Você está na página 1de 22

A PRIMAZIA DOS CIENTISTAS

NATURAIS NA CONSTRUÇÃO DA
AGENDA AMBIENTAL
CONTEMPORÂNEA*
José Augusto Drummond

Introdução seja, a de que os cientistas sociais em geral resis-


tem à primazia dos cientistas naturais na questão
Este texto tem o objetivo de mostrar que a ambiental, e por isso se permitem ignorar suas
agenda ambiental contemporânea foi construída contribuições, ou – o que dá no mesmo – criticá-
quase integralmente por cientistas filiados às ciên- las de forma errada e empobrecedora.
cias naturais ou tecnológicas. Considero, por con- Não sustento que quem “chegou primeiro”
seqüência, que os cientistas sociais chegaram a tenha toda a virtude, nem que quem “chegou
ela de forma retardatária e, por vezes, parcial- depois” careça de qualquer virtude, pois não se
mente equivocada. Este texto foi motivado por trata de uma corrida, e sim de um processo de
uma antiga constatação de ordem pessoal, qual construção do conhecimento. A “lição” mais rele-
vante a tirar desse fato é prosaica: os cientistas
* Versão revista do texto “Os cientistas sociais na sociais interessados em estudar a questão ambien-
construção da agenda ambiental contemporânea: tal têm e continuarão a ter muito a aprender com
uma participação retardatária e parcialmente equi- os cientistas naturais. Embora o inverso também
vocada”, apresentado no XXVIII Encontro Anual da seja verdadeiro, em muitos casos foram os próprios
Anpocs (Caxambu, outubro de 2004). Agradeço a cientistas sociais que, infelizmente, contribuíram
José Luiz de Andrade Franco pela leitura crítica a
para enquadrar os pioneiros da questão ambiental
uma versão anterior deste texto.
em rótulos desqualificantes e equivocados – tais
como serem “insensíveis aos problemas sociais”,
Artigo recebido em janeiro/2005 “neomalthusianos”, “naturalistas”, “preocupados
Aprovado em abril/2006 apenas com plantas e animais” e assim por diante.

RBCS Vol. 21 nº. 62 outubro/2006


6 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 62

Este texto discute primeiro o conceito de Publicado em muitos idiomas, esse texto teve
“desenvolvimento sustentável”, importante marco larga divulgação e aceitação em muitos fóruns cien-
estabelecido há cerca de quinze anos e que baliza tíficos, governamentais, intergovernamentais, não-
o pensamento de quase todos os cientistas sociais governamentais e empresariais, não obstante as ine-
que hoje se ocupam de temas ambientais. vitáveis polêmicas em torno de um conceito tão
Segundo, analisa a resistência generalizada dos complexo quanto o de desenvolvimento sustentá-
cientistas sociais ao estudo das questões ambien- vel. Considero que o principal motivo para a sua
tais emergentes. Em seguida, com a finalidade de grande divulgação e aceitação foi o equilíbrio
contextualizar a “linha de ascendência” do con- alcançado no equacionamento conjunto dos pro-
ceito de desenvolvimento sustentável, focaliza as blemas propriamente ecológicos ou biofísicos do
contribuições mais antigas de cientistas “ícones” da mundo natural, de um lado, e das questões sociais
descoberta ou formulação das grandes questões correlatas, de outro. Esta é, de fato, uma forte vir-
ambientais dos últimos setenta anos –Paul Sears, tude presente no conceito. Quase duas décadas
Aldo Leopold, Rachel Carson, Paul Ehrlich, Donella depois de sua formulação original, o conceito e o
Meadows, Garrett Hardin e James Lovelock. Esses paradigma da sustentabilidade continuam a ser
autores são abordados em separado, de acordo com amplamente adotados como componentes de um
tópicos que descrevem a contribuição principal de modelo interpretativo a um só tempo abrangente
cada um, mas buscando também identificar algumas e sintético, o que mostra que há uma tendência
linhas de continuidade ou, ao menos, de contato no sentido de ganhar cada vez mais espaço.
entre eles. Produzido pela chamada Comissão Brundtland,
Esses autores – ao contrário do que se divulga tal relatório formulou sinteticamente o conceito de
persistentemente entre os cientistas sociais – mostra- desenvolvimento sustentável como “aquele desenvol-
ram, sim, sensibilidade quanto às questões humanas vimento que atende às necessidades do presente sem
ou sociais, entendidas como conexas aos – e causa- comprometer as possibilidades de as gerações futuras
das ou causadoras dos – problemas ambientais ou atenderem às suas próprias”. Essa formulação é ino-
naturais, mesmo sendo todos formados nas ciências vadora sob diversos aspectos, embora não o seja em
naturais ou da tecnologia – biologia, ecologia, quími- outros. O componente da “solidariedade intrageracio-
ca, física, medicina etc. Argumento ao longo deste nal”, por exemplo, é mais comumente conhecida
texto que os cientistas sociais ainda têm muito a apren- como eqüidade. No entanto, ele faz parte de muitos
der com esses “pioneiros”, caso se disponham a ideais, ideologias e conceitos mais antigos e bas-
conhecer em fonte direta suas contribuições. Isso ser- tante disseminados. Já o preceito de visar ao bem-
virá para melhor entender e aplicar, entre outras coi- estar das gerações futuras, além de também não ser
sas, o paradigma mais conhecido e consensual do original, é apresentado pela CMMAD sem qual-
desenvolvimento sustentável. quer fundamentação capaz de resgatá-lo de meras
advinhações bem-intencionadas sobre o que seria
bom para as gerações futuras – no limite, ele se
O conceito de desenvolvimento resume a conselhos genéricos quanto a atitudes de
sustentável prudência.
De toda forma, reunir sustentabilidade, eqüi-
O conceito de desenvolvimento sustentável e dade e preocupação com as gerações futuras é
o paradigma da sustentabilidade foram amplamen- suficiente para garantir a originalidade e a rele-
te veiculados pelo documento intitulado Our com- vância do conceito. O que interessa destacar aqui
mon future, escrito em meados da década de 1980 é que a idéia de desenvolvimento sustentável bus-
pela Comissão Mundial de Meio Ambiente e cou explicitamente atingir um equilíbrio entre uma
Desenvolvimento, da ONU, chefiada por Gro visão “naturalista” e uma visão “social” da moder-
Brundtland. No Brasil, esse relatório (por vezes na questão ambiental, conforme ela foi construída
conhecido como “Relatório Brundtland”) foi publica- nas décadas anteriores. O Relatório Brundtland
do em 1987 com o título Nosso futuro comum conectou, com sucesso, dois conjuntos de proble-
(CMMAD, 1987). mas: (1) os propriamente ecológicos do mundo
A PRIMAZIA DOS CIENTISTAS NATURAIS… 7

natural, decorrentes das ações humanas (uso ou judicar os ecossistemas. Isso direcionou a atenção
escassez de recursos naturais, extinção de espé- de parcelas crescentes de cientistas, governantes e
cies, poluição, contaminação, aquecimento global, cidadãos para uma grande variedade de questões
desertificação etc.) e (2) os propriamente sociais ambientais, associadas a usos e abusos que as
(doença, fome, pobreza, exclusão etc.). sociedades humanas fazem dos recursos naturais
No entanto, é necessário fazer uma grande finitos do planeta.
ressalva. Rigorosamente, a dimensão ecológica do Com efeito, tal conceito, quando aplicado
conceito de desenvolvimento sustentável também aos humanos, diz respeito, antes de tudo, àquela
carece de originalidade, pois nasce de um con- fração já mencionada, em que:
ceito estabelecido há décadas na ciência da bio-
logia – “capacidade de carga” (carrying capacity), 1. O numerador é o número de seres humanos
ou “capacidade de suporte”. A “novidade” é a sua que consomem os recursos escassos (ou
aplicação sistemática para o estudo de sociedades seja, como sources, ou fontes) e geram resí-
humanas, o que é fruto do trabalho de cientistas duos que têm lugares escassos (ou seja,
naturais interessados nas questões ambientais. como sinks, ou pias) ou para serem “jogados
“Capacidade de carga” é definida em obras fora”.
de referência de várias formas parecidas. Afirma o 2. O denominador é a soma de duas parcelas:
A dictionary of ecology da Oxford University Press, (1) os recursos naturais finitos e/ou escassos
por exemplo, que se trata da “população máxima consumidos pelos humanos + (2) a capaci-
de um determinado organismo que pode ser sus- dade limitada dos ecossistemas naturais de
tentado por um ambiente particular” (Allaby, 1998, assimilar as pressões e os resíduos gerados
p. 73). “Capacidade de suporte” é definida por pelo modo de vida humano (o que não deixa
outra fonte de referência como “a população limi- de ser uma outra forma de escassez) – ou
te de uma espécie num sistema natural” ou a “den- seja, souces + sinks.
sidade populacional que pode ser sustentada por 3. O resultado da fração é uma cifra que indica
recursos limitados” (Silva et al., 2002, p. 40). quantas pessoas podem ser sustentadas por
Munidos desse conceito, biólogos e ecólogos cria- uma unidade do recurso (em volume, em
ram e aplicam há muitas décadas métodos para peso, em área etc.), quer como source,
descobrir quantas plantas ou animais de certas como sink, quer como ambos.
espécies podem ser sustentados “indefinidamente”
por um ecossistema, ou seja, sem causar um O relatório da Comissão Brundtland veio na
colapso nele ou sem eles mesmos entrarem em esteira de pelo menos quarenta anos de preocupa-
colapso a ele. Isso depende de diversas variáveis, ções ecológicas-ambientais entre cientistas naturais
como a posição da espécie estudada na cadeia tró- e de aplicação do conceito de capacidade de carga
fica, suas necessidades de alimento e abrigo, sua ao que hoje chamamos de questões ambientais.
taxa de reprodução e a competição que ela sofre Quem pensou sobre essas questões, pioneiramen-
de outras espécies com que disputa alimento e te, foram os cientistas naturais que, trabalhando
abrigo. Esses estudos buscam resolver uma fração individualmente ou em grupos, redes e comissões,
cujo numerador é o número de indivíduos de uma produziram estudos tão importantes e influentes,
espécie que vive numa área e cujo denominador guardadas as especificidades de época, quanto o
é dado pela quantidade de recursos da mesma relatório da Comissão Brundtland, embora em
área usados “indefinidamente” pela espécie, o que geral tenham tido uma recepção mais polêmica.
leva a um cifra cuja unidade pode ser, por exem- Sem que ninguém pudesse prever, esses
plo, o número de indivíduos por hectare. estudos cumpriram, no entanto, a difícil tarefa de
Aplicado às sociedades humanas, o conceito fundar ou codificar as grandes questões ambien-
de capacidade de carga levou diversos cientistas tais reconhecidas e debatidas contemporaneamen-
naturais a enxergarem os limites relativos ao que te. O texto da Comissão nasceu, portanto, num
a espécie humana poderia retirar do planeta como território já aberto por esses pioneiros – território
um todo para reproduzir sua existência sem pre- não apenas temático, mas também conceitual.
8 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 62

