h u m a analogia
direta entre os experimentos c o m animais e as significativas descobertas dos
estudos epidemiológicos sobre o fumo.
Passo a passo, as complexidades das doenças crônicas emergiram, pri-
meiro no que diz respeito a desenhos de pesquisa e inferência causal e, um
pouco mais tarde, à análise estatística (Susser, 1985). A incipiente reflexão
sobre o desenho dos estudos das décadas anteriores foi desenvolvida e siste-
matizada (Witts, 1959; M a c M a h o n , 1960). A estrutura dos d e s e n h o s tor-
nou-se mais clara, b e m c o m o compreendeu-se a necessidade de poder esta-
tístico e das vantagens decorrentes das grandes amostras.
Os epidemiologistas viram-se obrigados a abandonar o m o d e l o de cau-
sas específicas da teoria do g e r m e . A metáfora da 'teia de causalidade' carac-
terizou a natureza multicausal das questões de saúde pública, e m particular,
das doenças crônicas. Por este motivo, u m de nós ( M e r v y n Susser) tentou,
por sua conta e risco, sistematizar os problemas inferenciais que emergiam,
c o m a nascente epidemiologia, de u m m u n d o multivariado (Susser, 1973).
Posteriormente, o aprimoramento da técnica analítica determinou um
ciclo de sofisticação crescente. Os epidemiologistas passaram a explorar a
fundo as sutilezas dos fatores de confusão, dos p r o b l e m a s classificatórios,
da análise de sobrevida e outras questões similares. Este esforço p o d e ser
explicitado no conceito elegante e unificador da tabela 2 x 2 , e dos desenhos
de caso-controle e coorte c o m o métodos alternativos de amostragem da ocor-
rência de doenças na população, de m o d o a estimar as taxas de risco ou as
razões de produto cruzado (odds ratios) (Susser, 1973).
O paradigma da caixa preta permanece como modelo dominante, e vir-
tualmente todos os epidemiologistas contemporâneos, aí incluídos os próprios
autores deste texto, dele têm lançado mão. Ele continua a subsidiar descober-
tas significativas no âmbito da saúde pública. Os defeitos no canal neural nos
oferecem u m exemplo recente dessa afirmação: estratégias de pesquisa, típi-
cas do paradigma da caixa preta, permitiram chegar, casualmente, à descober-
ta do papel fundamental da deficiência de ácido fólico. Trabalhos anteriores
haviam encontrado variações na ocorrência destes defeitos nas diferentes clas-
ses sociais, localizações geográficas e etnias, e em decorrência dos ciclos eco-
nômicos (Elwood, 1992). Estudos posteriores identificaram u m a associação
entre a exposição à fome nos primeiros meses de gravidez e u m maior risco de
defeitos congênitos, e uma segunda associação entre a suplementação vitamí¬
nica pré-natal e u m decréscimo deste risco (Stein et al. 1975). Finalmente,
indo além do paradigma da caixa preta, estudos com animais, seguidos por
ensaios clínicos utilizando suplementação nutritional, estabeleceram que a ad-
ministração periconcepcional de ácido fólico podia prevenir u m a grande por-
centagem de defeitos no canal neural (Smithells, 1983).

A NOVA ERA: ECO-EPIDEMIOLOGIA

N o entanto, todos os sinais apontam para u m clímax e, c o m toda pro-


babilidade, u m declínio subseqüente da caixa preta c o m o paradigma domi-
nante. D u a s forças características do nosso t e m p o e freqüentemente men-
cionadas estão enfraquecendo este paradigma. Referimo-nos à transforma-
ção nos padrões globais de saúde e à nova tecnologia.

PADRÕES DE SAÚDE

C o m relação aos padrões de saúde, n e n h u m evento tem tido m a i o r


impacto do que a e p i d e m i a da AIDS/HIV. E m b o r a a epidemiologia nos tenha
proporcionado notáveis contribuições para a adequada c o m p r e e n s ã o da epi-
demia, a epidemiologia da caixa preta mostra-se mal equipada para efetuar o
seu controle.
A epidemia da AIDS demonstrou que tanto os países desenvolvidos
quanto os em desenvolvimento estão vulneráveis à disseminação devasta-
dora de uma doença infecciosa. Todavia, o agente causal e os fatores de risco
essenciais são conhecidos, de modo que a prevenção é, em tese, possível.
A análise em nível exclusivamente individual de organização, c o m o
implicado nos conceitos do paradigma da caixa preta, não p e r m i t e avaliar
em que pontos, nos diferentes níveis hierárquicos, a intervenção poderia ser
b e m sucedida ( K o o p m a n et al; 1991). N e n h u m a vacina hoje e m desenvolvi-
m e n t o parece capaz de atingir o nível de eficácia que poderia redundar em
um controle da epidemia. Afora essa falta de eficácia, nossa incapacidade de
controlar a epidemia reside nas lacunas relativas à compreensão da transmis-
são e da doença no contexto social. S a b e m o s quais co mport ament os sociais
precisam ser m u d a d o s , mas pouco sabemos sobre c o m o mudá-los, m e s m o
quando sociedades inteiras estão envolvidas.
Aos olhos de hoje, nossa confiança, vigente durante a era da doença
crônica, na capacidade de controle das doenças infecciosas parece ingênua e
igualmente insensível às particularidades do m u n d o m e n o s desenvolvido.
Para a maior parte da população mundial, as infecções crônicas - tuberculo-
se, sífilis, malária, entre outras — nunca estiveram, de fato, sob controle. O
m e s m o ocorreu com o HIV: as causas imediatas e os fatores de risco são
conhecidos, mas esse conhe cimento não se traduz e m proteção efetiva à
saúde pública.
D o m e s m o modo, nossa confiança no controle das d o e n ç a s crônicas
não-infecciosas, por i n t e r m é d i o da alteração de c o m p o r t a m e n t o s que acar-
retam risco, foi abalada. M a i s u m a v e z , o c o n h e c i m e n t o d o s riscos e as
i n t e r v e n ç õ e s dirigidas exclusivamente às m u d a n ç a s de c o m p o r t a m e n t o dos
i n d i v í d u o s , ainda que em diversas c o m u n i d a d e s , revelaram-se insuficien-
tes (Susser, 1 9 9 5 ) .
Problemas de saúde decorrentes de problemas sociais sinalizam a iden-
tificação das dificuldades subjacentes. Defensores da saúde pública - como
n i n g u é m m e n o s do que o eloqüente patologista do século X I X , Rudolf
Virchow (1985) - há muito compreenderam essa relação. E m algumas popu-
lações, foram as relações sociais que frearam a melhoria das condições de
saúde. U m e x e m p l o b e m conhecido é a influência, e m g r a n d e escala, das
d e p e n d ê n c i a s químicas e da violência sobre o perfil de saúde de g r u p o s etá-
rios inteiros. A s s i m , atualmente, no Central Harlem, N o v a York, a taxa d e
mortalidade de jovens adultos d o sexo masculino é superior à de u m país
p o b r e c o m o B a n g l a d e s h (Kleinbaum, 1982). Os efeitos sociais sobre a saú-
de e m muitas outras situações não são m e n o s dramáticos. Por exemplo, na
Rússia, no decorrer da transição iniciada c o m o fim d o E s t a d o soviético, na
África d o Sul, durante as matanças espasmódicas d o apartheid, e na C o l ô m -
bia (Virchow, 1985; Leon, 1987; Yach, 1988).
O p a r a d i g m a da caixa preta, isoladamente, n ã o elucida as forças so-
ciais n e m suas relações c o m a saúde. N o que se refere à saúde pública, u m a
epidemiologia voltada para o indivíduo mostra-se seriamente limitada. A s
soluções por ela formuladas e n v o l v e m o controle dos fatores de risco que
atingem diretamente os indivíduos, tais c o m o os c o m p o r t a m e n t o s relativos
ao 'hospedeiro' (fumar, por exemplo) ou aos 'agentes' (os veículos motoriza-
dos ou a poluição ambiental, por e x e m p l o ) . O paradigma n ã o nos fornece
i n s t r u m e n t o s já consolidados para lidar c o m os fatores d e risco n o seu con-
texto a m p l o , c o m o é g e r a l m e n t e necessário p a r a sua m u d a n ç a efetiva. A
prevenção e m nível social é conceituada antes c o m o u m a intervenção sobre
indivíduos e m u m a escala en masse do q u e u m a intervenção e m u m a entidade
social c o m leis e dinâmicas próprias.

TECNOLOGIA

C o m relação à tecnologia, os desenvolvimentos que orientarão a p e s -


quisa e que p o d e m conduzir a epidemiologia a u m n o v o p a r a d i g m a residem
primordialmente, por u m lado, na biologia e nas técnicas biomédicas e, por
outro, nos sistemas d e informação. Esses avanços v ê m i m p o n d o reformula-
ções a todas as disciplinas n a área da saúde.
Técnicas biológicas c o m o a recombinação genética e o processamento
d e i m a g e n s corporais transformaram nossa habilidade e m c o m p r e e n d e r a
doença h u m a n a e m nível micro. Por exemplo, os métodos do D N A recombi¬
nante l e v a r a m ao reconhecimento dos componentes viral e genético n a dia-
betes insulino-dependente, ao rastreamento conclusivo 'pessoa-a-pessoa' do
HIV, da tuberculose e outras infecções, por m e i o da especificidade m o l e c u ¬
lar dos organismos, à descoberta do vírus da herpes c o m o o agente quase
inquestionável do sarcoma de Kaposi (Chang et al., 1994) e ao 'drama' do
rastreamento familiar e identificação do primeiro gene do câncer de m a m a
(Hall et al., 1990).
A s técnicas de processamento de imagens abalaram a noção da esqui-
zofrenia c o m o psicose funcional e deram novamente crédito à participação
de fatores ambientais (Andreasen et al., 1994). Permitiram, t a m b é m , a des-
coberta de u m a freqüência elevada de lesões cerebrais nos prematuros, antes
insuspeita, concentrada nas primeiras horas de vida (Paneth et al., 1993). A
aquisição de conhecimentos secundários à nova tecnologia apenas come-
çou. O m a p e a m e n t o do g e n o m a h u m a n o abre caminho para possibilidades
antes inimagináveis, c o m o a especificação do papel da hereditariedade na
doença e a visualização dos processos fisiológicos na interpretação das fun-
ções do organismo.
A contribuição potencial desses avanços à epidemiologia constitui um
extraordinário aperfeiçoamento na definição e na medida da exposição e do
resultado (outcome). Tal aperfeiçoamento esclarece as vias intermediárias e
elucida, com precisão, processos causais e não apenas fatores causais. Ε pos­
sível acreditar que as novas técnicas, aplicadas de m o d o criterioso, ajudarão
a tirar a epidemiologia do lamaçal das estimativas de riscos marginalmente
significantes (Stein & Hatch, 1987).
Paralelamente, a tecnologia em nível social, sob a forma de redes de
comunicação global, abriu novas perspectivas para a c o m p r e e n s ã o e o con-
trole das doenças. Redes de informação possibilitam o acesso instantâneo a
bancos de informação contendo estatísticas vitais e outros dados sociais e
de saúde relevantes por todo o mundo (Friede et al., 1993), permitindo igual-
mente sua contínua reestruturação. Estes dados dispõem de u m a infinidade
de aplicações c o m relação a estratégias de vigor renovado em saúde pública
e c o m p o r t a m u m a capacidade potencial de projetar e testar intervenções
b e m formuladas voltadas para o social. Bancos de dados p o d e m ser 'garim-
p a d o s ' em busca de descrições comparativas de ocorrências em diferentes
segmentos e g r u p o s , nacional e internacionalmente, de m o d o a gerar e testar
hipóteses, e c o m o 'quadros de referência' de estratégias amostrais. A acumu-
lação contínua de dados, ao longo do tempo, pode subsidiar uma vigilância
abrangente de estados de saúde, a detecção de epidemias emergentes e no-
vas doenças, a resposta a desastres e a avaliação de intervenções. Essa tec¬
nologia possibilita, portanto, a compreensão de fenômenos d e larga escala e
m e s m o de sistemas que estão ao nosso alcance. Coloca e m nossas m ã o s a
habilidade e a necessidade d e reconhecer padrões dinâmicos de g r a n d e a m -
plitude e, igualmente, as doenças e m seu contexto social.
Q u a n d o as pesquisas baseadas no p a r a d i g m a corrente da caixa preta,
na sua f o r m a pura, e x t r a e m suas conclusões exclusivamente das taxas de
riscos q u e relacionam a exposição aos eventos resultantes, sem elaboração
sobre as vias intervenientes, estão abrindo m ã o da profundidade proporcio-
nada pelos novos conhecimentos biológicos. A l é m disso, e m decorrência de
u m c o m p r o m i s s o implícito, e às vezes explícito, de analisar d o e n ç a s exclusi-
v a m e n t e n o nível individual, a pesquisa realizada sob esse p a r a d i g m a pres-
cinde, igualmente, da ampliação que seria proporcionada por n o v o s siste-
m a s de informação, decorrentes da inserção da exposição, resultado e risco
n o contexto social.

NECESSIDADE DE UM NOVO PARADIGMA

O a p o g e u d o p a r a d i g m a da caixa preta está consolidado nos textos


epidemiológicos básicos dos anos 80. Eles se afastam da orientação d a saú-
d e pública adotada pelos pioneiros da era da doença crônica. Simultanea-
mente, a análise tem deslocado a questão do desenho do centro de seu foco.
L e v a n d o essas considerações a u m p o n t o extremo, vemo-nos às voltas c o m
u m a epidemiologia desembaraçada das exigências de refletir sobre as doen-
ças inseridas e m g r u p o s sociais, c o m u n i d a d e s e outras formações da estru-
tura social. E m conseqüência disso, u m m o d e r n o livro-texto, l a r g a m e n t e uti-
lizado, endossa implicitamente u m a definição expressiva da epidemiologia
c o m o 'o estudo da ocorrência das doenças', colocando de lado os objetivos
da saúde pública. A epidemiologia é vista, nesse enfoque, c o m o algo próxi-
m o às ciências físicas, c o m estas compartilhando a busca dos níveis de abs-
tração m a i s altos, sob a forma de leis universais.
Pesquisas desenvolvidas sob esta perspectiva universalista n ã o p o -
d e m usufruir das extraordinárias m u d a n ç a s e oportunidades abertas pelas
novas dinâmicas das doenças e novas tecnologias.
N a evolução da epidemiologia moderna, sempre q u e os padrões de
saúde e as tecnologias se alteraram, os paradigmas dominantes t ê m sido subs-
tituídos p o r novos paradigmas. C o m o ocorreu c o m p a r a d i g m a s anteriores, a
caixa preta, estendida para além dos seu limites, deve ser e m breve subsumi¬
da ou m e s m o inteiramente substituída por outro. E s t e p a r a d i g m a reflete u m a
era específica n o d e s e n v o l v i m e n t o da epidemiologia c o m o disciplina. N o
nosso p o n t o de vista, situamo-nos n o limite de u m a nova era, por nós deno-
minada de era da eco-epidemiologia.

