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Epidemiologia
ECONOMIA, POLÍTICA E SAÚDE

ÜNESP
HUCITEC
SAÚDE EM DEBATE
TÍTULOS EM CATÁLOGO

Medicina e Política, Giovanni Berlinguer •? *


Saúde e Previdência: Estudos de Política Social, José Carlos de Souza Braga e Sérgio Góes de
Paula
A Saúde nas Fábricas, Giovanni Berlinguer
Ambiente de Trabalho: A Luta dos Trabalhadores pela Saúde, Ivar Oddone et al
Ecologia: Capital, Trabalho e Ambiente, Laura Conti
Saúde Para Todos: um Desafio ao Município, David Capistrano Filho e Aparecida Linhares •
Pimenta
Os Médicos e a Política de Saúde, Gastão Wagner de Sousa Campos
Saúde e Nutrição das Crianças de São Paulo, Carlos Augusto Monteiro et al
Epidemiologia da Desigualdade, César G. Victora, Fernando C. de Barros e Patrick Vaughan
A Doença, Giovanni Berlinguer
Educação Popular nos Serviços de Saúde, Eymard M. Vasconcelos
Tópicos de Saúde do Trabalhador, Frida Marina Fischer, Jorge da Rocha Gomes e Sérgio
Colacioppo
Trabalho em Turnos e Noturno, Joseph Rutenfranz, Peter Knauth e Frida Marina Fischer
Programa de Saúde dos Trabalhadores (a Experiência da Zona Norte: uma Alternativa em
Saúde Pública), Danilo Fernandes Costa et al
A Saúde das Cidades, Rita Esmanhoto e Nizan Pereira Almeida
Saúde e Trabalho: a Crise da Previdência Social, Cristina Possas
Saúde Não Se Dá: Conquista-se, Demócrito Moura
Epidemiologia e Sociedade (Heterogeneidade Estrutural e Saúde no Brasil), Cristina Possas
Processo de Produção e Saúde (Trabalho e Desgaste Operário), Asa Cristina Laurell et al
Epidemiologia do Medicamento (Princípios Gerais), Joan-Ramon Laporte, Gianni Tognoni e
Suely Rozenfeld
Educação Médica e Capitalismo, Lilia Blima Schraiber
Epidemiologia: Teoria e Objeto, Dina Czeresnia Costa (org.)
Sobre a Maneira de Transmissão do Cólera, John Snow
A Saúde Pública e a Defesa da Vida, Gastão Wagner de Sousa Campos
Epidemiologia da Saúde Infantil (Um Manual para Diagnósticos Comunitários), Fernando C.
Barros e Cesar G. Victora
Juqueri, o Espinho Adormecido, Evelin Naked de Castro e Cid Pimentel
O Marketing da Fertilidade, Ivan Wolffers et al
Terapia Ocupacional: Lógica do Trabalho ou do Capital?, Lea Beatriz Teixeira Soares
Minhas Pulgas, Giovanni Berlinguer
Mulheres: “Sanitaristas de Pés Descalços ", Nelsina Melo de Oliveira Dias

Série DIDÁTICA (direção de Emerson Elias Merhy)

Planejamento sem Normas, Gastão Wagner de Sousa Campos, Emerson Elias Merhy e Everardo
Duarte Nunes
Programação em Saúde Hoje, Lilia Blima Schraiber (org.)
Série SAÚDELOUCURA*(direção de Antonio Lancetti)

SaúdeLoucura 1, Antonio Lancetti et al


Desinstitucionalização, Franco Rotelli et al
SaúdeLoucura 2, Félix Guattari, Gilles Deleuze et al
Cinco Lições Sobre a Transferência, Gregorio Barembhtt
A Multiplicação Dramática, Hernán Kesselman e Eduardo Pavlovsky
Hospital, Dor e Morte como Ofício, Ana Pitta
Lacantroças, Gregorio Baremblitt
EPIDEMIOLOGIA
Economia, Política e Saúde
«w
Obra publicada com o apoio da
FUNDAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO DA UNESP

Presidente do Conselho Curador:


Paulo Milton Barbosa Landim

Diretoria:
Presidente interino e Diretor de Projetos
Especiais: Amilton Ferreira
Diretor de Publicações: Carlos Erivany Fantinati
Diretor de Fomento à Pesquisa: Mario Rubens Guimarães Montenegro.

EDITORA UNESP:
Diretor: Carlos Erivany Fantinati, Editor-Executivo: José Castilho Marques Ne­
to, Editores Assistentes: Evaldo Sintoni e José Aluysio Reis de Andrade.

JAIME BREILH

EPIDEMIOLOGIA
ECONOMIA, POLÍTICA E SAÚDE

Tradução
Luiz Roberto de Oliveira (coord.)
Antonio Luiz Caldas Junior
Carlos Alberto Macharelli
Dora Elisa Rodrigues Tolosa
Ildeberto Muniz de Almeida
Luana Carandina

ÜNESP
Fundação para o
Desenvolvimento
da UNESP
Copyright © Jaime Breilh

Título original em espanhol: Epidemiologia, Economia, Medicina y Política

Copyright © da edição em língua portuguesa: Editora Unesp, da Fundação para


o Desenvolvimento da UNESP-FUNDUNESP, Av. Rio Branco, 1210, CEP 01206,
São Paulo, SP, fone/fax (011) 2239560 e Editora de Humanismo, Ciência e Tec­
nologia “Hucitec” Ltda., Rua Geórgia, 51, CEP 04559, São Paulo, S.P., fone
(011) 241-0858

Fotocomposição, paginação e filmes: Helvética Editorial Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Breilh, Jaime.
Epidemiologia : economia, política e saúde / Jaime Breilh ; tradu­
ção Luiz Roberto de Oliveira... [et al.]. — São Paulo : Editora Uni­
versidade Estadual Paulista : Fundação para o Desenvolvimento da
UNESP : HUCITEC, 1991.

Bibliografia.

1. Epidemiologia 2. Medicina social 3. Política médica 4. Saúde


pública I. Título.

CDD-614.4
-338.47613
-362.10425
91-2840 NLM-WA 100
índices para catálogo sistemático:
1. Epidemiologia : Saúde pública 614.4
2. Medicina social : Bem-estar social 362.10425
3. Política de saúde : Economia 338.47613

ISBN: 85-7139-020-7 — Editora Unesp


85-271-0179-3 — Editora Hucitec

1! edição: Universidade Central do Equador (1979)


2! edição: República Dominicana (1981)
3! edição: Ed. Fontamara-México (1986)
4! edição: Ed. Fontamara-México (1988)
5! edição: Ed. Fontamara-México (1989)
A MEMÓRIA DE MEU PAI,
homem de bondade e de verdades
que me formaram.
í
Agradecimentos

O autor torna explícito seu agradecimento àqueles que,


dos diferentes ângulos da divisão do trabalho, colaboraram
para que essa obra fosse escrita, ou orientam-na com seus
valiosos comentários:

Edição em espanhol'. Cristina Laurell; Miguel Márquez; Juan


César Garcia; Maria Isabel Rodrigues; Bolívar Echeverría;
Agustín Cueva; Vicente Navarro; Edmundo Granda; Arturo
Campana; César Hermida; Oscar Betancourt; Pedro Cas-
tellanos; Wim Dierckxsens; Mariano Noriega; Eduardo
Kingman; Dagoberto Tejeda; Patrício Yépez; Armando
Betancourt; Alfredo Gómez Castellanos; Martha López Ruiz;
Esther Khon F.N. Pérez Ramírez; José Luis Osorno.
Edição em Português-. Luiz Roberto de Oliveira; Antonio
Luiz Caldas Junior; Carlos Alberto Macharelli; Dora Elisa
Rodrigues Tolosa; Ildeberto Muniz de Almeida; Luana
Carandina; Nair ísabel L. de Oliveira; José Rubem A.
Bonfim.

índice

Prólogo da primeira edição


Ana Cristina Laurell 9

Prólogo da terceira edição


Herman San Martin 17
Prólogo à primeira edição em português
Luiz Roberto de Oliveira 31

INTRODUÇÃO 35

PRIMEIRA PARTE: AS ILUSÕES DA INVESTIGAÇÃO MÉ­


DICA DOMINANTE 37
1- PERSPECTIVAS PARA A CRÍTICA DOS
MODELOS CONVENCIONAIS 39
A necessidade de transformar a epidemiologia e redi­
recionar a clínica . 39
O ponto de vista do investigador determina sua obje­
tividade 44
A fundamentação positivista da investigação em saúde 49
A objetividade e a força do ponto de vista democrático 54
O “populismo” epidemiológico da transição 60
O papel do método 64
Em direção a um novo método para a epidemiologia 67
2- OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS COMO RECURSO
DO PROJETO CAPITALISTA 71
Processo histórico e prática epidemiológica 71
Grandes etapas do capitalismo hegemônico e perío­
dos gerais da medicina 73
• O Laboratório de Fadiga em Harvard e a Explo­
ração da “Máquina Corporal” 79
A conquista do território econômico e a microbiologia 81
A crise dos anos sessenta e a “abertura social” .... 82
A história dos principais modelos: ciência e ideologia 85
• A polêmica de Virchow e os contagionistas no ca­
pitalismo pré-monopolista 85
Eugênio Espejo: o precursor de uma pequena nação 89
A teoria unicausal na formação e consolidação e do
capital monopólico 93
A “abertura social” dos modelos multinacionais e a
crise do imperialismo 99
Erradicação, controle e vigilância 106
“História Natural” de Leavell-Clark e o valor de troca
nas concepções ecológico-funcionalistas 108
• Considerações prévias 108
O valor de troca nas concepções ecológico-funciona­
listas 110
Um caso: o valor de troca na “História Natural” da
malária 115
A relação mercantil capitalista como fundamento das
ilusões da epidemiologia ecológica 120
Epidemiologia e “Pós-modernidade” 125
A epidemiologia em debate entre a saúde pública con­
vencional e a saúde coletiva 128
O debate epidemiológico atual 129

3- F1CÇÕES DO USO CONVENCIONAL DAS PRINCIPAIS


CATEGORIAS DE INVESTIGAÇÃO EPIDEMIOLÓGICA 133

A falácia das causas de doenças como “fatores” e de


classes sociais como “estratos” ;• 133
Por uma crítica e desmistificação dos sistemas empí­
ricos 147
Reflexões críticas sobre a informação demográfica
oficial.................................................................. 148
• Os censos............................................................. 149
Problema com os registros contínuos..................... 151
A Classificação Internacional de Doenças e a arbitrária
extrapolação da lógica clínica.......................... 152
As ilusões estatísticas................................................ 157
• A redução empírica do conceito “variação” (va­
riável) .............................................................. 157
Variação social e variação individual....................... 160
A quimera estatística do progresso em saúde......... 162
Os indicadores médios mascaram a crise................ 170
A enganosa definição psico-antropológica das “ne­
cessidades” em saúde........................................ 173
SEGUNDA PARTE: NOTAS PARA REINTERPRETAÇÃO
CIENTÍFICA DO PROCESSO SAÚDE-DOENÇA.................. 177
4- NOTAS PARA UMA REINTERPRETAÇÃO CIENTÍFICA
DO PROCESSO SAÚDE-DOENÇA................................ 179
Os fundamentos para uma transformação do méto­
179
do epidemiológico.................................
5- PRINCÍPIOS GERAIS PARA UM NOVO TIPO DE MÉ­
TODO NA INVESTIGAÇÃO EPIDEMIOLÓGICA ....189

Processo do conhecimento epidemiológico............ 190


A construção do objeto epidemiológico................. 192
Processos e conteúdos científicos vinculados à saúde-
doença 197
..............................
O referencial teórico................................................. 199
Como se determina o fato epidemiológico: leis que o
regem.................................................................. 199
O individual e biológico subsumido no social: deter­
minação do genótico e fenótipo....................... 201
Perfil epidemiológico................................................ 206
A reprodução social e o processo epidemiológico (ou
breve leitura epidemiológica d’O Capital)....... 209
• Passagem da reprodução material à reprodução
social................................................................ 209
• A relação entre o social e as condições naturais
exteriores.............................................................. 212
• História do predomínio do momento produtivo
sobre o momento de consumo. Bases para enten­
der as principais formas de reprodução social. 217
• A mercadoria força de trabalho e o perfil de
saúde-doença do operário.................................. 225
• O processo epidemiológico nos processos gerais 226
• Consumo e produção nas formações capitalistas 234
As hipóteses epidemiológicas................................... 239
• As hipóteses “práticas” da epidemiologia liberal 239
Observação, análise e conclusões............................. 243
t
6- A INVESTIGAÇÃO EPIDEMIOLÓGICA NA PRÁTICA
247
SOCIAL.....................................

A investigação epidemiológica e o desenvolvimento


248
das teses de luta...............................

ANEXO 1 251

ANEXO 2 255

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 267


Prólogo da primeira edição

O tema do trabalho de Jaime Breilh, a interpretação do


processo saúde-doença e doença coletiva — articulado na
formação econômico-social — foi objeto de polêmica pe­
riodicamente durante os últimos 150 anos. De uma ou de
outra forma tem surgido a proposição de que a doença não
pode ser entendida à margem da sociedade na qual ocorre.
A evidência incontestável de que o panorama patológico se
transformou ao longo da história, de que as doenças pre­
dominantes são distintas de uma sociedade para outra em
um dado momento, de que a problemática de saúde difere
de uma a outra classe social, dentro de uma mesma socie­
dade, comprova o caráter social e histórico da doença. Hoje,
há um reconhecimento quase universal da importância do
social no processo de geração da doença.
No entanto, esse reconhecimento não teve maiores reper­
cussões práticas.
A medicina continua sendo exercida nos hospitais com
um enfoque puramente clínico-biologicista. Assim, mesmo
a saúde pública, que deveria poder assimilar mais facilmente
a proposição da determinação social da doença, dada sua
orientação coletiva, segue desenvolvendo uma prática co­
mo se as características principais que determinam a distri­
buição desigual da doença na sociedade fossem biológicas
ou se devessem a problemas de um ambiente contaminado.
É significativo, por exemplo, que as estatísticas vitais ofi-
10 JAIME BREILH

ciais, uma das bases numéricas do planejamento dos servi­


ços de saúde, não permitam analisar a mortalidade em fun­
ção de variáveis socioeconômicas.
Essa situação contraditória — o reconhecimento do ca­
ráter social da doença e sua negação na prática — indubi­
tavelmente se deve a uma série de fatores. A explicação mais
simples é que a sociedade capitalista não pode assumir as
propostas da causalidade social da doença. É assim por­
que esta concepção desqualifica implicitamente a burgue­
sia como organizadora da sociedade em benefício de todos.
Aliás, a classe dominante incorrería em contradições ain­
da piores tratando de implementar uma prática conseqüente
i com a proposição da causalidade social, já que teria de par­
tir do princípio de que a patologia se gera na organização
da sociedade.
Essa explicação permite entender por que as propostas
com respeito à determinação social da doença não foram
impulsionadas nas grandes instituições burguesas. Haveria
que buscar outra explicação, no entanto, para dar conta da
ausência de uma formulação mais consistente que possa sus­
tentar as demandas reivindicatórias do movimento operá­
rio neste terreno. Quer dizer, haveria que explicar-se por
que os operários durante longos anos se limitaram a exigir
uma melhor distribuição dos serviços médicos sem sequer
questionar qualitativamente o conteúdo, a orientação e a
eficácia da medicina clínica.
Em uma primeira instância este fato provavelmente se
deve ao prestígio que esta medicina adquiriu com base na
introdução da quimioterapia, que permitiu aos médicos tra­
tar com êxito um grande número de doenças infecciosas.
Na consciência pública se ligou, erroneamente, este êxito
médico ao desaparecimento ou diminuição destes padeci-
mentos na coletividade. Erroneamente, porque já antes havia
começado a declinar devido a mudanças operadas na
sociedade.
No entanto, num outro nível, parece importante reconhe­
cer que durante o longo auge econômico do pós-guerra, nos
países capitalistas houve um domínio ideológico burguês que
influenciou muito claramente as demandas das classes tra-
PRÓLOGO 11

balhadoras. Assim, nos países capitalistas desenvolvidos pa­


recia que a solução à problemática das grandes massas era
a política redistributiva do Estado de Bem-Estar, e que nos
países subdesenvolvidos se sonhava com o “desenvolvimen-
tismo” como panacéia para resolver a miséria das classes
populares. Parecia, em outras palavras, que os problemas
sociais não derivam de um sistema de produção, mas da má
distribuição dos bens ou simplesmente da pobreza material.
Assim visto, não se percebia a necessidade de levar as de­
mandas mais além da redistribuição e do rápido desenvol­
vimento das forças produtivas da sociedade, que no terre­
no da saúde e da medicina se traduziam na demanda de mais
serviços e tecnologia médica.
No final dos anos sessenta o mundo capitalista sentiu as
primeiras manifestações da crise que vivemos hoje, em suas
expressões mais profundas; crise que, apesar de ser econô­
mica, apresentou-se como uma crise política, ideológica e
social. Isto, no campo que nos ocupa (a medicina e a con­
cepção da saúde coletiva), impulsionou as primeiras tenta­
tivas de reflexão crítica sobre a prática dominante e os su­
postos teóricos sobre os quais ela descansa. É no calor dos
primeiros combates que se começou a gestar uma corrente
de pensamento crítico dentro da medicina: os “Comitê d’ac-
tion santé” no meio francês; entre os negros e “chicanos”
dos EUA, ao exigir controle e reorganização dos serviços
comunitários; entre as mulheres, ao exigir controle sobre
seu corpo; nos movimentos contra a destruição ecológica.
As novas proposições, no entanto, adquiriram maior im­
pulso onde se articularam às lutas operárias, como na Itá­
lia, ou às necessidades de um amplo movimento popular,
como em alguns países latino-americanos.
A crítica mais estruturada primeiro se referiu à prática
médica, porém, ao mesmo tempo iniciou o questionamen­
to da forma de conceber a doença e suas causas. Começou-
se a entender que o paradigma biológico individual da doen­
ça, se bem que tenha impulsionado por longo tempo os avan­
ços do pensamento médico, esconde uma parte importante
da natureza do processo saúde-doença tal como se dá nos
grupos humanos, e se tem convertido em um entrave para
12 JAIME BREILH

a geração do conhecimento novo. Assim se propôs que as


causas da doença deviam ser buscadas não somente nos pro­
cessos biológicos ou nas características da tríade ecológica
— o hospedeiro, o agente e o ambiente —, mas nos proces­
sos sociais; na produção e reprodução social, retomando
assim as proposições da causalidade nos grupos humanos.
Não obstante, atrás do objeto empírico “doença” há vá­
rios fenômenos diferentes. Há um processo material bioló­
gico e uma interpretação do mesmo, que, socialmente fa­
lando, determina se o que se observa é “doença” ou
“saúde”.
Em segundo lugar há que enfatizar que a epidemiologia
não estuda a doença no indivíduo, mas no grupo humano,
ou seja, como característica da coletividade. O objeto de
estudo construído, então, exclui a concepção dicotômica da
saúde e da doença e o recupera como processo orgânico.
Porém, não é o processo orgânico do indivíduo, mas da co­
letividade e como tal resulta de um modo específico de
apropriar-se da natureza por meio de determinada forma
de organização social.
Definir o objeto de estudo desta maneira leva a várias
implicações. Em primeiro lugar, depreende-se que tem ca­
ráter social e biológico. É assim, tanto pelo modo de con­
ceituar sua determinação, problema que trataremos mais
adiante, quanto por ser uma característica da coletividade
constituída como tal, não através de uma simples somató­
ria de indivíduos, mas pelas relações objetivas que guarda
com outros grupos da sociedade.
Haveria que insistir em que o objeto de estudo da epide­
miologia assim definido não se nos revela tal qual empiri-
camente. Quer dizer, “o processo de saúde e doença coleti­
vo” não se verifica na realidade mais que como as condi­
ções de saúde de um grupo definido, segundo as categorias
da teoria social que orienta determinado estudo. Os corres­
pondentes empíricos do processo, finalmente, são os pro­
cessos de saúde e doença que ocorrem nos indivíduos, e é
nestes que se descobre o processo de saúde-doença coleti­
vo. Uma segunda questão que surge ao reformular o obje­
to de estudo e ao constatar seu caráter social é perguntar-
PRÓLOGO 13

se o que é enquanto fenômeno social, ou seja, como se ar­


ticula com o resto do processo social. A exploração desta
pergunta é de suma importância porque nos leva a colocar
o problema da causalidade ou da determinação e catego­
rias úteis na análise de nosso objeto de estudo.
A análise crítica da concepção dominante da determina­
ção do processo de saúde-doença, criada nos modelos de
monocausalidade e multicausalidade, revelava sua pouca ca­
pacidade explicativa, seu agnosticismo e sua biologização
do social. Isto é, a natureza do nosso objeto de estudo nos
permite distinguir alguns dos problemas, que se há que abor­
dar e tentar resolver na formulação de uma explicação causai
do processo coletivo de saúde-doença. Inicialmente, pare­
ce importante assinalar que a tarefa não é construir outro
“modelo” causai apto para ser mecanicamente aplicado a
qualquer caso concreto que se nos apresente. Ao contrá­
rio, trata-se de articular um modo de pensar acerca do pro­
cesso de saúde-doença, que nos permita descobrir quais são
seus determinantes em um caso dado. Isto significa dar conta
de forma sistemática de vários problemas que ressaltam, vin­
dos dos modelos existentes.
As duas falácias principais do modelo multicausal, seu
agnosticismo e a biologização do social, guardam uma es­
treita relação entre si, já que ambos têm a ver com a forma
de conceber a realidade como uma série de fatores interco-
nectados, cujo peso causai depende da proximidade do “efei­
to”. Assim visto, não se distingue a especificidade do so­
cial e do biológico, porque na realidade não tenta desco­
brir os processos íntimos, mas a aproximação entre um ou
vários “fatores” agrupados por cortes arbitrários e algum
“efeito” definido por suas características biológicas.
Biologiza-se o social porque se interpreta, separa e troca (in-
tercambia) no modelo causai qualquer outro “fator”, o mais
das vezes, biológico. Neste sentido, o que ocorre não é que
se biologiza o social e se sociologiza o biológico, mas que
se desnatura a ambos. Isto demonstra a necessidade de re­
cuperar a análise dos elementos que intervém na determi­
nação do processo saúde-doença como uma estrutura hie-
rarquizada e como um processo em desenvolvimento, o que
14 JAIME BREILH

significa apreciar a especificidade do social e do biológico


e esclarecer como os processos sociais chegam a expressar-
se em processos biológicos.
Essas exigências da explicação causai põem no centro do
problema a questão de como analisar a realidade, o que obri­
ga a definir que teoria social vamos utilizar em sua inter­
pretação. Essa definição se torna crucial, porque é o que
nos permite definir em termos mais precisos o caráter de
nosso objeto de estudo e as categorias centrais para sua aná­
lise. Parece possível fixar a certo nível de generalidade quais
são as categorias sociais que nos permitem analisar o pro­
cesso de saúde-doença coletivo, enquanto os processos bio­
lógicos tendem a ser específicos e analisáveis só em caso par­
ticular, se bem que é possível assinalar no geral que carac­
terísticas são as que nos interessam investigar em relação
a eles.
A segunda parte do trabalho de Breilh está dedicada a
dar uma primeira resposta sistemática aos problemas colo­
cados anteriormente. Elege o materialismo histórico como
a teoria social capaz de oferecer uma interpretação cientí­
fica da realidade. A categoria principal que logo desenvol­
ve é a da reprodução social, porque permite, por um lado,
analisar a relação entre o social e o natural e, por outro,
aprofundar os momentos de produção e de consumo, am­
bos indispensáveis para entender as formas de desgaste e
reprodução das classes sociais.
Ao seguir as transformações dos elementos simples do pro­
cesso de reprodução social, o autor logra explicar as carac­
terísticas deste sob o capitalismo. Definidas as categorias
simples, procede à definição do objeto de estudo — o pro­
cesso epidemiológico e os perfis epidemiológicos de classe
— e à análise de sua articulação no processo de reprodução
social. Assim, Breilh nos oferece um conjunto de catego­
rias analíticas articuladas entre si, que nos dá a possibilida­
de de abordar o problema do processo coletivo de saúde-
doença quanto à sua determinação e distribuição. Falta ainda
chegar a uma maior consistência nas proposições para po­
der consolidar o pensamento. Por exemplo, o problema da
transformação do processo social em processos biologicos
PRÓLOGO 15

apenas está esboçado, ou falta rever se as categorias eleitas


são as mais relevantes, etc. Todavia, a reconstrução dos fun­
damentos mesmos do pensamento acerca da saúde e doen­
ça, que se realiza no trabalho, é exemplar, porque demons­
tra um compromisso verdadeiro com o projeto de transfor­
mação do pensamento epidemiológico e uma consciência
clara dos problemas que isto implica.
Parece claro que dificilmente se pode avançar muito mais
nas proposições teóricas senão através da prática; a prática
da investigação, que é a única que pode verificar as propo­
sições e depurá-las, resultando, cada vez mais, maior pre­
cisão e aprofundamento. Porém, o avanço da nova epide-
miologia depende, também, da sorte das classes a cujos in­
teresses corresponde desenvolver a compreensão da saúde
e doença como uma característica da coletividade: as clas­
ses trabalhadoras. A estas não interessa tanto reparar os da­
nos individuais; isto é, restituir a força de trabalho, já que
elas e só elas estão em condições de reorganizar a socieda­
de, não para aumentar a produção, mas para satisfazer às
necessidades do homem. Podem então explorar, sem incor­
rer em contradições, quais são os termos de um processo
humano de desgaste e reprodução para estabelecer as con­
dições para que se realize otimamente.
Por isso, como há 140 anos com Virchow, a sorte da no­
va epidemiologia está ligada à sorte das classes trabalhado­
ras. Se elas podem avançar em seu projeto histórico, isto
abre um espaço para que possa prosperar uma nova ma­
neira de interpretar o processo de saúde-doença coletivo.

Asa Cristina Laurell


México, maio de 1979
t

•F

I
Prólogo da terceira edição

Este livro de Jaime Breilh, meu jovem colega equatoria­


no, encheu-me de alegria e de esperanças. Lendo-o, queria
ter muitas páginas para comentá-lo e discuti-lo neste pró­
logo, porque este é um livro rico em inovações, cheio de
possibilidades a desenvolver, prometedor para os epidemió-
logos, uma verdadeira surpresa para mim.
Porém, desgraçadamente, todo prólogo tem um limite que
não deve ser ultrapassado, senão deixa de ser um prólogo
e passa a formar parte do conteúdo da obra que o autor
apresenta. Algo assim é o que eu desejei porque a análise
de Breilh é dessas que convidam à discussão; é substancio­
sa, inteligente, agressiva. Apesar de sentir-me solidário com
o autor no fundamental que expõe e analisa, particularmen­
te, no sentido social da epidemiologia, eu me sinto tenta­
do, mais que a fazer o elogio bem-merecido da sua obra,
a discutir temas que me interessam muito entre os inúme­
ros que se analisam neste livro.
Por exemplo, quando Breilh fala da “manobra artificial
de naturalização ou ecologização dos problemas de saúde-
doença, apresentada como base teórica para que as leis que
os regem sejam fundamentalmente biológicas e ecológicas,
deslocando a consideração dos fundamentos econômicos so­
bre os quais se desenvolve a vida social humana”, eu pen­
so que Jaime comete um erro de interpretação. Com efei­
to, a ecologia das sociedades humanas foi sempre um pro­
cesso dinâmico e histórico, de velocidade progressiva em re-
18 JAIME BREILH

lação ao chamado progresso humano; quer dizer, conside­


ramos a ecologia não somente do ponto de vista biológico,
como mecanismo íntimo de todos os fenômenos biológicos,
como o foi originalmente nos começos das hordas de ho-
mo sapiens, mas como um processo de inter-relação entre
o ser vivo e seu ambiente total, vale dizer o ambiente físico-
geográfico, socioeconômico, psicossocial e cultural. Preci­
samente, o único mérito que eu encontro na definição de
saúde que formula a OMS é o de expressar esta relação de
tipo ecológico-social.
Se deixássemos fora do processo de produção da saúde-
doença o intercâmbio ecológico, que é geral e iniludível pa­
ra todos os seres vivos, não haveria uma explicação racio­
I
nal e concreta para a alteração orgânica que finalmente pro­
duz essa variabilidade quase permanente e dialética que os
estados de saúde-doença: o que sucedeu historicamente é que
o social, o cultural e o econômico se misturaram direta e
intimamente com o ecológico. Tem razão Breilh quando in­
siste em que a epidemiologia deve ser social, porque eviden­
temente o social, o cultural e o econômico são a fonte de
origem das cadeias de causalidade que conduzem à saúde
ou à doença através de uma contradição dialética, porque
são os mesmos fatores os que ao final atuam para produzir
uma ou outra, como sucede, por exemplo, com a alimenta­
ção ou o trabalho, que são fatores de saúde ou de doença,
segundo a forma em que atuem. O processo permanente e
iniludível para a vida, que é a inter-relação ecológica entre
o ser vivo e o ambiente total, explica o mecanismo orgâni­
co e individual do fenômeno saúde-doença; todos os fato­
res econômicos, sociais e culturais que fazem parte das es­
truturas da sociedade são as fontes de origem das cadeias
de causalidade, que vão alterar a relação ecológica através
do processo de adaptação-desadaptação. (Quadros 1 e 2)
René Dubos1 o diz claramente quando escreve que “a
saúde é, em seu mecanismo íntimo, um problema de ajus­
te, de adaptação a um ambiente total em constante evolu­
ção”; é esta situação a que dificulta e faz praticamente im­
possível a saúde permanente e para todos, porque o pro­
cesso de mudanças na população viva e no ambiente de vi-

1. R. Dubos, L’homme et adaptation au rnilieu. Paris: Payot. 1973.


PRÓLOGO 19

da é permanente e rápido. Esta situação, que a medicina


chamada científica não quis compreender, exige muito mais
que a simples cura da doença; exige uma complexa ação pre­
ventiva de natureza social, econômica e cultural, quer di­
zer, uma política nacional que atue sobre a população sem
discriminação nenhuma para produzir o bem-estar (no que
a saúde é parte mais importante), evitando as desigualda­
des sociais e econômicas, estimulando o desenvolvimento
cultural, oferecendo justiça e liberdade social. Compreende-
se que tudo isto exige a estruturação de uma sociedade jus­
ta, igualitária participativa e um tipo de desenvolvimento
não patógeno e dirigido às necessidades do homem e não
ao simples desenvolvimento tecnológico.
Temos dito que o mecanismo da vida na Terra é ecológico
e esta afirmação é um fato demonstrado tanto como a evo­
lução orgânica. Portanto, todos os fenômenos biológicos,
tais como a saúde e a doença, respondem a este mecanismo
íntimo. Isto não pode ser posto em dúvida. No entanto, tal
como sucede com a etiologia específica de muitas doenças,
seria um grave erro pensar que as coisas são tão simples co­
mo as expomos, ou tão “naturais” segundo a expressão de
Breilh. O processo ecológico não é, hoje, um fato simples­
mente biológico, ainda que o organismo para adaptar-se ou
desadaptar-se tenha necessariamente que pôr em jogo sua
biologia. O processo ecológico tem sido estudado tradicio­
nalmente de um ponto de vista biológico; todavia, jamais
foi um fato isolado da vida social dos seres vivos. No ho­
mem, desde o começo de sua vida social, os fatores econô­
micos e sociais se misturaram com o biológico para produ­
zir um tipo de animal fundamentalmente social, que é o ho-
mosapiens', este mesmo processo foi tornando cada vez mais
complexa e difícil a ecologia humana à medida que a socie­
dade se desenvolvia, à medida que as culturas se diversifica­
vam, à medida que os comportamentos se multiplicavam e
à medida que a estrutura econômica variava segundo inte­
resses diferentes aos do grupo, aos da espécie.
A alteração do ambiente ecológico natural começou já,
lentamente, é certo, na época paleolítica, sobretudo atra­
vés da caça de animais e do consumo de madeira como com­
bustível. Porém essa alteração acontece realmente por vol-
20 JAIME BREILH

ta do período neolítico, quando o homem começa a alterar


os ecossistemas naturais por sua atividade agrícola e por seu
sedentarismo. Durante a época feudal a alteração se acele­
rou um pouco mais pelo aumento da população, pela agri­
cultura extensiva e sobretudo pela destruição de bosques.
O desenvolvimento do mercantilismo e logo do capitalis­
mo, a exploração colonial das terras, das minas e dos ho­
mens produziram um transtorno maior na condição de vi­
da de milhões e milhões de seres humanos: as desigualda­
des sociais haviam sido então legitimadas.
A partir da chamada Revolução Industrial, desenvolvi­
da com intensidade na Europa, em meados do século XVIII,
I a situação social, econômica, política e ecológica da huma­
nidade começou a mudar vertiginosamente de forma para­
lela ao desenvolvimento do capitalismo e a sua expansão
pelo mundo e sua predominância: as conseqüências foram
as que já conhecemos, quer dizer, o aprofundamento das
diferenças de classes sociais, a exploração da classe traba­
lhadora, a dependência e exploração das sociedades mais
pobres pelas mais ricas, a industrialização desenfreada e a
abertura de mercados para colocar a grande quantidade de
produtos desnecessários para a vida do homem, a passa­
gem do capitalismo ao imperialismo econômico e político,
as guerras entre os países em competição, etc, e nenhuma
preocupação pelo bem-estar e o desenvolvimento sóciocul-
tural da humanidade. Esta situação se vê claramente quan­
do revisamos os indicadores de morbidade, de mortalidade
e a esperança de vida das sociedades e dos grupos dentro
de cada sociedade na história passada e também na atual.
Esta pequena história serve para mostrar como as socie­
dades humanas têm desenvolvido historicamente ambien­
tes ecológico-sociais de vida cada vez mais dominados e al­
terados pelo sistema de produção e de consumo o que, no
fundo, tem significado a mudança cada vez mais rápida dos
ecossistemas naturais, sólidos e estáveis por ecossistemas ar­
tificiais, que são débeis e instáveis. Às vezes para bem e mui­
to mais para mal, a atividade produtiva do homem tem mu­
dado sua orientação variando de valores biológicos da es­
pécie e de valores sociais e culturais do ser humano a va ores
PRÓLOGO 21

atuais que, em boa proporção, não correspondem a nossas


necessidades reais, a nosso bem-estar, a nossa saúde.
Sem nos dar conta, hoje começamos a pagar caro este ti­
po de sociedade predominante, este tipo de desenvolvimen­
to patógeno, este tipo de progresso acelerado. A crise de um
sistema econômico que não corresponde às necessidades bio­
lógicas da espécie, nem às necessidades sociais da humani­
dade, propõe uma crise e um dilema: a adequação da estru­
tura socioeconômica e política às exigências da biologia, da
ecologia e da condição humana de nossa espécie.2 Neste sen­
tido, as contradições humanas são flagrantes: apesar da al­
ta tecnologia na medicina, ainda não logramos viver nem se­
quer a metade do tempo que poderiamos viver como espé­
cie; vivemos mais tempo na doença que na saúde; vivemos
constantemente alienados, desadaptados ou mentalmente al­
terados; vivemos preocupados até o patológico por coisas
e por valores que não têm nada a ver com nossa biologia e
nosso bem-estar; vivemos destruindo-nos uns aos outros em
uma permanente atitude antibiológica (armamentismo, guer­
ras, controle social, ditaduras, falta de liberdade, etc.).
No campo que nos preocupa como profissionais, o da
saúde, a situação é dramática: as estruturas econômicas in­
justas, as desigualdades sociais conseqüentes, a pobreza da
maioria da população mundial, a produtividade e o consu­
mo, que alteram os ecossistemas que chegam a ser patóge-
nos, o uso do progresso técnico com fins de dominação e
de extermínio, etc., têm conduzido a humanidade a uma
situação patógena que tornou relevante a ineficácia de nossos
sistemas de serviços de saúde e de nossos métodos de análi­
ses dos problemas de saúde. Recentemente nos demos con­
ta desta situação; custou-nos séculos de história para veri­
ficar que o bem-estar biológico, mental e social das socie­
dades humanas não é prêmio nem castigo que nos vem do
céu, nem mero acidente causai, na vida humana, mas trata-se
de situações concretas, econômicas, sociais, culturais, po­
líticas, que atuam através do mecanismo de adaptação-de-
sadaptação, e que é o homem mesmo que tem produzido
estas situações através de sua atividade histórica e social.

2. No homo sapiens, o humano é todo o social e cultural que fonna parte iniludí-
vel de nosso ser biológico.
22 JAIME BREILH

Não é por acaso que o homem é o animal com maior mor-


bidade entre todos os seres vivos.
Estamos de acordo com Breilh que enquanto não se ana­
lise cientificamente a situação da saúde atual (Quadro 3),
até chegar à origem mesmo do problema, todos os esfor­
ços e todos os imensos recursos econômicos que hoje são
empregados terão pouca ou nenhuma utilidade para deter
o processo patógeno ou para mudar a situação de saúde da
humanidade. O prognóstico bem-fundado sobre a situação
econômico-social do mundo é negativo. De tal modo que
bons propósitos, como “saúde para todos no ano 2.000”,
não passarão de bons propósitos ou meras ilusões funda­
das no desconhecimento da realidade social existente em ca­
da país. Tudo o que se faz em saúde está em contradição
com o que deveria ser feito e o que deveria ser feito está
em contradição com os sistemas sociais predominantes na
Terra. Finalmente, o que se consegue é ajudar a bem mor­
rer ou a retardar um pouco a morte.
Por que esta situação aparentemente tão negativa e tão
sombria?
Jaime Breilh está em um bom caminho para responder a
esta pergunta. Os conceitos e os instrumentos metodológicos
que ele põe à disposição dos investigadores enriquecem as
possibilidades de chegar até a origem das cadeias de causali­
dade, vale dizer, seguir além da etapa intermediária de ris­
cos em que se acha submersa hoje a epidemiologia tradicional.
Os epidemiólogos não compreenderam ainda, e muito me­
nos os médicos, que sendo a epidemiologia uma disciplina
fundada na ecologia e no método científico de análise
(hipotético-dedutivo), ela precisou transformar-se em epi­
demiologia social desde o momento em que a ecologia
tornou-se também social. A epidemiologia, em suas etapas,
segue o modelo do método científico, que é hipotético-de­
dutivo e dialético; no caso da epidemiologia não se trata de
uma observação individual, mas da observação e experimen­
tação da população atuando na realidade social, que é seu
contexto natural. De tal modo que a epidemiologia neces­
sariamente tem de ser um estudo social. O verdadeiramente
importante é investigar com precisão os mecanismos e as vias
pelas quais os fatores determinantes, originados nas estru­
turas socioeconômicas, produzem e influenciam os nsc
PRÓLOGO 23

contra a saúde, que existem no ambiente de vida da popu­


lação. Se a epidemiologia analisa em profundidade esta situa­
ção, poderiamos chegar a identificar a origem mesmo das ca­
deias de causalidade de tudo o que suceda ao homem em vida.
A maioria dos responsáveis pela saúde no mundo parece
pensar, a julgar pelo que se lê nas revistas, que a situação
crítica da saúde é um fato circunstancial, uma conseqüên-
cia, de uma crise passageira do capitalismo. No entanto, os
prognósticos do “Clube de Roma” e das Nações Unidas não
são otimistas nem para o setor saúde nem para nenhum se­
tor do desenvolvimento:3 se se persiste no tipo de desenvol­
vimento que predomina hoje na Terra, se se persiste num
sistema econômico gerador de morbidade, se se persiste na
corrida armamentista e na dependência de uns países em re­
lação a outros, se se persiste em manter os povos isolados
da gestão social e das decisões, é evidente que os problemas
sociais da humanidade se agravarão cada vez mais e, logi­
camente, haverá mais pobreza, mas injustiça, mais guerra,
mais doenças, menos saúde para todos no ano 2.000.
Com razão, V. Navarro disse,4 referindo-se à crise da
saúde, que “a única maneira de romper o subdesenvolvi­
mento da saúde no mundo é terminar com a doença do sub­
desenvolvimento social”, vale dizer, entender de uma vez
por todas a natureza político-social da saúde-doença. As
mesmas forças políticas, econômicas e sociais que determi­
nam a estrutura de classes de uma sociedade são as que de­
terminam as desigualdades sociais, os comportamentos so­
ciais, os fenômenos de saúde-doença e a natureza e funções
das profissões de saúde e dos serviços do setor saúde, as­
sim como de todos os setores públicos. É evidente que a po­
bre saúde dos grupos mais pobres do mundo não se pro­
duz, como dizem os behavioristas, por comportamentos er­
rados, mas pela desigual distribuição do poder e dos recur­
sos econômicos-sociais na população; esta situação se pro­
duz, por sua vez, pela lógica interna do sistema capitalista,
que explica também o desenvolvimento de uns países e o
subdesenvolvimento de outros.
3. Para verificar as contradições existentes entre o que se faz e a realidade social,
ler o “Sexto Informe da Situação Sanitária do Mundo”. OMS, Genebra. 1981.
4. V. Navarro, Medicina under Capitalism. New York: Ed. Prodist. 1976.
24 JAIME BREILH

Nós pensamos que este problema só pode se resolver pe­


la atividade e a força mesma dos povos; talvez o maior pro­
blema de saúde que existe no mundo contemporâneo seja
a falta de poder e de controle sobre os meios de obter e de
proteger a saúde, por parte das populações que vivem em
uma dependência infantil dos serviços medicalizados ao ex­
tremo. Neste assunto Illich tem razão.5
No desenvolvimento histórico de cada classe social apa­
recem condições favoráveis e condições negativas que atuam
sobre o processo de adaptação-desadaptação ecológica e que
são o resultado do processo histórico em que se inscreve­
ram a classe social específica e os indivíduos, segundo sua
I
posição socioeconômica e sua inserção no trabalho. Este per­
fil epidemiológico social adquire na análise epidemiológica
o valor de uma categoria que expressa mais realmente os
problemas de saúde que os indicadores geralmente utiliza­
dos, porque expressam as contradições da saúde-doença tal
como se produzem na realidade e explicam também o fe­
nômeno da reprodução social da saúde-doença tal como su­
cede. Maurício Backett, meu amigo inglês, já demonstrou
isto nas doenças infecciosas, que aparentemente têm me­
nos que ver com as estruturas sociais; ele demonstrou que
a distribuição de anticorpos na população humana é dife­
rente em relação às classes socioeconômicas e isto à mar­
gem de toda vacinação programada. Na França, Bourdieu
e Passeron demonstraram a distribuição dos fracassos es­
colares em relação à classe social do país. Nos demais seto­
res sociais sucede o mesmo.
Com este livro, Breilh completou o que metodologica-
mente faltava à epidemiologia tradicional para converter-se
em uma verdadeira epidemiologia social. Se Sigerist, de
quem fui aluno, vivesse, se apressaria em felicitar Jaime
Breilh, porque é um dos primeiros epidemiólogos que se atre­
ve a desmistificar aquilo que não se deve dizer. Todos di­
zem e escrevem que a saúde e a doença são fenômenos so­
ciais e que a medicina é uma profissão social. Contudo, a
realidade que vivemos atualmente é totalmente contrária.
Esta é uma época curiosa: no momento em que mais se fa-

5. I. Ulich, Nemesis Medicale. Paris: Ed. Senil. 1975


PRÓLOGO 25

la de paz, há mais perigo de guerra; no momento em que


os discursos são dirigidos para a cooperação internacional,
há mais desunião e mais contenda; nos momentos em que
projetamos a saúde para todos, há uma verdadeira crise mun­
dial da saúde (Quadro 4); no momento em que a medicina
parece estar em seu apogeu e a medicalização da população
parece ser completa, eis aqui que se desenvolve, como con­
trapartida, uma corrente de pensamento que critica tudo o
que se faz atualmente. No caso da medicina e da saúde pú­
blica, a crítica vai até as raízes mesmas de seus fundamen­
tos, quer dizer, estende-se até a estrutura socioeconômica
que gerou estes tipos de instituições que hoje aparecem ine­
ficazes frente aos achados desta nova epidemiologia.
Neste sentido, Breilh é um “herege”, como tantos ou­
tros que dizem a verdade. A história desta heresia começa
pelos anos de 1970 e, claro está, os hereges somos6 os epi-
demiólogos, gente de Saúde Pública, cientistas sociais, his­
toriadores, etc. Todos eles são unâmimes em explicar a
saúde-doença como um fenômeno eminentemente social no
qual os serviços médicos e sanitários tradicionais não têm
senão um papel muito secundário na modificação do pro­
blema; são unânimes também na idéia de que enquanto es­
tes sistemas continuem a desempenhar um papel de meros
distribuidores de medicamentos para aliviar ou curar doen­
ças não haverá nenhuma mudança positiva na saúde da po­
pulação; são unânimes também em que as profissões de saú­
de devem tomar o papel social que lhes correspondem e as
escolas que formam estes profissionais devem modificar to­
talmente seus programas de formação, porque a saúde e a
doença são fenômenos sociais coletivos em suas origens e
em sua evolução.
A contribuição de Jaime Breilh, investigador e educador,
é, neste sentido, notável; eu o felicito, estou muito agrade­
cido a ele e o estimulo a continuar em seus estudos com seus
companheiros de trabalho.
Prof. Hernan San Martin
Universidade de Paris, Primavera de 1982.

6. Herman SAN MARTIN, La crisis mundial de la Salud. Madrid: Edit. Ciên­


cias dei Hornbre. 1981.
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PRÓLOGO 29

QUADRO 4 — CRISE ATUAL DA SAÚDE


FATORES GERADORES E FATORES DE INFLUÊNCIA

Estrutura socioeconômica
— Modo de produção e de consumo de tipo
industrial — competivivo
— Tipo de desenvolvimento não-ecológico.

— Baixo nível de vida da


população — Modos de vida da população
— Desigualdade socio- — Nível educacional
econômicas

Aumento dos fatores de


Degradação do ambiente riscos biológico-mental-
ecológico da população social no ambiente de vi­
da da população.

Crise
da
saúde

Estrutura, cobertura, orientação


e eficácia dos sistemas de
serviços de saúde.

Fonte: H. San Martin, “La situación actual de la salud en el mundo’’. Conferência en


el Sindicato Nacional de Trabajadores de la salud, Madrid, octubre, 1980.
1

I
Prólogo à primeira edição em português

Para nós, epidemiologistas brasileiros, já há algum tem­


po impunha-se a tradução deste livro de Jaime Breilh, pela
referência em que se tornou para a construção da nova epi-
demiologia, científica e crítica; para maior divulgação en­
tre nós, pesquisadores, professores e pós-graduandos da Epi-
demiologia; e também pela pertinência da sua abordagem
para a atualidade, quando um intenso e amplo debate ideo­
lógico sobre a vitalidade do marxismo como ciência se faz
necessário.
Os primeiros escritos de autores equatorianos, hoje do
CEAS (Centro de Estudos e de Assessoria em Saúde), da­
tam de 1976 e constituem-se em críticas epidemiológicas mar­
xistas; Breilh, Granda e Campana integram, assim, o time
pioneiro de intelectuais latino-americanos que como Gar­
cia, Laurell e Arouca, na década de setenta, aglutinam-se
“em torno da adoção de um pensamento científico eman-
cipador que rompeu as amarras conceituais e político-ide-
ológicas da Saúde Pública positivista e fenomenológica da
América do Norte e da Europa.”7
O presente livro nasceu em 1977, como tese de mestrado
de Medicina Social apresentada à UAM-Xochimilco (Mé­
xico), sob o título Crítica a la Concepción Ecológico-Fun-

7. Breilh, J. et al., Desarollo de la Medicina Social en America Latina. Compo­


nente de Metodologia: “La construccion dei pensamiento en Medicina Social”
(Proyeto ALAMES/OPS). Quito, Equador: CEAS. 1990. (xerox), p. 33.
I
32 JAIME BREILH

cionalista de la Epidemiologia, e foi publicado pela primeira


vez em 1979 como Epidemiologia: Economia, Medicina y
Política.3 Representa um importante passo dado em dire­
ção à estruturação de uma sólida proposta teórico-
metodológica que ensejou não só a fundação do CEAS, mas
sobretudo a construção posterior de avanços em Epidemio­
logia e “em investigações da prática e do saber”.9 É um
marco de referência histórica na luta progressista pela pro­
dução, em bases científicas, do conhecimento epidemioló-
gico. Faz parte do grito de independência e de crítica supe-
radora da intelectualidade latino-americana da saúde em re­
lação aos “postulados teórico-metododológicos e prescri­
l ções práticas da Saúde Pública oficial e da Medicina hege­
mônica”.10 Nestes aspectos residem a importância deste li­
vro e a sua indispensabilidade para o prosseguimento, em
escala multiplicada, da construção da Epidemiologia críti­
ca, marxista, que seja capaz não apenas de se contrapor à
Epidemiologia tradicional, positivista, mas de superá-la na
capacidade diagnóstica e interpretativa da realidade de saúde
das sociedades.
Jaime Breilh ocupa hoje lugar de destaque entre os pes­
quisadores marxistas latino-americanos que se dedicam à saú­
de coletiva. Posta-se, cristalinamente, ao lado dos explorados
(povos e classes), estudando os problemas que os afetam, ex­
traindo propostas de transformação social e devolvendo o
conhecimento produzido ao movimento organizado dos tra­
balhadores, para alimentá-lo com motivos de luta. Além dis­
so, Breilh procura levar às últimas conseqüências a tese de
Marx, do conhecer para transformar11; procura fundir a ati­
vidade científica, produtora de conhecimentos, à prática po­
lítica transformadora. Pelo peso desta responsabilidade que
a si atribui, talvez seja o autor que mais profundamente es­
tude e procure converter em prática de investigação em saú­
de os princípios filosóficos do materialismo dialético e histó-

8. Breilh, J. et al. op. cit. p. 107.


9. Breilh, J. et al. op. cit. p. 48.
10. Breilh, J. et al. op. cit. p. 33. .
11. Marx, K. “Teses Feuerbach”. In: Marx & Engels. A ideologia alema
(Feuerbach). 4 ed. São Paulo: HUC1TEC. 1984.
PRÓLOGO 33

rico. Neste sentido, extraiu da filosofia científica marxista


a “reprodução social” como sendo a síntese de todo o dra­
ma humano, a sua essência mesma, expressa em dois mo­
vimentos polares, a produção e o consumo, sem os quais
o gênero humano não teria existência, e a partir dos quais
a reprodução biológica, a vida, a saúde, a doença e a mor­
te se viabilizariam. A partir desta unidade nuclear, cons­
truiu o conceito de perfil epidemiológico, constituído de dois
componentes básicos: o social, ou perfil de reprodução so­
cial, e o biológico, ou perfil de morbi-mortalidade, este sub-
sumido naquele. Breilh, neste esforço de ver o processo
saúde-doença em seu movimento real, contraditório, aju­
dou a desgarrar a Epidemiologia da Clínica, a vislumbrar
a organização social como substrato dos fenômenos indi­
viduais e grupais de saúde-doença, e a substituir a lógica
formal pela lógica dialética como método de investigação.
Não pretendo me antecipar aqui com uma síntese do li­
vro e tirar do leitor as surpresas que o texto guarda. Já se
disse, no prólogo da primeira edição deste livro, que a abor­
dagem do processo saúde-doença que Breilh faz representa
uma polêmica que já dura mais de século e meio. Neste pe­
ríodo, às vezes dissimulada, outras vezes declaradamente,
conservadores e críticos da ordem social estabelecida pelo
modo de produção capitalista têm se confrontado, tanto no
plano das idéias como na luta política. Apesar da duração
da contenda e da intervenção de inúmeros autores, o texto
de Breilh tem novidades: por exemplo, quando resgata obras
e autores da “contra-hegemonia”, sobretudo na América
Latina; ou então, quando resgata de Marx para a Epide­
miologia a categoria nuclear de análise do materialismo-
histórico, fazendo-o extensivamente; ou ainda, quando in­
sere nesta edição em português temas de cadente atualida­
de, como é o caso da discussão sobre “modernidade e pós-
modernidade”.
Por tudo isso e também pela confusão ideológica e per­
plexidade causadas pela conjuntura político-econômica mun­
dial, face à agudização dos problemas que os países do Leste
europeu vinham sofrendo, ensejando a crítica ao socialis­
mo como caminho de desenvolvimento econômico-social,
34 JAIME BREILH

e face às vitórias eleitorais do neoliberalismo, particular­


mente na América Latina, acenando com antigas bandei­
ras como se fossem novas, nada mais oportuno do que a
publicação desta obra de Jaime Breilh. A catarse das for­
ças de direita no mundo todo, ao alardeamento da “falên­
cia do socialismo e da morte do marxismo”, à elegia dos
ideais neoliberais como pós-modernos, à euforia cega diante
das mazelas do sistema capitalista e à vacilação, ou mesmo
capitulação de setores progressistas e de esquerda diante do
“canto da sereia” do convívio harmônico entre explorado­
res e explorados, nada melhor do que uma reafirmação do
poder explicativo e da contundência da ciência marxista. Na­
da melhor do que fazer ver que o materialismo-histórico não
apenas está vivo, mas multiplica-se em contribuições como
esta de Breilh.

Luiz Roberto de Oliveira


Faculdade de Medicina-UNESP, Botucatu, abril de 1991.
Introdução

O conhecimento científico das condições particulares de


saúde e doença, que existem em uma formação social, po­
de desenvolver-se em dois campos principais: a investiga­
ção clínica, cujo âmbito de explicação, exame e prática, se
concentra nos indivíduos, e a investigação epidemiológica,
que interpreta, observa e transforma a sáude-doença como
processso coletivo.
Por razões históricas se institucionalizou uma confusão
acerca das possibilidades e limites da clínica e da epidemio-
logia. À primeira se atribuíram uma hegemonia na inter­
pretação dos fatos e uma jurisdição prática que ultrapas­
sam sua própria lógica e capacidade instrumental. A epi-
demiologia, em troca, foi reduzida conceituai e metodolo-
gicamente, ao ponto de se convertê-la em um aditamento
secundário da vertente clínica dominante.
A necessidade de desentranhar as bases dessa confusão
e de contribuir para o esclarecimento de um marco de refe­
rência objetivo, que permita superar o errôneo enfoque fun-
cionalista, nos levou a nos dedicarmos à construção de uma
hipótese para a reproposição da investigação da saúde-
doença.
Por considerar que a obra devia abrir caminho em meio
a um contexto de enfoques contraditórios, julgamos que se­
ria orientador para o próprio trabalho de reformulação, e
para quem, como o leitor, pudesse mais tarde revisá-lo, ex-
36 JAIME BREILH

plicitar desde o começo a ótica política que este trabalho


de reproposição pretendeu.
Por considerar que o materialismo histórico integra o pon­
to de vista popular, o rigor de um método de análise cientí­
fico e a projeção efetiva de uma ferramenta de transfor­
mação política, o adotamos como sustentação teórica des­
ta tarefa.
A primeira parte revisa criticamente o papel histórico dos
estudos epidemiológicos ante o projeto capitalista de desen­
volvimento, depreendendo-se dessa crítica os pontos nodais
em que se expressa a contradição da ótica hegemônica com
o ponto de vista democrático.
O questionamento sistemático dos conceitos, dos méto­
dos, dos sistemas de observação da realidade e, por fim,
do valor aplicativo, que caracterizaram a epidemiologia fun-
cionalista, nos permitiu ordenar proposições alternativas e
reconstruir uma forma epidemiológica de olhar a realidade
unitária do todo social.
Até as partes finais, propõem-se alguma sistematização
da tarefa perquisitiva e uma opção de conteúdos docentes
para apoiar a multiplicação do compromisso epidemiológico.
Se fosse necessário resumir a essência deste ensaio, di­
riamos que é uma tentativa para desmistificar a interpreta­
ção dominante dos problemas de saúde-doença e participar
com algum rigor no desenvolvimento de uma parte, talvez
importante, da consciência de nosso povo.
PRIMEIRA PARTE

As Ilusões da Investigação
Médica Dominante

' 'Os pressupostos básicos de uma teoria incorreta podem ser suficientemen­
te gerais para permitir uma ampla gama de ações efetivas dentro de seus
limites”.

"Por exemplo, os gregos e egípcios puderam desenvolver suas cartas geo­


gráficas e a navegação aplicando os princípios centrais da Teoria de Ptolomeu
que colocava erroneamente a Terra como centro do Universo".

"Igual implicação tiveram as teorias do miasma e do gérmen causai frente


ao desenvolvimento de ações de saneamento”.