Sustento, portanto, que o conceito de desenvolvi- a formação científica daqueles pioneiros. Não
mento sustentável é, por assim dizer, um “filho” obstante, seria errôneo afirmar que aqueles cien-
sociológico do conceito biológico de capacidade tistas não tinham preocupações com a sociedade
de carga. humana e que foi preciso a intervenção “salvado-
Cabe ressaltar que a grande maioria dos ra” de cientistas sociais para que emergissem tais
cientistas sociais que hoje se interessa pelas ques- preocupações.
tões ambientais usou como “porta de entrada” o Vale dizer, em primeiro lugar, que, ao “inven-
conceito mais recente de desenvolvimento sus- tarem” a questão ambiental moderna, aqueles cien-
tentável. Mas, infelizmente, poucos conhecem o tistas pagaram preços altos, uma vez que entraram
trabalho daqueles cientistas naturais pioneiros, e em confronto direto com interesses poderosos.
alguns ainda proclamam que é preciso “derrubar Refiro-me (1) ao mainstream do pensamento cien-
a ditadura dos biólogos” – exortação acompanha- tífico de muitas disciplinas estabelecidas e podero-
da às vezes por declarações “ousadas” a favor da sas, (2) a órgãos governamentais, (3) a grupos
interdisciplinaridade. empresariais, e (4) a agências financiadoras de pes-
Não há dúvida de que os textos fundadores quisas. Esses grupos sequer admitiam a existência
da questão ambiental foram quase todos escritos dos problemas apontados e/ou não admitiam que
por cientistas naturais ou da área tecnológica – bió- suas atividades fossem de alguma forma limitadas
logos, ecólogos, químicos, analistas de sistemas, pelo reconhecimento de tais problemas. Estudar a
físicos etc. Foram eles que identificaram, publica- questão ambiental nas décadas de 1950 e 1960
ram trabalhos a respeito e levaram para a agenda estava, pois, ainda longe de ser uma opção pro-
pública as grandes questões ambientais modernas – missora para consolidar ou iniciar carreiras cientí-
esgotamento e poluição de recursos naturais (solos, ficas bem-sucedidas. Era muito mais uma manei-
água, minérios, atmosfera), extinção de espécies e ra de abalar o status quo científico-tecnológico, o
perda da biodiversidade, estrangulamentos e exter- que nunca se faz sem reações de grupos podero-
nalidades da produção de energia, desertificação, sos e sem implicações sociais.
efeito estufa, destruição da camada de ozônio, des- Em segundo lugar, é preciso ter em mente
tinação inadequada de resíduos, reciclagem e re- que, nessa fase e mesmo muitos anos depois, os
uso, entre outras – de que se ocupam hoje novas cientistas sociais foram quase sempre indiferentes à
gerações de cientistas naturais e sociais, além de matéria, mesmo nos países desenvolvidos. Dunlap
cidadãos, organizações civis, governantes e empre- e Catton (1979), por exemplo, mostram que a dis-
sários.1 Para quem conhece em primeira mão a lite- ciplina da sociologia como um todo (representada
ratura produzida por aqueles autores e, de início, principalmente, mas não unicamente, pela produ-
sua limitada receptividade entre cientistas sociais do ção em língua inglesa, original ou traduzida) deu
mundo inteiro, é patente a constatação de que mui- uma atenção “tardia” às questões que hoje chama-
tos cientistas sociais persistem como retardatários mos de ambientais. Além de tardia, foi também
na questão ambiental. limitada, pois havia ainda uma questão de fundo,
metodológica ou filosófica, qual seja, a recusa
implícita – e às vezes explícita – dos cientistas
A resistência dos sociólogos à sociais de levar em conta fatores naturais e biofí-
questão ambiental – fundamentos sicos como variáveis legítimas da análise socioló-
gica. Ou seja, os sociólogos entraram na nascen-
O marco do desenvolvimento sustentável te era ambiental portando o que considero um
evoluiu, como vimos, na esteira de um prolonga- sério handicap – o princípio durkheimiano de
do debate, explicitado a partir da década de 1950, que só é possível explicar o social pelo social.
dentro de um novo campo de preocupações que Perderam, assim, a chance de ter um papel signi-
sequer angariara para si a chancela de “científica” ficativo na emergência dos estudos e das pesqui-
ou o nome de “ambiental”. É certo afirmar que sas sobre as questões ambientais, em que o social
esse campo foi fundado com um viés que hoje se era definido, desafiado, limitado ou condicionado
chama pejorativamente de “naturalista”, refletindo pelo natural.
A PRIMAZIA DOS CIENTISTAS NATURAIS… 9

Dunlap e Catton argumentam que sociólogos entre parcelas crescentes da população. Em outras
clássicos como Durkheim, Weber e Marx, apesar palavras, a emergência de um “novo paradigma
de admirarem o triunfo do evolucionismo biológi- ambiental” entre os sociólogos não decorreu de
co darwinista, construíram modelos explicativos uma mudança endógena no âmbito da perspecti-
da sociedade tacitamente concebidos para diferir va e da metodologia da disciplina. Escrevendo em
do modelo biológico. Fred Buttel (1986) afirma 1986, Buttel afirmava que a “sociologia ambiental”
que o estilo de trabalho eclético desses e de de língua inglesa, mesmo depois de vinte anos de
outros clássicos da sociologia permite que se produção e ganhando legitimidade crescente nos
encontre em seus trabalhos alguma atenção a meios sociológicos, não conseguira dar uma nova
fatores naturais – como espaço, densidade popu- forma ou direção à sociologia praticada nos
lacional e escassez de recursos, em Durkheim; Estados Unidos.2
complexas tecnologias agrícolas e industriais, em Destaque-se ainda que, para a maioria dos
Weber; e a ciência dos solos e a agronomia em sociólogos, mesmo entre os que ingressaram na
Marx. No entanto, a emergência, no final do sécu- questão ambiental pelo portal mais recente da
lo XIX e início do século XX, do “darwinismo sustentabilidade, continuou a prevalecer o “para-
social” de Spencer e de teorias racistas ou de digma da imunidade humana”. Essa é, a meu ver,
“espaço vital” (como a de Ratzel), inclusive com a mais grave limitação à eficácia das intervenções
implicações belicistas e genocidas, fez com que de cientistas sociais no estudo das questões
os cientistas sociais seguidores dos clássicos dis- ambientais.
pensassem as variáveis naturais, que já eram
empregadas de maneira tão frágil, como instru-
mentos da explicação sociológica. As ciências naturais e a “invenção”
Dunlap e Catton sustentam também que, em das grandes questões ambientais
meados do século XX, quando emergia a questão
ambiental, os sociólogos estavam imersos num A seguir, examino as contribuições de sete
“paradigma de imunidade humana” (human cientistas naturais que, a partir da década de 1930,
exemptionalism paradigm), que se baseava na “criaram” ou contribuíram para disseminar os prin-
imunidade das sociedades humanas em relação às cipais problemas que hoje classificamos consen-
variáveis naturais. Explicar o social pelo social era sualmente como “ambientais”. Esse tipo de pro-
nesse momento um traço mais do que cinqüente- blema é tão facilmente identificado hoje graças ao
nário das ciências sociais. Duas ou três gerações pioneirismo, à competência, à ousadia e, por
de sociólogos tinham sido treinadas para estudar vezes, à capacidade “cidadã” desses cientistas de
os processos e os eventos sociais e culturais como lutar e divulgar suas descobertas fora do meio
fenômenos imunes ao alcance das variáveis natu- científico, remando contra “marés” pouco propí-
rais. Foi isso que prevaleceu na disciplina. cias, como, por exemplo, a generalizada indife-
Esses autores constatam, ainda, que essa rença e eventual hostilidade que suas contribui-
situação mudou mais recentemente, com a for- ções mereceram de cientistas sociais.
mação de um campo de “sociologia ambiental”, Abordarei esses autores – reitero: Paul Sears,
mas insistem no fato de que isso só ocorreu devi- Aldo Leopold, Rachel Carson, Paul Ehrlich,
do a pressões “externas”, na forma de questões Donella Meadows, Garrett Hardin e James Loveloc
ambientais cada vez mais visíveis, mais graves e – seguindo um roteiro de tópicos (parcialmente
mais amplas, e que resistiam a explicações pura- em ordem cronológica) de que me vali para
mente sociológicas. Lembram que essas questões enquadrar suas contribuições mais expressivas.3
foram identificadas e estudadas por cientistas
naturais e da área de tecnologia, cujo trabalho
propriamente científico (em alguns casos, eles se A desertificação esteriliza projetos humanos4
tornaram também ativistas ambientais, empenhan-
do-se na divulgação dessas questões) deu margem Focalizo primeiramente uma obra editada
à emergência de uma consciência ambientalista em 1935, cerca de vinte anos antes do início da
10 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 62

