Você está na página 1de 3

37

Ciência & Saúde Coletiva, 11(1):18-43, 2006


xar para os pósteros um estudo mais completo
Saúde bucal coletiva: sobre o coletivo na e da saúde. Assim, todo tra-
a busca de uma identidade balho que tente levar avante essa tarefa é sem-
Collective oral health: pre bem recebido. Nesse sentido, Botazzo traz
the search of an identity destacada contribuição, que, sendo específica
de uma determinada realidade – a bucal –, po-
Everardo Duarte Nunes 7 de ser apreendida pelos estudiosos da saúde co-
letiva em geral. Embora seja categoria funda-
Ler e comentar o artigo do Botazzo é retomar mental das ciências sociais e tenha sido objeto
com ele um diálogo que vimos mantendo ao dos clássicos do pensamento social, o coletivo
longo de alguns anos e que se mostra sempre foi apropriado de diferentes maneiras e seu sig-
produtivo e instigador. nificado estendido à saúde tem sido alvo das
Neste trabalho, o autor se volta para um te- mais distintas conotações. Ao defini-lo no
ma que se tornou uma preocupação nuclear campo de que trata este artigo, pode se encon-
em sua produção acadêmica – desvendar a trar uma extensa e ilimitada aplicação do con-
constituição de um campo, o da saúde bucal ceito: A saúde bucal coletiva constitui uma prá-
coletiva. Isto ele já apresentava de forma origi- tica social, libertária e orgânica à construção de
nal e erudita em sua tese de doutorado1, esca- uma sociedade de inclusão, democrática e livre,
vando as origens da clínica odontológica e re- caracterizada pela construção de um modelo de
colocando-a na dimensão sociopolítica. Agora, saúde orientado pela universalidade, a equidade
amadurece idéias, apresenta dúvidas, interroga e a integralidade da atenção em saúde bucal, cu-
o campo científico, invoca a tradição da medi- jos agentes, formados com orientação ecológica,
cina social/saúde coletiva daqui e de outras la- utilizam o método científico para conhecer estru-
titudes, conclama os seus queridos epistemólo- turalmente as características epidemiológicas em
gos, como Canguilhem, Vieira Pinto e Samaja, que se dão os processos de saúde-doença bucal e
sociólogos como Bourdieu e Castoriadis e so- que isto o faz através de uma abordagem e inter-
ciólogos da saúde como Donnangelo e Minayo, venção social democrática e participante, que de-
retoma àqueles que pensaram a saúde bucal, fine as políticas de saúde bucal como fazeres con-
como Narvai e seu octólogo, filósofos como Al- cretos para resolver os problemas de saúde-doen-
thusser e Foucault, sem esquecer do físico e ça bucal integralmente e integrados a um con-
historiador da ciência, Khun. Pode parecer, à junto de problemas gerais que caracterizam as
primeira vista, uma galeria muito extensa de dificuldades de um espaço social determinado
celebridades procedentes de diferentes galáxias para desenvolver-se plenamente.6
teóricas e que poderiam provocar desastres Mesmo limitando a dimensão teórica aos
epistêmicos ao se encontrarem. Não é o caso. aspectos epidemiológicos, a definição pretende
Botazzo usa com propriedade os autores e, pa- ser ampla e irrestrita: serviços, política, inter-
ra as finalidades propostas, os diálogos entre venção, participação estão presentes como atri-
eles não se tornam impossíveis e, sem dúvida, butos diretos do campo. Em realidade, esta é a
num momento de reflexão sobre a crise de pen- questão que tensiona a saúde coletiva, indepen-
samento da saúde coletiva, a diversidade de dentemente de sua especificidade temática, quer
pensadores que nos ajudam a palmilhar esse seja a bucal, a do trabalho, a mental, etc. – as
terreno é extremamente benéfica. A questão suas duas vocações: para a ciência e para a po-
não resolvida da configuração do campo – eu lítica. Nesse sentido, o texto de Botazzo, como
mesmo já o abordei althusserianamente, len- a definição acima, apanha estas dimensões, ao
do-o em suas práticas: teórica, pedagógica e dizer que os problemas que cercam a saúde bu-
política; ou bourdiuenamente, como campo; cal coletiva são extensamente os mesmos que
ou dimensionado como pensamento, teoria e animam a produção teórica da Saúde Coletiva,
movimento – é complexa e extrapola a discipli- colocando inclusive em dúvida a possibilidade
narização mais convencional. da existência de uma teoria da saúde coletiva,
O sempre citado trabalho de Donnangelo2 visto ser esta balizada pelas duas vocações aci-
apontou questões relevantes. Infelizmente, a ma assinaladas, ou, como diz o autor, por seu
sua autora não teve tempo de adensá-lo e dei- atravessamento pela vida social genérica. Isto,
sem dúvida, amplia a dificuldade de se estabe-
lecer a sua unidade, e a dispersão dos objetos,
7 DMPS/FCM/Unicamp. evernunes@uol.com.br métodos e práticas evidenciam que (re)situá-la
38
Narvai, P. C. et al.