M. Susser
Divisão de Epidemiologia
da Universidade de Columbia.
t
1. Perspectivas para a crítica dos
modelos convencionais

A NECESSIDADE DE TRANSFORMAR A
EPIDEMIOLOGIA E REDIRECIONAR A CLÍNICA

Os problemas decorrentes do que fazer no campo das


ciências biológicas e da saúde apontam reiteradamente pa­
ra a fragilidade dos instrumentos conceituais e metodoló­
gicos, através dos quais pretende-se estudar a saúde-doença
enquanto fenômeno coletivo e a interligação dos fatores so­
ciais com os biológicos.
Até recentemente ocultava-se esta fragilidade atrás da sim­
ples e fácil extrapolação de recursos que integram a clínica
sob o paradigma da saúde reducionista, o que levava a in­
terpretar o social como uma associação estatística de da­
dos individuais e completava o raciocínio com a justaposi­
ção dos assim chamados “fatores socioeconômicos” às so­
matórias de morbi-mortalidade, a fim de demonstrar rela­
ções de associações estatísticas.
Esta contínua e difundida transgressão dos campos de
interpretação e práxis da clínica em relação à epidemiolo-
gia tem profundas raízes históricas que serão discutidas mais
adiante. No momento, adiantamos apenas uma diferencia­
ção geral.
A clínica é um conjunto de conceitos, métodos e formas
de atuação prática aplicados ao conhecimento e transfor­
mação do processo saúde-doença na dimensão individual.
40 JAIME BREILH
I

Seu objeto de trabalho é, conseqüentemente, o conjunto de


condições finalmente identificadas no indivíduo como ma­
nifestação de uma série complexa de determinações que ope­
ram nos processos supra-individuais.
Devido à natureza individual de seu objeto, a clínica adota
as ciências naturais como suporte teórico e instrumental.
A clínica prioriza as ciências físicas e biológicas e recorre
às ciências sociais e filosóficas (especialmente: psicologia,
semiologia, administração) de forma muito limitada.
O método que a clínica utiliza é intensivo no sentido de
realizar estudo minucioso e exaustivo dos processos indivi­
duais de caráter orgânico-funcional e psíquico. Correspon­
dendo à natureza individual de seu objeto e ao caráter in­
tensivo do seu método, as formas de atuação clínica são
igualmente singulares, sejam estas do tipo preventivo pri­
mário (isto é, prevenção etiológica imediata), sejam do ti­
po corretivo ou reabilitador.
A epidemiologia deve ser um conjunto de conceitos, mé­
todos e formas de atuação prática que se aplicam ao co­
nhecimento e transformação do processo saúde-doença em
sua dimensão coletiva ou social. Seu objeto de trabalho acha-
se delineado pelos processos que, no domínio social geral
ou das classes e frações sociais especiais, determinam a pro­
dução de condições específicas de saúde e doença. O corpo
teórico e instrumental em que se apóia a epidemiologia cor­
responde principalmente às ciências sociais e às ciências na­
turais em sua expressão supra-individual. A epidemiologia
recorre às disciplinas da física e da biologia de forma limi­
tada. Para a delimitação social e ampla de seu objeto, ne­
cessita da implementação de métodos de corte extensivo,
que sejam idôneos para esquadrinhar os processos estrutu­
rais e de classe, bem como estabelecer observações de mas­
sa no terreno empírico. A epidemiologia situa, coerentemen­
te, seu nível de ação transformadora no social, na proble­
mática de saúde que se dá em conseqüência dos processos
de deterioração ocorridos no trabalho e consumo das clas­
ses sociais e suas frações, processos estes vinculados à re­
produção geral da estrutura capitalista e às condições polí­
ticas e culturais que dela derivam.
PERSPECTIVAS PARA A CRÍTICA... 41

O movimento histórico e o jogo das limitações e possibi­


lidades de cada um destes dois grandes métodos do conhe­
cimento determinaram uma falta de clareza quanto a sua
delimitação teórico-prática. Atualmente, fica evidente que
no substrato das limitações que indicamos encontra-se a ne­
cessidade de exercer a análise crítica e a reformulação das
bases teóricas e metodológicas da epidemiologia e redire­
cionar as possibilidades explicativas e de ação baseadas no
conhecimento clínico.
O esclarecimento das diferenças entre o que é epidemio­
lógico e o que é clínico é crucial na prática contemporânea.
É fato comprovado que o poder hegemônico na saúde tem
obscurecido e reduzido a tarefa epidemiológica e a interpre­
tação da causalidade, enfocando os fenômenos epidemio-
lógicos como somatória dos problemas individuais, como
se o fato “coletivo” fosse uma simples agregação de fatos
“singulares”, como se o fenômeno epidemiológico fosse a
mera agregação de problemas clínicos. Por esse motivo, há
vários anos, o autor vem alertando o movimento latino-
americano da saúde coletiva (exposição feita à Associação
Internacional de Epidemiologia — Ribeirão Preto, 1984) so­
bre a necessidade de enfrentar a expansão de uma equivo­
cadamente denominada “epidemiologia” clínica, promovida
por alguns círculos acadêmicos e fortemente apoiadas por
entidades financeiras do mundo hegemônico, como a Fun­
dação Rockfeller, moda que está contribuindo para o pro­
pósito retrógrado de dificultar e confundir a construção do
caráter sócioestrutural do problema epidemiológico.
É importante esclarecer então: o que vem a ser afinal es­
ta epidemiologia clínica? Qual sua origem e a que se refe­
re, na prática, esta disciplina que se procura promover a
partir dos centros hegemônicos? Na verdade, o termo “epi­
demiologia clínica” já foi usado há 50 anos por John Paul
que, segundo Last, deu-lhe a seguinte definição: “Um ca­
samento entre os conceitos quantitativos, utilizados pelos
epidemiólogos para estudar as doenças nas populações e a
tomada de decisões em casos individuais, que é a tarefa co­
tidiana da medicina clínica”. (1) Se a epidemiologia clínica
significa, segundo Last, utilizar a experiência anterior para
sustentar decisões sobre os cuidados aos pacientes, trata-se
42 JAIME BREILH

então de uma ramificação antiga, que deveria ser chamada


de algo semelhante a “clinicometria” ou “análise de deci­
sões clínicas”. Não pode ser chamada de epidemiologia por­
que esta implica objetos de estudo, métodos e práxis total­
mente distintos. Parece, entretanto, que a confusão na titu­
lação e o respaldo financeiro não são apenas o produto in­
gênuo de um erro conceituai, mas um esforço a mais para
feiticizar a epidemiologia, desviando seu centro de interesse
para o clínico e bloqueando seu desenvolvimento na dire­
ção dos conteúdos e implicações práticas do social, da de­
núncia e do conhecimento da saúde coletiva. Em princípio,
a moda da epidemiologia clínica significa isto e apenas isto,
com sua ótica medicalizante e sua redução dos problemas
epidemiológicos a campos como os da contabilidade e au­
ditoria da casuística assistencial. Representa uma a mais den­
tre as inúmeras distorções que pesam sobre o avanço da epi­
demiologia, que é crucial para a construção da realidade sa­
nitária e ciijo poder como instrumento de investigação e prá­
xis se procura depreciar a partir dos enfoques hegemônicos
neopositivista e fenomenológico. Numa época como a atual,
de enfraquecimento da racionalidade crítica e de retomada
da razão instrumental, que os “papas” do capitalismo que­
rem definir como “Era da Pós-Modemidade”, propugnando
o avanço social por meios puramente tecnológicos e defen­
dendo as supostas bondades de um capitalismo benigno, em
que se atenuam ou dissipam, milagrosamente, os conflitos
e as desigualdades sociais, urge multiplicar uma contra-
ofensiva e elevar a prática e o discurso crítico.
O problema antes mencionado não é o único ponto de es­
clarecimento e debate que a epidemiologia enfrenta. Em anos
recentes estão sendo impulsionadas também outras varian­
tes à margem do modelo hegemônico, algumas nos núcleos
acadêmicos, divididas entre as escolas empírico-analítica e
popperiana, e outras destinadas ao uso nos serviços de saú­
de do mundo dependente, como formas de uma epidemio­
logia simplificada para a ação pragmática sobre “fatores de
risco” isolados. Portanto, deve ser intensificada a tarefa de
esclarecimento e debate neste campo, que acompanhe o que
fazer mais geral da luta pela saúde da população.
PERSPECTIVAS PARA A CRÍTICA... 43

O objeto deste trabalho gira em torno desta tarefa de re­


formulação, reconhecendo que a ruptura dos moldes epi-
demiológicos, já superados pela realidade, é um processo
que se origina e se exerce socialmente. Por esta razão, nos­
sa participação busca apenas sintetizar uma parte desta ri­
ca experiência coletiva.
A carência de um instrumental idôneo é proporcional ao
prolongamento das idéias e métodos comprovadamente ine­
ficazes de uma epidemiologia empírica. Representa um va­
zio, uma solução de continuidade que se interpõe entre os
problemas de saúde freqüentes e agudos das classes sociais
majoritárias e a necessidade que existe de interpretar a rea­
lidade corretamente, formulando-a nos termos de seu ver­
dadeiro interesse de classe. Esta visão “de superfície” vi­
gente contribui para limitar também a articulação ou de­
sempenho orgânico dos trabalhadores da saúde com seu re­
curso básico, que é a organização popular.
A “velha” epidemiologia obedece aos fundamentos
empírico-funcionalistas de uma atuação científica que é exer­
cida, consciente ou inconscientemente, de forma a benefi­
ciar os setores atrasados de nossas sociedades. Aborda os
princípios de causalidade e distribuição em seus efeitos apa­
rentes, mede e correlaciona tais efeitos para conhecer o es­
tado ou potencialidade funcional da população, para de­
tectar a prevalência de alterações orgânicas ou psíquicas que
transtornam sua produtividade e para estabelecer bases mí­
nimas de proteção dos grupos produtivos. É uma epidemio­
logia que atua segundo normas de eficiência e efetividade,
delimitadas de acordo com as necessidades de desenvolvi­
mento do grande capital. Pelo contrário, o enfoque que de­
fendemos consiste em uma linha de crítica permanente aos
elementos técnico-ideológicos que sustentam um modo de
produção ( o capitalista), que consideramos essencialmen­
te patogênico e, portanto oposto por natureza ao exercício
epidemiológico verdadeiramente eficaz.1
1. Eficácia é a capacidade resolutiva das ações programadas para a atingir as metas.
Eficiência define a relação de “custo-benefício” na realização das tarefas. Efe­
tividade estabelece o nível da cobertura alcançada.
44 JAIME BREILH

Propomos uma investigação que ofereça as possibilida­


des para o avanço do conhecimento: a aplicação das leis
do materialismo histórico ao estudo dos princípios de de­
terminação e distribuição, que são os fundamentos da epi-
demiologia, com o objetivo de superar essa visão pragmá­
tica, esquadrinhar os estratos mais profundos da estrutura
social onde surge a determinação dos grandes processos, des-
mitificar o fetichismo da igualdade dos homens frente ao
risco de adoecer e descrever a gênese da distribuição segun­
do as classes sociais e segundo os perfis patológicos que as
caracterizam.
Consideramos que, somente através desse empenho cons­
ciente e fundamentado de colocar em julgamento as con­
cepções hegemônicas sobre o normal e o patológico e de
reconceituar as modalidades de determinação e distribui­
ção das condições de saúde-doença, conseguiremos emitir
propostas coerentes com o interesse da população.
Estas formas de abordar a busca de um modelo alterna­
tivo já fazem parte do programa de diversos centros latino-
americanos, em busca de um novo caminho que abra a pos­
sibilidade de superar as frustrações e como contestação aos
efeitos observados da aplicação da epidemiologia, media­
dora e servil, que surgiu concatenada à proteção e fomen­
to do homem, enquanto recurso do projeto lucrativo capi­
talista.
O objeto de estudo fica assim delineado pelo menos em
seu contorno temático. Nos próximos itens serão desenvol­
vidos: o tratamento exaustivo dos principais aspectos do ques­
tionamento proposto, a definição de categorias que realmente
possam explicar o processo saúde-doença e permitam estu­
dar a unidade de seus distintos componentes, assim como
as conexões multiformes que se estabelecem entre eles.

O PONTO DE VISTA DO INVESTIGADOR


DETERMINA SUA OBJETIVIDADE

O ponto de vista de um investigador consiste na perspec­


tiva social a partir da qual focaliza seu objeto de trabalho,
PERSPECTIVAS PARA A CRÍTICA... 45

perspectiva esta que determina suas escolhas e rejeições, sua


maneira de interrogar a realidade, o tipo de vínculo que es­
tabelece com o processo que estuda, isto é, as mediações
formais e práticas que se intercalam entre ele (como sujei­
to) e seu objeto.
Todo investigador assume necessariamente um determi­
nado ponto de vista, expresso nos fundamentos teóricos de
seu marco referencial, na construção de suas hipóteses e ain­
da no conteúdo e na forma de seu plano de relacionamento
com o fenômeno real que lhe interessa.
Naturalmente a epidemiologia não está à margem do pro­
blema da adoção de uma determinada perspectiva e o fato
de a maioria dos trabalhos não explicitá-la, não significa
que não a tenha. Quando, por exemplo, MacMahon (2) des­
creve a distribuição do estado de saúde, no primeiro capí­
tulo de sua obra "... quanto à idade, sexo, raça, geografia,
etc”, conferindo a maior hierarquia a variáveis dependen­
tes de processos físicos e biológicos, e concluindo que a epi­
demiologia é “uma extensão da disciplina de demografia ao
campo da saúde e da doença”, podemos notar que o autor,
na discussão de um princípio fundamental de sua matéria,
prescinde do econômico-estrutural e assimila o processo
saúde-doença ao natural. Em capítulos posteriores trata os
elementos da saúde-doença como fatores pertencentes a di­
ferentes sistemas que se interligam em forma de “cadeias”
e “redes”, cujas relações ou associações observadas empi-
ricamente o autor não tem interesse em explicar e, citando
Hume, significa que não somos capazes de “descobrir al­
gum poder ou conexão necessária (...) e apenas verificamos
que, na verdade, um evento de fato se sucede a outro”. (3)
Com colocações como as que transcrevemos, MacMahon
coloca-se taxativamente em uma linha de pensamento posi­
tivista, pois, como explica Dynnik, (4) em sua “Análise Crí­
tica do Positivismo”, esta doutrina, além de estabelecer co­
mo uma premissa essencial a redução naturalista do social,
inclui como pressuposto que a relação entre os fenômenos
deve ser formulada exclusivamente em termos funcionais
da seqüência e semelhança observadas, negando jurisdição
científica à relação causai. Em outras palavras, adotando
46 JAIME BREILH

tal fundamento teórico e incorporando-o em suas constru­


ções lógicas e disposições sobre as estratégias, o referido epi-
demiólogo torna seu um ponto de vista que tem caracteri­
zado o ângulo de visão dos setores hegemônicos da era ca­
pitalista.
A objetividade científica não é uma condição inerente à
aplicação de um método, pura e simplesmente, como assi­
nala um documento da Faculdade de Ciências Médicas de
Quito (5) ”... apenas pelo fato de aplicar rigorosamente os
passos de um método, aplicar uma dose de disciplina e uma
ingente quantidade de recursos, não se chega necessariamen­
te a resultados verdadeiros (...) Os erros de interpretação
(e, conseqüentemente, de ação), considerados numa pers­
pectiva histórica, não resultam do equívoco humano indi­
vidual, mas são o produto do condicionamento estabeleci­
do pelos fatos econômicos e sociais do contexto”. Torna-
se, portanto, necessário analisar este condicionamento.
O grau de objetividade que caracteriza o trabalho cientí­
fico de uma determinada época corresponde historicamen­
te a dois fatos principais: o grau de desenvolvimento atin­
gido pelas forças produtivas da sociedade2 e, dentro dos li­
mites que assim se estabelecem, as possibilidades do saber
são maiores quanto mais diretamente o investigador rela­
cione seu trabalho com o ponto de vista daquelas classes
que, por sua inserção concreta no sistema produtivo, e a
necessidade de superar qualitativamente a situação dela de­
corrente, precisam utilizar, o máximo possível, a capacida­
de de autoconhecimento daquela sociedade.
É possível compreender, até certo ponto, a primeira re­
lação que se coloca entre a possibilidade do conhecimento
dos fatos reais e o desenvolvimento das forças produtivas
de uma sociedade em um determinado momento, relação
esta que fica demonstrada nas ciências médicas ao compa­
rar, por exemplo, a capacidade diagnóstica no campo da
investigação clínica na época do médico “artesão”, corres-

2. 0 desenvolvimento das forças produtivas diz respeito à capacidade de produ­


ção ou transformação da natureza alcançada pelos fatores objetivos (meios
de produção: instrumentos e objetos) e subjetivos (força de trabalho humana)
do assim chamado processo de trabalho em uma determinada sociedade.
PERSPECTIVAS PARA A CRÍTICA... 47

pondendo ao avanço das forças produtivas da era capita­


lista da livre concorrência, e a capacidade diagnóstica dos
grandes hospitais e institutos de pesquisa, que se consoli­
daram desde o final do século passado, correspondendo ao
início do capitalismo monopolista.
É evidente, por outro lado, a falta de consciência a res­
peito do segundo elemento da objetividade. Não é apenas
pelo fato de desconhecer a relação profunda que existe en­
tre o enfoque social assumido pelo investigador e suas pos­
sibilidades de objetividade, mas também pela penetração de-
formante e mistificadora dos princípios do positivismo e suas
novas versões, determinando o predomínio do ponto de vista
específico.3 A seguir, daremos um exemplo da ciência eco­
nômica e logo depois um exemplo da história médica.
Até meados do século XIX, quando os investigadores
“clássicos” da economia assumiram a perspectiva da teo­
ria da livre concorrência, elegeram o ponto de vista mais
idôneo para o conhecimento do desenvolvimento do mer­
cado e impulsionaram um sem-número de indagações rela­
cionadas, direta ou indiretamente, com os processos de ofer­
ta e demanda que encobriram o interesse maior na consoli­
dação do modo de produção capitalista. Com a visão pos­
ta no âmbito da circulação de mercadorias e a idéia da so­
ciedade como sistema que tende ao equilíbrio4, foram se de­
senvolvendo estudos relativos ao valor de uso das coisas,
ao seu valor de trocas, às matérias-primas, ao trabalho co­
mo elemento produtivo e ao homem em geral. Tais estudos
surgiram, porém, sujeitos à concepção de um mundo de
competidores em igualdade de condições, na qual os retar­
datários e preteridos assim o eram por sua própria incapa­
cidade de aproveitar a liberdade de competir e de assimilar
os benefícios de um Estado que dividia “equitativamente”
direitos e deveres. Ao contrário, os pensadores como

3. O eixo condutor do pensamento “positivo” de Augusto Comte (1798-1857)


projetou-se até o nosso tempo, nas concepções de Durkheim, Watson e Skiner
(direcionismo), de Parsons (funcionalismo) e de outros neopositivistas,
manifestando-se de forma modernizada em resposta às necessidades inovadas
do capitalismo.
4. A “estática social” ou sociedade como organismo em equilíbrio, de Augusto
Comte.
48 JAIME BREILH

Marx, que surgiram vinculados aos interesses da popula­


ção trabalhadora, não podiam evitar de reconhecer, a cada
instante, a desigualdade, as condições de miséria e doença
que naquele tempo se disseminavam nos setores populares
das “prósperas” cidades européias. Conseqüentemente, a
perspectiva que assumiram ao estudar os fatores econômi­
cos foi de estimular as mudanças e a crítica de todas as in­
terpretações aceitas como as verdades de seu tempo. Foi as­
sim que, no campo da economia, penetraram a esfera en­
ganosa da circulação (ou intercâmbio) e desmitificaram os
conceitos até então vigentes, descobrindo, ao fazê-lo, os pro­
cessos do substrato estrutural, as leis fundamentais da for­
mação do valor e dos mecanismos de expropriação do tra­
balho humano levantados por uma classe em relação a
outras.
Fica evidente, no exemplo citado, que a ciência econô­
mica aprofundou sua capacidade interpretativa, quando o
ponto de vista do trabalho impulsionou certos investigado­
res a resgatar os aspectos rejeitados pela economia política
“clássica” e a “ver” o substrato de suas teses.
Os juízos de valor elaborados a partir das necessidades
de investigação, resultantes dos problemas do setor operá­
rio, incentivaram estes investigadores a “olhar” para onde
a economia clássica não estava interessada e para onde os
cientistas haviam “olhado” apenas superficialmente. A ar­
ticulação dialética dos “juízos de valor” e “juízos de fa­
to” conseguiu avanços da teoria socioeconômica para a hu­
manidade em pouco tempo, avanços estes que ainda não
estão superados.
A história da medicina e, mais especificamente, da epi-
demiologia oferece também, da mesma forma que a eco­
nomia, exemplos da visualização diferencial que estamos
descrevendo. É uma trajetória repleta de lições inestimáveis
que define, para cada época, o choque entre as diferentes
perspectivas mais “democráticas” e as versões do campo
social hegemônico.
No último quarto do século XVIII surgiu, na Presidên­
cia de Quito, o confronto de posições a respeito da origem
e da forma de atuação em determinadas epidemias, confli-
PERSPECTIVAS PARA A CRÍTICA... 49

to este que renasceu na Europa sete décadas mais tarde, entre


os defensores da idéia da origem social das doenças e a con­
cepção de contagiosidade que sustentava uma origem na
“importação” mediante contágio. Esta oposição conceituai
que, a nosso ver, representa um intento no desenvolvimen­
to histórico da epidemiologia e que analisaremos em outro
item de forma mais extensa devido a sua importância, exem­
plifica a existência das visões opostas que surgem quando
os investigadores respondem a distintos interesses sociais.
Outro exemplo muito recente é a polêmica iniciada na In­
glaterra a respeito da vacina contra a coqueluche. Pesqui­
sadores como Stewart questionam a extensão das medidas
de vacinação contra a enfermidade, respaldando-se em suas
investigações, as quais demonstram que “...em Glasgow e
provavelmente em todo o Reino Unido, a persistência da co­
queluche em algumas áreas evidencia uma maior correlação
com as condições socioeconômicas adversas do que com a
falta de medidas de vacinação”. (6) Seus opositores do se­
tor estatal e das empresas produtoras da vacina defendem
a ampliação dos programas específicos de imunização in­
fantil, alegando tratar-se da única medida oportuna, e que
as complicações do sistema nervoso são mínimas. Na base
destas discrepâncias estão condicionamentos opostos ao cri­
tério de objetividade.

A FUNDAMENTAÇÃO POSITIVISTA DA
INVESTIGAÇÃO EM SAÚDE
Se o ponto de vista de nossos cientistas foi condicionado
pela ampla propagação dos princípios positivistas, é indis­
pensável rever algumas projeções desse condicionamento pa­
ra o problema em questão.
Uma análise exaustiva do positivismo ultrapassa as ne­
cessidades de explicação deste trabalho, entretanto, é indis­
pensável, neste momento, resumir elementos que sirvam para
compreender a influência de classe das concepções positi­
vistas (que definitivamente impregnam o campo da epide-
miologia) e desenvolver uma contraperspectiva que nos
50 JAIME BREILH

permita visualizar o fenômeno epidemiológico com melho­


res possibilidades.
Em seu Curso sobre Filosofia Positiva (1830-42), Augusto
Comte, ao fixar as bases de seu método sociológico, esta­
beleceu que a ciência deve renunciar a penetrar na essência
das coisas, deve limitar-se a descobrir o aspecto externo dos
fenômenos, reduzindo-os ao menor número possível de vín­
culos exteriores, privilegiando sua semelhança e sucessão.
Para Comte, era possível estabelecer estas indicações por­
que, como Lowy (7) resume, o positivismo fundamentou-
se em duas premissas essenciais: assimilação do social pelo
natural (naturalismo positivista que pressupõe uma harmo­
nia natural reinando na vida social) e compreensão do so­
cial como sendo regido por leis naturais, invariáveis e inde­
pendentes da vontade humana.
Em época posterior, Emile Durkheim retomou a essên­
cia do método Comtiano e fundamentou: “... é verdade que
Comte afirmou que os fenômenos sociais são fatos natu­
rais sujeitos a leis naturais. Com esta afirmação reconhe­
ceu implicitamente seu caráter de coisas, pois na natureza
nada mais há senão coisas...”. (8)
Ao afirmar que a primeira e fundamental regra do método
para conhecer o coletivo é a consideração dos fatos sociais
como “coisas” submetidas a leis naturais e que a sociedade
é um sistema de órgãos diferentes, cada qual cumprindo uma
função especial, Durkheim incorreu em uma deformação or-
ganicista da realidade, e ainda mais quando introduziu como
socialmente válido, em uma de suas obras, o princípio dar-
winista de sobrevivência dos mais aptos na luta pela vida.5
Dessa forma, reduzindo o estatuto legal da sociedade às
leis da natureza e condenando a observação das “coisas”

5. Quando, na “Divisão do Trabalho Social”, citado por Lowy (Op. cit., p. 13),
Durkheim diz que “... Se nada dificulta ou favorece indevidamente os compe­
tidores que disputam as tarefas, é inevitável que as mesmas sejam realizadas
somente pelos mais aptos a cada tipo de atividade...” não faz outra coisa do
que formular um princípio de teoria social que traduz em termos sociológicos
o funcionamento mercantil da sociedade e o conteúdo do direito burguês que
o aglutina. “Livre circulação de mercadorias”, “igualdade do ”, ante os di­
reitos e deveres e “sobrevivência do mais apto” são elementos de um mesmo
projeto de dominação.
PERSPECTIVAS PARA A CRÍTICA... 51

sociais a sua aparência ou conteúdo externo, aqueles auto­


res puderam elevar ao plano do pressuposto básico do mé­
todo do conhecimento dos fatos sociais a separação dos “juí­
zos de fato” dos “juízos de valor”. Deixaram, assim, de­
senhado o perfil de uma atividade científica aparentemen­
te neutra e não contaminada pelos efeitos do movimento
social ao redor e vinculada a coisas igualmente alheias a es­
se movimento.
O processo saúde-doença não escapou da definição de
uma dessas “coisas” que se desenvolvem sujeitas a leis na­
turais e expostas a modificações do exterior, induzidas ape­
nas por fatores do meio (natureza), tais como os agentes
físicos, químicos, orgânicos e a “coisa social”. Parte-se da
suposição de que, para evidenciar e medir os transtornos
produzidos, haveria necessidade somente de cientistas e pro­
fissionais (isto é, epidemiólogos com um ponto de vista não
contaminado ou, melhor dizendo, contaminado apenas pela
pureza e atividade não valorativa do positivismo).
Entretanto, perguntamos: É possível e conveniente a exis­
tência de cientistas “assépticos”? Que projeções tiveram os
inúmeros estudos epidemiológicos supostamente baseados
na busca do bem-estar coletivo, porém, com um marco re­
ferencial implícito ou abertamente positivista?
O que a história permite destacar com clareza meridia-
na, e que será analisado em outras seções, é que a inserção
operante da maior parte das investigações do Ocidente (so­
bretudo aquelas promovidas nas sociedades capitalistas
avançadas) e o alcance dos programas organizados a partir
das mesmas traduzem uma linha de ação adequada às ne­
cessidades da acumulação econômica e da legitimação po­
lítica, de tal forma que, querendo ou não aceitar tal fato,
estes cientistas comprometeram-se com uma dinâmica con­
veniente para os interesses de classe; na prática, isso equi­
vale a optar pelo ponto de vista da mesma.
Resumindo, podemos asseverar que ao descartar-se sis­
tematicamente das pré-noções e intenções valorativas, co­
mo pressupõe o método positivista, sua pretendida ausên­
cia de filiação ideológica é precisamente sua ideologia e seu
ponto de vista de classe. Ideologia esta que toma corpo cien-
54 JAIME BREILH

A OBJETIVIDADE E A FORÇA DO PONTO DE VIS­


TA DEMOCRÁTICO

Cabe perguntar qual é, na época contemporânea, o se­


tor social cuja condição objetiva o impele para o conheci­
mento da origem e da essência de fatos históricos-naturais
como a saúde-doença, para a desmistificação e rejeição das
aparências, para a superação dos obstáculos que impedem
o aproveitamento geral e eqüitativo dos meios de subsistên­
cia, com a possibilidade de mostrar abertamente seus inte­
resses históricos de classe e equipará-los aos da maioria da
população. Em termos mais específicos, isto implica per­
guntar a quem interessaria compreender, buscando mudan­
ças, a essência dos processos que levam à distribuição in­
justa das possibilidades de saúde e dos efeitos patológicos
que caracterizam nossa realidade.
As classes e grupos intrinsecamente empenhados em re­
definir criticamente o horizonte atual das ciências são aqueles
que constituem o pólo social dominado: seu eixo, a classe
proletária e seus aliados dos setores populares democráti­
cos (pequenos produtores, intelectuais e assalariados impro­
dutivos em termos capitalistas), cujo avanço depende dos
progressos da histórica contenda do proletariado. Esta ta­
refa contém não apenas um ingrediente sociopolítico, mas
também integra o avanço produtivo, científico e tecnológi­
co. Em síntese, equivale a dizer que “...a maior força pro­
dutiva é a própria classe revolucionária”. (11)
O substrato teórico do ponto de vista do trabalho (mate-
rialismo histórico) surgiu no seio do próprio capitalismo co­
mo crítica permanente de suas condições estruturais e su-
perestruturais e utilizando seu próprio horizonte de visibi­
lidade. Este horizonte de visibilidade “... não pode ser ex­
plorado pela burguesia, cuja consciência acha-se obscure-
cida pela compulsão ideológica de sua própria dominação...
o único capaz de ter um conhecimento capitalista do capi­
talismo é o proletariado ... Não se trata do mesmo modo
de produção proporcionar um tipo de horizonte de visibili­
dade a uma de suas classes e outro tipo, completamente dis­
tinto, a outra classe; trata-se, sim, do fato que apenas uma
PERSPECTIVAS PARA A CRÍTICA... 55

de suas classes componentes acha-se em condições de ex­


plorar este horizonte de visibilidade geral...”. (12) Enquanto
o trabalho científico burguês está acorrentado pelo impe­
rativo de inventar a não-mudança, de expor com limitações
a realidade a partir do ângulo individual e acha-se distorci­
do pelo viés mercantil de sua ótica, com a conseqüente re­
dução de seu aspecto visual ao prático e rentável, o hori­
zonte proletário contesta essencialmente as amarras
individuais-mercantis e, por necessidade histórica, procura
resgatar o valor do uso para o bem comum, empregando
sua maior capacidade a fim de visualizar a concatenação
e a mobilização dos processos sociais e naturais, entender
a unidade e diversidade dos fenômenos gerais e particula­
res, analisar e sintetizar a realidade social, diferenciando o
concreto e o abstrato, o lógico e o histórico, o estrutural
e o superestrutural nos processos. São estes marcos distin­
tos de seu instrumento conceituai que lhe permitem utilizar
ao máximo o potencial cognitivo de seu tempo e superar
paulatinamente as idealizações da burguesia, inclinadas, em
alguns casos, para o subjetivismo absoluto ou entregues com
exclusividade à indagação ultra-sofisticada do concreto em­
pírico.
Os problemas crescentes de nossas formações sociais, re­
conhecidos como “ecológicos”, de “saúde-doença”, etc.,
são testemunhos desse paradoxo capitalista que é a crescente
incapacidade de resolução que acompanha a disponibilida­
de potencial de maiores recursos técnicos. A necessidade de
entender essa impotência estrutural de produzir soluções vá­
lidas e de articular-se com o projeto de superação históri­
ca, exige das disciplinas técnicas, como a epidemiologia, a
aplicação desses princípios alternativos que podem evoluir
somente a partir do ponto de vista cuja força renovadora
acabamos de fundamentar. Resta explicar as condições ob­
jetivas de classe que outorgam ao proletariado seu poder
de visualização:
Primeira — É a primeira classe que se forma em torno
da desintegração objetiva do trabalho individual. O operário
coletivo7 que vai se estruturando na manufatura e se con-

7. Trabalhador coletivo cuja formação é amplamente descrita por Marx nos ca­
pítulos XII e XIII de O Capital.
56 JAIME BRE1LH

solida na grande indústria passa a substituir os operários


parciais que elaboram e terminam o produto individualmen­
te. A consciência corresponde ao ser e, portanto, uma
consciência individual nada pode onde o ser tornou-se co­
letivo. A destruição do seu ser individual é a condição para
que apareça o horizonte de visibilidade geral e, consequen­
temente, a ciência produzida a partir da exploração desse
horizonte de visibilidade é também o único resgate dos ho­
mens em seu novo ser”.
Segunda — No contexto da classe trabalhadora atua o
que foi denominado de “lógica do processo produtivo” (13),
que expressa certa necessidade de reconhecimento da igual­
dade comum (da classe) como princípio da organização pro­
dutiva de concentração na qual ”... a cidade é a continua­
ção da fábrica e o mercado nacional e a própria nação são
a continuação de todas as esferas da realidade”.8
Terceira — A carência de meios de produção, ou perda
da propriedade dos instrumentos e objetos de trabalho que
caracteriza os trabalhadores, fez com que nesta classe se ma­
terializasse ou se tornasse “visível” a existência do próprio
homem enquanto força produtiva (seu intelecto e capaci­
dade física funcionando como força de trabalho) e a possi­
bilidade de que, como tal, possa converter-se em mercado­
ria cuja circulação ocorre em termos muito desiguais. Des­
ta condição derivam duas conseqüências de enorme impor­
tância para sua visibilidade científica. Em primeiro lugar,
tornou-se compreensível para esta classe a falsidade da es­
trutura ideológica e jurídica construída para explicar os vín­
culos entre os homens, ficando a descoberto o fundamento
econômico das relações sociais. Em segundo lugar, a pro­
funda injustiça na distribuição da riqueza, que identifica
a própria classe como mercadoria adquirida a baixo preço
para gerar enormes cotas de mais-valia, estimula-a a incor­
porar ao seu próprio interesse social a necessidade de mudan­
ça e ruptura dos moldes capitalistas e a induz a romper tam­
bém suas barreiras e mistificações conceituais. Converte-se

8. As migrações do trabalhador agrícola na América Latina, no âmbito do mer­


cado nacional de trabalho, operam no mesmo sentido.
PERSPECTIVAS PARA A CRÍTICA... 57

na grande iconoclasta das “sagradas” representações de seu


tempo. Para esboçar sua trajetória tem que derrubar as fal­
sas construções ideológicas e resgatar apenas o núcleo ver­
dadeiro das teorias liberais que a deixam a descoberto em
seu trabalho.
Quarta — Finalmente os trabalhadores produtivos en­
quanto classe podem transcender melhor que nenhum ou­
tro grupo popular o modelo herdado de seus costumes e tra­
dições provincianos. A própria transformação sofrida pela
classe para chegar ao que é, isto é, os efeitos que “seus mem­
bros” apresentam ao passar da situação camponesa à de
assalariamento, devido ao desarraigamento e mobilidade re­
sultante de sua nova situação de mercadoria em circulação,
facilitam o desmoronamento de todas as concepções e ex­
plicações de valor local, “o rompimento com todas suas su­
perstições, critérios mágicos e preconceitos cristaliza­
dos ”.(14) Não se trata do cosmopolitismo alheio da pequena
burguesia urbana exposta à transculturação do consumo,
mas daquilo que ocasiona, juntamente com as outras con­
dições de classe já assinaladas, uma profunda crise de va­
lores cujas repercussões críticas podem sistematizar-se nas
tarefas científicas e políticas.
Historicamente, o ponto de vista mais objetivo a respei­
to das necessidades sociais mais profundas e o conhecimento
dos determinantes da saúde das populações humanas mais
numerosas são representados pelo materialismo histórico.
O desenvolvimento dessa ferramenta conceituai e prática
torna-se urgente no campo da saúde quando se constata uma
maciça deterioração da saúde das maiorias. É indispensá­
vel fortalecê-lo e implementá-lo com crescente profundidade
e destreza, enquanto ferramenta de reflexão crítica e ação
emancipadora e, vale salientar, enquanto instrumento de
uma epidemiologia científica. As demandas científico-
tecnológicas e políticas destas décadas não dizem respeito
à utilização progressista dos mesmos conceitos, técnicas e
linhas programáticas da velha Saúde Pública, nem são tam­
pouco a adaptação “terceiromundista” das modalidades
simplificadas e até “folclóricas” do saber e da prática for­
jados nos centros imperiais — uma espécie de ciência de se-
58 JAIME BREILH

gunda categoria para povos subalternos, muito em voga nes­


ta época de “revoluções conservadoras”. Pelo contrário,
esta vertente inovadora surge ao redor da adoção de um pen­
samento científico emancipador que rompeu as amarras con­
ceituais e político-ideológicas da Saúde Pública positivista
e fenomenológica da América do Norte e da Europa.
É, portanto, uma expressão particular da luta pela au­
tarquia; significa o crescimento e aprofundamento especia­
lizado de uma revolução filosófica que até recentemente foi
mantida longe ou na periferia dos campos técnicos. Dessa
forma, este movimento adquire sua certidão de identidade
na ruptura com os reducionismos e idealizações da ciência
neopositivista, porque, para exercer sua ação transforma­
dora, parte de uma construção objetiva da realidade e de
um novo tipo de vínculos com o povo.
O eixo vertebral dessa tarefa contra-hegemônica é o pen­
samento materialista dialético e histórico, conhecido gene­
ricamente como marxismo, cujas contribuições decisivas ao
avanço do saber em saúde e à transformação da prática fo­
ram expostas em outro trabalho do autor:
a) a construção de uma cultura de transformação, livre
e não-alienada, que fertiliza um o que fazer inovador e fa­
vorece um clima de compromisso com as classes sociais
subordinadas;
b) a consolidação de um saber crítico, não contemplati­
vo, que busca transformar os objetos do conhecimento, rea­
lizar uma verdadeira revolução nos postulados filosóficos
do pensamento científico em saúde, superando as bases em­
píricas e neopositivistas que têm impregnado a investiga­
ção hegemônica com sua visão estática e reducionista, e
abrindo amplos caminhos para a investigação de um mun­
do em movimento, no qual é necessário compreender de for­
ma diferente a relação entre o biológico e o social, entre
os eventos individuais e coletivos, entre a necessidade e o
acaso, com o qual permitiu transformar substancialmente
o princípio de causalidade;
c) a profunda renovação do método científico,
resgatando-o das posturas racionalistas e empíricas, median­
te uma articulação mais objetiva e dinâmica dos métodos
dedutivo e indutivo em correspondência a uma nova for-
PERSPECTIVAS PARA A CRÍTICA... 59

mulação da lógica, produzindo uma mudança na metodo­


logia para reestruturar a integração da base empírica e a
construção teórica no processo de investigação, e para for­
mular a relação adequada da análise qualitativa e quanti­
tativa, para a teoria e a prática, no processo de verificação
e demonstração científicas, dando como resultado uma re­
formulação do papel e, às vezes, também, do conteúdo das
técnicas de observação;
d) uma interpretação objetiva das instâncias da “práti­
ca” e do “Estado”, revelando seu verdadeiro caráter e suas
forças determinantes e transformando as concepções fun-
cionalistas do que fazer,
e) a transformação que causou na teoria do conhecimento,
possibilitando um estudo objetivo dos determinantes da for­
mação e das características do saber enquanto problemas
da formação e desenvolvimento do pensamento científico,
do saber tecnológico, do saber popular mais estruturado da
“medicina popular” e do saber “caseiro”, bem como as
profundas repercussões que esta teoria trouxe para a peda­
gogia e o processo de ensino e aprendizagem em saúde por
meio do surgimento das modalidades de trabalho-estudo.
A investigação latino-americana em Medicina Social tem
se consolidado nestas últimas décadas ao redor desse mar­
co de ruptura. A época das investigações debilmente fun­
damentadas e de orientação metodológica titubeante come­
çou a dar espaço para uma era de maior solidez teórico-
metodológica e de articulação política mais clara.
A epidemiologia representa, sem dúvida, parte essencial do
debate que as contradições de nossa época suscitam no cam­
po da saúde-doença e está sofrendo o maior impulso, como
disciplina, pela incorporação das categorias explicativas do
materialismo histórico, cujo ponto de vista já explicamos.
Em outros itens particularizaremos a metodologia que nos
permitirá reinterpretar o fenômeno epidemiológico no con­
texto desse horizonte de visibilidade totalizador que adota­
mos. Esta metodologia tornará possível impulsionar o po­
der explicativo dos princípios básicos da “determinação”
e “distribuição” da saúde-doença, reconstruindo-os sob esta
ótica que reconhece o movimento e concatenação dos pro-
60 JAIME BREILH

cessos, que distingue e integra o plano essencial e o plano


fenomenológico da realidade, a dialética do social e do na­
tural, a diferença e relações entre a estrutura e superestru-
tura. Exploraremos as possibilidades do método que une
dialeticamente a crítica e a reformulação para delinear os
elementos constitutivos do que poderia ser denominado o
perfil epidemiológico de cada classe social em um determi­
nado momento histórico, incluindo como elemento subs­
tantivo deste perfil a contradição sofrida entre as condições
vitalizantes e as patogênicas, entre as benéficas e as destru­
tivas, cujo desenvolvimento é determinado, no caso das so­
ciedades capitalistas, pela busca hegemônica da avaliação
do valor à custa do homem e seus valores de uso.9

O “POPULISMO” EPIDEMIOLÓGICO
DA TRANSIÇÃO

A partir de meados deste século e por razões históricas


que analisaremos no próximo capítulo, produziu-se uma
abertura relativa do aspecto de visibilidade da epidemiolo-
gia hegemônica em direção à esfera do social.
Analisaremos mais tarde as razões que determinaram o
fato de o próprio Estado Capitalista incorporar a visão do
social nas indagações epidemiológicas; o que nos interessa
considerar agora é a participação que os setores científicos
e políticos mais conscientes da América Latina tiveram nesse
processo e a dificuldade que foi enfrentada para dar vida
às idéias mais avançadas, de ordem política geral, no terre­
no da prática da investigação.
Aparentemente, nos primórdios do movimento latino-
americano da reformulação marxista da epidemiologia, que

9. Os produtos do trabalho humano circulam no capitalismo como mercadorias.


Este intercâmbio tem como condição a existência das mercadorias como valor
equivalente ou de troca e que surge do trabalho concreto que formou o produ­
to em sua dimensão de valor de uso. No Capitalismo, o objetivo primordial
do modo de produção é a extração de um valor adicional ou “mais-valia” a
partir da compra de uma mercadoria, a força do trabalho humano, que tem
essa capacidade peculiar. Homens e coisas submetem sua essência e valor na­
tural a este fim produtivista.
PERSPECTIVAS PARA A CRÍTICA... 61

assumiu significado especial a partir dos anos sessenta, ocor­


reu uma etapa de transição fortemente impregnada de uma
intencionalidade popular, porém, certamente caótica pela
mistura de conteúdos e inorganicidade da prática, o que po­
dería ser qualificado como uma etapa de “populismo
epidemiológico”.
Em tais circunstâncias surgiram trabalhos de diagnósti­
co da realidade em saúde ou de delineamento da necessida­
de sanitária nos programas políticos, nos quais observa-se
uma concepção muito avançada da ação científica ou polí­
tica em suas linhas mais gerais, combinada contraditoria-
mente com o emprego de categorias conceituais e metodo­
lógicas do aparato téorico burguês. Tem-se a impressão de
que houve dificuldade em traduzir o discurso transforma­
dor do geral para um discurso sanitário congruente. A esse
respeito vale assinalar algumas considerações.
Na ciência estabelece-se um nexo indissolúvel entre con­
teúdo e forma, que Pavlov (15) descreveu como a unidade
dialética de: sistema de conceitos, categorias e leis; o méto­
do do conhecimento; as concatenações com a prática.
Consequentemente, a reformulação conceituai de uma
disciplina implica a redefinição metodológica concomitan­
te, e tudo isso a partir da reconstrução do modo prático com
que seus investigadores se vinculam ao objeto. A crítica,
como diria Verón, (16) se exerce nas dimensões interdepen­
dentes da semântica (os conceitos), da sintática (lógica) e
do pragmatismo.
Se é assim, e procuramos superar (no sentido dialético
de negar e conservar) o sistema de conceitos e categorias
da epidemiologia empírica, devemos superar também os mé­
todos que o epidemiólogo utilizou durante longo tempo, bem
como as modalidades de sua prática social.
Boa parte das investigações epidemiológicas do tipo no­
vo, que foram desenvolvidas no contexto capitalista com
a saudável intenção de promover o conhecimento das con-
seqüências de uma estrutura social patogênica, frustraram
seriamente suas possibilidades explicativas de fundo, por
não ter reparado nos problemas do método e da vincula-
ção social do investigador. Ocorreu, na epidemiologia, uma
62 JAIME BREILH

espécie de consciência ingênua ou semicientífica, porque,


como explica Echeverria, no caso das ciências sociais, não
reconhecem “... nenhuma contradição no fato de misturar
em seu trabalho, de um lado, categorias metódicas e con­
ceitos descritivos positivistas e, por outro, o materialismo
histórico. Confiantes num efeito determinante de suas in­
tenções políticas em relação a sua produção teórica, não per­
cebem que as origens e as tendências opostas do discurso
destes dois pressupostos teóricos estão incluídos e perma­
necem ativos na estrutura dos mesmos, e também não per­
cebem que, ao justapor os dois funcionamentos, submetem
necessariamente (ainda que seja contra sua vontade) a efi­
cácia do funcionamento revolucionário, aquela do mais for­
te, do estabelecido ou contra-revolucionário”. (17)
É principalmente a partir das duas últimas décadas10 que
em nossos países vimos surgir trabalhos de investigação so­
bre os chamados temas “médico-sociais”, elaborados com
um conteúdo de impugnação e denúncia, cuja validade his­
tórica para seu tempo e seu contexto não pode agora ser
negada. Porém, hoje, temos que reconhecer que. embora
esses projetos apresentassem “prólogos”, “marcos referen­
ciais ou fundamentos”, incorporando com êxito variável
os princípios do materialismo histórico ou pelo menos no­
ções de uma sociologia ingênua a eles, justapuseram um mé­
todo funcional positivista e o plano correspondente de pro­
jeções da eficiência.
O tipo de trabalho a que nos referimos é aquele em que
foram incorporadas, por exemplo, variáveis socioeconômi-
cas, tais como “os rendimentos”. Entretanto, sem confe­
rir a tais variáveis a fundamentação de uma análise históri­
ca e econômico-política que situe seu significado específi­
co, as mesmas são transformadas em simples elementos
lógico-formais. Sob este tipo de enfoque pode-se demons­
trar a estreita correlação que a “receita” tem com certa pa­
tologia ou com fatores de “risco” ou “dano”, porém com
isso, evidencia-se apenas uma associação empírica de va-

10. Nas ciências sociais o fenômeno se manifestou mais precocemente, porém,


é óbvio que a incorporação do social nos ramos técnicos ocorre defasada na
história.
PERSPECTIVAS PARA A CRÍTICA... 63

riáveis, uma relação de fenômenos, e não a explicação es­


sencial desses vínculos e concomitâncias surgidos no plano
empírico.
Da mesma forma, em outras ocasiões registramos docu­
mentos que apresentam conclusões ambíguas ou formais,
tais como “os níveis de miséria são o caldo de cultura das
doenças infecciosas”, a “exploração desencadeia miséria e
enfermidade”; trata-se de elementos do discurso que po­
dem ter seu valor em certos momentos e instânicas da ação,
mas que não são suficientemente rigorosos para constituir-
se em elementos para a construção científica do objeto de
estudo da epidemiologia. Tais tipos de expressões poderiam
ser aplicados a muitas formações do mundo capitalista de­
pendente e com isso não teríamos penetrado em sua especi­
ficidade histórica nem compreendido com rigor a relação
entre os processos históricos e biológicos.
Com a mesma intenção de mostrar os sinais dessa etapa
inicial de busca, podemos olhar retrospectivamente os pri­
meiros enfoques críticos da epidemiologia a respeito da ava­
liação dos serviços estatais. Encontramos inúmeros proje­
tos de pesquisa administrativa ou de programação política
que, se por um lado fazem referência, com grande acerto,
às severas carências dos serviços aos quais estão sujeitos os
setores populares, quantificando-os e denunciando “a ne­
cessidade” de supri-las, por outro também, esse tipo de apro­
ximação deixa de abordar os elementos qualitativos histó­
ricos das instituições do Estado e seu papel específico em
tais conjunturas, assim como sua função reprodutora das
relações sociais. Desse modo, tais investigações epidemio-
lógico-administrativas frustram sua valiosa intenção.
Em outros momentos, foram medidos e divulgados, com
uma séria preocupação em debater a qualidade de vida do
setor popular (o que deverá continuar a ser feito), os níveis
alarmantes de indicadores, tais como a desnutrição infan­
til, incorporando-os aos chamados diagnósticos de saúde;
entretanto, ao não articulá-los dentro de uma análise das
leis específicas que explicam a essência histórica de tais acha­
dos, a análise fica reduzida a expressões externas e empíri­
cas. Estes são elementos de reflexão para uma vigilância epis-
temológica de nosso trabalho.
64 JAIME BREILH

O que temos pretendido discutir é a fragilidade concep-


tual daqueles esforços que não partem de uma sólida fun­
damentação teórica, alegando a necessidade de serem con­
cretos e eficientes. Os projetos deste tipo, que infelizmente
não são poucos, têm representado, na melhor das hipóte­
ses, algo assim como um grande esforço de domesticação
política da própria doutrina científica da burguesia, a fim
de transformá-la, sem mudanças essenciais, em instrumen­
to de denúncia e transformação. A epidemiologia mostra
vestígios profundos desta mistura, já que, por razões de li­
mitação histórica do horizonte de visibilidade, lhe foi im­
posta a função de recopilar evidências estatísticas da quan­
tidade de danos que as condições de vida do capitalismo
infligia às massas trabalhadoras. Além disso, o capitalis­
mo soube absorver rapidamente essas denúncias e repropô-
las nos termos de seu próprio interesse, já que pôde despo­
jar a casuística relatada de seu fundamento histórico natu­
ral, de seu fundamento sociopolítico. Conseguiu remover
o verniz do discurso socialista e recuperar a rica informa­
ção empírica, a estrutura metodológica funcional, e resga­
tar as implicações reformistas que se achavam latentes. Con­
trariamente a seu desejo, muitos investigadores caíram ví­
timas dos efeitos do procedimento eclético. Requereu-se
maior tempo para pôr à prova as hipóteses e os resultados
da epidemiologia no contexto do movimento social, para
que, operando os fatos reais como critérios de verdade, fi­
quem evidenciadas as deficiências de uma prática epidemio-
lógica transformadora em sua intenção, porém populista
e ambígua em sua essência.
f

O PAPEL DO MÉTODO

Em sua acepção mais geral, as peculiaridades do objeto


de uma ciência revelam-se nas definições iniciais dos prin­
cípios e axiomas, que, por sua vez, determinam um méto­
do, segundo Kopnin, ”... indissoluvelmente vinculado a seu
objeto, já que se baseia no reflexo de suas leis gerais...”. (18)
PERSPECTIVAS PARA A CRÍTICA... 65

“O papel do método não é, entretanto, o de um acrésci­


mo passivo e dependente em relação aos princípios, pelo
contrário, desempenha a função de um” ... motor da ciên­
cia... decisivo na definição do sistema ... A existência do
método demonstra que o sistema da ciência pode se auto-
desenvolver e conseguir novas verdades sobre o objeto (19).
Possibilita o nexo dinâmico da realidade com o corpo con­
ceituai, torna possível que a prática da transformação do
objeto se reflita adequadamente na dimensão teórica. Por
esta razão é que Kopnin insiste na importância do domínio
da lógica de uma ciência, de seu método, para empreender
seu estudo criador.
Não se pode conceber, pelo visto, um salto qualitativa­
mente importante no conhecimento epidemiológico apenas
a partir de uma reformulação conceituai isolada; é indis­
pensável que se revise criticamente a lógica ou método pre-
estabelecidos.
O potencial renovador de uma vasta experiência conti­
nua sendo desperdiçado por não existir uma estruturação
coerente e completa do método do conhecimento.
A epidemiologia liberal-positivista, em suas diferentes mo­
dalidades, identifica seu objeto exclusivamente com as con­
dições de normalidade ou anormalidade psicobiológicas dos
indivíduos e as considera modificáveis pela ação de “fato­
res de risco” de diferentes ordens e que se distribuem na
população, segundo grupos de idade, sexo, ocupação, ra­
ça, etc. Isto é, seu objeto toma corpo a partir da combina­
ção de um conjunto de dados empíricos que se manifestam
como evidência exterior do processo saúde-doença em ca­
sos individuais. Para descrever a distribuição populacional
dos casos e estudar possíveis associações dos mesmos com
os chamados fatores de risco, essa epidemiologia requer um
método, coerente com seu enfoque, que é o método induti­
vo. Assim, classifica e conta os casos e riscos e os corre­
laciona (transversal, prospectiva e retrospectivamente) ob­
tendo conclusões que servem para modelar enunciados ge­
rais de causalidade. É um método que corresponde a uma
visão meramente especulativa, a uma racionalidade natu­
ralista das classificações e cujo compromisso fica predomi-
66 JAIME BREILH

nantemente reduzido à provisão de insumo informativo


para o aparato estatal.11
A necessidade de despojar-nos dos procedimentos em­
píricos obriga-nos a assumir a crítica total do objeto, do
método e da práxis epidemiológica. Se estamos recon-
ceitualizando a saúde-doença como processo histórico-
natural e ampliando o objeto da epidemiologia para o
estudo dos efeitos (vitalizantes e patogênicos), não po­
demos continuar utilizando ad integrum o método epi-
demiológico corrente. Devemos produzir seu contrário,
sua antítese reformuladora, que não reduza o recurso de
investigação direta ou exclusivamente à experiência, que
torne possível o desenvolvimento do conhecimento atra­
vés do caminho alternativo da prática transformadora
à elaboração teórica, e que nos capacite para estudar as
necessárias diferenças qualitativas que a saúde-doença so­
fre de uma época para outra, de uma formação social
para outra, de uma classe social para outra, de uma pa­
ra outra fração social e de uma para outra condição de
trabalho-consumo. Compreenderemos a necessidade de
incorporar tanto o método indutivo quanto o dedutivo,
sem tornar absoluto qualquer um “... Cada um deles é
limitado, relativo e não representa mais do que um ele­
mento do critério realmente absoluto: a prática”. (20)
O novo método surge como unidade dialética do dedu­
tivo e do indutivo dentro de um processo de conhecimento
que ascende desde o concreto direto ou fenômeno epi-
demiológico até a construção de sua essência histórica,
de suas determinações sociais.

11. Não estamos rechaçando totalmente a validade deste tipo de procedimento


e informação; o que não se pode aceitar é que o método epidemiológico e
a disciplina inteira fiquem seriamente limitados em sua capacidade explicati­
va e de transformação, pelo predomínio excludente de uma indução eficien-
tista. Tais aspectos serão aciarados a seguir.
PERSPECTIVAS PARA A CRÍTICA... 67

EM DIREÇÃO A UM NOVO MÉTODO PARA


A EPIDEMIOLOGIA

O rompimento do cerco naturalista da epidemiologia em­


pírica e a ampliação do objeto da epidemiologia para a di­
mensão social não devem significar (como está ocorrendo)
a justaposição artificial dos métodos das ciências sociais com
o da epidemiologia, a simples aproximação e inter-relação
exterior dos aparatos teóricos.
A epidemiologia deverá reconstruir totalmente sua pró­
pria sistematização do saber e seu método, submetendo a
lógica própria de interpretação do processo saúde-doença
à lógica geral (materialismo histórico), que reflete o pro­
cesso mais amplo do movimento social. Isto não significa
que sua especificidade se perca no método geral, acontece
apenas, como explica Kursanov, que o particular e o sin­
gular levam em si o geral, que constitui sua essência, a lei
de sua vida e de seu desenvolvimento, “...O universal não
existe por si só, isolado do restante (...) Isto quer dizer que
um ou outro objeto adquire uma forma concreta de exis­
tência na dependência do processo a cujo movimento
encontra-se vinculado. A coisa singular deve sua forma con­
creta de existência ao sistema de nexos estabelecidos regu­
larmente, dentro dos quais surgiu e existe em sua determi­
nação qualitativa”. (21)
Para a epidemiologia, esse sistema de nexos regularmen­
te estabelecidos é estudado pelo materialismo histórico, e
a determinação qualitativa específica das formas concretas
de saúde-doença é resultante, simultânea e dialeticamente, -
do desenvolvimento do processo geral. Não que a epidemio­ í
logia propriamente dita inicie seu trabalho onde termina a
sociologia, ao contrário, o epidemiólogo é sempre, antes de
tudo, um epidemiólogo social ou cientista social que releva
os processos particularmente importantes para entender a
circunstância natural da saúde-doença.12 Não existem re-
12. A colocação do objetivo social à medicina ou à epidemiologia (de novo tipo)
demonstra a necessidade sentida de incorporar o princípio social a estas dis­
ciplinas, porém estritamente falando, é, nos termos expostos, uma redundância
que poderia contribuir para a confusão vigente.
68 JAIME BREILH

redutos da realidade epidemiológica que fiquem circunscritos


ao natural (animal biológico), nem preâmbulos sociológi­
cos extranaturais para os estudos da saúde-doença. Marx
e Engels traçaram as bases para a compreensão dessa dia­
lética do social e do natural quando estabeleceram que re­
conheciam "... somente uma ciência, a ciência da história.
A história considerada a partir de dois pontos de vista (...)
história da natureza e a história dos homens. Ambos os as­
pectos, contudo, não são separáveis; enquanto existirem ho­
mens, a história da natureza e a história dos homens
condicionar-se-ão reciprocamente”. (22)
O desconhecimento desse princípio corta pela raiz as pos­
sibilidades de transformar a epidemiologia e resgatá-la da
deformação substancial a que o capitalismo a submeteu. A
avalanche de componentes sociais nas investigações, desde
a década de sessenta, não significa necessariamente que já
foi encontrada uma linha objetiva. Como Laurell refere,
a falsa utilização de um instrumento sociológico para ex­
plicar a “influência” de “fatores” sociais isolados na dis-
truibuição de determinada doença da população, nesses ca­
sos “... não é uma delimitação feita por razões metodoló­
gicas, mas sim um fundamento teórico que implica a par-
cialização”. (23)
O correto é reconhecer, a cada passo do conhecimento
) ’
do nosso objeto, que é o processo saúde-doença a unidade
da “... realidade social da natureza e a realidade natural
do homem”. (24) O materialismo histórico, como método
científico de estudo das condições de reprodução social, deve
ampliar-se até as investigações epidemiológicas, e a epide­
miologia, como método científico de estudo dos perfis re­
produtivos das classes sociais e de seus efeitos sobre o per­
fil de vitalidade e doença das mesmas, deve encontrar no
método geral seu lugar histórico e enriquecer-se, conceituai,
metodológica e praticamente, a partir do domínio da essên­
cia social dos processos.
A construção dessa teoria epidemiológica acha-se em pro­
cesso. A reformulação não pode efetivar-se como um es­
forço subjetivo, ideal, dado no vazio. O ponto de partida
para a gestação do novo método e sua nota distintiva prin-
PERSPECTIVAS PARA A CRÍTICA... 69

cipal é a compreensão da seqüência lógica que fundou o ma-


terialismo histórico para superar criticamente as concepções
burguesas mais representativas de cada processo e cuja di­
mensão epidemiológica explicaremos a seguir. É no âmbi­
to dessa crítica exercida segundo as necessidades emanadas
de um processo prático-político que se estabelece a fonte
mais importante do recurso da ciência. Nela se intercruzam
dois processos simultâneos e interdependentes, descritos por
Echeverría (25) como: uma teoria (neste caso epidemioló­
gica) que se aperfeiçoa enquanto teoria da revolução na teo­
ria (sobre a interpretação do processo saúde-doença, no que
tange ao objeto epidemiológico) e uma prática transforma­
dora que também se desenvolve como tal.
O estabelecimento dessa profunda interligação entre a ta­
refa revolucionária e o avanço da ciência epidemiológica de­
verá certamente chamar a atenção daqueles que se acomo­
daram na ilusão de um exercício científico adscrito simbo­
licamente ao desenvolvimento capitalista, porém, tal imbri-
cação é a condição básica do processo do conhecimento.
Se, por exemplo, os trabalhadores da saúde conseguis­
sem interpretar cientificamente o perfil patológico da clas­
se operária para um determinado período, sistematizar a ex­
plicação de sua gênese e conjuntura e plasmar esse conhe­
cimento mais evoluído em ações de saúde integrais que ope­
rassem sinergicamente com a dinâmica do movimento so­
cial, estariam contribuindo para o desenvolvimento das for­
ças produtivas, visto que, ao dirigir com eficácia crescente
esse poder explicativo incrementado até os pontos álgidos
do problema sanitário, atingiríam efeitos de maior trans­
cendência nas condições de vida das massas, diminuiríam
o pólo “doença” da contradição e, por fim, alcançariam
a formação de um novo conhecimento que transcendería
a falácia desse outro tipo de saber, ao qual se pretende ou­
torgar o caráter de profundo e especializado porque pene­
tra no detalhe dos órgãos e funções somáticas para regular
a máquina-mercadoria mais apreciada pelo capital: a força
de trabalho.
Esta contribuição ao desenvolvimento das forças produ­
tivas, assim despojada da intenção exclusivamente pro-
70 JAIME BREILH

dutivista, caminha para um avanço simultâneo das relações


de produção porque permite aos setores mais avançados de­
purar sua estratégia de luta, enriquecendo o processo socio-
político de enfrentamento com uma estrutura social que ins­
titucionalizou certas condições de reprodução social
(econômico-naturais e políticas) com seus correspondentes
perfis patológicos.
2. Os modelos epidemiológicos como
recurso do projeto capitalista

PROCESSO HISTÓRICO E PRÁTICA EPIDEMIOLÓGICA

A prática epidemiológica em diferentes períodos revela


o efeito determinante do contexto histórico.
Somente o estudo integrado dos processos gerais de uma
formação social com suas expressões particulares no terre­
no epidemiológico pode nos permitir captar a essência dos
fenômenos pertinentes à ação coletiva da saúde, ou como
se diria, conquistar o “fato” epidemiológico contra a ilu­
são das aparências externas do trabalho dos epidemiólogos,
nos diferentes períodos do capitalismo.
Se o fato cuja essência se deseja “conquistar” neste ca­
so é a origem das mudanças da epidemiologia, devemos iden­
tificar em primeiro lugar os principais elementos constitu­
tivos da epidemiologia como ciência, quer dizer, suas di­
mensões “conceituai”, “metodológica” e “prática” e de­
cidir qual dessas dimensões exerce um maior peso como ele­
mento modelador desta disciplina em sua totalidade.
A configuração interna da epidemiologia como ciência
e como recurso técnico tem a dimensão prática como me­
diadora principal entre si e as condições gerais da socieda­
de. Mesmo quando toda a ciência mantém uma certa lógi­
ca interna em seu desenvolvimento e uma autonomia rela­
tiva a respeito dos acontecimentos históricos gerais, ainda
assim seus contornos básicos modelam-se como expressões
dos desenvolvimentos gerais da formação social.
72 JAIME BREILH

A presente análise crítica da evolução histórica da epide-


miologia hegemônica outorgará à dimensão prática um
maior status hierárquico como determinante dos principais
desenvolvimentos da produção científica dominante.
Assume-se, portanto, que o trabalho epidemiológico insti­
tucional e organizado constitui a inserção fundamental desta
ciência na história, seu nexo concreto com respeito às prin­
cipais contradições da sociedade em cada uma de suas eta­
pas. É o vínculo operativo desta disciplina, onde se exer­
cem as determinações básicas que condicionam seu compro­
misso histórico específico.
Não sendo possível visualizar diretamente o sentido di­
nâmico de toda a história, recorremos à periodização para
estabelecer etapas que, em forma relativa, assinalem mo­
mentos qualitativamente diferenciáveis. Ao fazê-lo, não es­
quecemos a advertência feita por Marx quando escrevia que
a história da sociedade não conhece nenhuma delimitação
estrita entre as épocas, argumentação ratificada por Lênin no
sentido de que os limites sociais são relativos e móveis. (26)
O esquema histórico, neste caso, opera como uma sínte­
se inicial ou uma visão antecipada do geral de que não se
pode prescindir metodologicamente. Dirigimos nossa aten­
ção com exclusividade para os fatos mais representativos
da tarefa epidemiológica cumprida nos grandes períodos do
capitalismo hegemônico, para elaborar com eles um esque­
ma de periodização. Adotamos uma divisão histórica e a
seleção de certas circunstâncias científico-políticas para re­
marcar períodos determinados, no fundamental, por mu­
danças de grande magnitude nas formações capitalistas cen­
trais e, complementarmente, por transformações no cará­
ter da articulação de diferentes “modelos” médicos com o
projeto histórico dominante. Nesse movimento social mais
amplo tratamos de situar a evolução da epidemiologia. O
estudo consta apenas de delineamentos históricos gerais, por­
que uma análise exaustiva do desenvolvimento capitalista
e da concomitante transformação do exercício epidemioló­
gico ultrapassaria amplamente os limites que impusemos ao
presente trabalho, mais ainda, se tratássemos de dar enfo­
que ao setor latino-americano. Quer dizer, são razões de
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 73

disponibilidade imediata de informação histórica recopila-


da para a periodização que determinaram, para compro­
var nossa tese do compromisso histórico de classe da epi-
demiologia, que nos apoiemos predominantemente nos fa­
tos correspondentes aos contornos mais gerais do capita­
lismo clássico.
A periodização que elaboramos como recurso de análi­
se, seguramente, não poderá refletir em toda a sua riqueza
a evolução histórica de nosso objeto, mas somente aspira­
mos cumprir a uma primeira aproximação crítica, uma si­
nalização de fatos realmente transcendentes que permitam
reconhecer, ainda que apenas em seus contornos, as gran­
des variações, reconstruir as tendências mais importantes
e destacar os pontos-chave do vínculo entre o trabalho epi- I
demiológico e o desenvolvimento do Estado capitalista, em
sua mais ampla acepção. Estamos de acordo com Kula em
que “... não é possível analisar quaisquer dos fenômenos
‘parciais’, inclusive os mais diminutos, sem possuir previa­
mente nem que seja um conhecimento aproximado, inse­
guro, da ‘totalidade’ à qual pertence” (27) e “... a periodi­
zação é uma questão importante em cada caso, já que a com­
preensão e qualificação de cada fenômeno pesquisado, in­
cluindo o mais significativo, acontecem de modo diferente
de acordo com o lugar que ocupa no conjunto de uma de­
terminada sociedade”. (28)

GRANDES ETAPAS DO CAPITALISMO HEGEMÔNICO


E PERÍODOS GERAIS DA MEDICINA
O Esquema 1, apresentado em uma publicação anterior
do autor (29), resume o marco histórico sobre o qual tra­ I
balhamos para analisar as tendências mais importantes da !
epidemiologia.
O esquema que expusemos nos permite ressaltar vários as­
pectos relevantes para a história dos modelos epidemiológicos.
A princípio, o capitalismo da Europa Ocidental parou,
segundo Poulantzas, (30) por um período absolutista du­
rante os séculos XIV, XV, XVI e, em alguns casos, até mea­
dos do XVII.
74 JAIME BREILH

ESQUEMA 1 — CARACTERÍSTICAS CENTRAIS DO CAPITALISMO HEGEMÔNICO


E TENDÊNCIAS DA PRÁTICA MÉDICA OFICIAL.