disseminação da preocupacão ambiental moderna repetindo erros e recusando-se a respeitar os limi-


em meados da década de 1950. Foi escrita por tes que a natureza impõe às sociedades humanas.
Paul Bigelow Sears (1891-1990), botânico norte- Ele não lamentava “naturalisticamente” a erosão
americano que fez parte de um grupo de cientis- dos solos ou o secamento dos rios, o sumiço da
tas naturais advindos de diferentes países, dedica- flora ou a morte da fauna – o que lhe interessava
dos a estudar o fenômeno da desertificação em era mostrar os efeitos desastrosos da desertificação
escala planetária. Este grupo formou duradouras sobre homens e mulheres de muitos lugares e dife-
linhas e redes de pesquisa e de monitoramento rentes épocas. Vale lembrar que muitos desertos
que se tornaram a base de políticas públicas e consolidados do mundo continuam a se expandir
que atuam de maneira contínua há sete décadas, hoje em dia, mesmo depois de décadas da atenção
às vezes com apoio de organizações intergover- e da intervenção fundadas por Sears e contempo-
namentais, como, por exemplo, a FAO – United râneos, e que há muitos outros lugares – inclusive
Nations Food and Agriculture Organization. Entre no Brasil – sujeitos a processos menos adiantados
outras coisas, essas linhas e redes fizeram dos de desertificação.
desertos ecossistemas mais conhecidos cientifica- “Não é apenas o solo, nem a planta, nem o
mente do que as florestas tropicais úmidas, valo- animal, nem o clima que precisamos conhecer
rizadas apenas mais recentemente. O livro mais melhor, mas principalmente o próprio homem”;
famoso de Sears, Deserts on the march (1988 “Não se consegue conquistar a natureza, a não ser
[1935]), foi lançado quando os Estados Unidos nos seus próprios termos” (Idem, pp. xiv, 3) são
vivenciavam, em seus desertos ou quase-desertos, frases lapidares que ilustram de maneira precisa o
um dos maiores desastres ambientais registrados ponto que desejo destacar, a saber, o fato de esses
no mundo moderno – as tempestades de vento e cientistas naturais terem usado seus conhecimentos
areia que ganharam o apelido de Dust Bowl, sobre a natureza e seus processos para diagnosti-
amplas e graves conseqüências para os habitantes car problemas que estavam longe de ser apenas
da região dos Great Plains, limítrofe a vários deser- naturais. Em outras palavras, eles tentaram explicar
tos, a oeste e sudoeste, o que despertou temores como esses fenômenos eram ligados a atividades
quanto à expansão dos mesmos. humanas e como interferiam no bem-estar e na
Conhecido livro de divulgação científica, própria sobrevivência dos humanos. Interessavam-
Deserts on the march focaliza o rumoroso Dust se em discutir como tais problemas poderiam ser
Bowl e deve parte de sua popularidade ao medo evitados e como suas conseqüências poderiam ser
“doméstico” dos norte-americanos ante o desastre mitigadas ou revertidas pela ação coletiva de socie-
ambiental e a perspectiva de ampliação dos já dades e governos. Nem sempre foram os analistas
extensos desertos do país. No entanto, Sears trata mais bem preparados ou mais competentes das cau-
dos desertos de uma maneira em geral, em outros sas e das implicações sociais, econômicas e políticas
continentes e de períodos da história antiga e con- desses problemas naturais, e nem sempre propuse-
temporânea. Narra dezenas de processos e episó- ram ações viáveis. No entanto, foram eles que trou-
dios em que sociedades diversas foram algozes de xeram tais problemas para a agenda pública, abrin-
si mesmas, ao praticar extrativismo, agricultura, do espaço para que cientistas sociais, entre outros
pecuária, corte de árvores e manipulações da água grupos, pudessem examiná-los com o instrumental
que ajudaram a formar ou a ampliar desertos esté- próprio de suas ciências e propusessem ações viá-
reis, incapazes de sustentar as atividades humanas. veis, embora isso, infelizmente, quase sempre tenha
Apesar de se basear principalmente em con- demorado décadas para ocorrer.
ceitos e análises oriundos da geologia, da climato-
logia e da botânica, áreas nas quais desenvolvia A ética da terra – ou a questão do
trabalhos estritamente “naturalistas”, sobre os quais comportamento humano
acumulou prêmios, homenagens e honrarias, Sears
notabilizou-se precisamente por documentar como Aldo Leopold (1887-1948), norte-americano,
muitos povos – denominados por ele “fabricantes formou-se em engenharia florestal, mas sua fama
de desertos” – cavaram o seu próprio abismo, como cientista se deve principalmente ao seu
A PRIMAZIA DOS CIENTISTAS NATURAIS… 11

papel de fundador de uma nova disciplina científi- das fazendas. Aparentemente simplórios e “natura-
ca, denominada “manejo de vida silvestre” (wildli- listas”, esses textos breves de história natural con-
fe management). Fez carreira como funcionário do têm, no entanto, ricas observações registradas pelo
US Forest Service e, depois, como diretor associa- seu olho bem treinado para distinguir mudanças
do do importante Laboratório de Produtos Florestais naturais das mudanças de origem antrópica – uma
da University of Wisconsin. Nessa mesma universi- distinção nada banal para quem lida com a ques-
dade, fundou uma cadeira pioneira dessa disciplina, tão ambiental. A terceira parte reúne textos publi-
por meio da qual ajudou a formar centenas de estu- cados anteriormente sobre a paisagem rural-selva-
diosos e gerentes de áreas preservadas, especiali- gem de várias regiões dos Estados Unidos,
zados em reconhecer e neutralizar os percalços iniciativas de proteção de paisagens e espécies etc.
que a vida selvagem e seus habitats sofrem com a Tudo “naturalista” demais, talvez, para alguns cien-
expansão das atividades humanas, dentro e fora de tistas sociais. Na quarta parte, porém, Leopold dá
unidades de conservação. O departamento e o um salto e adentra o terreno da filosofia, dos valo-
curso de pós-graduação de manejo de vida silves- res e do comportamento humano em relação à
tre da University of Wisconsin existem até hoje e natureza. Ele trata do conceito de land ethic,
continuam na vanguarda da área. expressão que se pode traduzir como “ética da
Leopold foi também um ativista ambiental. terra” ou “ética ambiental”. Esse seria o tipo de
Em 1924, ajudou a fundar a Wilderness Society, ética que a sociedade deveria assumir para ter um
importante organização civil ambientalista que se comportamento conseqüente em relação ao
dedica principalmente à proteção de animais selva- ambiente – uma ética a ser praticada não apenas
gens e de seus habitats, apoiando a criação e a entre seres humanos, mas também entre esses e
administração de UCs, fazendo lobby a favor de leis os demais membros da “comunidade biótica”.
protetoras da fauna e da flora e engajando-se em Leopold destacava a expansão da ética na história
campanhas educacionais e protetoras. Além disso das sociedades ocidentais, de forma a proteger
comprou uma fazenda falida em Wisconsin e gas- círculos cada vez maiores de pessoas – mulheres,
tou grande parte do seu tempo livre tentando res- pobres, escravos e estrangeiros – das arbitrarieda-
taurar o ecossistema nativo (pradarias de gramas des e da violência de seus semelhantes. Fazia um
altas), trabalho que se conectou com o de outros paralelo disso com a nova expansão ética que
grupos de cientistas que ajudaram a University of teria que ocorrer nas relações entre os homens e
Wisconsin a emergir na vanguarda da ainda jovem a terra. Assim como não mais se admite nas socie-
ciência de restauração de ecossistemas. dades modernas que se cometam arbitrariedades
Como se pode observar, Leopold tinha as contra seres humanos, dizia Leopold que a terra –
mãos repletas de tarefas “naturalistas”, aparente- se se deseja que ela seja protegida– não mais
mente desconectadas de problemas “sociais”. Pode- poderia ficar a mercê da arbitrariedade dos com-
ria se ocupar delas por toda a vida, se quisesse. portamentos humanos. A relação puramente eco-
Porém, poucos meses antes de morrer acidental- nômica dos homens com a terra, segundo ele,
mente combatendo um incêndio nas proximidades criaria apenas privilégios unilaterais, e não obri-
de sua fazenda, entregou a uma editora os originais gações e restrições mútuas, levando a um trata-
do que viria a ser um dos textos mais influentes mento predatório sistemático em relação a ela.
para a formação da moderna consciência ambien- Ou seja, ele propunha uma relação estreita entre
talista – A Sand County almanac (Leopold, 1984 as formas com que os homens se tratam e a
[1949]). O livro reuniu escritos inéditos e alguns dos maneira que eles interferem nos demais compo-
seus muitos textos publicados em diversas fases de nentes do mundo natural.
sua vida de profissional e ativista. Leopold via no ainda nascente movimento
As primeiras duas partes do livro consistem ambiental uma nova força social capaz de, final-
de relatos, em forma de vinhetas e crônicas, sobre mente, incluir a terra no rol dos entes eticamente
mudanças na natureza que ocorriam em sua protegidos. A ética da terra não poria fim ao ine-
fazenda e vizinhança, causadas tanto pela suces- vitável uso humano dos componentes da nature-
são de estações como por atividades produtivas za, mas “afirmaria o seu [da natureza] direito à
12 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 62