CAIXAS CHINESAS: UM PARADIGMA PARA A ECO-EPIDEMIOLOGIA

Traçamos a evolução da epidemologia, considerando três eras e seus


paradigmas dominantes: a era das estatísticas sanitárias, c o m o seu paradig-
m a do miasma; a da epidemiologia das doenças infecciosas, c o m o seu para-
d i g m a da teoria do g e r m e ; e a atual, da epidemiologia da doença crônica,
c o m o seu par adigm a da caixa preta. Posteriormente, a r g u m e n t a m o s que o
pa r ad igma da caixa preta, e m b o r a b e m ajustado à investigação de fatores d e
risco no nível individual, v e m sendo m i n a d o por novos padrões de saúde e
tecnologia, e é provável que muito e m breve seja substituído.
Neste momento, defendemos u m para digm a para u m a quarta era emer-
g e n t e — a d a eco-epidemiologia. D e m o d o a conotar a i n c l u s ã o de sistemas
e m diferentes níveis, nós o d e n o m i n a m o s c o m o p a r a d i g m a das caixas chi-
nesas. E s t e p a r a d i g m a , q u e p r o v é m d e u m a distinção p a r t i c u l a r entre o
u n i v e r s a l i s m o das ciências físicas e o e c o l o g i s m o das ciências biológicas,
insere a e p i d e m o l o g i a n a trilha d o ec ologismo, perspectiva q u e q u e r e m o s
explicar e justificar.
A implicação prática de u m paradigma ecológico para o desenho da
pesquisa epidemiológica é que de nada nos servirá u m foco exclusivo em
fatores de risco no nível individual entre populações, m e s m o considerando
os números mais abrangentes. Precisamos estar igualmente p r e o c u p a d o s c o m
c a m i n h o s causais n o nível social, e c o m a patogênese e a causalidade e m
nível molecular. Observamos, neste ponto, que investigações e m todos es-
ses níveis p o d e m ser encontradas na história da m e d i c i n a e n a d a epide-
miologia desde tempos remotos. Hipocrates (1950) preocupava-se c o m os
efeitos das c o n d i ç õ e s ambientais m a i s a m p l a s sobre a saúde. M a i s tarde,
Galeno, que enfatizou o hospedeiro individual na forma da teoria dos quatro
h u m o r e s , não negligenciou a interação da suscetibilidade c o m o estilo de
vida. Paracelso, no século X V I , objetivou alcançar níveis múltiplos, tentou
aplicar a química à medicina e estudou a influência dos astros n a fisiologia.
A necessidade e a potência de u m n o v o pa ra di gma p o d e m ser ilustra-
das pela d o e n ç a infecciosa secundária ao H I V e pela doença crônica — a
úlcera péptica. Se, por u m lado, esses dois distúrbios foram selecionados de
m o d o a representar doenças crônicas e infecciosas do nosso t e m p o , cabe
observar t a m b é m que cada u m a delas assinala m e n o r nitidez das distinções
entre doença crônica e infecciosa. Isto constitui, por si só, u m a m a r c a da
n o v a era.
Entender e conter a epidemia global do H I V requer p e n s a m e n t o s cau-
sais e m diferentes níveis de análises. N o nível da molécula, a p r e c i s ã o da
biologia molecular é requerida de m o d o a determinar os meios e a tempora¬
lidade da transmissão e encontrar u m meio de interrompê-la. E m nível inter-
mediário, u m comportamento social específico dos indivíduos encoraja a
transmissão sexual e outras formas de transmissão do vírus. N o nível popu-
lacional, as dinâmicas da epidemia são governadas tanto pela prevalência da
infecção e por outras características da população, c o m o por padrões de re-
lacionamento sexual e de amamentação, quanto pela prevalência de outras
doenças sexualmente transmissíveis e fatores nutricionais, entre os quais os
níveis maternos de vitamina A.
N o nível global, as interconexões entre as sociedades d e t e r m i n a m a
rota da infecção. C o m o investigadores, nos vemos n o r m a l m e n t e constrangi-
dos pelas nossas capacidades e pelo necessário reducionismo, c o m p r e e n d i d o
na definição de vínculos fortes entre u m a coisa e outra e, mais especifica-
mente, no estabelecimento de seus vínculos causais. A i n d a assim, as m e l h o -
res perspectivas de contenção da epidemia são tributárias de u m a estratégia
coerente que possa abranger todos esses níveis.
D e m o d o similar, a úlcera péptica ilustra as limitações de u m q u a d r o
d e referência por d e m a i s estreito para u m a d o e n ç a crônica (Susser & Stein,
1962). O m a r c o de referência causal do fisiologista gástrico focaliza a pa-
r e d e d o e s t ô m a g o , e o do neurofisiologista o sistema n e r v o s o autônomo.
O especialista e m p s i c o s s o m á t i c a e x p a n d e o m a r c o de referência de m o d o
a incluir estressores internos e ambientais, o geneticista considera a heran-
ça familiar de g r u p o s s a n g ü í n e o s e status secretor, e o microbiologista c o m ¬
p a r e c e c o m as recentes descobertas sobre a Helicobacter pylon. O epidemiolo-
gista inclui tudo isso e ainda acrescenta o hábito de fumar c o m o u m fator de
risco individual.
N o entanto, o mistério e o desafio da úlcera péptica para a epidemiolo-
gia residem no nível ecológico de u m a m u d a n ç a secular substancial. Temos,
ainda, de desvendar os fatores que levaram a síndrome da úlcera péptica a
crescer, e m u m primeiro momento, para, e m seguida, decrescer. Essa condi-
ção, ou c o m p l e x o de condições, atingiu u m 'pico' nos anos 50 e, de forma
não m e n o s misteriosa d o que o seu crescimento, começou, então, a declinar.
O início de seu incremento e m coortes com datas de nascimento anteriores à
virada do século XIX, com u m declínio constante e m coortes c o m datas de
nascimento posteriores a esta data. U m modelo causai inteiramente adequado
à saúde pública deve explicar a doença tanto no nível ecológico quanto e m
níveis mais diminutos e refinados de organização. Isso deve ser mantido,
ainda que a melhor explanação v e n h a a ser o c o m p o r t a m e n t o ao longo do
t e m p o das bactérias Helicobacter.

UNIVERSALISMO VERSUS ECOLOGISMO

O c a m i n h o , agora, está aberto para q u e os epidemiologistas avan-


c e m para a l é m d o típico enfoque caixa preta, atingindo os i n d i v í d u o s con-
4
siderados c o m o u m todo en masse e trabalhem - ao m e s m o t e m p o - em
profundidade n o nível m o l e c u l a r e, por extensão, n o g r u p a i . D e v e m o s nos
guiar por c o n c e p ç õ e s causais a p r o p r i a d a s , u m assunto já b a s t a n t e discuti-
d o na epidemiologia.
C o m o todas as ciências, a epidemiologia busca conceitos generalizan¬
tes de m o d o a explicar as causas das coisas. N a história da ciência, entretan-
to, é possível traçar não a p e n a s uma, m a s duas pistas conceituais. O bem-
descrito universalismo das ciências físicas contrasta c o m o ecologismo das
ciências biológicas, habitualmente relegado a segundo plano, e deve ser c o m -
plementado por ele. E m contraste c o m o universalismo, o ecologismo tema¬

4
Os autores utilizam o termo em francês (N.T.).
tiza a localização e está atento às fronteiras que limitam a possibilidade de
estabelecer generalizações acerca de sistemas biológicos, h u m a n o s e sociais.
A concepção de causalidade baseada em leis universais está absoluta-
mente disseminada nas ciências, e m b o r a existam, é claro, exceções. A m a i o -
ria dos filósofos da ciência confinou o seu empreendimento quase inteira-
m e n t e ao quadro de referência universalista. Acreditamos q u e os e p i d e m i o -
logistas, entre outros pesquisadores, v ê m sendo iludidos por interpretações
padronizadas sobre a natureza da ciência.
A b u s c a de leis universais do m u n d o material deve se defrontar com
u m paradoxo. O s menores elementos são os elementos microcósmicos inte-
rativos, cujo c o m p o r t a m e n t o é explicado por essas leis, n a m e d i d a e m que
estes são integralmente universais. Universalidade implica u m a visão do e s -
paço e t e m p o e m expansão para fora, através das fronteiras e horizontes de
nosso m u n d o e de outros, não limitada pelo acréscimo regional n e m por
características de estruturas intervenientes, c o m o planetas, continentes ou
nosso m u n d o biológico, incluindo as pessoas.
A l g u m a s leis p o d e m ser válidas para o nosso planeta, para as espécies
e para os processos evolutivos que as produziram. Todavia, acima d o nível
das moléculas, n e n h u m a entidade biológica p o d e se ajustar inteiramente às
leis universais, por causa dos contextos subjacentes a u m a dada m o l d u r a e
das interações entre níveis dentro de u m a estrutura biológica. Fato trivial é
que cada sociedade é influenciada tanto por suas circunstâncias e c o n ô m i -
cas, políticas e culturais quanto pela mistura d e pessoas, clima e topografia.
Daí decorre que o universalismo não é totalmente aplicável ao e m p r e -
endimento científico. E m epidemiologia, a pobre adaptação d o universalis-
m o à realidade h u m a n a p o d e ser melhor formulada por u m a construção con-
trastante derivada do ecologismo. O que é mais universal é m e n o s biológico
e, antes de tudo, m e n o s humano. Desta forma, quando entramos nas esferas
físicas, biológicas e sociais do m u n d o humano, necessitamos de u m conjun-
to paralelo de idéias entrelaçado à b u s c a da generalidade. Construtos ecoló-
gicos tentam lidar c o m a verdadeira complexidade do m u n d o material. N ã o
p o d e m se limitar à descrição do comportamento do m i c r o c o s m o e d o c o s m o
físico; d e v e m incluir o 'menos universal' biológico, o ainda m e n o s universal
h u m a n o e suas interações particulares.
A o propor u m paradigma imbuído d o m e s m o espírito d o ecologismo,
l a n ç a m o s m ã o e desenvolvemos u m a formulação anterior d e agente e h o s ¬
pedeiro, imersos e m u m m e i o ambiente que abrange sistemas e m múltiplos
níveis (Susser, 1973). N o s s a c o n c e p ç ã o a b r a n g e sistemas interativos. En-
tendemos p o r sistemas u m conjunto ou leque de fatores reunidos, conecta-
dos uns aos outros, e m algum m o d o coerente de relação. D e s t a forma, u m
sistema é u m a abstração que permite que u m a série de fatores correlaciona-
dos sejam descritos e m termos de u m a estrutura ou função coerente. Fala-
mos, c o m propriedade, de sistemas fisiológicos — circulatório, nervoso e re-
produtivo. O corpo h u m a n o é, e m si mesmo, u m sistema que abarca todos
esses. Sociedades abrangem sistemas muito mais complexos de relações per-
sistentes e ordenadas. O universo é u m sistema de escala muito ampla; u m a
molécula, u m sistema de escala minúscula.
C a d a sistema p o d e ser descrito e m seus próprios termos. Cada u m
deles define os limites de u m nível específico de organização e a estrutura
dentro desses limites. Sua coerência implica u m determinado grau de persis-
tência e estabilidade. Por essa razão, é possível identificar u m conjunto de
fatores q u e c o m p õ e m u m sistema. Essa estabilidade coexiste, entretanto,
c o m a capacidade de mudança. C o m o os fatores que c o m p õ e m u m sistema
se relacionam de algum modo, a mudança e atividade e m u m setor colide e
afeta outros setores.
Sistemas t a m b é m se relacionam c o m outros sistemas; n ã o existem de
forma isolada. U m a metáfora p o d e servir para iluminar essa perspectiva eco-
lógica. C o m p a r a m o s nossa formulação às caixas chinesas, u m a série de cai-
xas de mágico, cada u m a contendo u m a sucessão de caixas menores. D e s t e
m o d o , no interior de estruturas localizadas, divisamos níveis sucessivos de
organização, cada u m dos quais abarcando o nível seguinte, m a i s elementar,
todos c o m íntimas ligações entre eles.
N o interior de cada nível, u m a estrutura relativamente limitada, c o m o
u m a nação, sociedade ou comunidade p o d e ser caracterizada por relações
legítimas que estão localizadas naquela estrutura e que p o d e m ser eviden-
ciadas. Essas relações legítimas são generalizáveis e m qualquer nível especí-
fico dentro da hierarquia de escala e complexidade, m a s somente no que diz
respeito ao g r a u que elas abarcam e e m relação a outras estruturas similares,
sejam elas sociedades, cidades, comunidades locais ou indivíduos.
O paradigma representado pela metáfora das caixas chinesas poderia
ser adaptado a u m a nova eco-epidemiologia. Este p a r a d i g m a trata de rela-
ções internas a estruturas localizadas — e entre elas —, limitadas social, bioló¬
gica e topograficamente. O enfoque epidemiológico adequado é aquele que
analisa os determinantes e resultados e m diferentes níveis de organização.
Tal análise contextual seria baseada e m novos sistemas de informação, tanto
internamente quanto ao longo de diferentes níveis, de m o d o a ganhar ampli-
tude. Ela aproveitaria novas técnicas biomédicas para g a n h a r profundidade.
A ação que se seguiria a isto seria alavancada pelo nível m a i s eficaz — con-
textual ou molecular, ou a m b o s .
A metáfora das caixas chinesas não é, entretanto, a d e q u a d a a todas as
dimensões. N e s s e s níveis, existe u m a hierarquia n ã o somente d e escala m a s
t a m b é m d e complexidade, c o m múltiplas interações entre e através de dife-
rentes níveis. A caixa externa deve ser a moldura mais abrangente do meio am-
biente físico, que, por sua vez, contém sociedades e populações (o terreno da
epidemiologia), indivíduos isolados e sistemas fisiológicos individuais, teci-
dos, células e, finalmente (no âmbito da biologia), moléculas.
Para que possamos estudar os sistemas ecológicos e m profundidade,
temos ainda que utilizar os procedimentos metodológicos básicos da ciência e
limitar os campos de observação. A epidemiologia nunca pode aspirar ao redu-
cionismo definido por Freeman Dyson (1995), ou seja, o "esforço para reduzir
o m u n d o dos fenômenos físicos a u m conjunto finito de equações fundamen-
tais". Steven Weinberg denominou a isto "grande reducionismo", já que deter-
mina u m a certa visão da natureza. Os epidemiologistas necessitam conviver e
d e v e m utilizar o que Weinberg denominou c o m o "reducionismo diminuto",
que i m p õ e somente u m a estratégia de pesquisa ou programa (Weinberg, 1995).
N ã o se deve permitir, porém, que essas aproximações obscureçam a estrutura
contextual dos sistemas envolventes. Para lidar c o m u m a hierarquia de tais
sistemas, é patente a necessidade de u m novo paradigma.

ESCOLHENDO O FUTURO

E m b o r a p o s s a m ocorrer reações, temos, p o r ora, de adotar, desenvol-


v e r e aplicar este tipo de paradigma à epidemiologia. O que apresentamos
aqui nada mais é do que u m quadro básico de referência. N a m e d i d a e m q u e
este p a r a d i g m a embrionário for testado n o campo, n ã o resta dúvida de q u e
suas simplificações e inadequações emergirão e algumas de suas deficiências
serão reparadas.
O p a r a d i g m a ver-se-á compelido ao desenvolvimento e à m u d a n ç a , à
m e d i d a que os constrangimentos do p e n s a m e n t o ora existentes sejam que-
brados, e q u e p o s s a m o s dele esperar que confira u m a n o v a vitalidade à epi¬
demologia. Tal p a r a d i g m a exigirá u m i m e n s o arsenal de m é d o d o s sofistica-
dos — apropriados, adaptados e criados — q u e capacitem os epidemiologistas
a testarem m o d e l o s e m níveis que v ã o do molecular ao social.
A esta altura, a tarefa parecerá aterrorizante, e m e s m o s e m perspecti-
va a l g u m a , p a r a muitos d e nós. Poucos epidemiologistas estão e q u i p a d o s
para levar adiante esta proposta. N o início deste século, entretanto, Ronald
Ross foi o pioneiro de u m a proposta análoga (Ross, 1910). E m 1902, ele
recebeu o P r ê m i o N o b e l por estabelecer, após u m meticuloso trabalho c o m
o microscópio na década de 1890, que os mosquitos transmitiam a malária.
D e p o i s disso, passou a desenvolver u m a proposta epidemiológica v i s a n d o a
erradicar a doença. A epidemiologia e u m a inclinação matemática o levaram
a u m a m o d e l a g e m multivariada, de m o d o a tornar possível a d e t e r m i n a ç ã o
da eficácia d e intervenções de diferentes naturezas.
Extrairemos lições adicionais dos precedentes históricos para justifi-
car o n o s s o otimismo. U m estudo da bibliografia referente a o início da era
das d o e n ç a s crônicas (Susser, 1985) proporciona u m a experiência direta dos
desenhos elementares e dos instrumentos analíticos e m uso n o início daque-
la era. O s princípios metodológicos relativos aos desenhos apenas d a v a m
seus primeiros passos e a análise multivariada era quase inacessível. O con-
traste c o m os poderosos d e s e n h o s d e pesquisa e c o m as sofisticadas análises
dos anos posteriores àquela era dificilmente poderia ser maior. M u i t o s destes
precedentes nos fornecem razões para que acreditemos q u e as ferramentas
analíticas necessárias estão ao nosso alcance, desde q u e a atenção de epide-
miologistas esteja focalizada no seu desenvolvimento e uso.
N e s t e m o m e n t o , deve-se reconhecer que u m p a r a d i g m a molecular to-
m a d o e m si m e s m o é algo i m e n s a m e n t e atrativo, por seu p o d e r explanatório.
S e m q u e d e s e n v o l v a m o s e m contraposição u m esforço consciente, este pa-
radigma irá, c o m toda certeza, d o m i n a r a epidemiologia, assim c o m o a teoria
dos g e r m e s o fez no seu tempo. N e s t e aspecto, c o m sacrifício da amplitude
conceituai e analítica, a epidemiologia poderia n o v a m e n t e ser reduzida a u m
r a m o auxiliar da investigação de laboratório e o veio principal d e nossa dis¬
ciplina poderia se perder frente à ciência criativa. U m a força e m contraposi-
ção capaz de restaurar a dimensão da saúde pública para a epidemiologia —
pode resultar de u m a versão madura do p a r a d i g m a das caixas chinesas.
D e v e m o s , também, nos manter atentos com relação a outro paradig-
m a emergente. A combinação de sistemas de informação e análises de siste-
m a s p o d e igualmente conduzir a u m paradigma de sistemas, c o m seus pró-
prios atrativos para os epidemiologistas c o m inclinação matemática. M a n -
tendo-se isolado, este paradigma sacrificaria a profundidade biológica e o
endereçamento imediato da disciplina para as questões da saúde. Para que
evitemos a constrição, a m b o s os temas emergentes, assim c o m o a caixa pre-
ta de nossa era, precisam ser subsumidos a u m paradigma m a i s abrangente
c o m o o das caixas chinesas, aqui proposto para u m a eco-epidemiologia.
U m p a r a d i g m a científico convincente não é, contudo, suficiente para
ancorar os epidemiologistas à saúde pública. Portanto, a l g u é m poderia per-
guntar: o q u e mais seria necessário para tornar efetivo este vínculo, para
além d o simples evangelismo dirigido a u m a epidemiologia inviolavelmente
presa à saúde pública?
D e saída, u m programa prático deve ser planejado de m o d o a garantir
que, no curso de sua educação, os epidemiologistas sejam socializados de
forma que se mantenha viva a idéia de aprimorar a saúde pública c o m o valor
primário. Os epidemiologistas d e v e m manter rigor científico, m a s t a m b é m ,
em alguma medida, ser profissionais n o sentido tradicional e m relação à m e -
dicina, à lei e ao clero. Isto é, a sociedade lhes concede u m a função privilegi-
ada e a u t ô n o m a , c o m base e m u m treinamento especial. Esta autonomia
acarreta obrigações éticas recíprocas e primárias de servir aos indivíduos ou
à sociedade.
Para p r e s e r v a r tal ética, temos q u e fazer escolhas e agir d e a c o r d o
c o m ela. O p o d e r do p r o c e s s o socializante no sentido de i m b u i r v a l o r e s
está b e m d o c u m e n t a d o no trabalho sobre e d u c a ç ã o m é d i c a , p r o t a g o n i z a -
d o por R o b e r t M e r t o n e seus colegas (Merton, R e a d e r & K e n d a l l , 1957) e
e m m u i t o d o q u e se seguiu a eles. A este respeito, a e p i d e m i o l o g i a e a
saúde p ú b l i c a v ê e m - s e às voltas c o m a m b i g ü i d a d e s de papel e status. Como
enfatizado acima, a função da saúde pública tem sido a de servir p o p u l a -
ç õ e s e, i n f o r m a d a p o r noções de e q ü i d a d e social, a de prevenir e controlar
d o e n ç a s n e s s a s p o p u l a ç õ e s . A s origens históricas p r e d o m i n a n t e s — se não
exclusivas — da epidemiologia e n c o n t r a m - s e na medicina. Por milênios, a
função m é d i c a , guardada c o m o relíquia e m ética e ensinamento, tem sido
servir os indivíduos doentes.
N e s t e século, a epidemiologia e a saúde pública têm, freqüentemente,
definhado e m u m ambiente m é d i c o que, quase invariavelmente, prioriza o
cuidado individual de pessoas doentes. E m conseqüência, as escolas autô-
n o m a s de saúde pública, entre outras, têm pela frente u m papel crucial na
socialização dos profissionais de saúde.
A diversificação das profissões n o c a m p o da saúde pública resultou
e m ampliação da ambigüidade de papéis de seus praticantes. A l é m dos dou-
tores e sanitaristas que constituíam anteriormente sua vigas-mestras, o cor-
p o de profissionais da saúde pública abrange, hoje, epidemiologistas sem treina-
m e n t o médico, estatísticos, economistas, cientistas sociais, administradores,
especialistas e m organização e similares. Esta diversificação possui força centrí-
fuga. Para imbuir estes diferentes g r u p o s dos valores da saúde pública, as
escolas de saúde pública terão de dar o devido peso ao processo de socializa-
ção de seus estudantes frente a valores comuns.
A socialização d e estudantes e m saúde pública exigirá a indução cons-
ciente mediante o aprendizado de suas tradições e história. Eles precisarão
ter contato c o m professores e profissionais que entendam e incorporem os
valores da saúde pública. Terão necessidade de adquirir experiência e m si-
tuações comunitárias tão vividas e reveladoras q u a n t o as propiciadas aos
estudantes médicos por clínicos à cabeceira do leito. Eles terão de compre-
ender o sofrimento e o desgaste das comunidades despojadas ou desorienta-
das. D e reconhecer a verdadeira escala dos efeitos que p o u c o s pontos per-
centuais de u m indicador confiável t ê m e m relação à saúde d e u m a nação.
S e m u m a intensa socialização e aprendizado, d e v e m o s admitir, pelo curso
natural dos acontecimentos e do estreito foco g e r a d o pela especialização,
que os vínculos entre os valores da saúde pública e suas disciplinas especi-
alizadas v ã o se dissolver diante dos nossos olhos. A epidemiologia é, então,
u m a das disciplinas que corre maior risco.
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TEORIA DO CAOS Ε SISTEMAS