Períodos Processo Tendência da


(anos)* Geral Prática Médica
ABSOLUTISMO Crise maior do feuda­
(transição) lismo; Consolidação do
séculos XIV e XV sistema jurídico escrito
e burocracia.

LIVRE
CONCORRÊNCIA

‘Manufatura Colapso; Agricultura


1550-1775 Feudal; Manufaturas,
formação inicial do
“operário coletivo”;
consolidação do poder.

‘Grande Indústria Mecanização industrial; POLÍCIA


1775-1860 Aparecimento da ciên­
cia e tecnologia como MÉDICA
forças produtivas autô­
nomas; estouro da avi­
dez pela prolongação
da jornada de trabalho
para aumentar a pro­
dutividade (mais-valia
absoluta); intensa dete­
rioração da força de
trabalho (crianças e
mulheres); acelerado
processo de urbaniza­
ção; controle legislativo
para organizar novos
padrões de vida e pro­
dução; movimentos
sociais.

* A cronologia e seus aspectos mais salientes de acordo com os dados que


traz K. Marx, El Capital Livro I (Vol. II), México, Siglo XXI Editores S/A,
1975. (Capítulo XII e XIII).
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS 75

Períodos Processo tendência da


(anos)* Geral Prática Médica
CAPITALISMO
MONOPOLISTA
•Formação de Corporações cartéis e MEDICINA
Monopólios trustes; Movimento pa­ CIENTÍFICA
1870-1900 ra limitar a jornada de (centrada no hospital,
trabalho, para incre­ institutos de Investi­
mentar a produtividade: gação e laboratórios)
a. Investigação de fi-
siologia e eficiência
corporal e rápida re­
cuperação da força
de trabalho enferma.
b. Avanço tecnológico;
aumento da condi­
ção orgânica do ca­
pital e do volume
médio das unidades
produtivas; consoli­
dação do “operário
coletivo”.
•Fase Superior: Conquista de territórios
Imperialismo econômicos e
1920-1950 mercados.

CRISE DO IMPE­ Severa crise imperialis­ MEDICINA


RIALISMO-1960 ta com significativas COMUNITÁRIA
repercussões políticas
na América Latina; cri­
se fiscal, inflação; con­
dições para concentra­
ção do poder do Esta­
do, intensificação do (NOVA POLÍCIA
intervencionismo e con­ MÉDICA)
trole do Estado; crise
agrícola no Terceiro
Mundo; desemprego e
subemprego maciços;
alto grau de consciên­
cia política popular.
IMPERIALISMO Ciclo de fortalecimento EPIDEMIOLOGIA
E A SUPOSTA do Imperialismo. Crise ACADÊMICA
PÓS-MODERNI- das sociedades Popperiana e
DADE-1985 pós-capitalistas. Fenomenológica.
Epidemiologia para o
contexto periférico.

Fonte: Breilh, J. Medicina de la Comunidad e Una Nueva Policia Médica? Re­


t
vista Mexicana de Ciências Políticas y Sociales 84:57-82.
76 JAIME BREILH

O caráter predominante desta época foi a situação de crise


do modo de produção feudal e o aparecimento de formas
burguesas. Fase de transição na qual o Estado assumiu pe­
la primeira vez uma organização centralista e soberana, ali­
mentada por um poder expresso em um sistema jurídico es­
crito, de conteúdo abstrato e geral que supostamente en­
carnava o interesse coletivo.
O poder absolutista foi a necessária expressão superes-
trutural de um enfrentamento entre a nobreza, ainda poli­
ticamente dominante, e a burguesia, detentora do domínio
econômico. O exercício das funções administrativas se fez
pela aparição da burocracia como grupo aparentemente co­
locado acima de interesses de classes e capaz de preconizar-se
como gestor do bem geral.
O período absolutista e a seguinte fase manufatureira do
próximo período de livre competência foram, em linhas ge­
rais, etapas de um profundo reordenamento, de formação
de um novo tipo de disciplina produtiva e social, de impe­
riosa regulamentação para amoldar o desempenho das pes­
soas a novas ordens de trabalho e modos de viver.
As condições daquele âmbito sociopolítico viabilizaram
o aparecimento do que se passou a conhecer como “Polí­
cia Médica’’, que constituiu a tendência médica predomi­
nante, baseada na adoção de um enfoque coletivo ou de di­
mensão social e aplicado com um sentido normatizador.
Comentamos em um trabalho prévio (31) os alcances da
polícia médica e os matizes próprios que a mesma mostrou
nos países de maior avanço capitalista da Europa (Ingla­
terra e França) e posteriormente nos Estados Unidos, onde
o peso da função ordenadora atenuou-se paulatinamente
para dar passagem ao impulso de medidas sanitárias rela­
cionadas à urbanização capitalista e para o melhoramento
das cercanias fabris. As novas circunstâncias exigiam nes­
tes países que se pusesse crescente ênfase na execução efeti­
va de ações de saúde orientadas diretamente ao benefício
produtivo, projetadas para o melhoramento das condições
de vida no espaço urbano, e não exclusivamente à implan­
tação de padrões institucionais. De tal maneira, tarde ou
cedo, na maior parte dos países capitalistas coexistiram as
tendências autoritária e liberal.
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 77

Adentrando a história da segunda fase do capitalismo de


livre concorrência, ou formação da grande indústria, en­
contramos novos fatos que contribuem para esclarecer o te­
ma das duas tendências que nos ocupa.
A extensão e aperfeiçoamento do uso de maquinaria im­
plicou uma crescente transformação do processo fabril. Is­
to foi demonstrado por Marx (32), indicando que enquan­
to na manufatura o princípio da divisão de trabalho era sub­
jetivo, quer dizer, o processo tinha que adaptar-se aos tem­
pos e capacidade dos operários, e a ordem vinha por impo­
sição externa, em troca, na grande indústria, é a maquina­
ria que impõe seus princípios objetivos de ordenação do pro­
cesso. Por exemplo, aqueles hábeis operários da manufa­
tura, ex-artesãos que constantemente se rebelavam ante a
imposição de modalidades de trabalho, já não encontravam
bases objetivas para subsistir como tais. Assim mesmo, no
âmbito maior dos padrões de vida no espaço urbano, a con­
solidação das condições de produção mecanizada e de cir­
culação capitalista de maior envergadura ordenou o espa­
ço e a conduta dos homens de acordo com uma distribui­
ção e ritmos congruentes com o modo de produção que se
estava impondo definitivamente. O suporte estatal do tipo
ordenador, portanto, declinou em sua importância direta
para a consolidação da nova ordem e teve que se reorientar
em direção às funções de estímulo à produção, sem que is­
so signifique, supostamente, que suas funções legitimado-
ras e de controle político tenham perdido a vigência, prin­
cipalmente em momentos em que ganhavam significativo
impulso os movimentos de trabalhadores, tais como o le­
vante alemão da década de quarenta.
Sinais que adquiriram importância na nova fase foram,
entre outros, a livre circulação de mercadorias (homens e
coisas), a menção jurídica de uma democracia e igualdade
que desconheciam o papel dos estamentos e privilégios feu­
dais, e por necessidade histórica orientavam para o reco­
nhecimento oficial dos graves problemas da população e pe­
riferia urbanas.
Nesse contexto teria que se dar uma luta de redefinições
na superestrutura. A precedente tendência policial, norma-
78 JAIME BREILH

tizadora e centralista, e a nascente posição que se consti­


tuiu em congruência com o advento do período tipicamen­
te liberal tiveram que definir uma hegemonia. Foi assim que
no seio de sociedades que estiveram submetidas ao autori­
tarismo aflorou, com ímpeto cada vez maior, a necessida­
de de deixar circular e deixar fazer, aos homens suposta­
mente livres, e de alcançar, por um lado, condições míni­
mas de reprodução social para a escassa força de trabalho
de cujo consumo dependia a produção capitalista, e, por
outro lado, segurança para as famílias dos donos do capi­
tal. A medicina, nesses momentos, refletiu o enfrentamen-
to das tendências na luta de Virchow e os contagionistas.
Chegando ao final do século XIX, segundo Lênin (33),
por volta de 1870, iniciou-se o capitalismo monopolista com
a formação, primeiramente, de corporações e, mais tarde,
de cartéis industriais e trustes bancários. A monopolização
de recursos produtivos possibilitou um marcado avanço da
composição orgânica do capital1 e o incremento do volu­
me médio das unidades de produção.
Junto ao aumento da capacidade instalada e do nível tec­
nológico ocorreu um agravamento das lutas dos trabalha­
dores contra a prolongação abusiva do tempo da jornada
de trabalho que se havia perpetrado durante quase toda a
primeira metade do século. Estes acontecimentos precipi­
taram a implantação sucessiva de medidas legais para a li­
mitação da jornada de trabalho.
A redução absoluta do tempo de trabalho diminui ini­
cialmente a capacidade do capital para extrair mais-valia
do proletariado, mas de pronto os níveis de exploração fo­
ram recuperados e até superados, graças à implementação
de formas de trabalho intensivo e medidas para elevar a pro­
dutividade das unidades industriais.

1. Composição orgânica do capital é a proporção do capital constante (invertido


em meios de produção) em relação ao capital total.
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 79

O laboratório de fadiga em Harvard e a exploração


da “máquina corporal”

Na dinâmica da etapa que estamos analisando, a explo­


ração da “máquina” corporal operária cumpriu papel de
muita importância para incrementar seu potencial produti­
vo, aumentando o potencial de suas funções e “reparan­
do” seus danos.
Foi este o momento histórico no qual se fundaram insti­
tuições como o Laboratório de Fadiga da Universidade de
Harvard (1927-47), cujas características distintivas é neces­
sário destacar para uma melhor compreensão deste perío­
do, posto que constitui um instituto precursor que encabe­
çou a abertura da investigação médica com recursos mo­
dernos para o estudo do chamado “homem normal”.
Como refere Horvath (34) “... para algumas pessoas o
estabelecimento do Laboratório de Fadiga da Escola de Ad­
ministração (isto é, — Business School) da Universidade era
um enigma... pois não estava registrado nos setores insti­
tucionais que se esperava fossem seus progenitores, quer di­
zer, os de Ciências Biológicas ou de Medicina e Saúde Pú­
blica”. Mas um enfoque histórico do nascimento deste la­
boratório nos dá uma explicação muito coerente.
O principal impulsor da criação do Laboratório de Fa­
diga foi Lawrence Henderson. A base teórica do pensamento
de Henderson foi a Teoria Sociológica do Engenheiro Ita­
liano Vilfredo Pareto, sustentador da idéia do equilíbrio dos
temas sociais.
Os arquivos da Universidade de Harvard registram uma
destinação inicial de 645 mil dólares para o Laboratório de
Fadiga, doados pela Fundação Rockefeller com a finalida­
de de estabelecer um programa de investigação sobre ris­
cos industriais, na Escola de Administração.
Os objetivos explícitos dos planos do laboratório
dirigiram-se para o estudo dos riscos industriais e proces­
sos fisiológicos relacionados: a química sangüínea, a fisio-
logia do trabalho e a síndrome de fadiga. Durante o tempo
de guerra encaminharam os projetos de investigação para
o estudo dos fenômenos de adaptação climática e nutricio-
80 JAIME BREILH

nal dos soldados. Sob esse marco institucional foram se de­


senvolvendo os mais importantes conhecimentos sobre di­
fusão alveolar do oxigênio, equilíbrio ácido-básico em re­
pouso e atividade, as curvas de dissociação de oxigênio e
anidrido carbônico, fisiologia muscular, produção e níveis
de eritrócitos e muitas outras indagações vinculadas com
a fisiologia do trabalho.
Talvez um dos projetos mais significativos do laborató­
rio, que evidencia o substrato produtivo desta notável em­
presa de investigação médica, foi sua expedição aos Andes
Chilenos para estudar na população de Quilcha, localizada
a 5 340 metros acima do nível do mar, a capacidade pul­
monar dos mineiros chilenos e seu potencial adaptativo fren­
te à fadiga.
As diretrizes de institutos como o de Harvard estenderam-
se para as instituições de saúde, pondo em vigência os prin­
cípios da Reforma de Flexner, e foram os meios de uma qua­
se completa redução do espectro visual da medicina para
o clínico-individual.
Consolidou-se deste modo uma prática de novo tipo que
encontrou na infra-estrutura hospitalar e no inovado recurso
técnico-instrumental seu ótimo meio de crescimento.
Consolidou-se assim uma nova era para a medicina que, obe-
cedendo ao ditado da história, rompeu nexos com o social
e abriu o prolongado parêntese de predomínio biológico e
cientificista.
O “modelo” científico-hospitalar, em muitos países, al­
cançou sua máxima articulação com as necessidades do mo­
do de produção capitalista por meio dos grandes hospitais
da Segurança Social. Operando como enormes instrumen­
tos de conciliação, começaram a absorver por igual as de­
mandas dos operários, que reclamavam por melhores con­
dições de saúde, e as solicitações do capital, para que se re­
parasse a sua força de trabalhao lesada, estendendo-se além
disso seu serviço à comedida burocracia que tão abnega­
dos serviços esteve disposta a oferecer à burguesia.
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 81

A CONQUISTA DO TERRITÓRIO ECONÔMICO


E A MICROBIOLOGIA

No final do século XIX e primeiras décadas do século


XX, um fato adicional contribuiu para impulsionar o
cientificismo-médico: a expansão imperialista, em primei­
ro lugar das potências européias e depois, dos Estados Uni­
dos, se desenvolveu em grande parte nas regiões tropicais
da Ásia, África e América Latina. A avidez por matérias-
primas e produtos agrícolas exportáveis e a construção de
vias terrestres de acesso enfrentaram a ânsia produtivista
com a dispersão desordenada de elementos naturais, pro­
piciando o aparecimento de doenças infecciosas. A impo­
sição de formas deteriorantes de trabalho e condições ge­
rais de reprodução social desumanas converteu a força de
trabalho em alvo fácil dos processos destrutivos que tam­
bém surgiram no mundo natural como conseqüência da ex­
ploração irracional da natureza e a deterioração do espaço
de consumo de vastos setores populacionais.
As severas limitações que de modo sistemático se ante­
puseram ao exercício pleno da ânsia imperialista assinala­
ram a investigação das chamadas entidades infecciosas tro­
picais como uma das soluções mais baratas e adequadas ao
interesse capitalista. E assim se decidiu formar, com o res­
paldo técnico e financeiro dos grandes monopólios, as es­
colas e institutos de investigações microbacteriológicas.
A premissa oculta deste tipo de desenvolvimento da me­
dicina foi, e continua sendo, que a agressão ao homem por
parte de causas supostamente naturais exime de toda res­
ponsabilidade a organização social dominante. Na etapa do
apogeu da medicina cientificista, os hospitais, laboratórios
e institutos foram o reduto da “real academia” para um
acelerado processo de produção científica que, consciente
ou inconscientemente, subordinou, ainda, os mais renoma-
dos cientistas ao projeto burguês. Uma vez mais, a dialéti­
ca da ciência e ideologia se mostrava no desenvolvimento
do conhecimento e da técnica, colocando-os contraditoria-
mente a serviço do ímpeto lucrativo do regime capitalista
que entrelaçou curiosamente a maior produtividade de que
82 JAIME BREILH

tem conhecimento a história com a capacidade maior para


deteriorar seu recurso fundamental, que é a própria força
de trabalho humana.

A CRISE DOS ANOS SESSENTA E A “ABERTURA


SOCIAL”

O quadro anterior termina assinalando como período de


crise a década de sessenta e, no campo específico da medi­
cina, explica o aparecimento de fenômenos (como a medi­
cina “comunitária”) que traduzem de modo muito signifi­
cativo as características da prática sanitária e a emergência
de um vínculo alternativo do trabalho médico com os pro­
cessos da formação social.
Depois que Marx explicou em vários trabalhos que no
movimento contraditório da sociedade capitalista, observado
em vários períodos mais amplos, ocorre um ciclo periódico
cujo ponto culminante é a crise geral, (35) numerosos in­
vestigadores têm se aprofundado na análise desse típico even­
to que a intervalos variáveis acentua os problemas perma­
nentes de reprodução social no capitalismo.
Apesar de a história reconhecer há muito tempo a ocor­
rência de crises, destacamos a dos anos sessenta porque reúne
peculiares circunstâncias na relação entre o capitalismo
norte-americano e as formações latino-americanas, haven­
do coexistido com significativos esforços de reformulação
das tarefas estatais (tanto no imperialismo como em nos­
sos países), com amplas repercussões no sentido do que fa­
zer sanitário.
As crises capitalistas são fenômenos de dimensão nacio­
nal e internacional, extraordinariamente complicados, que
os convergem a uma grande variedade de forças econômi­
cas. Mais ainda, se aprendermos suas linhas gerais, pode­
remos entender por que a crise acentuada, depois de um par
de décadas, provocou impacto na prática médica.
Em termos de fácil compreensão, Sweezy (36) delineou
alguns dos componentes essenciais da crise. Em primeiro
lugar é preciso ter presente que a produção capitalista se rea-
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 83

liza no mercado. Quando, por algum motivo, se impede que


um produtor consolide a venda de seus produtos ao ritmo
acostumado, ocorre a crise de realização e a corresponden­
te superprodução. O resultado óbvio é que ”... coincidem
existência de mercadorias invendíveis e necessidades insa­
tisfeitas... cada produtor produziu mais do que pôde ven­
der”. (37) Por esse motivo é preciso buscar as causas da
crise naqueles feitos que induzem os produtores a interrom­
per o processo de circulação.
O intercâmbio fundamental que acontece no sistema ca­
pitalista é de compra da força de trabalho, de meios de pro­
dução e de venda de bens de produção e consumo. A razão
de ser do esforço capitalista não é a consecução de produ­
tos para subsistir adequadamente e sim a consecução do lu­
cro. Mas como advertiu Marx ”... não se trata só de repor
a mesma massa de objetos de que o capital se compõe, na
mesma escola ou (no caso da acumulação) em uma escola
ampliada, mas de repor o valor do capital inicial com a ta­
xa usual do lucro”. (38) Qualquer fator que obrigue a uma
diminuição da taxa usual de incremento de lucro faz com
que os capitalistas retenham o capital em forma de dinhei­
ro, ou, como essa medida não pode prolongar-se, reinves­
tem seu capital em outra linha de produção. Enquanto se
atenuam os problemas de mercado de realização e se reo-
rientam as inversões, o funcionamento econômico se vê adia­
do, se vê freado, se retrai com os acúmulos conseqüentes
da superprodução e da insatisfação das necessidades sociais.
A organização contraditória da economia capitalista clás­
sica determina que depois de períodos de auge para a acu­
mulação do capital, que absorvem força de trabalho quali­
ficada disponível, se produza por incremento de demanda
de mão-de-obra uma elevação dos salários, a qual atua di­
minuindo as taxas de lucro. Este fato produz por sua vez
uma menor capitalização da receita, diminui o ritmo de acu­
mulação de capital e, já em época de crise, atenua o movi­
mento de aumento de salários (por menor demanda de for­
ça de trabalho e por reconstituição do que Marx denomina
de exército industrial de reserva). Somado à recessão do pe­
ríodo crítico busca-se desempregar os operários, diminuin­
do sua utilização por meio do emprego de máquinas.
84 JAIME BREILH

Cada Estado, em época de crise, assume funções desti­


nadas a enfrentá-la de acordo com a conjuntura política e
capacidade financeira de tal Estado nesse momento, suas
medidas se orientam a beneficiar uma das classes e a impe­
dir, sob ângulos diversos, o estancamento econômico. Se­
gundo Altvater, (39) as inversões neste caso poderíam
classificar-se em: medidas que favorecem a classe trabalha­
dora e não restringem o consumo individual (isto é, melho­
rias no sistema educacional e de s^úde); medidas subsidiá­
rias da produção capitalista (que somente operam quando
as unidades produtivas logram acumular com os incentivos);
e a execução de projetos públicos cujas perspectivas de classe
dependem da origem dos fundos e do setor destinatário dos
f projetos. Nesse sentido, são geralmente os gastos militares
a usual alternativa.
De certo modo enfatizamos esta parte da explicação dos
fenômenos estruturais que estão na base das crises, pela mar­
cada repercussão que estas alcançaram sobre o processo
saúde-doença e as mudanças de política sanitária. Podere­
mos decifrar os aspectos-chave de décadas críticas, como
a dos anos sessenta, e entender o verdadeiro sentido da rea-
parição de dimensões sociais nos planos e conceitos médi­
cos depois daquele “intervalo cientificista” que antes co­
mentamos, o qual postergou a visão social e reduziu sua
atenção aos problemas do funcionamento somático e aos
fenômenos psíquicos individuais ou de pequeno grupo. Na
prática, a medicina cientificista determinou que a relação
médico-paciente desloque outras modalidades e converteu
a clínica, a cirurgia e a psiquiatria nas faces principais do
trabalho. Mas, desde os anos sessenta, o complexo hospi­
talar e o instituto começaram a declinar em sua importân­
cia relativa como instrumento do Estado e as opções de aten­
ção primária representam um novo esforço do capitalismo
para rejuvenescer suas alternativas ante a crise.
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 85

A HISTÓRIA DOS PRINCIPAIS MODELOS:


CIÊNCIA E IDEOLOGIA

A Polêmica de Virchow e os contagionistas


no capitalismo pré-monopolista
Ficou esboçado anteriormente o marco histórico no qual
se perfilam as idéias da polícia médica e os postulados libe­
rais sustentados por cientistas progressistas desde meados
do século XVII até meados do século XVIII.
No campo epidemiológico, as expressões do enfrentamen-
to entre o liberalismo nascente e o setor absolutista consti­
tuem um exemplo importante da influência do contexto so-
ciopolítico sobre a prática epidemiológica. Apresentamos
no Esquema 2 uma breve síntese dos termos da polêmica,
para logo depois explicarmos.

ESQUEMA 2 - ENFOQUES EPIDEMIOLÓGICOS CONTRAPOSTOS


DURANTE O CAPITALISMO PRÉ-MONOPÓLICO

CATEGORIA ENFOQUES
DE ANÁLISE VIRCHOWIANO CONTAGIONISTAS

Período histórico Capitalismo Pré-monopólico


(1775-1860)

Interesses socio- Liberalismo Absolutismo


políticos embrionário

Marco Racionalismo; Autoritarismo;


Ideológico Reformismo; Normativismo
Iluminismo

Pensamento “A doença se desen­ “A doença vem de


Epidemiológico volve nas próprias fora; requer quaren­
condições econômi­ tena e o exercício
cas e sociais locais; administrativo da
requer participação burocracia”
democrática”
86 JAIME BREILH

Para aprofundar o estudo deste conflito e sobretudo do


enfrentamento de concepções epidemiológicas que ele con­
tinha, enfocaremos a história alemã do período compreen­
dido do final do século XVIII até a primeira metade do sé­
culo XIX que, segundo nosso esquema, abrange as etapas
pré-monopolistas. O processo alemão, nesse período, reu­
niu acontecimentos que permitem observar mais nitidamente
flutuações do papel da epidemiologia nos primeiros está­
gios do desenvolvimento capitalista do que em outras for­
mações sociais.
O enfrentamento se estabeleceu entre a tendência dog­
mática e impositiva do setor oficial e o pensamento racio­
nal e antiautoritário que mantinha a então débil e medrosa
l
burguesia, apoiando-se no intenso movimento social que
promoviam os trabalhadores alemães para se livrarem de
condições de extrema exploração.
No final do século XVIII e começo do século XIX, a Ale­
manha, em relação a outros países europeus ocidentais, re­
tardou sua consolidação capitalista econômica e política.
Segundo Dynnick (40), a persistência das formas econômi­
cas feudais impediu superar o fracionamento do Estado em
Estados diminutos independentes e determinou uma certa
incapacidade da burguesia para unificar-se. A débil produ­
ção capitalista do tipo ainda predominantemente manufa-
tureiro, ao receber no mercado o impacto da avançada pro­
dução industrial inglesa, sofreu sérios reveses. Para com­
pensar o baixo nível de produção em todos os ramos,
acentuou-se a exploração das massas trabalhadoras.
No dizer de Marx, era a Alemanha que acompanhava na
atividade abstrata o desenvolvimento dos povos modernos;
os alemães eram “contemporâneos filosóficos do presen­
te, sem ser seus contemporâneos históricos”. (41) Nesse con­
texto, os representantes da filosofia clássica alemã expunham
então pontos similares aos dos filosófos franceses do sécu­
lo XVIII em vésperas da revolução. Valorizavam o modo
idealista, embuídos de espírito reformista. Insistam em rea­
nimar a indústria, melhorar a agricultura, produzir máqui­
nas, estimular descobrimentos e inventos e ajudar por to­
dos os meios o progresso das ciências naturais. Era o em-
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 87

brionário ímpeto liberal lutando por sacudir-se da norma-


tização imposta pelo Estado aristocrático.
Já por volta da metade do século XIX se acentuaram os
processos, e, sobretudo, o proletariado estava se convertendo
numa força combativa. Em 1840, as primeiras lutas operá­
rias foram impulsionadas pelas “Ligas dos Justos” e, em
1845, o centro do movimento revolucionário europeu se des­
locou para a Alemanha. (42)
Por todos aqueles antecedentes, o período alemão de tran­
sição é o ponto adequado para a demonstração histórica
do debate entre o autoritarismo e as expressões anti-
absolutistas da jovem burguesia, apoiando-se na força do
movimento proletário.
Como em toda luta social, os termos do debate não cor­
responderam expressa e diretamente aos interesses das classes
em enfrentamento, ainda mais, tratando-se de um período
de transição em que apareceram como débeis as propostas
de aristocratas em decadência, da nascente burguesia e do
proletariado apenas em fase de consolidação.
Mal se podia esperar que nessas circunstâncias os argu­
mentos no campo da medicina ocorressem como firmes cor­
rentes de um pensamento de linha definida. O que é possí­
vel é detectar o predomínio de conceitos, formas lógicas e
práticas, que em sua dinâmica se aditaram aos interesses
mediatos ou imediatos dos grupos em luta. Observemos os
aspectos mais gerais da formação dessas linhas.
Durante os séculos XVI e XVII na Europa houve a ir­
rupção de um trabalho científico que deixou assentadas as
bases da ciência médica nos campos da anatomia, da fisio-
logia e dos primeiros intentos de estabelecer uma taxono-
mia das doenças. Mas essa base científica era débil e surgia
num contexto não propício para promover sua aplicação
no manejo dos problemas públicos. Rosen assinala, por tal
motivo, como as coletividades dos séculos XVI, XVII e ain­
da XVIII “... tratavam os problemas epidêmicos, de aten­
ção médica, ambiental e provisão de água da mesma ma­
neira que o efetuava a comunidade medieval” (43), base-
ando-se em concepções de fundamento mágico-religioso e
atitude expectante.
88 JAIME BREILH

Todavia, desde meados do século XVIII a passividade


e o apoio em forças sobrenaturais começou a declinar, dando
lugar a correntes de pensamento que logo foram
consolidando-se em um grande movimento de ilustração.
Em concordância com a força produtiva, desenvolvida que
as formações sociais alcançaram, se elevou o valor social
da inteligência humana e se reconheceu a enorme utilidade
para o progresso humano do emprego da razão. (43) A In­
glaterra, com o fermento de suas transformações econômi­
cas e sociais, foi a cunha do pensamento ilustrado, mas pos­
teriormente a França tomou a liderança, rubricando com
outros de maior envergadura o advento de uma era de re­
i
novada confiança na capacidade de organizar consciente­
mente'^ progresso”.
Na Alemanha os fatos desembocaram em meados do sé­
culo XIX no conflito das alternativas principais que assi­
nalamos anteriormente: um absolutismo ou despotismo ilus­
trado e de outro lado um liberalismo ilustrado de maior con­
teúdo democrático. Na epidemiologia os elementos da con­
tradição, segundo Berline (44) foram os “contagionistas”
ou mantenedores da linha oficial autoritária e os “anticon-
tagionistas”, cuja figura mais representativa foi Rudolf
Virchow2. Os dois enfoques utilizavam uma visão coletiva
dos problemas de saúde, mas com projeções socialmente
diferentes.
O pensamento epidemiológico inscrito na linha contagio-
nista foi englobado pela doutrina geral do absolutismo mé­
dico, descrito por Rosen, ao comentar a obra de John Peter
Frank, como portador de "... a idéia de que saúde do pú­
blico é responsabilidade do Estado... com um ...espírito de
ilustração e humanitarismo... como se podia esperar de um
oficial de medicina pública que passou sua vida a serviço
de vários regimes absolutos, grandes e pequenos, a exposi­
ção serve não tanto para instrução da população, ou ainda
dos facultativos, quanto para a orientação dos oficiais que
deviam regular e supervisionar, para benefício da sociedade,

2. Contemporaneamente, na Inglaterra, destacavam-se com um papel histórico


similar Chadwick e Farr.
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 89

todas as esferas de atividade humana, mesmo as mais pes­


soais... o leitor moderno poderia em muitas passagens sen­
tir repulsa pela sua excessiva atenção aos aspectos da regu­
lamentação legal...”. (45) Os epidemiólogos contagionis-
tas tomaram a posição de que a doença “vem de fora, re­
quer quarentena e o exercício administrativo da burocra­
cia”. (46) Contrariamente, os pensadores mais democráti­
cos, alinhados à posição anticontagionista, afirmavam que
a doença se gesta em: “... as próprias condições locais, não
requerem quarentena, nem burocracia”. (47)
No seio de uma sociedade convulsionada, em transe re­
volucionário, epidemiólogos como Salomon Newman, Ru-
dolf Leubuscher e o citado Virchow encabeçaram um mo­
vimento fundamentado em dois princípios: a) que a saúde
do povo é um assunto que concerne à sociedade como um
todo; b) que as condições econômicas e sociais têm um im­
portante efeito sobre a saúde e a doença, sustentando que
essas relações devem submeter-se à investigação científica.
Num projeto de lei, submetido por Newman à conside­
ração da sociedade médica de Berlim, em março de 1849,
denotam-se as condições que afetam negativamente a saú­
de na seguinte lista: “... poeira, indústria, alimentos e ha­
bitação”, que incluía a pobreza dentre as condições que im­
pedem o bom cuidado da saúde. (48)
Virchow e seus companheiros situaram a epidemiologia
no vértice de uma encruzilhada que o posterior afiançamento
do domínio burguês e a derrota do movimento operário se
encarregariam de dirimir a favor do projeto capitalista.

EUGENIO ESPEJO: O PRECURSOR DE UMA


PEQUENA NAÇAO

Embora assinalamos antecipadamente que nossa análise


da etapa pré-monopolista se reduziría à instância européia,
consideramos necessário mostrar uma importante evidência
de que o conflito social e ideológico, que analisamos por sua
influência sobre as correntes do pensamento epidemiológi-
co, esteve presente nas formações coloniais da América La-
90 JAIME BREILH

tina. E não somente isso, mas inclusive em relação crono­


lógica dos eventos que tratamos, aparece antecipadamente
manifestando-se com contornos de notável realce na obra
de Eugênio Espejo.
O polemista e médico negro-indígena Eugênio Espejo foi
um dos nove médicos titulados que exerciam a medicina na
Quito de 1785, capital da Presidência, cidade afastada com
marcada divisão de classes. Para o historiador Virgilio
Paredes era então “... uma cidade de uns 25.000 habitan­
tes, em cujos costumes havia uma profunda manifestação
do indígena e do espanhol. Descuidados na higiene pessoal
e da habitação... cidade de urbanização defeituosa, com
abundante população indígena dedicada aos serviços dos
l
brancos... Contínuas epidemias assolavam a população e
despovoavam de forma alarmante a cidade”. (49)
O contexto forçou Espejo a uma atividade em que se mis­
turavam a prática do cientista de sua época com a do ho­
mem político, lutador contra as extorsões da aristocracia
e denunciador permanente de um regime de opressão e ser­
vidão de que foram vítimas quaisquer pessoas que, como
ele, não podiam esconder uma origem índia e mulata ante
o juízo implacável das classes aristrocráticas.
Foram seguramente a proximidade de sua prática social
com as profundas necessidades de seu povo e a manuten­
ção de sua polêmica contra as condições da ordem estabe­
lecida, que moldaram seu pensamento médico e potencia-
ram sua objetividade como cientista, levando-o a produzir
sua obra epidemiológica mais importante Reflexões sobre
o contágio e transmissão da varíola, (50) que, sem dúvida,
o inscreve como um dos de maior nome na linha mais pro­
gressista do pensamento epidemiológico.
Mediante seu trabalho político-organizativo e sua pro­
dução escrita, vinculados aos problemas epidemiológicos de
seu tempo, Espejo pôs em evidência a Teoria do Miasma
de Tomás Sydenham e a estruturou como plataforma polí­
tica de grande escala, antecipando-se, desse modo, em meio
século à conquista similar de Virchow, dos hegelianos pro­
gressistas da Alemanha e dos reformadores médicos ingle­
ses Chadwick e Farr, os quais, por sua vez, mantiveram o
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 91

fio condutor de um pensamento científico integral, pois tam­


bém relacionaram os processos epidemiológicos com as con­
dições econômicas e sociais. Esse fio condutor seguiría mais
tarde sob as novas possibilidades de visibilidade científica
do capitalismo da grande indústria quando Engels e Marx
produziram, em suas obras de economia política, escritos
epidemiológicos fundamentais que acertariam as bases da
mais moderna ciência da saúde-doença.
Desse modo, desenvolveu-se essa continuidade lógica ou
processo acumulativo interno da ciência epidemiológica in­
tegral, denotando a superioridade histórica do pensamen­
to ligado aos verdadeiros interesses democráticos, que so­
brevive e se enriquece ante os embates do pensamento mis-
tificador dos setores hegemônicos.
Retornando ao caso Espejo, diremos que no menciona­
do ano de 1785 surgiu na cidade de Quito uma grave epide­
mia de sarampo. O “Cabildo civil”* reuniu os médicos ti­
tulados que trabalhavam na cidade para informar-lhes so­
bre a publicação enviada pelo governo espanhol às colônias,
denominada Método Seguro de Preservar os Povos da Va­
ríola, cujo autor era o Dr. Francisco Gil. O estudo era com­
parável com o enfoque que havíamos denominado anticon-
tagionista ou virchoviano. De pronto apareceram os pon­
tos de vista contrários à concepção contagionista, e Espejo
assumiu a defesa.
Ao início de suas Reflexões sobre o contágio da Varíola,
Espejo disse: “Conheci pessoas que asseguravam que o novo
método de Dom Francisco Gil era impraticável porque a
cidade não estava cercada de muralhas e acreditavam, com
sincera convicção, que o contágio da varíola seria introdu­
zido por homens maus, da mesma forma que gente de má-
fé poderia introduzir um contrabando de aguardente atra­
vés das colônias dos referidos caminhos reais. Que forma
irracional de pensar! (51)
Para Espejo era mais que necessário dar uma explicação
de por que uma doença atinge a um número de pessoas e
não outros. Desenvolveu as idéias sobre “potências noci-

• (N.T.) Junta ou agremiações de ajuda mútua.


92 JAIME BREILH

vas” e “predisposições”, entre as quais incluiu: os proble­


mas do “ar popular” nas casas pobres e no meio urbano;
as dificuldades de “comida e bebida”, entre as quais res­
saltava a escassez de víveres gerada pelos abastados e inter­
mediários trigueiros que, segundo ele, vão ”... fazendo sua
bolsa à custa da miséria e fome do povo... escondem o tri­
go, para vendê-lo a um alto preço, fixando então sua ri­
queza na fome e agonia dos infelizes”. (52)
Os capítulos epidemiológicos dos escritos de Eugênio Es-
pejo são a síntese de três elementos conjunturais: a realida­
de social conflitiva e abismalmente polarizada da capital de
Quito; a resposta objetiva de um pensamento científico pro­
l gressista; e o compulsivo apoio dele (Espejo) aos esforços
de libertação, como mente esclarecida, comprometida sem
rodeios academicistas com o pólo dominado de uma socie­
dade de classes.
A economia, a política e a medicina se entrelaçam nas
argumentações epidemiológicas do revolucionário Espejo.
Quando estabeleceu, por exemplo, a existência de uma es­
treita relação entre problemas de falta de alimentos e a doen­
ça, deixou traçada uma orientação epidemiológica objeti­
va, integral e militante. Como enfatizou, é assim que “...
a penúria traz atrás de si as doenças e a morte...” (53) e
que disso deviam-se convencer as pessoas inseguras ... “des­
cobrindo certos segredos da Economia Política, porque em
certos casos é preciso que o particular seja sacrificado pelo
Bem Comum”. (54)
A importância histórica deste tipo de postura de Espejo
foi praticamente desconhecida. A difusão de sua doutrina
se viu envolta na polêmica e confusão ideológicas que ca­
racterizaram os juízos de valor levantados acerca de seus
escritos. Seus difamadores políticos têm procurado mini­
mizar o significado e transcendência de suas idéias sobre
as contradições econômicas como predisponentes sociais da
doença, sobre os usos da economia política no trabalho mé­
dico e sobre a necessidade de se romperem os obstáculos
e privações ocasionados pela propriedade privada dos re­
cursos vitais da sociedade.
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 93

Seus apologistas, por outro lado, assumem a análise de


suas idéias médicas a partir de um enfoque anedótico, o que
os impede de ponderar objetivamente o valor histórico e o
caráter precursor de suas idéias científicas, assim como a
transcendência democrática de seu enfrentamento contra os
defensores da doutrina autoritária e mistificadora do
contagionismo.
Finalmente, esse critério de pouca valorização aplica-se,
em geral, ao trabalho científico dos latino-americanos que,
comumente, desenvolvem seu trabalho em pequenas e po­
bres formações sociais, com uma capacidade muito restri­
ta de reprodução bibliográfica. Fecha-se assim o círculo de
evasivas e de desprezo que limitou a difusão das aborda­
gens de Eugênio Chusig, como era o nome indígena de
Espejo.

A TEORIA UNICAUSAL NA FORMAÇÃO E


CONSOLIDAÇÃO DO CAPITAL MONOPÓLICO

Ao final do século XIX, a concentração e centralização


da propriedade, o aumento da composição orgânica do ca­
pital e aplicação de formas de trabalho mais eficazes e in­
tensivas eram as notas salientes de um capitalismo que am­
pliava seus recursos com ímpeto monopolizador. A única
força contrária que saiu opondo sua luta organizada à rea­
lização irrestrita do projeto burguês foi o “operário-
coletivo”, que naquele tempo estava se consolidando.
Neste contexto, o pólo dominante foi todavia o capital,
que, com seu acelerado desenvolvimento, foi imprimindo
sua marca em todos os níveis da vida social. A derrota, por
exemplo, do movimento alemão de 1848 assinou a vitória
da burguesia e sua ascensão ao topo do domínio completo.
A epidemiologia não podia ficar de fora da corrente he­
gemônica e poucos anos mais tarde o peso dos acontecimen­
tos resolveu o debate epidemiológico colocado na etapa an­
terior, desconhecendo as teses dos revolucionários liberais
(hegelianos de esquerda) como Virchow, e substituindo-as
pela teoria microbiana.
94 JAIME BREILH

O ingrediente revolucionário e social, a visão integrado-


ra dos liberais anticontagionistas, foi útil ao avanço da bur­
guesia enquanto esta lutava para libertar-se da camisa-de-
força absolulista e acumular poder. Mas, uma vez que con­
solidou seu domínio, as necessidades objetivas do desenvol­
vimento capitalista se transformaram e as palavras de or­
dem que a história colocava em primeiro plano eram: maior
rendimento da força de trabalho, ampliação e incorpora­
ção de tecnologias produtivas e expansão dos mercados e
áreas de inversão. O estudo das doenças se viu envolto des­
de o final do século anterior em uma articulação: facilitar
o impulso para o aumento da eficiência e a abertura de ter­
l ritórios inóspitos da África, Ásia e América.
O sentido normatizador da polícia médica nada tinha que
fazer numa formação já objetivamente organizada para
cumprir os desígnios do capital, e não era congruente com
o novo domínio alcançado a tese da origem social das doen­
ças, da importância de elevar salários, etc, que preconiza­
vam os investigadores como Virchow.
Ao invés de incorporar achados como os microbacterio-
lógicos ao enfoque integrador dos anticontagionistas, situan­
do os germes como uma condição necessária mas não sufi­
ciente, se desfigurou todo o processo, convertendo os ger­
mes e transtornos funcionais na causa única das doenças.
O capitalismo logrou assim mistificar a saúde-doença, es­
condeu debaixo do tapete da unicausalidade a mais ampla
epidemiologia virchoviana, deu maior impulso e elevou ao
primeiro plano a oferta de serviços clínicos como dócil mer­
cadoria de fácil e eficiente circulação e reduziu a epidemio­
logia ao papel secundário de recopiladora de estatísticas co­
letivas, acumuladas sob o enfoque naturalista, mediante os
sistemas de notificação de hospitais, laboratórios, institu­
tos e locais improvisados nas vizinhanças das plantações de
café, seringueiras, banana ou nas cercanias dos complexos
mineiros.
Este relato geral dos fatos configurativos das tendências
médicas na etapa monopolista não pretende ser completo.
Esboça pontos gerais que seriam ampliados por uma análi­
se histórica mais rigorosa que tivesse este período como ob-
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 95

jeto principal de estudo. O que desejamos ressaltar agora


é o conjunto de condições econômicas, políticas e tecnoló­
gicas que desde meados do século XIX possibilitou o vigo­
roso desenvolvimento de uma etapa cientificista na medici­
na, intensamente vinculada aos planos de avanço das in­
versões monopólicas e em muitos casos submetidas a sua
direção e financiamento. Nosso objetivo não consiste em
apresentar a história da ciência médica como um reflexo me­
cânico dos processos estruturais e sim descobrir uma ten­
dência geral de determinação em cujo interior, no entanto,
sempre resta uma margem para aquele processo acumula-
tivo interno da ciência que marca sua lógica interior e a con­
tinuidade relativa que anteriormente expusemos.
Descobrimentos como os de Vesalio (século XVI), Har-
vey (circulação sangüínea) em 1628, Sydenham (a clínica)
em 1680 e Van Leeuwenhock (microscopia) em 1683 se pro­
duziram quando apenas se desenvolvia o período manufa-
tureiro e não encontraram condições favoráveis para sua
implantação na dimensão prática e para a instauração de
uma tendência científica na medicina. Somente a partir da
metade do século XIX se estabeleceu na Europa o terreno
propício para o pleno aproveitamento do saber acumulado
e o ressurgimento de uma atividade científica na medicina
e ramos afins, esta vez sim com possibilidades de estrutu­
rar um sistema que pôde aproveitar os conhecimentos de
outras ciências e consolidar-se como substrato da moderna
medicina capitalista.
As ciências físico-químicas e as biológicas, durante o pe­
ríodo de formação da grande indústria, alcançaram um ver­
tiginoso ritmo de desenvolvimento. Passaram a ser condi­
ção básica do processo do novo tipo de produção, porque
como assinalara Marx, em a produção fundada na ma­
quinaria... o processo total deve ser analisado em suas fa­
ses constitutivas, no problema que consiste em executar cada
processo parcial e unir os diferentes processos parciais,
resolve-se mediante a aplicação técnica da mecânica, da quí­
mica, etc... Enquanto maquinaria, o meio de trabalho co­
bra um modo material de existência que implica a substi­
tuição da força humana por forças naturais, e da rotina de
96 JAIME BREILH

origem empírica pela aplicação consciente das ciências na­


turais”. (55) Foi a época de irrupção de uma grande avidez
de técnica, de rendimento ótimo no trabalho, de matérias-
primas e recursos naturais, do descobrimento de novas ro­
tas marítimas comerciais. O trabalho científico em todos
os campos ficou exposto, direta ou indiretamente, à influên­
cia dessa corrente produtiva, não como uma relação mecâ­
nica de causa ou efeito e sim pela submissão do trabalho
do investigador num contexto modelado pela força expan­
siva e absorvente da produção capitalista.
Esses ritmos foram impostos às ciências biológicas e à
saúde e envolveram as façanhas de Morton e Simpson (anes-
l
tesiologia) em 1846, de Bernard (fisiologia experimental) em
1858, de Darwin (evolução natural) em 1859, de Lister (anti-
sepsia) em 1865-82, de Freud (psicanálise) e mais tarde dos
bacteriólogos (Pasteur, 1865-78; Koch, 1882), Roentgen
(raios x) em 1895, os bioquímicos e endrocrinologistas, etc.
Para a epidemiologia, o impacto culminante desse desen­
volvimento foi dado pelos descobrimentos microbiológicos.
A conformação da teoria microbiana constituiu a chave mes­
tra da redução total do marco de conhecimento epidemio-
lógico às causas e ações unilaterais. A bactéria, o parasita
e, mais tarde, o vírus tomaram o lugar, de acordo com a
nova concepção hegemônica, do complexo de condições so­
ciais como objeto das investigações.
A marca profunda que a bacteriologia imprimiu nas ciên­
cias da saúde foi de tal transcedência, desde então, que al­
guns historiógrafos contemporâneos as seguem mencionan­
do como o “... maior descobrimento feito em medicina, e
que mudou a totalidade de nossos conceitos sobre a causa
e a natureza da maioria das doenças e também sobre seu
tratamento...”. (56)
A trajetória científica do próprio Louis Pasteur testemu­
nha a participação chave da bacteriologia desde seus fun­
damentos, no avanço da produção capitalista. Em 1855 seus
estudos acerca da fermentação e putrefação nasceram do
pedido que os fabricantes de álcool, vinagre e cerveja lhe
fizeram para que descobrisse por que seus produtos se per­
diam, ocasionando sérios transtornos econômicos. Dez anos
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 97

mais tarde se fez um novo contato de Pasteur com a pro­


dução, quando foi chamado a investigar as doenças dos
bichos-da-seda. Seu trabalho inteligente e perseverante lhe
serviu para descobrir pequenos parasitas que ocasionavam
a morte das lagartas, salvando a produção sericicultora da
França. Em 1877, o clamor dos pecuaristas sobre a doença
letal que dizimava seu gado levou o experimentado bacte-
riólogo a descobrir um micróbio em forma de bastonete que
ocasionava o temido antrax bovino. O êxito final do traba­
lho pasteuriano foi a inauguração, em 1888, do instituto
que leva seu nome. Ficou estabelecido assim um elo impor­
tante da linha de interpretação unicausal.
Na virada do século uma vez consolidada uma firme ba­
se central monopólica, o capitalismo buscou expandir suas
fronteiras e assentar suas poderosas prolongações nas dé­
beis economias da América Latina, África e Ásia. A exten­
são do âmbito de operações, o processo de conquista de vias
comerciais de territórios e o subjugamento das formações
menos desenvolvidas estiveram encabeçados desde as pri­
meiras décadas pela poderosa burguesia norte-americana
que, desse modo, passou a capitanear a fase imperialista
do capitalismo.
De imediato o crescimento imperialista se viu frente a no­
vos desafios e problemas: a penetração de um mundo inós­
pito, geralmente de mesologia tropical, desmatamento da­
quela selva densa, de cujas adversidades na América Lati­
na deixaram dramáticos testemunhos autores como José
Eustácio Rivera {La Vorágine), Miguel Otero Silva {Casas
Muertas), Demetrio Aguilera {El Tigre), etc. A abertura de
vias de comunicação, a instalação de unidades produtivas
e comerciais e todas as outras operações afins, pelo modo
como foram realizadas, e o arrocho da mais-valia, que se
efetuou à custa do consumo descuidado da força humana
e de recursos naturais, tornou a natureza uma enorme fon­
te de forças deteriorantes. A febre amarela, a malária, a
ancilostomíase etc... apareceram em cena, pondo em risco
o êxito final deste enorme projeto de exploração.
A resposta não tardou a produzir-se. Poderosos mono­
pólios, como do Grupo Rockefeller, iniciaram uma série de
98 JAIME BREILH

projetos de grande escala dedicados à erradicação das mais


difundidas doenças tropicais por intermédio de suas milio­
nárias fundações. Em 1909, por exemplo, foi fundada a
“Comissão Sanitária Rockefeller para a Erradicação da An­
cilostomíase”, com programas na China, Filipinas, Ilhas
do Caribe, Malásia, Egito, América Latina e outros países.
Em 1914, inciciaram uma campanha internacional contra
a febre amarela; em 1915, programas antimaláricos, etc.;
e assim financiavam planos próprios ou de organismos de
saúde internacionais, com o interesse na proteção dos ní­
veis de produtividade das unidades montadas nas novas
colônias.
Nessas condições, a ação valorosa e disciplinada de nu­
l
merosos epidemiólogos se viu envolta na tarefa enganosa
do imperialismo e dos capitalistas crioulos que, por trás da
aparência humanitária e científica, escondiam uma racio­
nalidade profundamente utilitária. Os trabalhos de uma epi-
demiologia instrumentalizada transcenderam os limites na­
cionais e começaram a ser coordenados por organismos de
estrutura internacional, mas de controle e funcionamento
monopólicos e fundamentalmente norte-americanos. A con­
fiança que este setor depositou no poder “abre-países” da
epidemiologia reflete-se em declarações como as que tra­
duzimos de John C. Mc Clintock, Vice-Presidente auxiliar
da “United Fruit Company”, que disse: “nas áreas subde­
senvolvidas em que se instalaram as companhias norte-
americanas, atingindo o êxito culminante das grandes em­
presas, onde hoje continuam, um dos fatores principais foi
o estabelecimento de condições de saúde sob os quais se pu­
desse não somente existir mas trabalhar (...) não podiam
ter extraído minerais, nem cultivado bananas, nem bom­
beado petróleo se esse aspecto fundamental não tivesse si­
do levado em conta”. Este e outros documentos foram re-
copilados por Richard Brown, nos arquivos da Fundação
Rockefeller. (57)
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 99

A “ABERTURA SOCIAL” DOS MODELOS


MULTICAUSAIS E A CRISE DO IMPERIALISMO

Na América os eventos continuaram se desenvolvendo


nestas linhas. Nossas estruturas sociopolíticas, com amplos
traços pré-capitalistas, pequeno desenvolvimento de sua ca­
pacidade produtiva, uma organização capitalista dependente
e um movimento popular atrelado a esquemas populistas,
possibilitaram a penetração quase irrestrita dos generosos
irmãos do norte com seu capitalismo plenamente
consolidado.
Samir Amin, em suas últimas reformulações da teoria da
dependência, definiu com termos precisos a articulação im­
perialista. (58) Como ponto de partida de seu estudo, ado­
tou a relação objetiva (necessária), que Marx descobriu en­
tre a taxa de mais-valia e o nível de desenvolvimento das
forças produtivas 3 como elemento explicativo do desenvol­
vimento próprio e da relação mútua entre os países hege­
mônicos (chamados por ele de autodependentes) e os paí­
ses subordinados (chamados por Amin de dependentes).
Nos países hegemônicos o processo capitalista iniciou-se
com a decomposição do sistema agrícola feudal, logrando
primeiro um incremento da produtividade agrícola diversi­
ficada e conseguindo com ela uma liberação de excedentes
de força de trabalho para a indústria e, concomitantemen­
te, uma liberação de excedentes alimentares.
A burguesia industrial que pôde formar-se aliou-se aos
proprietários da terra (camponeses ou latifundiários, de
acordo com o casó) para consolidar-se. Havendo assegura­
do a provisão de uma grande parte de artigos de consumo
de massa e alimentos, e aumentado vigorosamente a fabri-
3. A taxa de mais-valia expressa a relação entre o valor do trabalho extra obtido
na produção e o trabalho necessário para reproduzir a força de trabalho. Indi­
ca a proporção entre o número de horas que se trabalhou para o capitalista
com relação ao número de horas que se trabalhou para reproduzir os meios
de subsistência do trabalho. Fórmula p = p/v. O desenvolvimento das forças
produtivas que antes explicamos expressa a divisão social do trabalho em ter­
mos de quanta força de trabalho e de que custo se necessita para conseguir
uma determinada produção.
100 JAIME BREILH

cação de meios de produção, ambos iniciaram, primeiro lo­


calmente, um processo de acumulação interna. Quando es­
te alcançou níveis suficientes e de maneira subordinada à
lógica interna de acumulação, estes países buscaram expan­
dir suas inversões ao resto do mundo, impulsionando o de­
senvolvimento do mercado mundial de acordo com suas pró­
prias necessidades. Em outras palavras, recordando a rela­
ção de mais-valia e forças produtivas, diriamos que esses
países alcançaram um pronunciado desenvolvimento das for­
ças produtivas na agricultura e indústria com uma massa
trabalhadora bastante homogênea e de maior qualificação,
uma economia diversificada, com um mercado interno muito
desenvolvido e com uma capacidade produtiva excedente
que gerou avidez de extensão do mercado e de consecução
de matérias-primas para a transformação.
Por outro lado, países subordinados como os nossos, por
razões de sua própria história, se atrasaram na capitaliza­
ção agrícola4 e mantiveram um sistema quase feudal de
posse da terra, de muito baixa produtividade e um merca­
do interno rudimentar. Quando sobreveio o impulso inver-
sionista estrangeiro, criou-se um setor exportador que se­
ria o pioneiro de um desenvolvimento capitalista deforma­
do e dependente.
O imperialismo não estimulou a decomposição das for­
mas agrícolas pré-capitalistas, mas, ao contrário, aproveitou-
as para prover-se de mão-de-obra muito barata nas unida­
des tropicais de agroexportação. Aliando-se às burguesias
nacionais subalternas, conseguiu manter uma heterogenei-
dade das massas trabalhadoras: força de trabalho mais avan­
çada no setor exportador e muito atrasada em outras re­
giões. Este atraso era a condição do barateamento extremo
da mão-de-obra e este era a chave do êxito imperialista que,
inclusive, compensou a menor produtividade destes países.
4. Autores como José Carlos Mariátegui (Siete Ensayos de interpretación de la
Realidad Peruana), Severo Martínez (La Pátria dei Criollo), e Augustín Cue-
va (Desarrollo dei Capitalismo em América Latina) explicaram as condições
históricas da Colônia e Independência Latino-americanas que seguraram e de­
formaram o desenvolvimento do setor burguês e truncaram as possibilidades
de uma capitalização mais acelerada no campo.
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 101

Ao redor da metade deste século começaram a se dar mo­


vimentos de libertação encabeçados por certo setor das bur­
guesias locais, apoiando-se em movimentos, populistas e de­
fendendo propostas de reivindicação nacional.
A nova situação necessitou de um ajuste e remodelação
dos nexos com os monopólios. A nascente burguesia indus­
trial comprometeu-se com uma estratégia de industrializa­
ção, mas como explica Amin, o fez começando o processo
por onde o capitalismo central terminou: a produção de bens
de consumo para os setores de grande capacidade aquisiti­
va. O tipo mais sofisticado de produção se desenvolveu em
aliança com o imperialismo para satisfazer as demandas dos
únicos grupos com capacidade aquisitiva: a burguesia e as
classes médias. A industrialização se viu distorcida em de­
trimento da produção de bens de massa e atraiu muito pouco
a força de trabalho qualificada. A agricultura de subsistên­
cia, pouco atrativa pelas limitações do mercado, estancou-se.
Desta maneira, nossas economias foram se definindo pelo
modelo: “setor exportador — consumo de luxo”, monta­
do sobre uma organização produtiva de acelerada concen­
tração e centralização de capitais, com sua contrapartida
de empobrecimento e acumulação de massas desemprega­
das ou subempregadas. Fenômenos cuja repercussão na prá­
tica médica desta etapa trataremos mais tarde.
Essa enorme proporção de desempregados ou subempre-
gados, mal chamada por alguns autores de “população mar­
ginal”, soma-se a um campesinato paupérrimo e a uma clas­
se operária mantida em condições de mínima subsistência,
para integrar uma massa extremamente empobrecida que
constitui, para os setores dominantes, uma permanente
ameaça que se deve controlar.
Sobre essas condições, apareceu na década de sessenta uma
das crises mais profundas do sistema capitalista. Crise que
sacudiu as economias poderosas e com mais razão acentuou
os severos problemas das economias subordinadas, suscitan­
do respostas emergentes por parte do setor estatal.
Vuskovic (59) explica como as políticas de desenvolvimen­
to do Estado e grupos dirigentes da América Latina, antes
de 1960, oscilavam entre proposições “estabilizadoras” e
102 JAIME BREILH

