xar para os pósteros um estudo mais completo Saúde bucal coletiva: sobre o coletivo na e da saúde. Assim, todo tra- a busca de uma identidade balho que tente levar avante essa tarefa é sem- Collective oral health: pre bem recebido. Nesse sentido, Botazzo traz the search of an identity destacada contribuição, que, sendo específica de uma determinada realidade – a bucal –, po- Everardo Duarte Nunes 7 de ser apreendida pelos estudiosos da saúde co- letiva em geral. Embora seja categoria funda- Ler e comentar o artigo do Botazzo é retomar mental das ciências sociais e tenha sido objeto com ele um diálogo que vimos mantendo ao dos clássicos do pensamento social, o coletivo longo de alguns anos e que se mostra sempre foi apropriado de diferentes maneiras e seu sig- produtivo e instigador. nificado estendido à saúde tem sido alvo das Neste trabalho, o autor se volta para um te- mais distintas conotações. Ao defini-lo no ma que se tornou uma preocupação nuclear campo de que trata este artigo, pode se encon- em sua produção acadêmica – desvendar a trar uma extensa e ilimitada aplicação do con- constituição de um campo, o da saúde bucal ceito: A saúde bucal coletiva constitui uma prá- coletiva. Isto ele já apresentava de forma origi- tica social, libertária e orgânica à construção de nal e erudita em sua tese de doutorado1, esca- uma sociedade de inclusão, democrática e livre, vando as origens da clínica odontológica e re- caracterizada pela construção de um modelo de colocando-a na dimensão sociopolítica. Agora, saúde orientado pela universalidade, a equidade amadurece idéias, apresenta dúvidas, interroga e a integralidade da atenção em saúde bucal, cu- o campo científico, invoca a tradição da medi- jos agentes, formados com orientação ecológica, cina social/saúde coletiva daqui e de outras la- utilizam o método científico para conhecer estru- titudes, conclama os seus queridos epistemólo- turalmente as características epidemiológicas em gos, como Canguilhem, Vieira Pinto e Samaja, que se dão os processos de saúde-doença bucal e sociólogos como Bourdieu e Castoriadis e so- que isto o faz através de uma abordagem e inter- ciólogos da saúde como Donnangelo e Minayo, venção social democrática e participante, que de- retoma àqueles que pensaram a saúde bucal, fine as políticas de saúde bucal como fazeres con- como Narvai e seu octólogo, filósofos como Al- cretos para resolver os problemas de saúde-doen- thusser e Foucault, sem esquecer do físico e ça bucal integralmente e integrados a um con- historiador da ciência, Khun. Pode parecer, à junto de problemas gerais que caracterizam as primeira vista, uma galeria muito extensa de dificuldades de um espaço social determinado celebridades procedentes de diferentes galáxias para desenvolver-se plenamente.6 teóricas e que poderiam provocar desastres Mesmo limitando a dimensão teórica aos epistêmicos ao se encontrarem. Não é o caso. aspectos epidemiológicos, a definição pretende Botazzo usa com propriedade os autores e, pa- ser ampla e irrestrita: serviços, política, inter- ra as finalidades propostas, os diálogos entre venção, participação estão presentes como atri- eles não se tornam impossíveis e, sem dúvida, butos diretos do campo. Em realidade, esta é a num momento de reflexão sobre a crise de pen- questão que tensiona a saúde coletiva, indepen- samento da saúde coletiva, a diversidade de dentemente de sua especificidade temática, quer pensadores que nos ajudam a palmilhar esse seja a bucal, a do trabalho, a mental, etc. – as terreno é extremamente benéfica. A questão suas duas vocações: para a ciência e para a po- não resolvida da configuração do campo – eu lítica. Nesse sentido, o texto de Botazzo, como mesmo já o abordei althusserianamente, len- a definição acima, apanha estas dimensões, ao do-o em suas práticas: teórica, pedagógica e dizer que os problemas que cercam a saúde bu- política; ou bourdiuenamente, como campo; cal coletiva são extensamente os mesmos que ou dimensionado como pensamento, teoria e animam a produção teórica da Saúde Coletiva, movimento – é complexa e extrapola a discipli- colocando inclusive em dúvida a possibilidade narização mais convencional. da existência de uma teoria da saúde coletiva, O sempre citado trabalho de Donnangelo2 visto ser esta balizada pelas duas vocações aci- apontou questões relevantes. Infelizmente, a ma assinaladas, ou, como diz o autor, por seu sua autora não teve tempo de adensá-lo e dei- atravessamento pela vida social genérica. Isto, sem dúvida, amplia a dificuldade de se estabe- lecer a sua unidade, e a dispersão dos objetos, 7 DMPS/FCM/Unicamp. evernunes@uol.com.br métodos e práticas evidenciam que (re)situá-la 38 Narvai, P. C. et al.