no campo das áreas do conhecimento conduz a do esse recurso teórico-conceitual fundamen-


inúmeras dificuldades. Diante dessa questão, tal para que se veja esse objeto em sua materia-
talvez se possa usar a postura adotada por Dos- lidade e em sua projeção sociopsíquica. Sem
se3 ao analisar a mudança de paradigma em dúvida, o solo para a discussão da odontologia
ciências sociais pós-estruturalismo, quando pode ser encontrada em outra obra de Fou-
propunha uma dialogia, um agir comunicativo cault5 – A arqueologia do saber. Desse livro, que
como saída da falsa alternativa entre diviniza- é uma súmula da história arqueológica como
ção e dissolução do sujeito, que marcou duran- proposta metodológica, retiro algumas passa-
te muito tempo as ciências humanas. gens dos seus capítulos finais, onde o autor se
O que chama a atenção é que a saúde cole- dedica a mostrar a relação entre arqueologia e
tiva sofre a síndrome da família grande – há o análise das ciências. Por que voltar a esta ques-
núcleo central, os parentes próximos, outros tão? Porque o texto de Botazzo busca entender
em segundo e terceiro graus de parentesco, os qual é o status de conhecimento vinculado e
agregados, amigos e vizinhos – formando uma veiculado pela saúde bucal coletiva, além de
intricada rede de relações que, sem dúvida, tem uma odontologia social. E nisso, o recurso à
trazido enorme vitalidade, mas, ao mesmo discussão do filósofo francês é fundamental.
tempo, cria evidentes dificuldades. Recente- Acredito que, para se entender a saúde bucal
mente, na tentativa de estabelecer as novas coletiva, a definição dada de arqueologia é bá-
áreas do conhecimento, a comunidade científi- sica. Para Foucault5, A arqueologia fala – muito
ca verificou que, para alguns pesquisadores, há mais à vontade que a história das idéias – de cor-
saúde coletiva e há saúde pública, e cada uma tes, falhas, aberturas, formas inteiramente novas
delas comporta subcategorias, às vezes discipli- de positividade, e de redistribuições súbitas. Fou-
nares, às vezes temáticas, e estranhamente, ten- cault, em seu estilo de retomar uma idéia e
do ficado fora as ciências sociais! completá-la, cerca de duas páginas depois, assi-
Estas idéias que perpassam as análises so- nala: A arqueologia, ao invés de considerar que o
bre campos de conhecimento são inerentes es- discurso é feito apenas de uma série de aconteci-
pecialmente àqueles de formação mais recente, mentos homogêneos (as formulações individu-
como o caso da saúde bucal coletiva. Já em seu ais), distingue, na espessura do discurso, diversos
trabalho anterior, Botazzo1, ao trabalhar a idéia planos de acontecimentos possíveis: plano dos
de uma biopolítica da boca, interrogava acerca próprios enunciados em sua emergência singu-
do objeto da odontologia. É possível afirmar-se lar; plano de aparecimento dos objetos, dos tipos
um objeto tão insólito quanto este denominado de enunciação, dos conceitos, das escolhas estra-
boca? O que significa exatamente ou que rede de tégicas (ou das transformações que afetam as que
significados se entrecruzam neste território sin- já existem); plano da derivação de novas regras
gular? É possível falar de um objeto que não seja de formação a partir de regras já empregadas –
tão exclusivamente hegemonizado por uma úni- mas sempre no elemento de uma única e mesma
ca disciplina? Não vou alinhar as questões le- positividade; finalmente, a um quarto nível, pla-
vantadas por Botazzo, de total procedência, as no em que se efetua a substituição de uma for-
relações odontologia e medicina, ou um certo mação discursiva por outra (ou do aparecimento
silêncio – um não à vontade – quando as pes- e desaparecimento puro e simples de uma positi-
soas tratam dos discursos da cavidade bucal. vidade). A enunciação desses planos é relevante
Nesse momento, o autor passa a falar da boca no momento em que se pretenda escavar o ter-
como um território. Esta noção será trazida pa- reno de onde emerge uma determinada prática
ra o presente texto e para seu melhor entendi- discursiva. Foucault fornece as orientações ne-
mento reporta-se a As palavras e as coisas. Des- cessárias quando discute a procedência do que
ta obra magnífica de Foucault4, que mostra a denomina de positividades, cuja análise, segun-
construção arqueológica das ciências humanas, do ele, permite mostrar que regras norteiam a
o autor retira a sua essência para aplicá-la ao prática discursiva e permite formar grupos de
estudo da bucalidade, que constitui hoje uma objetos, conjuntos de enunciações, jogos de con-
das linhas de pesquisa que orienta no Observa- ceitos, séries de escolhas teóricas. Como a prática
tório de Saúde Bucal Coletiva, do Instituto de discursiva não coincide com a elaboração cien-
Saúde/São Paulo. Ao transportar para o seu ob- tífica, esse recurso criado por Foucault, de esta-
jeto as categorias de Foucault, Botazzo ilustra belecer diferentes limiares de positividade: epis-
como a linguagem, a vida e o trabalho se cru- temologização, cientificidade e formalização,
zam no entendimento do território boca, sen- cujas cronologias não são nem regulares, nem
39