“desenvolvimentistas”. E mais, os problemas já descritos


que foram se acumulando pelo caráter do processo capita­
lista e o impacto da crise decenal determinaram que, du­
rante a década, predominasse o enfoque desenvolvimentis-
ta e com as iniciativas da CEPAL e Aliança para o
Progresso.
O esquema desenvolvimentista (chamado também inter-
vencionista, pragmático, estruturalista) tratou de revestir ou
atenuar os efeitos do predomínio monopólico e a acumula­
ção interna do capital e solucionar os problemas ocasiona­
dos pela crise. Buscou-se implementar políticas ativas de pro­
teção e regulação que retificaram os termos de desequilí­
brio entre “centro” e “periferia”, transferir recursos e tec­
I
nologia desde os setores de maior produtividade até os me­
nos produtivos, aumentar a renda por habitante e incremen­
tar assim a demanda.
Os problemas que aparecem com mais força a partir dos
anos sessenta ultrapassaram a capacidade de ajuste dos ins­
trumentos de gestão que haviam sido empregados anterior­
mente; fizeram-se evidentes as inconsistências daquele “cír­
culo vicioso” (produção-renda-poupança-inversão), que fora
previsto no pós-guerra como o caminho do progresso, e
constatou-se a urgente necessidade de vigorar os mecanis­
mos de regulação. Obviamente estas ações tiveram que se
desenhar sobre a base de um esquema mistificador, que fi­
zera aparecer o desenvolvimento e o subdesenvolvimento
como termos independentes, ou como diria Vuskovic, o pro­
blema deveria aparecer “... como uma defasagem históri­
ca: o subdesenvolvimento seria um tipo de estado natural,
do qual se vai saindo paulatinamente”. (60) Também a opu­
lência e a miséria na cidade e no campo seriam pólos de uma
defasagem similar.
Todas aquelas circunstâncias e postulações foram deter­
minando a necessidade de se reviverem as disciplinas sociais
e moldando sua reaparição em estreita coerência com a pers­
pectiva do capital. Era preciso integrar os conteúdos sociais
aos termos da eficiência; os velhos esquemas não podiam
manejar os problemas que foram diagnosticados, como:
marginalização, emigração maciça campo-cidade, situação
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 103

habitacional, acesso aos serviços para população improdu­


tiva (em termos capitalistas), etc...
Para enfrentar a crise, o Estado teve que assumir uma
posição intervencionista e corretiva. Pôs especial ênfase
nos esforços para corrigir o desemprego e os “agudos de­
sequilíbrios sociais” “através de uma ação consciente e
deliberada que não sufocasse as forças da economia, mas,
ao contrário, as orientasse mediante uma participação es­
tatal ativa, quer dizer, recomendações sobre planificação
do desenvolvimento, com a aplicação de técnicas de pro­
gramação” que definiram e afiançaram essa política de-
senvolvimentista. (61)
A relação dialética entre uma maior intervenção estatal
e as épocas de crise tem sido demonstrada por numerosos
autores e é a base para a compreensão do surgimento, du­
rante a década de sessenta, de uma renovada preocupação
do Estado para planificar a saúde, introduzir novas moda­
lidades de prática e, coerentemente, buscar a aplicação de
concepções sobre a saúde-doença aberta ao “social”.
Nos anos sessenta, pela situação de crise, as rendas fis­
cais sofreram marcada redução. A depressão da atividade
econômica resultou em um sério decréscimo das receitas por
imposições fiscais. As exíguas margens de inversão estatal,
de alguma maneira complementadas pelo crédito exterior
limitado, tiveram que ser encaminhadas aos projetos e pro­
gramas que mencionamos, mas com um critério de racio­
nalização.
Pretendeu-se implementar programas desenvolvimentis-
tas gerando o menor desperdício possível e pelos métodos
menos custosos, como explica Navarro. Foi precisamente
o momento em que o Estado necessitou oferecer aqueles ser­
viços para demonstrar que era efetivo e atendia a popula­
ção, quando piores disponibilidades orçamentárias teve, por­
que era indispensável que se invertessem seus escassos re­
cursos para salvar a economia e não se os desviassem em
gastos sociais. (62)
Os técnicos viram-se obrigados a aplicar com extrema
presteza as análises de custo-benefício e demais instrumen-
104 JAIME BREILH

tos do welfare economics, mantendo-se dentro dos limites


do “Optimo de Pareto”5, quer dizer, sem lesar a uns para
ajudar a outros. Esse equilíbrio tecnocrático, demandado
em momentos em que se aguçaram os enfrentamentos en­
tre as classes dominantes e o movimento popular, permeou
o marco conceituai de muitas disciplinas, reformulando seus
conteúdos semânticos e lógicos.
O curso dos eventos encaminhou a epidemiologia por no­
vos caminhos. A impossibilidade de abarcar com o reduzi­
do enfoque unicausal a trama complexa de problemas, cu­
ja relação com a saúde-doença foi se percebendo através
da práxis epidemiológica e da própria dinâmica da ideolo­
gia “socializante” deste período, acabou estimulando uma
l série de investigações acerca de um marco alternativo para
a interpretação do fenômeno epidemiológico.
Os limites da medicina unicausalista ficaram fixados na
prática privada, até certo ponto na medicina da força de
trabalho produtiva (seguro social e afins), nos serviços mi­
litares e no nível terciário (mais complexo ou especializa­
do) do sistema de assistência pública. O resto da tarefa —
a articulação da medicina com os esforços desenvolvimen-
tistas no campo e cidade, a legitimação do Estado em épo­
ca de severas carências e desigualdades, e a ideologização
e controle político das massas — reclamava um modelo
alternativo.
A abertura “social” ou visão mais ampla do chamado con­
ceito etiológico plasmou-se na teoria da multicausalidade,
que teve como seu maior expoente Brian MacMahon. (63)
Este autor rompeu as amarras do modelo unicausalista, ar­
gumentando que a doença não era o resultado automático
do ingresso de um agente patogênico, no corpo sadio mas
que “...a etiologia de uma doença tem uma seqüência que
consta de duas partes: 1) eventos causais que ocorrem antes
de qualquer resposta corporal; e 2) mecanismos intracorpó-
reos que conduzem desde a resposta inicial até as manifes­
tações características da doença”. (64)
5. O “Optimo de Pareto” é um índice da teoria econômica burguesa que define
o ponto em que para uma determinada distribuição de renda não é possível
melhorar a situação de uns sem atingir os interesses de outros.
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 105

Para alcançar tal interpretação do processo, MacMahon


adotou como premissa a existência de associações estatísti­
cas, diretas ou indiretas, entre fatores de diferente ordem
e a doença. Com as mencionadas associações podiam-se ob­
ter conclusões de causalidade e elaborar cadeias de eventos
associados ao aparecimento de um transtorno. Por sua vez,
tais cadeias podiam ser integradas em uma rede de compo­
nentes. O autor explicou estas categorias destacando seu ag-
nosticismo positivista, manifestando que: “... é evidente que
as cadeias de causalidade representam somente uma fração
da realidade e deve considerar-se toda a genealogia mais pro­
priamente como uma rede que, em sua complexidade e ori­
gem, fica além de nossa compreensão”. (65)
Naturalmente este tipo de desenvolvimento encaixou-se
às necessidades objetivas da época. Se se desejava, por exem­
plo, reduzir a níveis toleráveis as alarmantes taxas de tu­
berculose, tinha-se apenas que construir a rede de causali­
dade e identificar um componente “que tenha um papel im­
portante no desenvolvimento da doença” e tratar de redu­
zi-lo, operando sobre o mesmo de maneira direta, ou atuan­
do indiretamente por meio de ações que reduzissem os com­
ponentes ou variáveis elimináveis que estivessem situados
suficientemente próximos desse fator chave. No caso da tu­
berculose, medidas quimioterápicas maciças, ou inclusive
discretas melhoras nas áreas residenciais e outras medidas
desenvolvimentistas.
Com o esquema multicausal enriqueceram-se o acervo em­
pírico e o conhecimento positivo sobre fatos vinculados às
doenças, e na epidemiologia desencadeou-se uma busca de
associações múltiplas para combatê-los.
Em meados da década, tornou-se pública uma versão mais
acabada dos modelos de abertura. Em sua obra Medicina
Preventiva para o Médico e sua Comunidade, Leavell e
Clark expuseram seu modelo: A história natural da doen­
ça. Com este trabalho, o positivismo médico chegou a sua
expressão mais evoluída, incorporando os princípios da eco­
logia para elaborar um método de interpretação mais abran­
gente e dinâmico, que até hoje consta como um dos princi­
pais instrumentos da epidemiologia funcionalista.
106 JAIME BREILH

As amplas possibilidades de instrumentalização que este


método oferece têm favorecido sua difusão nas instituições
de serviço e educação de toda América Latina. O esquema
preventivo, de três níveis que os autores propõem, consti­
tui agora, sem dúvida nenhuma, o marco metodológico ex­
plícita ou implicitamente inscrito no delineamento de todos
os planos e programas de saúde dos países latino-america­
nos. No entanto, a idéia de uma história natural das doen­
ças é a mistificação mais refinada que o capitalismo pro­
duziu acerca do processo saúde-doença. Deve-se continuar
a tarefa já iniciada por alguns investigadores de estender
e se aprofundar numa crítica, cujos elementos centrais des­
l
tacamos em um capítulo posterior.

ERRADICAÇÃO, CONTROLE E VIGILÂNCIA

Ao concluir esta breve análise dos diferentes modos de


articulação da epidemiologia com o projeto social burguês,
não podemos deixar de mencionar as principais conclusões
de um estudo de Garcia (66) sobre a evolução das catego­
rias centrais da estratégia epidemiológica oficial.
Até 1900 ou talvez as primeiras duas ou três décadas do
presente século, o conceito “erradicação” resumia o obje­
tivo dos programas epidemiológicos. O aspecto visual uni-
causalista fez pensar que o aperfeiçoamento dos métodos
para destruir agentes e vetores possibilitaria uma extirpa-
ção radical das diferentes doenças transmissíveis. No entan­
to, em princípios da terceira década, Fred Soper ratificou
o descrédito em que havia caído o conceito de erradicação,
ao propor que se o substituísse pelo de “controle” das doen­
ças a “níveis razoáveis”.
Na época do pós-guerra passaram a ter vigência os con­
ceitos de containment e “vigilância”. O primeiro teve um
uso freqüente sobretudo no imediato pós-guerra, como uma
extrapolação de um termo militar que era empregado na li­
teratura bélica da guerra fria, no campo da epidemiologia.
Inclusive, encontram-se impressionantes semelhanças entre
a forma como os dirigentes da defesa nacional norte-ame-
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 107

ricana expressavam suas recomendações para manejar a


“agressão” soviética e a maneira como se dava, nesses mo­
mentos, a estratégia de uma campanha epidemiológica. A
linguagem da Saúde Pública se viu permeada por essa vi­
são do inimigo, segundo Garcia, e para demonstrá-la trans­
creveu um fragmento do informe sobre uma campanha con­
tra o vetor Anopheles gambiae, que diz: “A estratégia da
campanha foi como a estratégia da Batalha de Bulge. O ini­
migo teve que primeiro ser contido dentro da área na qual
havia assentado seu domínio, e então foi rodeado e aniqui­
lado...” O mesmo fragmento, ao final, expressa com um
ar claramente marcartista que o “... preço da liberdade é
a eterna vigilância, seja se a ameaça consiste em mosquitos
ou nas vis intenções do homem”. (67)
Com o avanço do tempo e a finalização da década críti­
ca dos anos sessenta, as mudanças nas relações internacio­
nais e a transformação do próprio caráter da relação entre
o Estado e a coletividade determinaram que perdesse vigên­
cia o containment e que fosse substituído pelo conceito de
“vigilância”. Segundo Garcia, a contenção e a represália
maciças foram substituídas pelos critérios de persuasão ne­
gociada e confiança das forças nativas locais, respaldadas
por uma resposta flexível do Estado.
Um dramático exemplo da espécie de vigilância poliva-
lente que se começou a propor constitui o Informe Rocke-
feller sobre as Américas quando diz que “... a doença e a
propaganda não podem se restringir às fronteiras nacionais,
e a segurança física individual cabe a todos, porque os ví­
rus dos trópicos logo atacarão as cidades e vice-versa, se­
jam estes vírus biológicos ou políticos”. (68)
A constante atitude de alerta e a notificação permanente
que se colocaram nos Seminários Inter-regionais de Kenya
(1972) e Bankok (1974), sobre Vigilância Epidemiológica,
surgiram desse contexto intensamente influenciado pelo de­
senvolvimento contraditório das próprias necessidades de
melhoramento técnico da humanidade e de sua instrumen­
talização para os interesses hegemônicos.
108 JAIME BREILH

“HISTÓRIA NATURAL” DE LEAVELL-CLARK E O


VALOR DE TROCA NAS CONCEPÇÕES
ECOLÓGICO-FUNCIONALISTAS

Considerações prévias
Originalmente a ecologia foi proposta por seu criador,
Ernest Haeckel, há mais de um século, como uma subdis-
ciplina da zoologia destinada à investigação do conjunto de
relações de uma espécie animal com seu meio orgânico e
inorgânico. Em 1935, foram introduzidos os princípios da
I teoria de sistemas na perspectiva ecológica, convertendo-a
no estudo de “a dependência correlativa e o equilíbrio en­
tre todos os habitantes de um determinado sistema ecoló­
gico”. A. G. Transley, pai intelectual da concepção de ecos­
sistema, indicava que a noção fundamental é que “... todo
o sistema, no sentido que a física outorga ao termo, incluin­
do não só o complexo orgânico mas também o complexo
de fatores físicos, forma o que chamamos ambiente. Não
podemos separar os outros organismos de seu ambiente es­
pecial porque em conjunto formam um sistema físico”. (69)
Robert Smith, em seu trabalho sobre o uso do ecossiste­
ma como fundamento para ampliar a ecologia humana, ex­
plicou a etmologia do termo, assinalando que composto pela
palavra “ecologia”, que significa o estudo da economia da
natureza, e pelo vocábulo “sistema”, que é um agregado
ou união de objetos justapostos em regular interação ou in-
terpendência: uma totalidade ordenada e ativa. Definição
que implica homeostase e retroalimentação... . (70) Em se­
guida o autor desenvolveu a idéia de que a pedra angular
da ecologia é o conceito de fluxo energético nos sistemas
ecológicos.
Smith quis indicar com isto que a energia solar fixada
pelos tecidos vegetais, e os nutrientes que assimilam, che­
gam a circular de um grupo animal alimentar a outro e em
seguida são libertados pela decomposição no solo e na água
reingressando numa nova “cadeia alimentar”. Referindo-se
à circulação de energia no ecossistema, à capacidade fun-
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 109

cional do mesmo para absorvê-la e possibilitar seu fluxo, no­


vamente utilizou termos da economia e explicou as caracte­
rísticas dos diferentes ecossistemas que condicionam seu pro­
duto bruto (grossproductiori) e líquido (netproductiori), sen­
do este último o que aparece como tecido vegetal (bio-mass)
quando do total de energia fixada se lhe subtrai o consumo
energético para a respiração. Além disso, segundo Smith,
os sistemas mais produtivos são os que têm melhor disponi­
bilidade de nutrientes, de água, condições de temperatura,
áreas para cultivo, etc. O autor completa sua representação
de um ecossistema, acrescentando que as cadeias articulam-se
em redes alimentares porque alguns objetos naturais são o
ponto de partida de mais de uma cadeia.
Sob a perspectiva ecológico-funcional os seres vivos são
classificados de acordo com sua posição nos níveis das ca­
deias alimentares. Também a sociedade tem seus lugares
reservados no sistema porque ”... muitos animais, incluin­
do o homem, ocupam mais de uma posição na cadeia ali­
mentar”. (71)
Os tipos de argumentos que transcrevemos traduzem uma
deformação naturalista na interpretação do processo humano
e de suas relações com os objetos do meio e constituem o
terreno preparatório para o segundo passo em falso da eco­
logia, a qual consumou sua visão mistificadora da socieda­
de e de sua concatenação com a natureza, quando autores
como Bates defenderam que é fundamental considerar que
”... o meio ambiente humano inclui não só elementos bióti-
cos, climáticos, geológicos e geográficos, mas também as­
pectos de sua cultura”. (72) A interpretação ecológico-
funcionalista conseguiu tergiversar a realidade com este ti­
po de esquema, colocando em um mesmo plano natu-
ral-a-histórico todos os elementos da natureza (sociedade hu­
mana incluída) e sujeitando a interpretação de seu desen­
volvimento à aplicação dos princípios neopositivistas das teo­
rias de sistemas (isto é, homeostase: fluxo harmônico de ener­
gia; retroalimentação por meio das conexões externas dos
elementos; etc.). Assim mesmo, reduziu a vida humana à
sua dimensão animal e converteu a produção ou cultura da
sociedade num elemento a mais do meio ambiente.
110 JAIME BREILH

Ficou definido desse modo o perfil da nova teoria ecoló­


gica, propiciando o aparecimento no terreno da medicina
da conhecida trilogia ecológica “homem-agente-meio”, que
fora postulada por Cockburn (73) em 1963 e desenvolvida
formalmente por Leavell e Clark (74) em 1965, como um
sistema de ações preventivas formulados em torno do con­
ceito de uma “história natural das doenças”.

O VALOR DE TROCA NAS CONCEPÇÕES ECOLÓ-


GICO-FUNCIONALISTAS

Para decifrar em toda sua amplitude a transcendência dos


I
desvios natural-darwinistas da ecologia e o auge que alcan­
çou como método de interpretação dos problemas da so­
ciedade humana, é indispensável reconhecer a lógica que se
acha na base das respectivas concepções burguesas.
Antecipando-nos a uma explicação mais ampla que logo
apresentaremos, vamos considerar que os fatos consubstan­
ciais ao modo de produção capitalista são a avaliação do
valor no processo de trabalho e sua realização na esfera do
mercado ou circulação. Para o capitalismo, tanto o homem
na sua qualidade de força de trabalho, como as coisas e os
objetos naturais, constituem mercadorias. De fato, os ca­
pitalistas encontram no mercado essas mercadorias e para
adquiri-las têm que pagar um determinado valor. Uma vez
adquiridas, colocam-nas para funcionar no processo pro­
dutivo e ao fazerem suas contas finais, logo após vende­
rem os produtos obtidos, constatam, que o valor de dinheiro
que inverteram originalmente na forma de capital foi au­
mentado, aparecendo um valor extra (lucro). Esse achado
desencadeia uma voracidade por inversões em novos ciclos
produtivos, porque a cada vez eles deixam um novo valor
acumulável. Este caráter acumulativo, expansionista e mer­
cantil, estabelece a tônica fundamental de uma formação
capitalista, que não se deve relegar quando seus problemas
técnico-ideológicos estão sendo analisados.
O valor dos objetos de todo tipo e do próprio homem
refere-se, neste tipo de formação, a sua expressão mercantil
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 111

ou valor de troca que, em outros termos, significa seu va­


lor relativo para intercâmbio com outras mercadorias de
um modo equivalente. Não vamos aqui nos estender na ex­
plicação da origem deste valor abstrato mercantil, nem das
leis que no capitalismo permitem estabelecer o valor ob­
tendo uma mais-valia; o que nos interessa é ressaltar que
a validade social dos objetos no regime burguês não está
dada em função de suas características natural-concretas,
nem no caso do homem em função de sua capacidade co­
mo sujeito consciente, mas que se estabelece por sua inser­
ção mercantil.
Neste sentido, a teoria ecológico-funcionalista provê o
capital de um maravilhoso aparato de ideologização, per-
feitamente compatível com a tendência mercantil da ordem
produtiva e suas necessidades de funcionamento, o que pode
ser analisado em suas implicações mais concretas.
Em esquemas como o de Leavell-Clark, por exemplo, ao
distribuir triangularmente os elementos interatuantes (ho-
mem-agente-meio) introduz-se uma racionalidade congruen­
te com a norma do valor de troca, porque: a) ao reduzir
o elemento “homem ou hóspede” à sua dimensão animal
e passar ao tabuleiro dos fatores ambientais sua condição
de produtor expressa nos produtos de que desfruta em con-
seqüência de sua inserção num modo de transformar a na­
tureza (tais como renda, tipo de habitação, condições re­
creativas, etc.), converte-se esse elemento num ser de cate­
goria natural, estabelecendo-se tacitamente que é essencial­
mente classificável de acordo com critérios iguahnente na­
turais como a idade, sexo, raça, etc. Essa manobra ideoló­
gica tem conseqüências: primeiro, implica que os homens
de uma coletividade não mostrem outras diferenças que não
sejam as variações puramente naturais; e segundo, que quan­
do se analisa com este referencial o fator “homem” em suas
alterações ou potencialidades conclui-se que são do nível bio­
lógico porque esse é o estatuto que se outorga a esse fator.
Atribuindo o caráter de homogeneidade biológica ao fator
genérico “homem” ou “população humana”, subentende-se
que uma vez necessária a aplicação de medidas de saúde,
estas devem ser de caráter biológico, para devolver funcio-
112 JAIME BREILH

nalidade ao animal-homem que está doente. Esta conclu­


são é duplamente útil ao capitalismo porque esconde as pro­
fundas diferenças de classe que resultam de uma organiza­
ção produtiva que impôs ao homem um valor de troca, e
segundo porque permite restaurar as condições biológicas
necessárias para que esse valor de troca (força de trabalho)
sustente-se no mercado; b) ao produzir uma ruptura ou so­
lução de continuidade entre o sujeito social (fator homem)
e sua produção (fatores culturais, do ambiente), dissipa-se
a origem social desses produtos, sua condição de trabalho
humano objetivo e se os faz aparecer como... “um ser es­
tranho, como poder independente do produtor” (75) que
podem lesá-lo sem que a própria organização do chamado
i “fator humano” tenha a ver com o problema; c) igual ma­
nobra realiza-se com os fatores do “agente” que aparecem
como elementos biológicos cuja relação com a vida social
ou humana depende de princípios puramente ecológicos.
A conclusão prática que deriva destas proposições é que
se os “fatores ambientais” e os “fatores do agente” somente
estabelecem conexões externas com o “fator humano”, en-
ão é possível atuar sobre eles com medidas do tipo ecoló-
ico sem necessidade de modificar a organização social, pos-
o que a mesma não os condiciona essencialmente. Em con-
seqüência, a estrutura social fica livre de toda responsabili­
dade ecológica e todo ajuste dos desequilíbrios do ecossis­
tema deve realizar-se com a idéia de desenvolver funciona­
lidade aos segmentos alterados desse todo harmônico, in­
tegrado e equilibrado que é o sistema da história natural.
(Ver Esquema 3)
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 113

ESQUEMA 3 - IDEOLOGIA DO MODELO ECOLÓGICO

(—) Condição do produtor

M
(—) história (—) origem
social

O que é atraente nestes esquemas para os epidemiólogos


progressistas de “consciência ecológica” ingênua é o fato
de eles permitirem manejar uma série de variáveis que em-
piricamente demonstram ter relações com o processo “saú-
de-doença”, criando neles a falsa sensação de que sua rela­
tiva eficiência dentro das linhas do sistema capitalista re­
flete um conhecimento verdadeiro do problema. Nestes ca­
sos diria Bosquet ”... encontramo-nos diante de uma sen­
sibilidade subversiva e uma aspiração revolucionária sem
a base de classe, uma rebelião moral que freqüentemente
rejeita o conjunto da civilização capitalista sem colocar ex­
plicitamente a questão da natureza de classe da sociedade
da qual é fruto a civilização”. (76)
O que o capitalismo conseguiu com estas manifestações
avançadas, supostamente dinâmicas, que inclusive incorpo­
ram alguns problemas sociais “sérios”, foi privar a discus­
são destes assuntos de seu potencial anticapitalista, “desar­
ticular o debate ecológico apropriando-se de certos temas
e servindo-se deles em sua defesa”, (77) colocando-os para
funcionar em favor de sua própria dinâmica, o que uma
vez feito, até estes mesmos problemas adquirem um valor
de troca como o demonstra o fenômeno que Enzensberger
chama “...a industria lização da proteção do meio ambien­
te”. (78) Além disso, nas últimas épocas de crise nas quais
juntamente com os investimentos de guerra, os gastos de
114 JAIME BREILH

recursos para a remodelação ecológica que o Estado ou o


próprio consumidor efetuam, operam como um campo de
realização do capital.
A doutrina preventivista de Leavell-Clark constitui um
avanço com relação ao conceito de multicausalidade. Ain­
da que sua matriz teórica neopositivista seja a mesma, con­
segue no entanto aperfeiçoar a sistematização dos elemen­
tos, integra a idéia de movimento ou processo histórico da
doença ainda que o condene ao nível biológico-evolutivo
e, mediante a explicitação organizada das manifestações em­
píricas ocorridas nas fases sucessivas do processo natural
que descreve, permite adequar as ações a diferentes momen­
tos da história da doença, possibilitando um discernimen­
i
to claro de etapas de prevenção. Na medida em que conse­
guiu uma maior sistematização do empírico, propicia uma
operacionalização técnica com maiores possibilidades de êxi­
to. Mas isso não significa que o esquema permita uma in­
terpretação científica da realidade e que, operando-o, se pos­
sa modificar integralmente os complexos perfis epidemio-
ógicos de uma classe social em um período histórico deter-
ninado.
A história natural de Leavell e Clark não deixa de ser uma
expressão, talvez a mais lúcida e depurada, da profunda de­
formação ideológica das técnicas da medicina. Sua utilida­
de para o Estado reside em que permite efetuar ao mais baixo
custo possível a programação de partilha dos escassos re­
cursos que o erário público destina para a saúde popular.
E mais, para nós, não pode ser outra coisa que um rico ma­
terial para a crítica, a qual não podemos enfrentar com uma
teoria social débil, com uma ciência híbrida (social-natural)
cujos núcleos reais sucumbam ante o peso da ideologiza-
ção, posto que “... não se trata de enfeitar a abominação,
de esconder a miséria, de desodorizar o fedor, de cobrir de
flores as prisões, os bancos, as fábricas, não se trata de pu­
rificar a sociedade existente, mas sim de substituí-la”. (79)
E esta crítica dos aparatos capitalistas de todo gênero não
pode se reduzir a um exercício epistemológico, tem que en­
frentar primeiro as implicações práticas dos recursos de do­
minação e sujeitar as tarefas de análise semântica e meto-
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 115

dológica a este enfrentamento. No caso dos questionamen­


tos que se devem fazer sobre o emprego da história natu­
ral, temos que averiguar primeiro sua instrumentação co­
mo ponto de apoio da reprodução estrutural e complemen-
tarmente destrinchar os termos numa análise lógico-
epistemológica mais particularizada.

UM CASO: O VALOR DE TROCA NA “HISTÓRIA


NATURAL” DA MALÁRIA

Vastas extensões da superfície cultivável do mundo, dos


países dependentes e colonizados, acham-se localizadas em
meios geográficos do tipo tropical ou subtropical. A pro­
dução agrícola que se gera em tais áreas recebe uma ampla
demanda no mercado mundial e por isso tem atraído in­
vestidores médios dos países e grandes firmas exportado­
ras dos EUA e Europa. As divisas que se obtêm pela pro­
dução comercialização de produtos tais como a banana, o
café, o cacau, o arroz, madeiras de lei, etc., são rendimen­
tos fundamentais dos ganhos daquelas firmas e das arreca­
dações fiscais das pequenas economias de tipo fundamen­
talmente agrícola. A indústria de minérios, cujas zonas ex-
trativas encontram-se em meios geográficos similares, tam­
bém têm caráter semelhante.
A articulação agroexportadora que descrevemos anterior­
mente para a primeira fase da expansão imperialista deter­
minou que as unidades produtivas mais avançadas e impor­
tantes situem-se nas áreas férteis de clima temperado e úmi­
do, constituindo-se em pólos de atração de enormes mas­
sas de força de trabalho, de modo permanente ou esporá­
dico, segundo os ciclos produtivos; nas primeiras etapas da
penetração das companhias imperialistas, à demanda de for­
ça de trabalho agrícola somou-se a demanda da força de
trabalho para a construção de vias comerciais (ex: Canal
do Panamá).
Já explicamos por que se impuseram à população traba­
lhadora condições de superexploração como fundamento
de rentabilidade das inversões e além disso assinalamos a
116 JAIME BREILH

maneira como o interesse capitalista determina que os ho­


mens e a própria natureza sejam vistos, em seu valor po­
tencial de troca. Estas condições se projetaram até a atua­
lidade em um grande número de países, determinando, en­
tre outras consequências, mudanças das formas de repro­
dução social e da ecologia que condicionaram o aparecimen­
to de complexos epidemiológicos, dos quais têm sido ele­
mento freqüente a malária ou paludismo.
Com base em alguns pontos de referência concretos pas­
semos a observar a lógica de valorização dos programas de
luta contra a malária que foram postos em andamento, com
vistas a exercer níveis de prevenção frente a sua “história
natural”.
l
A interpretação do “fator homem ou população huma­
na” como valor de troca pode se evidenciar em múltiplos
trabalhos de investigação patrocinados pelo BID (Banco In­
ternacional de Desenvolvimento) ou pelo Banco Mundial.
Um dos mais complexos e refinados, pela depuração de suas
écnicas econométricas e a precisão de suas medidas de mor-
idade, é o trabalho de Gladys Conly sobre O impacto da
lalária sobre o Desenvolvimento Econômico: Estudo de
Jasos. (80)
A mencionada investigadora inicia a introdução de seu es­
tudo com a pergunta: Quanto custa a falta de saúde? e lo­
go, desenvolvendo sua complexa interpretação mistificadora
que põe a saúde como culpada dos problemas econômicos,
explica que tomou várias populações do Alto Paraná, for­
madas por famílias de trabalhadores agrícolas às quais o
governo paraguaio entregou “chácaras” de uma extensão
aproximada de 20 hectares, com o objetivo de que “iniciem
um processo acumulativo”, passem a engrossar as filas do
mercado interno consumidor e desenvolvam-se como for­
necedores de produtos agrícolas para sua comercialização.
Com uma técnica empírica refinada, a autora conseguiu
estudar 69 famílias, conseguindo um registro de incidência
malárica de 19 meses (68-70) e de dados de sua produção
agrícola para o mesmo período.
Para correlacionar os dados elaborou um índice de pon­
deração da redução do potencial econômico das unidades
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 117

familiares, dimensionado numa escala de 100. As reduções


percentuais do potencial produtivo das famílias
estabeleceram-se combinando indicadores de absenteísmo
de diferentes tipos de força de trabalho. Assim obteve mé­
dias dos índices de cada família para os períodos de estudo
e conseguiu classificá-las em 3 grupos (com baixo, mode­
rado e elevado nível de malária). Correlacionou de imedia­
to os três níveis de incidência com a produtividade conse­
guida com as chácaras de propriedade das famílias de cada
grupo e encontrou uma correlação positiva entre os níveis
de incidência de malária e a produtividade, que a levou a
concluir que a malária diminuía a produtividade.
O Banco Mundial relata trabalhos semelhantes em seu
“Documento de Política Setorial” de 1975, no qual men­
ciona, por exemplo, o caso de um “... estudo sobre o con­
trole da tuberculose na República da Coréia, em que se de­
monstrou que um programa ótimo de controle tem como
resultado uma vida ocupacional mais longa e um decrésci­
mo do absenteísmo, com um rendimento de 50 dólares pa­
ra cada dólar gasto”.
A atenção destas investigações está no “hóspede” (ho­
mem) em sua dimensão produtiva, em sua capacidade de
trabalhar e de permanecer inserido numa atividade para a
qual vale, na medida que é força de trabalho. Como o de­
monstra o Banco Mundial, o intercâmbio ótimo é investir
um dólar em saúde e obter 50 dólares de lucro, ou como
o reconhece Gladys Conly a “... produtividade do capital
na economia também pode ser modificada se por causa da
doença se subutilizam as somas disponíveis ...” e não se
produza a “... ampliação da produção tanto para o consu­
mo interno como para a exportação”. (81) Em outras pa­
lavras, no fundo não interessa a estas abordagens epidemio-
lógicas a íntegra reprodução social dos chacareiros para­
guaios, ou dos camponeses coreanos, mas tão-somente o
processo acumulativo dos donos do Paraguai ou das em­
presas que investiram na Coréia.
Os “agentes” e seus vetores são também campos propí­
cios para a realização do capital e o caso da luta antimalá-
rica atesta-o.
118 JAIME BREILH

Até a Segunda Guerra Mundial as campanhas preventi­


vas de paludismo realizaram-se por meio do controle dos
mosquitos em períodos larvários (aquático), rociamento com
inseticidas do ambiente habitacional e drenagem das áreas
e proteção mediante telas e mosquiteiros. Nesta época, se­
gundo Pampana, o “... controle da malária era economi­
camente factível em populações ou comunidades de impor­
tante valor econômico, como em grandes empresas mineiras-
industriais ou agrícolas, empregados de ferrovias, acampa­
mentos e entrincheiramentos do exército...” (82), mas des­
de 1939 quando o suíço Mueller demonstrou que o DDT
(dicloro-difenil-tricloroetano) era um poderoso inseticida re­
sidual começaram investigações para o seu uso.
Na década de cinqüenta já se reconhecia mundialmente
sua utilidade desencadeando um intenso processo de indus­
trialização desse meio de proteção do ambiente. Os efeitos
do critério mercantil que primam na produção e consumo
de DDT, de imediato, fizeram-se evidentes. Vários investi­
gadores e funcionários públicos começaram a constatar alar-
nados que as taxas de malária em muitos países dependen-
s e colonizados estavam se elevando, apesar da maciça uti-
zação de DDT. Os informes sobre malária da Organiza-
,.ão Mundial da Saúde fizeram ver esse incremento regis­
trando casos como o da índia, que teve em 1965 cem mil
casos detectados, em 1969 teve 350.000, em 1973 registrou
1.600.000 e em 1974 alcançou a impressionante cifra de
2.500.000 casos de malária.
Os órgãos oficiais atribuíram estes aumentos de malária
à ineficiência administrativa, ao relaxamento das normas
de controle, à crise do petróleo que ocasionou uma escas­
sez de inseticidas. No entanto, autores como Farvar reba­
teram cada um destes argumentos e chegaram à conclusão
de que “...a causa é a estratégia global de erradicação sim­
plista baseada em inseticidas”. (83)
O autor, em sua investigação nos países centro-
americanos, explica como a persuasão mercantil para o uso
de inseticida conseguiu substituir a utilização de outras téc­
nicas (nem se diga a transformação social total) e como seu
uso exclusivo está produzindo elevadas taxas de resistências
do vetor anofelino (exofilia e êxito repelência), efeito ao qual
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 119

se soma o predomínio de monoculturas de exportação que


são protegidas maciçamente com inseticidas (resistência cru­
zada). Além disso, o critério de valorização mercantil que
sustenta o propalado uso de DDT, ainda que não produza
resistência, está fracassando porque, epidemiologicamen-
te, não causa impacto sobre as taxas de transmissão, mas
apenas sobre a população de mosquito. Farvar termina sua
exposição citando numerosas evidências da cumulação de
resíduos tóxicos no leite materno, que ultrapassam os limi­
tes admitidos pelas OMS.
Finalmente, os “fatores ambientais” pesam também no
capitalismo por seu valor de troca, mais que pelos benefí­
cios estáveis e eqüitativos que a sua transformação traz pa­
ra as massas populacionais do trópico. Hughnes e Hunter
(84) nos munem de magníficos testemunhos dos grandes
transtornos que a alteração produtivista agrícola na África
produziu, mediante a redistribuição e concentração da po­
pulação, mudanças nos padrões de fluxo e uso de água, mu­
danças da vegetação, mudanças do espaço habitacional, etc.,
sem ser acompanhados por medidas que preparem e prote­
jam uma população debilitada pelo trabalho extenuante.
Apesar destes autores não partirem de um referencial ex­
plicativo científico (histórico-epidemiológico), logo detec­
tam a ineficácia das campanhas restritas ao rociamento de
inseticidas e assinalam vagamente que de fato: “...na África
a erradicação e controle da malária contemporânea estão
se mostrando, paulatinamente, como problema que tem a
ver mais com a compreensão e controle das relações sociais
que com os aspectos biológicos ...” (85)
Todo este conjunto de apreciações sobre a relação entre
os fenômenos estruturais do modo de produção capitalista
e a orientação dos valores inscritos no método epidemioló-
gico, devemos insistir, não reflete uma concepção causalis-
ta mecânica dos vínculos entre a base econômica e as ma­
nifestações superestruturais. Não quisemos defender que a
dinâmica produtiva capitalista condicionou diretamente a
formação de cada conceito e procedimento epidemiológi-
co, o que ressaltamos é que a hegemonia dos interesses da
classe dominante marca o andamento e a orientação básica
120 JAIME BREILH

do Estado (Estado em sua mais ampla acepção) e este, atra­


vés de múltiplas mediações e caminhos, determina o desen­
volvimento das práticas científico-técnicas. Ainda que, pa­
ra o caso da epidemiologia, esta disciplina haja mantido cer­
tas margens de continuidade próprias do processo acumu-
lativo de conhecimento, mesmo assim o processo histórico
determinou os aspectos da mesma que deveríam afirmar-se
adquirindo prioridade, impondo ao conhecimento acumu­
lado a lógica e postergando aquele saber e conduta que não
se adequaram ao ponto de vista hegemônico.
Havendo esboçado nestes termos uma análise da com­
patibilidade do esquema de Leavell-Clark com a gestão ca­
i
pitalista, passaremos a considerar os fundamentos de sua
ideologização ecologicista.

A RELAÇÃO MERCANTIL CAPITALISTA COMO


FUNDAMENTO DAS ILUSÕES DA
EPIDEMIOLOGIA ECOLÓGICA

Reiteradamente indicamos que a epidemiologia natura-


*sta do capitalismo (que também poderiamos denominar
ideologia epidemiológica da burguesia) trabalha no nível do
concreto possível, operando com as aparências e conexões
externas dos fatos.
Com o advento da era capitalista as mistificações mágico-
religiosas cederam passagem a novas formas de idealismo,
fenômeno que se manifesta especialmente nos domínios téc­
nicos e científico.
Joan Senent-Josa toca em dois pontos-chave desta evo­
lução, indicando que se "... ontem os avanços da Física sus­
citaram o aparecimento do idealismo físico (Mach, Du-
hem...), hoje os progressos da biologia determinam o que
poderiamos qualificar de idealismo biológico” (e que) “...
estamos assistindo ao início de uma operação ideológica que
consiste em pretender” explicar “a história com os dados
da biologia...” (86)
O idealismo biológico surgiu pela primeira vez com a ten­
tativa dos darwinistas sociais, que transplantaram os prin-
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 121

cípios da seleção natural em suas análises históricas. Na atua­


lidade, readquire vigência uma renovada manifestação do
“biologismo” que se plasmou na ecologia com maior força.
As formas de idealismo não são outra coisa que diferen­
tes facetas de um mesmo processo de inversão sub-reptícia
e velamento da realidade, que foi proposto por Marx em
sua crítica da filosofia clássica alemã, especialmente do pen­
samento hegeliano, explicado por ele com base em suas in­
vestigações sobre o capital.
Referindo-se à maneira como a forma do salário desva­
nece todo vestígio de divisão que existe entre a parte da jor­
nada de trabalho que é paga e aquela que não o é e que se
converte em trabalho não-pago, Marx anotou o seguinte:
“Sobre esta forma de manifestação que torna invisível a re­
lação efetiva e mostra precisamente o oposto de tal rela­
ção, fundam-se todas as noções jurídicas, tanto do operá­
rio como do capitalista, todas as mistificações do modo ca­
pitalista de produção, todas as ilusões de liberdade, todas
as futilidades apologéticas da economia vulgar”. (87)
Na realidade, o primeiro encontro de Marx com estas for­
mas enganosas que ocultam uma relação objetiva e aparen­
tam o contrário se deu em sua análise das mercadorias.
Pode-se dar conta de que à primeira vista “... uma merca­
doria parece ser uma coisa trivial, de compreensão imedia­
ta” (mas que) “sua análise demonstra que é um objeto en-
demoniado, rico em sutilezas...”. (88) A esta característica
da forma mercantil chamou de fetichismo por comparação
com dupla versão (estética e mágica) dos fetiches. No caso
da relação entre mercadorias no mercado, aparentemente
o que se produz é uma relação entre objetos, de acordo com
a utilidade de suas propriedades físicas, enquanto social­
mente o que se estabelece é uma relação social determina­
da. Na mercadoria, o caráter social do trabalho aparece co­
mo caráter objetivo inerente ao produto, como uma pro­
priedade social natural. (89) A prática mercantil do homem,
que implica intercâmbio de dimensões equiparáveis do va­
lor gerado pelo trabalho, faz a natureza dos produtos apa­
recer como sua fonte de valor, como se as coisas tivessem
um poder próprio independente. A aparência do processo
oculta o íntimo do mesmo.
122 JAIME BREILH

A dominação ideológica da burguesia, a aceitação que


suas versões recebem da ciência e de suas concepções técni­
cas, resulta de sua correspondência com as formas exterio­
res enganosas da esfera da circulação, com a aparência dos
objetos produzidos e aparência da própria natureza do ho­
mem. Os idealismos científicos, jurídicos, etc. da socieda­
de capitalista são verdadeiras sistematizações de formas fe-
tichistas. Vejamos alguns exemplos.
O passado aparece como a institucionalização de funções
de coordenação administrativa e técnica, quando na essên­
cia é um regulador e protetor dos processos de acumulação
de capital. A burocracia parece ganhar vida autônoma co­
mo um aparato “que adquiriu vida e poder sobre os seres
humanos”. (90).
Outra mistificação que se acrescenta à cadeia de tergi­
versações que exercem profunda influência nos estudos bur­
gueses (inclusive epidemiológicos) da realidade latino-
americana é a colocação do fator racial como variável de­
terminante da distribuição das condições de vida (e de saú­
de). Mariátegui, por exemplo, destacou a origem classista
de: “... a suposição de que o problema indígena é um pro­
blema étcnico”. (91)
Outra forma comum de mistificação que adquire relevo
importante no método epidemiológico é o transtorno que
se faz do sentido da determinação, quando se colocam a
doença, as condições demográficas, a educação, etc. como
causadores dos males econômicos.
Para determinar a exemplificação e retornar ao propósi­
to inicial destas considerações, revivemos a organização das
formas fetichistas da concepção ecológica na história na­
tural de Leavell-Clark, aspectos que já discutimos prelimi­
narmente quando considerávamos a compatibilidade do tal
esquema com a escala de valores do capitalismo.
O conceito ecológico formado sobre saúde-doença apre­
senta várias características principais que foram se estrutu­
rando a partir da proposição da conferência de Colorado
Springs (1952) sobre a “história natural do homem e da
doença” e que se sistematizaram ao redor dos princípios
do ecossistema: “equilíbrio relativo” e “ajuste dinâmico
a forças exteriores”.
1

OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 123

Arouca (92) resumiu as cinco características principais do


conceito ecológico cuja síntese apresentamos:
1... E uma concepção ontológica e dinâmica da doença.
Ontológica, pela estrutura triangular que descreve a locali­
zação dos elementos no início do processo, em sua fase pré-
patogênica; e, dinâmica, porque considera a presença de for­
ças de equilíbrio que operam entre o agente (que foi defini­
do para incluir também fatores extra-biológicos) e o hós­
pede, atuando o terceiro elemento ou fatores ambientais co­
mo uma espécie de força dirimente neste equilíbrio.
2?. Complica o aspecto unicausal para um horizonte apa­
rentemente totalizador que começa a incluir múltiplos fa­
r
tores na forma mais depurada que o sistema clássico das
redes causais. r
3?. Considera que há uma continuidade entre a saúde e i
a doença (continuidade “fisiológica” estatisticamente de­
finível entre um e outro elemento) e na sucessão de formas
patológicas (continuidade “fisiopatológica” entre dois ní­ li
veis cujo ponto de demarcação não se o traça esquematica- I
■'í'
mente com a representação do “horizonte clínico” ou a fi­
gura do iceberg).
4?. Em seu afã totalizador ou de síntese reúne um espa­
ço saudável (por não dispor de instrumentos conceituais
para definir tal espaço, o faz recorrendo aos mesmos pa­
râmetros clínicos de doença) desconhecido e um espaço
patogênico (definido pelas singularidades de cada tipo de
doença).
5?. Por suas derivações práticas e possibilidades de pre­
venção reúne “...o individual e o coletivo, a clínica e a epi-
demiologia fazem seu encontro na “História Natural (...)
Se a clínica esgotava-se na relação médico-paciente e a epi-
demiologia abria-se ao espaço de uma versão política e des­
cobria o objeto do homem saudável, nesta composição a
Medicina Preventiva estruturou seu conceito de saúde-
doença...”. (93) . .
i
A conjunção destas características constitui uma estru­
tura fetichista que criou enorme confusão em diversos cen­
tros educativos e de serviço. Inclusive grupos progressistas
caíram atraídos pelos cantos de sereia da aparência exte- |

í
r
124 JAIME BREILH

terior do esquema de Leavell-Clark, pensando que com ele


havia-se chegado ao plano adequado para interpretar os pro­
blemas de saúde. Outros investigadores mais cautelosos acei­
tam conscientemente os desvios positivistas do modelo, mas
esgrimem com atitude pragmática que a operacionalidade
do esquema justifica seu uso e que como é útil tem que con­
tinuar sendo usado.
O que deve ficar claro é que de qualquer modo é um ins­
trumento ideológico que não permite chegar a uma inter­
pretação fiel da realidade, para transformá-la, e que, quando
muito, possibilita uma tarefa reformista plenamente com­
patível com a etapa de dominação sutil e tecnificada do im­
perialismo. Etapa para a qual a clínica, a visão unicausal
l dos problemas de saúde, não fornece às novas demandas,
que surgiram desde meados do século, instrumento útil pa­
ra começar a romper o parcelamento das especializações e
colocar a medicina em contato com o social. A história na-
ural foi a melhor resposta conseguida.
Mostra-se como uma visão integradora, como uma sín-
se de fenômenos de diferente ordem, físico-químicos, bio-
jgicos e inclusive sociais, quando na realidade produz uma
redução naturalista de todos eles, forjando uma idéia plana
do ambiente, como uma combinação homogênea de fato­
res que têm o mesmo peso e caráter básico. Cria uma sensa­
ção de dinamismo, de que reconhece a história dos proces­
sos, quando na realidade o que se reproduz é a cronologia
e sucessão de eventos fisiológicos e fisiopatológicos. Ado­
ta, aparentemente, um rico complexo causai que supera o
unicausalismo raso, quando na verdade incorpora uma for­
ma mais evoluída de multicausalidade “... um novo mono-
causalismo (...) que assume as redes de causalidade em sua
monótona linearidade e a homogeneidade de suas catego­
rias”. (94) Faz parecer como se houvesse interiorizado a uni­
dade e diversidade dialética da saúde e doença, quando na
realidade as justapõe criando um falso continuum de parâ­
metros quantitativos que escondem o desconhecimento es­
sencial dos aspectos e dimensões que compõem a contradi­
ção saúde-doença. Apresenta os níveis de prevenção como
tarefas neutras, cuja implementação dependería do grau de
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 125

entusiasmo ou humanitarismo da coletividade, quando na


realidade são ações que o Estado pondera e aplica de acor­
do com seu valor de troca.
A noção fetichista das teorias ecológico-funcionais se
opõe ao conhecimento científico dos processos que regem
a dialética do social e do natural, a compreensão de um mun­
do contraditório que implica “... que a primeira natureza
violada na sua integridade é a natureza do homem e entre
os homens, a dos operários. Implica o fato de que a pri­
meira ruptura do equilíbrio entre homem e ambiente, entre
faculdades vitais e recursos naturais sucede no trabalho e
nos lugares de produção... e que a partir destes difundem-
se a esfera do consumo e a dimensão do tempo livre”.(95)

EPIDEMIOLOGIA E “PÓS-MODERNIDADE ”

Recentemente o sinuoso processo da epidemiologia tem


avançado entre os fogos cruzados de um cenário histórico
no qual, ainda que exista como em outras épocas o enfren-
tamento político e ideológico dos enfoques e interesses cien­
tíficos dos grupos dominantes frente àqueles que represen­
tam as classes subordinadas, agora, a construção do que
fazer epidemiológico se realiza em um contexto mundial on­
de crises e mudanças inéditas provocaram uma reviravolta
importante na tarefa de investigação e nas concepções acerca
da prática e do Estado. Como vimos, no século XIX o en-
frentamento deu-se entre a corrente conservadora contagio-
nista e o movimento social progressista de Virchow, Villermé
e dos liberais ingleses. Opunham-se, então, uma epidemio­
logia normativa, como expressão do autoritarismo absolu-
tista, contra uma epidemiologia social do liberalismo pro­
gressista daqueles dias. Mais tarde e já na primeira metade
do presente século, ocorreu a oposição entre uma visão bio-
logicista, centrada na teoria do germe e das causas únicas,
fortemente ligada ao interesse da indústria e da expansão
do capital aos territórios tropicais, versus o movimento pro­
gressista encabeçado por pensadores como Sigerist e sua teo­
ria médico-social. Durante a segunda metade do presente
126 JAIME BREILH

século o enfrentamento deu-se entre a corrente hegemômi-


ca do multicausalismo com seu fundamento neopositivis-
ta, vinculado ao empirismo lógico e ao estrutural-
funcionalismo, contra a epidemiologia crítica, freqüente-
mente chamada epidemiologia social, assentada no mate-
rialismo científico, que experimentou uma parte importan­
te de seu desenvolvimento na América Latina.
O fortalecimento relativo do capitalismo neoliberal foi
possível pela debilidade organizativa e ideológica da luta po­
pular nos países capitalistas centrais e periféricos, mais es­
pecialmente nas formações sociais subordinadas onde
evidenciou-se uma expansão bem-sucedida de modalidades
de superexploração altamente destrutivas para a saúde. Esta
debilidade estratégica nos planos estrutural e político
expressa-se e reforça-se no fortalecimento do chamado neo-
conservadorismo e das idéias sociais-democratas. Tendên­
cias estas que já vinham se ensinuando desde anos anterio­
res e que agora viram-se enormemente impulsionadas pela
rise do “socialismo real” no Leste Europeu, que Lowy pre-
ere chamar a crise das formas autoritárias e burocratiza-
.as das sociedades pós-capitalistas, acrescentando que nem
o socialismo, muito menos o comunismo podem ter morri­
do uma vez que não tenham nascido. (96)
O que está em jogo no meio deste processo regressivo é
o conteúdo mesmo e a orientação futura da subjetividade
contemporânea e, sendo assim a definição dos fundamen­
tos da cultura e da ciência está em jogo nesta época em que,
sob o embate contra a racionalidade moderna, da qual é
parte o pensamento marxista, tende a nos impor o desalo-
jamento da razão histórica, de suas promessas de uma so­
ciedade racional, com liberdade, equidade e transformação
das condições materiais (promessas primeiras da revolução
liberal e mais tarde do socialismo científico), em função do
predomínio da razão instrumental saxônica. Como o explica
Quijano, essa crise da modernidade nos pertence devido aos
vínculos entre a cultura e a vulnerabilidade à dominação
e porque estamos expostos à ameaça perversa de um ata­
que iniciado nas formações capitalistas centrais contra tu­
do o que está associado, na racionalidade moderna, a “suas
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 127

promessas primeiras de liberação da sociedade e de cada um


de seus membros, das desigualdades sociais e das hierarquias
fundadas sobre elas, da arbitrariedade, do despotismo e da
repressão em cada uma das instâncias da existência social...
o que, conseqüentemente, está sob ataque são os fundamen­
tos culturais e intelectuais, da luta dos explorados”. (97)
Este movimento regressivo não demorou em se fazer sentir
no campo da criação artística e no da ciência. Neste último
caso e no da epidemiologia em particular, este movimento
implicará a tendência ao desaparecimento dos conteúdos crí­
ticos, ao desenvolvimento de um contradiscurso e preten­
derá levar à expansão irrestrita de conteúdos tecnológicos
por uma ciência domesticada e funcional, que sustente a ló­
gica conciliadora do capital nesta nova era e a doutrina de
conciliação social. Não é novo na epidemiologia este inten­
to dos setores dominantes e esteve sempre presente nas con­
cepções positivistas e neopositivistas, com sua supervalori-
zação das técnicas sobre o método e seu reducionismo pro-
babilístico. O que parece ser uma tendência atual é, como
observa Rita Barata num trabalho recente, a substituição
de uma lógica totalizadora e integral na epidemiologia por
uma lógica individualista. Dessa maneira, surgem agora
enfrentando-se um enfoque individual do fenômeno epide-
miológico, tal como o da epidemiologia clínica, com sua
acentuação do individualismo, sua não-construção da to­
talidade, seu estudo de fatos singulares, de dados finitos e
sua repulsa às generalizações, contra o enfoque, chamado
convencionalmente de “epidemiologia social”, que com­
preende o fato epidemiológico como um objeto histórico
complexo, multifacetado, concatenado e contraditório. Nes­
se sentido, é interessante a hipótese epistemológica da refe­
rida autora de que enquanto “... a epidemiologia clínica
pode ser compreendida como um produto da pós-
modernidade, a epidemiologia social pode ser vista como
um retomar do modernismo romântico naquilo que ele tem
de paixão (e, contraditoriamente, também de racionali­
dade) e onipotência, cujo sintoma maior é a pretensão de
compreender as totalidades mais inclusivas da realidade
concreta”. (98)
128 JAIME BREILH

A EPIDEMIOLOGIA EM DEBATE ENTRE A SAÚDE


PÚBLICA CONVENCIONAL E A SAÚDE COLETIVA

Na década passada generalizou-se um mal-estar a respeito


dos conteúdos e projeções práticas da Saúde Pública. Des­
de o movimento sanitarista latino-americano e, particular­
mente, desde a corrente da reforma sanitária no Brasil,
iniciou-se um debate que resultou no aparecimento do no­
me de “Saúde Coletiva” para designar os novos conteúdos
e projeções que se destinavam a esta disciplina.
Dessa maneira, nesta parte do capitalismo dependente e
subordinado já se estavam superando as colocações críti­
cas dos setores mais progressistas da saúde pública norte-
americana. Com efeito, esclarecimentos iniciais como os de
Terris, em seu artigo sobre a “Diferenciação entre a Saúde
Pública e a Medicina Comunitária-Social-Preventiva” (99),
mostraram-se incompletos. É assim, porque se por um la­
do tal autor denunciou a subordinação ao “médico”, que
3 dera sob as denominações de “medicina comunitária”,
medicina social” e “medicina preventiva”, outorgando a
stas disciplinas, na prática, um menor prestígio, financia­
mento e influência política, e se por outro lado resgatou sob
a designação de “saúde pública” uma atividade multidis-
ciplinar, não centrada no médico, mas na saúde e sobretu­
do vinculada à importante atividade governamental, estas
retificações interessantes ficaram incompletas, uma vez que
o autor deixou intocada a discussão dos conteúdos redu-
cionistas e empíricos e restringiu o que fazer estatal, dei­
xando de lado as possibilidades de um que fazer contra-
hegemônico a partir do povo organizado. Cabe, então, es­
tabelecer algumas diferenciações adicionais que são impor­
tantes para a compreensão das novas bases da saúde coleti­
va e de sua distinta projeção prático-política.
A saúde coletiva surge como um termo vinculado a um
esforço de transformação, como opção oposta, como veí­
culo de uma construção alternativa da realidade que é o ob­
jeto da ação, dos métodos para estudar essa realidade e das
formas de “práxis” que se requerem. Enquanto a saúde pú­
blica convencional conceitua a saúde-doença empiricamente,
OS MODELOS EPIDEMIOLÓGICOS... 129

reduzindo-a ao plano fenomênico e individualizado da cau­


salidade etiológica, a saúde coletiva propõe a determinação
histórica do processo coletivo de produção de estados de
saúde-doença. Enquanto a saúde pública acolhe os méto­
dos empírico-analítico (estrutural-funcionalista), popperiano
ou fenomenológico, a saúde coletiva incorpora o método
materialista-dialético. Enquanto a saúde pública centra sua
ação a partir da ótica do Estado, com os interesses que este
representa nas sociedades capitalistas, a saúde coletiva se
coloca como recurso da luta popular e da crítica-renovação
estratégicas do que fazer estatal. Enquanto a saúde pública
assume a atitude possível da consecução de melhoras loca­
lizadas e graduais, a saúde coletiva propõe a necessidade
de uma ação para a mudança radical. Compreende-se, en­
tão, a importância de clarear estas diferenças relativas ao
desenvolvimento da epidemiologia, que é uma subdiscipli-
na da saúde coletiva.

O DEBATE EPIDEMIOLÓGICO ATUAL


No cenário contemporâneo entra em jogo um novo de­
bate do campo da epidemiologia, que se por um lado tem
uma correspondência e uma certa continuidade com os en-
frentamentos descritos anteriormente, por outro lado
encontra-se matizado por novas realidades e conflitos da
época.
Em um pólo estão as expressões hegemônicas de uma epi­
demiologia acadêmica e de uma epidemiologia que deno­
minaremos “oficial simplificada”; no outro pólo surge a
epidemiologia crítica, chamada inadequadamente epidemio­
logia social (como se pudesse haver uma epidemiologia que
não fosse social). Nos quadros seguintes encontram-se es-
quematizadas algumas diferenças.
130 JAIME BREILH

EPIDEMIOLOGIA HEGEMÔNICA
EPIDEMIOLOGIA ACADÊMICA: 2 VERTENTES
(caracterizadas pelo reducionismo formal)
— EMPÍRICO-POSITIVISTA (método indutivo)
— FALSACIONISTA POPPERIANA (método hipotético-dedu-
tivo)

EPIDEMIOLOGIA OFICIAL SIMPLIFICADA:


— Versão simplificada para o uso nos serviços.
Define prioridade probabilisticamente.
— Reduz necessidade ao plano fenomênico.
— Reifica realidade em “fatores de risco”.

EPIDEMIOLOGIA (CRÍTICA)
— Contexto: urgências sociosanitárias de povos superexplorados.
— Enfrenta postulados teóricos-metodológicos e práticos da saú­
de pública oficial e da medicina hegemônica.
— Não se reduz a uso “progressista” de conceitos, técnicas e li­
nhas de ação convencionais, tampouco à adaptação terceiro-
mundista de modalidades simplificadas do saber dos centros he­
gemônicos.
— Surge em torno do pensamento científico emancipador como
uma expressão particular da luta autárquica que tem como cor­
respondente a necessidade popular.
— Crescimento e aprofundamento especializados de revolução fi­
losófica que esteve na periferia dos campos técnicos.