existência contínua”, até mesmo no que concerne Não há dúvida, portanto, de que essa
o estado natural ou intocado, em alguns casos. O influente reflexão desse cientista natural sobre as
autor afirmava que a conservação baseada apenas relações humanas e entre os humanos e a nature-
numa ética econômica ou utilitarista era insufi- za nada tem de “naturalista”.
ciente, pois deixaria de fora a maior parte da flora
e da fauna (por serem “inúteis”), as terras não-
agricultáveis, os minérios sem uso, as paisagens Poluição e contaminação – de passarinhos,
“feias” e assim por diante. peixes e pessoas
A ética proposta por ele abarcaria a socieda-
de humana e todos os componentes da natureza Depois da década de 1950, na esteira de
numa única e abrangente “comunidade biótica”. Sears, Leopold e outros cientistas naturais, os bió-
Isso é outra maneira de dizer que a natureza e seus logos lideraram a formulação das grandes ques-
componentes não precisam ser úteis para os huma- tões ambientais do nosso tempo e o seu enqua-
nos para merecerem proteção ou uso cuidadoso – dramento simultâneo como questões sociais.
eles têm um valor intrínseco, independente de e Muitos autores que se dedicam a estudar as ori-
irredutível à sua utilidade. Vale lembrar que esse é gens do movimento ambiental contemporâneo
o núcleo conceitual de uma sofisticada e radical consideram que o marco fundador foi o lança-
corrente ambientalista contemporânea, desenvolvi- mento, em 1962, do livro Silent spring (1962), da
da décadas depois, principalmente por filósofos e bióloga norte-americana Rachel Carson (1907-
denominada “ecologia profunda” (deep ecology). 1964). O livro causou forte e duradoura comoção
Leopold sabia que, ao propor uma postura pública nos Estados Unidos e em outros países,
como essa, estava exigindo muito… Coerente- influenciou carreiras científicas, criou linhas de
mente, considerava que a conservação da nature- pesquisa e desdobrou-se em regulamentos e leis
za baseada nessa ética não seria tarefa a ser que tiraram do mercado produtos modernos e de
desempenhada por governos vigilantes e repres- alto valor agregado. É comum cientistas e ativistas
sivos, dedicados a espionar minuciosamente os ambientais veteranos, de muitas partes do
cidadãos; seria tarefa de cidadãos virtuosos, edu- mundo, afirmarem hoje em dia que se “converte-
cados, conscientizados de que a ética da terra ram” à questão ambiental lendo esse livro e teste-
seria a melhor para todos. A conservação, nesses munhando sua repercussão.
termos, não consistia um empreendimento repres- Ao contrário do que geralmente se pensa,
sivo, embora fossem necessárias leis severas. O no entanto, Silent Spring foi para Carson um livro
autor reconhecia que se tratava de uma missão de maturidade e quase de ruptura. Antes de 1962,
para gerações, no sentido de convencer e educar ela publicara ao menos outros três livros (ver,
a população em geral, trabalho que certamente entre eles, Carson, 1941; 1950), cujas narrativas e
seria conduzido por uma minoria ativa e desinte- foco eram inteiramente diferentes de Silent
ressada, visando à mudança de comportamentos Spring. Tratava-se de textos que a inseriam no
profundamente enraizados. Somente cidadãos, que hoje se chama – quase sempre pejorativa-
fazendeiros e industriais convencidos da validade mente – de campo “naturalista”. Ela praticava uma
da ética da terra seriam capazes de tratar a natu- espécie de história natural dos mares, oceanos e
reza de forma não-destrutiva. Pode-se dizer que litorais, e dos seres vivos que neles habitavam,
Leopold era um otimista, pois via na história filo- dando atenção apenas secundária às sociedades
sófica humana uma passagem profícua da barbá- humanas. Publicou em editoras e revistas de pres-
rie, em que os homens se encontravam num esta- tígio, lecionou em universidades renomadas, teve
do hipotético de natureza, à formalização de uma bolsas de pesquisa, ganhou prêmios literários e
ética primeiramente limitada a alguns círculos foi bastante homenageada. Trabalhou como bió-
sociais e, depois, inclusiva de todos os seres loga (e depois como editora) de um órgão fede-
humanos. Estender tal ética aos componentes da ral que mais tarde assumiria grande importância
natureza seria um grande passo, mas nada tão ou nas políticas ambientais dos Estados Unidos (US
mais difícil do que a humanidade já conseguira. Fish and Wildlife Service).
A PRIMAZIA DOS CIENTISTAS NATURAIS… 13

Silent Spring é uma obra bem diferente. Trata- públicos sabiam muito bem que ela estava desa-
se de um livro de denúncia. Carson narra as som- fiando o seu poderio econômico. Tentaram, sem
brias descobertas e constatações (suas e de outros sucesso, desqualificá-la como cientista e estigmati-
cientistas naturais) a respeito das conseqüências zá-la como alarmista, mas foram derrotados com o
diretas e indiretas, na natureza e na sociedade, do banimento da produção e do uso nos Estados
uso indiscriminado dos modernos pesticidas, herbi- Unidos do DDT, símbolo maior da primeira gera-
cidas e fungicidas agrícolas (e substâncias associa- ção de pesticidas sintéticos. Mesmo assim, esse
das). O título refere-se, um tanto poeticamente, ao produto continuou a ser fabricado e usado em
fato de que certas espécies de pássaros dos Estados outras regiões do mundo que desprezaram as
Unidos, antes com populações muito numerosas, constatações de Carson e de outros cientistas que,
tornaram-se raras, “silenciando” as primaveras antes desde então, monitoram os efeitos negativos de
marcadas pelos seus cantos. Suas pesquisas mos- sucessivas gerações de pesticidas sintéticos. Graças
traram que essas aves estavam sendo eliminadas a ela, no entanto, o tema dos efeitos potencial-
pelos efeitos diretos e indiretos daquelas substân- mente perigosos de pesticidas e de muitas outras
cias, em alguns casos aplicados em áreas agrícolas substâncias sintéticas foi inscrito permanentemente
situadas a centenas de quilômetros dos litorais e na agenda ambiental, quer nas ciências, nas polí-
dos estuários atlânticos nos quais a autora realiza- ticas públicas, quer no campo do ativismo
va suas pesquisas. ambiental.5
Não se trata, porém, de um livro lírico sobre
passarinhos, mas um relatório sério, áspero e per-
turbador sobre os riscos e as calamidades que a Crescimento populacional – os humanos
sociedade mais próspera do planeta estava introdu- sobrelotam o planeta
zindo voluntária e entusiasticamente no ambiente
natural do seu próprio território. Contestou, com A questão do crescimento populacional tam-
sólida base científica, a moderna, dinâmica e lucra- bém fez parte da “invenção” da questão ambiental
tiva prática agrícola – propiciada por conglomera- contemporânea. O melhor registro disso são os
dos e produtos industriais de prestígio inabalado – escritos de Paul R. Ehrlich (1932), biólogo norte-
que criava efeitos deletérios de longo prazo sobre o americano. Ele fez carreira na University de
ambiente natural e as sociedades humanas, uma vez Stanford (Califórnia, Estados Unidos) como profes-
que essas também eram altamente suscetíveis aos sor de estudos populacionais (trata-se de popula-
efeitos negativos dos agrotóxicos. Assuntos “desa- ções de plantas e animais). Ehrlich iniciou sua car-
gradáveis” como câncer, mutações genéticas, lesões reira na década de 1950, pesquisando casualmente
nervosas, intoxicações, defeitos congênitos, envene- um assunto que preocupava bastante Rachel
namentos – tudo isso em seres humanos – abundam Carson no final de sua carreira – o desenvolvimen-
nos concisos e bem organizados parágrafos de to de populações de insetos (considerados “pra-
Carson. Ela por certo abordava pássaros raros e pei- gas”) resistentes aos pesticidas, por via da seleção
xes envenenados, mas estava preocupada, antes de genética. Ehrlich tornou-se um perito em popula-
tudo, com a saúde e o bem-estar dos humanos. ções, co-evolução, dinâmicas reprodutivas de ani-
Silent Spring desencadeou um movimento mais e biologia da conservação, além de ser um
social que, entre outras coisas, levou ao bani- importante divulgador do darwinismo e do concei-
mento do DDT e ao controle sobre outros agro- to de serviços ecossistêmicos. São assuntos mais do
tóxicos e substâncias tóxicas nos Estados Unidos, que suficientes para compor uma bem-sucedida
um dos primeiros casos de controle público sobre carreira científica na disciplina da biologia. Ehrlich
atividades produtivas modernas. Embora alguns poderia ter prosseguido estudando exclusivamente
cientistas sociais equivocados ainda hoje pensem a dinâmica reprodutiva das populações de sim-
que Carson se preocupava apenas com passari- plórias e incontroversas borboletas checkerspots
nhos, já em 1962 os executivos de empresas pro- residentes nas vizinhanças do campus de Stanford.
dutoras de pesticidas, o lobby dos fazendeiros No entanto, a partir de 1968, ele se deteve no estu-
modernizados e os dirigentes de alguns órgãos do da reprodução dos seres humanos. Publicou
14 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 62