no campo das áreas do conhecimento conduz a do esse recurso teórico-conceitual fundamen-
inúmeras dificuldades. Diante dessa questão, tal para que se veja esse objeto em sua materia- talvez se possa usar a postura adotada por Dos- lidade e em sua projeção sociopsíquica. Sem se3 ao analisar a mudança de paradigma em dúvida, o solo para a discussão da odontologia ciências sociais pós-estruturalismo, quando pode ser encontrada em outra obra de Fou- propunha uma dialogia, um agir comunicativo cault5 – A arqueologia do saber. Desse livro, que como saída da falsa alternativa entre diviniza- é uma súmula da história arqueológica como ção e dissolução do sujeito, que marcou duran- proposta metodológica, retiro algumas passa- te muito tempo as ciências humanas. gens dos seus capítulos finais, onde o autor se O que chama a atenção é que a saúde cole- dedica a mostrar a relação entre arqueologia e tiva sofre a síndrome da família grande – há o análise das ciências. Por que voltar a esta ques- núcleo central, os parentes próximos, outros tão? Porque o texto de Botazzo busca entender em segundo e terceiro graus de parentesco, os qual é o status de conhecimento vinculado e agregados, amigos e vizinhos – formando uma veiculado pela saúde bucal coletiva, além de intricada rede de relações que, sem dúvida, tem uma odontologia social. E nisso, o recurso à trazido enorme vitalidade, mas, ao mesmo discussão do filósofo francês é fundamental. tempo, cria evidentes dificuldades. Recente- Acredito que, para se entender a saúde bucal mente, na tentativa de estabelecer as novas coletiva, a definição dada de arqueologia é bá- áreas do conhecimento, a comunidade científi- sica. Para Foucault5, A arqueologia fala – muito ca verificou que, para alguns pesquisadores, há mais à vontade que a história das idéias – de cor- saúde coletiva e há saúde pública, e cada uma tes, falhas, aberturas, formas inteiramente novas delas comporta subcategorias, às vezes discipli- de positividade, e de redistribuições súbitas. Fou- nares, às vezes temáticas, e estranhamente, ten- cault, em seu estilo de retomar uma idéia e do ficado fora as ciências sociais! completá-la, cerca de duas páginas depois, assi- Estas idéias que perpassam as análises so- nala: A arqueologia, ao invés de considerar que o bre campos de conhecimento são inerentes es- discurso é feito apenas de uma série de aconteci- pecialmente àqueles de formação mais recente, mentos homogêneos (as formulações individu- como o caso da saúde bucal coletiva. Já em seu ais), distingue, na espessura do discurso, diversos trabalho anterior, Botazzo1, ao trabalhar a idéia planos de acontecimentos possíveis: plano dos de uma biopolítica da boca, interrogava acerca próprios enunciados em sua emergência singu- do objeto da odontologia. É possível afirmar-se lar; plano de aparecimento dos objetos, dos tipos um objeto tão insólito quanto este denominado de enunciação, dos conceitos, das escolhas estra- boca? O que significa exatamente ou que rede de tégicas (ou das transformações que afetam as que significados se entrecruzam neste território sin- já existem); plano da derivação de novas regras gular? É possível falar de um objeto que não seja de formação a partir de regras já empregadas – tão exclusivamente hegemonizado por uma úni- mas sempre no elemento de uma única e mesma ca disciplina? Não vou alinhar as questões le- positividade; finalmente, a um quarto nível, pla- vantadas por Botazzo, de total procedência, as no em que se efetua a substituição de uma for- relações odontologia e medicina, ou um certo mação discursiva por outra (ou do aparecimento silêncio – um não à vontade – quando as pes- e desaparecimento puro e simples de uma positi- soas tratam dos discursos da cavidade bucal. vidade). A enunciação desses planos é relevante Nesse momento, o autor passa a falar da boca no momento em que se pretenda escavar o ter- como um território. Esta noção será trazida pa- reno de onde emerge uma determinada prática ra o presente texto e para seu melhor entendi- discursiva. Foucault fornece as orientações ne- mento reporta-se a As palavras e as coisas. Des- cessárias quando discute a procedência do que ta obra magnífica de Foucault4, que mostra a denomina de positividades, cuja análise, segun- construção arqueológica das ciências humanas, do ele, permite mostrar que regras norteiam a o autor retira a sua essência para aplicá-la ao prática discursiva e permite formar grupos de estudo da bucalidade, que constitui hoje uma objetos, conjuntos de enunciações, jogos de con- das linhas de pesquisa que orienta no Observa- ceitos, séries de escolhas teóricas. Como a prática tório de Saúde Bucal Coletiva, do Instituto de discursiva não coincide com a elaboração cien- Saúde/São Paulo. Ao transportar para o seu ob- tífica, esse recurso criado por Foucault, de esta- jeto as categorias de Foucault, Botazzo ilustra belecer diferentes limiares de positividade: epis- como a linguagem, a vida e o trabalho se cru- temologização, cientificidade e formalização, zam no entendimento do território boca, sen- cujas cronologias não são nem regulares, nem 39