Os autores da linha hegemônica, em suas diferentes va­


riantes, resgatam a velha tradição empirista e colocam no
centro da investigação causai os princípios associativos do
plano fenomênico que Hume (1711-1776) sistematizou —
semelhança, contigüidade e causalidade — e a sua concep­
ção acerca dos princípios de relações fatuais — contigüida­
de, prioridade e conjunção —, que são os mesmos que os
epidemiólogos dessa escola desenvolveram desde a época
de ouro de Bradford Hill, reduzindo a investigação epide-
miológica a uma refinada análise dos fenômenos ou expres­
sões formais quantificáveis. Então, como expusemos em ou­
tro trabalho, (100) “... as teorias epidemiológicas contem­
porâneas de base positivista e neopositivista, ainda que ofe­
reçam contribuições valiosas para o processo de construção
OS MODELOS EPIDEM1OLÓGICOS... 131

da epidemiologia moderna e reúnam uma rica experiência,


fazem parte desta visão reducionista e expressam, sob dis­
tintas modalidades, as distorções dos determinismos antes
assinalados. Com efeito, desde os postulados de MacMahon,
1960 (101), passando por proposições de obras como as de
Leavell e Clark, 1965 (102), vários textos do tipo do de
Lilienfeld, 1976 (103), até os trabalhos mais atuais como
os de Susser, 1973, 1988 (104, 105) e os mais recentes de
Rothman, 1986, 1988, (106, 107) pretendem reunir o social
e o biológico por meio da simples associação externa. As­
sim, toda produção positivista assume, de uma ou de outra
forma, uma cosmovisão que dicotomiza o social e o bioló­
gico e fraciona a realidade, congelando-a em fatores isola­
dos com os quais reduz a determinação dos processos de
saúde-doença às relações chamadas “causais”, que se es­
tabelecem por associação empírica. Frente a essa persisten­
te redução e parcelamento da realidade, a escola latino-
americana se insurge, mesmo com suas terríveis limitações
e dificuldades, como uma alternativa de maior objetivida­
de que, utilizando um enfoque contrário, devolve à visão
científica a capacidade de refletir a complexa e dinâmica
unidade dos processos e de articular-se ricamente à “práxis”.
»■

*
I

í* '
3. Ficções do uso convencional
das principais categorias de investigação
epidemiológica

A primeira fase da crítica formulada nos levou, por meio


da análise geral da inserção prática da epidemiologia nas
sociedades capitalistas, a identificar, como mais importan­
tes, certas categorias nodais em torno das quais se organi­
zaram as diferentes versões da epidemiologia como o con­
flito histórico de enfoques.
Os princípios fundamentais que organizam o conhecimen­
to epidemiológico são dois: a “determinação” do fato epi-
demiológico e a “distribuição” do mesmo numa certa co­
letividade. De sua parte, estes princípios possibilitam, gra­
ças ao emprego de certas categorias lógicas, definir proces­
sos, classificá-los, estudar suas relações hierárquicas e cons­
truir assim uma imagem da realidade epidemiológica.
É indispensável assumir uma crítica a algumas destas ca­
tegorias principais para poder avançar na reconstrução do
fato epidemiológico, contra as ilusões sistematizadas nas ca­
tegorias de emprego convencional.

A FALÁCIA DAS CAUSAS DE DOENÇAS COMO “FA­


TORES” E DE CLASSES SOCIAIS COMO “ESTRATOS”

A concepção que um investigador tem sobre a determi­


nação se configura convencionalmente na categoria “cau­
sa ou fator” de doença, e sua idéia sobre a repartição dife-
134 JAIME BREILH

rencial de condições de saúde e de doença expressa-se na


categoria “classe social”.
Os dois principais aspectos do processo epidemiológico,
a determinação e a distribuição da saúde-doença, isto é, a
produção de condições gerais e particulares de reprodução
social e de saúde-doença, assim como sua repartição dinâ­
mica e diferenciada, constituem uma unidade dialética no
desenvolvimento real dos conceitos e métodos do trabalho
epidemiológico. Por esta razão, sempre se estabelece uma
estreita correspondência entre as categorias que se empre­
gam para definir a “causa” das doenças e aquelas que se
utilizam para expressar a distribuição das mesmas numa de­
terminada população.
I Em cada momento histórico surgiram concepções distin­
tas sobre as “causas” e sobre os “estratos” epidemiológi-
cos. Nós revisaremos criticamente a interpretação e o uso
que se lhes deram durante períodos representativos da epi-
emiologia, procurando destacar as restrições empiristas im-
bstas à sua aplicação e a conseqüente perda de objetivida-
e com a interpretação dos dois princípios de análise epi-
demiológica que destacamos: o princípio de determinaçãp
e o de distribuição da saúde e da doença.
Em cada momento histórico apareceram concepções dis­
tintas sobre as “causas” e sobre os “estratos” epidemioló-
gicos. Além do problema genérico das restrições que a apli­
cação exclusiva da categoria “causa” impõe ao princípio
de determinação, produz-se uma limitação empirista quando
se tomam as causas e estratos de modo isolado.
Nas épocas de Espejo e Virchow e durante seu conflito
com a linha autoritária, os pontos medulares da discussão
foram: a causa das epidemias e a razão de sua variada dis­
tribuição. Para uns, a causa era as condições de vida inter­
na, e a distribuição se fazia entre privilegiados e pobres; para
os absolutistas, a causa era um agressor exterior, sendo a
distribuição indiferente à posição social e muito sensível ao
grau de adaptação das pessoas às disposições do aparelho
burocrático. Os termos do debate se situaram no espectro
social do problema e, embora não tenham sido estabeleci­
dos rigorosamente as categorias e métodos de uma inter­
pretação objetiva, as proposições da época denotaram uma
FICÇÕES DO USO CONVENCIONAL... 135

notável abertura à consideração das condições globais da


vida econômico-social e política, que em alguma medida se
aproximaram das propostas mais evoluídas e rigorosas da
atualidade.
Já em outra fase, o objetivo primordial da medicina cien­
tífica foi descobrir agentes causais únicos e investigar os
motivos biológicos que tornavam certos indivíduos susce­
tíveis. As classes de população para esta medicina eram:
grupos por sexo, por idade, raça, etc. Os movimentos de
trabalhadores que lutavam por melhores condições sanitá­
rias pediam proteção contra “os agentes” que determina­
vam seus males, que afetavam crianças ou adultos, mulhe­
res ou homens, etc.
Com o desenvolvimento histórico, os termos da discus­
são tornaram-se mais complexos, porém, de todas as ma­
neiras a discussão essencial gira em torno da determinação
e distribuição de saúde-doença.
A crítica deve se apoiar em dois tipos diferentes de subs­
tratos. Por um lado, nos clássicos tratados de epidemiolo-
gia que circulam nas faculdades de ciências da saúde, nas
escolas de saúde pública (isto é, Camel, MacMahom,
Lilienfeld, etc.); por outro, nos trabalhos da linha “pro­
gressista”, que procuram romper os limites do neopositi-
vismo epidemiológico e delinear a alternativa dó pensamento
científico social.
Referimo-nos ao primeiro grupo por duas razões: em pri­
meiro lugar, porque essas versões são ideologicamente do­
minantes entre os profissionais e estudantes latino-
americanos, sem abertura à superação crítica e, em segun­
do lugar, porque plasmam a experiência da epidemiologia
vista através do prisma positivista.
Quanto aos trabalhos de tendência mais avançada, já se
produziram alguns esforços de recopilação e identificação
de seus acertos e debilidades, como no caso da antologia
crítica apresentada pelo Instituto de Medicina Social do Rio
de Janeiro (108).
Em capítulo precedente explicamos por que, há cerca de
vinte anos, apareceu uma renovada preocupação com os as­
pectos sociais nos documentos técnicos. Freqüentemente eles
136 JAIME BREILH

foram incluídos nos estudos epidemiológicos, sendo incor­


porados e denominados, com uma decidida expressão de
dever cumprido, “fatores socioeconômicos”.
O livro de Fayad Camel, por exemplo, elaborado na dé­
cada de setenta, constitui uma expressão representativa des­
tas responsabilidades técnicas que impuseram um período
de crise à Saúde Pública no terreno do planejamento e da
investigação de coletividade. A obra de Camel, talvez uma
das primeiras versões latino-americanas do moderno “sa-
nitarismo”, reconhece explicitamente a importância dos as­
pectos sociais na análise de estatísticas de população, e ad­
verte que a “distribuição da população, segundo ocupação,
é dado importante de se conhecer, não apenas porque há
certas doenças peculiares a determinadas ocupações, mas
também porque seus efeitos econômicos incidem, de sua par­
te, sobre a natalidade, morbidade e mortalidade”. (109)
Expressões como a anterior dão a impressão de uma bal-
buciante sociologia ingênua encravada numa obra de corte
■undamentalmente empírico-estatístico. Porém, o social é
?mado como um “dado importante de se conhecer”. Ele
incluído não apenas por constituir um ingrediente da ve-
ha medicina do trabalho, mas porque se começa a ver sua
relação com os fenômenos demográficos que tanto preo­
cupavam os técnicos da época.
A distribuição social da patologia também está incluída
na mencionada obra, expressando ser “... um fato que as
classes sociais inferiores são as que rendem maior tributo
à mortalidade e, embora as reformas sociais tendam ao
nivelamento das taxas, observam-se diferenças considerá­
veis”. (110)
A noção de fator ou dado econômico se faz presente em
Camel e recebe um tratamento breve e ambíguo como quan­
do afirma que “...a condição social depende não somente
da renda, como também do grau de instrução, das relações
familiares, etc., não se podendo determinar o papel de ca­
da um destes fatores nas diferenças observadas”. (111)
Nesta citação encontramos o clássico “etc.”, que se adi­
ciona aos conceitos cuja importância se desconhece ou se
minimiza, e a condenável aceitação de uma definição vaga
e inoperante da “condição” ou “classe social”.
FICÇOES DO USO CONVENCIONAL... 137

Esboçando uma crítica ao tratado de Camel, devemos re­


conhecer, em primeiro lugar, que às suas limitações con­
ceituais para o desenvolvimento dos pontos epidemiológi-
cos soma-se talvez o fato de que é um livro dedicado mais
aos aspectos de planejamento e investigação, e que isto po­
dería ter contribuído para que o fenômeno epidemiológico
fosse relegado.
Ao falar das causas determinadas do estado de saúde da
área, o planejador manifesta-se em Camel quando à trilo­
gia ecológica (agente-população-ambiente) acrescenta o
quarto fator: a política sanitária. A redução empírica da
proposta e sua semelhança com outras postulações selecio­
nadas para esta análise crítica permite-nos reduzir este
comentário.
Quanto ao conceito de distribuição social que emprega,
não é outra coisa senão uma utilização tímida e simplifica­
da da teoria de estratificação multidimensional de Weber1,
justaposta a um instrumental básico de categorias biológicas.
O livro de Camel e outros reconhecidos textos latino-
americanos que tratam de temas epidemiológicos são obras
fundamentais de consulta, que sintetizam uma vasta expe­
riência no manejo de categorias e técnicas empíricas. De­
vemos saber utilizá-los para aproveitar esta experiência, rea­
lizar uma utilização seletiva que se oriente por um marco
teórico-científico alternativo.
O significado e o nível explicativo que uma escola epide-
miológica concede ao conceito de classe social dependem
de suas idéias sobre a determinação do processo saúde-
doença. Brian MacMahon o expõe assim: “Estudaram-se
os tipos de associação que podem existir entre duas catego­
rias de eventos. Na realidade, os fatos nunca dependem de
causas únicas; cada componente mostrado (o autor se refe­
re aos componentes das redes causais que seu modelo pro­
põe) é, em si, o resultado de uma complexa genealogia de
1. Teoria que considera a vida social como a conjunção de três esferas: a econo­
mia (aspecto de distribuição da renda e de recursos como habitação, etc.), o
social (sistema de status) e a política (filiação política), cada uma das quais
se desenvolve independemente.
138 JAIME BREILH

antecedentes, evidenciando-se que as cadeias de causalida­


de representam somente uma fração da realidade, devendo-
se considerar toda a genealogia mais propriamente como uma
rede que, em sua complexidade e origem, fica além de nossa
compreensão. Felizmente, para se executarem medidas pre­
ventivas não é necessário compreender integralmente os me­
canismos causais. Mesmo o conhecimento de um pequeno
componente pode permitir algum grau de prevenção”. (112)
Como a “rede de MacMahon” reduz os vínculos de seus
componentes a uma determinação causai e do tipo linear,
tem de colocar as condições sociais (uma das quais é a “clas­
se social”) em um ponto ou nó da rede, e o faz precisamente
i nos pontos periféricos ou mais afastados, com relação às
variáveis que desempenham um papel direto e mais impor­
tante na gênese dos problemas. A classe social fica assim
relegada ao papel de “variável indiretamente associada”,
xgundo os termos do autor.
No clássico diagrama de MacMahon sobre a rede de as­
sociações entre a hepatite por soro homólogo e o tratamento
parenteral para a sífilis, demonstra-se a rígida justaposição
de fatores educacionais, ocupacionais, de administração hos­
pitalar, de características biológicas do agente, etc., todos
agrupados artificialmente num mesmo plano, pretendendo
refletir a complexa concatenação dos fatos reais. Porém o
marco referencial de que parte, condena seu propósito a um
simples esboço superficial que consegue apenas ressaltar ele­
mentos isolados, empiricamente demonstrados, e evidenciar
suas conexões externas.
Resumamos, por último, suas recomendações de méto­
dos e práticas, pelo interesse que têm para se entender seu
critério de determinação e de classe social.
Congruentemente com seu marco teórico, MacMahon re­
conhece somente associações causais determinadas induti-
vamente de acordo com três critérios: seqüência no tempo,
firmeza de associação e relação com o conhecimento exis­
tente (este último, em três sentidos: relação que seria ga­
rantida pelo conhecimento biológico, pelo conhecimento de
igual distribuição de causa e efeito na população e, por ex-
FICÇÕES DO USO CONVENCIONAL... 139

clusão). Uma vez confirmadas as associações causais, o autor


adverte que “... a prevenção eficaz da doença depende do
achado de um elemento da cadeia que possa ser eliminado
e que esteja suficientemente próximo do componente-chave
do mecanismo, de modo que sua eliminação produza efei­
to substancial sobre o dito componente”. (113)
No que se refere ao princípio de determinação, mostra­
mos que MacMahon o reduz ao vínculo causai, porém, a
este respeito é necessário fazer duas considerações: a) os cri­
térios que maneja para estabelecer um vínculo causai não
são corretos; o que está conseguindo com os procedimen­
tos que propõe é evidenciar o que Bunge denomina uma
“coincidência invariável”, assim explicada: “A proposição
‘se C, então (e somente então) sempre E’ é um enunciado
universal condicional que expressa a conjunção constante
de duas classes de termos. Não assegura uma conexão ge­
nérica (...). Nada diz da natureza ativa e produtiva que se
pode atribuir aos agentes causais (...) ‘Se C então E’ tem
sido usualmente considerado pelos empiristas como se es­
gotasse o significado da causação...” (114); e b) um ponto
que mencionamos previamente é que, se examinarmos cui­
dadosamente as colocações do capítulo segundo da obra de
MacMahon, chegamos à conclusão de que sua forma de con­
ceber a multicausalidade corresponde ao tipo de causação
múltipla que Bunge denomina “pluralidade conjuntiva de
causas” (115) e que é redutível à causação simples. Dizen­
do de outro modo, ainda que a rede articule um complexo
de componentes, o nexo causai último é simples: para o ca­
so de nossa análise, rede de fatores-ação do agente (isto é,
entrada do vírus da hepatite) e deste modo caímos, simples
e francamente, na velha unicausalidade, e a relação se tor­
na biológico-individual ou agente-doença.
Presa à concepção teórica de causalidade está a idéia de
“condição social” sustentada por MacMahon. Os fatos so­
ciais, ou situação socioeconômica, estão sempre localiza­
dos na penumbra das posições afastadas ou extremas da rede
e são, por isso, consideradas como de pouca relevância téc­
nica, posto que segundo MacMahon “uma rede em sua com­
plexidade e origem fica mais distante de nossa compreen-
140 JAIME BREILH

são e deste modo os fatores (sic) tecnicamente mais ‘próxi­


mos’ (biológicos, comportamentais e administrativos) man­
têm uma posição privilegiada na rede, para fins de
programação”.
A variável classe social passa a ser mais um elo da rede
e, além disso, um elo ornamental, uma vez que não ocupa
um destes lugares tecnicamente “próximos” reservados, se­
gundo esta concepção, aos componentes biológicos com­
portamentais e administrativos, ou seja, àqueles elementos
que podem ser influenciados pelos programas de saúde a
baixo custo e com um sentido pragmático.
t
Além do mais, segundo a noção da “rede”, a classe so­
cial permanecería como um desses elementos que, sendo o
resultado de uma complexa confluência de antecedentes e,
seguramente, o produtor de múltiplos efeitos incognoscí-
veis na sua totalidade, então “sua complexidade e origem
ficam mais distantes de nossa compreensão”.
Com este tipo de raciocínio, MacMahon pretende eximir
) epidemiólogo de toda responsabilidade no conhecimento
los processos determinantes da estrutura e orientá-lo prag-
naticamente para o conhecimento dos pequenos componen­
tes parciais que possam permitir a execução de medidas li­
mitadas de prevenção.
Fracionando a problemática em componentes manejáveis
e representando as relações de múltiplas causas como co­
nexões lineares, estabeleceu-se o modelo conceituai da mul-
ticausalidade que tanto cativou os participantes do que fa­
zer sanitário e, inclusive, muitos investigadores progressis­
tas, cuja absorção a crítica do funcionalismo permite-lhes
apoiarem-se, cômoda e alinhadamente, nas muletas das cau­
sas múltiplas.
Para este autor, não interessam ao epidemiólogo os fa­
tores que não são imediatamente modificáveis. Explica-se
assim que MacMahon considere a “condição socioeconô-
mica” como ... um conceito teórico que até o momento es­
tá esperando uma clara definição”. (116)
A despeito da afirmação anterior, MacMahon se aven­
tura pelo terreno das categorias sociais, indicando que na
condição socioeconômica estão “englobadas variáveis, tais
FICÇÕES DO USO CONVENCIONAL... 141

como ocupação, renda familiar, condições de vida, prestí­


gio social e outras, mas que, na prática, para os propósitos
epidemiológicos, se utiliza comumente como indicador in­
direto apenas uma variável que possa ser definida de for­
ma objetiva”. (117)
Com esta última afirmação o autor torna evidente, uma
vez mais, a errônea concepção de classe social, de reflexos
weberianos, da qual se aproxima como investigador com
um esquema lógico-formal do tipo estático, prefixado, e que
lhe serve para ordenar os dados recolhidos indutivamente,
e com os quais pretende formar um diagnóstico social. Ven­
do a coisa deste modo, pensa-se que com este mesmo es­
quema ordenador e um instrumental sensível ao empirismo
o epidemiólogo pode aproximar-se seguro de qualquer so­
ciedade, trata-se esta dos componeses do Alto Peru, das co­
lônias subproletárias de Netzahualcóyotl (México), das fa­
velas do Rio de Janeiro (Brasil), ou de um bairro operário
em Manchester. Sempre obterá os mesmos estratos, com
suas camadas e subcamadas, variando os achados em ma­
tizes numéricos. A fonte de dados será o indivíduo, e o so­
cial corresponderá ao agregado matemático de indivíduos,
de imediato classificados em intervalos de classe. Este in-
dutivismo idealista, cujo ponto de partida e de chegada é
o caso individual, põe em evidência o princípio errôneo de­
nunciado por Kula, segundo o qual “os fenômenos socioe-
conômicos são simples resultante mecânica das atividades
econômicas individuais, e os fenômenos sociais são a soma
dos fenômenos individuais”. (118) As classes sociais con-
vertem-se assim em somatórias estratificadas de caracterís­
ticas individuais.
A sociologia burguesa contemporânea mostra uma gama
de “escritos” sobre estratificação que foram recopilados e
analisados criticamente por autores como Stavenhagen (119)
e Cueva (120), os quais desmistificaram suas implicações con­
ceituais e metodológicas.
Apresentando as classes como “agrupamentos discretos,
hierarquizados num sistema de estratificação’ ’, como expli­
ca Stavenhagen, cria-se uma falsa continuidade de estrato
a estrato, que, estando apenas mediados, estatisticamente,
142 JAIME BREILH

possibilitariam uma suposta mobilidade social, que é o mito-


chave destas concepções.
Em correspondência com sua visão fragmentária e equi­
librada da realidade social, os esquemas estratificadores em­
pregam uma metodologia que funciona como um sistema
de hierarquização que utiliza “simples categorias nominais”,
que chegam a ser tão simplistas como “alta-média-baixa”,
aplicáveis a qualquer situação. Algumas modalidades mais
refinadas, porém igualmente irreais, empregam índices múl­
tiplos para uma multiestratificação.
O segundo erro, segundo Cueva, consiste em que os efei­
1 tos ou manifestações aparentes da estrutura social são to­
mados como critérios de classificação (diferenças de ren­
da, nível educacional, prestígio, etc.).
Em terceiro lugar, adota-se a magnitude da renda mone­
tária como índice discriminatório, desconhecendo que, por
exemplo, os indivíduos que possuem iguais recursos podem
jertencer a duas classes sociais de características e perspec-
ivas históricas radicalmente distintas. Ademais, um enfo-
iue deste tipo, que adota a classe social como uma catego­
ria puramente descritiva e não analítica, impede captar fa­
tos transcendentais para as ações de saúde, como as condi­
ções objetivas de inserção no aparelho produtivo, os inte­
resses históricos que delas derivam (a “classe em si” de
Marx) e a capacidade de consolidar-se unitariamente para
satisfazer tais interesses (a “classe para si” de Marx).
Adotando a perspectiva estratificacionista, investigado­
res como MacMahon estão condenados a não perceber as
grandes transformações estruturais que, em momentos his­
tóricos, produzem mudanças profundas no caráter de clas­
se dos homens, bem como a reduzir seu horizonte de visi­
bilidade a termos descritivos. Em resumo, perdem a essên­
cia dos processos de distribuição social que “... não podem
ser estudados corretamente senão a partir de uma teoria geral
da sociedade”. (121)
Finalmente, resta-nos efetuar alguns comentários sobre
outra obra-tipo que pertence, indubitavelmente, a uma ex­
pressão mais avançada do pensamento epidemiológico,
tratando-se do texto de Mervyn Susser sobre o Pensamento
FICÇÕES DO USO CONVENCIONAL... 143

Causai nas Ciências da Saúde. (122) Para reconhecer a pers­


pectiva mais ampla de seu enfoque, basta transcrever a tra­
dução de um de seus argumentos: “Diferentes conceitos le­
vam os cientistas a buscar explicações diferentes para a doen­
ça e, a seguir, distintas formas de ação para eliminá-la. A
forma de ação depende de termos em mente o miasma ou
os microorganismos, enzimas, moléculas, conduta huma­
na, ou a estrutura das sociedades. As causas da doença bus­
cadas por um cientista estão limitadas por seu conceito acer­
ca da mesma e por seu marco de referência”. (123)
Em que pesem a considerável ampliação do horizonte de
visão e o esforço de integração dos diferentes domínios da
realidade contidos nas proposições de Susser, detecta-se neste
autor uma contaminação funcionalista que se faz bastante
óbvia no capítulo quinto sobre “Sistemas e Níveis de Or­
ganização”, no qual afirma que: “...A evolução dos mo­
delos causais em epidemiologia nos levou à aplicação do con­
ceito de sistemas (...) os sistemas relacionam-se mutuamente:
contém um ao outro como as pequenas caixas sucessivamen ­
te menores da magia chinesa. O universo tem uma existên­
cia simultânea e cada nível de organização está incluído em
outro mais complexo. Os átomos estão contidos nas molé­
culas, as moléculas nos cromossomos, os cromossomos nas
células e as células nos tecidos. Os órgãos e sistemas fisio­
lógicos estão contidos nos indivíduos e os indivíduos nos
grupos sociais (...). Todos estes sistemas se acham ligados.
Na realidade, um sistema nunca existe de forma isolada.
Nós isolamos e conceituamos um sistema ou um segmento
para fins de estudo”. (124) Em outras palavras, “o segmento
escolhido se estende através das dimensões de tempo, espa­
ço e estrutura que contêm as variáveis independentes e de­
pendentes selecionadas. Deste modo, o segmento começa
com as variáveis independentes e termina com as dependen­
tes”. (125)
Este tipo de raciocínio implica uma arbitrária extensão das
possibilidades explicativas da teoria de sistemas a processos
de caráter histórico que envolvam a articulação de fatos per­
tencentes a diferentes domínios da realidade (cada um com
suas leis próprias), tais como o processo saúde-doença.
144 JAIME BREILH

Se aceitássemos este enfoque enunciado por Susser, te-


ríamos que aceitar que “o social” não é uma característica
que corresponde ao “individual” porque, segundo o racio­
cínio deste autor, pertenceria a um distinto nível organiza-
tivo da realidade. Esta dicotomia mecânica entre elemen­
tos “social” e “individual”, relegados a sistemas distintos,
nega a relação dialética entre os fenômenos sociais e indi­
viduais, despreza o indivíduo como personificação de fa­
tos sociais fundamentais e seu caráter representativo de in­
teresses e de relações de classe, convertendo-o em uma uni­
dade funcional influenciada de fora pela classe social, que
atuaria como algo exterior.
Esta linha de pensamento, ademais, impede a interpre­
tação da origem e transformação das classes sociais, da re­
lação entre as mesmas e, portanto, o reconhecimento da di­
nâmica da determinação social do processo saúde-doença.
A ambiguidade implícita nas colocações de Susser e a de-
nição pouco rigorosa do conceito de classe social se ma-
festam quando expressa que “... por exemplo, a classe
.ocial é uma variável global independente que pode ser de­
finida por índices combinados, derivados da ocupação, edu­
cação e local de residência... Todos os efeitos de uma va­
riável componente não estão determinados pela variável glo­
bal independente... Um exemplo é a ocupação usada como
índice da variável global (classe social) e relacionada à va­
riável dependente medida de inteligência. Como componente
da classe social, a ocupação influi no Q.I. À parte de sua
influência através da classe social, a ocupação poderia in­
fluir independentemente no Q.I. por meio do desempenho
de certos papéis ocupacionais”. (126)
Novamente, aqui, voltamos ao tipo de colocação que ha­
víamos questionado em MacMahon. Este ponto de vista ca­
rece de uma explicação dos fenômenos que determinam a
situação de classes e o aparecimento de formas de ocupa­
ção, renda, educação, etc., como efeitos que podem ser me­
didos. Seu método indutivo e fracionado, seu funcionalis­
mo epidemiológico, reduz e deforma consideravelmente suas
colocações, traindo a intenção progressista que este autor
encarna.
FICÇÕES DO USO CONVENCIONAL... 145

O desenvolvimento completo de um delineamento alter­


nativo corresponde a uma seção posterior; só desejamos re­
sumir aqui algumas conclusões sobre a crítica dos concei­
tos epidemiológicos de “causalidade” e “classe social”.
Primeiramente, observa-se que são dois elementos diale-
ticamente ligados que se desenvolvem, como o conteúdo e
a forma, numa unidade de termos inseparáveis e mutuamen­
te dependentes.
Para superar a redução causalista da determinação e a
atitude descritiva empírica, que só correlaciona os fatores
exteriormente, é indispensável integrar todas as outras for­
mas de determinação que se dão nos processos materiais
(127), articulando-os numa concepção integrada que con­
temple os processos das diferentes esferas da realidade em
seu movimento concatenado e dialético, nos quais os com­
ponentes essenciais da determinação global, em sua produ­
tividade e legalidade, submetem-se não apenas a vínculos
causais, como também aos vínculos sujeitos a leis de dife­
rentes tipos.
Colocado de outra maneira, poder-se-ia dizer que as con­
dições de saúde e doença, isto é, o fato epidemiológico, não
é somente um efeito de certas causas, mas também é o pro­
duto de um complexo processo de determinação com dimen­
sões diferentes, que são explicadas por leis dialéticas, cau­
sais, funcionais ou de interação e estatísticas ou de probabi­
lidade. Numa seção posterior explicaremos, com um exem­
plo, a importância de reconhecer estas dimensões da deter­
minação epidemiológica, cujo peso relativo na investigação
depende da delimitação que o cientista faça do problema es­
tudado. Resumidamente, o que se pretende aqui destacar é
que a violenta redução da realidade a certas causas e a bus­
ca de seus efeitos concomitantemente associados é o resul­
tado do uso heurístico e pragmático da visão funcionalista.
No que diz respeito à categoria classe social, cuja inter­
pretação médica dominante criticamos, é necessário desta­
car aqui que o princípio real para estudá-la é a inserção do
grupo que se esteja considerando no aparelho produtivo,
de modo que se considerem as classes constituídas por “...
grandes grupos de homens que se diferenciam entre si pelo
146 JAIME BREILH

lugar que ocupam em um sistema de produção historica­


mente determinado, pelas relações em que se encontram
frente aos meios de produção (relações que as leis fixam e
consagram), pelo papel que desempenham na organização
do trabalho e, por consequência, pelo modo e pela propor­
ção em que percebem a parte da riqueza social de que dis­
põem...”. (128) Só uma classificação social baseada neste
princípio de objetividade pode permitir ao epidemiólogo dis­
criminar os seres humanos, de acordo com seu acesso ao
controle ou desfrute dos processos que determinam sua re­
produção social, e, por conseguinte, sua qualidade de vi­
I
da, tanto no sentido conjuntural como em suas possibili­
dades de aperfeiçoamento (ou deterioração) no tempo. Deste
nível de análise podem-se retirar conclusões objetivas e pre-
dições certas sobre a distribuição de risco de adoecer e de
rorrer, retirar também o plano empírico do delineamen-
i, assim como do acesso aos valores ou benefícios que mo-
elam e potenciam o estado de saúde ótimo.
Nos modelos que questionávamos não se visualizava a
estreita concatenação da determinação da saúde-doença e
a distribuição da mesma. As classes sociais apareciam clas­
sificadas independentemente sob um esquema arbitrário, dis­
tante do processo de determinação; por isso, os “agentes”
sofriam uma interpretação e classificação inteiramente se­
paradas daquelas que regiam a interpretação e distribuição
de classes sociais. Esta separação metafísica já foi questio­
nada por Marx, referindo-se à dialética entre produção e
distribuição econômicas, que os economistas clássicos
empenhavam-se em separar. (129) A distribuição já se dá
no próprio seio da produção (em nosso caso, determina­
ção) e esta produção se expressa numa determinada distri­
buição. As duas são parte da mesma essência.
Partindo de uma teoria geral da sociedade (materialismo-
histórico), poderemos estudar os processos determinantes
de reprodução social, identificar processos de reprodução
qualitativamente distintos e ainda contraditoriamente opos­
tos que caracterizam as classes, definir esses objetivamente
pela base produtiva (130), reconhecendo nelas uma subje­
tividade de classe que as converte em sujeitos históricos capa-
FICÇÕES DO USO CONVENCIONAL... 147

zes de transformações; sob estas condições, as classes pos­


suem perfis epidemiológicos de classe, compostos pelos per­
fis reprodutivo e de saúde-doença (que descreveremos adian­
te), para, por sua vez, identificar, neste contexto de
determinação-distribuição, o aparecimento de casos indi­
viduais com as propriedades de seus sistemas biológicos e
sua consciência individual.

POR UMA CRITICA E DESMITIFICAÇÃO DOS


SISTEMAS EMPÍRICOS

É necessário trabalhar na crítica e desmitificação dos sis­


temas empíricos de estratificação epidemiológica que con­
fundem e obstaculizam a construção científica das
comparações.
Há uma amplíssima gama de sistemas de estratificação,
propostos a partir da epidemiologia convencional. A rela­
ção classe social-saúde não é patrimônio do materialismo
histórico, tendo sido considerada pela sociologia positivis­
ta e neopositivista desde épocas anteriores. No século XIX
já se estudava a relação classe social-saúde. Atualmente há
muitos estudos que estabelecem esta relação do ponto de
vista empírico. No American Journal of Epidemiology, por
exemplo, de todos os estudos publicados a respeito de doen­
ças crônicas, 42% incluem a classe social como “variável”
perturbadora, 32% a assumem como “fator de risco” e 26%
a consideram como instrumento útil para estabelecer a amos­
tra. (131) Seguindo o clássico procedimento empírico indu­
tivo, os estudos epidemiológicos convencionais incorporam
como “classe social” certas variáveis como: “ocupação”
(demonstrando sua associação com perigos físicos, stress,
atenção médica e habitação); “educação” (por sua associa­
ção demonstrada com estilos de vida, valores, capacidade
para resolver problemas, etc.) e “renda” (provando sua re­
lação empírica com acesso a serviços, qualidade da habita­
ção, menor exposição a resíduos tóxicos, qualidade alimen­
tar e condições de trabalho e de recreação). Deste modo,
148 JAIME BREILH

existe um vasto trabalho empírico sobre estas relações. Não


apenas a utilização de variáveis isoladas, mas também a de
complexos sistemas classificatórios transitam como técni­
cas de amplo uso nos círculos tradicionais de investigação
e docência, persistindo ainda nos trabalhos de grupos pro­
gressistas que têm outra intencionalidade. Sistemas perma­
nentes como o “British Registrar General”, “Edward’s So­
cial Economic Grouping of Occupations”, “Nam Power’s
Occupational Status Scores”, “SiegeFs Prestige Scales” e
“Treiman’s Standardized International Prestige Scales” são
exemplos de formas classificatórias de uma variável;
l difundiram-se também índices compostos como: “Duncan’s
Socio-economic Index”, “Hollinghead Index of Social Po-
sition” e o “Warner’s Index of Status Characteristics”.
A alternativa não consiste em substituir novos fatores for­
mais de classificação, mas sim assumir um enfoque dialéti­
co e histórico para a análise da estratificação, de tal modo
]ue, da investigação da dinâmica estrutural da população
;e apreenda a composição de classes e frações com seu di­
namismo e que, à luz desse conhecimento do todo social,
se possa apreender cientificamente os estratos e seus perfis
epidemiológicos, seu sistema de contradições, e não variá­
veis isoladas que, embora se associem empiricamente com
certas doenças, distorcem a apreensão da essência epidemio-
lógica, das determinações, como se verá mais adiante.

REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE A INFORMAÇÃO


DEMOGRÁFICA OFICIAL
A demografia é uma disciplina aparentada com a epide-
miologia; seu desenvolvimento influiu notavelmente na evo­
lução desta última. Seu objeto central é a dinâmica popu­
lacional e o estudo das leis que determinam a magnitude
e distribuição da população no espaço e no tempo.
Não pretendemos apresentar aqui um questionamento
exaustivo da demografia oficial, mas apenas ressaltar as ca­
racterísticas da produção demográfica contemporânea en­
quanto abastecedora periódica e cotidiana de um acervo de
FICÇÕES DO USO CONVENCIONAL... 149

informação populacional que freqüentemente é utilizado pe­


lo epidemiólogo.2
A informação dos censos nacionais, o registro permanente
de nascimentos e óbitos, os dados sobre movimentos mi­
gratórios, as medidas de fecundidade, etc. constituem um
importante material de trabalho para o investigador médi­
co. Dependendo da natureza de cada projeto específico e
da etapa em que se encontre, surgem diversos requisitos de
informação de índices para os cálculos amostrais, para a
delimitação da formulação de problemas ou a complemen-
tação de um marco teórico, para a comprovação parcial ou
total de certas hipóteses, etc. o epidemiólogo freqüentemente
necessita lançar mão de diversas informações demográfi­
cas. No entanto, uma séria limitação aparece quando ana­
lisamos o tipo de informação que provém das instituições
demográficas.

Os censos
A natureza dos dados censitários elaborados em cada pe­
ríodo histórico depende das funções que as políticas do Es­
tado delegaram aos observadores dos fenômenos da
população.
Nas formações escravistas e feudais a preocupação cen­
tral girou ao redor de uma mensuração periódica (obvia­
mente limitada pelo nível técnico da época) do montante
geral de meios produtivos, dos recursos humanos para a
guerra e de setores populacionais com obrigações tributá­
rias. Já nos primórdios do capitalismo, o advento da ma­
nufatura e a incipiente estruturação do mercado determi­
naram o surgimento de esporádicos esforços censitários de
caráter parcial sobre preços e unidades produtivas. O que
globalmente distinguiu a demografia destas formações so­
ciais foi a natureza parcial e excepcional dos censos.
2. O leitor que necessite aprofundar uma crítica das categorias da demografia po­
lítica deve consultar a recente obra do demógrafo Win Dierckxsens, intitulada
Capitalismo y Población, publicada por EDUCA em 1979.
150 JAIME BREILH

Foram as condições sociais objetivas correspondentes a


esses períodos históricos que determinaram o aparecimen­
to de padronizações de tipo parcial, porque até então não
havia condições para que fosse incorporado no pensamen­
to hegemônico o caráter “comum” dos homens, ou dito
de outra forma, fosse aceitável agregar todos sob o deno­
minador comum de “homens”.
Os censos e registros “nacionais” são um fenômeno que
advém com o capitalismo. A população passa a ser o agre­
gado de unidades comuns, de homens, cuja suposta igual­
dade passa a ser nominalmente aceita. A transformação do
I homem como força de trabalho numa mercadoria definiu,
superestruturalmente, a representação dos homens como
unidades livres e basicamente iguais.
Sobre a base desta afirmação no plano das idéias, do ca-
íter essencialmente homogêneo da população, começou-
I a delinear uma nova trama de classificações e subclassi-
cações demográficas. Desde o início do século XIX,
ístabeleceram-se os censos nacionais mais importantes e os
sistemas de registro contínuos, cujos instrumentos foram
incorporando variáveis necessárias para descrever condições
relevantes aos fins utilitários do desenvolvimento e do con­
trole dos chamados fatores de produção.
Assim, foram configurando-se os principais padrões de
registro censitário, tendo como resultado a elaboração de
agregados estatísticos. Entretanto, como os fundamentos
conceituais e lógicos não se adequaram à verdadeira varia­
ção e distribuição das condições da população, foram
apresentando-se tabulações falsas, que desde então têm agru­
pado unidades populacionais não-similares ou têm separa­
do unidades aparentemente diversas, porém comuns em sua
essência.
O epidemiólogo consciente que deseja utilizar a informa­
ção estatística de nível nacional — e por isso muito difícil
de se obter por outros meios — tem a necessidade de re­
construir a informação e procurar reassociações de dados
que se aproximem de uma idéia dos processos reais. Mais
adiante veremos alguns exemplos. Em outras palavras, o
problema da reformulação dos dados demográficos não é
FICÇÕES DO USO CONVENCIONAL... 151

só um problema de controle de precisão quantitativa, mas


fundamentalmente o desafio da revisão dos postulados qua­
litativos. Nas palavras de Dierckxsens isto implica “... ex­
plicitar as leis que regem, essencialmente, a dinâmica po­
pulacional sob o capitalismo...” compreender sobretudo as
formas em que a população se reproduz, antes de tudo co­
mo força de trabalho, “... conhecer as leis que regem a pro­
dução e reprodução da força de trabalho...” (132), tanto
sob a forma-valor no modo de produção capitalista como
nas formas de reprodução por auto-subsistência e mercan­
til simples. Na Parte II veremos a capital importância disto
para a investigação epidemiológica.

PROBLEMA COM OS REGISTROS CONTÍNUOS


O registro de informações relativas a nascimentos, mor­
tes e doenças baseia-se igualmente no ordenamento conven­
cional que estamos criticando e não permite per se estabe­
lecer nenhuma análise profunda do comportamento esta­
tístico diferencial das classes sociais nem de outras unida­
des analíticas relevantes.
Os organismos oficiais obtêm a distribuição dos dados
vitais mediante programas de computação, que mostram
agregados totais e parciais por idade, sexo e localização geo­
gráfica, dispostos em poucos cruzamentos elementares, e
não os qualificam segundo variáveis que poderiamos deno­
minar estruturais. Alguns países europeus apresentam clas­
sificações mais refinadas com as quais é mais fácil obter aná­
lises comparativas, porém nenhuma delas apresenta suas in­
formações de acordo com uma racionalidade histórica que
permita ponderar a ocorrência de risco nas diferentes clas­
ses sociais.
Além do problema apontado, que cai no terreno do re­
gistro de informação individual, cabe destacar outra grave
omissão nos sistemas de informação ligados à saúde: ne­
nhum apresenta, concomitantemente, dados de ordem ge­
ral, isto é, detectáveis em indivíduos e em processos mais
gerais e que sejam relevantes. Seria, por exemplo, muito im-
152 JAIME BREILH

portante que os sistemas de vigilância epidemiológica apre­


sentassem níveis de contaminação segundo espaços sociais,
condições de stress e de desgaste no trabalho, segundo mo­
dos de produção, condições de segurança em diferentes me­
canismos e sistemas de transporte, etc. e, enfim, outras di­
mensões que serão tratadas com maior rigor na Parte II e
das quais aqui só destacamos exemplos.

A CLASSIFICAÇÃO INTERNACIONAL DE DOENÇAS


E A ARBITRÁRIA EXTRAPOLAÇAO DA
t LÓGICA CLÍNICA

A classificação “moderna” (isto é , capitalista) da doen­


ça se consolidou no capitalismo da grande indústria duran­
te a primeira metade do século XIX.
A tomada de consciência paulatina por parte do Estado
wrguês da importância econômica da população desenca-
leou na Inglaterra, como nação que capitaneava então o
processo de livre competição, a exploração de mecanismos
que permitissem sistematizar a medida da perda econômi­
ca ocasionada por danos sofridos pelo capital humano ou
força de trabalho.
Ós escritos do estatístico inglês William Farr, que é o pai
da moderna classificação da doença, testemunham a orien­
tação que adotou desde então a estatística epidemiológica.
(133) No capítulo intitulado “Custo e Valor Econômico Pre­
sente e Futuro do Homem”, o epidemiólogo Farr elabora
extensas análises e estimativas do valor monetário da po­
pulação trabalhadora inglesa e da perda que para esta na­
ção significou a migração da força de trabalho (para as co­
lônias e para os Estados Unidos), e sobretudo a presença
de doenças. (134) Motivado pela análise econômica, Farr
anuncia, numa secção posterior, “As Mortes”, a imperio­
sa necessidade de se estabelecer uma classificação “ágil e
moderna”. A importância que este autor concedeu ao de­
senvolvimento de uma nomenclatura nosológica põe-se em
evidência quando ele assinala que “... nomenclatura é de
tal valor nesta área de investigação como os pesos e
FICÇÕES DO USO CONVENCIONAL... 153

medidas são para as ciências físicas e, portanto, deve ser


estabelecida sem demora”. (135)
Era a época em que nascia vigorosa a concepção clínico-
individual da doença, a qual se assentava na teoria das causas
isoladas, e Farr, dando-lhes plena vigência, elaborou, com
fins classificatórios, sua “Análise do Fenômeno Mórbido”
e construiu o esqueleto lógico que lhe permitiu distribuir
as doenças em compartimentos, como entidades isoladas e
desarticuladas, segundo a localização anatômica e funcio­
nal de seus transtornos. Deste modo, iniciou-se um proces­
so de fracionamento da saúde-doença e apagou-se sua di­
mensão geral, não-individual.
Desde o Primeiro Congresso Internacional de Estatísti­
ca (1864), adotou-se a classificação de Farr, continuando-
se nos demais congressos a divisão dos compartimentos, até
que, contemporaneamente, estabeleceu-se uma classificação
ampla e de alta sofisticação nosológica de 999 causas.
Seria dogmático e absurdo negar a validade da Classifi­
cação Internacional de Doenças (que seria melhor denomi­
nada Classificação Internacional de Fatores e Danos Ime­
diatos) para a clínica e certas instâncias da administração
em saúde, entretanto, o que se deve questionar é que se adote
este instrumento como padrão de análise do processo saúde-
doença e de registro de suas manifestações empíricas.
Em capítulo posterior desenvolveremos a idéia de um per­
fil epidemiológico como uma alternativa conceituai que pode
ser trabalhada como recurso lógico para desenvolver clas­
sificações epidemiológicas que superem o absurdo mosai­
co nosológico positivista e nos permitam reconstruir a uni­
dade dialética saúde-doença, reagrupando os componentes
desse perfil epidemiológico de cada classe social.
As novas classificações dos processos de saúde-doença
deverão permitir-nos construir “classes” de fatos essencial­
mente iguais, vinculados a determinações gerais e particu­
lares semelhantes. Por exemplo, uma classe poderia estar
constituída pelo conjunto de processos que caracterizam os
grupos sociais expostos às consequências da decomposição
da economia agrícola de auto-subsistência. Outra classe po­
deria reunir o conjunto de processos relacionados com a de-
154 JAIME BREILH

terioração da força de trabalho operária pelo desgaste físi­


co e condições de deterioração do salário real. Nesta últi­
ma categoria classificatória, poder-se-ia graduar o impac­
to diferencial dessas condições na força de trabalho do se­
tor industrial avançado e o das unidades de menor compo­
sição orgânica de capital. Uma classe de processos poderia
corresponder àquele grupo de entidades vinculadas com o
movimento acelerado de urbanização não sujeita ao plane­
jamento central e harmônico, mas sim à regulação das leis
de mercado. Neste grupo cairiam os processos de “patolo­
gia moderna”, cuja incidência está despontando nos paí­
* ses de economia dependente. Em resumo, a fundamenta­
ção histórica da classificação permitiría reagrupar entida­
des e processos anteriormente distribuídos de modo dife­
rente, segundo o critério dos “fatores ou causas isoladas”
e a lógica de localização anatômica ou fisiopatológica. Nesta
uesma linha de raciocínio surge a idéia proposta por Cas­
ei (136), baseada em estudos epidemiológicos efetuados nos
istados Unidos, de se colocar numa mesma classe, por
exemplo, a tuberculose, a esquizofrenia e o suicídio, pois
expressam os mesmos processos de base e afetam o mesmo
tipo social. No entanto, a classificação vigente coloca a es­
quizofrenia junto com a psicose maníaco-depressiva no com­
partimento das psicoses, embora, segundo o mencionado
autor, elas se relacionem com distintas condições. A per­
gunta é, portanto: o que priorizar? A localização orgânica
de seus trantornos ou sua semelhança social? O adequado
é, seguramente, atribuir a cada classificação a extensão ex­
plicativa correspondente, porém, não continuar suprindo
a carência que assinalamos com a arbitrária extrapolação
da clínica ao domínio das determinações principais e dos
processos mais gerais, que devem ser conhecidos para se in­
terpretar e atuar no campo da saúde-doença.
No terreno da agregação ou reagregação dos processos
biológicos singulares, que atualmente se reduz, infelizmen­
te, à questionada Classificação Internacional de Doenças,
poucas propostas alternativas foram publicadas a respeito
de uma nova agregação, o que parece indicar que há pouco
trabalho teórico sobre este problema. Existem trabalhos co­
mo o de Ruy Perez (137), que analisam, com um enfoque
FICÇÕES DO USO CONVENCIONAL... 155

historiográfico, as distintas classificações prévias à CID, tais


como a de Linneo (1763), que parte também de um critério
clínico, e a de Burnet (1968), que esboça uma divisão mais
epidemiológica, porém muito simples, entre as doenças por
interação com o meio ambiente e as denominadas constitu­
cionais. De sua parte, Perez propõe uma classificação da­
da pela tendência secular das entidades, separando-as em
doenças “constantes” (sempre presentes e que conservaram
sua própria “história natural”, como diabetes mellitus, gota
e tipos de câncer); “variáveis” (que se modificaram de for­
ma dramática, quase sempre cronificando-se, como sífilis,
hanseníase e tuberculose); “históricas” (que existiram e logo
desapareceram durante épocas, como a varíola, poliomie-
lite e febre amarela); e as doenças “novas” (AIDS, doença
de Minamata, doença de choque tóxico, devendo-se acres­
centar a recentemente descrita síndrome de fadiga crônica,
etc.). Porém, as caracterizações propostas não são tão-
somente erradas, mas também, no terreno biológico, não
dão conta de todos os processos que devem ser levados em
conta para classificar a instância particular do biológico.
Em um capítulo posterior, esboça-se uma explicação dis­
tinta do processo saúde-doença no qual se coloca que a de­
terminação epidemiológica está dada por um sistema de con­
tradições complexo, multidimensional e hierarquizado que
ocorre tanto em processos de ordem geral, em processos par­
ticulares da reprodução social das classes e grupos e em pro­
cessos singulares que correspondem à reprodução do parti­
cular ou do indivíduo em seu cotidiano, quanto nos pro­
cessos fisiológicos e fisiopatológicos que ocorrem no fenó-
tipo e genótipo dos indivíduos. Deste modo, uma classifi­
cação exaustiva deve levar em conta: 1) em primeiro lugar,
a classificação dos determinantes (junto à dos processos fi­
nais) para assegurar as possibilidades de ação; 2) em segundo
lugar, não deve se reduzir a uma classificação clínica de pro­
cessos mal denominados causas-de-doenças, mas deve tam­
bém classificar a qualidade de vida biológica ou natural-
animal subjacente, classificando os fenótipos e os genóti-
pos em relação à qualidade de vida social dos diferentes gru­
pos, que também atuam como mediadores importantes na
156 JAIME BREILH

produção de estados de saúde-doença. Isto implica não so­


mente classificar o pólo “negativo” da doença como tam­
bém o pólo saúde ou potencialidade biológica que teria uma
população; e 3) por último, deve-se agregar o que é mórbi­
do segundo critério epidemiológico (segundo a determina­
ção) e não segundo o critério clínico (anatomofisiopatoló-
gico) somente.
Nesta última direção apontam algumas idéias prelimi­
nares do autor, apresentadas numa discussão acerca da
Classificação Internacional e aplicadas em trabalhos de epi-
demiologia geográfica no Equador, em que se reclassifi-
cam ou recodificam os processos da CID para formar agre­
gados regionais ou distritais, segundo uma matriz de clas­
sificação formada, por um lado, pelos Tipos Regionais ou
Sociogeográficos do espaço em estudo e os Tipos de For­
ça de Trabalho Existentes Segundo Inserção Social e Graus
de Consciência-Organicidade e, por outro lado, pelos 77-
jos de Processos Biológicos que se encontram nos indiví-
iuos, separando estes últimos de acordo com o Tipo de
Desenvolvimento-Deterioração que ocorre nas dimensões
do perfil de reprodução social: a) processos principalmen­
te relacionados ao desenvolvimento/deterioração no domí­
nio básico do trabalho e do consumo e das condições na­
turais externas (meio geoecológico); b) processos agudos
ou de latência média, principalmente relacionados com so­
brecarga tensional e formas de desenvolvimento/deterio­
ração no domínio ampliado do trabalho e do consumo;
c) processos vinculados ao grau de solidariedade/violên-
cia por agressão direta intencional (tanto a de origem
militar-paramilitar como a de tipo delinqüencial e a vio­
lência familiar conjugal); d) processos relacionados à se-
gurança/acidentalidade, com destruição ou trauma, alea­
tórios em contextos de estruturação específica (no espaço
de trabalho produtivo, no espaço doméstico e do cotidia­
no e no espaço e vias de comunicação); e) processos dege­
nerativos, de latência prolongada, vinculados a distintos
problemas do perfil de reprodução social (com suas me­
diações, tais como ritmo de exercícios e de exposição ao
FICÇÕES DO USO CONVENCIONAL... 157

meio natural, dieta, stress e contaminantes); f) outros e não


classificáveis.
Esse esboço de propostas agora apresentado parte de uma
concepção radicalmente distinta do conteúdo e critério de
classificação. Recupera a visão epidemiológica e dialética
dos processos e parte do fato de que a contradição saúde-
doença expressa-se no sentido de que todos estamos e so­
mos sempre doentes. O que se reconhece convencionalmente
como estado de saúde é a capacidade de estar ativo e assin-
tomático e, contrariamente, reconhece-se como estado de
doença a condição inversa; porém, isto não quer dizer que
o predomínio externo ou ostensivo do pólo saúde ou do pólo
doença signifique que não há deterioração ou transtornos
em evolução, no primeiro caso, e capacidades vitais e pro­
cessos saudáveis, no segundo caso. Nos estenderemos mais
tarde sobre uma consideração mais ampla a respeito.

AS ILUSÕES ESTATÍSTICAS
O incisivo George Bernard Shaw, em seu magistral Pre­
fácio sobre Médicos (138), retratou, com a refinada ironia
que caracterizou seus escritos polêmicos, as ilusões da efi­
ciência dos sistemas curativos de atenção médica, baseados
na suposta precisão das estatísticas, e denunciou, em etapa
muito precoce do desenvolvimento desses sistemas, a vul­
nerabilidade do público ante à manipulação das estatísti­
cas de saúde. Sua abordagem geral mais significativa nesta
linha de questionamento referiu-se a dois aspectos sobres-
salentes: a eficácia das médias e a confusão da eficácia clí­
nica com o efeito de variações econômico-sociais.

A redução empírica do conceito


“Variação” (Variável)
Um argumento característico da investigação em saúde,
que resulta de sua predominante fundamentação positivis­
ta, é o da necessidade de mensuração e comprovação ma­
temática dos fatos observados e de sua variação.
158 JAIME BREILH

Não se pode negar a importância da ponderação quanti­


tativa em algumas instâncias da investigação, porém, é to­
talmente incorreto colocá-la como princípio inseparável das
ciências da saúde. Pode-se alcançar objetividade e certeza
na investigação empregando leis qualitativas que regem os
processos, e pode-se ser altamente subjetivo sob a fachada
de fina precisão com leis estatísticas.
No âmago da discussão que agora propomos situa-se a
importância de reconhecer que existe uma relação dialética
entre as leis históricas e as leis estatísticas, isto é, entre a
necessidade histórica e a probabilidade. Esta relação e ou­
tras considerações pertinentes encontram-se no capítulo cor­
respondente à delimitação dos processos que constituem a
saúde-doença (Parte II), porém queríamos somente desta­
car, neste ponto, algumas considerações.
Se com fins concretos delimitamos, por exemplo, duas
variáveis e queremos observar suas mudanças concomitan-
ss, será indispensável efetuar uma análise de regressão e
azê-lo com precisão de frações. Se fosse o caso de elabo-
ar um diagrama para a predição do aumento de peso em
crianças de certa idade, a partir do conhecimento de seu peso
ao nascer, temos que utilizar as leis estatísticas de correla­
ção e calcular matematicamente uma linha de predição. Em
outra oportunidade poderiamos examinar o estudo de duas
ou mais variáveis independentes com relação a uma princi­
pal dependente e, neste caso, empregar uma análise de re­
gressão múltipla para cuja elaboração seria indispensável
usar o recurso da computação eletrônica; e assim por dian­
te, poderiamos dar infinitos exemplos do uso das leis da pro­
babilidade no estudo das variações que se observam no cam­
po da clínica experimental ou do estudo de associaçõees epi-
demiológicas empíricas, que tenham sido esboçadas sujei­
tas a um marco de referência lógico-histórico previamente
delimitado e com fins de comprovação empírica ou de pla­
nejamento específico.
A variação oU transformação constante que é estudada
na forma de variáveis é uma característica essencial e per­
manente de todos os processos, porém a variação que as
determina está sujeita a diversos tipos de leis. Umas, as fun-
FICÇÕES DO USO CONVENCIONAL... 159

damentais, constituem a determinação histórica, global e


específica das classes sociais; outras definem as expressões
de variações manifestas, empíricas ou individuais. As leis
da probabilidade e a variação estatística se colocam entre
estas últimas e, por isso, deve-se sujeitar sua interpretação
e uso às leis do primeiro tipo; lamentavelmente, na investi­
gação epidemiológica e na exploração das “causas” de doen­
ças, extrapolou-se a capacidade explicativa das leis da pro­
babilidade a processos cujas determinações ultrapassavam
o simples condicionamento probabilístico.
A estatística não é um critério definitivo e único da ver­
dade na investigação dos processos, mas sim um instrumento
auxiliar para o conhecimento de suas expressões formais.
Permite-nos estabelecer nuances de forma, diferenças de
quantidade, concomitância nas variações, porém ao
empregá-la não devemos perder de vista que as mudanças
estatísticas encontram-se, por sua vez, determinadas por
transformações ou variações qualitativas. O conhecimento
desses matizes formais tem importância, pois nos permite
efetuar a aproximação e reaproximação dialética com o con­
creto empírico, porém sempre a partir de pressupostos teó­
ricos e do conhecimento das leis qualitativas gerais dos pro­
cessos. A compreensão do concreto é, de sua parte, indis­
pensável na fase de ação, para aplicar a teoria da organiza­
ção e delinear estratégias.
Na prática investigadora se dá uma evidente correspon­
dência entre o marco teórico que inspira o trabalho e a si­
tuação que nele se concede à análise quantitativa. Por isso,
a fragmentária visão positivista, que rompe o fato social
em partes, uma das quais é a saúde e também divide esta
última em categorias particulares, termina com uma longa
lista de fatores ou variáveis que manifestam-se, deste mo­
do, como se fossem autônomas e independentes e sem ne­
nhuma hierarquização explicativa.
Rajs e Mercer (139) comentaram com acerto as falácias
dessa “teoria dos fatores”. Para eles, a investigação médi­
ca convencional não soube discriminar as diferentes dimen­
sões e hierarquias da determinação dos fenômenos ou ex­
pressões formais e, por isso, não pôde reconhecer o diferente
160 JAIME BREILH

status das variáveis estruturais e o das variáveis biológicas.


A investigação quantitativa revestida da complexida­
de matemática serviu para que se tirassem conclusões irre­
levantes que, aparentando seriedade, nada acrescentam ao
conhecimento dos problemas sociais (por exemplo, saúde-
doença)”. “... O sentido de tal ciência se reduz a constituir
equivalentes dos fatos observados (modelos lógicos), o que
exclui a possibilidade de formular juízos sintéticos acerca
da essência dos processos, e supervaloriza, por conseqüên-
cia, a busca de modelos matemáticos e de instrumentos des­
critivos precisos. Termina-se na substituição da análise da
I
realidade pela análise de suas aparências, simplificando desta
maneira não somente os métodos de investigação como tam­
bém a própria realidade”. (140)
Esta vigilância crítica dos limites da análise matemática
não pretende “satanizá-la”, mas sim enriquecê-la, recolo­
cando seu domínio explicativo.