um livro que se tornaria um clássico da questão um método próprio para estudar animais e plantas.
ambiental – The population bomb (Ehrlich, 1986 Este é um exemplo claro do quanto esses sociólo-
[1968]), um dos grandes best-sellers mundiais de gos estavam tomados pelo já citado “paradigma da
sua época. Com ele, Ehrlich passou a ser porta-voz imunidade humana” às variáveis naturais – ou seja,
e protagonista do movimento ambientalista, já que a idéia de que os homens seriam a única espécie
o livro é uma conclamação à ação. A “bomba cujo crescimento exponencial não teria limites nem
populacional” de que ele tratou não era a das ino- implicações sobre a natureza. Em segundo lugar,
fensivas moscas Drosophila (cuja resistência ao rejeitavam a perspectiva malthusiana de Ehrlich,
DDT ele estudara no início da sua carreira), mas a estabelecendo-se firmemente no campo daqueles
de seres humanos. Como vemos, era mais um bió- para quem o crescimento populacional não é um
logo a tratar de uma questão a um só tempo social problema grave, ou sequer um problema. isso
ambiental, sob a ótica da sustentabilidade. deriva de uma visão profundamente utilitarista
Ele deve ter sido o primeiro autor bastante sobre a natureza, que defende a expansão contí-
difundido que transferiu explicitamente para o nua da espécie humana para além de quaisquer
estudo das sociedades humanas o conceito de considerações sobre a base de recursos naturais
capacidade de carga. Aplicou esse conceito em que sustentam a espécie.
escala planetária e chegou a conclusões alarmis- De fato, havia um tom malthusiano em The
tas – quando não catastrofistas – de crises e population bomb se pensarmos nos dados sobre a
mesmo de colapsos iminentes na produção de ali- pobreza com que Ehrlich lidava. No entanto, o
mentos e na oferta de matérias primas em geral. autor afirmou que também as populações dos paí-
Apesar de seu tom sombrio e alarmista (aspecto ses ricos tinham crescido exponencialmente, ou
aliás muito comum em várias correntes da literatu- seja, não os “inocentava” – detalhe importante que
ra ambientalista, até hoje) e de alguns cálculos os críticos não sabem justamente porque não o
equivocados, trata-se de um estudo do que hoje leram devidamente. Ehrlich focalizava a tensão que
chamamos de “sustentabilidade ecológica” da espé- considerava mais alarmante, qual seja, a coincidên-
cie humana como um todo, tendo como base os cia de haver cada vez mais pessoas e menos comi-
recursos naturais do planeta. da nos países pobres; foi por esse motivo que se
A recepção à obra foi polêmica, originando deteve no estudo desses países. Fundou um movi-
debates sérios e duradouros. Os críticos logo com- mento/organização denominado ZPG (Zero Popu-
pararam Ehrlich a Thomas Malthus (1766-1844), lation Growth [Crescimento Populational Zero]),
economista político britânico que, no século XVIII, incentivando campanhas para conter o crescimento
propôs a existência de uma relação direta entre a populacional e estimular o planejamento familiar,
fome e o crescimento acelerado da população tanto em países ricos como pobres.6
carente na Grã-Bretanha. Ehrlich e outros cientistas Ehrlich logo incorporou parte das críticas
e ativistas que o apoiavam foram instantaneamen- recebidas. Em outro livro – The end of affluence,
te rotulados de “neo-malthusianos”, o que não era lançado em 1974, com a colaboração da sua espo-
exatamente um elogio, pois seus críticos queriam sa, Anne Ehrlich, deu o devido peso ao papel dos
mostrar que, tal como supostamente fez Malthus, níveis elevados de consumo dos países mais ricos
Ehrlich via a pobreza (e a degradação ambiental) no quadro do esgotamento de recursos naturais.
como conseqüência do aumento da população Embora menos numerosos e com crescimento
carente. Sendo evolucionista, ou seja, um herdeiro populacional muito mais lento (no século XX) em
intelectual de Charles Darwin, tal crítica não é comparação com o que ocorria em países subde-
infundada, uma vez que o próprio Darwin aponta senvolvidos, esses países consumiam proporcio-
o trabalho de Malthus como a matriz da idéia de nalmente muito mais recursos naturais e, por isso,
“economia da natureza”, o contexto original de sua tinham um maior peso na destruição ambiental em
teoria da evolução das espécies via seleção natural. escala planetária. Esse tipo de “regra de três” se
Em geral, os cientistas sociais ignoraram-no banalizou, aliás, na literatura ambientalista, princi-
ou estigmatizaram-no. Em primeiro lugar, estra- palmente na dos ambientalistas “sociais” ou parti-
nhavam que um biólogo aplicasse aos humanos dários da “ecologia política”, que muitas vezes
A PRIMAZIA DOS CIENTISTAS NATURAIS… 15

pensam que um biólogo não possui a sensibilida- Desde então o conceito biológico de “capaci-
de para perceber as nuanças que envolvem as dade de carga” se inscreveu de modo indelével –
questões ambientais – pensam assim porque não se bem que nem sempre explicitamente – na lite-
leram Ehrlich. Este autor passou a cruzar os dados e ratura científica e nos debates políticos e ideológi-
as taxas de crescimento populacional com os níveis cos sobre o meio ambiente. Muitos cientistas e
médios de consumo. Em The end of affluence, os ambientalistas “sociais” ainda o ignoram ou sim-
autores discutem, para além da análise de países plesmente o desconsideram. No entanto, o mais
subdesenvolvidos, indicações da insustentabilidade moderno e flexibilizado conceito de sustentabilida-
do moderno modelo industrial de países ricos, de, proposto pela Comissão Brundtland, nasceu da
enfocando sua voracidade por recursos naturais. concepção de “capacidade de carga”, buscando,
Vale lembrar da crítica ao Brasil numa breve além disso, resolver a mesma fração implícita nessa
seção intitulada “O Brasil: o gigante adormecido idéia. Ninguém mais se choca hoje em dia quando,
que pode morrer em breve” (pp. 128-137), que se por exemplo, um estudioso divide a oferta de água
segue a outra seção – igualmente crítica – sobre o doce dos mananciais de uma bacia hidrográfica
“sobre-desenvolvimento” japonês no período pós- pelo número de consumidores e chega a uma cifra
1945. Ehrlich critica o Brasil não apenas pelo cres- indicativa do nível alegadamente “sustentável” de
cimento populacional, mas também por sua adoção consumo por habitante. Isso se tornou um proce-
sôfrega de um modelo de crescimento acelerado, dimento tão imprescindível quanto banal.
baseado em grandes unidades de produção e no A implicação mais ampla da reflexão de
consumo abundante de energia. Mais especifica- Ehrlich sobre o crescimento populacional é que a
mente, a crítica recai sobre o que chamamos de humanidade trilha um caminho insustentável, pois
“milagre brasileiro” da década de 1970, alvo de tende a consumir mais do que a natureza tem a
todo ambientalista que se preze. É curioso ver seu dispor e mais do que a capacidade produtiva
como esse texto breve e até superficial, bastante instalada pela sociedade humana consegue aten-
desconhecido entre os brasileiros, contém argu- der. Pode-se discordar dele, ou chamá-lo de
mentos (certos ou equivocados) que hoje estão catastrofista e neo-maltuhisiano, mas é preciso
integralmente incorporados nas análises de neófi- admitir que, no final das contas, Ehrlich não é tão
tos do ambientalismo “social” ou “de esquerda” “naturalista” assim…
brasileiros – disparidades regionais do desenvol-
vimento, concentração de renda, expansão da
soja e outras monoculturas, ocupação desordena- A extinção de espécies e a biodiversidade –
da da fronteira amazônica, inadequação dos solos efeitos sobre os homens
amazônicos para cultivos de grande escala, esca-
lada da construção de estradas, deslocamento de Extinction: the causes and consequences of
populações indígenas, posição “pró-poluição” da the disappearance of species (Ehrlich e Ehrlich,
delegação brasileira na Conferência de Estocolmo 1985 [1981]) contribuiu decisivamente para inserir
etc. Trata-se de uma agenda de temas sociais bas- na agenda ambiental global dois outros tópicos
tante respeitável para um “simples naturalista”… bastante correlacionados – a extinção de espécies
Assim, para Ehrlich, o foco no crescimento e a proteção da biodiversidade. Novamente, trata-
populacional não foi um obstáculo para a constru- se de um cientista natural analisando um proble-
ção de uma relação mais racional entre os seres ma natural que, por sua vez, se tornou também
humanos e os meios de suporte extraídos do ambiental, ou seja, um problema situado na inter-
mundo natural. Ainda baseado no conceito bioló- face natureza-sociedade. É verdade que há déca-
gico de “capacidade de carga” do planeta, ele das botânicos e zoólogos já lidavam com o pro-
introduziu nesse segundo livro, como variáveis blema de extinção de espécies (e da conseqüente
intervenientes, a moderna tecnologia de grande perda de diversidade), advindo tanto de causas
escala e os níveis médios diferenciados de consu- puramente naturais, como das atividades huma-
mo dos recursos naturais dos países ricos – e até nas. No entanto, os cientistas sociais só prestaram
de um país emergente como o Brasil. atenção nesse problema depois que um grupo de
16 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 62