COMPLEXOS EM EPIDEMIOLOGIA*

Pierre Philippe

INTRODUÇÃO

Principiamos com o aforismo de J a c q u e s M o n o d — acaso ou necessida-


de. Porém, v a m o s alterá-lo um pouco para 'acaso e necessidade'. Q u a n d o
lidamos c o m o caos, ambos estão presentes.
O acaso é habitualmente equiparado à aleatoriedade; a necessi-
d a d e ao d e t e r m i n i s m o . A s próprias n o ç õ e s de a l e a t o r i e d a d e e d e t e r m i -
n i s m o n ã o são novas. Elas n o s l e v a m de volta a L a p l a c e , no s é c u l o X V I I I .
Para ele, n o s s o c o n h e c i m e n t o d o m u n d o tinha c o m o b a s e o d e t e r m i n i s -
mo, ou seja, a p r e d i ç ã o d o q u e está p a r a a c o n t e c e r será o b t i d a s e m pro-
b l e m a s q u a n d o c h e g a r m o s a c o n h e c e r as m u i t a s variáveis q u e c o n t r o l a m
o universo. Portanto, defendia que a i n d e t e r m i n a ç ã o habitual q u e assola o
c o n h e c i m e n t o é a p e n a s temporária.

Tradução: Claudete Daflon dos Santos & Francisco Inácio Bastos


O u t r o paradigma relacionado ao de Laplace é o da linearidade newto¬
niana. N a mecânica de N e w t o n , se p o d e saber o resultado de qualquer siste-
ma, na medida e m que as condições iniciais são especificadas e conhece-se
u m a lei de movimento.
Os dois paradigmas estão bastante cristalizados no nosso trabalho epide¬
miológico cotidiano. A regressão múltipla é um exemplo disso. Acreditamos, de
fato, que acrescentar cada vez mais variáveis irá nos ajudar a explicar melhor a
variância dos resultados, esperando-se que a relação da exposição para com o
resultado seja linear. Como estabeleciam as formulações de Newton, pode-se
dizer hoje: dê-me uma exposição e uma relação linear e estarei apto a predizer o
resultado. E, na concepção de Laplace, a predição será tão mais acurada quanto
maior o número de fatores de risco levados em consideração. Nossa prática epi-
demiológica é, portanto, fundamentalmente newtoniana ou laplaceana. Hoje em
dia, contudo, também abandonamos o determinismo e o substituímos pela esto¬
casticidade, pois, evidentemente, embora não sejam lineares, as correlações estão
corporificadas na aleatoriedade. Porém, visto de uma perspectiva mais ampla, nosso
paradigma corrente permanece basicamente linear.
A teoria do caos traz u m n o v o ponto de vista. T e m c o m o base a se-
guinte premissa: o determinismo é real, mas, quando acoplado à não-lineari¬
d a d e , p o d e dar l u g a r a variações similares ao acaso. A aleatoriedade está
implícita nas não-linearidades de u m sistema determinístico. Trata-se de u m a
inesperada mistura das posições históricas já mencionadas. O caos t a m b é m
significa que a aleatoriedade é inevitável pelo fato de estar constituída de
d e t e r m i n i s m o , estabelecendo, assim, u m paradoxo. A aleatoriedade não é
vista c o m o algo de que possamos nos livrar pela adição de novas variáveis.
Pelo contrário, o caos determinístico necessita apenas de u m a s poucas vari-
áveis para introduzir u m a variação similar ao acaso.
Daí emerge um novo paradigma, segundo o qual a aleatoriedade — que
costumávamos declarar temporária — revela-se, antes, intrínseca. Com base nele,
constata-se que sua origem pode não se dever às variáveis desconhecidas, mas
sim ao determinismo estrutural não-linear. Se for assim, então o paradigma da
1
linearidade e os métodos nele fundamentados têm de ser questionados.

1
Para um resumo detalhado e acessível da teoria do caos aplicada à epidemiologia, ver Philippe, P.
Chaos, Population Biology and Epidemiology: Some Research Implications. Human Biology, 65:525-
546, 1993.
U m a aplicação da teoria do caos ao m o d e l o de Sartwell de período de
i n c u b a ç ã o de doenças mostrou resultados consistentes. A distribuição do
período de incubação de muitas doenças adaptou-se b e m a u m a distribuição
lognormal. Esta última distribuição revelou-se, incidentalmente, c a p a z de
resistir a muitos fatores de confusão e erros de medição.
Essa consistência é u m a peculiaridade inesperada, que ainda não foi
objeto de muitas pesquisas. C o m o alguém p o d e explicar que a doença possa
desenvolver-se livremente, sem influência do m e i o ambiente? U m a v e z ini-
ciado, o processo patológico se desenrola c o m o se as condições iniciais ou
contextuais não tivessem impacto algum sobre a progressão da doença.
Isso nos faz lembrar, em primeiro lugar, do determinismo. E m segui-
da, a estabilidade do processo patológico ao longo do t e m p o sugere que as
condições iniciais não estão relacionadas à manifestação; isto é, o t e m p o de
aparecimento da doença independe dos fatores contextuais relativos às con-
dições basais. Essa última característica t a m b é m se assemelha às variações
similares ao acaso, esperadas sob regimes caóticos. Por conseguinte, a ques-
tão é saber se a teoria do caos pode ser útil para o esclarecimento da dinâmi-
2
ca dos processos patológicos durante o período de latência.

PRINCÍPIOS DE MODELAGEM EM EPIDEMIOLOGIA

N a história recente da epidemiologia, há quatro fases — ou tipos —


de m o d e l a g e m . Inicialmente, existe a m o d e l a g e m linear estocástica, corpori¬
ficada na regressão múltipla, na qual todos os fatores de risco são intercorre¬
lacionados a efeitos diretos sobre o resultado. Este tipo de m o d e l a g e m inspi-
ra-se diretamente no paradigma da mecânica newtoniana da causalidade li-
near. M u d a n ç a s no resultado estão diretamente relacionadas à alteração na
quantidade de energia absorvida (input). Este tipo de m o d e l a g e m relaciona-
se t a m b é m ao paradigma laplaceano d o século XVIII, segundo o qual a falta
de ajuste (lack-of-fit) do m o d e l o é resultado da indeterminação temporária no

2
Para uma aplicação epidemiológica da modelagem de caos determinístico ao desenvolvimento de
doenças individuais, ver Philippe, P. Sartwell's incubation period model revisited in the light of
dynamic modeling. Journal of Clinical Epidemiology, 47:419-433,1994.
âmbito do nosso conhecimento sobre os fatores causais. Para a m b o s os para-
digmas, o princípio da superposição é de fundamental importância. Utiliza-
do cotidianamente na epidemiologia quando se a g r u p a m objetos sob o pres-
suposto de independência, afirma que o conhecimento de um sistema com-
pleto é igual à soma do conhecimento referente a seus subsistemas. A s con-
dições da eventual interação na regressão em que a superposição não é per-
feita são utilizadas basicamente para forçar o ajuste à linearidade. N ã o apre-
sentam, neste caso, relação com a introdução no cálculo das não-linearida¬
des dinâmicas.
E m segundo lugar, existe a análise linear estocástica expandida, tam-
b é m d e n o m i n a d a m o d e l a g e m da equação estrutural, em que efeitos diretos e
indiretos são alcançados por intermédio de modelos complicados. A m o d e -
lagem da análise de percurso ( p a t h analysis) é um exemplo. Este segundo tipo
de m o d e l a g e m não é mais do que uma superposição de regressões lineares,
não há diferença fundamental em relação à regressão múltipla.
As estratégias das duas modelagens anteriores estabelecem u m a 'gra-
de estática' nas relações entre variáveis, ainda que a relação dos fatores de
risco com os efeitos resulte de processos dinamicamente interativos. Estes
procedimentos p o d e m deixar escapar, portanto, relações não-lineares que se
s o m a m ao l o n g o do tempo e que p o d e m determinar vieses nas estimativas
dos efeitos. Conseqüentemente, alternativas para estes esforços de modela-
3
gem que se assemelham a ' e s p a n t a l h o s ' tentarão incorporar aspectos da di-
nâmica e dos feedbacks onipresentes nos sistemas globais.
J á na m o d e l a g e m dinâmica não-linear determinista, levam-se em con-
sideração as interações e produzem-se comportamentos dinâmicos mais ade-
quados (no que diz respeito aos elementos perceptíveis) do que as outras
análises lineares mencionadas.
O m o d e l o SEIR é um exemplo desta estratégia. Nele, quatro c o m p a r ¬
timentos são objeto de interesse: pessoas Suscetíveis, Expostas, Infectadas
e em Recuperação da doença. Aqui, as interações conduzem ao tipo de dinâ-
mica. Pode-se notar, também, que este m é t o d o consiste em abstrair subsis-
temas bem definidos da dinâmica global. E m situações complexas, quando
os subsistemas são restituídos ao sistema global, p o d e m ser produzidos re-

3
N o o r i g i n a l , 'strawman' modeling efforts (Ν. T.).
sultados que n ã o se c o a d u n a m c o m as expectativas da análise desenvolvida
e m separado. Portanto, este tipo de m o d e l a g e m t a m b é m p o d e ser c h a m a d o
de reducionista. E m b o r a a principal v a n t a g e m do m o d e l o seja incorporar
elementos da d i n â m i c a inerentes a qualquer sistema real, esta a b o r d a g e m
p o d e ajustar situações dinâmicas não-lineares simples.

SISTEMAS ADAPTATIVOS COMPLEXOS

O que acontece se o sistema é tão complexo que u m a infinidade de


equações diferenciais tem de ser elaborada e resolvida? O s físicos, ao se
defrontarem c o m este tipo de problema, desistiram do projeto de compreen-
der e m profundidade o comportamento das moléculas, concluindo que seria
preferível estudar seu c o m p o r t a m e n t o probabilístico.
Há, ainda, u m quarto estágio nas tentativas de m o d e l a g e m que procu-
ra dar conta de situações de dimensionalidade muito elevada, isto é, aquelas
que apresentam u m n ú m e r o elevado de graus de liberdade, implicando si-
tuações, q u e p o d e m se revelar, portanto, não-redutíveis à m o d e l a g e m não-
linear determinista per si. Esta questão p o d e ser exemplificada pela análise
do risco para doença cardíaca, reconhecidamente relacionada a mais de 200
fatores de risco diferentes. Este tipo de m o d e l a g e m , que poderia requerer o
auxílio da m o d e l a g e m fractal estocástica ou da m o d e l a g e m dos sistemas adap-
tativos c o m p l e x o s , ignora intencionalmente os detalhes dos subprocessos
referentes à doença individual, enfatizando o invólucro (caixa-preta) destes
subprocessos-processos.
U m a tentativa de examinar o interior da caixa preta de u m sistema
adaptativo c o m p l e x o deverá encontrá-lo decomposto e m três seções. A pri-
meira é representada pela entrada de energia no sistema, a do m e i o é a caixa
preta; a outra é o m u n d o externo, o do fenótipo clínico. A entrada de energia
ocorre sob a forma de genes ou fatores de risco, p o d e n d o contribuir para a
alteração dos parâmetros de controle do sistema. Pode, t a m b é m , impelir o
sistema para longe d o equilíbrio e para a desordem, p r o v e n d o - o do potencial
necessário à m u d a n ç a . Ultrapassar o limiar crítico p o d e provocar u m a transi-
ção de fase. A subordinação de determinadas funções utilitárias irá, poste-
riormente, possibilitar o estabelecimento de u m a nova ordem. Daí em diante,
c o m o o sistema passa a almejar u m n o v o tipo de estabilidade, o funciona-
m e n t o ocorre e m u m nível diverso; suas propriedades emergentes visam a
uma solução original para o stress (ou variação) a que ele foi submetido. O novo
estado é o resultado da superação de uma etapa da qual o sistema, para a m a i o -
ria das finalidades práticas, não p ô d e se recuperar.
O s sistemas adaptativos complexos (auto-organizados) apresentam três
características:
• o elevado aporte de energia i m p u l s i o n a o sistema para u m estado de
c o o p e r a ç ã o e n t r e e l e m e n t o s d i s t a n c i a d o da s i m p l e s i n d e p e n d ê n c i a ,
criando, assim, u m n o v o padrão de elementos macroscópicos;
• a d e s o r d e m microscópica determinista do sistema de elevada d i m e n s ã o
se reduz a p o u c o s padrões regulares estocásticos de baixa dimensionali¬
dade (low dimensional) na escala macroscópica; e
• o reducionismo metodológico não tem lugar nos sistemas auto-organiza¬
dos. N ã o há forma de reconstruir o sistema c o m base nos elementos que
constituem sua espinha dorsal.
E m relação a esse último ponto, vale dizer q u e as p r o p r i e d a d e s emer-
g e n t e s são alheias aos e l e m e n t o s m i c r o s c ó p i c o s do sistema. Isto é v e r d a -
de, apesar de o resultado m a c r o s c ó p i c o ter o r i g e m na base m i c r o s c ó p i c a e
realimentá-la.

UMA NOVA METÁFORA DE SAÚDE Ε DOENÇA

Para c o m p r e e n d e r melhor os sistemas complexos, gostaríamos de pro-


por u m a metáfora. U m sistema auto-organizado p o d e ser visto c o m o u m
4
'conjunto' de Cantor, u m a representação geométrica.
Para gerar um 'conjunto' de Cantor, traça-se primeiro u m segmento de
reta (linha) do qual se extrai o terço médio. O processo é repetido várias
vezes, até que se obtém u m a série de pontos, dispostos em u m a forma resul¬

4
Referente ao matemático alemão do século XIX Georg Cantor, criador da teoria dos números
ordinais transfinitos (Ν. T.).
tante do puro acaso. Alguns d e n o m i n a m esta estrutura de poeira de Cantor
(Cantor dust). Obtém-se então uma estrutura hierárquica auto-similar. Isto é,
estrutura dentro de estrutura na ausência de u m a escala típica, algo c o m o a
lei da gravidade de N e w t o n , que é verdadeira ao longo de todas as escalas.
Neste ponto, se alguém interligar os segmentos daí resultantes, obterá
algo que se assemelha à filogenia, na qual todas as escalas, da m e n o r à maior,
encontram-se interligadas. Este m o d e l o torna-se controvertido ao ser con-
frontado c o m u m sistema biológico que constitui u m a hierarquia auto-simi-
lar, dotada de u m a infinidade de escalas, dos genes ao fenótipo. O que suge-
rimos é que o 'conjunto' de Cantor constitui a espinha dorsal de u m processo
biológico dinâmico, isto é, dotado de estruturas e funções auto-similares,
a m p a r a d o e m u m a infinitude de escalas da organização biológica.
U m a metáfora mais apropriada poderia ser a de uma pirâmide, cujos blo-
cos de construção estão em constante rearranjo. Ou, como escreveu alguém,
trata-se de caminhar por um labirinto cujas paredes se rearrumam a cada passo.
A saúde, neste contexto, decorre do fato de que, ao interagir c o m ex-
posições ambientais, todas as escalas de organização da vida são instadas
a colaborar, contribuindo, portanto, de m o d o eficiente, para o processo bio-
lógico e m evolução, sem que haja qualquer expectativa de retorno em senti-
do inverso. Isto nos faz lembrar da m á x i m a de Heráclito: n i n g u é m pode se
banhar duas vezes no m e s m o rio. Isto é, m u d a n ç a e identidade encontram-
se, ambas, incorporadas em u m m e s m o modelo.
A doença, e m contrapartida, decorre do fato de que relações particula-
res entre as escalas de organização e dentro delas tenham sido manipuladas,
episodicamente, no curso do tempo, que as relações cruciais t e n h a m sido
alteradas, e m e s m o invertidas, e que a l g u m a s vias de d e s d o b r a m e n t o te-
n h a m se tornado becos sem saída. A presença de subprocessos patológicos
evitará, portanto, a suavidade e a plasticidade, aspectos que c o s t u m a m ca-
racterizar o processo de saúde. Quanto mais elevada na hierarquia situa-se a
ruptura, mais relevante é a adaptação posta em perigo pela exposição a fato-
res ambientais nocivos.
E m síntese, a saúde é um complexo labirinto, dotado de uma infinidade de
caminhos, amplos e estreitos, que conduzem ao ar livre. A doença pode significar
que alguns dos caminhos estão obstruídos, impedindo, assim, que se encontre uma
solução apropriada diante das exigências necessárias à mudança. Conseqüente-
mente, apenas poucos caminhos são deixados em aberto, e isto é menos que ótimo.
MODELO ESTOCÁSTICO PARA
SISTEMAS ADAPTATIVOS COMPLEXOS

C o m o se pode reconhecer quantitativamente um sistema c o m p l e x o ?