'ARIAÇÃO SOCIAL E VARIAÇÃO INDIVIDUAL


Ao considerar o fato epidemiológico em sua integrida­
de, reconhecemos uma dimensão geral histórica da varia­
ção ou da transformação, expressões particulares e indivi­
duais da mesma. Laurell e colaboradores, em sua investi­
gação sobre a prevalência de períodos da morbidade em dois
povos mexicanos (141), demonstraram o maior peso das va­
riações estruturais (ex: acesso a terra, controle das condi­
ções da produção, extensão do trabalho assalariado) sobre
a morbidade do que o das variações biológico-individuais
(ex: idade, sexo), ambientais (ex: habitação, qualidade da
água, tratamento de dejetos) e assistenciais (ex: oferta de
serviço médico, utilização do centro de saúde).
No estudo mencionado ficou demonstrada a viabilidade
metodológica da complementação do estudo de leis quali­
tativas fundamentais que permitam selecionar e interpre­
tar os fenômenos estatísticos de associação e casualidade.
Seu ponto de partida foi o estudo da especificidade históri­
ca dos povos em questão, definida por sua articulação par-
FICÇÕES DO USO CONVENCIONAL... 161

ticular com o desenvolvimento agrícola mexicano, identifi­


cando por meio dessa análise a ocorrência de certos pro­
cessos críticos, cuja interpretação permitiu definir as variá­
veis mais importantes e interpretar o significado real dos
indicadores. Uma das comprovações mais evidentes de tal
estudo foi que os indicadores não têm um valor ou signifi­
cado únicos, mas sim que um mesmo indicador pode ex­
pressar fenômenos sociais diferentes. Assim, por exemplo,
indicadores tais como “renda” e “nível de instrução”, aos
quais se atribuiu convencionalmente um peso decisivo so­
bre o nível de mortalidade, não apareceram como tal quando
se distribuíram as observações e se executou a análise de
acordo com as variáveis vinculadas com a produção e pro­
priedade. Não houvesse partido o grupo de Laurell da aná­
lise histórica, não poderia ter reconhecido os condicionan-
tes verdadeiros da morbidade das duas populações.
Se o estudo da variação epidemiológica se aprofunda e
se estende ultrapassando o plano empírico, necessariamen­
te tem que se ampliar o espectro das variáveis de uso epide-
miológico, porque neste caso não são suficientes as classi­
ficações convencionais. Ademais, no próprio plano das va­
riáveis convencionais, deve-se aperfeiçoar o quadro de op­
ções que a epidemiologia tem utilizado.
Deste ponto de vista será importante estabelecer uma clas­
sificação geral das variáveis epidemiológicas que leve em
conta os seguintes aspectos: a dimensão da variação obser­
vada (processos “gerais”, como o desenvolvimento das for­
ças produtivas, o avanço histórico das relações sociais, as
mudanças na composição social de uma formação, as trans­
formações políticas e ideológicas; processos “particulares”,
como as formas especiais de produção e consumo das clas­
ses sociais, a mudança dos perfis epidemiológicos de tais
grupos, as formas especiais da prática em saúde; e os pro­
cessos “individuais”, tais como o trabalho-consumo indi­
vidual, a participação e consciência individuais, as varia­
ções funcionais dos órgãos e aparelhos do indivíduo); as ca­
racterísticas da variação (processos de mudança qualitati­
va, de mudança quantitativa, discreta e contínua); e a hie­
rarquia que se dá à variável no plano empírico (variação
162 JAIME BREILH

indiferente, variação dependente, variações adicionais ou


contextuais).
Ao concluir este comentário acerca do uso de variáveis,
devemos, em síntese, insistir a respeito da restrição forma-
lista que se impôs à epidemiologia. Restrição que nasce e
termina no enfoque estático e fracionado do positivismo e
que reduz os elementos e relações do mundo real a um rol
formal de variáveis.

A QUIMERA ESTATÍSTICA DO PROGRESSO


EM SAÚDE

É um fato indubitável que a observação e a análise esta­


tísticas constituem na atualidade um dos instrumentos mais
necessários da investigação em saúde. O enorme desenvol­
vimento experimentado pelas forças sociais de produção de-
erminou a possibilidade de permitir o conhecimento de suas
ariações, o que somado ao desenvolvimento paralelo da
omputação possibilitou um aumento da factibilidade da
medição quantitativa e precisa dos fenômenos da saúde.
O objeto da estatística é detectar, medir e analisar a va­
riação dos componentes de certos conjuntos, porém ”... co­
mo a informação obtida dos conjuntos é uma redução, um
resumo, é possível obter resultados enganosos se não os in­
terpretarmos com a precaução necessária ou se não se com­
preender com clareza o significado das medidas estatísticas
com suas limitações e alcances”. (142)
O problema das imagens enganosas que a estatística po­
de fornecer não é somente questão da qualidade do regis­
tro, da oportunidade da emissão de informação ou de ou­
tras falhas técnicas que podem ocorrer, mas sim é funda­
mentalmente um problema de desconhecimento da jurisdi­
ção real das leis em que se baseia a estatística e do limite
da capacidade interpretativa dos processos.
O cerne do problema constitui-se pelo desconhecimento
de que as leis da probabilidade, nas quais se baseia a análi­
se das distribuições estatísticas que empregamos, são for­
mas de determinação aleatória dos processos, as quais não
FICÇÕES DO USO CONVENCIONAL... 163

se aplicam ilimitadamente ao “conjunto” social, uma vez


que estão elas próprias determinadas por outras leis de maior
nível hierárquico, que dirigem o mesmo “conjunto”.
Isto equivale a dizer que as leis histórico-sociais impõem
limites à validade explicativa da probabilidade matemática
e das leis que fundamentam as distribuições estatísticas. As­
sim, por exemplo, a aplicação de distribuições de freqüên-
cia às observações de saúde e doenças, feitas numa forma­
ção social, e o cálculo de taxas e médias devem reconhecer,
primeiramente, as grandes determinações sociais quantita­
tivas, sua distribuição no espaço social, a sua própria va­
riação histórica e, somente então, pode-se validar a aplica­
ção desses indicadores e ponderar a significação dos mes­
mos. Na Parte II retomaremos esta discussão.
Vejamos agora o quanto é certa a afirmação de que em
nossos países está se conseguindo um processo integral no
campo da saúde, medido pela evolução de médias calcula­
das à base de distribuições estatísticas gerais ou nacionais.
Ao iniciar esta exemplificação crítica, é importante que
mencionemos aspectos históricos acerca do emprego das
mais freqüentes técnicas que se utilizam para a observação
da mortalidade, com a finalidade de compreender de que
modo a precoce orientação “comercial” do uso destes in­
dicadores pôde ter contribuído para modelar uma forma es­
pecífica e tendenciosa de desenvolvimento técnico-estatístico.
As cifras de esperança de vida, por exemplo, que são um
resumo da mortalidade dos diferentes grupos etários de uma
população, calculadas sobre a base das chamadas tábuas
de vida, foram originalmente elaboradas e utilizadas pelos
atuários com o propósito de calcular o valor das apólices
de seguro de vida. O interesse dos estatísticos que levaram
a cabo estes cálculos não foi primordialmente o conheci­
mento das diversas expressões da mortalidade num conglo­
merado social, mas sim a mensuração média da vida do se­
gurado. Evidentemente, a lógica do atuário não é a mes­
ma, neste caso, que a do epidemiólogo, porém em muitas
ocasiões ela é aplicada indiscriminadamente.
A utilização isolada de mortalidade infantil como um im­
portante indicador do “bem-estar social” também surgiu
164 JAIME BREILH

vinculada à produção capitalista. O investigador Wilkins


(143) desenvolveu para uma empresa de publicidade comer­
cial, em princípio da década de cinqüenta, um índice cal­
culado na base da técnica de regressão múltipla, que per­
mitia medir a capacidade de consumo de diferentes cidades
e áreas urbanas, empregando uma equação que somava co­
mo fatores de regressão: 1) a recíproca da mortalidade in­
fantil; 2) o logaritmo dos valores de certas propriedades;
3) a taxa de ilegitimidade; e 4) o logaritmo do número de
automóveis privados. Mediante o uso desta fórmula de re­
gressão, qualificavam-se as cidades com o fim de “... cor­
relacionar uma estimativa da classe social destes setores com
cifras de venda, ou com o fim de selecionar áreas para
provas-piloto na venda de novos produtos”. (144)
Muitos termos empregados no delineamento e análise de
experimentos clínicos, tais como plot ou block, originaram-
e em experimentos para o desenvolvimento agrícola. Des-
i forma poderiamos seguir enunciando casos que corro-
oram a relação que existiu entre o avanço das técnicas es-
.atísticas no terreno econômico e sua posterior extrapola­
ção para a investigação médica. Não se poderia questionar
a conveniência e utilidade dessas técnicas, porém, em con­
trapartida, devem-se criticar tanto aplicações que transgri-
dam a ordem das leis que determinam os processos vincu­
lados com a saúde quanto usos isolados em relação aos fe­
nômenos unitários e dinâmicos do contexto.

O que Escondem as Médias?

Os resultados de várias investigações comprovam que os


processos biológicos, sendo parte da unidade social global,
participam das determinações que regem a mesma e que,
portanto, quando os estudamos como variáveis, não se de­
ve proceder diretamente à sua distribuição estatística, mas
sim a um ordenamento sociológico prévio.
Para a consciência de muitos médicos e profissionais da
saúde que foram formados sob os cânones do positivismo
e da restrita visão da clínica ortodoxa, será inaceitável a pro-
FICÇÕES DO USO CONVENCIONAL... 165

posição da unidade do social e do biológico, bem como da


hegemonia do primeiro sobre o segundo. Nós ansiamos cor­
roborar isto com vários exemplos, que nos servirão para de­
monstrar de que modo as variações do biológico se sujei­
tam às variações sócio-históricas.
A esfera genética, que parecería ser o reduto da autode­
terminação biológica do biológico e do ser humano em seu
crescimento e desenvolvimento, embora exerça sua própria
determinação sobre o somático e o funcional, contém to­
davia elementos que a relacionam com as formas mais ge­
rais de determinação. Stern (145) explica que os processos
extragenéticos ocasionam mudanças tanto definitivas, no
conteúdo da mensagem hereditária (mutações), quanto na
expressão e penetrância dos caracteres hereditários. O mes­
mo autor registra a existência de gens modificadores (inibi-
tórios e estimulantes), que veiculam o conjunto de influên­
cias dos processos condicionantes.
As características de processos como o imunológico, por
exemplo, tampouco escapam do ordenamento social. Mau-
rice Backett, em seu trabalho sobre “Os Padrões Sociais dos
Anticorpos Anti-Poliovirus” (146), relatou os resultados de
sua investigação em 287 crianças irlandesas, classificando
os valores de leitura sorológica numa escala crescente de 0
a 3 cruzes, e analisando a distribuição dos achados segundo
classe social e outras variáveis sociais, encontrou uma clara
distribuição social dos mencionados anticorpos.
Fazendo referência à mortalidade por “causas relaciona­
das com a classe social”, podemos citar como exemplo as
estatísticas de mortalidade de homens na Inglaterra, segun­
do sua situação social (a classificação inglesa, em alguma
medida, aproxima-se de uma definição científica de classes
sociais, uma vez que seus grupos estão assim constituídos:
I e II correspondem aos grupos empresariais e profissionais;
III trabalhadores de alta qualificação; IV e V trabalhadores
de baixa qualificação), (ver Tabela 1) Para a confecção do
quadro selecionamos somente algumas causas, porém, na
tabela global podia-se verificar que apenas 30% do total de
“causas” da Classificação Internacional consideradas não
mostraram um claro gradiente de distribuição social.
166 JAIME BREILH

TABELA 1

RAZÕES PADRONIZADAS DE MORTALIDADE


PARA CERTAS “CAUSAS”, SEGUNDO ESTRATO SOCIAL
EM HOMENS, INGLATERRA E PAÍS DE GALES, 1959-63

ESTRATOS SOCIAIS
CAUSAS I II III IV V

TUBERCULOSE 40 54 96 108 185


CÂNCER DE ESÔFAGO 80 89 96 98 151
CÂNCER DE ESTÔMAGO 48 63 101 114 163
CÂNCER ÓSSEO 74 87 109 91 112
FEBRE REUMÁTICA 40 67 85 113 207
ÚLCERA GÁSTRICA 46 58 94 106 199
ARTRITE REUMATÓIDE 43 79 112 83 115
ACIDENTE VEÍCULO A MOTOR 72 78 103 107 157
ACIDENTE DOMÉSTICO 95 78 81 104 226
ONTE: The Registrar General Deccenia on Occupational Mortality, 1971.

Um trabalho de desmitificação estatística muito extenso


e valioso foi realizado por Antonosky (147) a respeito dos
processos cardiovasculares maiores. A importância de seu
estudo consiste principalmente em que indica o comporta­
mento histórico das doenças, e que uma mesma doença po­
de ter uma significação e distribuição social diferentes, de
acordo com o condicionamento dos mutáveis processos es­
truturais da sociedade na qual se produz; observação que
se perdería sob o enfoque da mistura de populações de dife­
rentes setores sociais, sob médias. O autor mencionado de­
monstrou que a doença coronariana mudou em seu gradiente
social, posto que enquanto as etapas prévias do processo his­
tórico de países como os Estados Unidos mostravam maior
incidência nos “grupos abastados”, as novas condições es­
tão determinando uma crescente viragem deste padrão e uma
incidência mais significativa nos setores populares.
A impressão melhorada sobre as condições de saúde que
se produz com os valores médios, fragmenta-se quando os
rompemos de acordo com categorias reais de análise social.
Hugo Behm obteve esta ruptura trabalhando com os con-
FICÇÕES DO USO CONVENCIONAL... 167

dicionantes econômicos e sociais da mortalidade na Améri­


ca Latina, conseguindo superar as severas limitações da in­
formática oficial de nossos países. Por exemplo, calculan­
do cifras corrigidas de mortalidade nos dois primeiros anos
de vida, para o Equador, Behm (148) demonstra que não
é adequado efetuar somente a clássica comparação da mor­
talidade rural e urbana, mas sim que ao desdobrar cada uma
dessas mortalidades regionais médias em seus componen­
tes de acordo com as categorias que discriminem os óbitos
de crianças de diferentes grupos sociais, obtêm-se achados
muito interessantes. Assim ocorre ao demonstrar que a pro­
babilidade de morrer entre crianças de até dois anos, per­
tencentes aos setores urbanos de piores condições, é maior
que a correspondente às crianças do setor rural; isto é, o
dogma do progresso sanitário urbano não é consistente.
A quimera da evolução progressiva dos indicadores mé­
dios de saúde, em nossos países, também se desvanece quan­
do enfocamos a análise das tendências (variações no tem­
po) de taxas com critério histórico.
Machado, Castellanos, Bronfman e colaboradores colo­
caram em evidência, em sua investigação sobre Industriali­
zação, Estrutura Familiar e Saúde Materno-Infantil na Ve­
nezuela (149), que, embora na média tenha ocorrido uma
tendência geral descendente da mortalidade infantil, este não
foi um processo linear, mas sim que sofreu elevações e in­
flexões que não se explicam por artefato estatístico e que
mostram uma “... coincidência no tempo com fatos sociais
de grande transcendência...”
As tendências de alguns indicadores de mortalidade e de
morbidade, durante a última década, no Equador, deno­
tam um comportamento que não pode ser explicado de ma­
neira isolada com respeito ao contexto histórico e enfocan­
do a dimensão média de variação.
As flutuações dos níveis de mortalidade infantil durante
a última década, no Equador e nas diversas regiões e zonas
típicas do país, não podem ser explicadas de modo isolado
em relação ao contexto histórico e sem se decomporem os
agregados médios. Assim, por exemplo, acentuadas eleva­
ções da mortalidade pós-neonatal coincidem com anos de
crise econômico-social no período 1967-1972. (150)
168 JAIME BREILH

Do mesmo modo, o estudo de variações, tais como o com­


portamento diferencial da mortalidade infantil por causas
de variada inter-relação com os elementos do perfil epide-
miológico das populações, como as infecções preveníveis
e não-preveníveis por vacinação, requer um procedimento
analítico dirigido por um rigoroso marco teórico explicati­
vo. Igual exigência coloca-se no julgamento da diferença
nas reduções seculares da mortalidade pós-neonatal entre
países de diferentes conformidades sociais.
Por conseguinte, o problema não se reduz somente a ob­
servar tendências que indiquem a diminuição ou o aumen­
I to dos níveis de frequência de um processo; o verdadeiro
conhecimento necessita interpretar essas variações em rela­
ção aos processos mais gerais, que as produzem e regulam,
e explorar empiricamente as associações mais importantes
que corroborem (no plano empírico) as afirmações históri­
cas precedentes.
Como se poderia interpretar a correlação negativa entre
s salários reais e a mortalidade pós-neonatal, observada
a década do petróleo, no Equador? (ver Gráfico 1)
Quais seriam os elementos analíticos a se utilizar? Que
implicações tem uma formação social baseada num mode­
lo de acumulação de capital e de riqueza crescente, altamente
concentradora da renda e excludente do acesso a bens e ser­
viços sociais dos vastos grupos semiproletários?
Frente à adoção de uma visão epidemiológica mais inte­
gral surgem novos requisitos metodológicos necessários para
correlacionar o social e o biológico e dar uma explicação
rigorosa aos novos problemas colocados.
Se observarmos o Gráfico 2, poderemos constatar uma
correlação direta entre a variável produtividade econômica
e a mortalidade por doença isquêmica; chama a atenção uma
constatação dessa natureza, que sugere que os incrementos
do produto interno por habitante são acompanhados de um
incremento da mortalidade por doença isquêmica do cora­
ção. O problema colocado não pode ser resolvido com a
costumeira simplicidade do argumento de que a maior pro­
dutividade dos tempos “modernos” traz consigo condições
de desgaste psicossomático e a conseqüente deterioração car-
FICÇÕES DO USO CONVENCIONAL... 169

GRÁFICO 1
EVOLUÇÃO DA MORTALIDADE PÓS-NEONATAL SEGUNDO A RENDA
(EM SALÁRIOS REAIS). EQUADOR 1970-77

ÓBITOS/10’
Y 60-1 7-0,83
(p<0,01)
O
50-
o
O \O
40 \o
V = 80-0.037 X
O O
30-

600 800 1000 1200 X


N? de sal (s/70)

FONTE: BREILH e GRANDA “mortalidad y acumulación economica” — Ac-


tas Latinoamericanas de Medicina Social, México

GRÁFICO 2

EVOLUÇÃO DA MORTALIDADE POR DOENÇA ISQUÊMICA


DO CORAÇÃO COM A PRODUTIVIDADE DAS EMPRESAS

ÓBITOS/106
18-
16- O

O,
14- O/
O/ 7 = + 0,91
y = - 5,031 + 0,00294 x
12 - O/l (p<0,01)
/O1
10- O I
O I
8- O’ I
I
O
6 - I
I

4 - I
41 4 i
6000 8000 PIB/habit. (SUCRES = 1970)
170 JAIME BRAILH

diovascular. Esta relação concreta deve receber uma expli­


cação objetiva que enquadre as relações das duas variações
do estudo e explique por que a maior riqueza média, que
se expressa no indicador PIB/habitante, não é acompanhada
de condições harmônicas e permanentes de melhoria da
“qualidade de vida”.

OS INDICADORES MÉDIOS MASCARAM A CRISE

A deterioração da realidade social e de saúde na América


i Latina é um sinal vergonhoso de um sistema inumano e pa­
togênico por definição. A América Latina é um subconti­
nente onde a vida abre caminho em meio à agressão institu­
cionalizada e sistemática, onde a guerra de baixa intensida­
de colocada pelos ideólogos do conciliábulo da Santa Fé tem
projeções epidemiológicas, cujos efeitos ficarão inscritos na
ieterioração biológica e psíquica de várias gerações.
Os efeitos desta “guerra” epidemiológica, que cobra mais
idas e produz danos mais estáveis e geneticamente trans-
eríveis do que os conflitos bélicos manifestos, são de difí­
cil demonstração imediata com a força que seria necessá­
ria para despertar consciências. É um processo subterrâ­
neo, subjacente, de decomposição e desgoverno, que afeta
a vida humana, destrói a natureza, degrada o Estado, mi­
na a vontade política e a própria inteligência de nosso po­
vo, sem produzir vestígios que se façam sempre e direta­
mente evidentes.
Algumas mentalidades tecnocráticas argüiram que, por
não se haver estabelecido, por comparação com outras épo­
cas, o incremento relativo dos índices de danos à saúde dos
anos 80, não haveria deterioração demonstrada. Porém, os
critérios de validação da ciência são outros. De acordo com
o máximo horizonte de visibilidade de uma determinada épo­
ca haverá deterioração sempre que as maiores potenciali­
dades para a conservação e aperfeiçoamento da vida e saú­
de, que sejam possíveis de acordo com o desenvolvimento
científico e tecnológico, não estejam se efetivando e
estendendo-se ao alcance da maior parte da população.
FICÇÕES DO USO CONVENCIONAL... 171

Na América Latina, onde o predomínio e a acumulação


de condições destrutivas envelhecem e rebaixam a vitalida­
de máxima possível, há deterioração da vida. Nesta direção
aponta o trabalho de Escudero (151), no qual se mostra que
ao final dos anos 70 teriam sido evitadas mais de 500.000
mortes infantis na América Latina se lhes tivessem sido ofe­
recidas as mesmas condições de vida que em Cuba, no mes­
mo período. O mesmo ocorre em outros grupos de idade.
Está demonstrado que os indicadores globais não só ofe­
recem uma grande dificuldade para evidenciar efeitos epi-
demiológicos, como os da crise, mas também podem pro­
duzir uma imagem contrária. Basta ver a suposta imagem
de melhoria da mortalidade infantil e geral, do princípio
ao fim de década, que os dados de numerosas investigações
traduzem mesmo quando os outros indicadores de produ­
tividade e de gasto público em saúde denotam estancamen-
to ou regressão.
O caso é que a saúde-doença não deve ser estudada so­
mente pelos efeitos terminais, como a morte; é necessário
também explicitar os processos que a produzem e explicam
sua distribuição nas populações de distinta inserção social.
Deve-se examinar, como se explicou anteriormente, o mo­
vimento determinante da reprodução social em todos seus
domínios, com respeito aos processos fisiológicos e psíqui­
cos da vida, no meio dos quais abre caminho a saúde-
doença. É necessário saber além disso que, quando se re­
corre ao uso de indicadores desses feitios, deve-se aprofun­
dar numa análise inter-regional e interclasses.
Um exemplo da distorção que se pode produzir com in­
dicadores médios na análise das condições de saúde é a va­
lorização do comportamento da mortalidade infantil no
Equador para o período de 1972-80, que corresponde ao
auge da era do petróleo. Neste lapso, a taxa nacional decli­
nou continuadamente de 82/1000 nascidos vivos até 64/1000
nascidos vivos, isto é, 22%, fato que fundamentou um dis­
curso oficial triunfalista. Porém, além do fato de que o rit­
mo de descenso diminuiu ao final do período, encontrou-
se, ao analisar-se a dita evolução no interior dos 103 can-
tões (pequenas jurisdições estudadas) do país, que só em
3% destes a mortalidade infantil descendeu, enquanto em
172 JAIME BREILH

em 66% esteve estancada e em 31% dos cantões aumentou


significativamente neste mesmo período. Igual constatação
estabeleceu-se para a mortalidade das mulheres em idade
produtiva (do país), nos anos da crise (1980-1987). A mor­
talidade feminina por deterioração básica aumentou em 33%
dos cantões e a relacionada com formas modernas de dete­
rioração aumentou em 57% dos cantões. Dissipa-se então
a imagem de um progresso consistente e encontra-se a he-
terogeneidade do impacto da crise.
A investigação deverá esclarecer os padrões diferenciais
de impacto nos países de diversos tipos e, no interior des­
t tes, a acumulação de problemas específicos; porém, com
as informações disponíveis, podem-se estabelecer algumas
conclusões:
— Os dados quantitativos de saúde, taxas e outros indi­
cadores não falam por si mesmos. Dois níveis ou quantida­
des semelhantes podem traduzir tendências diferentes na evo­
lução da qualidade de vida subjacente. As taxas de morta-
idade infantil da Nicarágua (69/1000 n.v.) e do Equador
57/1000 n.v.), para 1985, quantitativamente semelhantes,
,êm significados epidemiológicos muito diferentes. A pri­
meira significa um ponto de uma curva marcadamente des­
cendente (em que pese a crise, numa Nicarágua onde se con­
solidavam importantes conquistas sociais, nos anos iniciais
da revolução, prévios à guerra suja); enquanto a segunda
é um índice de um período de estagnação de um qüinqüê-
nio tomado pela crise, numa formação dependente, onde
havia tocado fundo a fugaz bonança do petróleo.
— Existe heterogeneidade na distribuição quanti-
qualitativa dos efeitos epidemiológicos da crise, a mesma
que aprofunda as desigualdades inter-regionais e entre as
classes sociais.
— A crise freia a queda dos índices de morbidade e de
mortalidade ou, inclusive, incrementa-os nas regiões e classes
sociais mais atingidas. Processos como a malária, a tuber­
culose e a febre tifóide, que haviam sido controlados, co­
meçam a reaparecer nos países mais pobres e nas zonas mais
depauperadas dos países relativamente desenvolvidos. As
entidades mórbidas associadas com o impacto moderno (tais
FICÇÕES DO USO CONVENCIONAL... 173

como isquêmicas do coração, gastrite e úlceras, mentais, psi-


cossomáticas, suicídio e violência) tiveram sua incidência
aumentada no decênio. Há um sub-registro sistemático dos
processos relacionados ao trabalho (“doenças
ocupacionais”).
— A crise modifica o ritmo de recomposição da estrutu­
ra de morbidade e de mortalidade, determinando a incor­
poração mais ou menos rápida dos componentes “moder­
nos” da doença e morte, segundo as condições das diferentes
sociedades.
— A crise produz efeitos epidemiológicos cujo tempo de
latência não permite demonstrar uma relação direta no tem­
po. Implica uma acumulação de processos destrutivos que
se refletirão na população em épocas posteriores e que afe­
tarão as características biológicas hereditárias. Neste senti­
do, a crise hipoteca o futuro epidemiológico.

A ENGANOSA DEFINIÇÃO PSICO-ANTROPOLÓGICA


DAS “NECESSIDADES” EM SAÚDE

O que fazer profissional na saúde e o planejamento polí­


tico das ações relacionadas com o mesmo têm como ponto
básico de partida a definição das necessidades que emanam
da situação atual de uma determinada sociedade, e de aspi­
rações que se pretende cumprir para elevar uma certa si­
tuação desejada.
O Estado burguês define e implementa as necessidades
sanitárias em plena congruência com os interesses dos se­
tores hegemônicos e, naturalmente, ao fazê-lo se opõe ao
avanço da conquista social das verdadeiras necessidades.
Ao abordar, em capítulo posterior, a idéia de perfil epi-
demiológico, esboçaremos uma alternativa para a compreen­
são da necessidade em saúde; porém, para isto, é indispen­
sável neste momento desmascarar as falsas premissas em que
geralmente se sustentam as teses reformistas e populistas so­
bre a saúde.
O enunciado central do modo burguês de progresso e
bem-estar é que, se se obtém um incremento de produtivi-
174 JAIME BREILH

dade, pode-se conseguir a satisfação das necessidades so­


ciais e, entre elas, as de saúde. Tal tese se afirma na suposi­
ção de que as maiores taxas de investimento produtivo pro­
duzem como resultado o aumento do produto interno bru­
to (PIB), o qual assegura uma extensão de benefícios para
a população, que se reflete no aumento da renda per capi­
ta. Continuando com a orientação deste modo de pensar,
afirma-se que o aumento médio da renda per capita ratifi­
ca o das condições de vida e, por conseqüência, a satisfa­
ção das necessidades. Vejamos o que nos dizem os resulta­
dos de algumas investigações sobre esta tese capitalista.
Se a afirmação traçada é correta, dever-se-ia esperar en­
tão que, naquelas regiões em que a produtividade média é
maior e o processo de modernização mais acelerado, os in­
dicadores de doença mostrassem níveis menores. No entanto,
a evidência científica contradiz tal suposição capitalista, pos­
to que, sob certas circunstâncias, o desenvolvimento con­
centrador da acumulação de capital determina a crescente
exclusão dos mais amplos setores populacionais do usufru-
o da riqueza social gerada, bem como a deterioração de
eu processo de reprodução social, com o respectivo impacto
ia esfera da saúde. Assim o demonstram estudos como o
de Evaluación de la Mortalidad Infantil en la República Me­
xicana; 1930-1970 (152), em que se estabelece que os esta­
dos de maior desenvolvimento produtivo capitalista deno­
tam piores tendências na mortalidade infantil durante o pe­
ríodo coberto pelo estudo.
O clichê político utilizado comumente, quando se pre­
tende demonstrar consciência sobre as necessidades popu­
lares no terreno da saúde, consiste na menção da lista de
“serviços”, de recursos de alimentação e na luta para con­
seguir o aumento do orçamento familiar. Porém, muitos
estudos, como os de Laurell (153), conseguiram demons­
trar que essa satisfação parcial do consumo não apenas não
se associa ao verdadeiro bem-estar como também, em cer­
tas ocasiões, correlaciona-se com o recrudescimento de al­
guns padecimentos.
No ensaio de Bader, acerca do papel das corporações mul­
tinacionais produtoras de leites maternizados na abolição
do aleitamento materno, cita-se um estudo efetuado pela
FICÇÕES DO USO CONVENCIONAL... 175

Universidade de Harvard (154), em 15 comunidades rurais


do Chile, mediante o qual se observou que os maiores índi­
ces de mortalidade pós-neonatal encontram-se nas famílias
de mais alto nível de renda, com melhores condições sani­
tárias, com mais altos níveis de escolaridade e cujas mulhe­
res gestantes haviam visitado o médico durante sua gravi­
dez. A conclusão final da investigação foi que o “...caso
do Chile demonstra que os mais altos padrões de vida, de­
finidos segundo termos econômicos convencionais, não se
associam, necessariamente, com uma melhor qualidade de
vida dos indivíduos e das famílias de países subdesenvolvi­
dos”. (155) Os investigadores latino-americanos que cita­ i

mos anteriormente, como Cristina Laurell, já evidenciaram


o porquê desta aparente incongruência do desenvolvimen­
to capitalista, que coloca claramente a contradição entre
o avanço produtivo e a satisfação das necessidades dos I
trabalhadores.
A panacéia da expansão dos serviços assistenciais e da
maior produção de medicamentos para o consumo foram
defendidos como “elementos de satisfação” fundamentais
no campo das necessidades de saúde. Mas, ante esta pro­
posição, também a evidência científica permitiu ponderar
mais realisticamente sobre a verdadeira capacidade de re­
colocar os limites e a verdadeira capacidade resolutiva dos
recursos clínicos.
Thomas Mckeown, autor de uma das investigações que
revolucionaram os conceitos da epidemiologia contempo­
rânea (156), comprovou que o declínio das tendências de
mortalidade por causas infecciosas, na Inglaterra e País de
Iil1
Gales, durante o período de 1838-1970, antecipou-se em mais
de cem anos à aplicação dos quimioterápicos, dos antibió­
ticos e da imunoprofilaxia. McKeown atribuiu seu achado
às transformações estruturais que a sociedade britânica ex­
perimentou ao longo do período que antecedeu à aplicação
das medidas assistenciais específicas. Deste modo, o recur­
so clínico, cuja validade relativa à solução de casos indivi­
duais não se pode negar, foi recolocado em sua importân­
cia como elemento ao qual se havia concedido maior signi­
ficação que a real, como uma necessidade da saúde coletiva.
176 JAIME BREILH

Em resumo, o que procuramos destacar é que as necessi­


dades não são demandas biológicas ou psicológicas fixas ou
metas constantes que se medem e satisfazem pelo consumo
realizado em certa quantidade, considerada como adequada.
A noção psico-antropológica das necessidades de saúde
reduz-se à crença de que são uma lista de aspirações e de
motivações, psicológicas, ou demandas psicofuncionais sur­
gidas em indivíduos livres e isolados, que são regulados pe­
la “cultura”.
Godard sustenta que, no fundo disto tudo, reside a ten­
dência da noção de necessidade de substituir o conceito de
relação social (157); por isso, uma classe revolucionária deve
» saber distinguir entre práticas que respondem às necessida­
des reivindicativas de consumo, de tal modo que, as orga­
nizações que “... desenvolvem somente reivindicações di­
rigidas ao processo de reprodução da força de trabalho”
não atuam como organizações de classe, posto que para fazê-
lo devem ser “... portadoras de um sistema de necessida­
des que cubram o conjunto do processo de produção-
consumo...” (158).
As necessidades de saúde, em cuja definição e desenvol­
vimento o investigador deve trabalhar, não se deduzem de
uma lista fixa de consumos mínimos toleráveis, mas das de­
mandas que apareçam para transformar os processos noci­
vos que surjam como conseqüências das relações de pro­
dução nos âmbitos do trabalho, do consumo e da troca, as­
sim como para impulsionar o avanço das condições benéfi­
cas que apareçam em correspondência com o estado de de­
senvolvimento das forças produtivas.
SEGUNDA PARTE
Notas para uma Reinterpretação
Científica do processo Saúde-Doença

"A ciência do proletariado demonstra a sua superioridade precisamente


pela sua capacidade de incorporar essas verdades parciais produzidas pelas
ciências burguesas, superando-as dialeticamente, criticando e negando as suas
limitações de classe. A atitude contrária, que proclama tanto a infalibilida­
de a priori de toda ciência situada na perspectiva proletária quanto o erro
absoluto e necessário de toda investigação fundada sobre outro ponto de
vista, é, na realidade, dogmática e reducionista...
M. Lowy
I

I
4. Notas para uma reinterpretação
científica do processo
saúde-doença

A reinterpretação científica do processo de saúde-doença


coletiva, e por conseguinte, a afirmação de uma alternati­
va metodológica para seu conhecimento, são o desafio da
Epidemiologia contemporânea.
Mediante estas “notas” pretendemos chegar a uma sis-
tematização das categorias do materialismo científico, so­
bre as quais se deve manter uma linha de aprimoramento
teórico e metodológico da investigação da saúde-doença co­
mo processo particular do todo social.
No Esquema 4 se apresenta um resumo das oposições con­
1
ceituais, metodológicas e práticas que desenvolvemos par­
cialmente nos capítulos precedentes e que deverão servir para
estruturarmos uma alternativa no texto que se segue. É uma
síntese das contradições que pesam no campo epidemioló-
gico como expressão das contradições gerais da sociedade
e que o investigador deve conhecer e resolver na sua práti­
ca de investigação.

OS FUNDAMENTOS PARA UMA TRANSFORMAÇÃO


DO MÉTODO EPIDEMIOLÓGICO
Os trabalhos de Espejo, de Virchow e congêneres liberal- i
progressistas, em circunstâncias e de maneiras distintas, tra­
çaram os primeiros contornos da importância da determi-
180 JAIME BREILH

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NOTAS PARA UMA REINTERPRETAÇÃO CIENTÍFICA... 181

nação social na produção da saúde e doença, assim como


na distribuição por classes sociais dos riscos, prejuízos e po­
tencialidades de saúde. Foram as abordagens deste tipo que,
articulando-se ao interesse popular, inauguraram uma li­
nha progressista no desenvolvimento das ciências da saúde.
No entanto, quem estabeleceu as possibilidades efetivas pa­
ra uma profunda renovação do pensamento epidemiológico
na realidade, abrindo caminhos decisivos para a compreen­
são das leis que regem os fenômenos e a identificação das
categorias que permitiríam observar concatenadamente o bio­
lógico e o social, foram, sem dúvida nenhuma, Marx e Engels.
Em sua revisão crítica da filosofia clássica, Marx come­
çou a determinar, em 1844, que as condições de vida e rela­
ções superestruturais não podem ser compreendidas por si
mesmas, que “... a anatomia da sociedade deve ser busca­
da na economia política”.
Neste mesmo ano suas investigações levaram-no a deli­
near, de um modo geral, o famoso “fio condutor” de seus
estudos, por ele próprio definido assim: “Na produção so­
cial de sua existência, os homens contraem determinadas
relações necessárias e independentes de sua vontade, rela­
ções de produção que correspondem a uma determinada fase
de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. O
conjunto destas relações de produção forma a estrutura eco­
nômica da sociedade, base real sobre a qual se levanta a su-
perestrutura jurídica e política e à qual correspondem de­
terminadas formas de consciência social... Não é a cons­
ciência do homem que determina seu ser, mas, ao contrá­
rio, o ser social é que determina a consciência do homem...
Ao trocar a base econômica, revoluciona-se, mais ou me­
nos rapidamente, todo o imenso edifício erguido sobre ela
(159). Quando se estudam essas revoluções, é preciso dis­
tinguir sempre entre as mudanças materiais ocorridas nas
condições econômicas de produção (e que podem ser apre­
ciadas com a exatidão própria das ciências naturais) e as
formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosó­
ficas, em uma palavra, as formas ideológicas nas quais os
homens adquirem consciência deste conflito e lutam por
resolvê-lo”. (160) Ficaram assim assentadas as bases para a
182 JAIME BREILH

ciência da história e todo o desenvolvimento posterior das


disciplinas vinculadas ao conhecimento do homem, em qual­
quer de suas facetas.
Em 1845, Marx encontrou-se com Friedrich Engels em
Bruxelas. Engels tinha chegado a conclusões semelhantes
mediante seus estudos de A situação da classe operária na
Inglaterra, (161) obra que é, sem dúvida nenhuma, um dos
trabalhos com indicações mais decisivas para a formulação
da epidemiologia científica. Neste estudo, Engels delineou
a estrutura social inglesa e dela extraiu um perfil das con­
dições de vida da classe operária britânica.
Em conjunto, os dois autores empreenderam a monumen­
tal crítica de A ideologia alemã e esmiuçaram as idealiza­
ções sobre os conceitos do natural e do social,
desmitificando-as descobrindo a relação dialética entre am­
bos e o fato de que a histórica sociedade humana tem “...
sempre diante de si uma natureza histórica e uma história
latural” (162) e, portanto, chegando à conclusão de que
‘... só conhecemos uma ciência, a ciência da história (...)
esde que existem homens, a história da natureza e a histó­
ria dos homens condicionam-se reciprocamente”. (163)
Nesta mesma obra, Marx e Engels apresentam uma idéia
que vai ter uma posição central no nosso estudo: o sujeito
social. Vejamos algo a respeito.
Para eles, “... a produção da vida, tanto da própria
no trabalho como da alheia na procriação, manifesta-se
de imediato como uma dupla relação; de um lado, como
uma relação natural, e de outro, como uma relação so­
cial, no sentido de que por isto se entenda a cooperação
de diversos indivíduos, quaisquer que sejam suas condi­
ções, de qualquer modo e para qualquer fim... um deter­
minado modo de produção ou uma determinada fase in­
dustrial leva sempre junto de si um determinado modo de
cooperação ou uma determinada fase social... Manifesta-
se, portanto, já de antemão, uma conexão materialista dos
homens entre si... concepção que adota constantemente no­
vas formas”. (164)
Assim, os autores explicam-nos como o poder coletivo,
o exercício desta conexão material geral, é posto de lado
NOTAS PARA UMA REINTERPRETAÇÃO CIENTÍFICA... 183

quando surgem o produtor privado e o interesse particu­


lar, isso precisamente “... porque os indivíduos só buscam
seu interesse particular, que para eles não coincide com o
interesse comum, e porque o geral é sempre a forma enga­
nosa da comunidade, isto se faz valer diante de sua repre­
sentação como algo ‘alheio’ a eles e ‘independente’ deles...
O poder social, ou seja, a força de produção multiplicada
que nasce por obra da cooperação dos diferentes indivíduos,
sob a ação da divisão do trabalho, surge para estes indiví­
duos, por não tratar-se de uma cooperação voluntária, mas
natural, não como um poder próprio, associado, mas co­
mo um poder alheio, situado à margem deles, que não sa­
bem de onde vem nem para onde vai e que, portanto, ain­
da não podem dominar, mas que evoca, ao contrário, uma
série de fases e etapas de desenvolvimento peculiar e inde­
pendente da vontade e dos atos dos homens e que inclusive
dirige esta vontade e estes atos... Para que se converta em
um poder... contra o qual é preciso insurgir-se, é necessá­
rio que produza uma massa humana absolutamente sem pos­
ses e um grande crescimento da força produtiva”. (165)
Com essas palavras, os autores explicam-nos como esse
poder ou vontade coletiva, o sujeito social, se perde, per­
manece latente, passa a se representar como algo alheio; o
grupo perde sua autarquia seu desenvolvimento conscien­
te, harmônico com as forças objetivas que regem as cone­
xões materiais, e passa a ser dominado pelas mesmas.
Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, Marx
desenvolveu amplamente o processo mediante o qual o tra­
balho no capitalismo, a produção para a subsistência, a frag­
mentação do sujeito coletivo e a imposição de um interesse
divisor (o da burguesia) postergam a potencialidade coleti­
va, destroem-na e minimizam-na, convertendo-a numa enor­
me força destrutiva que se opõe às reais potencialidades da
espécie. Algumas citações desta obra nos dizem: “Em pri­
meiro lugar o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva
mesma, aparece diante do homem como meio para satisfa­
zer uma necessidade: a necessidade de conservar a existên­
cia física. No entanto, a vida produz mais vida. O caráter
total da espécie, seu caráter específico, está contido, com o
184 JAIME BREILH

caráter de sua atividade livre, consciente, no caráter da es­


pécie humana (...). O animal é imediatamente idêntico à sua
atividade vital. Não se distingue dela. É sua atividade vi­
tal. O homem faz de sua atividade vital o objeto de sua von­
tade e de sua consciência”. (166)
Em 1847 as idéias científicas dos dois autores, seus pon­
tos decisivos, foram expostos em A Miséria da Filosofia
(167). No capítulo sobre as greves e sobre as coalizões dos
operários, Marx amplia as suas observações sobre o sujei­
to histórico operário, outorgando-lhe duas dimensões: a
‘‘classe em si” (referida a condições econômicas de existên­
I
cias) e a “classe para si” (identidade em torno de seus inte­
'I resses e organicidade política para a ação transformadora).
Correspondentemente, demonstra a importância do bem po­
lítico como um elemento da produção social do operário.
Na introdução de 1857, Marx assinalou um aspecto que
para nós será importante: “as determinações que valem para
a produção em geral são precisamente as que devem ser se­
paradas, a fim de que não se esqueça a diferença essencial
o atender só a unidade, a qual se desprende do fato de que
sujeito, a humanidade, e o objeto, a natureza, são os mes-
nos”. (168)
Antes de prosseguir, queremos fazer um comentário so­
bre a categoria sujeito social à qual grande parte das cita­
ções se referiu. Consideramos que esta categoria é um ponto-
chave da teoria de Marx, que permite clarear as diferenças
e relações de outras categorias cruciais como são o “pro­
cesso de produção” e “reprodução social” e “força de tra­
balho”, que são investigadas minuciosamente pelo Marx de
O Capital. Todas estas adquirem um valor substancial pa­
ra a interpretação do processo epidemiológico.
Já na Inglaterra, desde a década de cinqüenta, surgiu o
Marx da economia política, que aprofundou sobretudo
aqueles aspectos “que se podem apreciar com a exatidão
própria das ciências naturais”.
Alguns investigadores, caindo num desvio positivista,
mantiveram a hipótese equivocada de que só a partir á’O
Capital, aparece o Marx científico. Esta afirmação teve al­
gumas repercussões na investigação em vários campos da
NOTAS PARA UMA REINTERPRETAÇÂO CIENTÍFICA... 185

ciência, entre elas os estudos sobre saúde-doença, que, se­


guindo esta linha equivocada, pretenderam simplesmente
recolocar nos velhos esquemas formais, de associação em­
pírica, alguns dos novos conceitos introduzidos pelo mar­
xismo. Esta reedição do positivismo com terminologia mar­ I

xista atenuou as possibilidades do progresso do conhecimen­


to por um período, e por exemplo, ao adotar categorias co­
mo força de trabalho (secamente) e classe social (em si),
produziu-se uma interpretação estática, reduzida a uma parte
da esfera natural-econômica do sujeito histórico. Em ou­
tras ocasiões julgaram-se os problemas exclusivamente do
trabalho produtivo (em termos capitalistas) e do salário em ■I.
I
termos de bens de subsistência ou de restauração física, cer­
cando toda a dimensão de autarquia e de imunidade que
a classe operária “para si” trata de restituir com sua luta
organizada; caíram no esquecimento o bem político e toda
a dimensão do trabalho improdutivo e as realizações de cons­
I
ciência que os homens do povo conseguem efetuar no es­
paço e tempo da reprodução. Em medicina surgiram nu­
merosas investigações sobre saúde e força de trabalho, e este
tema, ainda que fundamental, não constitui a totalidade do
problema.
Nosso ponto de vista é que o Marx de antes e o de depois
dos anos cinqüenta constituem uma rica unidade que repro­
duz todo o complexo avanço de um imenso processo de des-
mistificação que cumpriu fases obrigatórias, deixando em
cada uma delas novas objetividades e recursos para a ciência.
Em O Capital, a façanha se consumou. É tão vasto o es­
tudo, e o processo saúde-doença tão importante para a re­
produção social, que em vários capítulos emerge um Marx
claramente epidemiológico, como no terceiro parágrafo do
=1
capítulo XIII. (169) Todo o livro propõe o método de aná­
lise dos processos estruturais e sistematiza as relações de­
terminantes que conectam o social e o natural, a produção
e o consumo com o movimento de reprodução social, e tu­
I
do isto vinculado ao aparecimento de efeitos sobre a popu­
lação trabalhadora.
Em outro momento e contexto, apareceu outra produ­
ção fundamental para os estudos de distribuição epidemio-
186 JAIME BREILH

lógica; referimo-nos aos pensamentos de Lênin sobre os prin­


cípios para o estudo das classes sociais. Suas investigações
permitiram-lhe chegar à sua definição, concreta e orienta­
dora, enunciada em “Uma Grande Iniciativa”. A seguir,
em “O Programa Agrário da Social-Democracia Russa”
exemplifica a importância da análise histórica para supe­
rar os esquemas lógico-formais e estabelecer diferenças qua­
litativas em grupos aparentemente homogêneos, como o
campesinato. Em “As Preciosas Confissões de Pitirim So-
rokin”, deixou um valioso testemunho da importância da
análise social para discernir os interesses de classe (a pequena
t
burguesia, neste caso).
'I Em síntese e ao modo de uma breve recapitulação, a abor­
dagem central de Engels foi a de vincular as chamadas doen­
ças da pobreza e da urbanização sob o capitalismo com as
condições da fábrica, considerando estas últimas, não co-
no causas finais, mas como efeitos das condições de ex-
loração. (179) Constituiu uma reformulação transcendente
I o enfoque empírico que considerava apenas as condições,
iuperou o marco indutivista e propôs a unidade entre tais
condições e as relações sociais que as produzem.
Marx, por sua vez, aprofundou o conhecimento do pro­
cesso que estava na base das proposições de Engels e esta­
beleceu mais tarde as leis científicas que o regem.
A nova conceituação do delineamento da investigação epi-
demiológica que sistematizaremos a seguir adota os princí­
pios gerais, as classificações e categorias particulares que
Marx e Engels descobriram, devendo-se destacar particu­
larmente alguns conceitos que, tomados do método cientí­
fico geral que é o marxismo, são especialmente úteis para
a interpretação dos processos epidemiológicos.
A categoria “sujeito social” nos leva ao conhecimento
da coletividade em seu conjunto, permite-nos designar esta
capacidade autárquica que a posse de Consciência concede
à sociedade humana, essa possibilidade de ter projeto his­
tórico (diferentemente dos animais proto-conscientes), de-
fine-nos o caráter básico solidário da sociedade humana,
rompido historicamente pelo surgimento da propriedade pri­
vada que marca o início de uma contradição privatizado-
NOTAS PARA UMA REINTERPRETAÇÃO CIENTÍFICA... 187

ra, a qual se opõe à natureza solidária antes mencionada.


Frente a essa contradição entre a atomização privada e a
tendência solidária, entre a privatização e a solidariedade,
é o proletariado a classe que joga um papel revolucionário
integral, já que por necessidade objetiva deve destruir a pri­
vatização e restituir a solidariedade e cooperação. Deste ca­
ráter profundamente humano da luta dos trabalhadores, des­
ta destruição da competitividade e restituição das relações
de cooperação se desprende um dos mais importantes bens
ou valores de uso para a saúde que é o bem da organização
política. Cada vitória no sentido da organização é uma ex­
pressão de solidariedade, é um resgate da maior potência
criadora de uma sociedade que vai perdendo as barreiras
nocivas do privado, é definitivamente uma vitória no con­
trole dos processos inscritos numa sociedade de classes, pro­
cessos esses que “danificam” a saúde e agridem o homem
física e mentalmente. Porque não só os trabalhadores pa­
decem dos efeitos da sociedade de regime privado, a luta
proletária produz benefícios para a saúde de todas as classes.
Quando necessitamos estabelecer relações entre as leis e
estruturas sociais com os processos mais particulares como
são os biológicos, os mentais, etc., a categoria necessária
é a da reprodução social, cuja explicação ampliamos a seguir.

!
i
'I
5. Princípios gerais para um novo tipo de
método na investigação epidemiológica

O delineamento de toda investigação tem como etapas


gerais: a formulação ou construção do objeto (de estudo);
a constituição de um referencial teórico; a construção das
hipóteses com seu conteúdo preditivo; a elaboração de um
plano de observações dos processos que foram delimitados
no objeto-problema da investigação; o delineamento dos
procedimentos de análise dos resultados da observação (co­
mo primeira etapa da comprovação ou refutação das hipó­
teses); e a definição do valor de uso ou valor prático social
que se deseja dar à pesquisa, levando-se em conta que o cri­
tério de comprovação final ou de veracidade da hipótese
reside na capacidade que se adquiriu com o novo “conhe­
cimento” para transformar o objeto da investigação.
A seqüência formal que acabamos de esboçar não foi ex­
posta aqui simplesmente para indicar ao leitor a ordem em
que serão tratados os conteúdos das categorias metodoló­
gicas mencionadas, mas com o fim de explicitar, inicialmen­
te, os elementos do método geral da ciência a respeito dos
quais é necessário estabelecer algumas reflexões.
A tradição positivista reforçou uma explicação simples­
mente formal das etapas do processo de conhecimento cien­
tífico. Muitas vezes, em reuniões de ensino ou no próprio
processo investigativo, implementa-se uma compreensão re-
ducionista do método, que o restringe à sua estrutura for­
mal. É necessário considerar, no entanto, que no método
190 JAIME BREILH

do conhecimento científico, igualmente a toda outra dimen­


são da realidade, existe uma relação dialética entre “movi­
mento” e “forma” e que o círculo completo de toda expli­
cação estabelece-se apenas quando o movimento e a for­
ma são reiativizados. Isto é válido para compreender os
problemas do método epidemiológico, que não se reduz a
uma seqüência linear de passos, mas que constitui um pro­
cesso dinâmico onde os elementos sensorial e o racional
do conhecimento vão imbricando-se dialeticamente num ir
e vir desde a observação empírica até a teorização sobre
os objetos da realidade concreta que se investiga, que vão
I se dando tanto nas fases iniciais de construção do objeto
’ I de estudo, quanto nas de consolidação de um marco-teórico
específico, na de formulação de um sistema sintético de pre-
dições hipotéticas e na do processo de verificação em suas
dimensões: a análise lógica e a prática de transformação
io objeto.
No diagrama seguinte procura-se mostrar essa rica in-
.er-relação e movimento para que se compreenda o proces­
so investigativo, naquilo que ele tem a ver com a fase ini­
cial do processo do conhecimento.

PROCESSO DO CONHECIMENTO EPIDEMIOLÓGICO

ELABORA­ RELAÇÕES ESSENCIAIS


ÇÃO TEÓ
RICA Marco Teórico Marco Teórico Premissas
Geral > Específico

L-Problema Juízos ~ u Juízos —> Probl. —► Hipóteses


r—Sensorial * Descritivos * Problemáticos Construído

(Concreto • qualidade • versões (Concreto (Sistema


inicial) • quantidade • Conjecturas racional) sintético
• espaço e de juízos e
tempo raciocínio
em defesa
de uma
proposta)

REALIDADE FENOMÊNICA
PRINCÍPIOS GERAIS... 191

Pode-se dizer que o problema surge, inicialmente, como


um concreto de representações e percepções, todavia, car­
regado de subjetividade e determinado por uma sistemati-
zação do empírico, ditada pelos dados iniciais do problema,
os quais foram organizados pelo pensamento abstrato e pe­
lo marco teórico geral. Este último ainda não desenvolveu
toda sua especificidade em relação ao objeto, se bem que
contribui para hierarquizar e delimitar, porém, não define
o conteúdo objetivo. Desde este primeiro momento já estão
ativos, como enfatiza Edmundo Granda em um trabalho re­
cente (171), tanto a realidade fenomênica como o marco teó­
rico, a cosmovisão e a imaginação do investigador. Na fase
posterior e sempre de acordo com esse ir e vir entre os dados
da realidade e a elaboração racional, vão surgindo os juízos í
descritivos, juízos problemáticos, explicações preliminares
(versões e conjunturas), que dão como resultado a formu­
lação de hipóteses nas quais se sintetiza um sistema comple­
xo de juízos, conceitos, e raciocínio que sustenta a probabi­
lidade de uma determinada explicação acerca do objeto e
seus problemas. Quer dizer, a formulação do problema, o
avanço do marco teórico e a elaboração da hipótese
desenvolvem-se em unidade e oposição dialética e não co­
mo elementos formais separados. Ao contrário do que pro-
pugna o método empírico-analítico, o problema e as hipó­
teses não se estabelecem por simples indução e associação
empírica, nem tampouco as hipóteses aparecem por dedu­
ção e logo são aferidas por falsidade lógica e contra a reali­
dade, segundo a formulação do método hipotético-dedutivo
de Popper. O método científico se desenvolve por um pro­
cesso dialético, onde a dedução e a indução, a análise e a
síntese, a teorização e a observação empírica avançam em
I
unidade e movimento até construir, de acordo com as leis
objetivas dos processos da realidade que constituem o obje­
to, um reflexo objetivo da realidade, de seus determinantes
e de suas possibilidades de transformação. É na fase de ve­
rificação onde se demonstra a consistência dos argumentos
da hipótese segundo a correspondência dialética com o com­
portamento fenomênico e a prática transformadora.
Não é nosso objetivo reproduzir aqui um manual meto-
192 JAIME BREILH

dológico de investigação, mas apresentar alternativas às ter­


giversações conceituais mais importantes que foram ques­
tionadas na primeira parte deste livro.

A CONSTRUÇÃO DO OBJETO EPIDEMIOLÓGICO


Propor o problema implica tomar decisões teóricas de de­
limitação e começar a separar os aspectos perceptíveis e apa­
rentes do problema daqueles que constituem sua essência;
implica também distinguir as manifestações necessárias ou
i sujeitas às leis do objeto-problema com relação a seus ele­
‘l mentos causais; implica ainda delimitar as características
e relações que o objeto-problema compartilha com outros
e aquelas que lhe são particulares.
Conforme avança o procedimento, vai-se depurando a
proposição inicial e assim conseguindo construir racional-
tente a essência do objeto-problema, superando-se as pri-
íteiras representações sensoriais ou externas do mesmo.
A passagem do “concreto-descritivo”* para o “concre-
to-racional”* — a superação racional das primeiras senso-
percepções, que só nos davam uma imagem das proprieda­
des imediatas e relações externas do problema —, é a con­
dição básica para a superação da visão indutivo-positivista
das condições de saúde-doença. O critério de delimitação,
são as ferramentas de conhecimento que nos permitem efe­
tuar essa construção do fato epidemiológico, é o referen­
cial conceituai ou teórico da investigação. Um marco de re­
ferência geral para a epidemiologia será analisado logo mais;
sigamos agora com a explicação antes iniciada.
Do ponto de vista lógico, o ponto de partida é a repre­
sentação do objeto, o que em epidemiologia seria a repre­
sentação do fenômeno epidemiológico em suas manifesta­
ções externas, processo que está sempre condicionado pela
nossa prática social. O que se procura é desvendar as for-
* (N.T.) Referem-se às expressões originais “concreto sensible”e “concreto dei
pensamiento”. Traduziram-nas aqui como fora feito na tradução de J.R. Carva-
Iheiro et al., no livro Saúde na Sociedade de Jaime Breilh e Edmundo Granda
— Instituto de Saúde/SP — ABRASCO; S. Paulo, 1986.
PRINCÍPIOS GERAIS... 193

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194 JAIME BREILH

mas de antagonismos inerentes ao mesmo objeto. Podemos,


evidentemente, construir o nosso concreto-descritivo à ba­
se de fontes diretas e indiretas. À medida que avança a prá­
tica social que nos une ao objeto de investigação, podemos
identificar os pontos nodais da problemática e priorizar cer­
tos processos e relações, com a finalidade de efetuar uma
análise mais profunda. Deste modo chegamos analiticamente
a categorias cada vez mais simples e abstratas, conseguin­
do delimitar os processos que constituem as diferentes di­
mensões de nosso objeto de estudo (gerais, particulares e
singulares ou individuais). Como explicou Marx, uma vez
I chegado “...a este ponto, seria preciso empreender a via­
'I gem de volta...”, mediante a síntese do concreto que ”...
agora não teria uma representação caótica de um conjun­
to, mas uma rica totalidade com múltiplas determinações
e relações”. (172)
A primeira fase desse movimento do conhecimento con-
iste num processo de análise que se movimenta a partir das
apresentações do fenômeno epidemiológico, de seu
oncreto-descritivo (rico, multilateral e específico), até a
identificação de categorias abstratas. Tendo estas como base
e formando com elas o mais abstrato e simples que conte­
nha as contradições essenciais do restante, devemos em­
preender o movimento de volta, do abstrato ao concreto,
construindo, mediante um movimento de síntese, as rela­
ções essenciais do processo epidemiológico até se chegar a
um concreto epidemiológico racional. Portanto, não se trata,
como almejaria a epidemiologia empiricista, de captar in-
dutivamente o fenômeno epidemiológico por meio de fa­
tos diretamente evidentes, mas de trabalhar a partir deste
concreto inicial, descritivo, para formular racionalmente a
sua essência, aquelas relações internas que não se captam
empiricamente. O fenômeno epidemiológico é, portanto, a
porta de entrada para a construção teórica da essência epi-
demiológica e ambos formam uma unidade, porque o em­
pírico e suas regularidades são a expressão de uma essência
histórica determinante.
Marx desenvolveu o método ascensional partindo da abs­
tração celular “mercadoria” e chegando, sucessivamente,
PRINCÍPIOS GERAIS... 195

ao estudo do “trabalho”, “valor”, “dinheiro”, “capital”,


“mais-valia”, “salário” e “classe”. Em sua análise sepa­
rou a ordem histórica de aparecimento dos processos da or­
dem lógica das categorias. Ainda que o trabalho engendre
historicamente a mercadoria e dela seja a base objetiva, mes­
mo assim o método dialético recorre analiticamente primeiro
à mercadoria, porque ela explica as contradições e duali­
dade do trabalho e encerra as contradições mais concretas
do capital, a acumulação e o aparecimento de classes anta­
gônicas nesse modo de organização.
A análise do concreto-descritivo da saúde permite che­
gar a um conjunto de abstrações sociais e biológicas tais
como: “saúde”, “doença”, “normal”, “patológico”, “po­
pulação”, “indivíduo”, “causa”, “efeito”, “distribuição
da doenças”, “deterioração” (condições de vida), “produ­ í
ção das condições de vida”, “trabalho”, “produção”,
“consumo individual”, “condições naturais externas”, etc.
Em continuação desta primeira fase, de movimento do con­
creto-descritivo até a separação do primeiro conjunto de abs­
trações, a análise passa à fase seguinte do conhecimento,
identificando, como fonte de partida, a categoria celular com
suas características já descritas.
A categoria mais abstrata, aquela que concentra embrio-
nariamente todas as contradições do processo epidemioló-
gico, é a “produção”. É assim, porque a análise das con­
tradições vinculadas ao conhecimento da saúde-doença, no
maior nível de abstração, deve estabelecer-se primeiro à mar­
gem das contradições que aparecem na sociedade de clas­
ses e do mercado. Nesta dimensão, a categoria-produção
encarna a síntese da oposição e unidade que ocorrem entre
o sujeito social e o objeto natureza e a oposição entre o mo­
mento produtivo e o momento de consumo. Nas palavras
de Marx, a “... produção é imediatamente consumo, o con­
sumo é imediatamente produção. Cada um é imediatamente
seu oposto”. “Em um sujeito, produção e consumo apare­
i
cem como momentos de um ato. O que aqui importa é fa­
zer ressaltar que se consideram a produção e o consumo co­
mo atividades de um sujeito ou de muitos indivíduos; am­
bos aparecem em cada caso como momentos de um pro- t

I
f1
196 JAIME BREILH

cesso no qual a produção é o verdadeiro ponto de partida


e, por isso, o momento predominante. O consumo como
necessidade é o mesmo momento interno da atividade pro­
dutiva”. Assim sendo, a categoria “reprodução social” é
a que permite analisar o processo produtivo em seu movi­
mento, estudar a oposição dialética entre produção (forma
de autoconsumo do indivíduo, que inclui o processo de tra­
balho no sentido restrito, mas não se reduz a ele) e consu­
mo individual (forma de produção do indivíduo produtor
e de seus dependentes) e permite ainda compreender a opo­
sição dialética entre reprodução natural-animal e a realiza­
I ção histórica de um sujeito social consciente.
' I O processo de síntese ou caminho de volta, a partir destas
categorias, permite chegar à contradição final saúde-doen-
ça e ao resultado geral do método de ascensão que foi sinteti­
zado na categoria perfil epidemiológico, um concreto-racio-
nal que unifica um perfil de reprodução social com suas con­
tradições, e um perfil de saúde-doença com suas contradições.
1 Quando se considera a sociedade dividida em classes, na
qual se atomizou o sujeito social, e apareceu historicamen­
te a circulação ou mercado como forma de distribuição, en­
tão a análise, partindo da produção e reprodução social,
deve incorporar categorias intermediárias adicionais neces­
sárias para a construção do objeto epidemiológico especial.
Categorias como “mercadoria”, “valor”, “trabalho”,
“mercadoria-força de trabalho”, “classe”, permitem ex­
plicar a oposição dialética entre, por exemplo, a reprodu­
ção social orientada primeiro para a formação do valor e
a seguir para a valorização do valor em relação à reprodu­
ção natural e às condições naturais externas ou ecológicas;
além disso, ao incorporar na síntese essas novas categorias,
aparece no resultado final da síntese o “perfil epidemioló­
gico de classe”.
No processo de construção do objeto, quando se trata
da sociedade mercantil e do capital, deve-se diferenciar en­
tre processo de trabalho e processo de produção. Este últi­
mo é a categoria de análise porque, como estabelecera Marx
“... como unidade de processo de trabalho e processo de
formação de valor, o processo de produção é processo de
PRINCÍPIOS GERAIS... 197 i
produção de mercadorias; enquanto unidade de processo
í
de trabalho e de processo de valorização, o processo de pro­ !i
dução é processo de produção capitalista”. Em conseqüên-
cia, a interpretação básica do processo epidemiológico passa
primeiro pela relação processo de produção e saúde e, num
nível mais específico, pode-se estabelecer a relação proces­ j
so ocupacional e saúde, assim como a vinculação entre o !
processo de consumo e saúde. i
Estando delimitada a essência do problema, reconstruí­
da a sua realidade pelo nosso pensamento, necessitamos ago­
ra construir uma resposta que será a hipótese. O que que­
remos destacar aqui é que, para a concepção científica, o
objeto está constituído por um todo unitário em movimen­
I I
to ou mudança permanente, e por isso dizemos que está com­
posto por processos. Como a matéria se transformou ao lon­
go do tempo, do simples ao complexo, do inferior ao supe­
rior, mantendo a concatenação e a unidade de cada novo
domínio que surgiu pelos saltos qualitativos da matéria, en­
tão, os domínios do inorgânico e do social que foram sur­
gindo passaram a constituir um todo regido hierarquicamen­
te pelas leis sociais. Por isso, o social é parte do biológico
e nele se expressa.
Em resumo, a proposição inicial deve identificar a essência
dos processos que se estudam, considerar suas dimensões
“geral”, “particular” e “individual”, assim como a expres­
são necessária ou legal da regularidade de sua mudança.