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homogêneas, é extremamente instigante para a exploração de práticas discursivas e de como se O autor responde constituíram os territórios arqueológicos. The author replies Acredito que a pesquisa sobre a Saúde Bucal Coletiva necessita ser aprofundada e a utiliza- “Mais vale um burro que me carregue ção desse recurso teórico-metodológico pode do que um cavalo que me derrube!”* ser um dos caminhos, e dessa forma concorrer “Better a donkey that carries me than para a sistematização dos condicionantes de a horse that drops me!” suas possibilidades. Avançar qualquer discussão seria repetir o É rara a oportunidade de entre nós ocorrerem que Botazzo fornece em seu texto, mas voltan- debates acerca das nossas idéias ou posições do a Foucault4 quando diz que As ciências hu- teórico-metodológicas, e o que estamos pre- manas, com efeito, dirigem-se ao homem na me- senciando aqui tem o sabor inigualável dos diá- dida em que ele vive, em que ele fala, em que ele logos clássicos acerca do conhecimento. É Fe- produz. É como ser vivo que ele cresce, que tem yerabend1 mesmo quem nos dá a chave que funções e necessidades, que vê abrir-se um espaço permite desvelar parte do entendimento: seria cujas coordenadas móveis estabelece em si mes- o conhecimento tão somente percepção? Isto é, mo, encontro o fio condutor para se pensar a seria o conhecimento tão somente sensóreo, transformação da odontologia em saúde bucal, não sendo o mundo mais que a ilusão provoca- relembrando o filósofo que brilhantemente nos da pelos sentidos? Nem a Feyerabend tremen- mostrou outras transformações – a história na- da idealização passaria em branco, pois a expe- tural em biologia, a análise das riquezas em riência do conhecimento nos acompanha do economia, a reflexão sobre a linguagem em fi- berço ao túmulo sendo constituído, sim, pela lologia – em cujos horizontes surge o homem percepção, mas antes pela experiência e pela re- com a sua posição ambígua de objeto para um flexão. É parcelar, é incompleto, está sempre em saber e de sujeito que conhece4. Se esse é o inte- busca da totalização, mas não escapa à deter- resse maior das ciências e dos saberes das ciên- minação de ser, sempre, social, coletivo. É ines- cias humanas, que a construção de uma teoria gotável a polêmica sobre as condições que cer- da saúde (coletiva e bucal) não o ignore. cam a produção dos saberes, e entre eles os dis- cursos científicos, e parte dela acaba de se re- Referências produzir no espaço deste debate. Aqui se pode- ria afirmar, como diz Entralgo, que la tradición 1. Botazzo C. Da arte dentária. São Paulo: Hucitec; Fa- pesp; 2000. intelectual se constituye por obra de los que, sa- 2. Donnangelo MCF. A pesquisa na área da saúde cole- biendo heredar, saben también contradecir; o, si tiva no Brasil – A década de 70. Ensino da Saúde Pú- se prefiere, por los que sabiendo contradecir, sa- blica, Medicina Preventiva e Social no Brasil 1983; ben también heredar2. 2:19-35. Mas antes que se entre na argumentação, 3. Dosse F. O império do sentido: a humanização das ciências humanas. Tradução de Ilka Stern Cohen. Bau- cabe agradecer a cada um dos debatedores. São ru: Edusc; 2003. muitas as interfaces e os projetos comuns que 4. Foucault M. As palavras e as coisas: uma arqueologia sustentamos entre nós, e ainda cabe experi- das ciências humanas. Tradução de António Ramos mentar um pouco mais nosso intercâmbio e a Rosa. Lisboa: Portugalia; s/d. construção coletiva da perspectiva democráti- 5. Foucault M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Petrópolis: Vozes, Lisboa: Centro ca que anima a Reforma Sanitária. Sem dúvi- do Livro Brasileiro, 1972. da, minha referência é para com o privilégio 6. Portillo JAC. Saúde coletiva [acesso em 8/10/2005]. de poder partilhar essa quadra da existência Disponível em http://www.unb.br/fs/sbc/saude_ com amigos queridos e, sobretudo, à generosi- coletiva.htm. dade com que se puseram diante das numero- sas fragilidades teóricas encontradas ao longo do texto. Em certo sentido, pode-se dizer que o ma- terial exposto no debate excede em qualidade o conteúdo do artigo principal. Tomados em
* Da peça de Gil Vicente, A farsa de Inês Pereira.