Por intermédio da m o d e l a g e m — mas não de qualquer tipo. A m o d e l a g e m
estocástica leva em consideração as não-linearidades do sistema dinâmico (e
seu caráter de escala não-usual); sistemas, nos quais é violado o princípio de
superposição e independência das unidades básicas. Mais uma vez, as expe-
riências físicas mostraram que a dinâmica extremamente complexa na forma
de dados de freqüência de séries temporais, ou de distribuições intervalares
- c o m o períodos de espera, períodos de incubação, duração da hospitaliza¬
ção etc. — p o d e m ser representados por leis de força inversa. A lei de força
descreve sistemas nos quais a competição ocorre entre a o r d e m ('randomiza¬
çâo' correlata) c a desordem ('randomização' completa) em todas as escalas.
Pode ser comparada ao invólucro da dinâmica complexa do sistema.
Pode-se, t a m b é m , calcular a dimensão de auto-similaridade das for-
mas geométricas euclidianas (e elaboradas pelo h o m e m ) , com inclinações da
lei de força. Dadas uma forma geométrica — uma linha, uma superfície ou
um cubo - e sua representação reduzida, pode-se calcular a dimensão topo-
lógica por meio da função da lei de força. O segmento de linha, quadrado e
o cubo são sempre três vezes menores do que suas estruturas corresponden-
tes mais ampliadas. O cálculo da dimensão topológica, efetuado p e l a incli-
n a ç ã o da lei de força, p r o d u z r e s u l t a d o s b e m c o n h e c i d o s , nos q u a i s a
linha o c u p a um e s p a ç o u n i d i m e n s i o n a l , a superfície um e s p a ç o b i d i m e n -
sional e o v o l u m e u m e s p a ç o t r i d i m e n s i o n a l . Ε i m p o r t a n t e d e s t a c a r que
a d i m e n s ã o é r e p r e s e n t a d a aqui por um n ú m e r o inteiro, p o r q u e as formas
g e o m é t r i c a s são r e p r e s e n t a ç õ e s m e n t a i s perfeitas e n ã o formas reais. N o
m u n d o c o n c r e t o , os objetos têm d i m e n s õ e s fracionárias, isto é, a p o r ç ã o
de e s p a ç o q u e o c u p a m é m e n o r do q u e 3, m e n o r do que 2, ou m e n o r do
q u e 1. Por e x e m p l o , o ' c o n j u n t o ' de C a n t o r não é u m a linha, é m e n o r do
que u m a linha (sua d i m e n s ã o fractal é 0,63). N ó s , seres h u m a n o s , não
o c u p a m o s o e s p a ç o t r i d i m e n s i o n a l c o m o o senso c o m u m p o d e r i a sugerir;
o c u p a m o s , na verdade, um espaço dimensional equivalente a 2,25. S o m o s ,
portanto, pouco mais do que uma superfície. Formas com dimensões fracio-
nárias são onipresentes na natureza. D i z e m o s que são objetos fractals.
A s dimensões fractais p o d e m ser calculadas para fenômenos que não
g u a r d a m relação muito estreita c o m as formas geométricas. Elas represen-
tam, portanto, sistemas sociológicos, psicológicos, ecológicos e biológicos
auto-organizados. Ε o caso das distribuições de freqüência dos sinais elétri-
cos no eletrocardiograma, da distribuição da intensidade dos terremotos, das
distribuições de renda nas diferentes sociedades, do fluxo do rio Nilo, do uso
de palavras de diversas extensões, das flutuações da Bolsa, d a árvore brôn¬
quica, da duração das hospitalizações, e — pode-se presumir — dos vários
parâmetros biológicos que caracterizam os processos de saúde e doença.

SIGNIFICADO BIOLÓGICO DOS FRACTAIS

Os processos biológicos são presumivelmente fractais. E m certo sen-


tido, fractais são invólucros que representam globalmente p r o c e s s o s dinâmi-
cos altamente complexos. U m processo biológico saudável permite:
• sintonia fina das respostas às exposições ambientais (sintonia fina signi-
ficando o ajuste à maioria dos fatores de risco m e s m o q u a n d o o ser sus-
cetível os desafia);
• u m e s p a ç o - t a m p ã o necessário ao m a n e j o de p r o c e s s o s p r e d i s p o s t o s a
erro (erros são previsíveis e m sistemas adaptativos c o m p l e x o s q u e , às
vezes, p o d e m funcionar no limite da n o r m a l i d a d e ) ;
• a adaptação (mesmo quando o sistema tem u m de seus c o m p o n e n t e s
avariados, ele n ã o se despedaça; outros c o m p o n e n t e s são c h a m a d o s a
contribuir, para ajudar a manter tudo funcionando c o m o antes);
• a aprendizagem, de m o d o a que a história passada, a genética, o ambiente
ou qualquer outro elemento seja utilizado eficientemente no esboço da
resposta mais adequada ao ambiente; e
• encontrar soluções originais para desafios inesperados (novas soluções são
possibilitadas pela dispersão ilimitada da função da lei de força).
A doença, neste contexto, representa qualquer impulso experimenta-
do pelos elementos do sistema que c o n s e g u e desestabilizar o sistema em
algum p o n t o de sua escala organizacional. Isto contribuirá para induzir transi¬
ções de fase, cujos efeitos atravessam transversalmente muitas escalas da
organização, passando ao largo de qualquer possibilidade de sintonia fina da
resposta.
U m novo tipo de equilíbrio emerge. Se é verdade que muitas vezes se
obtém um rearranjo substancial da dinâmica do equilíbrio, podem emergir
dinâmicas completamente 'nocauteadas' (boxed-in), atingindo-se, conseqüen-
temente, o estágio de disfunção clínica. O desafio é discriminar os processos
patológicos dos saudáveis. Isto talvez possa ser feito c o m a dimensão fractal
da lei de força.
De um p o n t o de vista prático, a doença é a expressão de um colapso
do processo fractal e ocorre quando a resposta adaptativa c o m e ç a a se m o s -
trar limitada. O o r g a n i s m o não pode mais c o n s e r v a r a homeostase. Este
m o m e n t o não coincide apenas com o diagnóstico clínico, p o d e n d o ser reco-
nhecido por u m a resposta descontínua, qualitativa, aos desafios ambientais,
anterior às manifestações clínicas. A resposta não é mais sintonizada de manei-
ra fina e se estabelece um estado de 'trancamento'. Em última instância, evolui-
se segundo uma nova dinâmica, que corresponde a um novo ponto de equilíbrio.
Daí em diante, o desafio será tanto estabelecer como permitir que os parâmetros
de controle retornem a um estado prévio mais saudável. Essa tarefa talvez
possa ser levada a cabo com base em intervenções de sintonia fina.
Finalizamos com duas predições, uma de natureza teórica e outra prática:
• a teoria dos sistemas complexos adaptativos constitui uma metateoria da
criação de informações, que vai se mostrar inestimável em futuros esfor-
ços de pesquisa etiológica; e
• a teoria dos sistemas complexos adaptativos prognostica que o potencial
de padrões e tipos de doença, tanto no nível individual quanto no da
população, é surpreendentemente maior do que se pensa.

CONCLUSÃO

A aleatoriedade é equiparada à imprevisibilidade. A aleatoriedade é


usualmente explicada por uma infinidade de fatores independentes de varia-
ção e que o pesquisador não pode dominar. Esse p o n t o de vista remete ao
paradigma linear da causação e, habitualmente, dá a entender que a aleatorie¬
dade e a impresivilibilidade são temporárias, isto é, dependem do estado cor-
rente do conhecimento e das técnicas. Essa visão laplaceana da causação está
incorporada à modelagem estocástica clássica. A mudança de paradigma, an-
tes, encara a imprevisibilidade como algo inescapável, isto é, haveria u m limite
intrínseco ao conhecimento. A descoberta de sistemas dinâmicos não-lineares,
com input de energia suficientemente alto para induzir caos, constitui a base do
novo paradigma. Isso porque o caos determinístico de dimensionalidade limi-
tada pode engendrar, com base em si mesmo, u m a variação similar ao acaso. A
sensibilidade às condições iniciais pode, a longo prazo, compreender resulta-
dos sem nenhuma relação óbvia com os inputs. Esse é o efeito Poincaré (ou
'efeito borboleta'), que ilustra como essa mecânica não-linear encontra-se em
5
variância com nossos hábitos usuais de pensamento linear.
Repetir o comportamento de simples equações diferenciais (por exem-
plo, logística) p o d e ajudar a entender as tendências da mudança de paradig-
ma. U m sistema simples não-linear dinâmico, que evolui por m e i o de etapas
discretas (por exemplo, u m a série temporal de infecções) p o d e atravessar
vários tipos de dinâmica, entre as quais o estado estável, o ciclo limite e o
regime caótico. A dinâmica não-linear de u m processo p o d e ser reconstruída
por meio de u m a pletora de técnicas, sendo as mais básicas a análise espec-
tral e os atratores de espaço de fase. Demonstrou-se que a m o d e l a g e m dinâ-
mica não-linear de processos temporais pelo sistema de e q u a ç ã o diferencial
S E I R pode, c o m certas limitações, adequar-se a séries temporais de proces-
sos infecciosos reais tais c o m o os da varicela e sarampo. Foi igualmente refe-
rido q u e a consistência do m o d e l o de Sartwell, que se acreditou, por muito
tempo, resistir a qualquer interpretação linear, p o d e ser explicado por pro-
cessos patológicos caóticos individuais.

5
O autor usa a expressão 'is at variance'áe difícil tradução em nossa língua. Optamos por traduzir no
sentido literal, ao invés de expressões habituais como "está em dissonância", que correspondem ao
português corrente, mas não conservam a estranheza da construção original (N.R.T.).
METÁFORAS PARA U M A

EPIDEMIOLOGIA MESTIÇA

Luis David Castiel

Nada confere mais sentido do que mudar de sentido.

Michel Serres

1
P a l o m a r é u m " h o m e m nervoso que vive n u m m u n d o frenético e con-
g e s t i o n a d o " (Calvino, 1994:8). Ele está de pé e m frente a o m a r e quer fazer
a "leitura de u m a onda". Para isto, procura, e m sua observação, isolar, sepa-
rar, u m a onda das que lhe seguem. M a s seu intento se m o s t r a b e m mais
complicado, pois percebe que

não se pode observar uma onda sem levar em conta os aspectos complexos que concorrem para
formá-la e aqueles também complexos a que essa dá ensejo. Tais aspectos variam continua-
mente, decorrendo daí que cada onda é diferente de outra onda; mas, da mesma maneira é
verdade que cada onda é igual a outra onda mesmo quando não imediatamente contígua ou
sucessiva; enfim são formas e seqüências que se repetem, ainda que distribuídas de modo
irregular no espaço e no tempo (...). (Calvino, 1994:8)

1
Personagem de ítalo Calvino do livro Palomar (Calvino, 1994).
Então, pensa e m u m a estratégia: limitar seu c a m p o de o b s e r v a ç ã o e
demarcar u m a área de dez metros de água e dez metros de areia p a r a inven-
tariar os fluxos das ondas que ali o c o r r e m em u m dado período de tempo.
Mas as cristas das ondas que se a p r o x i m a m b l o q u e i a m sua v i s ã o d o que
sucede mais atrás, obrigando-o a rever sua área de observação.
A i n d a assim, acredita ser possível alcançar seu objetivo: "observar tudo o
que poderia ver de seu ponto de observação", entretanto, "sempre ocorre algu-
m a coisa que não tinha levado e m c o n t a " (Calvino, 1 9 9 4 : 9 ) . Por fim, diante
de outras dificuldades que não cessam de aparecer, desiste.
Se Palomar tivesse condições para raciocinar epidemiologicamente, suas
dificuldades talvez fossem contornadas. Seu objeto de observação seria u m a
'população' de ondas. Assim, poderia traçar suas características, atributos, pro-
priedades correspondentes e respectivas conseqüências da exposição a ele-
mentos climáticos, meteorológicos ou à ação humana. M a s , para tal, seria ne-
cessário m u d a r seu p o n t o de observação. Deveria alçar-se, de preferência
munido de instrumentos óticos/fotográficos (ou, então, teleguiá-los), acima
das ondas (em u m balão, por exemplo) e observar determinado recorte do
litoral. Desta forma, se a distância do solo fosse suficientemente grande (e não
houvesse perturbações — excesso de nuvens, instrumentos descalibrados, ins-
tabilidade do balão), as ondas até pareceriam 'paradas', permitindo, assim,
melhor apreensão do objeto de estudo. O problema talvez fosse generalizar os
achados para outras praias ou, então, fazer afirmações específicas para deter-
minada onda. Ou, ainda, levar e m conta efeitos de inesperadas alterações das
correntes marítimas (não é incomum o fato de o fenômeno El Nino manifes-
tar-se de modos variados). M a s talvez fosse exigir demais de u m a abordagem
epidemiológica litorânea...

INTRODUÇÃO

O título deste trabalho está intencionalmente calcado no s o b e r b o en-


saio poético do filósofo francês Michel Serres, Le Tiers lnstruit ( 1 9 9 1 ) . Tal
expressão, rica em possibilidades de significação, não foi b e m traduzida e m
língua portuguesa. Tiers significa 'mestiço', 'misturado'; 'outro', 'estranho',
' t e r c e i r o ' , 'terço'. N a edição brasileira, a obra se c h a m a Filosofia Mestiça.
Tiers-Instruit p o d e significar 'mestiço instruído', c o m o indica a tradução para
o português, ou então, 'terceiro instruído', c o m o aparece na edição brasileira
de outra obra de Serres (1990), O Contrato Natural.
A l é m disto, Serres faz t a m b é m u m jogo de palavras, no qual introduz a
crítica ao postulado lógico referente ao 'terceiro excluído', e m relação ao
qual, mediante especial processo de aprendizagem (instrução), seria possí-
vel 'incluí-lo'. A s s i m , seria viável a ultrapassagem da binariedade limitada
2
da lógica da identidade, ao permitir o acesso a 'outro lugar', 'terceiro', 'mes-
tiço'. Isto não significa que se deva abandonar tal lógica, m a s sim dimensio-
3
nar as características de f e c h a m e n t o / a b e r t u r a do p r o b l e m a e m e s t u d o e
verificar se o seu e m p r e g o procede. Neste sentido, h á desenvolvimentos de
outras lógicas, c o m o as infralógicas e as paraconsistentes. E m a m b a s , for-
m a ç õ e s , conceitos e noções mentais se encadeiam de tal m o d o que a 'exati-
d ã o ' de u m elemento carreia a pressuposição de exatidão para os seguintes.
E m b o r a p o s s a m ser considerados 'falsos' à luz do raciocínio lógico, tais pro-
cessos de conexões na consciência servem para interligar determinados concei-
tos, propiciando u m a suposição de verdade, limitada, c o m certeza, porém,
operativa (Moles, 1995). Tais lógicas operam com u m a semântica diferente,
de m o d o que, nestas circunstâncias, a idéia de negação se distingue da nega-
ção clássica. Por exemplo, a denegação e m u m contexto psicanalítico p o d e
se configurar c o m o u m a negação paraconsistente (Costa, 1985).
M a s voltemos à obra de Serres. Aí, é abordada a insistência dos sabe¬
res ocidentais e m atingir, com base na lógica conjuntista/identitária, uma
razão purificada, na procura do conhecimento perfeito — inalcançálvel, diga-

2
Cabe lembrar que a lógica formal se baseia em três princípios inseparáveis: o da identidade - todo o
objeto é idêntico a si mesmo, ou seja, é impossível existir e não existir ao mesmo tempo e com a
mesma relação; o da contradição - entre duas proposições contraditórias, na qual uma é a negação
da outra, uma delas é falsa, ou seja, é impossível um mesmo atributo pertencer e não pertencer ao
mesmo sujeito ao mesmo tempo e com a mesma relação; o do terceiro excluído: toda proposição
possuidora de significado é falsa ou verdadeira - de duas proposições contraditórias, uma delas deve
ser verdadeira (Costa, 1985; Morin, 1991). O princípio do terceiro excluído vale para os casos bem
delimitáveis - tal ser vivo é animal ou vegetal. Há situações, porém, em que esta clareza não é
possível, uma vez que existem espécies que não permitem a classificação zoológica ou botânica
(Morin, 1991).
3
As condições de fechamento de um sistema dependem de duas premissas. Para que os meca-
nismos operem de m o d o consistente, não deve haver variação intrínseca na qualidade do
objeto com papel causal. Para que os resultados sejam regulares, a relação entre os mecanis-
mos causais e os mecanismos extrínsecos dos fatores intervenientes à operação ou aos efeitos
deve ser constante (Santos, 1989).
se de p a s s a g e m . Porém, tal priorização resultou no fato de os afastamentos
desta coerência serem encarados c o m o deslocamentos para fora da razão, do
m u n d o , da realidade.
A rigor, o m o t o r d e s t a b u s c a n ã o se p r e n d e a prion a o p r o p ó s i t o de
c o n h e c e r , m a s , s i m , ao i m p u l s o de c o n t r o l a r e, p o r e x t e n s ã o , de d o m i n a r .
A l ó g i c a i d e n t i t á r i a n ã o se d i s p õ e à c o m p r e e n s ã o d o c o m p l e x o e d a v i d a ,
m a s à i n t e l i g i b i l i d a d e p r a g m á t i c a , q u e , s e g u n d o M o r i n (1991:168-169):

Corresponde às nossas necessidades práticas de ultrapassar o incerto e o ambíguo,


para produzir um diagnóstico claro, preciso, sem equívoco. Ela corresponde, mesmo à custa de
alterar a natureza dosproblemas, às nossas necessidadesfundamentais de separar o verdadeiro
dofalso, de opor a afirmação à negação. A sua inteligibilidade repele a confusão e o caos. Por
isso, esta lógica é praticamente e intelectualmente necessária. Mas ela fraqueja justamente
quando a complexidade sópode ser apagada à custa de uma mutilação do conhecimento ou do
pensamento. De fato, a lógica dedutiva-identitária corresponde, não às nossas necessidades de
compreensão, mas às nossas necessidades instrumentais e manipuladoras, quer se trate da
manipulação dos conceitos, quer da manipulação dos objetos.