PROCESSOS E CONTEÚDOS CIENTÍFICOS


VINCULADOS À SAÚDE-DOENÇA
Um problema metodológico para a investigação em saú­
de consiste em delimitar quais são os processos particula­
res que participam do processo saúde-doença, suas relações
e hierarquia interna e, desse modo, definir o lugar e a im­
portância relativa que podem ocupar as disciplinas gerais
no desenvolvimento dos conteúdos científicos particulares
do campo da saúde. A partir do exposto, pode-se estabele­
cer com objetividade qual é a posição relativa que devem
198 JAIME BREILH

ocupar as ciências sociais de acordo com o âmbito de ex­


plicação que podem envolver e, dessa forma, definir sua im­
portância e limitações frente ao desenvolvimento das polí­
ticas de investigação. Tudo depende de quais são os pro­
cessos reais que essas ciências permitem conhecer, qual a
relação que esses processos têm com a dinâmica da saúde-
doença e, finalmente, quais os âmbitos de ação em que es­
sas disciplinas são uma ferramenta básica.
O processo saúde-doença constitui uma expressão parti­
cular do processo geral da vida social. Como tal, inclui for­
mas menores de movimento, de tipo inorgânico (físico), or­
I
gânico (biológico) e social, sujeitas a um ordenamento hie-
'I rarquizado de acordo com os princípios gerais (dialéticos,
de causação, de interação e de probabilidade) e sujeitas às
leis dos domínios social, biológico e físico. O processo saúde-
doença, como objeto de estudo e de transformação por parte
da ciência, apresenta, na sua ordem hierárquica, os níveis
coletivo e individual, cada um dos quais demanda para o
eu estudo um marco de referência do geral, do particular
do individual. Na saúde-doença, portanto, se devem es-
ibelecer estes níveis. Agora, como é um processo social,
j objeto geral corresponde às formas econômicas estrutu­
rais em meio das quais ocorrem processos particulares de
reprodução social e, como conseqüência, processos epide-
miológicos particulares nos quais podemos situar os pro­
cessos dos indivíduos. Vai-se produzindo legalmente (sujeito
a leis) a saúde-doença, em cada um dos níveis de generali­
dade descritos. O importante é que o epidemiólogo conhe­
ça as leis que operam em cada domínio. Sabemos que no
domínio geral da estrutura econômica e da superestrutura,
operam fundamentalmente leis dialéticas e causais. No do­
mínio do particular, continuam operando as leis anteriores
e também são importantes as leis funcionais, enquanto, no
domínio individual, operam fundamentalmente leis funcio­
nais e leis estatísticas.
PRINCÍPIOS GERAIS... 199

O REFERENCIAL TEÓRICO

Além de constituir a base para a formulação do proble­


ma de investigação, o referencial teórico é a fonte das pre­
missas de que precisamos para a construção das hipóteses.
Inclui o corpo teórico, organizado sob elementos lógicos (de
conceitos, juízos, ponderações, leis, princípios), que fun­
damenta a interpretação da mudança dos processos que in­
cluem o problema proposto e também o ponto de vista ou
perspectiva histórica a partir da qual se trabalha.
Havíamos dito que existem três níveis concatenados dos
processos: o geral, o particular e o individual. Na saúde-
doença, portanto, devem-se estabelecer estes três níveis. Ago­
ra, o conhecimento epidemiológico desenvolve-se em tor­
no do esforço para explicar e transformar os problemas de
saúde-doença em sua dimensão social. O objeto de estudo
da ciência epidemiológica é a saúde-doença como processo
coletivo particular de uma sociedade, que por sua vez tem
elementos gerais, particulares e individuais. Abrange os pro­
cessos da realidade incluindo, na sua busca, as determina­
ções que operam na vida social; deve recorrer necessaria­
mente ao estudo sistemático de: a) os processos estruturais
da sociedade que, por se acharem na base do desenvolvi­
mento da sociedade, permitem explicar o aparecimento de
condições particulares de vida; b) os perfis de reprodução
social (produção e consumo) das diferentes classes e frações
sociais com as correspondentes potencialidades (bens ou va­
lores de uso) de saúde e sobrevivência, assim como os ris­
cos correspondentes (contravalores ou forças deteriorantes
que levam à doença e à morte); e c) a compreensão integral
dos fenômenos biológicos que compõem os padrões típicos
de saúde-doença desses grupos e de seus indivíduos.

COMO SE DETERMINA O FATO EPIDEMIOLÓGICO:


LEIS QUE O REGEM

O único processo de determinação que gerahnente é aceito


no campo da saúde é o denominado “causai”. No entan-
200 JAIME BREILH

to, essa não é a única forma de determinação, é apenas uma


dentre muitas categorias de determinação. (173)
Os principais tipos de determinação ou condicionamen­
tos legais que definem os processos de saúde-doença seriam:1
a) determinação dialética da totalidade do processo pela luta
interna e pela eventual síntese subseqüente de seus com­
ponentes essenciais opostos;
b) determinação causai ou causação: determinação do efeito
pela causa eficiente (externa);
c) interação (ou causação recíproca ou interdependência
funcional): determinação do conseqüente pela ação
recíproca;
'I d) determinação probabilística: do resultado final, pela ação
conjunta de entidades independentes ou semi-indepen-
dentes.
As categorias de determinação estão mutuamente rela­
cionadas e nenhuma atua de forma pura com exclusão das
demais, além do que se evidencia uma ordem hierárquica
mtre elas.
i A determinação dialética é a de maior status hierárquico
e condiciona os limites de jurisdição legal dos tipos restantes.
Sabemos que as leis explicam a regularidade das varia­
ções dos processos e como a investigação epidemiológica
requer conhecer os processos e subprocessos que na sua uni­
dade compõem a saúde-doença, é indispensável conhecer
os graus hierárquicos das leis.
Foi dito que a saúde é uma expressão de liberdade, e em
verdade o é. Mas esta liberdade não significa independên­
cia em relação às leis objetivas, e sim necessidade de conhecê-
las para dirigir os processos adequadamente. As verdadei­
ras conquistas da sociedade humana se produzem quando
o homem avança no domínio das leis naturais e fundamen­
talmente quando dá saltos de qualidade no domínio das leis
sociais.
1. Segundo Bunge, em ciência o uso da palavra determinação é o de conexão cons­
tante e unívoca entre coisas ou acontecimentos, ou entre estados ou qualida­
des das coisas, assim como entre objetos ideais. Se por “necessário” se quer
dar a entender o que de constante e unívoco há em uma conexão, então a pala­
vra determinação quer dizer o mesmo que conexão necessária.
PRINCÍPIOS GERAIS... 201

O importante, ao reconhecer que os processos epidemio-


lógicos estão determinados por leis dialéticas (destas, as his­
tóricas), leis causais, funcionais e probabilísticas, reside na
superação da velha e restritiva noção epidemiológica de cau-
sação que reduz o estudo da produção da saúde-doença a
essa causação entendida como um efeito gerado por causa i
eficiente. Se existem relações causais que participam na de­ ■

terminação dos processos epidemiológicos, estes não são


apenas causados, mas também são em geral determinados.
A determinação epidemiológica envolve mais do que a cau­
sação epidemiológica. Assim mesmo a determinação pro-
babilística dos fenômenos individuais, que interessa à esta­ !
tística, tem que ser interpretada de acordo com os limites
e formas que lhe impõem as outras formas superiores de
determinação.
1
■I
O INDIVIDUAL E BIOLÓGICO SUBSUMIDO NO SO­
CIAL: DETERMINAÇÃO DO GENÓTIPO E FENÓTIPO

A nova epidemiologia compreende a produção de doen­


ças no plano do coletivo e para fazê-lo tem que construir
uma idéia científica dos processos que operam como deter­
minantes das mesmas. Como se argumentou reiteradamente,
é preciso ultrapassar o plano dos fenômenos empíricos, onde
os chamados “fatores” de doença aparecem como abstra­
ções desconectadas, e deve-se ampliar a explicação do prin­ !'i
cípio de causalidade. Os aspectos mais importantes desta
l.i
nova visão são: a formulação dos problemas epidemiológi­
cos (que explicam a gênese da saúde coletiva como parte
integrante da vida social geral) e a interpretação de que as
causas de doença não são entidades estáticas que se podem I
abstrair formalmente, mas que têm que ser interpretadas
como parte do movimento global da vida social, e para po­ [li
der transformá-las é preciso compreender as leis desse mo­
vimento social global, assim como as leis específicas dos pro­
cessos biológicos que se desenvolvem no seio desta vida so­
cial mais ampla. Portanto, o trabalho de investigação epi­
demiológica que se realiza não deve separar totalmente o
202 JAIME BREILH

estudo da parte (a saúde-doença) do todo a que pertence,


mas sim observá-la como produto de sua vinculação com
o todo. Vista deste ângulo, a saúde-doença, tanto a coleti­
va quanto a dos indivíduos, é uma parte do todo social, e
os fenômenos epidemiológicos que observamos nesta par­
te, num dado momento, são dimensões da realidade com
história e futuro. A parte (objeto saúde-doença) é produto
de sua própria história e da história do todo, o qual subor­
dina o movimento da parte. O movimento social geral con­
tribui para explicar o desenvolvimento da vida nos grupos
constitutivos, e a compreensão do avanço da vida nestes gru­
pos contribui para explicar a produção de transtornos da
‘ I saúde que ocorrem nos indivíduos. Então, a interpretação
epidemiológica não se reduz à busca de conexões entre as
partes, como “as condições da água” e a “doença diarréi-
ca aguda”, mas uma vez que o todo social compõe-se de
partes que podemos descrever e medir empiricamente, com­
preende que a participação dessas partes no todo gera uma
-ealidade complexa, superior, com qualidades diferentes às
las partes, ainda que seja dependente destas para sua exis-
ência. O pensamento científico, dessa forma, não só con­
segue explicar a unidade da realidade, mas também traduz
as relações necessárias e hierárquicas entre os processos que
a constituem.
Ao se compreender a epidemiologia desse modo, não só
se faz desaparecer a falsa dicotomia entre o social e o bio­
lógico como também se dissipa a falsa relação entre o “ge­
ral” e o “individual”, que as escolas epidemiológicas con­
vencionais postulam. Assim é, já que a epidemiologia cien­
tífica estabelece que a realidade social não é a soma do que
se observa nos indivíduos e se relaciona estatisticamente,
mas que, na realidade, os processos individuais entrecruzam-
se e surgem como resultantes das forças econômicas, polí­
ticas e culturais que operam como um todo, acima das cir­
cunstâncias e vontades individuais. Quer dizer, as condições
e possibilidades individuais fundem-se num todo social, nu­
ma média geral ou resultante comum, que não anúla a par­
ticipação do individual, já que os contingentes dos indiví­
duos contribuem para esse resultante.
PRINCÍPIOS GERAIS... 203

As escolas epidemiológicas tradicionais estudam a varia­


ção de fatores isolados e comportamentos individuais, que
são isolados e reificados2 para se poder manejá-los empi-
ricamente, convertendo-os em “entidades causais”, nas
quais se estabelecem mensurações e se calculam dimensões i;
que são introduzidas em modelos matemáticos de associa­
ção causai, de tal forma que a variável empírica adquire o
status de causa, e sua relação probabilística com o fenôme­ I
no dependente adquire o status de lei epidemiológica. Quer
dizer, a forma, o probabilístico domina a explicação epi­ IN
demiológica. A teoria epidemiológica moderna reconhece ■■

tanto a relação dialética que ocorre entre as forças de­


terminantes mais amplas como a possibilidade de que exis­
tam fenômenos singulares nos indivíduos; ou seja, reconhece
a necessidade de observar as leis históricas da produção e
a organização da sociedade para explicar as causas mais pro­
fundas da doença, mas também reconhece que o único ca­
minho para compreender o especificamente epidemiológi-
co é saber como é que os processos da reprodução indivi­
dual cotidiana e os processos biológicos atuam e se trans­
formam no seio desse movimento mais amplo, para origi­
nar os fenômenos epidemiológicos. Com efeito, pelo fato
de leis econômicas, políticas e culturais atuarem na base do
movimento epidemiológico, isto não quer dizer que não exis­
ta espaço para o individual-biológico definir, como parte
decisiva, sua própria realidade. Por conseguinte, embora l|
os processos da natureza, onde se desenvolve a vida de uma
população, e os processos biológicos (fisiopatológicos e etio-
patogênicos), que ocorrem nos organismos-atores da vida
social, subordinem-se aos processos da vida social mais am­
pla, integrando-os, ambos participam também como deter­
minantes desta vida e como condições decisivas do compor­
tamento epidemiológico. Essa forma de entender a relação
entre o social mais geral e o biológico rompe com a idéia
de que há uma separação entre essas duas instâncias como
2. A reifícação (do latim res, rei “coisa”), como o explica Stephen Gould em
sua obra “A falsa medida do homem”, é a tendência em converter os concei­
tos abstratos em entidades, e uma vez isso feito, busca-se uma localização físi­
ca, sua mensuração e quantificação.
í
1
204 JAIME BREILH

a que existiría entre duas partes distintas do mundo, que


só se tocassem externamente. Pelo contrário, entre o social
mais amplo e o biológico há um profundo entrelaçamento.
O anterior leva a entender também, de modo distinto, a re­
lação entre os fenômenos coletivos e os fenômenos indivi­
duais com relação à gênese das doenças. Aqui acontece al­
go semelhante ao que sucede no mundo físico, onde, por
exemplo, a estocasticidade (o imprevisto) dos movimentos
moleculares num gás subjaz às leis completamente deter-
minísticas dos gases que relacionam temperatura, pressão
e volume... Portanto, os processos aleatórios podem ser a
base de processos determinados e vice-versa. (174) O que
'I sucede é que, da mesma maneira que o movimento de uma
molécula é conseqüência da conjunção de um vasto núme­
ro de processos determinantes, cada um independente do
outro e todos se combinando para produzir a história des­
ta partícula, história que está determinada pelo conjunto,
mas que é essencialmente independente dos processos iso­
lados; assim mesmo o surgimento e distribuição de condi­
res epidemiológicas e doença se dão no meio de uma tra-
na de processos determinantes individuais e específicos. Um
processo pontual que participa na produção de saúde-doença
não é independente em relação ao conjunto de processos
delimitados por uma lei epidemiológica mais ampla, mas
sim é aleatório ou livre com relação a cada uma das deter­
minações mais pontuais. É importante compreender, nesse
sentido, que nossas condições biológicas especiais, diferen­
temente das que caracterizam outros organismos,
permitiram-nos um desenvolvimento histórico consciente,
com o qual transformamos os limites da natureza e amplia­
mos a liberdade.
Neste ponto cabe um comentário sobre a relação entre
a reprodução social numa sociedade e a saúde. A reprodu­
ção social analisa o movimento da vida social num espaço
histórico-natural concreto e permite formular o sistema de
contradições que determinam esse movimento.
Interpreta-se a reprodução social em duas dimensões: a
grande reprodução social no nível geral, que no caso de nos­
sas sociedades adquire o caráter histórico de acumulação
PRINCÍPIOS GERAIS... 205

de capital; e, dentro desta, as formas particulares de repro­


dução social dos grupos ou classes específicas que a consti­
tuem. Estas últimas constituem um sistema multi-dimensio-
nal de contradições que envolve, como eixo da determina­
ção, o movimento dialético de produção-consumo, media­
do pela distribuição, e que inclui também as relações com
o ambiente, ou meio geográfico, ou território (condições
naturais externas), bem como as relações político-ideológicas
que definem as contradições entre a organização-autarquia
das classes e a privatização-alienação que as afeta. Estas úl­
timas incorporam um elemento de consciência e organiza­
ção, porque a reprodução social, ainda que esteja determi­
nada, em última instância, pelo movimento material eco­
nômico, não se reduz a ele, uma vez que incorpora um mo­
vimento na dimensão da consciência.
Na produção, os membros da sociedade fazem com que
os produtos resultem em consonância com a necessidade his­
toricamente definida (a necessidade não se define por de­
terminação cultural-fenomênica, nem por motivações indi­
viduais inerentes ao psiquismo humano individual); na dis­
tribuição determina a proporção em que os indivíduos par­
ticipam desses produtos (não se produz e de imediato se dis­
tribui o produzido, mas se distribui de acordo com o modo
de produzir e, numa sociedade de classe, a distribuição as­
sume a forma de mercado e também está definida pelo pa­
pel distributivo do Estado — salário social); e no consumo
individual os produtos convertem-se em objetos de desfru­
te. Na produção, as pessoas objetivam-se nos produtos; no
consumo individual, os objetos (as coisas) subjetivam-se.
A produção regida pelos interesses das classes dominantes
não é só produção de coisas, mas produção de significados
que se decodificam no consumo.
O consumo como categoria básica para entender um as­
pecto da reprodução social foi mal compreendido.
Confunde-se consumo com reprodução e por isso fala-se
de um momento produtivo e de um momento de reprodu­
ção na base econômica da vida das classes. O consumo adota
várias formas: consumo dos bens produzidos e mediados
pela distribuição; consumo dos bens produzidos no traba-
206 JAIME BREILH

Iho doméstico e atividades “improdutivas”; consumo dos


valores de uso naturais (oxigênio do ar, radiações ultravio­
leta). O consumo não se exerce por parte de indivíduos des­
providos de uma especificidade biológica, mas especifica-
se e configura-se também de acordo com as mediações bio­
lógicas do genótipo e a fisiologia do fenótipo.
A expressão específica desse conjunto de contradições é
o perfil epidemiológico3, sobre o qual se debruçará mais
tarde, o qual, numa sociedade de classes, é característico
das formas de reprodução social que as distinguem.
PERFIL EPIDEMIOLÓGICO
’ I

PERFIL EPIDEMIOLÓGICO

• Sistema de contradições em movimento:


— Produção-distribuição-consumo
— Processo social do sujeito-espaço natural
— Consciência e organização
• Subsunção e mediação biológica:
— genética
(biologia pretérita-normas de reação)
— fisiológica
(biologia presente-fenotípica)

Os processos epidemiológicos são determinados por leis


objetivas que estabelecem o movimento: as próprias leis dia­
léticas da unidade e oposição dos contrários, os processos
de causação de uma causa necessária e suficientemente ex­
terna frente a um efeito (leis causais), os processos de ação
recíproca (leis funcionais) e os processos de afastamento do
regular originados em vínculos individuais não previstos (leis
dos processos aleatórios ou estocásticos); sobre este último
aspecto importantes avanços deverão ocorrer na presente
década com o desenvolvimento das teorias do caos e da re­
lação entre os fenômenos repetitivos em escalas decrescen­
tes da natureza e os fenômenos estritamente aleatórios. Es-

3. Categoria estabelecida por J. Breilh, que se explica em outras publicações.


I

PRINCÍPIOS GERAIS... 207

tas leis guardam uma relação hierárquica entre si, sendo as


leis dialéticas de ordem superior na determinação. Então,
a determinação da saúde-doença passa por essa rica rela­
ção dialética entre as distintas dimensões da determinação.
As leis do movimento epidemiológico atuam nas relações
estruturais de produção-consumo mediadas pela distribui­
ção (nas sociedades capitalistas, distribuição pelo mercado
e distribuição do salário social); nas relações com a nature­
za ou ambiente natural “externo”, mediadas pela produ­
ção e também nas relações de produção mediadas pelas con­
dições do ambiente natural; nas relações político-ideológi- í
cas; nas relações da reprodução individual cotidiana (cha­
madas por Agnes Heller “reprodução do particular e do in­
divíduo”); e nas relações do movimento biológico subsu-
I
mido, que por sua vez atuam como mediadores que especi­
ficam o efeito da história nos organismos, na corporeida- I
de, participando desse modo na determinação.
As mediações são processos necessários para que a de­
jiiií'
terminação se especifique. Na relação dialética entre o ge­
ral, o particular e o individual, ou, dito de outro modo, entre
o todo e a parte, as leis do todo ou da dimensão mais am­
pla determinam os limites dentro dos quais pode atuar o
poder determinante da parte ou indivíduo, mas estes tam­
bém intermediara a determinação, especifícando-a. O mo­
vimento geral determina os limites do cotidiano e do bioló­
gico; estes também participam da determinação, da especi­
ficação do movimento. O social, as leis da reprodução so­
cial, o sistema de contradições da reprodução social deter­
minam as condições dentro das quais sucede a história pes­ ifi
soal e o movimento biológico subsumido; mas também as í
condições naturais do ambiente, os fenômenos do dia-a-dia ||
e da biologia humana participam na determinação da saúde-
doença, seja através da experiência biológica acumulada que
define as normas de reação do genótipo dos indivíduos, se­
ja através dos processos fisiológicos que são possíveis num
fenótipo em circunstâncias históricas específicas (configu­
ração ergonômica, configuração imune, estado nutricional
e metabólico-endócrino, capacidade de reposição, etc). A
mediação, portanto, define um espaço com uma legalidade

í
208 JAIME BREILH

própria, um espaço de especificação e de relação entre pro­


cessos de dimensões superiores, a forma em que o geral se
faz presente no particular e nos níveis de articulação dos
processos reais.
Como foi explicado em outro lugar, as novas correntes
de investigação epidemiológica avançaram até decifrarem
as relações e determinações mais amplas que foram expos­
tas, mas agora é indispensável consolidar o conhecimento
de mediações específicas em distintos níveis: investigar os
processos de importância epidemiológica que ocorrem nos
subgrupos das classes sociais (frações de classe), nas comu­
I
nidades ou bairros, nas unidades familiares, o que nos re­
’ I mete, por exemplo, ao estudo indispensável do trabalho do­
méstico e das estratégias familiares de vida; remete-nos tam­
bém a uma análise mais profunda das mediações do meio
geográfico no território onde desenvolve-se a reprodução
social das classes; remete-nos ao estudo da vida pessoal e
do desenvolvimento cotidiano; e remete-nos ainda ao apro­
fundamento do modo em que as condições biológicas do
ipo genético e fisiopatológico que existem em nossos cor­
pos (algumas delas como características comuns dos mem­
bros das classes e outras como características especiais dos
indivíduos) participam na produção das características epi-
demiológicas de uma população. A vida e as possibilidades
da saúde definem-se nas grandes determinações estruturais,
mas especificam-se em todas essas mediações especiais pa­
ra concretizarem-se e tornarem-se “visíveis” nos indivíduos.
A transcendência política deste modo integrador de cons­
truir os objetos-problemas é a de recuperar a unidade da
realidade e entender os determinantes de seu movimento.
A forma desarticulada com que a ciência convencional olha
a realidade leva a uma prática igualmente desarticulada e
superficial. Quer dizer, a luta pela transformação social e
da saúde enriquece-se e interalimenta-se com a transforma­
ção da ciência e seu método, um processo de transforma­
ção social que se projeta e recria na inovação teórica de dis­
ciplinas como a Epidemiologia.
PRINCÍPIOS GERAIS... 209 ■

ií:
A REPRODUÇÃO SOCIAL E O PROCESSO
EPIDEMIOLOGICO (OU BREVE LEITURA
EPIDEMIOLÓGICA D’O CAPITAL)
A reprodução social é a categoria que nos permite siste­
matizar o estudo dos condicionantes diretos da qualidade |
de vida dos membros de uma certa coletividade ou de suas
classe sociais.
Vamos explicar primeiramente a origem histórica da re­
produção social; ao fazê-lo revisaremos seus elementos cons­
titutivos para, finalmente, seguir o processo histórico da
transformação qualitativa dessa reprodução social e enten­
der por qual razão ela nos serve como um elo teórico-me-
todológico que permite ligar as determinações estruturais
e gerais com as condições que mais diretamente modelam
o perfil de saúde-doença do setor social que estiver sob aná­
lise, numa certa etapa de seu processo histórico. Ao longo
do texto faremos referência ao Esquema 5 no qual (il
encontram-se simbolizados os processos particulares que ire­
mos explicando.

Passagem da reprodução natural à reprodução social


A passagem da reprodução natural à reprodução social,
com o surgimento da sociedade humana na face da terra, !í
significou um salto qualitativo dos processos naturais.
O longo processo evolutivo de certos ramos de macacos
antropóides e o aperfeiçoamento de sua capacidade de trans­
formação da natureza determinaram que se produzisse um
salto qualitativo no desenvolvimento da matéria e o apare­

I
cimento da consciência graças ao trabalho.
Antes que aparecesse a consciência, quer dizer a capaci­
dade deste animal-homem de refletir a realidade em sua men­
te, de imaginar antecipadamente as mudanças que deveria ij
realizar mediante a atividade de transformação da nature­
za, a reprodução dos seres naturais se deu na forma de pro­
gramas cíclicos sujeitos às leis naturais. Mas, com o apare­
I
cimento do homem na sociedade, produziu-se uma profunda
210 JAIME BREILH

transformação na ordem de determinação legal dos fenô­


menos, e as leis sociais passaram a ser prioritariamente de­
terminantes no contexto sócionatural. “As leis do desen­
volvimento da natureza, enquanto não são conhecidas, cons­
tituem uma força natural espontânea, mas, quando o ho­
mem as conhece, deixam de atuar sobre os homens como
“cega necessidade” hostil. O homem começa paulatinamen-
te a dirigi-las e as coloca a seu serviço”. (175)
Segundo simbolizamos no Esquema 6, os animais proto-
sociais (P.S.) efetuam um processo de reprodução natural
mediante um intercâmbio com a natureza por meio de um
complexo instrumental fixo (M-O) para obter produtos: ins­
' I trumentais (Pm) ou acabados (Pa) para o consumo. O pro­
cesso se dá num círculo fechado que reproduz o PS que já
está prefixado, programado naturalmente. No processo se
reconhecem dois momentos que se mantêm iguais: momento
de consumo (1) e momento de produção (2).
Com o aparecimento do homem, o processo de reprodu­
ção se transformou. Estabeleceu-se “unidade com a natu­
reza mediada sócio-historicamente na indústria, unidade que
é também em todos os níveis diferença, apropriação de um
elemento estranho... a história natural e a história humana
constituem uma unidade na diversidade. Assim, a história
humana não se resume na pura história natural, nem a his­
tória natural na história humana ... a natureza se torna dia­
lética porque produz o homem como sujeito mutável, cons­
cientemente ativo, que se o enfrenta como potência natu­
ral”. (176) “No homem relacionam-se entre si o meio de
trabalho e seu objeto. A natureza é o sujeito-objeto do tra­
balho. Sua dialética consiste em que os homens mudam a
sua natureza na medida em que tiram gradualmente da força
externa seu caráter estranho e exterior”. As relações dos
homens com a natureza constituem o pressuposto para as
relações recíprocas dos homens.
Assim se contrapõem necessariamente duas partes de uma
mesma realidade: o sujeito social e as “condições naturais
exteriores”; dito de outra maneira se opõem a natureza his­
tórica da sociedade e a realidade social da natureza.
A reprodução social do homem ou reprodução do sujei-
■II

PRINCÍPIOS GERAIS... 211 t


I
■I
ESQUEMA « - PASSAGEM DA REPRODUÇÃO NATURAL À
REPRODUÇÃO SOCIAL

A PROCESSO DE REPRODUÇÃO NATURAL

(D
L
NAT.
O-M p-S Pa Pm

I
I
(2)

B PROCESSO DE REPRODUÇÃO SOCIAL


-consumo
lili
(RE) Produção do “s”

NAT.
-O-M S B/P

—Produção
Consumo do “S”
I
Reprodução (Nat. econ.) Realização

LEGENDA:
NAT = condições naturais p-S = protosujeito B/P = Sexo/produtos Jl!
O = objetos de trabalho S = sujeito social Pa = produtos acabados,
ou poder coletivo Pm = produtos instrumentais
VETORES: em “A” simbolizam programa cíclico e em "B” simbolizam espiral dialética.
FONTES: (baseado em ECHEVERRIA, B.) BREILH, J. “Epidemiologia, Metibin y Políti­
ca — México, 1377
212 JAIME BREILH

to social (S) tem uma diferença com a cíclica reprodução


natural dos animais e consiste em que possui, além da di­
mensão natural (econômica), uma dimensão de realização
do projeto histórico do sujeito. Já não se trata de reprodu­
zir um sujeito que já está definido, mas de realizar suas re­
lações. O homem já não é um proto-sujeito, é um sujeito
autárquico, político. Para cumprir estas dimensões da re­
produção tem que conseguir “produzir objetos que sejam
finalidades”; objetos práticos ao serviço de uma finalida­
de, por isso, ao invés de produtos (P), são bens (B).
Resumindo:

'I
REPRODUÇÃO NATURAL REALIZAÇÃO
Produção/Consumo: Síntese criação ou recriação
de identidade social ou essência
política do “S”.
ndiretos do “S” Produção/consumo da
Jiretos, de objetos estrutura das relações sociais.
ntermediários da natureza.

(Dimensão econômica) (Dimensão sociopolítica)

A relação entre o social e as condições naturais


exteriores
O esclarecimento das relações que se estabelecem entre
o processo social e as condições do ambiente natural é uma
das mais importantes necessidades do desenvolvimento do
aparato conceituai epidemiológico, posto que o positivis­
mo, com sua colaboração inicial naturalista, não só preten­
deu naturalizar as leis sociais, explicar os fenômenos sociais
de acordo com os princípios que regiam o mundo exclusi­
vamente natural, mas também tentou negar o caráter his­
tórico da natureza.
É importante que o epidemiólogo conheça que mesmo
os processos geológicos, físico-químicos e biológicos têm
uma historicidade sujeita às leis histórico-sociais. E evidente
que o imenso desenvolvimento das forças produtivas da so-
i;

PRINCÍPIOS GERAIS... 213

ciedade humana aumenta muito nosso poder de nos apos­


sarmos da natureza e de exercermos controle sobre ela. Is­
to se estende, por exemplo, à esfera geológica e mesológi-
ca, e se põe em evidência na historicidade do clima; assim
mesmo, existem evidências científicas da historicidade de
processos, como os biológicos, e deles, a reprodução e a ll
nocividade bacteriana, que é, por exemplo, um fato signi­ ..
ficativo para o processo epidemiológico.
Nesse histórico meio natural residem múltiplos proces­
sos vinculados com a saúde-doença, e as investigações mé­ i-

dicas não podem desconhecer este princípio.


No Esquema 7 encontram-se simbolizados os processos
que intervém na dialética do natural e do social, tal como
foram interpretados por Marx. Neste esquema, o processo
produtivo ocupa lugar central e se acha representado pelas
relações dialéticas (apenas simbolizadas por vetores) entre
o consumo e a produção econômica. Esta relação dialéti­
ca, que adquire diferentes formas de acordo com a especi­
ficidade histórica das sociedades que se consideram,
caracteriza-se por um certo grau de desenvolvimento das for­
ças de produção da sociedade e pela presença de determi­
nadas relações de produção estabelecidas entre os produ­
tores que intervém. O esquema não exprime uma especifi­
cidade histórica, mas pretende deixar patente os elementos
da dialética do social e do natural externo em seu maior ní­
vel de abstração. Como se trata de um processo de repro­
dução social, não se reproduz como um sistema que tende
ao equilíbrio de seus elementos, mas sim como uma rela­
ção dialética e, portanto, os vetores não simbolizam movi­
mentos repetitivos ou cíclicos, mas uma espiral dialética que
contém transformações quantitativas e qualitativas em uni­
dade e oposição permanentes.
O Esquema 7 não subsiste se levarmos as representações
Ii
de elementos e relações que ele contém para o concreto his­
tórico, já que não registra certas especificidades que cada li:
nova forma produtiva tem e que serão representadas grafi­
camente mais adiante.
Nas primeiras etapas do desenvolvimento histórico, o mo­
mento reprodutivo (A) foi predominante, e a realização do

i
214 JAIME BREILH

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PRINCÍPIOS GERAIS... 215

produto sujeitou-se à reprodução do sujeito global, unitá­


rio (S). Este se produzia no consumo como “S” em suas ■

duas dimensões: econômica (natural) e social (política). O


todo coletivo autárquico decidia pelo benefício global de
um sujeito que ainda não se tinha atomizado em produto­
res privados. Não existia o interesse privado, a intenção pro-
dutivista que põe sob censura o projeto coletivo. O momento
produtivo (B) subordinado divide-se em três processos: pro­
dução para o consumo (Bl), o processo produtivo propria­
mente dito, cujos produtos, mais tarde, quando o “S” se
atomiza em produtores privados, servirão para gerar pro­
dutos com valor de troca e um consumo mediado pela dis­
tribuição; o trabalho imediatamente realizado no desfrute
(B2) natural-econômico (ato de alimentar-se, manter a ha­
bitação, a recreação, etc.) e político-social (organização e •li
mobilização sociais); e produção colateral (B3), que con­
siste nas transformações indiretas da natureza e no depósi­
to de fontes de contaminação e de detritos. Com relação
a este último processo, Marx acrescentaria: “Se as possibi­
lidades incorporadas a um valor de uso não se realizam no
sentido do consumo individual nem no do produtivo, se,
portanto, não é utilizado a serviço de fins humanos, ele cai
no intercâmbio natural de substâncias...” Ao se dissolver
o valor de uso, perde-se o quantum de trabalho comunica­
do à matéria.
As condições naturais exteriores (N) são produto da “con­
isIi
tínua transformação da natureza inerte, vegetal, animal e
humana... Os animais e as plantas, que se costumam tratar
como produtos da natureza, são na sua forma atual não
apenas produtos casuais do trabalho do ano anterior, mas
resultados de uma contínua transformação ocorrida atra­
vés de muitas gerações sob controle humano e por meio do
trabalho humano” (Marx).
I
No consumo (A) intervém valores de uso mediados pelo
trabalho produtivo (Bl) e valores naturais de uso media­
dos pelo trabalho de imediata realização no consumo (B2). í
Tanto no ato de consumo (produção do sujeito) como
no de produção (consumo do sujeito) podem ocorrer pro­
cessos deteriorantes ou destrutivos do caráter natural-social.
216 JAIME BREILH

“Este intercâmbio orgânico do homem com a natureza


está vinculado com as leis naturais que precedem os homens.
Todo ato de dar forma a uma substância natural deve obe­
decer à legalidade peculiar da matéria... O fato de que o
homem viva da natureza tem, portanto, não só um sentido
biológico, mas também, antes de tudo, social. A vida bio­
lógica da espécie só resulta possível à raiz do processo de
vida social”. (Mais tarde na sociedade capitalista se pro­
duzirá uma separação entre as condições naturais objetivas
— condições inorgânicas da existência humana — e a exis­
tência ativa do homem).
Em anos recentes, as concepções sobre o biológico so­
'I freram um considerável avanço em conseqüência da apli­
cação do materialismo dialético; desse modo, estão sendo
revistos até mesmo os fundamentos da teoria da evolução,
conceitos como o da adaptação e as relações entre os orga­
nismos e o meio ambiente. Estas investigações terão, não
resta dúvida, uma importância enorme para o avanço da
^pidemiologia. Uma expressão destacada da nova escola de
biólogos é a obra de Levins e Lewontin, da Universidade
de Harvard, denominada “o biólogo dialético”. (177) É um
livro transcendente, no qual se revêem criticamente as in­
consistências das concepções cartesianas dos fenômenos bio­
lógicos, sobretudo no que concerne à evolução das espécies
e ao desenvolvimento dos organismos. A própria teoria de
Darwin é recolocada, e conceitos decisivos para a compreen­
são do biológico e dos determinantes do ambiente são re­
formulados. Os organismos já não são vistos como reato­
res passivos diante das influências de um meio ambiente for­
mado por nichos ecológicos, mas como processos ativos cu­
jos fenótipo e genótipo participam na transformação do am­
biente e de si mesmos. A recolocação do genético como al­
go estático e a superação da idéia da determinação genéti­
ca como desenvolvimento (unfolding) de um programa es­
tático contido no DNA está conseguindo abrir uma pers­
pectiva dinâmica da herança e, sobretudo, determinação em
relação à qualidade de vida e saúde das populações. A vi­
são funcionalista da categoria adaptação também é supe­
rada ao se compreender que o que caracteriza a relação dos
PRINCÍPIOS GERAIS... 217

organismos com seu ambiente não é uma homeostase ou


adaptação, mas um processo dinâmico e ativo dos organis­
mos para manter relações de produção e reprodução, um
padrão de transformação permanente, de tal forma que o
ambiente é um produto do organismo tanto como o orga­
nismo é um produto do ambiente. O organismo adapta o
ambiente às suas necessidades em curto prazo, mas, a lon­
go prazo, o organismo se adapta a um ambiente que está
sempre mudando, em parte pelas ações do próprio orga­
nismo, particulares às espécies. Desta maneira, vão sendo
superados os princípios ecológico-funcionalistas nos quais
se baseou grande parte da epidemiologia convencional. i
ÍL

História do predomínio do momento produtivo so­


bre o momento de consumo. Bases para entender
as principais formas de reprodução social.
Nos primórdios da história social, na relação dialética entre
consumo e produção, ou seja, entre as demandas de consu­
mo surgidas na estrutura e a geração de bens/produtos, o
momento determinante era o consumo. Produzia-se à me­
dida das demandas de consumo. Portanto, a sociedade hu­
mana reproduzia-se como um todo social unitário mediante
a elaboração de “coisas” como realizações de um projeto.
Isto é o essencial do projeto humano, sua peculiaridade fun­
damental: a capacidade de autoproduzir-se, de auto-realizar-
se. Mas ocorreram mudanças históricas que determinaram
o aparecimento de etapas nas quais o momento produtivo
passou a ser hegemônico. O importane para a epidemiolo­
gia é que, dependendo da forma específica deste predomí­
nio e o efeito dele sobre a qualidade do consumo resulta um
iI
certo perfil de condições de trabalho e de reposição que, por
sua vez, determina um perfil típico de saúde-doença que de­
cidimos denominar de “perfil epidemiológico”. Incorpora­
mos essa noção de perfil não para sugerir uma delimitação
dos dados aparentes, mas para significar o comportamento
típico no essencial e no fenomênico que caracteriza os gru­
pos humanos social e epidemiologicamente diferenciados.
218 JAIME BREILH

Portanto, há uma especificidade histórica da reprodução


social de cada classe, que se transforma com o tempo, su­
jeita às leis de determinação histórica, e assim mesmo dá-
se uma especificidade histórica do perfil epidemiológico tí­
pico de cada classe, que igualmente sofre uma permanente
transformação histórica.
O Esquema 8 4 representa as mais importantes etapas
desta transformação histórica da reprodução social. As fi­
guras deverão ser observadas prescindindo-se da impressão
que uma representação unidimensional traz consigo e in­
terpretadas como um processo em movimento e mudança
dialética que para fins expositivos foi reduzido a seus com­
'I ponentes mínimos.
Primeira etapa produtivista (A)

Quando no movimento produtivo das sociedades apare­


ceu escassez relativa de produção, a consecução de um cer­
to conjunto de produtos passou a ser o principal. Foi o que
sucedeu nas formas produtivas asiático-tributárias como o
Incário e a Sociedade Maia-Asteca.
Nos tempos atuais o processo histórico determinou que
a economia familiar camponesa de auto-subsistência, que
antes não participava de maneira significativa no mercado,
agora se veja forçada a fazê-lo com maior intensidade, posto
que começa a sofrer a escassez absoluta de meios de pro­
dução, e a força de trabalho se vê impedida de reproduzir-se.
Com o crescente monopólio da propriedade capitalista
sobre os meios agrícolas de produção ou a mais acelerada
transformação da unidade semifeudal na fazenda capita­
lista, as famílias dos trabalhadores agrícolas já não podem
produzir quantidades suficientes de produtos para auto-
abastecerem-se e se vêem forçadas a se deslocar para a ci-
4. No mencionado esquema deve-se buscar os seguintes significados: Ta e Tz =
trabalhos concretos; Fv = formação de valor; Pa e Pz = produtos; Va e Vz
= valor; logo: SA = sujeito operário; SK = sujeito capitalista; Ft = Força
de trabalho; VFT = valor da força de trabalho; S = salários; P = produtos;
B = bens; V + v-p = valor + valor extra; S-D’ = dinheiro inicial + incre­
mento de dinheiro.
PRINCÍPIOS GERAIS... 219

ESQUEMA 8 ■ HISTÓRIA DA REPRODUÇÃO SOCIAL I


A) Primeira etapa produtivista
i
I
I
I
J

I
consumo
5 O B/P
produção

I
I
I
I !'
I

h
I

B) Segunda etapa produtivista

(abstrata, formadora de valor)

produção circulação
I
I
I1
s
TA
FV FV
I
I
I
I
I
PA
VA
PZ
VZ I
I
I
I-
I
±

1
I,
I.
220 JAIME BREILH

C) Terceira etapa produtivista

(abstrata, formadora de mais valor)


T
produção I circulação
I
T
I
FV FV I
I FT B
SA
_ _(í I
I FT FT P

i
‘ I T"
I
I

FONTE: BREILH,J. “Epidemiologia: Economia, Medicina y Política — Méxi­


co, 1977 (baseada em ECHEVERRIA, E.)

dade para vender a sua força de trabalho nos serviços (co­


mo subproletariado) ou, em alguns casos, têm de oferecer
uma crescente quantidade de seus produtos ao mercado na
forma mercantil simples. Esta passagem do auto-
abastecimento à forma mercantil simples, geralmente acom­
panhada do processo de proletarização ou sub-
proletarização, tem repercussões muito significativas no per­
fil epidemiológico, como demonstrou a investigação de Lau-
rell e colaboradores que citamos em capítulo precedente.
Durante esta primeira etapa, geralmente conservam-se im­
portantes traços da comunidade primitiva. As famílias são
grandes, a emigração é pouca, há formas de usufruto co­
munitário, marcadas expressões de solidariedade coletiva
inscritas na objetividade da produção, quer dizer, menor
privatização e competitividade.
A forma produtiva de auto-subsistência, que mantém ain­
da poucas conexões com o âmbito do mercado, implica con­
dições de reprodução social de certo modo protetoras fren­
te à agressão econômica das unidades comerciais ou agrí-
í
i
PRINCÍPIOS GERAIS... 221

colas mais evoluídas e às formas de agressão cultural que


geralmente veiculam. Por esse motivo, mesmo que não se
possam aceitar como satisfatórias as condições que se esta­
belecem sob a auto-subsistência, em troca é possível dizer ll
que em algumas dimensões do perfil de saúde-doença estes !’>

grupos acham-se em melhores condições que aqueles que


ingressaram nos grupos mercantil-simples e assalariado, su­
postamente mais modernos e de maior progresso segundo
os alienados indicadores tradicionais de bem-estar.
Ü:
Segunda etapa produtivista (B)
il'
Quando o sujeito social começou a fracionar-se, a
atomizar-se, iniciou-se um processo mais acelerado de subs­
tituição dos produtos. r
Uma vez fracionado o sujeito S, em S privados, teve que
aparecer uma socialização substitutiva, que é o mercado ou
esfera de circulação, na qual o intercâmbio dá-sè em função
de magnitudes equivalentes de valor. A formação de valor
(FV), então, apareceu como “socialização substitutiva”. Ca­
da processo privado de produção adquiriu uma nova dimen­
são como processo de trabalho abstrato, que aparece nas mer­
cadorias (Pa e Pz), como seu valor (Va e Vz). Esta etapa é
a forma mercantil simples de processos produtivos abstratos.
Em lugar de produzir exclusivamente para a subsistên­
cia própria (auto-subsistência) e a de seus dependentes, ca­
da produtor privado (ou S fracionado) começa a destinar
uma parte crescente de sua produção para o intercâmbio
com outros produtos que ele não elabora.
As formas mercantis simples, inseridas em um contexto
capitalista, sofrem um processo crescente de desacumula-
ção uma vez que não só se vêem impedidas de gerar ganho
ou de acumular dinheiro no trâmite mercantil, como tam­
bém vão perdendo porque devem competir com seus simi­ 1
lares; baixando custos devem competir com os menores cus­

í
tos e com maiores volumes de produção das unidades capi­
talistas, devem cobrir pagamentos de interesses legais ou de
causa e, como constituem unidades produtivas menores, não
222 JAIME BREILH

dispõem dos recursos técnicos e de transporte suficientes,


o que exige que se ponham nas mãos do intermediário, cujo
enriquecimento baseia-se na consecução de trâmites comer­
ciais vantajosos. Quer dizer, o que sucede é que a quanti­
dade de trabalho acumulada nas mercadorias que o pequeno
produtor entrega é maior que a quantidade de trabalho con­
tida na mercadoria “dinheiro”, que recebe como pagamen­
to. A repetição destas transações desiguais e a correspon­
dente desacumulação têm um impacto sobre a qualidade
de vida do pequeno produtor mercantil e de seus depen­
dentes. Além disso, a exposição ao mercado tem impacto
sobre o perfil reprodutivo ampliado, impondo formas de
’ I consumo ideológico que trazem um impacto cultural e
mental.
Fazendo referência ao conceito “mercadoria” que utili­
zamos e que terá uma importância fundamental para a com­
preensão da próxima etapa, diremos que as mercadorias são
aqueles produtos que foram produzidos para a venda e não
para o autoconsumo e que devem circular para garantir que
os produtores atomizados tenham vínculos entre si. Vere­
mos adiante como a própria força de trabalho passa a ser
uma mercadoria de tipo muito especial que se vende e com­
pra num processo que tem profundas repercussões no per­
fil epidemiológico.

Terceira etapa produtivista (C)


No desenvolvimento histórico, alguns proprietários pri­
vados, os sujeitos que passaram a denominar-se operários
(S “A”), ficaram sem meios de produção, converteram-se
em despossuídos ou não-proprietários de meios de produ­
ção (M-O); enquanto isso, a classe burguesa passou a ser
y proprietária (S “K”) desses meios.
Nestas circunstâncias, dois grandes grupos de mercado­
rias passaram a ser produzidos: os S “A” produzem a mer­
cadoria força de trabalho (FT) e os.S “K” (capitalistas) fi­
nanciam os produtos (P).
A mercadoria força de trabalho tem capacidade de agre-
PRINCÍPIOS GERAIS... 223

gar valor aos objetos sobre os quais opera e, por isso, quan­
do é comprada pelo S “K” adiciona valor aos objetos (O)
na produção, utilizando certos meios (M). Isto tem refle­ 'i
xos na circulação quando o capitalista vende os produtos I
acrescidos de valor (V + v-p). É uma etapa dominada por
um processo produtivista abstrato, gerador de mais valor í
ou valorizador do valor, que submete e subordina a repro­
dução do sujeito. •i
Quando a produção chega a esa terceira etapa, a forma
de reprodução do sujeito capitalista passa a denominar-se
Acumulação de Capital, a qual põe em marcha um voraz !Íi
processo competitivo e de espoliação, que constitui o pilar
fundamental de uma forma produtiva concentradora de
meios de produção, que exclui um número crescente de uni­
dades produtivas menores e que acumula dinheiro graças
à avaliação do valor por meio da compra da força de
trabalho.
Antes de continuar com uma explicação do processo de
acumulação, é necessário destacar um fato importante pa­
ra a epidemiologia. O processo acumulativo capitalista en­
carna a negação mais acabada e cruenta, inclusive para o
próprio sujeito capitalista, de uma reprodução social ou uma
reposição vital racional e de um aprimoramento harmôni­
co das potencialidades humanas. Tanto o pólo explorado
como o pólo explorador, sob este regime, sofrem profun­
dos transtornos no seu perfil de saúde-doença, cuja magni­
tude é diretamente proporcional à penetração do processo
acumulativo nos diferentes componentes da reprodução 5
social.
O processo de acumulação refere-se ao fato de o capita­
lista comprar com o capital (C) as mercadorias (Ml) força
de trabalho (F.T.) e meios de produção (M.P.), que têm
j
seu valor “V” e “C”, respectivamente. Põe ambos a fun­
cionar na produção, a seguir vende os produtos que são ge­
rados na produção, obtém um montante incrementado de
If
dinheiro na circulação (C). A esfera de intercâmbio é o pri­
meiro estrato da superestrutura regulado por funções do Es­ I
tado. Ver Esquema 9. h
i!
I
224 JAIME BREILH

ESQUEMA 9 - A ACUMULAÇÃO DO CAPITAL

\
\
C
O FT MP V C m2
N
S \
\
u \
M
O \
\
I \
\
\
\
CIRCULAÇÃO
s — o. .(ESTADO)
c <1 C>

71
P
R
D
D
U
Ç
à v.t. v
p v M2
o v.ag.— P

Fonte: Breilh, J. “Epidemiologia, Medicina y Política”. México, 1977


(baseado em ECHEVERRIA, E.)

Se revirmos novamente a etapa C do esquema sobre a


terceira etapa produtivista que advém com o capitalismo,
poderemos reconhecer os determinantes do perfil reprodu­
tivo ou elementos da reprodução social do sujeito operá­
rio, em oposição ao processo reprodução acumulativa do
capitalista. O sujeito operário (S) produz uma mercadoria
que é sua própria força de trabalho (e o faz nas dimensões
PRINCÍPIOS GERAIS 225

do consumo simples ou ampliado que se estabelece no es­


paço da moradia, da recreação, dos serviços, do repouso,

etc.) e a leva à circulação. De acordo com as leis econômi­
cas, esta mercadoria tem um determinado valor que é o va­
lor da força de trabalho ou salário e que compreende o va­
lor do conjunto de meios de subsistência, que se requerem
para a reprodução da força de trabalho. Valor que expres­
sa uma necessidade mercantil e não a necessidade integral
de uma reprodução social inscrita num esforço de aperfei­
çoamento.

A mercadoria força de trabalho e o perfil de


saúde-doença do operário
A força de trabalho, como toda mercadoria, tem o que I
Marx denominou um caráter fetichista ou enganoso, cuja
aparência não evidencia o fato de que tem dois planos ou
estratos. ■
Toda mercadoria como resultado de uma atividade de tra­
balho concreto tem uma forma natural (ver Esquema 10)
e, como tal, é um produto concreto com certo valor de uso
para um processo de consumo concreto.
Mas, sobre este primeiro estrato natural concreto, a mer­
cadoria tem um segundo estrato social ou “forma-valor”
e que é uma cristalização de trabalho abstrato, uma objeti-
vação social de energia que lhe dá utilidade, em abstrato,
de ser mutável segundo um certo valor que é seu valor de
troca, o qual depende da quantidade de trabalho socialmente
necessária que a esta mercadoria é atribuída. É no merca­
do que se consegue saber, pela oferta e procura, quanto tem­
po de trabalho socialmente necessário tem um produto.
O valor socialmente necessário da força de trabalho
expressa-se num certo valor de troca, que é o salário.
A mercadoria força de trabalho, como toda mercadoria,
contém uma oposição ou contradição interna entre seu va­
lor abstrato ou forma-valor e seu valor concreto ou valor
de uso (como “bem”). No conhecimento dos limites e mu­
danças que se operam nesta contradição recaem as deter-
226 JAIME BREILH

ESQUEMA 10 - ESTRUTURA DA MERCADORIA

Expressão B $
Conteúdo P V

I
Produto
Concreto
Produto
abstrato
(forma valor)

FONTE: BREILH, J. “Epidemiologia: Economia Medicina y Política”


— México, 1977. (baseado em ECHEVERRIEA, E.)

minações mais importantes da saúde-doença. O valor que


se expressa em um salário implica acesso a uma qualidade
de vida e possibilidades de melhoramento, em contradição
com os bens concretos que, de acordo com a máxima força
produtiva que se conquistou, deveríam preparar o homem
para sua participação no processo social.

O processo epidemiológico nos processos gerais


Nós, que fomos formados em um contexto no qual as con­
cepções do positivismo são hegemônicas, temos grande difi­
culdade para superar suas formas lógicas e seu enfoque da
realidade que isola as coisas e só reconhece vinculações exter­
nas. Este enfoque se reforça, porque efetivamente na sua apa­
rência exterior ou fenomênica as coisas se nos apresentam se­
paradas e nenhuma concatenação entre elas se faz tangível.
I
PRINCÍPIOS GERAIS... 227

No campo profissional sistematiza-se a visão positivista,


reduzindo-se a preocupação do especialista para com os “fe­
nômenos” e “fatores” especiais. li
É necessário resgatar a unidade do real ou identificar de
que modo a saúde-doença coletiva é uma parte do todo, do
qual toma as determinações fundamentais guardando as es- i
pecificidades de todo o processo particular.
Mediante o Esquema 11, apresentamos uma visão resu­
i
mida dos principais domínios e concatenações que se esta­
belecem na sociedade, para poder destacar os condicionantes
históricos e propriedades particulares do processo
epidemiológico.
Na parte “1” do esquema expõem-se, sob a coluna de­
nominada Processo Geral, as categorias fundamentais de
determinação histórica (quadros 1 e 2). Sabemos que as for­
mas de desenvolvimento das forças produtivas e as relações
de produção não se apresentam na forma pura, mas que
coexistem historicamente numa formação social, (quadro 3)
Em cada um dos modos particulares de produção de uma
formação social concreta, estabelecem-se classes sociais (cuja
definição demos anteriormente), as mesmas que passam a
ser parte do todo concreto, entrando numa determinada
composição de classes (quadro 4).
Sobre a base das determinações estruturais levantam-se
condições naturais, políticas e de consciência, (quadros 5,
6 e 7) i
Passando-se do geral para o particular em cada um dos !
domínios antes enunciados, podemos reconhecer expressões ji
da categoria particular: reprodução social, (quadro 8) Tal
categoria, como asseveramos antes, constitui um conceito
de conexão lógica que adotamos para relacionar o domí­
nio do geral com o do particular e ir delimitando nosso ob­
jeto, que é o processo epidemiológico. As classes sociais têm
processos típicos de reprodução social (quadro 9) em dife­
rentes fases de desenvolvimento.
Dos processos de reprodução, tem maior interesse para
o epidemiólogo destacar certas categorias que contêm as­
pectos centrais do processo epidemiológico. Entre eles, a
capacidade dos sujeitos sociais de enfrentar sua reprodu-

|i
228 JAIME BREILH

ESQUEMA 11 - O PROCESSO EPIDEMIOLÓGICO NOS PROCESSOS


GERAIS. (PARTE I)
/■

D.F.P.
Processos Desenvolvimento das
Forças Produtivas 1 Reprodução
social
Determinantes R.P. (Rep. natural realizac.)8
Relações de
Produção 2

' I
FORMAÇÃO SOCIAL
Modos e formas de Tipos de processos de re­
reprodução em desen­ produção social em
volvimento concatenado desenvolvimento. 9
3

Composição social Classes de “S” em dife­


Classes 4 rentes fases de reprodu-
ção.10

“ Condições Gerais - Condições particulares

Sociais, Naturais: Capacidade dos “S” re­


Saúde-doença sultante de produção-
5 consumo:
História da natureza;
Perfis epidemiológicos de
classe 11
Políticas 6

De consciência Normas de prática


L (político-ideológica) epidemiológica. 12
7

Concepções e modelos
epidemiológicos. 13
PRINCÍPIOS GERAIS... 229

ESQUEMA 11

o processo (parte II)

Elementos
Dimensões, valor, correspondentes empíricos.
Dimensões, valores, correspondências
Intercâmbio Orgânico do “S” com a na­
tureza (C).
(A) Consumo (Produção do sujeito social
“S”).
(B) Produção (Consumo ou desgaste do
sujeito social “S”).

Acumulação de Capital (K)


(modulada por crises) ij
Empobrecimento
Formas Híbridas de subsunção do traba­
lho no K)
jl

“S” Capitalista ■

“S” Assalariado (incluindo pseudo pe­


queno produtor)
“S” Pequeno Produtor
“S” Desempregado ou Subempregado

Perfil Epidemiológico de cada “S” (de


classes)

Perfil Reprodutivo
bens domínio contra-valores

Perfil Patológico e Saúde


[
Casos Clínicos Individuais

Estatal formal: ie. U


Coletiva (civil) infonn: cop.