Ciência & Saúde Coletiva, 11(1):18-43, 2006


homogêneas, é extremamente instigante para a
exploração de práticas discursivas e de como se O autor responde
constituíram os territórios arqueológicos. The author replies
Acredito que a pesquisa sobre a Saúde Bucal
Coletiva necessita ser aprofundada e a utiliza- “Mais vale um burro que me carregue
ção desse recurso teórico-metodológico pode do que um cavalo que me derrube!”*
ser um dos caminhos, e dessa forma concorrer “Better a donkey that carries me than
para a sistematização dos condicionantes de a horse that drops me!”
suas possibilidades.
Avançar qualquer discussão seria repetir o É rara a oportunidade de entre nós ocorrerem
que Botazzo fornece em seu texto, mas voltan- debates acerca das nossas idéias ou posições
do a Foucault4 quando diz que As ciências hu- teórico-metodológicas, e o que estamos pre-
manas, com efeito, dirigem-se ao homem na me- senciando aqui tem o sabor inigualável dos diá-
dida em que ele vive, em que ele fala, em que ele logos clássicos acerca do conhecimento. É Fe-
produz. É como ser vivo que ele cresce, que tem yerabend1 mesmo quem nos dá a chave que
funções e necessidades, que vê abrir-se um espaço permite desvelar parte do entendimento: seria
cujas coordenadas móveis estabelece em si mes- o conhecimento tão somente percepção? Isto é,
mo, encontro o fio condutor para se pensar a seria o conhecimento tão somente sensóreo,
transformação da odontologia em saúde bucal, não sendo o mundo mais que a ilusão provoca-
relembrando o filósofo que brilhantemente nos da pelos sentidos? Nem a Feyerabend tremen-
mostrou outras transformações – a história na- da idealização passaria em branco, pois a expe-
tural em biologia, a análise das riquezas em riência do conhecimento nos acompanha do
economia, a reflexão sobre a linguagem em fi- berço ao túmulo sendo constituído, sim, pela
lologia – em cujos horizontes surge o homem percepção, mas antes pela experiência e pela re-
com a sua posição ambígua de objeto para um flexão. É parcelar, é incompleto, está sempre em
saber e de sujeito que conhece4. Se esse é o inte- busca da totalização, mas não escapa à deter-
resse maior das ciências e dos saberes das ciên- minação de ser, sempre, social, coletivo. É ines-
cias humanas, que a construção de uma teoria gotável a polêmica sobre as condições que cer-
da saúde (coletiva e bucal) não o ignore. cam a produção dos saberes, e entre eles os dis-
cursos científicos, e parte dela acaba de se re-
Referências produzir no espaço deste debate. Aqui se pode-
ria afirmar, como diz Entralgo, que la tradición
1. Botazzo C. Da arte dentária. São Paulo: Hucitec; Fa-
pesp; 2000. intelectual se constituye por obra de los que, sa-
2. Donnangelo MCF. A pesquisa na área da saúde cole- biendo heredar, saben también contradecir; o, si
tiva no Brasil – A década de 70. Ensino da Saúde Pú- se prefiere, por los que sabiendo contradecir, sa-
blica, Medicina Preventiva e Social no Brasil 1983; ben también heredar2.
2:19-35.
Mas antes que se entre na argumentação,
3. Dosse F. O império do sentido: a humanização das
ciências humanas. Tradução de Ilka Stern Cohen. Bau- cabe agradecer a cada um dos debatedores. São
ru: Edusc; 2003. muitas as interfaces e os projetos comuns que
4. Foucault M. As palavras e as coisas: uma arqueologia sustentamos entre nós, e ainda cabe experi-
das ciências humanas. Tradução de António Ramos mentar um pouco mais nosso intercâmbio e a
Rosa. Lisboa: Portugalia; s/d.
construção coletiva da perspectiva democráti-
5. Foucault M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz
Felipe Baeta Neves. Petrópolis: Vozes, Lisboa: Centro ca que anima a Reforma Sanitária. Sem dúvi-
do Livro Brasileiro, 1972. da, minha referência é para com o privilégio
6. Portillo JAC. Saúde coletiva [acesso em 8/10/2005]. de poder partilhar essa quadra da existência
Disponível em http://www.unb.br/fs/sbc/saude_ com amigos queridos e, sobretudo, à generosi-
coletiva.htm.
dade com que se puseram diante das numero-
sas fragilidades teóricas encontradas ao longo
do texto.
Em certo sentido, pode-se dizer que o ma-
terial exposto no debate excede em qualidade o
conteúdo do artigo principal. Tomados em

* Da peça de Gil Vicente, A farsa de Inês Pereira.

Você também pode gostar