Pode-se cogitar que a p r i m a z i a da lógica identitária e da razão n o s


assuntos h u m a n o s esteja relacionada à nossa pulsão de estabelecer n e x o s e
explicações racionais ao caos circundante. C o m o u m m o d o de sustentar iden-
tidades e estabilizar relações no propósito de conhecer u m universo que, a
rigor, só p e r m i t e interpretações que surjam de nossa finita c a p a c i d a d e de
c o m p r e e n s ã o e de produzir representações. U m a sugestiva explicação a este
respeito foi formulada por Samaja (1994). Para este autor, a supremacia da
lógica conjuntista está ligada aos efeitos de práticas sociais universais funda-
m e n t a d a s e m processos de 'desacoplamento do m u n d o da vida comunitária'
c o m o requisito para o aparecimento da relações societais que especificam a
sociedade civil. E m outros t e r m o s , o representante pragmático d e tal lógica
é o mercado, constituído por u m conjunto de indivíduos que m a n t é m rela-
ções externas (quantificáveis) entre si, tendo p o r base u m a " p r á x i s contratu-
alista interindividual".
Contudo, p o r mais que as ciências, e m geral, se esforcem p a r a susten-
tar o seu projeto de m a n i p u l a ç ã o / c o n t r o l e , e, que, p a r a tanto, solicitem u m
rigoroso 'controle de qualidade' e m sua proposta de precisão — ou seja, evi-
tar distorções, eliminar impurezas, impedir 'contaminações' (Serres, 1993) - ,
as insuficiências se insinuam aqui e ali, de forma mais ou m e n o s explícita.
E m outras palavras, é evidente o primado da precisão na ideologia científi-
ca. C o m o se bastasse " m e d i r para dominar, conhecer para fazer e explicar
para comprender, sofrendo dentro desta conquista de u m conhecimento —
que é incontestável — a m i r a g e m da p r e c i s ã o " (Moles, 1995:23).
Talvez a força da ciência se b a s e i e j u s t a m e n t e n a r e n ú n c i a a viver
entre as coisas do m u n d o d a vida e optar por manipulá-las. M a s daí resulta a
sua fraqueza, pois distancia o cientista de seus produtos e das repercussões
correspondentes no mundo. Se, até p o u c o tempo, tal problemática não apre-
sentava maiores p r o b l e m a s , nos dias de hoje, diante dos dilemas gerados
pelas biotecnociências, esta situação vai se tornando insustentável. Ε evi­
dente a constatação de não haver soluções únicas n e m p l e n a m e n t e satisfató-
rias, c o m as quais somos obrigados a lidar, c o m g a n h o s e perdas simultâneos
de difícil avaliação.
Ε preciso, p o r é m , avaliar os efeitos da exclusão do m u n d o da vida
(como se referem os fenomenologistas) subjacente aos e m p r e e n d i m e n t o s ci-
entíficos. E, sob esta ótica, e m termos mais específicos, c o m o considerar a
noção de experiência h u m a n a , tal como Varela et al. (1992) enunciam em
relação às ciências cognitivas? E m síntese, nossa mente apresenta-se cons-
tantemente ocupada por 'turbilhões' imprecisos que m e s c l a m idéias, pensa-
m e n t o s , afetos, sentimentos, e m o ç õ e s , teorias, opiniões, preconceitos e, ade-
mais, por juízos acerca dos elementos anteriores e por juízos sobre estes
juízos. Vale salientar que tanto analogias c o m o metáforas funcionam, utili-
zando uma metáfora, como ferramentas para lidar com a experiência
(Kirmayer, 1992), seja n a d i m e n s ã o auto-referida, seja c o m tudo que nos
cerca. A s s i m , elas ensejam, sobretudo, a compreensão do presente, d o m o -
m e n t o que se está vivendo (Maffesoli, 1988), e m termos não somente relati-
vos à l i n g u a g e m , mas t a m b é m ao pensamento e à ação.
N o entanto, no c a m p o científico contemporâneo, e m g e r a l , e no terre-
n o das biociências, em particular (além das disciplinas cognitivistas), são
perceptíveis as incompatibilidades entre ciência e experiência h u m a n a . " N o
m u n d o atual, a ciência é tão dominante que lhe o u t o r g a m o s autoridade para
explicar ainda que negue o mais imediato e direto: nossa experiência coti-
diana e i m e d i a t a " (Varela et al., 1992).
D o p o n t o de vista da saúde, as repercussões da c h a m a d a experiência
h u m a n a nos processos de adoecimento (e cura) não p o d e m ser negligencia-
das. Este trabalho, valendo-se da lógica da identidade, analisa a epidemiolo¬
gia c o m o u m a disciplina que procura explicar os padrões populacionais de
s a ú d e / d o e n ç a , operando, em grande medida, c o m instrumental estatístico.
Para isso, deve-se partir das seguintes premissas, entre outras:
• os resultados obtidos c o m base e m amostras (medidas de tendência cen-
tral e de dispersão) seriam elementos pertinentes ao indivíduo, quando, a
rigor, são inerentes às amostras (Samaja, 1994); e
• os comportamentos individuais variam ao redor de tipos considerados
' p a d r õ e s ' ou 'normais', de m o d o que os tratamentos estatísticos p o s s a m
isolá-los e defini-los.
Eventualmente, acatar tais premissas não chega a invalidar programas de
pesquisa diversificados. Porém, torna-se insatisfatório e m situações nas quais o
contexto é hipercomplexo, e as variáveis interatuam entre si de m o d o não-linear
e os fatos, por exemplo, são entendidos como históricos (Granger, 1994).
Ε preciso destacar, ainda, a contingência de que a epidemiologia, em
n o m e d o rigor quantitativo, abre m ã o de abordar a variedade dos m o d o s das
pessoas l e v a r e m a vida. Este aspecto foi assinalado por u m a antropóloga
americana c o m larga experiência e m estudar os significados leigos de doen-
ças infecciosas no Nordeste brasileiro (Nations, 1986). E m outras palavras,
a epidemiologia necessita justificar-se e m termos de sua eficácia sociocultu¬
ral no m u n d o da vida, seja na vertente predominante, dita 'moderna', que
tende a enfocar o m u n d o sob o ponto de vista da naturalização, seja na pro-
posta d e n o m i n a d a 'crítica', que se p r o p õ e a estudar o adoecimento sob a
ótica da socialização, isto é, dos processos sócio-político-econômicos relaci-
onados à h e g e m o n i a de g r u p o s e dos respectivos conflitos de p o d e r no inte-
rior dos m o d e l o s capitalistas neoliberais.
Apesar de não pertencerem ao terreno epidemiológico já consagrado, cabe,
ainda, incluir as abordagens do campo da antropologia da saúde que se voltam,
entre outros aspectos, para as análises discursivas e das representações sociais
relativas ao adoecer humano. N a verdade, diante da proliferação de objetos hí-
bridos, como enuncia Latour (1994), cada um destes níveis de análise se mostra
insuficiente per se para abarcar as questões de saúde contemporâneas.
Neste trabalho, discute-se o papel e a função das elaborações metafó-
ricas, consideradas por alguns autores c o m o ' i m p u r e z a s ' nos discursos da
ciência, e m determinados níveis do c a m p o científico, e m geral, e do epide-
miológico, e m particular. Trata-se de delimitar o papel epistemológico destes
tropos, situar elaborações metafóricas no interior da própria epidemiologia
e, sob esta ótica, cogitar outras vias conceituais capazes de proporcionar
agenciamentos investigativos mais efetivos para estudar o adoecer humano.

METÁFORA

O vocábulo metáfora tem uso relativamente trivial. Serve para desig-


nar, na língua grega, o processo e, p o r extensão, os m e i o s de transporte de
carga (Ferrater Mora, 1986). N ã o pretendendo entrar e m maiores aprofunda-
mentos, refere-se, e m sua d i m e n s ã o lingüística, a dois t e r m o s e à relação
entre eles. O primeiro t e r m o é d e n o m i n a d o 'tópico', o segundo Veículo', e a
4
relação q u e se estabelece entre eles ' c a m p o ' . Por exemplo: " o sanitarista
(tópico) é u m médico de papel (veículo)". O c a m p o estaria referido à idéia
preconceituosa de u m profissional de saúde de valor discutível (há u m duplo
sentido ao sugerir que eqüivaleria a papel) que não trata de pacientes, m a s ,
sim, lida c o m pesquisas, relatórios, artigos etc. (em suma, papel).
E m t e r m o s lingüísticos, consideram-se três concepções de metáfora
que p o d e m se superpor simultaneamente: substitutiva, comparativa e inte-
rativa (Rivano, 1986). A primeira p o d e ser ilustrada pela substituição direta
de um t e r m o metafórico por u m literal ("a A I D S é u m a m a l d i ç ã o " no lugar de
" a A I D S surgiu para castigar a h u m a n i d a d e " ) . N o segundo caso, teríamos u m a
conotação de caráter analógico: " a A I D S é c o m o se fosse u m a m a l d i ç ã o " .
Q u a n t o à dimensão interativa da metáfora, ao enunciarmos " a A I D S é u m a
m a l d i ç ã o " , temos a possibilidade de perceber dois pontos de vista interrela¬
cionados: a existência de u m a doença h u m a n a consuntiva e letal; u m 'agente
q u e desencadeia' a enfermidade que atuaria deste m o d o p o r razões suposta-
m e n t e malévolas ou punitivas.
Neste ponto, é importante assinalar as tentativas de cUstinguir analogia de
metáfora. Para Kirmayer (1993), a primeira diz respeito apenas aos aspectos
cognitivos da relação, nos quais prevalece a similaridade. A segunda também
incorpora aspectos afetivos e sensorials, bem como suas interações (Kirmayer,

4
Esta é a definição proposta por Richards, em 1936, ainda consagrada por grande parte dos lingüistas
(cf. Corrêa, 1986)
1993). Assim, as metáforas não se resumem à dimensão verbal. Podem ser per¬
ceptivas ou vinculadas a domínios não-verbais. São facilmente lembradas as
transposições que as crianças fazem ao substituir o significado de determinados
objetos por outros (um graveto por u m 'foguete', por exemplo, ou mesmo, segun-
do a psicanálise, u m carretei pela ausência da mãe). Deste modo, a linguagem
metafórica não pode ser julgada em termos das categorias Verdadeiro' ou 'falso',
mas sim aliada por sua eficácia, sua capacidade de ensejar encaminhamentos
originais nas propostas de representação da 'realidade' (White, 1994).
5
Por sua vez, no campo filosófico, há autores que sugerem não haver
discurso sobre a metáfora que não se enuncie e m u m a cadeia conceituai, pro-
duzida metaforicamente e m si (Ricoeur, 1983). N ã o obstante, é preciso enfa-
tizar que a metáfora pode ser encarada c o m o algo mais do que u m a simples
figura de retórica, cujas origens remontariam a u m estágio mental pré (ou anti)
científico (voltaremos a este aspecto). N a medida e m que permite cogitar al-
g u m a coisa e m termos de outra (Lakoff & Johnson, 1980), ela seria o meca-
nismo fundamental do processo de criação e invenção. Portanto, a metáfora
não consiste, tão-somente, no mapeamento de u m a idéia e m termos de outra
possibilidade analógica. Para Derrida, " a metáfora seria o próprio homem"
(1991:287). Nesta perspectiva, cabe indagar se o conhecimento h u m a n o esta-
ria inapelavelmente dependente de construções metafóricas: Que pensar se: a)
o que podemos perceber de nosso si-mesmo é nossa própria metáfora; b) so-
m o s nossa própria epistemologia; c) nosso m u n d o interior é esta epistemolo-
gia, nosso microcosmo; e d) nosso microcosmo é u m a metáfora apropriada do
macrocosmo? (Bateson, 1994: 296).
Se aceitarmos que conceitos metafóricos orientam e estruturam n o s -
sas percepções, movimentos e relações c o m o mundo, pode-se dizer que a
experiência h u m a n a , e m sua interação c o m a realidade, ocorre m e d i a n t e um
sistema conceituai que está estruturado e opera, em grande m e d i d a , metafo-
ricamente (Lakoff & J o h n s o n , 1980).
Este p o n t o de vista, c o m base e m evidências lingüísticas e m q u e a
metáfora se destaca, serve para questionar o mito do objetivismo n o co-
nhecimento, isto é, a premissa de que o m u n d o está c o m p o s t o por diversos

5
Uma detalhada discussão filosófica sobre a metáfora foi desenvolvida por Ricoeur (1983) e Derrida
(1991).
objetos c o m propriedades inerentes e relações estáveis entre si. Lakoff & John-
son argumentam que a filosofia objetávista não consegue explicar satisfatoria-
mente como entendemos nossa experiência, nossas manifestações mentais, nos-
sa linguagem. Para eles, uma explicação adequada demanda:

ver os objetos apenas como entidades relativas a nossas interações com o mundo e com nossas
projeções sobre ele; — considerar aspropriedades como propriedades interacionais mais do que
inerentes; - considerar as categorias como gestalts experienciais definidas por meio de
protótipos em vez de considerá-las rigidamente fixadas e definidas segundo a teoria dos
conjuntos. (Lakoff & Johnson, 1980:254)

E m contrapartida, há, nos dias de hoje, autores que s u g e r e m a perda


progressiva do v i g o r metafórico e m todos os domínios. Isto ocorreria em
função do processo de confusão e interpenetração pelo qual p a s s a m as disci-
plinas, que perderiam, assim, seu caráter específico. Desse m o d o , n e n h u m
discurso poderia constituir-se metáfora d o outro, diante do a p a g a m e n t o da
diferença dos c a m p o s e dos objetos. Enfim, u m processo de ' c o n t a m i n a ç ã o '
g e n e r a l i z a d a , g e r a n d o redes e circuitos h o m o g e n e i z a d o s , sem alteridade,
condição básica para a eclosão metafórica (Baudrillard, 1990).
M e s m o aceitando a existência deste processo, ainda assim é discutível sua
radicalidade, podendo-se também cogitar que, em u m sistema aparentemente
homogêneo, sua organização complexa pode gerar alteridades locais, suficientes
para dar margem a diferenças e permitir novas possibilidades de caráter meta-
6
fórico. É desta o r d e m a metáfora do hipertexto, c o m base nos avanços da
informática nas d e n o m i n a d a s tecnologias intelectuais (Lévy, 1993).

6
Em termos técnicos, o hipertexto consiste em um programa computacional no qual há um conjunto
de nós vinculados por conexões. Os nós podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos, sons,
documentos complexos. Foi concebido para ser manipulado e transformado em interações com
usuário (s) envolvendo um banco de dados original. É o ambiente virtual do hipertexto que propor-
ciona o 'meio' que viabiliza a interação destes usuários. Os exemplos mais conhecidos são as
extensas obras editadas em CD-ROM, como dicionários e enciclopédias (Lévy, 1993).
METÁFORA Ε PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO

E m primeiro lugar, é preciso sublinhar que tais figuras de linguagem


c o s t u m a m ser vinculadas ao discurso do senso c o m u m . M e s m o no âmbito
filosófico, há controvérsias que remontam à Antigüidade e m relação ao seu
emprego. Veja-se, por exemplo, a freqüência com que Platão fazia uso da
linguagem figurada, diferentemente de Aristóteles, que chegou, inclusive a
desenvolver uma das primeiras teorias sobre a natureza da metáfora (Ferra¬
7
ter M o r a , 1986). N ã o é à toa que são t a m b é m chamadas figuras de retórica
no sentido m e s m o de 'arte da eloqüência' c o m vistas à argumentação per¬
suasiva, própria ao confuso m u n d o dos desejos e paixões h u m a n a s e inade-
q u a d a à 'objetividade' científica.
U m a das premissas ideológicas do paradigma da ciência m o d e r n a (e da
epidemiologia m o d e r n a ) , c h a m a d a cientismo, sustenta que, além da prima-
zia da sua p r o p o s t a de conhecimento, " o s fatos falam por si e (...) os méto-
dos só são científicos se p u d e r e m ser utilizados i m p e s s o a l m e n t e " (Santos,
1989:102). O p a r a d i g m a da ciência moderna, em sua busca de objetividade e
rigor técnico — na qual a subjetividade surge como algo perturbador da ordem e
dos bons costumes metodológicos, precisando, portanto, ser controlada — gera
u m discurso destituído de figuras de retórica, literariamente pobre, sem encanto.
E, pior, deslocado dos discursos que percorrem a sociedade (Santos, 1989),
(mal)ditos c o m o pertencentes ao senso c o m u m e vulgar.
M e s m o assim, filósofos c o m o Bachelard (1972) encaram o e m p r e g o
de i m a g e n s , analogias e metáforas c o m o desvios impeditivos ao acesso do
conhecimento objetivo, ainda que ele m e s m o faça uso delas em seus escri-
8
tos. Enfim,

Se as ciências desconfiaram oficialmente da analogia, também a praticaram clandes-


tinamente. Muitos cientistas utilizaram o raciocínio por analogias para construir tipologias,
elaborar homologias, e até induzir leis gerais (...). Há até grandes deslocações teóricas que se
efetuaram por analogia. (Morin, 1 9 8 7 : 1 3 6 )

7
Para uma relevante discussão sobre a retórica na ciência, ver Santos, (1989).
8
Ver diversas passagens a esse respeito em Bachelard (1968).
A rigor, o uso das metáforas na ciência, em função de suas possibilida-
des inventivas e inovadoras, tem sido recuperado por autores respeitáveis,
9
originários dos domínios tanto das ciências físicas como das sociais. A este
respeito, Samaja destaca a importância da abdução (desenvolvida por Peirce),
que, mediante analogias e metáforas, funciona como método alternativo à in-
10
dução c à dedução como proposição lógica de investigação (Samaja, 1993).
Em uma perspectiva similar, é importante destacar as idéias da cor-
rente epistemológica conhecida por realismo, na qual

as teorias (...) desenvolvem-se por analogia a partir de compreensões já estabelecidas. Os


discursos científicos e seus campos conceituais (...) crescem por meio de uma extensão meta-
fórica (ou metonímica) na construção dos conceitos (...). ( A l m e i d a Filho, 1993:18)

Ademais, experimentos com base na psicologia cognitiva geraram a


hipótese do raciocínio h u m a n o cotidiano fazer uso reduzido da lógica for-
mal. Ε possível que os indivíduos construam modelos mentais das circuns-
tâncias vividas ou dos objetos que se apresentam c o m o alvos de suas elabo-
rações psíquicas e, com base nestas produções imaginárias, explorem as vi-
7
cissitudes envolvidas (Lévy , 1993).
Ε preciso destacar a existência de uma conexão entre métodos quali-
tativos e aceitação da relevância da linguagem metafórica, diferentemente
do que costuma ocorrer nas disciplinas eminentemente quantitativas, como
é o caso da epidemiologia. A este respeito é oportuno o comentário de San-
tos ( 1 9 8 9 : 1 6 ) :

Enquanto a quantidade distancia sujeito e objeto e a qualidade os aproxima, a


linguagem técnica separa teoria dos fatos e a linguagem metafórica aproxima-os. Os métodos
qualitativos tendem a suscitar uma linguagem metafórica e, conjuntamente, produzem um
conhecimento científico de perfil diferente daquele que se obtém com métodos quantitativos e
linguagem técnica.