cientistas naturais sistematizou dados a esse res- utilitaristas e filosóficos, áreas em que muitos
peito em escala planetária, estabelecendo correla- cientistas sociais, engajados apenas recentemente
ções importantes entre extinção de espécies e ati- na questão ambiental, acreditam-se pioneiros.8
vidades humanas – desmatamento, caça ou pesca
indiscriminada, poluição, eliminação de habitats,
expansão de fronteiras agrícolas etc. –; ressaltou, Esgotamento de recursos naturais –
ainda, o valor da biodiversidade para o bem-estar a dispensa planetária se esvazia
dos humanos, discutindo sobre isso por muito
tempo e incansavelmente. Ehrlich foi um dos líde- Outro tema importante para a formação do
res desse grupo.7 campo do ambientalismo moderno é o do esgota-
Focalizado, é evidente, em plantas e animais, mento da oferta de recursos naturais. Esse tema
no entanto, esse estudo sistematiza (principalmen- preocupou cientistas e governantes europeus de
te no Capítulo 4) informações e análises sobre os meados do século XX, porém por razões especifi-
benefícios que aqueles trazem para a humanidade, camente políticas, ou seja, o esgotamento de
em termos de alimentos, remédios, materiais de recursos como conseqüência dos bloqueios
construção, fontes de energia, controle biológico comerciais ocorridos nas duas grandes guerras
(de “pragas”), serviços ambientais etc. Basta ler os mundiais, do fim do colonialismo e das ameaças
títulos de capítulos ou seções – por exemplo, ou práticas de boicotes durante a Guerra Fria. No
“Benefícios econômicos diretos da preservação de entanto, foi apenas no âmbito da nascente preo-
espécies”; “Extinções e serviços ecossistêmicos”; “O cupação ambiental global que a escassez passou a
comércio de animais selvagens”; “Energia e destrui- ser vinculada ao funcionamento “normal” da eco-
ção de habitats”; “Reprodução em cativeiro”; nomia mundial, e não uma decorrência de guer-
“Geração e manutenção de solos”; “Desenho de ras, boicotes etc.
reservas”; “Recuperação de ecossistemas”; “Regula- A questão emergiu como problema ambien-
ção da oferta de água doce”; “Polinização” – para tal pleno com a publicação de um livro que teve
ver que se trata principalmente de um livro sobre uma enorme divulgação e influência duradoura,
como as atividades humanas influenciam a vida na intitulado The limits to growth (Meadows et al.,
natureza, de um lado, e como as plantas e os ani- 1978 [1972]), também conhecido informalmente
mais atuam em nosso benefício, de outro. É um como “Relatório do Clube de Roma”. Foi traduzi-
precursor de muitas pesquisas, impulsionou car- do para cerca de trinta línguas, em grandes tira-
reiras científicas e desencadeou políticas de prote- gens e debatido durante anos em todo o mundo
ção de espécies. Três capítulos inteiros (8, 9 e 10), e todo tipo de fórum. Trata-se de um estudo cole-
bem ao gosto do ativista Ehrlich, são dedicados ao tivo, interdisciplinar e bastante inovador, realiza-
“que estamos fazendo e o que podemos fazer”, do por um grupo de dezessete pesquisadores de
ressaltando leis, políticas e práticas relevantes que alto nível, oriundos de pelo menos seis países e
tiveram êxito em muitos países. liderados por Dennis Meadows e Donella H.
No Capítulo 3, o autor envereda por um Meadows, do Massachusetts Institute of Techno-
campo mais propriamente filosófico, sistematizan- logy (Estados Unidos) – peritos em teoria dos sis-
do razões “simbólicas” para não se extinguir ani- temas, informática, recursos naturais, poluição,
mais e plantas – compaixão, estética, fascinação e agricultura, mineralogia, econometria, ciência
até o seu “direito intrínseco à existência”. Nesse política e administração.
aspecto Ehrlich, tal como fez Leopold quase trin- Embora seu marido, Dennis Meadows, fosse
ta anos antes, com mais profundidade, tangencia o diretor do projeto e detivesse os direitos autorais
a raiz de uma corrente do ambientalismo contem- do relatório que deu origem ao livro, foi a norte-
porâneo, a deep ecology, ou “ecologia profunda”, americana Donella Meadows (1941-2001) quem
que assume uma posição biocêntrica ou ecocên- emergiu como o porta-voz do grupo. Graduada
trica. Em outras palavras, o “naturalista” Ehrlich em química com Ph. D. em biofísica, era também
mais uma vez extrapola seu nicho e trata de ati- analista de sistemas; fez carreira no Massachussets
vidades produtivas, valores humanos, argumentos Institute of Technology e no Dartmouth Colllege,
A PRIMAZIA DOS CIENTISTAS NATURAIS… 17

e, graças à repercussão do livro e ao fato de ter mes de dados sobre a disponibilidade de recursos
sido uma exímea debatedora e divulgadora das (solos agrícolas, minérios e fontes de energia), o
idéias ali propostas, tornou-se, por assim dizer, consumo de recursos naturais e alimentos, o cres-
uma “cidadã do mundo”. cimento populacional, as cargas de poluição lan-
Por anos a fio esse livro gerou polêmicas e çadas nas águas e no ar etc. Todos os cenários
desencadeou eventos, pautou o trabalho de desenvolvidos (que incluíam mudanças “atenuan-
outros cientistas, inspirou relatórios similares, tes”, como a multiplicação hipotética de reservas
tanto aliados como rivais, e influenciou a discus- de minérios ou o aumento da produtividade agrí-
são de tratados internacionais e planos de desen- cola) indicavam fortes possibilidades de colapsos
volvimento. Donella Meadows aproveitou esse sociais, econômicos e ecológicos globais, advin-
movimento para criar o International Network of dos da fome, da exaustão de petróleo e de certos
Resource Information Centers, também chamado minérios cruciais para a vida industrial, da des-
de Grupo Balaton. Essa rede é uma espécie de truição de solos agrícolas e da contaminação do
think tank que reúne analistas de sistemas de cin- ambiente natural por substâncias tóxicas. Alguns
qüenta países, comprometidos com o aumento da ocorreriam dentro de poucas décadas, caso as ati-
eficiência no manejo de recursos naturais, tendo vidades produtivas e a população continuassem a
em vista seu uso sustentável. Em 1992, ainda na crescer no mesmo ritmo.
esteira do impacto do livro lançado vinte anos Para alguns o livro era uma profecia catastró-
antes, Donella Meadows lançou outro livro, que fica e iminente, para outros, um diagnóstico alar-
pode ser considerado uma atualização do primei- mante, mas representou antes de tudo um modelo
ro: Beyond the limits (Meadows et al., 1992). Com para realização de novos estudos. Contudo, foi
efeito, quando muitos cientistas sociais começa- duramente criticado por marxistas e estudiosos de
vam a se interessar pela questão ambiental, outras linhagens, por nacionalistas e por cientistas
Meadows já estava dando continuidade àquele do terceiro mundo. Eles o consideraram determi-
projeto ambiental fundador. nista, alarmista, insensível à capacidade humana de
Em The limits to growth, o grupo de pesqui- fazer adaptações políticas e sociais que pudessem
sa do MIT discutiu cinco fatores como limitadores evitar as catástrofes previstas. Creio que seja uma
do crescimento econômico global: aumento da crítica injusta, pois a própria teoria dos sistemas
população, estagnação da produção agrícola (por (que orientou a equipe de Meadows) pressupõe a
causa da exaustão de solos apropriados), exaus- ocorrência de “retroalimentações positivas”, com
tão dos recursos naturais (principalmente petró- base em constatações, decisões e mudanças de
leo e certos minérios), pressões da produção comportamento capazes de reverter ou suavizar a
industrial crescente e poluição. Nenhum deles crise de qualquer sistema.
pode ser considerado um assunto exclusivamente Por causa de sua preocupação com o cresci-
“natural”, pois todos têm causas e implicações mento populacional, o livro também foi rotulado
sociais. Vale lembrar que, mesmo com a ausência de “neomalthusiano”, o que era previsível. A críti-
de biólogos na equipe, continuavam em evidên- ca de políticos e cientistas dos países subdesenvol-
cia temas, como crescimento populacional e vidos incidiu sobre o fato de eles o considerarem
“capacidade de carga” do planeta, tão caros aos uma tentativa “imperial” dos países ricos de res-
biólogos. tringir o processo de desenvolvimento dos mais
Meadows e equipe usaram uma modelagem pobres, em nome da amenização dos impactos das
computadorizada, muito sofisticada para a época, atividades humanas sobre o ambiente natural em
para desenvolver cenários baseados em análise escala global. Cientistas sociais que também o cri-
multifatorial e em correlações simples e múltiplas. ticaram ainda sucumbiam ao paradigma do “social
Este é hoje um procedimento comum adotado pelo social” e reduziam a questão ambiental a mais
por universidades, planejadores governamentais, um item das polaridades entre países ricos e
grupos de pesquisa, consultores e empresas. Os pobres, mas ao menos começavam a prestar aten-
modelos absorviam e processavam, segundo os ção à questão ambiental e aos dados necessários
diferentes cenários programados, grandes volu- para aferir sua existência e mensurá-la.
18 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 62

Independentemente de errar em quase todas sões sociais e políticas das questões ambientais e, de
as suas previsões – risco inerente à construção de outro, desafiou sociólogos a abrir novas linhas de
cenários –, há dois méritos relevantes que não pesquisa, utilizando-se de seus instrumentais. Além
podem ser esquecidos: (1) a idéia de que a con- disso, era engajado em organizações e causas sociais,
tinuidade da espécie humana precisa ser debatida como a legalização do aborto, a referida Zero
no contexto das limitações biofísicas do meio Population Growth (fundada por Ehrlich) e o com-
natural e (2) o impulso à realização de estudos bate à imigração ilegal nos Estados Unidos.
similares, de caráter global, regional ou nacional, Apesar de sua formação, a abordagem de
focalizados de forma abrangente nas relações Hardin nesse famoso artigo – que no Brasil é
entre os estoques de recursos naturais e as ativi- muito mais citado do que lido – era visceralmen-
dades humanas. Ou seja, Meadows e co-autores te cultural ou política, e não naturalista. Segundo
mantiveram em pauta o conceito de “capacidade ele, no uso de recursos naturais de propriedade
de carga” como instrumento legítimo de pesquisa comum, o interesse individual tende a prevalecer
sobre problemas sociais e econômicos. Esses dois sobre o interesse coletivo se não houver regras
preceitos estão na linhagem ascendente direta do eficazes de acesso e uso. Isto é, nesse caso a dinâ-
conceito de desenvolvimento sustentável. mica do uso dos recursos é movida pela ambição
de usufruí-los individualmente, em detrimento do
interesse geral a curto ou a longo prazo. Segundo
A “tragédia” dos recursos de propriedade Hardin, o acesso não-regulamentado a uma área
comum – desafios à capacidade de comum ou a um estoque de recursos naturais
organização social tende a facilitar um uso irracional e, eventualmen-
te, gerar seu esgotamento, com prejuízo para
Outro texto de forte influência no campo do todos, independentemente da intenção de cada
ambientalismo é um pequeno artigo intitulado usuário, que apenas procura maximizar seu ganho
“The tragedy of the commons”, de Garrett James individual. Chamou isso de “tragédia dos recursos
Hardin (1915-2003), publicado originalmente em de propriedade comum”.
1968 na revista Science. Norte-americano, forma- O exemplo que usou no famoso artigo é sim-
do em zoologia e com Ph.D. em microbiologia, plório e, rigorosamente, contraditório à sua pre-
Hardin fez uma longa carreira universitária na missa, conforme apontado por sociólogos e antro-
University of California (Santa Barbara), onde se pólogos. Ele imaginou uma situação em que uma
tornou professor emérito de ecologia humana. comunidade camponesa hipotética mantém uma
Era um perito em questões de dinâmica de popu- área de pastagem comum que, no entanto, acaba
lações, humanas ou não. Entre sua extensa obra – sendo sobre-explorada pelo acúmulo de decisões
350 artigos e 27 livros – o artigo supracitado foi individuais maximizantes – o aumento de animais
republicado em mais de cem coletâneas, obtendo no pasto para além do ecologicamente possível –,
grande repercussão no mundo inteiro e foi duran- levando a uma eventual degradação deste. O
te muitos anos o artigo científico mais lido, citado exemplo de fato não é dos mais felizes, pois a pre-
e debatido em todo o mundo. Em 2003, num tri- valência do interesse individual significa que as
buto ao autor, a revista Science dedicou um núme- regras de uso comum são fracas ou inexistentes.
ro especial aos 35 anos de contínuos debates em Ou seja, a situação imaginada de uma proprieda-
torno do polêmico artigo originalmente divulgado de comum deteriorada não previa regras social-
em suas páginas. Hardin foi, portanto, mais um mente acatadas. Além do mais, há o equívoco
prestigiado cientista natural que formou a base “etnográfico” de supor que nessa comunidade a
para o debate ambiental contemporâneo. pastagem seria de propriedade comum, mas os
Não só cientistas naturais, mas também eco- animais, propriedade individual. Isto é, cada dono
nomistas, sociólogos, antropólogos, cientistas políti- de animais estaria submetido também a regras
cos e psicólogos discutiram suas idéias. Assim como comunitárias referentes ao pastoreio, o que impli-
outros autores já citados, Hardin estimulou, de um ca regras não apenas “deterioradas”, mas de
lado, cientistas naturais a se ocuparem das dimen- alcance limitado.
A PRIMAZIA DOS CIENTISTAS NATURAIS… 19