Conceitos de “Determinação” e
de “Distribuição”.
Modelos vigentes e concepções

Fonte: BREILH, J. “EPIDEMIOLOGÍA: Economia, Medicina y Política”


México, 1977.
230 JAIME BREILH

ção mediante o consumo e a produção (quadro 11), formas


específicas de prática epidemiológica (quadro 12) e certas
expressões, no plano da relação dos homens concretos de
classe com os problemas coletivos de saúde-doença. (qua­
dro 13)
Desprendendo-se das categorias mais gerais antes descri­
tas, na segunda parte do gráfico simbolizamos as relações
dos elementos constitutivos principais, que expressam um
reordenamento mais específico e uma maior aproximação
do concreto. Deve-se destacar, nesta parte do esquema, o
“perfil epidemiológico”, que é o conceito particular que
t
achamos resume a essência de todo o conjunto e por sua
vez expressa as peculiaridades da preocupação epidemioló­
gica, expressando-se assim as relações do processo de cons­
trução racional do objeto de estudo que nos ocupa. No Es­
quema 12 ressaltam-se à parte, os elementos que integram
o perfil epidemiológico.
O perfil epidemiológico resume a essência de um comple-
:o processo de determinação histórica que opera em todos
>s domínios e níveis, que se caracteriza pelo movimento ou
ransformação permanente, que se manifesta em cada clas­
se social5 num perfil reprodutivo e que resume as contradi­
ções que tanto operam na dimensão natural e nos fenôme­
nos não expressamente sociais, estreitamente ligados com o
domínio da classe “em si” (exemplo: a classe social por sua
inserção objetiva no aparelho reprodutivo) e da classe “pa­
ra si” (exemplo: a classe quando tem consciência de seus in­
teresses históricos a longo prazo). Esta trama complexa de
contradições, por sua vez, expressa-se num perfil típico de
saúde-doença, o qual implica manifestações propriamente
individuais que resultem de todo o processo de determina­
ção. Finahnente, daquele perfil típico coletivo podem se des­
prender casos individuais prováveis, segundo matizes regio­
nais, etários, ocupacionais, sexuais, raciais, etc.
A concatenação de todo o conjunto de processos que se
desenvolvem numa classe social ou em frações e as etapas

5. Os perfis epidemiológicos das classes sociais em formações capitalistas atrasa­


das explicam-se no texto do autor e Edmundo Granda: “Investigação da Saú­
de na Sociedade”.
PRINCÍPIOS GERAIS... 231

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232 JAIME BREILH

que tal conjunto permite diferenciar ao longo de certos pe­


ríodos deveríam constituir os critérios classificatórios reais
para agrupar a problemática e, desse modo, substituir as
“causas” de morbidade ou mortalidade como variável de
classificação. Estas últimas poderíam ser retomadas no úl­
timo nível, o da classificação clínica individual, e serviríam
para o trabalho neste nível.
Se observarmos o gráfico anterior, notaremos que ele
mostra uma representação simbólica do perfil reprodutivo
de uma classe e também a correspondente ao perfil de saúde-
» doença. O primeiro refere-se às categorias que permitem sis­
tematizar o estudo da própria reprodução social da classe
I e identificar os diferentes planos de ação que se adotam na
prática. O segundo perfil, ou de saúde-doença, refere-se ao
nível semiológico, que pode corresponder ao perfil típico
de uma classe na sua totalidade (num certo momento his­
tórico) ou ao caso individual.
Na representação do perfil reprodutivo foram colocadas
luas colunas opostas correspondentes à contradição entre:
is manifestações da reprodução social que constituem um
bem ou valor de uso para a classe e seu aperfeiçoamento
(que se constituem num processo concatenado, não apenas
numa listagem), e aquelas que se lhes opõem como proces­
sos deteriorantes, nocivos ou “contravalores”, resultados
do processo reprodutivo de classe contrapostos ao desen­
volvimento e aperfeiçoamento da saúde da mesma.
As condições favoráveis, que denominamos valores de
uso, (bens), desenvolvem-se em unidade dialética com os
contravalores de uso ou negações do perfil reprodutivo de
cada classe social.
O avanço histórico do processo geral e da classe social
determina qual dos pólos da contradição desenvolve-se. Ca­
da vez que se intensifica o pólo dos bens ou valores de uso
as repercussões globais são de potenciação das expressões
de saúde e vitalidade da classe. Quando é o pólo da nega­
ção ou contravalores de uso o que hegemoniza os termos
da contradição, desenvolvem-se a doença e a morte. Depen­
dendo da integridade das mudanças históricas e da' exten­
são do compromisso dos elementos do perfil, durante a mu-
PRINCÍPIOS GERAIS... 233

dança, a contradição pode desenvolver-se em sentido mais i


ou menos amplo e comprometer parcial ou totalmente os
elementos do perfil.
Ademais, devemos tomar em consideração que a contra­ i
dição entre o conjunto de bens ou valores e sua negação
pode desenvolver-se em três domínios que se diferenciam I.
assim:
Por um lado, os domínios que correspondem às condi­
ções materiais objetivas da classe: domínio dos processos
básicos naturais; domínio dos processos estruturais que ex­
pressam a essência do movimento histórico da classe e que
genericamente Marx definiu como a classe “em si”. A se­
paração entre um e outro praticamente não existe. Mas, além
disso, está o domínio que corresponde às possibilidades do
movimento de classe enquanto força política material, en­
quanto organicidade e capacidade de transformação de suas
próprias condições materiais de existência, enquanto “po­
tência” de unidade para tornar-se em força material de
transformação.
Deste modo, fica delineada no perfil reprodutivo essa du­
pla relação da qual falava Marx ao referir-se à produção
e reprodução da vida, as relações naturais e sociais.
No domínio natural, assinalado como “1” no Esquema
12, estabelecem-se os processos da base natural da vida so­
cial: o conjunto de processos das condições naturais exte­
riores em sua dimensão mais ampla (processos cosmicogeo-
lógicos e ecológicos) e os processos de constituição geral das
funções orgânicas (metabólicas, de crescimento e desenvol­
vimento, de reprodução biológica, de movimento e susten­
I
tação, de controle e regulação). Neste caso, referimo-nos I
ao conjunto de processos naturais sobre os quais se desen­
volve a vida material social e as expressões de estruturação
tipicamente social.
Há uma separação imperceptível entre as condições na­
turais gerais, socialmente determinadas, e as condições na­
turais específicas da classe. I

Ao organizar ações de saúde pode-se operar sobre as con­


tradições dos três domínios, como simbolizam os respecti­
vos vetores numerados. Mas é preciso se ter em conta que
234 JAIME BREILH

vos vetores numerados. Mas é preciso se ter em conta que


existe uma hierarquia entre os domínios de tal modo que
as ações de maior repercussão no perfil de saúde de classe
são as que se exercem frente ao domínio 3, enquanto as ações
de maior repercussão no caso individual são as exercidas
no domínio 1. As ações do domínio 2, a menos que sejam
integrais, caso em que seguramente implicam ações no do­
mínio 3, têm repercussões no perfil de saúde-doença coleti­
vo, porém, menores e menos duradouras. O delineamento
ótimo de ação seria aquele que reconhecesse a relação hie­
I rárquica e interdependente dos domínios e assegurasse res­
postas permanentes e conjunturais efetivas nos três domí­
nios, segundo prioridades estabelecidas sobre um terreno
histórico específico.
O nível da reprodução da classe social “em si” assenta-
se na dialética de produção e consumo, a qual situamos nas
duas colunas assinalando o fato de que podem desencadear
efeitos opostos, segundo a contradição desenvolva-se para
• benefício da classe ou contra ela. As conquistas que inte­
gram os espaços e conteúdos do “consumo-produção”, ob­
tidos pela luta da classe em resposta a seus verdadeiros in­
teresses, produzem um efeito no pólo saudável do perfil de
saúde. Aquele desenvolvimento dos termos da contradição
que se opõem aos interesses da classe ou que produzem efei­
tos diretos sobre seus componentes refletir-se-á no pólo de
morbidade e mortalidade.
Com o fim de discriminar melhor as possibilidades de
ação e reconhecer os níveis de consumo vamos ampliar a
discussão destes aspectos.

Consumo e produção nas formações capitalistas6


Para aproximarmo-nos do concreto e situarmos níveis
mais específicos da reprodução social do capitalismo, vamos

6. Uma explicação mais detalhada das dimensões e indicadores da produção e


do consumo encontra-se no texto do autor e Edmundo Granda “Investigação
da Saúde na Sociedade”.
PRINCÍPIOS GERAIS... 235

apresentar quadros explicativos das formas de consumo e


produção, assim como dos aspectos mensuráveis do predo­
mínio produtivista nas formações sociais determinadas por
este modo de produção.
O consumo e a produção são os termos de uma contra­
dição dialética que foi exaustivamente explicada por Marx
na Introdução de 1857. Não vamos aqui repetir esta expli­
cação, mas apenas resumir seus pontos de destaque: em pri­
meiro lugar, o produtor individual é uma mistificação. Con­
sumo e produção são fenômenos sociais contraditórios. O
consumo é produção social e a produção é duplo consumo,
subjetivo e dos meios. Ocorre uma mútua mediação entre
os dois processos: sem necessidade não há produção e o con­
sumo reproduz a necessidade; e a “produção produz o con­
sumo, determina o modo de consumo”. Esta última afir­ I
mação implica um aspecto crucial para a delimitação do qua­
dro do consumo, posto que implica que as diferentes di­
mensões do consumo têm um conteúdo e um modo ou for­
ma de consumo. Marx exemplifica-o na Introdução de 1857,
dizendo: “A fome é fome, mas a fome que se satisfaz com
carne cozida, comida com faca e garfo, é uma fome muito
diferente da que devora carne crua com ajuda de mãos,
unhas e dentes... De modo que a produção não somente
produz um objeto para o sujeito, mas também um sujeito
para o objeto”.
Explicaremos estes termos de maneira breve:

Consumo

É a produção do sujeito a partir de bens ou valores de


uso mediados pela produção. Alguns se obtêm na esfera da
circulação e outros provêm da natureza como bens natural-
sociais. Igualmente, o bem político é compartilhado pelo
sujeito individual quando se organiza. Reproduz-se um sis­
tema de capacidade de assimilação de valores de uso e de
repulsa de contravalores.
O consumo tem duas formas:
Natural-econômica — três tipos:

i
236 JAIME BREILH

— Restauração simples: repõe condições em igual mag­


nitude que o desgaste da jornada anterior.
— Aperfeiçoamento quantitativo: permite melhorar
quantitativamente as condições de consumo.
— Aperfeiçoamento qualitativo: permite melhorar qua­
litativamente as condições de consumo, isto é, capa-
. cidade técnica, nível de instrução, etc. Realiza-se no
nível das “classes em si” e no indivíduo.
Política (Organizacional ou Institucional): Realiza-se no
nível das “classes para si”.
As formas de consumo que descrevemos têm por sua vez
I
várias dimensões:
O consumo econômico-natural que corresponde à classe
“em si” tem as seguintes dimensões:

DIMENSÃO CONTEÚDO CONTEÚDO


NATURAL CULTURAL
1ONSUMO SIMPLES
Alimentação Dieta Modo de comer
Moradia Estrutura do espaço Status e
e ambiente, micro- O estético
clima, contaminan-
tes, etc.
Vestuário Qualidade do Status e
material, adequa­ estético
ção; rotatividade
Recreação Conteúdo formativo, Status
distração e repouso.
CONSUMO AMPLIADO
Serviços Forma, oportunidade Conteúdo ideológi­
e eficácia; co e político
restauração da F.T.
Suntuários Estética e
Status

O consumo político tem duas dimensões: a organizativa


e a de elevação de consciência sobre a realidade e possibili­
dade de mudança.
Se se deseja encontrar indicadores que meçam as formas
e dimensões do consumo em determinado processo de in-
PRINCÍPIOS GERAIS... 237

vestigação, tem-se que selecioná-los de acordo com o mo­ i


do de produção que se está estudando. No entanto existem
duas medidas de consumo: a que se refere à distribuição I,
em tempo de jornada (jornada de trabalho necessária e ex­ !:
cedente e jornada de reposição vital física, cultural, políti­
ca), e a que focaliza o valor, quantidade e qualidade dos
meios de subsistência.

Produção
Consiste no consumo do sujeito durante a atividade de
transformação da natureza que se efetua mediante o con­ i
sumo de objetos. Refere-se ao gasto energético e à conse­
cução de produtos no processo ocupacional ou de trabalho I
concreto, base sobre a qual se instala nas sociedades de clas­
ses, o trabalho abstrato ou formador de valor.
Focalizando a produção do ponto de vista da realidade i
no capitalismo, podemos classificá-la da seguinte forma:
Trabalho Produtivo-, Processo valorizador do valor que
se efetua pelo consumo da força de trabalho que, ao
desgastar-se, torna-se objetiva, agregando-se ao objeto de
produção que vai circular. Possui valor de troca. Tem as
seguintes variantes:
Extensivo — caracterizado pela prolongação absoluta da
jornada de trabalho; pode chegar a produzir um desgas­
te extra por violação do tempo mínimo de restauração;
Intensivo — por concentração do trabalho, encurtamento
dos tempos e maior freqüência no ritmo;
Dependente — realiza-se no processo mecanizado e au­
tomatizado; pode haver um desgaste de acordo com os li1
tempos e ritmos impostos;
Mistos — combina os anteriores.
Trabalho Improdutivo-, Cujo produto é automaticamente
I
realizado no desfrute ou materializa-se antes de desfrutar,
mas não circula. Possui valor de uso e não de troca. Divide-
se em:
Natural-econômico — trabalho gasto na preparação de
alimentos no domicílio, puericultura e outras formas de
produção doméstica e recreativa e;
238 JAIME BREILH

Trabalho político-social — trabalho empregado na for­


mação política, organização e mobilização.
Uma terceira forma de trabalho improdutivo, mas não
de desfrute, é a produção colateral, a qual resulta colate­
ralmente enquanto se realizam outros tipos de trabalho. Gera
detritos, poluentes orgânicos e inorgânicos e outras trans­
formações da natureza indireta (ex: erosão; reservatórios
aquáticos larvários; transformação da capacidade de resis­
tência microbiana, etc.).
Os indicadores principais que podem ser utilizados para
l
medir a produção com fins epidemiológicos são: as flutua­
ções da jornada, o valor dos produtos e a composição do
mesmo, sabendo que o valor do desgaste é proporcional ao
valor agregado que, no caso da produção capitalista, é igual
à soma do capital variável (pagamento de salários) mais a
mais-valia. Em outras palavras, é igual ao valor total da
produção menos o valor inicial transferido.
A reprodução social e as categorias que permitem
:onhecê-la constituem um ponto nodal da análise epidemio-
ógica. Permite exprimir todas as contradições essenciais
(sociedade-natureza, produçâo-consumo, as contradições do
trabalho, as contradições do consumo, a contradição valor
de uso-processos nocivos ou deteriorantes, a contradição
saúde-doença) que explicam a variação espaço-temporal dos
fenômenos epidemiológicos. Integra os processos particu­
lares que em seu conjunto formam o objeto epidemiológico.
Em algumas oportunidades, quando precisamos nos apro­
fundar na epidemiologia do trabalho, a categoria reprodu­
ção social socorre-nos para evitar reproduzir o empirismo
da medicina ocupacional clássica, desconectando a análise
das determinações que ocorrem no processo de trabalho de
suas conexões históricas mais amplas. Por outro lado, quan­
do necessitamos penetrar no estudo das determinações epi-
demiológicas do consumo, socorre-nos para evitar que este
seja desconectado de sua base produtiva. Enfim, permite
apreender a essência dos fatos epidemiológicos em meio à
unidade e diversidade do mundo material.
PRINCÍPIOS GERAIS... 239

AS HIPÓTESES EPIDEMIOLÓGICAS
As hipóteses são o eixo central em torno do qual gira a
produção do conhecimento científico. Sua construção con­
densa o conteúdo lógico da investigação e reflete o grau ló­
gico a que esta chegou. A partir de conjecturas iniciais elas
vão se produzindo como resultado do processo dialético de
construção do objeto e de suas explicações essenciais.
Uma hipótese epidemiológica, cujas premissas e juízos
de probabilidade incorporam a capacidade explicativa das
leis gerais (mediante o emprego do método da economia po­
lítica) e o conhecimento das determinações mais particula­
res (mediante o emprego do método epidemiológico), alcan­
ça o grau racional do conhecimento. Em troca, aquela hi­
pótese que incorpora apenas variáveis particulares alcança
somente um grau empírico-descritivo e, no máximo, des­
creve associações empíricas de alta probabilidade.
As premissas para a construção da hipótese são extraí­
das do referencial teórico da investigação e, uma vez deli­
neado o conteúdo lógico, podem sofrer uma operacionali-
zação que permita a reaproximação do concreto empírico.
Ver Esquema 13.

As hipóteses “práticas” da epidemiologia liberal

Lilienfeld (178), professor da Universidade de Johns Hop-


kins, no capítulo correspondente a “Propósitos, Conteú­
do e Raciocínio Epidemiológico”, sustenta que, para elu­
cidar o que se denominam fatores etiológicos de uma doen­
ça, os estudos observacionais executam um processo de ra­
ciocínio de duas etapas. Primeiro, buscam estabelecer uma
associação estatística entre uma determinada característica
(segundo o autor, pode corresponder às condições do meio
ambiente local, hábitos de vida pessoais, ou composição ge­
nética) e uma doença e depois procuram estabelecer infe­
rências biológicas a partir do padrão estatístico. Adminis­
tradas por este tipo de estrutura lógica, utilizando premis­
sas e conclusões hipotéticas de ordem empírica, surgem as

■I
240 JAIME BREILH

ESQUEMA 13 - HIPÓTESES E OPERACIONAL1ZAÇÃO

nível teórico
/
nível empírico
/ X

referencial
variáveis
1
dimensões
delimitação^ 1í h\ :
hipóteses
i i
(premissas) ppredições indicadores
1
escalas
I
i, resultados
Fonte: Breilh J. “Epidemiologia, Economia y Política”. México, 1977.

üpóteses típicas que relacionam casualmente, por exemplo,


certos microorganismos com processos infecciosos. Veja­
mos o que está por detrás deste tipo de hipótese.
No segundo capítulo de sua obra “Hipótese e Verdade”,
Kopnin averigua as bases teóricas do que ele denomina “lu-
cubrações positivistas ou neopositivistas”. Os investigado­
res burgueses, segundo ele, reconhecem somente o papel heu­
rístico da hipótese, porém negam seu significado objetivo,
"... há tendência de considerar a hipótese como uma es­
trutura de trabalho apenas, carente de todo conteúdo ob­
jetivo... simples ficções que têm apenas valor prático...”,
são para eles “... uma espécie de muletas que convém à ciên­
cia abandonar o mais cedo possível. Mas, como as muletas
podem ser de qualquer classe, sempre e quando ajudam a
manter-se de pé, as hipóteses são múltiplas e são criadas
arbitrariamente, não refletem os processos objetivos que se
produzem na natureza e na sociedade...”. A verdade com­
pleta é inatingível. Assim, Kopnin revela a essência prag­
mática dessas construções lógicas; são hipóteses “cômodas
PRINCÍPIOS GERAIS... 241 I

e úteis” que resultam em algum benefício, mesmo deixan­ ■

do encoberta a essência do objeto.


Prosseguindo nesta construção de alcance puramente ins­ I
trumental, a maior parte das investigações epidemiológicas
do capitalismo refugiou-se comodamente nas hipóteses dos
fatores de risco e associações estatísticas. Mas, ainda que
se disfarcem tais postulações com ornamentos sociais, no
fundo segue-se trabalhando como se, por exemplo, o baci­
lo de Koch fosse a causa da tuberculose e essa doença exis­
tisse isolada como uma entidade independente que começa
e termina no espaço natural-orgânico. Imediatamente
defende-se como fato probatório da validade do esquema
aplicado, exclusivamente, a redução de alguns indicadores
quantitativos de doença ou inclusive determinação de cer­
tos problemas sanitários isolados. Geralmente o procedi­
mento recebe a marca do êxito e o aplauso oficial, sobretu­
do quando as mudanças superficiais que introduz estimu­
lam a produtividade capitalista.
Na epidemiologia, por tal motivo, acha-se muito arrai­
i!
gada a noção tradicional de que a casualidade é a única for­
ma de concatenação e de que a hipótese é uma conjectura
sobre a causa do fenômeno. Mas Kopnin, citando Lênin,
explica que a causalidade “... não é mais que uma partícu­
la dos nexos universais que reinam na natureza e na socie­
dade. A ciência enuncia hipóteses não somente com refe­
rência aos vínculos causais, mas, em geral, sobre os víncu­
los sujeitos às leis dos fenômenos. As hipóteses científicas
mais importantes explicam o modo como transcorre, em seu
conjunto, um ou outro processo, pondo também em evi­
dência as causas do fenômeno”. (179) De fato, o tipo de
hipótese científica que corresponde ao referencial metodo­
lógico que traçamos é o que constitui um sistema de con­
ceitos, juízos e raciocínios de caráter complexo sintético,
estruturado ao redor de um juízo de possibilidade que é a
suposição e que reflete plenamente as propriedades e leis
historicamente determinadas do processo saúde-doença. Pa­
ra utilizar as palavras de Kopnin, nossas hipóteses deverão
reunir o que já se conhece com o novo, com aquilo que se
busca, entrelaçando-os por meio da suposição. (180)
242 JAIME BREILH

Chegando ao momento do enunciado hipotético, pode­


riamos considerar cumprida a primeira etapa do conheci­
mento, que conduz da matéria objetiva à consciência sub­
jetiva, da existência às idéias. Mas o problema mais impor­
tante não consiste em compreender as leis do mundo obje­
tivo para interpretar o mundo, mas em aplicar o conheci­
mento dessas leis para transformá-lo. O critério de verda­
de para nossas hipóteses é a prática social, uma prática que
não significa a restituição da função de segmentos isolados
do sistema social, mas a ação integral sobre todos os ele­
mentos e relações que se refletiram na hipótese.
l
A aplicação desta lógica geral poderá ser melhor enten­
dida se utilizarmos um dos exercícios que Marx apresentou
para exemplificar o modo de raciocínio do método funda­
do por ele. (181) Uma vez que trabalhou com muitas cate­
"i
gorias, observamos algumas das consolidações que expôs
acerca de uma delas, a categoria “população”. Ao fazê-
lo, estamos pensando na utilidade que além do mais terá
o exercício para a discussão num capítulo posterior, da ca-
egoria epidemiológica “população sujeita a risco”.
Marx faz notar que se representássemos a sociedade hu­
mana com a categoria população teríamos uma idéia caóti­
ca e vaga do conjutno. Se, em troca, submetemo-la a uma
análise, chegamos a abstrações cada vez mais sutis, encon­
trando, por exemplo, que ela está dividida em classes. Por
sua vez, essas classes “são uma palavra vazia se desconhe­
cemos os elementos sobre os quais repousam, por exemplo,
o trabalho assalariado, o capital, etc.” Assim mesmo, es­
tes últimos conceitos supõem a troca, a divisão de traba­
lho, o valor, etc. Com estas simples determinações, pode­
mos empreender o caminho de volta, a síntese, conseguin­
do reproduzir as propriedades e relações básicas das clas­
ses sociais fundamentais e diferenciando-as das camadas ou
estratos. Assim, ficarão decifrados os nexos objetivos que
mantêm unidos grandes grupos de indivíduos numa classe
e entenderemos que o homem individual, como o singular,
carrega a essência determinante do geral (a classe), ainda
que conserve uma dimensão de peculiaridade. Com tudo is­
so, ter-se-á derrubado a possibilidade de usar cientificamente
PRINCÍPIOS GERAIS... 243

Em síntese, as hipóteses científicas da epidemiologia têm


dois planos explicativos dialeticamente concatenados: a ex­
plicação histórica sujeita às leis dos processos e a sinaliza­
ção concreto-empírica de elementos e associações que no
delineamento posterior converte-se no quadro de variáveis
do estudo.

OBSERVAÇÃO, ANÁLISE E CONCLUSÕES


i
Desenvolvemos os aspectos gerais concernentes à obser­ ■j
vação, análise e conclusões epidemiológicas ao longo dos
capítulos de crítica, e também naqueles nos quais se traçou
uma alternativa metodológica. Nesta parte vamos apenas
sintetizar alguns pontos que localizam tais componentes me­
todológicos, destacando de modo geral as implicações que
frente a eles tem a nova postulação geral.
No livro Investigação da Saúde na Sociedade, produzi­
do por investigadores do Centro de Estudos e Assessoria
em Saúde — CEAS de Quito —, desenvolve-se, entre ou­
tros aspectos, uma análise crítica dos instrumentos técni-
co-metodológicos da observação epidemiológica e da aná­
lise. Tal obra, além de consolidar várias postulações teóri­
cas, constitui uma espécie de prolongamento operacional
dos desenvolvimentos conceituais que o presente trabalho
pretendeu estabelecer.
Os conteúdos dos dois livros mantêm uma continuidade
lógica que surgiu como conseqüência da necessidade de ar­
ticular as reformulações teóricas com o uso de técnicas de
mensuração e análise dos processos concretos da saúde-
doença. Em outras palavras, o novo referencial interpreta-
I
tivo, com suas decorrentes hipóteses principais, deve projetar-
se sobre o que fazer científico e político de nossos povos e,
para isso, é muitas vezes imprescindível projetá-lo sobre a
observação do concreto, através de procedimentos opera­
cionais e técnicos idôneos e viabilizar sua penetração na cons­
ciência popular e no desenvolvimento da luta política.
É, em conseqüência, uma meta fundamental e um ponto
de partida para a posterior assimilação por parte das orga-
244 JAIME BREILH

nizações coletivas, a consolidação de um conjunto articu­


lado e coerente de técnicas de observação e análise que tor­
nam factível a utilização das novas categorias e relações teó­
ricas para o estudo da realidade. Como já foi explicado an­
teriormente, isto não equivale à utilização irrestrita das téc­
nicas desenvolvidas pela epidemiologia funcionalista; o que
se requer é assimilar seletivamente os recursos convencio­
nais de acordo com uma oportunidade e uma ordem deter­
minadas pelo novo marco conceituai. De imediato, o ante­
rior implica recolocar as próprias técnicas, designar-lhes
campos de uso e de valor explicativos, redefinir os instru­
I mentos operacionais e construir novos.
Deste modo, se o campo interpretativo da epidemiolo­
gia teve que estender-se à compreensão integrada e dialéti­
ca dos determinantes gerais, dos mecanismos epidemioló-
v gicos particulares e das manifestações individuais de saúde-
doença, assim também, os instrumentos técnicos devem per­
mitir observar e relacionar as variações dos processos nes­
tas três dimensões.
No terreno da observação epidemiológica, várias mudan-
as devem estabelecer-se nos instrumentos e técnicas para
ar-lhes coerência com o novo referencial teórico. Assim,
or exemplo, tornou-se indispensável redefinir o próprio
conceito de variável, uma vez que, ao ser este um conceito
de ligação operativo entre os termos teóricos da hipótese
sobre os processos e as manifestações tangíveis de sua va­
riação empírica, resulta logicamente necessário reformular
as dimensões e implicações das variáveis epidemiológicas.
O anterior ajuda na reformulação da norma explicativa do
correspondente empírico no conhecimento. Complementar-
mente tomou-se necessária a construção de novos indica­
dores e a reinterpretação dos velhos.
Igualmente, uma vez reconstruídas a interpretação do fato
epidemiológico e sua inserção como processo particular, su­
jeito a determinações sociais mais amplas, deve-se forçosa-
mente substituir as classificações convencionais dos proces­
sos saúde-doença, tais como a “Classificação Internacio­
nal de Doenças e Causas de Morte” e gerar novos critérios
de classificação que reconheçam as novas dimensões e re­
lações dos processos epidemiológicos.
ij
PRINCÍPIOS GERAIS... 245

Em Investigação da Saúde na Sociedade, explica-se a ne­


cessidade de incorporar também novos critérios para a aná­
lise dos resultados em epidemiologia, o que implica princi­
palmente a reformulação do papel e inter-relações dos com­
ponentes lógico-histórico (qualitativo) e probabilístico (quan­
titativo) da análise. Como proclamamos insistentemente, <i
não se trata de abandonar as técnicas de delineamento con­
vencionais (como as técnicas transversais, longitudinais, etc.)
nem as técnicas de análise da variabilidade (tais como as
provas de significado estatístico, análise de variância, re­
I
gressão, análise multivariada, etc.), mas de recolocar seu
uso e suas normas no procedimento de demonstração.
Assim como anteriormente se fez referência às profun­
das inovações que a biologia está experimentando como con-
seqüência da incorporação de um enfoque dialético, pode-
se dizer que algo parecido se passa no campo da observa­
ção empírica e da análise. Neste particular, evidenciam-se
duas grandes áreas de inovação de inquestionável repercus­ I
•j
I
são para a epidemiologia: a crescente incorporação das téc­
nicas antropológicas de observação individual ou intensiva
e da correspondente análise qualitativa e as inovações dos
princípios e técnicas da análise matemática. No primeiro ca­
so, a explicação de técnicas como as autobiográficas (nar­
rações e histórias de vida), despojadas de suas distorções
culturalistas e fenomenológicas por abordagens como as de
Bertaux e Franco Ferraroti, permitem estudar os processos
de atividade e as representações dos indivíduos em seu dia-
a-dia. No segundo caso, as matemáticas e a observação de
fenômenos dinâmicos estão sofrendo uma profunda trans­
formação com o surgimento de novas concepções do espa­
ço geométrico, como a teoria dos fractais e outras vincula­
das ao estudo do caos, o que permitirá liberar a análise do
correspondente empírico das rigidezes e reducionismos das
técnicas atuais, baseadas na concepção cartesiana de espa­
ço. Poderão ser superados, deste modo, os modelos con­
vencionais de análise matemática formal, como a análise
de variância, a regressão, etc. Quer dizer, não se trata só
de incorporar à investigação epidemiológica outras varian­
tes dos modelos convencionais, tais como a regressão lo-
246 JAIME BREILH

gística para o estudo das variáveis dicotômicas, mas trata-


se de modificar os fundamentos mesmos da análise para po­
der refletir o movimento e a complexidade dos fenômenos
como os epidemiológicos.
De modo geral, pode-se asseverar que, além de conquis­
tar um caminho seguro para o avanço da reconstrução teó­
rica, é necessário apontar para vias de reconstrução opera­
cional, e este desafio só pode consolidar-se por meio de uma
prática de investigação articulada organicamente aos inte­
resses popular-democráticos.
f

4.
-

6. A investigação epidemiológica na
prática social

Muitas vezes debateu-se sobre quais podem ser as arti­


culações práticas entre os intelectuais das ciências e os tra­
balhadores em geral. É certo que a atividade científica, por
mais comprometida que seja, requer, igualmente à arte, de
uma autonomia relativa em seu processo interno, mesmo
quando necessita manter vínculos práticos que a ponham
em permanente contato com a perspectiva popular.
Atualmente, surgem para a epidemiologia novos desafios
postulados pelos trabalhadores, como os do movimento ope­
rário italiano. Eles propuseram o chamado “modelo ope­
rário” de uma investigação participativa. Constatações em
outros contextos, como as de Vicente Navarro (Universi­
dade de Johns Hopkins), revelam que os operários deram-
se conta de que, mais do que a burguesia, eles estavam mais
próximos de conhecer a realidade, de saber qual era a pro­
blemática de saúde. Isto surgiu claramente no mundo do
trabalho porque, enquanto nos anos sessenta negava-se que
houvesse uma relação entre os componentes da indústria me­
talúrgica e a mortalidade por câncer, os operários já o afir­
mavam e cantavam em seus poemas e canções. Como afir­
ma o próprio Navarro, aqueles fatos levaram a descobrir
que aquele ponto de vista se aproximava mais da realida­
de, da criação do conhecimento científico, que as perspec­
tivas das instituições hegemônicas que haviam negado sis­
tematicamente tais associações epidemiológicas.
248 JAIME BREILH

As constatações anteriores abrem novas e promissoras


perspectivas para a investigação epidemiológica, que deve­
rão ser analisadas com extremo cuidado para não se con­
verter uma opção válida em uma experiência voluntarista
realizada sob premissas fenomenológicas de um obreirismo
reformista. Deverão ser aquilatados os limites objetivos im­
postos pelo método científico à participação dos próprios
trabalhadores como sujeitos da investigação. Seja de que
maneira for que a tarefa se cumpra, com a participação di­
reta ou não dos trabalhadores, o que interessa é que o pro­
cesso de investigação articule-se organicamente ao interes­
se histórico dos setores populares.

A INVESTIGAÇÃO EPIDEMIOLÓGICA E O DESEN­


VOLVIMENTO DAS TESES DE LUTA

Ao refinamento das teses e estratégias mediadoras dos


setores hegemônicos antepõe-se o esforço imenso realiza­
do pelo povo organizado para rebater as mistificações e pre­
parar consignas cada vez mais sólidas e efetivas.
A ciência não pode ficar à margem dos processos; por
sso, Lênin, ao explicar Quem são os “Amigos do Povo”,
afirma diretamente que a tarefa da ciência “... consiste em
dar a verdadeira consigna da luta, quer dizer, saber apre­
sentar objetivamente esta luta como produto de um deter­
minado sistema de relações de produção, saber compreen­
der a necessidade desta luta, seu conteúdo, o curso e as con­
dições de seu desenvolvimento”. (182)
Mas, para poder se impor à altura do desafio histórico,
o investigador deve aceitar a íntima relação que existe en­
tre ciência e política, entre método científico e método po­
lítico; deve construir racionalmente o fato político de seu
compromisso, evitando cair no instrumentalismo simplista
de listagem de denúncias, sem defasar-se em relação ao rit­
mo da luta popular.
Para discutir as opções práticas da epidemiologia e os pos­
síveis caminhos da investigação, pode-se utilizar uma ma­
triz de análise na qual se assinalam, por um lado, as for-
A INVESTIGAÇÃO EPIDEMIOLÓGICA... 249

mas particulares de prática que competem à frente da saú­


de e, por outro, os processos conjunturais da formação so­
cial que merecem a atenção do investigador.
As formas de prática são fundamentalmente duas: uma
prática oficial, articulada aos interesses e ótica do setor he­
gemônico (cujos quatro níveis são bem conhecidos), e uma
prática popular, orgânica ou empiricamente ligada ao inte­
resse da maioria.
Em continuação exporemos de modo sucinto uma siste-
matização de algumas possibilidades da prática epidemio-
lógica. Para fazê-lo, selecionamos quatro processos conjun­
turais que demandam aquele “refinamento” da orientação
de que fala Lênin. Não se trata de um receituário formal
de caminhos para a investigação, mas de uma proposição
preliminar sobre as possíveis linhas de indagações destina­
das a aprofundar a participação de quem trabalha no cam­
po da ciência e no processo de defesa da saúde popular.
Se detectarmos os processos críticos da deterioração da
vida e da saúde do povo, poderemos estabelecer quais são
as perguntas-chave que deveremos responder, quais os te­
mas para aprofundamento e qual o ordenamento de um pla­
no mediato que oriente o projeto histórico que consciente­
li
mente se defende nos núcleos de investigação mais demo­
crática.
Ainda que seja certo que são as condições concretas de
cada formação social aquilo que se deve traduzir nas linhas
de nosso projeto histórico, parece ser possível levar em conta
várias linhas mais importantes, considerando que as mo­
dalidades de investigação, realizem-se elas com recursos ex­
clusivamente acadêmicos ou em projetos conjuntos com os
setores populares, dependem sempre de possibilidades con­
junturais.
?

í
••
3

I

ANEXO 1

Alternativa para o trabalho de


investigação epidemiológica
I
II
PROCESSO 1 — DEFESA DAS CONDIÇÕES DE
REPRODUÇÃO DA CLASSE OPERÁRIA
i
Constaria de uma série de estudos destinados a estabele­
cer a deterioração das condições de reprodução. I
ESTUDOS PARA A DEFESA DAS CONDIÇÕES
DA JORNADA PRODUTIVA

— Estudos histórico-epidemiológicos (isto é, de tendên­


cias seculares), para determinar períodos, áreas e grupos ocu-
pacionais com maior risco;
— Investigações sobre as formas de determinação e as
condições (isto é, estrutura do espaço; microclimá; polui­
ção; condições de segurança; formas de desgaste não com­
pensado; jornadas suplementares; ritmos e aspecto psíqui­
co do trabalho; etc.), nas quais se exerce o trabalho produ­
tivo industrial em setores-chave do país e suas expressões
no perfil de saúde-doença;
252 JAIME BREILH

— Estudos sobre os determinantes da deterioração da jor­


nada produtiva agrícola e efeitos;
— Estudos sobre trabalho doméstico (mãe e filhos) ope­
rário.

ESTUDOS PARA A DEFESA DAS CONDIÇÕES DA


JORNADA REPRODUTIVA
— Estudos histórico-epidemiológicos sobre a deteriora­
ção absoluta ou relativa da estrutura do consumo, ocasio­
nada pelo efeito deformador do predomínio produtivista
(níveis urbano e rural);
— Investigações sobre o perfil reprodutivo em diferen­
tes contextos e grupos econômico-sociais (isto é, formas de
consumo alimentar, de habitação, no descanso, educação)
e aberrações introduzidas nos mesmos pela dinâmica pro­
dutivista;
— Estudos sobre as condições da produção-consumo do­
mésticos;
— Estudos sobre o deslocamento paulatino das medidas
terapêuticas populares e a penetração produtivista do fár-
maco.

ESTUDOS SOBRE A TRANSFORMAÇÃO


PRODUTIVISTA DO MEIO NATURAL
— Investigação sobre os efeitos da produção colateral das
indústrias urbanas;
— Estudos sobre os efeitos das transformações (históri­
cas) das populações microbacteriológicas, sobre diferentes
classes sociais ou em determinadas áreas;
— Estudos sobre a produtividade no sistema de atenção
privada empresarial e a saúde dos trabalhadores;
— Estudos sobre a acumulação do capital nas inversões
de infra-estrutura sanitária e saúde dos trabalhadores.
ANEXO 1 253

PROCESSO 2 — TRANSFORMAÇÃO DO PERFIL


EPIDEMIOLÓGICO DOS TRABALHADORES DE
FORMAS PRODUTIVAS TRADICIONAIS
Investigações sobre o declínio de formas artesanais de
atenção médica e a saúde dos trabalhadores.

PROCESSO 3 — ESTUDO DA DETERMINAÇÃO,


CONDIÇÕES E EFEITOS EPIDEMIOLÓGICOS DO
PROCESSO DE SUBPROLETARIZAÇÃO -
(URBANA E RURAL)
Fases de transição no desenvolvimento agrícola (penetra­
ção de relações mercantis capitalistas) e efeitos sobre o perfil
epidemiológico.

PROCESSO 4 — ESTUDO DOS EFEITOS DO


CRESCIMENTO CAPITALISTA SOBRE AS
CONDIÇÕES DE REPRODUÇÃO E PERFIL j
EPIDEMIOLÓGICO DAS CAMADAS
BUROCRÁTICAS E INTELECTUAIS I

PROCESSO DE ENFRENTAMENTO IDEOLÓGICO-


POLÍTICO
Comunicação de investigações por dois meios:
— Órgão de popularização e de consumo popular or­
gânico. I
— Órgão periódico de comunicação a nível acadêmi­
co ou geral.
ANEXO 2
1

Exemplo de conteúdo de um Curso Breve de Epi-


demiologia Crítica (formulação de 1991).

CENTRO DE ESTÚDIOS Y ASSESSORIA EN


SALUD — ECUADOR
SEMINÁRIO SOBRE “PROBLEMAS TEÓRI-
COS-METODOLÓGICOS DA EPIDEMIOLOGIA
CRÍTICA”
CONTEÚDO E BIBLIOGRAFIA
TOTAL: 20 sessões de 90 min.

O CONTEXTO HISTÓRICO NO
DESENVOLVIMENTO DO MÉTODO
EPIDEMIOLÓGICO
1. ♦ O método e a politicidade. ii
* A monopolização e o novo rosto da miséria. i.

* O desconcerto da saúde na América Latina.


Deterioração na crise.
BREILH, J. El Marxismo en la Defensa y Transfor-
mación de la Vida. Países Bajos, 11? CONFERÊN­
CIA INTERNACIONAL SOBRE LAS CIÊNCIAS
SOCIALES Y MEDICINA, Julio de 1989.
256 JAIME BREILH

BREILH, J.- La Epidemiologia Crítica latino-Americana


- Quito, Proyecto ALAMES-OPS, 1990.
GRANDA, E. La Investigación en Salud: Un Reto de
Construcción Democrática. Memórias dei I ENCUEN-
TRO NACIONAL DE INVESTIGACIÓN EN SA­
LUD (Cuenca), 1987.
2. * O debate “Modernidade vs. pós-modernidade” — im­
plicações para o que fazer e as ciências da saúde.
(Crise da modernidade e o marco teórico da ciência).
KIEDROV, B. Mecanismo dei Surgimiento de los Pro­
blemas Centrales en el Desarrollo de la Ciência. Vies-
trik Akademii, n. 9, p. 61-67, 1974.
CUEVA, A. América Latina en la Frontera de los No­
venta (“Vigência y Urgência dei Che en la Era dei Neo-
conservadurismo” y “Notas Críticas sobre la Social-
democratización de la Sociologia Suramericana”) —
Quito: Editorial Planeta, 1989.
BREILH, J. Deterioro de la Vida en el Decenio Perdi­
do, El Desconcierto de la Salud en América Latina —
Caracas, SEMINÁRIO SOBRE CIÊNCIA Y TECNO­
LOGIA DE LA SALUD, 1990.
QUIJANO, A. Modernidad, Identidady Utopia en Amé­
rica Latina. Quito: El Conejo, 1990. p. 1-44.
BARATA, R. Epidemiologia: Teoria e Método-Campi-
nas, PONENCIA AL ler CONGRESO BRASILERO
DE EPIDEMIOLOGIA, 1990.
BREILH, J. El Marxismo y la Defensa de la Vida. Qui­
to: Documentos CEAS, 1989.
MUDANÇA E ESGOTAMENTO DOS MODELOS
EPIDEMIOLÓGICOS
3. * Epidemiologia hegemônica: crise de alguns mitos:
— as falsas concepções sobre causalidade: breve histó­
ria dos modelos, seus fundamentos históricos e teórico-
filosóficos (Empirismo, Positivismo, Neopositivismo,
Estrutural-funcionalismo e Fenomenologia).
BREILH, J. Epidemiologia: Economia, Medicinay Po­
lítica. México: Editorial Fontamara, 1989 (3. ed. me­
xicana). Cap 2.
ANEXO 2 257

NOBLE, S. Hidden Arguments New Brunswick: Rutgers


University Press, 1988 (Cap. I y II).
DYNNIK, M. Historia de la Filosofia (7 Tomos) (Vá­
rios capítulos). México: Grijalbo, 1975.
4. — A suposta supremacia da saúde dos países capitalis­
tas;
— A Epidemiologia acadêmica, a oficial simplificada e
as estratégias conservadoras-apolíticas nessa suposta
‘ ‘pós-modernidade’ ’.
CERESETO, S., WAITZKIN, H. Economic Develop-
ment, Politicaí-Economic System and Physical Qua-
lity of Life. Journal of Public Health Policy, v. 9, p.
104-120, 1988.
NAVARRO, V. Triunfo Histórico: Capitalismo o Socia­
lismo? Monthly Review, noviembre, 1989 (traducción
J. B.).
ROTHMAN, K. (editor) Causai Inference-Chestnut Hill,
Epidemiological Resources Inc., 1988.
BACKETT, M., DAVIES M„ PETROS-BARZAVIAN.
El Concepto de Riesgo en la Assistência Sanitaria. Cua-
dernos de Salud Pública, 76, 1985.
5. * A Epidemiologia (crítica) latinoamericana: visão pa­
norâmica das fases em seu desenvolvimento histórico:
— Primeiras abordagens críticas e metodológicas;
— Consolidação instrumental, diversificação dos obje­
tos e multiplicação docente.
— Algumas discussões e desafios atuais.
BREILH, J. La Epidemiologia Crítica Latino-america­
na Quito, Proyecto ALAMES-OPS, 1990.
6. * O geral e o particular.
ROSENTAL, M., STRAKS, G. Categorias Básicas. Ca­
tegorias dei Materialismo Dialéctico. México: Grijal­
bo, 1981, p. 257-297.
BAGU, S. Marx-Engels, Diez Conceptos Fundamenta-
les en Proyección Histórica. México: Nuestro Tiem-
po, 1977.
* O social e o biológico (movimento e subsunção):

s
5
258 JAIME BREILH

— Desenvolvimento das formas de reprodução natural;


— Reprodução natural e reprodução social.
MARX-ENGELS La Ideologia Alemana (Cap. I:
Feuerbach) México: Ediciones de Cultura Popular,
1974 (1? ed.).
BREILH, J. Epidemiologia: Economia, Medicinay Po­
lítica. México: Fontamara, 1988 (3. ed. mexicana).
LEVINS, R., LEWONTIN, R. The Dialectical Biologist
(The Órganism as the Subject and Object of Evolu-
tion). Cambridge: Harvard University Press, 1985. p.
9-106 (Chap. 1, 2 and 3).
I BREILH, J. Notas Acerca dei Desarrollo dei Mundo Ma­
terial (Materiales para la Comprensión dei Proceso de
Subsunción de los Procesos Inorgânicos y Orgânicos
en los Sociales). Quito, CEAS, 1980.
7. * A lógica dialética e formal no método.
KOPNIN, P. Lógica Dialéctica (Capil. II: La Dialect.
y la F. Formal). México: Grijalbo, 1981.
NOVACK, G. Introducción a la Lógica (Lógica Formal
y Lógica Dialéctica. México: Fontamara, 1986. 19-43.
* O método ascencional.
ALEXEIEV, M. Dialéctica de las Formas dei Pensamien-
to (Método ación). Buenos Aires: Editorial Platina,
1964, pp. 11-30.
GRANDA, E. Construcción (Científica) dei Objeto. Qui­
to, CEAS, 1988.
8. * Categorias nodais:
— Determinação (mediação)
• Leis do movimento epidemiológico;
• Os processos mediadores.
BREILH, J. Epidemiologia: Economia, Medicinay Po­
lítica. México: Fontamara, 1988 (3. ed. mexicana).
BREILH, J. La Epidemiologia (Crítica) Latinoamerica-
na. Quito, Proyecto CEAS-OPS, 1990.
BREILH, J. La Epidemiologia Entre Fuegos. Medellin,
Memórias Taller Latinoamericano, 1987.
BREIILH, J. “La Salud-Enfermedad como Hecho So­
cial” In: Deterioro de la Vida en Ecuador (vários au­
tores. Quito: Corporación Editora Nacional, 1990.
ANEXO 2 259

CANCLINI, N. ‘Antropologia vs. Sociologia (dUn De­


bate entre Tradición y Modernidad?)” in: Cultura y
Ideologia en América Latina-Mcxico, Nueva Imagem,
1988.

9. — Reprodução social
• Visão geral: sistema de contradições, maior nível
de abstração (ampliada na 2? parte do seminário).
• Relações de produção-distribuição-consumo (ex-
plic. prelim.); ■
• Relações com o ambiente (explicação preliminar
sobre espaço e saúde);
• Relações político-ideológicas;
• Explicação preliminar sobre a mediação das estra­
tégias familiares-comunitárias e biológicas.
BREILH, J. La Epidemiologia (Crítica) Latinoameri-
cana. Quito, Proyecto CEAS-OPS, 1990.
BREILH, J. Epidemiologia: Economia, Medicinay Po­
lítica. México: Editorial Fontamara (3. ed. mexica­
na), 1988. p. 177-216.

REPRODUÇÃO SOCIAL SOB O CAPITAL:


FUNDAMENTOS DE ECONOMIA POLÍTICA

♦ O Processo de produção;
* A mercadoria.
♦ Processo de intercâmbio e circulação de mercadorias.
* O processo de valorização e saúde
♦ Valor extra e acumulação econômica
* Acumulação e a superpopulação excedente (interpre­
tação clássica e na América Latina).
C.M. Capítulo V (tomo I, vol. 1). México, Siglo XXI,
1975. p. 215-239.
C.M. Capítulo I (tomo I, vol. 1). México: Siglo XXI,
1975; p. 43-102. ■
C.M. Capítulo II (tomo I, vol. 1) México: Siglo XXI,
1975. p. 103-113.
260 JAIME BREILH

C.M. Capítulo III (tomo I, vol. 1). México: Siglo XXL 1975.
p. 115-177
C.M. Capítulo VI (tomo I, vol. 1). México: Siglo XXI, 1975.
p. 241-253.
C.M. Capítulo VIII (tomo I, vol. 1) México: Siglo XXI,
1975. p. 277-317.
BREILH, J. La Reproducción Social y el Proceso Epide-
miológico (Breve Lectura Epidemiológica dei K) Histó­
ria dei Momento Productivista. México: Editorial Fon-
tamara (3. ed. mexicana), 1989. 187-216.
C.M. Capítulo XIII, 3? Parte (tomo I, vol. 2). México: Si­
glo XXI, 1975. p. 480-510.
C.M. Capítulo XIV (tomo I, vol. 2) México: Siglo XXI,
1975: p. 615-627.
*SWEEZY, P. “La Acumulación y el Ejército de Reserva”
In: Teoria deiDesarrollo Capitalista. México: Fundo de
Cultura, 1976. p. 87-108.
*WEFFORT, F„ QUIJANO, A. Populismo, Marginaliza-
ción y Dependencia. s.f., pp. 173-214.

OBJETOS PARTICULARES DO CONHECIMENTO


EPIDEMIOLÓGICO

11. * Unidade e diversidade no movimento da reprodução


social (sistema relacionai de contradições em desen­
volvimento) (retomada do tema).
KOSIN, K. “La Totalidad Concreta” In Dialéctica de
lo Concreto. México: Grijalbo, 1983. p. 53-77.

* Retomar capítulo do livro ALAMES-OPS.


* Perfis de reprodução social nas distintas classes: en­
foque geral.
* A categoria classe social: recapitulação geral.
CUEVA, A. El Concepto de Clase Social en México,
CELA de la UNAM, 1976.
ANEXO 2 261

* Economia-política da reprodução em distintas classes.

— Força de trabalho em sua forma valor.


DIERCKXSENS, W. Capitalismo y Problación. San Jo­
sé: EDUCA, 1979. p. 33-39.

— Força de trabalho em sua forma não-valor.


DIERCKXSENS, W. Capitalismos y Problación. San
José: EDUCA, 1979. p. 41-44.

— Forma valor e não-valor em combinação.


DIERCKXSENS, W. Capitalismo y Problación. San Jo­
sé: EDUCA, 1979. p. 45-53.

— Forma não-valor nos serviços.


DIERCKXSENS, W. — Capitalismo y Problación. San
José, EDUCA, 1979, pp. 85-89.

— Tendências de destruição da forma não-valor.


DIERCKXSENS, W. Capitalismo y Problación. San Jo­
sé: EDUCA, 1979. p. 91-117.
BREILH, J., GRANDA, E. Investigación de la Salud
en la Sociedad (Capítulo Sexto). Quito, CEAS, 1988
(4. ed.).

12. * Visão crítica dos sistemas empíricos de estratificação


em epidemiologia.
LIBERATOS, P., LINK. B„ KELSEY, J. The Measu-
rement of Social Class in Epidemiology. Epidemio-
logic Reviews, v. 10, p. 87-121, 1988.

13. * Processos de trabalho e saúde-doença;


♦ Análise do momento produtivo (breve recapitulação).
3-
C.M. Introducción General a la Crítica de la Econo­
mia Política (1857). México: Pasado y Presente, 1974.
p. 39-57.
BREILH, J. Epidemiologia: Economia, Medicina y Po­
lítica. México, Fontamara, 1988 (3. ed. mexicana),
p. 187-194.
262 JAIME BREILH

* Fundamentos para o estudo epidemiológico do pro­


cesso de trabalho produtivo (produção para o inter­
câmbio).
LAURELL, A.C., MARQUEZ, M. El Desgaste Obre-
ro en México (Cap. 2 “Procesos Laborales y Patro-
nes de Desgaste”). México: ERA, 1985. p. 14-37.
LAURELL, A., NORIEGA, M. La Salud en la Fábri­
ca. México: ERA, 1989.
ISS — Capítulo 6?.
* Fundamentos para o estudo epidemiológico do tra­
l' balho doméstico;
* Fundamentos para o estudo epidemiológico da pro­
dução colateral e a transformação das condições na­
turais externas ou meio geográfico (aspecto do espa­
v ço na saúde).
DURAN, M. A. La Jornada Interminable. Barcelona:
ICARIA, 1986. p. 31-71.
14. * Elementos para o estudo epidemiológico do consumo.
— Análise geral do consumo e sua transformação his­
tórica (momento do consumo) (recapitulação).
— Padrões (unidades domésticas) e estratégias familia­
res de classe (os processos familiares como media­
ções na determinação.
— O processo de reprodução individual. A vida coti­
diana (reprodução do particular).
BREILH, J. Epidemiologia: Economia, Medicina y
Política...
SECOMBE, W. Marxismo y Demografía. Cuadernos
Políticos, v. 40, p. 5-24, 1984.
MORGAN, L. “A Família Antiga”. In: Dialética da Fa­
mília. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 56-70.
ADORNO, I, HORKHEIMER, M. “Sociologia da Fa­
mília” In Dialética da Família. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1987. p. 213-222.
HABERMAS, J. “A Família Burguesa e a Institucio­
nalização de uma Esfera Privada Referida a Esfera
Pública”. In: Dialética da Família. São Paulo: Edi­
tora Brasiliense, 1987. p. 226-234.
ANEXO 2 263

MITCHELL, J. “Modelos Familiares” In: Dialética da Fa­


mília. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. p. 259-273.
TORRADO, S. La Família Como Unidad de Análisis
en Censos y Encuestas de Hogares. Buenos Aires: Edi-
ciones CEUR, 1983. p. 1-11.
KOSIK, K. “Metafísica de la Vida Cotidiana”. In: Dia-
léctica de lo Concreto. México: Grijalbo, 1983. p.
83-104.
HELLER, A. Sociologia de la Vida Cotidiana. Barce­
lona: Ediciones Península, 1987.
15. * A saúde-doença coletiva no espaço, meio geográfico
ou território.
PRADILLA, E. Contribución a la Crítica de la Teoria
Urbana (Del Espacio a la Crisis Urbana) México:
UAM-X, 1984.
CEAS Deterioro de la Vida (Un Instrumento de Análi­
sis de Prioridades en lo Social y la Salud). Quito, Cor-
poración Editora Nacional, 1990.
SANTOS, M. Espaço & Método. São Paulo: Nobel,
1985.
VISÃO CRÍTICA DAS TÉCNICAS DE OBSERVAÇÃO

16. * A observação científica, lógica dialética e lógica


formal.
* O papel conservador das técnicas;
* Categorias e variáveis.
VIEIRA PINTO, A. Ciência eExistência (Os Condicio­
namentos Materiais, Culturais e Sociais do Trabalho
Científico). São Paulo: Paz e Terra, 1979. p. 243-276.
BREILH, J. La Epidemiologia entre Fuegos (“El Pro­
blema de las Categorias y Mediaciones”). Medellin:
Taller Latino-Americano de Medicina Social, 1987.
p. 46-59.
17. * Os sistemas oficiais de informação. Raízes históricas
do conhecimento estatístico. A classificação interna­
cional de doenças.
264 JAIME BREILH

SUSSER, M. Pensamiento Causai en las Ciências de la


Salud. Guatemala: Policopia de Traducción al
espanol.
BREILH, J., GRANDA, E. Investigación de la Salud
en La Sociedad (“Nuevos Critérios para la Clasifi-
cación de y Condiciones de Salud.) Quito: Ediciones
CEAS, 4. ed.) 1988. p. 197-217.
BREILH, J. Epidemiologia: Economia, Medicina y Po­
lítica (Ficciones dei Uso Convencional de las Princi-
pales Categorias) México: Editorial Fontamara (3.
ed. mexicana), 1988. p. 127-164.
LIBERATOS, P., LINK, B., KELSEY, J., The Mea-
surement of Social Class in Epidemiology. Epidemio-
logic Reviews, v. 10, p. 87-121, 1988.
SHAW, M. MILES, I. “The Social Roots of Statisti-
cal Knowledge” in Demystifying Social Statistics.
London: Pluto Press, 1979. p. 27-33.

PROBLEMAS METODOLÓGICOS NA
INCORPORAÇÃO DA ANÁLISE QUANTITATIVA
NA INVESTIGAÇÃO

18. * Colocação formal.


* Coisificação das entidades matemáticas: falácia da ob­
jetividade absoluta dos números.
* A significação real das provas.
* O duplo fio da tecnologia epidemiológica.
GOULD, S. La Falsa Medida dei Hombre (Introduc-
ción). Barcelona: Antoni Boseh Editor, 1984. p. 1-12.
STELLMAN, S. Tecnologia para Epidemiologia: Sir-
viente no Sustituto. The Epidemiology Monitor, v.4,
n.9, p.ll, 1983.
MILES, I, IRVINE, J. “The Critique of Official Sta­
tistics” in Desmytifying Social Statistics London: Plu­
to Press, 1979. p. 113-129.
ATKINS, L., JARRET, D. “The Significance of Sig-
nificance Tests”. Demystifying Social Statistics. Lon­
don: Pluto Press, 1979. p. 87-109.
ANEXO 2 265

ROSENTHAL, M., STRAKS, G. Necesidad y Casualidad


México: Editorial Grijalbo, 1960. p. 124-137.

19. * O movimento de qualidade e quantidade


* Determinação e probabilidade
GORTARI, E. Introducción a la Lógica Dialética. Mé­
xico: Grijalbo: 1979. p. 46-64.

O CONTEXTO E A PRÁTICA
CONTRA-HEGEMÔNICA

20. * Análise crítica da epidemiologia no debate: “saúde


pública”, “medicina comunitária-preventiva-social”
e “saúde coletiva”.
* A ilusão do progresso apolítico.
* Algumas tarefas.
TERRIS, M. Diferenciación entre la Salud Pública y
la Medicina Comunitária-Social-Preventiva en “Te­
mas de Epidemiologia y Salud Pública”. Habana: Im-
prenta Nacional de Cuba, 1989. (trad. por J. Alde-
reguia dei Journal of Public Health Policy, v.6,
p. 435-439, 1985).
GILBERT, I. Lallusión dei Progresso Apolítico. Bue­
nos Aires: Editorial Legasa, 1986. p. 13-19, 131-142,
239-245.
GRANDA, E. Ciência, Estado y Servicios de Salud.
Quito: CEAS, 1986.
BREILH, J. “Una Propuesta para la Salud” in Dete­
rioro de la Vida en Ecuador (vários autores). Quito,
1989. (no prelo)
1

I
í
!
I

<
»

!•

II
Referências Bibliográficas

1. LAST, J. What is Clinicai Epidemiology? Journal of


Public Health Policy, v. 9, n? 2, p. 159-163, 1988.
2. MacMAHON, B. Princípios y Métodos de Epidemio-
logía. 2 ed. México: La Prensa Médic Mexicana,
1975. p. 1.
3. Ibid. p. 1.
4. DYNNIK, M. Historia de la Filosofia. 1. ed., México:
Editorial Grijalbo. 1975.
5. ECUADOR. Area de Medicina Popular de la Facultad
de Ciências Médicas. Saludy Sociedad. Quito: Uni­
versidade Central de Ecuador, 1976. p. 53-55.
6. STEWART, G. Epidemiological Evaluation of Immuni-
zation and other Factors in the Control of Whooping-
Cought. The Lancet, Februaryli. 1976. p. 471.
7. LOWY, M. Objetividad y Punto de Vista de Clase, en
Sobre el Método Marxista. México:Grijalbo, 1974.
p. 11.
8. DURKHEIM, E. Las Regias dei Método Sociológico.
Buenos Aires: La Pleyade, 1974. p. 50.
9. LOWY, M. op. cit. p. 43.
10. Ibid. p. 43.
11. MARX, K. Miséria de la Filosofia. México: Ediciones
de Cultura Popular, ed. 1974. p. 159.
12. ZAVALETA, R. Clase y Conocimiento, Historiay So­
ciedad, v. 7, p. 3-8, 1975. p. 4-5.
13. Ibid. p.5.
268 JAIME BREILH

14. Ibid. p. 5.
15. PAVLOV, T. Teoria dei Reflejo. Moscú: Ed. de Lite­
ratura Èstranjera. 1949. p. 404.
16. VERON, E. Conducta, Estructuray Comunicación. Bue­
nos Aires: Editorial Tiempo Contemporâneo. 1973.
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