9
R e s p e c t i v a m e n t e : B o h m & Peat (1989) e B a t e s o n (s.d.), p o r e x e m p l o . U m d e s e n v o l v i m e n t o mais
d e t a l h a d o a c e r c a d o u s o de m e t á f o r a s e a n a l o g i a s e m m é t o d o s d e m o d e l i z a ç ã o s i s t ê m i c a p o d e ser
visto e m M o l e s , ( 1 9 9 5 ) .
10
N a m e s m a linha d e r a c i o c í n i o , o c o n c e i t o de r e t r o d u ç à o foi c r i a d o para referir-se à " e x p l o r a ç ã o
e x a u s t i v a de a n a l o g i a s , e s t a b e l e c e n d o a posteriori m o d e l o s m e t a f ó r i c o s e m e t o n í m i c o s " q u e s i r v a m à
a b o r d a g e m r e a l i s t a - t r a n s c e n d e n t a l d a s e s t r u t u r a s científicas (cf. A l m e i d a - F i l h o , 1 9 9 3 ) .
A linguagem técnica t e m u m a função essencial quando separa da ciên-
cia o senso c o m u m . Todavia, a linguagem metafórica é fundamental na ul¬
trapassagem tanto de u m quanto de outro na produção de u m saber prático
efetivo. É importante averiguar o efeito das pesquisas epidemiológicas e seus
resultados e m termos de proposições de risco. Trata-se, e m outras palavras,
de saber c o m o são apreendidos os produtos da ciência epidemiológica pela
sociedade, caracterizada pelo senso c o m u m (e suas metáforas), seja no nível
particular das interações clínicas, seja mediante a difusão global de informa-
ções, por intermédio de mensagens e informações leigas e oficiais veicula-
das pelos meios de comunicação de massa.

A EPIDEMIOLOGIA Ε SUAS METÁFORAS

Se p a r t i r m o s da noção de 'peste' e seus derivativos, central à fundação


e à d e m a r c a ç ã o da disciplina epidemiológica, percebe-se que ela carreia, jun-
to aos significados originários de p r o p a g a ç ã o e contágio, alusões metafóricas
de 'infelicidade', 'destruição', 'ruína', ' m o r t e ' (Teixeira, 1 9 9 3 ) . P o r o u t r o
lado, em termos epistêmicos, é considerável a influência das metáforas
o r i u n d a s , p r i n c i p a l m e n t e , da biologia n o c a m p o epidemiológico, o que pode
ser verificado, por exemplo, ao 'transformar' o coletivo e m u m ' c o r p o ' social
(Ayres, 1994).
E m relação à vinculação entre epidemiologia e lógica da identidade,
A l m e i d a Filho (1994) descreve três grandes metáforas sobre a causalidade
em epidemiologia, relativas, a saber, à idéia de evento c o m o algo demarca-
do, circunscrito c o m o tal, que se destaca da indistinção; à noção de nexo, no
sentido de associação, conexão entre eventos e, também, d e atribuição de
sentido; à c o n c e p ç ã o de fluxo, com o significado de deslocamento e m rela-
ção à determinada unidade cronológica, no interior de u m a representação
temporal linear.
E n t r e t a n t o , a p e s a r d e n ã o e x p l i c i t a d a s na m a i o r i a d o s compêndios
e p i d e m i o l ó g i c o s , as m e t á f o r a s c a u s a i s m a i s d e s t a c a d a s n a e p i d e m i o l o g i a
a n g l o - s a x ô n i c a r e f e r e m - s e , e m p r i m e i r o l u g a r , à idéia d a s c a d e i a s d e cau¬
s a ç ã o , v i g e n t e até os a n o s 60 ( M a c m a h o n , P u g h & Ips en, 1 9 6 0 ) . A t é esta
é p o c a , o o b j e t o p r i m o r d i a l de e s t u d o da e p i d e m i o l o g i a a i n d a e r a m as
d o e n ç a s i n f e c t o - c o n t a g i o s a s . N e s t e caso, a teoria m i c r o b i a n a permitia
tal c o n f i g u r a ç ã o , ao constituir o a g e n t e etiológico c o m o o ú l t i m o elo (su-
ficiente) de u m a s u c e s s ã o de situações cuja c u l m i n â n c i a era o adoecer.
A partir da obra seminal de M a c m a h o n , Pugh & Ipsen (1960), foi
elaborada a i m a g e m da teia causal. Aí, é criticado o m o d e l o anterior por
não levar em conta as origens c o m p l e x a s de cada um dos elos e pelo m o d o
c o m o as d e t e r m i n a ç õ e s dos diferentes fatores p o d e m se superpor, g e r a n d o
múltiplas a s s o c i a ç õ e s , diretas e indiretas — enfim, a multicausalidade. As-
sim, a teia consistiria em u m a malha de fios, com suas interseções repre-
sentando desfechos ou fatores de risco específicos e os próprios fios os
trajetos causais (Krieger, 1994). Esta parece ser, ainda, a metáfora domi-
nante no c a m p o conceituai da epidemiologia dos fatores de risco.
Entretanto, diante da i m p o s s i b i l i d a d e de e s t a b e l e c e r as c o n f i g u r a -
ç õ e s r e l a t i v a s a o s m e c a n i s m o s de d e t e r m i n a ç ã o e t i o l ó g i c a , u t i l i z a - s e a
c o n h e c i d a m e t á f o r a da caixa preta. Isto é, o d e s c o n h e c i m e n t o dos m e c a -
n i s m o s de c a u s a ç ã o n ã o seria n e c e s s á r i o para e s t a b e l e c e r n e x o s c a u s a i s
entre os fatores c o m seus c o r r e s p o n d e n t e s riscos. A propósito, a ' e p i d e -
m i o l o g i a da caixa p r e t a ' (ou dos fatores de risco) foi foco de um recente
d e b a t e a c e r c a da v a l i d e z de seus a c h a d o s ; se e r a m ou n ã o dependentes
da c o n c o r d â n c i a c o m estudos de outros c a m p o s das b i o c i ê n c i a s (Pearce,
1 9 9 0 ; S a v i t z , 1994; S k r a b a n e k , 1 9 9 4 ) . A ' f u t i l i d a d e ' da ' e p i d e m i o l o g i a
da caixa p r e t a ' foi defendida por S k r a b a n e k ( 1 9 9 4 ) , d a n d o c o m o e x e m -
plo a a u s ê n c i a de e v i d ê n c i a s c o n c l u s i v a s dos e s t u d o s sobre os efeitos do
c o n s u m o de café cm relação a d i v e r s o s riscos de a d o e c e r ( d o e n ç a c o r o -
nariana, c â n c e r de b e x i g a , p â n c r e a s , seio, cólon, reto e o v á r i o ) , ao l o n g o
de trinta a n o s de p e s q u i s a .
E m t e r m o s m a i s específicos, a p a r e c e m outros usos m e t a f ó r i c o s no
d i s c u r s o e p i d e m i o l ó g i c o referente à própria categoria ' r i s c o ' . C o n s i d e r e -
se, por e x e m p l o , o fato de não ser c o s t u m e i r o o e m p r e g o das designa-
ç õ e s ' g r a n d e / p e q u e n o ' , ' l a r g o / e s t r e i t o ' ou m e s m o ' m u i t o / p o u c o ' para
indicar as características do risco, c o n f o r m e sua quantificação. N a ver-
d a d e , os adjetivos utilizados nestas c i r c u n s t â n c i a s estão v i n c u l a d o s à idéia
de v e r t i c a l i d a d e : ' a l t o / b a i x o risco'. Estes adjetivos se b a s e i a m no con-
ceito metafórico, c o m u m a o u t r o s c o n c e i t o s científicos, de que m a i s é
em c i m a e m e n o s é e m b a i x o , c a l c a d o na r e p r e s e n t a ç ã o visual dos a s p e c ¬
tos q u a n t i t a t i v o s e m q u e s t ã o , sob o p o n t o de v i s t a d e u m ' e m p i l h a m e n ¬
11
t o ' ( c o m o se a p r e s e n t a e m d e t e r m i n a d o s gráficos).
A constituição do conceito de risco c o m o u m a metáfora ontológica,
ou seja, na condição de entidade detentora de substância, ainda é m a i s rele-
vante. Isto é perceptível nos discursos prescritivos/preventivos da educa-
ção em saúde, ao estabelecer as possíveis conseqüências da exposição aos
diversos fatores, situações e comportamentos ditos de risco. A o substanciar-
se, o risco p o d e ser objetivizado, identificado e m termos de causas que, por
sua v e z , p o d e m ser decompostas em partições. Esta operação dá m a r g e m a
respectivas quantificações e ao eventual estabelecimento de nexos.
Contudo, ao se expor a fatores de risco, muitas vezes sob u m suposto
controle racional daquele que se expõe, o risco p a s s a a ter a c a p a c i d a d e
proteiforme de se materializar sob sua forma nociva, que p o d e ser denomi-
nada 'agravo', n u m a operação semântica equivalente, na verdade, a que de-
signa 'doença' e m sua acepção metafórica ontológica. Neste caso, p o r é m , os
riscos 'existiriam', por u m lado, c o m o potenciais invasores de c o r p o s (corpos
estranhos?) sub-reptícios, mas, por outro, a ambiência metafórica deste ' m u n -
d o ' virtual e fantasmático dos riscos poderia adquirir visibilidade (e, portan-
to, concretude) nos resultados de exames laboratoriais indicativos dos graus
de exposição a fatores de risco, por exemplo, taxas elevadas do colesterol
(ruim) ou, mais m o d e r n a m e n t e , nas sofisticadas testagens genéticas.

O 'SENSO COMUM' EPIDEMIOLÓGICO

A este respeito, v a m o s enfocar, especialmente, as representações so-


ciais sobre a percepção do risco. Podemos caracterizá-las, a princípio, c o m o
formas de conhecimento de implicações práticas, incluídas no interior das
vertentes que estudam o senso c o m u m , e m busca da superação da 'retórica

11
Este conceito metafórico orientacional foi delineado por Lakoff & Johnson (1980). Os autores
esclarecem que sua formulação, tal como apresentada, é limitada, pois não assinala a inseparabilida¬
de das metáforas de suas respectivas bases experienciais. Estas, por sua vez, podem variar mesmo
em outras metáforas relativas à verticalidade. No caso de "saúde e vida é acima, doença e morte é
embaixo", por exemplo, a base experiential parece ser a posição corporal que acompanha estes
estados/condições.
da v e r d a d e ' e m b u t i d a n o discurso da ciência m o d e r n a (Spink, 1993). É im-
portante notar que as metáforas p o d e m d e s e m p e n h a r aqui seu papel de 'char¬
neira', pois, além de servirem c o m o suporte simbólico elaborado c o m base
no sujeito, p o d e m assumir dimensões coletivamente compartilhadas para a
comunicação e a interpretação do mundo.
Neste sentido, é importante considerar o e m p r e g o abusivo de metáfo-
ras n a c o m u n i c a ç ã o entre cientistas e o público, m e d i a d a pelos m e i o s de
comunicação de massa. Isto é particularmente flagrante nas discussões so-
bre os efeitos das manipulações genéticas sobre a h u m a n i d a d e . A s s i m , ca-
b e m três perguntas a respeito desta relação: o que se p o d e aprender dos
esforços dos geneticistas para moldar a i m a g e m pública de tais manipula-
ções (especialmente no que se refere ao projeto G e n o m a ) ? A s i m a g e n s pro-
duzidas pelos geneticistas i n f o r m a m ao público c o m exatidão e sem impro¬
priedades? C o m o estas i m a g e n s são apreendidas? (Nelkin, 1994). E m geral,
há u m a proliferação de significações atribuídas aos g e n s , e m especial, aque-
les que envolvem determinismos biológicos — a definição de identidades (e
respectivos julgamentos de qualidade) e o estabelecimento d e traços c o m ¬
portamentais. H á g e n s egoístas, hedonistas, criminais, h o m o s s e x u a i s , depres-
sivos, condutores ao pecado, à genialidade. E m suma, os g e n s serviriam para
explicar as diferenças h u m a n a s e tanto justificá-las quanto predizê-las
(Nelkin, 1 9 9 4 ) .
N o c a m p o d o risco, p o s t u l a - s e a e x i s t ê n c i a de u m a ' e p i d e m i o l o g i a
l e i g a ' ( D a v i s o n et al., 1 9 9 1 ) . C o m o i l u s t r a ç ã o , u m a p e s q u i s a r e a l i z a d a no
P a í s d e G a l e s n a q u a l se c o n s i d e r o u a i d é i a d e ' c a n d i d a t u r a ' à d o e n ç a
c o r o n a r i a n a ( D C ) , i s t o é, q u a l e r a a p e r c e p ç ã o p o p u l a r d o s a t r i b u t o s ,
condições e comportamentos das pessoas de m o d o a torná-las 'candida-
t a s ' ao i n f o r t ú n i o de d e s e n v o l v e r D C . O e s t u d o p r e o c u p a v a - s e e m verifi-
car os efeitos de p r o g r a m a s d e e d u c a ç ã o e m s a ú d e p a r a c o n t r o l e de D C .
E s t a v a m e m q u e s t ã o os p a p é i s da d i m e n s ã o i n d i v i d u a l e d a s o c i a l na
e t i o l o g i a e d i s t r i b u i ç ã o da e n f e r m i d a d e , l e v a n d o e m c o n t a a c o m p l e x i d a -
d e d o fato d e m u i t o s c o m p o r t a m e n t o s particulares estarem imbricados
n o t e r r e n o c u l t u r a l ( D a v i s o n et al., 1 9 9 1 ) . A i d é i a d e ' c a n d i d a t u r a ' à D C
a d m i t i a q u a t r o u s o s diferentes:
• explicação retrospectiva d o a d o e c e r / m o r t e de outrem por D C ;
• predição do a d o e c e r / m o r t e de outrem por D C ;
• explicação retrospectiva do próprio adoecer por D C ;
• avaliação do próprio risco de a d o e c e r / m o r r e r por D C .
E m t e r m o s gerais, os 'candidatos' à D C eram os gordos, sedentários,
de rosto avermelhado, c o m tom de pele pálido-acinzentado, fumantes, c o m
casos de D C na família, bebedores 'pesados', c o m dieta rica e m gordura,
ansiosos (por n a t u r e z a ) , m a l - h u m o r a d o s (ou pessimistas ou negativistas),
estressados (ou c o m vida desregrada). U m a das conclusões da investigação
foi mostrar o reconhecimento da falibilidade do sistema de 'candidatura co¬
ronariana'. Constatou-se a existência de indivíduos que preenchiam diversos
requisitos para D C e não a d o e c i a m , ao passo que outros, aparentemente
saudáveis e cuidadosos, c h e g a v a m a morrer pela enfermidade (Davison et
al., 1 9 9 1 , 1992), gerando o comentário do tipo " q u e m diria...".
Estas 'distorções' eram incluídas em u m sistema explicativo co-exis¬
tente, de caráter fatalista, oposto à idéia de controle protetor contra D C
mediante a escolha de estilos de vida mais salutares. Os c a m p o s nos quais a
p e r c e p ç ã o de ausência de controle apresentava-se de forma mais pronuncia-
da eram aqueles que envolviam diferenças pessoais entre indivíduos (heredi¬
tariedade, educação, características próprias), ambiente social (posses e dis-
ponibilidade de recursos, exposição a risco e danos viculados à ocupação,
solidão) e ambiente físico (como clima, perigos naturais, poluição ambien-
tal). Todos subsumidos a u m aspecto maior que dizia respeito à sorte, ao
acaso, ao destino, à fatalidade, à vontade divina etc. Nessas circunstâncias,
nada mais poderia ser feito se por acaso D e u s decidisse a fazer Ό c h a m a d o '
ou se " a h o r a da pessoa tivesse chegado..." (Davison et al., 1992). C o m o , e m
geral, os efeitos da exposição a supostos riscos não c o s t u m a m ser freqüen-
tes, imediatos e certos, são compreensíveis as resistências de algumas pes-
soas e m aderirem ao discurso preventivo/profilático.
O u t r o s estudos ingleses a p o n t a r a m o d i s t a n c i a m e n t o dos aspectos
envolvendo saúde e m relação às preocupações de cada u m e m seus cotidia-
nos. Isto sugere discrepâncias entre o discurso racional sobre saúde e o c o m -
p o r t a m e n t o (ou estilo de vida) — a princípio, passível de ser influenciado
mediante práticas de educação em saúde — e os domínios da v i d a privada,
que d e v e m ser entendidos e m relação ao contexto pessoal e cultural mais
amplo (Calnan & Williams, 1991).
Todavia, não é absurdo supor — em um quadro simultâneo de precarieda-
de da qualidade dos serviços de saúde (em termos de acessibilidade, eqüidade,
cobertura, disponibilidade, efetividade, eficiência, resolutividade etc.) e de ex-
posição a agravos múltiplos, como acontece em uma formação socioeconômica
como a nossa — que as preocupações dos grupos sociais em relação à sua saúde
devam ser distintas daquelas encontradas em outros contextos.
D e qualquer maneira, o papel da configuração sociocultural p o d e ser
de difícil dimensionamento no processo de extrapolação dos achados de u m
estudo epidemiológico sobre fatores de risco. Por exemplo, a a b o r d a g e m dos
graves p r o b l e m a s c o m o aqueles que envolvem a possível conexão entre uso
de drogas, maior disponibilidade a relações sexuais e, u m a v e z estas ocorren-
do, a eventual utilização de práticas sexuais seguras.
Segundo alguns pesquisadores, o comportamento de usuários de drogas
não pode ser explicado apenas pelo conhecimento da farmacologia das substan-
cias empregadas ou da suposta 'desinibição' provocada por elas. Temos aí uma
complexa resultante da interação de farmacocinética, características psicológi-
cas pessoais, expectativas comportamentais compartilhadas no dia-a-dia, situa-
ção socioeconômica e contexto cultural (Rhodes & Stimson, 1994).
Neste caso, a pesquisa epidemiológica produziu indicadores de comporta-
mento sexual de risco em usuários de drogas, mas parece limitada para explicar a
dinâmica desta relação. D e acordo c o m Rhodes & Stimson (1994: 222):

A inadequação da pesquisa epidemiológica convencionalpara gerar dados sobre a


interação entre expectativas individuais, comportamento individual de risco e relações sociais,
demanda uma reorientação da prática epidemiológica atual rumo a uma epidemiologia social
do uso de drogas e do comportamento sexual de risco como parte de um paradigma de pesquisa
social designado para investigar as relações sociais e o contexto social do uso, conhecimento,
percepções e comportamentos relativos a drogas.