No entanto, a concepção trágica inferida no como Aldo Leopold, pensou a questão ambiental
texto não é invalidada pela fragilidade do exem- também no terreno da filosofia, da ética e dos fun-
plo. Hardin tinha por base o conceito biológico damentos do comportamento humano.
da “capacidade de carga”; ele associava, assim As questões levantadas naquele pequeno
como Ehrlich, a “tragédia” ao crescimento popu- artigo em torno da propriedade comum – ou, mais
lacional explosivo da humanidade, de recursos freqüentemente, da propriedade pública ineficaz –
muito mais volumosos mas tão finitos quanto os dos recursos naturais em face do seu esgotamento,
de um pasto. No caso do exemplo, a comunida- do crescimento populacional e das formas de ação
de camponesa entraria em colapso por causa da coletiva apropriadas no sentido de aproveitá-los
destruição dos recursos naturais que lhe davam racionalmente estimularam cientistas sociais a cons-
suporte, alimentando seu rebanho. truírem um campo de estudo novo e bastante rele-
O inevitável rotulamento de “neomalthusia- vante – Common Property Resources (CPR) –, que
no” foi a crítica menos contundente que Hardin atraiu, entre outros, cientistas políticos, como Elinor
recebeu. Em contrapartida, foi considerado um Ostrom (ver Ostrom, 1990), e economistas, como
defensor da privatização desregrada dos recursos Mancur Olson (ver Olson e Landsberg, 1973).
naturais. De fato, foi um crítico severo de muitos Talvez devamos a Hardin a importante inovação
mecanismos estatais de controle sobre os recursos conceitual de abordar de maneira sociopolítica os
e simpatizante de algumas soluções de mercado. recursos naturais como bens públicos, isto é, como
Curiosamente, no entanto, sua posição – geral- bens cuja disponibilidade depende de ação coleti-
mente surpreendente para críticos que nunca va e de regras construídas por grupos sociais e pelo
leram sua obra – era de que os recursos naturais poder público. O resultado mais pragmático dessa
só seriam usados racionalmente com a existência idéia talvez tenha sido apresentar a necessidade da
de regras de acesso acatadas e bem definidas, fos- criação de regras de acesso e de uso dos estoques de
sem elas públicas ou privadas. recursos naturais de maneira teórica e conceitual, o
A fé de Adam Smith de que a “mão invisível que hoje é um consenso. Novamente, vemos um
do mercado” levaria ao bem comum no domínio biólogo abordando um tema ambiental de fundo,
econômico e social não ecoa no pensamento com reflexões sobre o seu conteúdo social, eco-
ambiental de Hardin, que supunha precisamente o nômico, cultural e político; nesse caso o autor che-
contrário, ou seja, decisões individuais, pulveriza- gou a estimular os cientistas sociais a desenvolve-
das e desregradas, levariam ao esgotamento dos rem abordagens mais inovadoras.
recursos naturais e, conseqüentemente, a um “mal
comum”.
O fato de Hardin ser cético quanto a certas A saúde do planeta e dos humanos
regras governamentais ou coercitivas não significa
que ele era contra todas as regras, ou a favor ape- O inglês James E. Lovelock (1919) formou-
nas de regras liberais. Na verdade, parte das “solu- se em química e pós-graduou-se em medicina e
ções” que ele propunha se baseavam no “altruís- biofísica. Ele próprio se define como um pesqui-
mo” (assunto ao qual se dedicou extensamente sador independente, mas em diversos momentos
em outros textos), ou seja, uma postura ética em de sua carreira esteve ligado à Oxford University
que cada indivíduo deveria se preocupar com as e a outras universidades e institutos de pesquisa,
implicações de suas decisões sobre o bem-estar como Yale e Harvard. É outro cientista que pode-
comum. Tal preocupação só ocorreria com a inter- ria ter-se dedicado apenas a uma carreira “natura-
nalização de regras adequadas de comportamento lista”, com grande sucesso e impacto. Inventou,
que levassem em conta o próximo. Ainda assim, em 1957, um aparelho conhecido como ECS
Hardin era cético quanto à eficácia do altruísmo (Electron Capture Detector), que permite analisar
para além de pequenos grupos sociais. Sustentava a composição química de misturas de gases (por
que este se diluiria em meio a rivalidades e egoís- meio da cromatografia), podendo identificar tra-
mos étnicos e nacionais das grandes e complexas ços de gases muito rarefeitos de até uma parte
sociedades modernas. Com certeza, Hardin, tal por trilhão (ppt). Esse aparelho revolucionário
20 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 62

ajudou na análise de muitos aspectos da atmosfera dências e novas argumentações a respeito de sua
terrestre e também de outros planetas. Foi usado teoria. Trata-se de uma forma singular de entender
para identificar sinais de vida em outros planetas, nosso planeta como um grande organismo vivo. A
quando Lovelock, a serviço da Nasa, na década de atmosfera, os oceanos, os continentes e todas as
1960, ajudou na concepção da sonda interplanetá- formas de vida formam, segundo Lovelock, um
ria Voyager. sistema complexo e ativo, capaz de agir e reagir a
Outra descoberta científica pioneira de alterações (“naturais” ou induzidas pelos homens)
Lovelock foi a do destino dos gases CFCs, produ- e de restabelecer as condições necessárias para o
zidos sinteticamente em larga escala desde a prosseguimento e a evolução da própria vida.
década de 1930 e disseminados pelo mundo afora Ele afirma que o princípio básico da “teoria de
por sistemas de refrigeração. Inspirado em Rachel Gaia” lhe ocorreu quando se deu conta do caráter
Carson, que mapeou a maneira pela qual o sinté- quimicamente “inerte” ou “entrópico” das atmos-
tico DDT se espalhava pelos ecossistemas e orga- feras de outros planetas. Em contraste, a atmosfera
nismos, Lovelock, no final da década de 1960, da Terra, sua temperatura e a salinidade dos ocea-
decidiu se empenhar em descobrir onde se esta- nos, entre outros aspectos, apresentam conteúdos
beleciam esses gases sintéticos, cujos efeitos dele- dinâmicos e “altamente improváveis”, mas ainda
térios ainda eram insuspeitados. Em 1972, adaptou assim relativamente equilibrados e duráveis, reve-
seu aparelho ECD e embarcou numa longa viagem lando-se não-entrópicos. A explicação disso, para
de barco, de norte a sul do oceano Atlântico. ele, é que esses compartimentos do planeta são,
Documentou, então, pela primeira vez concentra- por assim dizer, “manipulados” pela vida para
ções significativas dos CFCs na atmosfera.9 Isso reproduzir as condições favoráveis a ela.
desencadeou o que ele chamou de “guerra do Apesar das críticas e contestações que apon-
ozônio”, ou seja, o longo e complexo debate em tam falhas como, por exemplo, certo teleologismo
torno da destruição da camada de ozônio pela e uma implausível intencionalidade da vida em
ação dos CFCs liberados na atmosfera. perpetuar a si mesma, a hipótese de Gaia ajudou
Esse debate, por sua vez, deu origem a um muitos cientistas a contextualizar os problemas
volume inédito de pesquisas sobre a atmosfera, ambientais atuais em escalas de tempo mais
suas mudanças e seus efeitos sobre o clima glo- amplas, em escalas espaciais globais e num abran-
bal. Lovelock fez outras descobertas importantes gente esquema de auto-regulação por forças bio-
sobre a distribuição e os papéis biológicos e cli- geofísicas que agem muito além da esfera e da
máticos de outras substâncias (naturais e sintéti- capacidade de intervenção da cultura humana.
cas), não apenas na atmosfera, mas também nos Em termos sociais ou filosóficos – a dimensão
oceanos e na crosta terrestre. Dessa forma, esse que nos interessa aqui –, a hipótese de Gaia tem
cientista também participou dos primórdios da contribuído para que muitos estudiosos considerem
discussão sobre o tão conhecido atualmente “efei- a humanidade uma variável tardia e periférica nos
to estufa” – aquecimento planetário causado ou grandes processos de mudança e de manutenção
acelerado pelo aumento de concentrações de cer- da vida e, por conseqüência, nas questões ambien-
tos gases na atmosfera, e as conseqüências em tais. Lovelock entende que a humanidade gera, sim,
termos de mudança climática. Vale lembrar que ameaças à vida, mas sobretudo em suas manifesta-
ao longo de sua carreira teve como principal cola- ções “macro”. Podemos extinguir espécies macro
boradora e co-autora de muitos textos a bióloga (mesmo não querendo fazê-lo); no entanto, somos
norte-americana Lynn Margulis. incapazes de extinguir os microorganismos (mesmo
Ainda em plena atividade, Lovelock é hoje que quiséssemos); estes são, na visão do autor, a
um dos mais influentes cientistas e divulgadores base dos grandes processos mantenedores da vida.
das questões ambientais. Sua fama decorre princi- Assim, Lovelock também se preocupa com a sus-
palmente dos livros Gaia: a new look at life on tentabilidade da vida, mas o faz a partir de um
earth (1979) e The ages of gaia (1988). O primeiro paradigma biogeofísico, no interior do qual a aven-
apresenta uma “hipótese” ou a “teoria de Gaia”; o tura humana é uma parte ínfima de processos avas-
segundo responde a críticas, mostrando novas evi- saladoramente maiores e mais complexos.
A PRIMAZIA DOS CIENTISTAS NATURAIS… 21