C a b e indagar sobre a capacidade da epidemiologia de fazer suas afir-


m a ç õ e s de risco diante do p r o b l e m a das interações entre representações co-
letivas e individuais e m relação a questões cruciais que envolvem o adoecer
e o morrer. É preciso salientar que n ã o se trata tão somente d e apurar m é t o -
12
dos p a r a lidar c o m o fenômeno de interação n a pesquisa epidemiológica,

12
Por sinal, há o reconhecimento, mesmo neste nível de preocupação, da limitação dos métodos para
chegar a conclusões definitivas sobre efeitos sinergísticos ou antagonistas em relação aos efeitos
conjuntos de dois fatores de risco (cf. Thompson, 1991).
m a s sim de transformar pressupostos da própria pesquisa populacional e m
saúde. Nessas circunstâncias, a a b o r d a g e m epidemiológica deve m u d a r sua
ênfase e m indivíduos (ou outras unidades atomizadas) para 'unidades glo-
bais', fruto de interações das partes, analiticamente conceitualizadas p o r m e i o
do e n t e n d i m e n t o da estrutura de rede social e d e subcultura ( R h o d e s &
Stimson, 1994), c o m suas respectivas representações.

EPIDEMIOLOGIA DAS METÁFORAS?

É possível conceber os produtos do espírito h u m a n o c o m o pertencen-


tes a u m d e t e r m i n a d o universo, q u e seria constituído por signos, símbolos,
i m a g e n s , crenças, mitos, sistemas de idéias, relativos a d e t e r m i n a d o s esta-
dos, situações, acontecimentos, fenômenos, problemas. A s s i m , funcionam
c o m o mediadores imprescindíveis nas transações dos h o m e n s entre si e c o m
o m u n d o circunjacente. Conforme M o r i n (1991), desde Teilhard de Chardin,
este domínio teria a d e n o m i n a ç ã o de noosfera. Seria, na verdade, u m c a m p o
possível de articulação entre o indivíduo (psicosfera) e a sociedade (socios¬
fera). Deste modo, tanto o c é r e b r o / m e n t e c o m o a cultura p r o d u z e m , organi-
zam, condicionam e restringem a noosfera, que, por sua v e z , e m efeito recur¬
sivo, atua da m e s m a forma sobre ambos. Seria possível delinear dois g r a n d e s
13
g r u p o s relativamente estáveis de entes noosféricos:
• os imagéticos, que c o m p r e e n d e m seres de aparência cosmo-bioantropo¬
mórfica, fantásticos ou n ã o (que p o v o a m mitos e religiões);
• os logomorfos, sistemas de idéias que habitam doutrinas, teorias, filoso-
fias (Morin, 1991).
C o m o exemplo, cabe mencionar a reconhecida suscetibilidade da mente
humana a desvarios, loucuras, psicoses. Nestas circunstâncias, observam-se, res-
pectivamente, alucinações e delírios como sintomas psicológicos da proliferação
desenfreada de entidades da noosfera, c o m prejuízos (ou seja, além do conside-
rado 'habitual') da capacidade de delimitação da dita realidade.

13
É possível cogitar, ainda, em outras entidades espirituais, como as referidas aos afetos, sentimentos,
emoções, mas que não pertenceriam à noosfera, reino das elaborações mentais intelectivas.
Tem havido tentativas de estabelecer nexos entre o p o n t o de vista
epidemiológico e a dimensão psicológica relacionada à esfera societária. O
exemplo mais evidente é a relação entre a epidemia de AIDS e 'epidemias
psicossociais' de sentimentos correspondentes, c o m o medo, ansiedade, afli-
ção, suspeita (Strong, 1990). A o m e s m o tempo, isto t a m b é m reflete u m a
epidemia de significações (Treichler, 1987) para lidar, para além da dimen-
são de contagiosidade fisiopatogênica, com a ameaça constituída pelos efei-
tos carreados pela AIDS sobre as representações sociais que envolvem temas
candentes c o m o morte e sexualidade.
A este respeito, um texto de Sperber (1985), considerado clássico na
literatura antropológica francesa, sugere um diferencial do poder de difusão
de algumas representações culturais comparativamente a outras, a exemplo
de certas doenças infecto-contagiosas. O autor, no entanto, chama atenção
para o fato de os modelos epidemiológicos delinearem a transmissão de do-
enças estáveis ou c o m variações limitadas e previsíveis, ao passo que as
representações tendem a variar cada vez que são transmitidas.
U m a epidemiologia das representações consistiria, antes de tudo, em
um estudo dessas transformações. N ã o se trata, porém, de aplicar modelos
epidemiológicos de análise às representações. N a verdade, está em relevo na
analogia a correspondência entre as interações a) clínica m é d i c a / e p i d e m i o ¬
logia e b) p s i c o l o g i a / e p i d e m i o l o g i a das representações (Sperber, 1985). Ou
seja, múltiplas problemáticas simultâneas: individual x coletivo na relação
entre 'numeradores' com 'denominadores' e orgânico x psicossocial (ou na-
tural x cultural) na relação entre a) e b). Temos, então, dois níveis de obser-
v a ç ã o em uma epidemiologia das representações: o nível 'individual' das
representações mentais, singulares aos indivíduos, e o 'coletivo' das repre-
sentações sociais. Conforme a visão de Sperber (1985:86),

Uma epidemiologia das representações é um estudo das cadeias causais nas quais estas
representações mentais (RM) epúblicas (RP) estão envolvidas: a construção ou recuperação
de RM pode levar indivíduos a modificarem seus ambientes físicos, por exemplo para produzi-
rem uma RP. Estas modificações ambientais pode levar outros indivíduos a construírem suas
próprias RMs; tais novas RMs podem se armazenadas e depois recuperadas, e, por sua vez,
levar indivíduos que as apreenderam a modificar o ambiente e, assim por diante.
Importa, t a m b é m , salientar os processos geradores das distribuições
de representações. A s s i m , " u m a cultura (...) seria definida m e n o s por u m a
certa distribuição de idéias, de enunciados e de i m a g e n s e m u m a p o p u l a ç ã o
h u m a n a do que pela forma de gestão social do conhecimento que g e r o u esta
d i s t r i b u i ç ã o " (Lévy, 1993).
N a verdade, estão em jogo transições e interrelações c o m p l e x a s entre
fronteiras geradas pela d e n o m i n a d a era moderna. N a base destas dicotomi¬
14
as, cada vez menos nítidas — sujeito e objeto, singular e universal, mental e
material, valor e fato, privado e público, natural e social — encontra-se a grande
ruptura ontológica h o m e m e natureza (Santos, 1989). N o entanto, as biotecno¬
ciências c h e g a r a m para subverter as próprias disjunções que criaram as con-
dições de possibilidade de sua origem, desenvolvimento e evolução.
Por conseguinte, pensar u m a epidemiologia que transcenda as frontei-
ras das propostas investigativas habituais significa, preliminarmente, cogitar
formas de a b o r d a g e m de interfaces e m que ocorrem relações recíprocas en-
tre instâncias diferentes e complexas que não p o d e m mais ser concebidas
separadamente, localmente. E m outras palavras, implica a necessidade de
mediação simultânea entre l o c a l / g l o b a l e n a t u r a l / s o c i a l .
U m desenvolvimento importante a este respeito está presente na idéia
de objeto híbrido, elaborada por Latour (1994). Para ele, n ã o é mais possível
manter a cisão natureza versus cultura diante da proliferação de tais objetos
(ou quase objetos), mistos de ambos, a m á l g a m a s naturezas-culturas. A pró-
pria etimologia de 'híbrido' encerra algumas curiosidades. Provém do g r e g o
hybris, c o m os significados de tudo que excede a medida, excesso; orgulho,
insolência, ardor excessivo, impetuosidade, exaltação; ultraje, insulto, injú-
ria, sevícia; violências contra a mulher ou a criança. Pelo latim hybrida, serve
para designar o p r o d u t o d o c r u z a m e n t o de porca c o m javali, o filho de pais
de diferentes regiões ou de condições diversas (Machado, 1956).
Seriam objetos híbridos o buraco de ozônio e as repercussões quanto à
legislação que proíbe o uso de C F C s na industrialização de propelentes, as
manipulações genéticas e seus desdobramentos éticos e políticos, as discus-
sões sobre o reivindicações de g r u p o s ativistas gays pelo acesso ao AZT. N a

14
Nestas circunstâncias, a linguagem (e, por extensão, a capacidade metaforizante) participaria tanto
do sujeito, uma vez que nos é constitutiva, como do objeto, em função de seu teor socialmente
compartilhado (Lévy, 1993).
área e p i d e m i o l ó g i c a , um b o m e x e m p l o seriam as infecções e m e r g e n t e s
(Institute of Medicine, 1992), resultantes de processos desencadeados pelo
próprio h o m e m , entre as quais os surtos de doença dos legionários, provoca-
da por uma bactéria que se alberga em dutos de grandes sistemas de condi-
cionamento de ar. M a s o exemplo mais impressionante é constituído pelos
xenotransplantes. C o m base em manipulações genéticas, estuda-se a viabi-
lidade de serem gerados suínos transgênicos com a capacidade de evitar as
reações de rejeição imunológica, caso seus órgãos sejam transplantados para
h u m a n o s (Concar, 1994). A escolha deste mamífero prendeu-se ao fato de
ser um animal doméstico cujos órgãos têm d i m e n s ã o compatível com os
humanos. N a d a mais adequado do que a designação 'híbrido' para o objeto
resultante deste transplante.
Podemos afirmar, então, que os objetos híbridos (quase-objetos, qua¬
se-sujeitos) refletem e produzem múltiplas redes. Neste sentido, a rede de
práticas e de instrumentos, de documentos e traduções pode ser vista como
o agenciamento intermediário entre tais níveis. E, ao nosso ver, a instância
metafórica poderia ser incluída nesta condição. Mas, m e s m o que não seja,
serve para proporcionar outras metáforas para pensarmos este m u n d o mes-
tiço, resultante destes emaranhados reticularcs.
M e s m o incorrendo no risco de uma simplificação grosseira ou, o que
talvez seja pior, de u m a o b v i e d a d e , pode-se dizer, e m síntese, que tanto
nossos organismos quanto nossas sociedades configuram-se e m sistemas al-
tamente dinâmicos, constituídos por redes de interações e modulações recí-
procas i n t r a / e n t r e instâncias psico-neuro-imuno-endócrinas e circunstân-
cias psico-socioculturais (como é difícil definir o local exato para o 'psico',
optamos por localizá-lo em ambos níveis).
U m a tentativa preliminar de representar tais sistemas é sugerida por
Krieger (1994), ao utilizar uma estrutura fractal que consiste em uma seqüência
de bifurcações infinitas que assinalam a auto-similaridade nas múltiplas escalas.
Desta forma, em cada nível, seria possível incluir determinações pertencen-
tes tanto aos domínios biológicos c o m o culturais (Krieger, 1994).
Outra metáfora possível seria imaginar um denso e emaranhado man-
gue, sem a harmonia da figura fractal sugerida por esta autora. Aí, os ele-
mentos de um conjunto de seres vivos constituem, c o m sua conduta, múlti-
plos níveis de organização e interação que, ao a t u a r e m (para eles) c o m o
'meio ambiente', d e m a r c a m as formas de vida viáveis neste contexto, bem
c o m o seus m o d o s de adoecer e perecer. Existem n u m a deriva c o m p a r t i l h a -
da, em 'acoplamento estrutural', vinculados a sua participação e m tal rede
de interações (Maturana, 1993). N o entanto, esta metáfora ainda não é satis-
fatória, pois os 'manguezais h u m a n o s ' são b e m mais c o m p l e x o s e mutantes,
e m t e r m o s de indivíduos, t e m p o s e lugares. Os h u m a n o s têm, por exemplo,
a capacidade de pertencerem simultaneamente a distintos nichos ecológico-
culturais, c o m diferentes padrões de conduta. E, m a i s importante ainda, o
m e c a n i s m o básico de interação nos sistemas sociais h u m a n o s é a l i n g u a g e m .
E, aí, c o m o v i m o s , a metaforização ocupa lugar de destaque.

EPIDEMIOLOGIA CONTEXTUAL?

E s t u d o s antropológicos v ê m discutindo a efetividade dos p r o g r a m a s


de educação e m relação a H I V / A I D S , dirigidos e m nível da responsabilidade
pessoal quanto a condutas que levassem à redução do risco. Tais p r o g r a m a s ,
porém, d e i x a m de lado aspectos ligados à dimensão interativa d o risco, ou
seja, o fato de as relações c o m os 'outros' e seus aspectos sociais e simbóli-
cos d e v e r e m , t a m b é m , ser levados e m consideração. A sugestão ao uso de
preservativos p o d e insinuar significados de promiscuidade, degeneração moral,
c o n t a m i n a ç ã o (daí s e r e m , u s a d o s , t a m b é m , c o m vistas à p r o t e ç ã o contra
d o e n ç a s venéreas) — incompatíveis c o m relações sexuais baseadas na con-
fiança n o parceiro. Isto tenderá a ser visto c o m o sério empecilho à possível
p r o p o s t a de intimidade veiculada por relações sexuais (Sibthorpe, 1992).
L e v a n d o e m conta a importância das dimensões interpessoais, u m re-
cente desenvolvimento e m técnicas de investigação no c a m p o epidemioló¬
gico se p r o p õ e a abordar níveis de análise para além de unidades individua-
lizadas. A s d e n o m i n a d a s abordagens sócio-históricas de redes v ê m estudan-
do, justamente, a epidemia de H I V / A I D S . São três as probabilidades:
• estar infectado pelo HIV;
• assumir c o m p o r t a m e n t o s de risco; e
• tais c o m p o r t a m e n t o s de risco levarem à infecção.

A s abordagens de prevenção ao H I V p o d e m ser encaradas c o m o de-


pendentes de estruturas e processos históricos e sociais referidos a escalas
mais amplas de observação, conforme já foi mencionado. Tais fatores exer-
c e m efeitos sobre a epidemia mediante suas influências sobre as formas de
interação pessoal, tanto e m termos sexuais quanto nas práticas de comparti-
lhamento de seringas (Friedman et al., 1994).
Portanto, e l e m e n t o s p e r t e n c e n t e s a outras escalas de o r g a n i z a ç ã o afe-
t a m as r e d e s sociais e, p o r sua v e z t a m b é m interferem nas r e d e s de risco
e m q u e c i r c u l a m os agentes p a t o g ê n i c o s de diversas d o e n ç a s s e x u a l m e n t e
transmissíveis. Redes sociais seriam relações que influenciam idéias,
n o r m a s e condutas. R e d e s de risco consistiriam e m c o m p o r t a m e n t o s e m a -
teriais d e t r a n s f e r ê n c i a ( s e r i n g a s c o m p a r t i l h a d a s d e s c u i d a d a m e n t e , p o r
e x e m p l o ) p a s s í v e i s de transmitir o HIV. C o m o seria p r e s u m í v e l , a m b a s
p o d e m apresentar áreas de superposição.
A s informações para configurar as redes p o d e m ser obtidas por meio
de questionários pessoais que i n d a g a m sobre d a d o s sociodemográficos e
biográficos, comportamentos sexuais e uso de drogas, história clínica, cren-
ças em relação à saúde, papéis sociais na cultura da droga, n o r m a s de convívio
entre pares. A s redes são montadas pela indicação de parceiros e companheiros
(até dez pessoas, com as quais mantiveram contatos não-casuais e / o u comporta-
mentos de risco, nos trinta últimos dias), além de outras informações sobre seus
comportamentos de risco, tanto isolada como conjuntamente.
O s indivíduos são considerados Vinculados', caso u m ou a m b o s te-
n h a m referido injeção conjunta de drogas, relações sexuais entre si, ou outra
interação não-casual. Tais vinculações são validadas por contatos pessoais
c o m entrevistadores, por observação etnográfica e pelo p a r e a m e n t o de ca-
racterísticas identificadas.
M e s m o assim, h á limitações nos dados, decorrentes de sub-registro, da
impossibilidade de serem obtidas amostras aleatórias destas populações, das
restrições oriundas das técnicas analíticas, das modificações das redes dian-
te da 'antigüidade' da epidemia (15 anos e m Nova York), a l é m de inviabili-
zar a delimitação do sentido da infecção. D e qualquer forma, temos indiví-
duos, com determinados padrões de exposição à infecção, de acordo c o m
seus c o m p o r t a m e n t o s de risco (um nível de análise), que são agrupados con-
forme as redes interativas que estabelecem (outro nível). Estes p r o c e d i m e n -
tos v ê m revelando novas dimensões n o estudo e na prevenção da epidemia
(Friedman et al., 1994).
É importante ressaltar como a pesquisa populacional em saúde v e m se
desenvolvendo no intuito de incorporar técnicas sofisticadas de m o d e l a g e m
com abordagens qualitativas. A s estratégias investigativas híbridas, consti-
tuídas por desenhos qualitativos aninhados no interior do aparato metodoló-
gico quantitativo, estão-se tornando mais freqüentes. Por exemplo, em uma
proposta de estudo experimental de eficácia de uma vacina contra HIV/
AIDS, inclui-se uma abordagem sociocomportamental qualitativa, mediante
história de vida e g r u p o s focais (Carvalheiro et al., 1994).
Além disto, é perceptível a progressiva difusão das técnicas qualitativas
na investigação em saúde, mesmo nos países ditos periféricos (Yach, 1992), que
vão além dos estudos caracteristicamente definidos como pertencentes aos do-
mínios da chamada antropologia médica. O trabalho de Atkinson (1993) sobre a
avaliação leiga da assistência pré-natal em um estado do Nordeste brasileiro é
exemplar a esse respeito. Convém enfatizar que o uso das denominadas técnicas
qualitativas de avaliação rápida em saúde tem dado margem a controvérsias
devido à aparente dissociação entre método c teoria antropológica e, também,
pela proposição de pessoal sem formação em antropologia efetuarem investiga-
ções de caráter qualitativo, ainda que 'rápidas' (Coimbra Jr., 1993).
Outros desenvolvimentos metodológicos estão relacionados à aparente
reabilitação dos denominados estudos ecológicos na pesquisa populacional
em saúde. Nesta circunstância, as unidades de análise seriam referidas a gru-
pos (variáveis a g r e g a d a s ) , ao invés de estarem relacionadas a característi-
cas/atributos/propriedades identificadas de m o d o especificado (variáveis
individuais). Há distintos tipos de estudos ecológicos — exploratórios, com-
parativos entre diversos grupos, de tendência temporal e mistos ( M o r g e n s -
tern, 1982) — , cujo potencial, alcance e fontes de vieses v ê m sendo revela-
15
dos em trabalhos recentes. Nesta perspectiva, pode-se pensar que um enca-
minhamento possível para a epidemiologia seria dedicar-se com maior ênfa-
se a tais estudos c o m o forma de contextualizar seu Objeto populacional',

15
S c h w a r t z ( 1 9 9 4 ) faz u m a i n t e r e s s a n t e a b o r d a g e m s o b r e o s c o n c e i t o s d e v a l i d a d e i n t e r n a e v a l i d a d e
d e c o n s t r u t o e as r e s p e c t i v a s u t i l i z a ç õ e s na a b o r d a g e m da falácia e c o l ó g i c a ou cross-level bias — viés
r e l a t i v o às c i r c u n s t â n c i a s d e lidar s i m u l t a n e a m e n t e c o m v a r i á v e i s a g r e g a d a s e individuais, l i s t e p o d e
c o n t e r d o i s a s p e c t o s : viés d e a g r e g a ç ã o - r e s u l t a n t e do a g r u p a m e n t o d e i n d i v í d u o s e d e e s p e c i f i c a -
ç ã o — o r i u n d o da e x i s t ê n c i a d e v a r i á v e i s d e c o n f u s ã o por intermédio dos g r u p o s (Morgenstern,
1 9 8 2 ) . A c o n c e i t u a l i z a ç ã o analítica d e v a r i á v e i s p r ó p r i a s a g r u p o s (integrais e c o n t e x t u a i s ) p o d e ser
vista e m Susser (1994a; 1994b), e K o o p m a n & Longini Jr. (1994).
evitando transitar por níveis distintos de organização com suas margens de
vieses e erros. Assim, considerando as características de linearidade ou não
do sistema estudado, inferências preditivas feitas c o m base e m populações
p e r m a n e c e r i a m válidas para populações, e m relação, por exemplo, a novos
casos esperados no decorrer do tempo. J á inferências generalizadoras corres-
p o n d e n t e s à extrapolação sobre indivíduos ou populações n ã o equivalentes
dariam m a r g e m a previsões logicamente discutíveis, passíveis de equívocos.
Neste ponto, cabe destacar as tipificações problemáticas da categoria
' p o p u l a ç ã o ' e m suas elaborações conceituais e operacionais c o m base na
idéia de 'amostras representativas', essenciais para a epidemiologia moder-
na. C o m o m o s t r o u Samaja (1993, 1994), há limitações nos procedimentos
inferenciais aí envolvidos. Para este autor, é preciso avançar para estabele-
cer unidades de análise 'espaço-populacionais genuínas', correspondentes a
determinados agrupamentos populacionais reunidos por critérios, tais c o m o
a proximidade geográfica, as características de seus vínculos c o m u n i t á r i o s /
econômicos, a dinâmica sociocultural local e t c , ou seja, elementos que re-
presentem, c o m mais legitimidade, os complexos constituintes de u m a dada
formação social. Sob esta ótica, é desenvolvido o conceito de 'população-
sentinela', unidade populacional mínima, demarcada por m e i o da junção de
c o m p o n e n t e s populacionais que têm em c o m u m os seguintes traços: identi-
dade tipológica (definida c o m base em variáveis estruturais referentes, por
exemplo, a situações de caráter geográfico, demográfico, econômico, biológi-
co, educacional e relativa aos serviços de saúde); identidades territorial e
cultural; e capacidade de interagir e m processos decisórios. Tais populações
p o d e r ã o ser acompanhadas mediante o uso de variáveis importantes para a
monitoração de seus processos biológicos, psicológicos, e c o n ô m i c o s , ecoló-
gicos (Samaja, 1994).
E m que pese a indiscutível originalidade e a elaborada construção
teórica e conceituai subjacente a esta proposta, é preciso avaliar se, uma vez de-
marcada a população-sentinela, as variáveis de monitoração dos referidos proces-
sos ainda poderiam ser insuficientes para o fim a que se propõem. E m outros
termos, quais serão os referenciais de análise destas variáveis? Especialmente quanto
aos processos psicológicos, qual será a pertinência teórica e metodológica de tais
variáveis e respectivos indicadores? D e qualquer modo, o modelo sugerido avança
ao problematizar o aparentemente bem estabelecido Objeto populacional' da
epidemiologia e sugerir encaminhamentos que p o d e m ser promissores.
COMENTÁRIOS FINAIS

V i v e m o s em uma época em que a biotecnociência está gerando


profundas alterações nas delimitações disciplinares e um esgarçamen¬
to d a s c a t e g o r i a s e m d i f e r e n t e s d o m í n i o s , e s p e c i a l m e n t e a q u e l e s q u e
demarcam o natural, o social e o discursivo. Conforme afirma Esco-
bar (1994:217):

As fronteiras entre natureza e cultura, entre organismo e máquina são incessante-


mente redefinidas conforme fatores históricos complexos, nos quais discursos de ciência e
tecnologia desempenham um papel decisivo (...). 'Corpos', 'organismos'e 'comunidades'têm,
portanto, de ser reteorizados como compostos de elementos que se originam em três diferentes
domínios com fronteiras permeáveis: o orgânico, o técnico (ou tecnoeconômico), e o textual
(ou, em termos mais gerais, culturais).

V a i - s e t o r n a n d o cada v e z m a i s difícil n ã o a s s u m i r os ' r u í d o s ' q u e


' a t r a p a l h a m ' nossas p e s q u i s a s quantitativas c o m o inerentes à e n o r m e c o m -
p l e x i d a d e da realidade. Se o p r e ç o p a r a evitá-los i m p l i c a p r o c e d i m e n t o s
que signifiquem limitação das possibilidades de conhecer, d e v e - s e , talvez,
modificar o sentido de nossa postura de rigor científico e b u s c a r a positiva¬
16
ção do estatuto das a n o m a l i a s , hibridismos e imperfeições e incluí-las e m
o u t r a s c o n s t r u ç õ e s de c o n h e c i m e n t o , c a p a z e s d e p r o p o r c i o n a r práticas
m e n o s insatisfatórias c o m o as v i g e n t e s , resultantes, e m parte, das c r e n ç a s
na existência de fundamentos racionais sólidos q u e sustentem o e m p r e e n -
dimento biotecno-científico.
Ε importante considerar seriamente a possibilidade da tradição
quantitativa das ciências ditas naturais, em geral, e da epidemiolo-
gia, em particular, de apresentar sinais de desgaste em suas propos-
tas de p r o d u z i r conhecimento. Ε sintomática a preocupação de u m

16
O conceito de anomalia aparece em Kuhn (1970). Seu significado é considerado ambíguo, pois se,
por um lado, sua percepção pode configurar-se em elemento propulsor de mudanças paradigmáti-
cas, por outro, por estar relacionada à atividade do pesquisador, a anomalia pode, antes de tudo,
representar uma questão específica envolvendo mais sua habilidade e capacidade técnica do que um
desafio aos paradigmas vigentes. Há autores, como Palácios (1994, que sugerem quatro padrões de
resposta às anomalias: indiferença, rejeição, acomodação, oportunismo.
1 7
reconhecido matemático, René T h o m ( 1 9 9 5 ) , e m e l a b o r a r u m saber
que aborde d i m e n s õ e s qualitativas e suas especificidades, configura-
d o e m s u a t e o r i a d a s c a t á s t r o f e s q u e , segundo ele, teria a capacidade de
fazer previsões qualitativas.
Enfim, a especulação acerca das possibilidades de incorporar os agen-
tes provocadorcs de perturbações aos nossos esquemas científicos, de m o d o
a gerar outra(s) racionalidade(s) epidemiológica(s) e outra(s) relação(ões) (in-
clusive metafóricas) entre sujeito e objeto, não constitui um exercício dile-
tante e inócuo. Desta forma as 'impurezas' não adquirem inevitavelmente o
i n c ô m o d o significado de 'confundimento'. Talvez, admitindo mestiçagens,
seja possível alcançar outro patamar de compreensão e de intervenção sobre
o adoecer humano.

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17
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m ú l t i p l a s e seu c o n j u n t o g e r a e s t r u t u r a s e s t u d a d a s p e l o s m a t e m á t i c o s q u e d e s c r e v e m s u a s p r o p r i e -
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TÍTULOS DA

SÉRIE EPIDEMIOLÓGICA

VOLUME I

EQÜIDADE Ε SAÚDE: CONTRIBUIÇÕES DA EPIDEMIOLOGIA


Rita Barradas Barata, Maurício Lima Barreto,
Naomar de Almeida Filho & Renato Peixoto Veras (Orgs.), 1997.

VOLUME I I

TEORIA EPIDEMIOLÓGICA HOJE: FUNDAMENTOS, INTERFACES Ε TENDÊNCIAS


Naomar de Almeida Filho, Maurício Uma Barreto,
Renato Peixoto Veras & Rita Barradas Barata (Orgs.), 1998.

VOLUME I I I

EPIDEMIOLOGIA, SERVIÇOS Ε TECNOLOGIAS EM SAÚDE


Mauríào Lima Barreto, Naomar de Almeida Filho,
Renato Peixoto Veras & Rita Barradas Barata (Orgs.), 1998.

VOLUME I V

EPIDEMIOLOGIA: CONTEXTOS Ε PLURALIDADE


Renato Peixoto Veras, Maurício Lima Barreto,
Naomar de Almeida Filho & Rita Barradas Barata (Orgs.), 1998.
OUTROS TÍTULOS DA EDITORA FIOCRUZ EM CATÁLOGO*

• Estado sem Cidadãos: seguridade social na América Latina. Sônia Fleury, 1994. 249p.
• Saúde e Povos Indígenas. Ricardo Santos & Carlos E. A. Coimbra (Orgs.), 1994. 251p.
• Saúde e Doença: um olhar antropológico. Paulo César Alves & Maria Cecília de Souza
a
Minayo (Orgs.), 1994. 174p. I Reimpressão: 1998.
• Principais Mosquitos de Importância Sanitária no Brasil. Rotraut A. G. B. Consoli & Ricardo
a
Lourenço de Oliveira, 1994. 174p. I Reimpressão: 1998.
• Filosofia, História e Sociologia das Ciências I: abordagens contemporâneas. Vera Portocarrero
a
(Org), 1994. 268p. 1 Reimpressão: 1998.
a
• Psiquiatria Social e Reforma Psiquiátrica. Paulo Amarante (Org.), 1994.202p. 1 Reimpressão:
1998.
• O Controle da Esquistossomose. Segundo relatório do Comitê de Especialistas da OMS,
1994. 110p.
• Vigilância Aumentar e Nutritional: limitações e interfaces com a rede de saúde. Inês Rugani R.
de Castro, 1995. 108p.
• Hanseníase: representações sobre a doença. Lenita B. Lorena Claro, 1995.110p.
• Oswaldo Cruz a construção de um mito na ciência brasileira. Nara Britto, 1995. 111p.
• A Responsabilidade pela Saúde: aspectos jurídicos. Hélio Pereira Dias, 1995. 68p.
• Sistemas de Saúde: continuidades e mudanças. Paulo M. Buss e Maria Eliana Labra
(Orgs.), 1995. 259p. (co-edição com a Editora Hucitec)
• Só Rindo da Saúde. Catálogo de exposição itinerante de mesmo nome, 1995. 52p.
• Democracia Inconclusa: um estudo da Reforma Sanitária brasileira. Silvia Gerschman,
1995. 203p.
• Atlas Geográfico de las Malformaciones Congênitas en Sudamérica. Maria da Graça Dutra
(Org), 1995. 144p.
• Ciência e Saúde na Terra dos Bandeirantes: a trajetória do Instituto Pasteur de São Paulo no
período 1903-1916. Luiz Antonio Teixeira, 1995. 187p.
• Profissões de Saúde: uma abordagem sociológica. Maria Helena Machado (Org), 1995.193p.
• Recursos Humanos em Saúde no Mercosul. Organização Pan-Americana da Saúde, 1995.
155p.
• Tópicos em Malacologia Médica. Frederico Simões Barbosa (Org.), 1995. 314p.

* por ordem de lançamento/ano.


• Agir Comunicativo e Planejamento Social: uma crítica ao enfoque estratégico. Francisco Javier
Uribe Rivera, 1995. 213p.
• Metamorfoses do Corpo: uma pedagogia freudiana. Sherrine Njaine Borges, 1995. 197p.
• Política de Saúde: o público e o privado. Catalina Eibenschutz (Org.), 1996. 364p.
• Formação de Pessoal de Nível Médio para a Saúde: desafios e perspectivas. Escola Politécnica
de Saúde Joaquim Venâncio (Org.), 1996. 222p.
• Tributo a Vênus: a luta contra a sífilis no Brasil, da passagem do século aos anos 40. Sérgio
Carrara, 1996. 339p.
• O Homem e a Serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. Paulo Amarante,
1996. 141p.
• Raça, Ciência e Sociedade. Ricardo Ventura Santos & Marcos Chor Maio (Orgs.),
a
1996. 252p. (co-edição com o Centro Cultural Banco do Brasil). 1 Reimpressão:
1998.
• Bios-segurança: uma abordagem multidisciplinar. Pedro Teixeira & Silvio Valle (Orgs.),
a
1996. 364p. I Reimpressão: 1998.
• 1/7 Conferência Mundial sobre a Mulher. Série Conferências Mundiais das Nações
Unidas, 1996. 352p.
• Prevention Primaria de los Defectos Congênitos. Eduardo E. Castilla, Jorge S. Lopez-
Camelo, Joaquin Ε. Paz & Iêda M. Orioli, 1996. 147p.
• Clínica e Terapêutica da Doença de Chagas: uma abordagem prática para o clínico geral. João
Carlos Pinto Dias &José Rodrigues Coura (Orgs.), 1997. 486p.
• Do Contágio à Transmissão: ciência e cultura na gênese do conhecimento epidemiológico. Dina
Czeresnia, 1997. 120p.
• A Endemia Hansênica: uma perspectiva multidisciplinar. Marcos de Souza Queiroz &
Maria Angélica Puntel, 1997. 120p.
• Avaliação em Saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da inplantação de programas.
Zulmira Maria de Araújo Hartz (Org), 1997. 131p.
• Fome: uma (re)leitura de fosué de Castro. Rosana Magalhães, 1997. 87p.
• A Miragem da Pós-Modernidade: democracia e políticas sociais no contexto da globalização.
Silvia Gerschman & Maria Lucia Werneck Vianna (Orgs.), 1997. 226p.
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1997. 328p. (co-edição com a EdUSP)
• Saúde, Trabalho e Formação Profissional. Antenor Amâncio Filho & Maria Cecília G.
B. Moreira (Orgs.), 1997. 138p.
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• Doença: um estudo filosófico. Leonidas Hegenberg, 1998. 137p.
• Epidemiologia da Imprecisão: processo saúde/ doença mental como objeto da epidemiologia.
José Jackson Coelho Sampaio, 1998. 130p.
• Saúde Pública: uma complexidade anunciada. Mario Ivan Tarride, 1998.107p.
• Doença, Sofrimento, Perturbação:perspectivas etnográficas. Luiz Fernando Dias Duarte &
Ondina Fachel Leal (Orgs.), 1998. 210p.
• Loucos pela Vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Paulo Amarante (Coord.),
1998. (2ª edição revista e ampliada)
• Textos de Apoio em Vigilância Epidemiológica. Série Trabalho e Formação em Saúde, 1.
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (Org.), 1998. 149p.

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