O pensamento de Lovelock, portanto, apre- “naturalismo”, embora tenha conseguido mobili-


senta um aparente paradoxo: sua preocupação com zar a atenção e a ação de milhões de pessoas, de
a continuidade da vida no planeta convive com a governos nacionais e de organismos internacio-
visão de que o ativismo, o planejamento e o geren- nais para muitos problemas naturais com implica-
ciamento ambientais talvez não sejam tão eficazes ções sociais.10
quanto podemos imaginar para a manutenção da
vida. Para aqueles convencidos de que a ação
social pode “salvar o planeta”, esse é um pecado Considerações finais
imperdoável do autor. De fato, a visão decorrente
da “teoria de Gaia” “apequena” a ação dos huma- Espero ter ao menos ilustrado a contento
nos no contexto de processos complexos e de que a base das principais questões que hoje cha-
longo prazo, nos quais não se pode interferir ou mamos de ambientais está no trabalho árduo de
sua interferência é diminuta. O máximo que estudiosos do campo das ciências naturais, assim
Lovelock considera que os homens podem fazer como ter logrado alertar os cientistas sociais para
para ajudar a perpetuar a vida (e conservar o o quanto ainda podem aprender com a leitura
ambiente natural) é interromper atividades alta- dessa literatura.
mente destrutivas. Isso não significa que ele “libe- Além do seu pioneirismo propriamente “te-
ra” a humanidade para destruições “menores”; ao mático”, tentei mostrar que o moderno conceito
contrário, ele participa, como cientista e cidadão, de sustentabilidade – dentro do qual trabalha a
de iniciativas favoráveis à conservação do meio grande maioria dos cientistas sociais que atual-
ambiente. No entanto, duvida da eficácia de muitas mente se ocupam da questão ambiental, em qual-
iniciativas de grande escala anunciadas como “sal- quer de suas dimensões – tem raízes no conceito
vadoras” do planeta. biológico de capacidade de carga, o qual foi lar-
Por conta disso, muitos cientistas sociais e gamente utilizado nas pesquisas ilustradas neste
ambientalistas “sociais” hesitam em avaliar Lovelock. artigo. Com efeito, esses trabalhos foram também
Se, de um lado, aprendem com a “teoria de Gaia” – pioneiros em termos conceituais e metodológicos.
apreciando especialmente sua visão “organicista” Reitero, portanto, a necessidade desse alerta no
que enfatiza o equilíbrio dos grandes processos sentido de aprimorar a pesquisa no contexto de
vitais e a capacidade da vida de lutar pela sua pró- concepções atuais que trabalham com o conceito
pria continuidade; de outro, preferem agir ou apoiar “brundtlandiano” mais abrangente de sustentabili-
ações e atitudes que Lovelock considera fúteis, criti- dade, e assim avançar o conhecimento.
cando-o por estimular o grande público a assumir É um fato relevante – nem sempre destacado
uma atitude contemplativa em relação a atividades no campo das ciências naturais – que países sub-
notoriamente deletérias à vida. Em meados de desenvolvidos consomem recursos e poluem
2004, Lovelock decepcionou alguns de seus admi- muito menos do que países ricos, mas essa distin-
radores ao se manifestar publicamente em favor da ção não muda a substância da fração básica
expansão da energia nuclear, mas ele se justifica de desenvolvida nos estudos de capacidade de carga.
forma previsível – considera a energia nuclear mais Essa constatação apenas pondera os componentes
limpa e segura, uma forma menos impactante de do denominador, mas a fração continua a ser ins-
produzir a energia necessária para movimentar as trumento fundamental da análise socioambiental,
atividades humanas. como afirmei no início deste artigo.
De qualquer maneira, temos também em A sustentabilidade, versão revista e ampliada
Lovelock um cientista natural que discute temas do conceito de capacidade de carga, complemen-
novos e caros aos ativistas e sociólogos interessa- ta-se com a inclusão dos princípios e requisitos de
dos na questão ambiental, se bem que de uma eqüidade social e econômica (entre países e povos,
forma que curiosamente qualifica certas ações e dentro de cada povo e cada país) e de solidarie-
humanas como irrelevantes perante as grandes dade intergeracional. No entanto, esses dois últi-
forças da natureza. Dos autores analisados neste mos elementos são mais éticos ou normativos do
artigo, é o que mais se aproxima do chamado que científicos. Além do mais, eles estão presentes
22 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 62

na filosofia e nas ciências sociais do Ocidente há tribuiu para divulgar com publicações a respeito.
pelo menos dois séculos. Ou seja, o núcleo pro- Não devem ser entendidos, no entanto, como uma
priamente científico do moderno conceito de sus- sugestão de que cada autor tratou apenas da ques-
tentabilidade tem raízes na biologia. tão à qual está referido neste texto, nem que tenha
sido o único a tratar da mesma.
Quanto mais cedo os cientistas sociais
5 Há referências a um episódio – que não consegui
entenderem e aceitarem isso, mais bem lidarão
confirmar – que indica o quão perigoso esse livro
com o enorme legado criado por aqueles pesqui- foi considerado: seus herdeiros (ela faleceu em
sadores que, na verdade, “inventaram” a moderna 1964) teriam vendido os direitos autorais do recém-
questão ambiental. Com certeza, a cooperação lançado Silent Spring a uma indústria de pesticidas,
direta e indireta com cientistas naturais vislumbra que, assim, impediria novas edições do livro.
ganhos de conhecimento, uma vez que a inter- Contudo, em diversas edições mais recentes, nada
disciplinaridade exigida para a análise científica consta sobre isso. O livro vem sendo reeditado
da questão ambiental vai muito além de tertúlias regularmente pelo menos desde a década de 1980.
entre disciplinas irmãs, como a antropologia, a Se alguma empresa tentou tirá-lo de circuito, fra-
sociologia e a ciência política.11 cassou.
6 Não entrei no mérito da questão de os autores aqui
examinados serem ou não de “direita”, como foram
e são muitas vezes qualificados por diferentes leito-
Notas res. Para a discussão aqui proposta, basta saber que
eles foram, todos, renovadores ou mesmo icono-
1 Exceções são os trabalhos do inglês E. F. clastas em suas respectivas comunidades científicas.
Schumacher (1973) e do polonês-francês Ignacy Além do mais, tais qualificativos ideológicos apre-
Sachs (1986), dois economistas que abordaram sentam opções no mínimo esdrúxulas quando apli-
questões ambientais de forma vigorosa, influente e cados a certas questões. Defender o controle popu-
criativa em momentos em que elas ainda estavam lacional seria uma visão de “direita”, e o laissez-faire
em fase de construção. Esses autores foram, ao reprodutivo, seria de “esquerda”? Denunciar a for-
menos, reconhecidos e valorizados quase imedia- mação de desertos seria uma postura de “direita” e,
tamente, ao contrário de um outro pioneiro, o em contrapartida, fomentar sua expansão, poderia
sociólogo norte-americano W. Frederick Cottrell ser considerada de “esquerda”? Apontar a iminência
(1955), cuja obra inovadora padeceu décadas de do esgotamento de recursos naturais seria uma con-
esquecimento. cepção de “direita”, ao passo que esgotá-los seria
2 Para uma visão diferente, expressa por dois soció- de “esquerda”? Ou ainda, a defesa da biodiversida-
logos rurais norte-americanos contemporâneos de de poderia ser considerada uma visão de “direita”,
Buttell, Dunlap e Catton, ver Field e Burch Jr. e sua destruição seria de “esquerda”?
(1988). 7 Edward O. Wilson (zoólogo), em suas memórias,
3 Por falta de espaço, alguns cientistas naturais fun- refere-se jocosamente a alguns membros desse
dadores da questão ambiental serão apenas men- grupo como a “máfia das florestas úmidas”. O grupo
cionados. Vale esclarecer que esta amostra das con- era formado, , além dele mesmo, por Ehrlich (bió-
tribuições desses autores é enviesada, uma vez que logo) e outros cinco cientistas naturais: Jared
inclui apenas autores que escreveram originalmen- Diamond (médico e biólogo), Thomas Lovejoy (bió-
te na língua inglesa. Esta seção se baseia quase logo), Norman Myers (biólogo e perito em manejo
exclusivamente nos escritos originais ou “primários” de vida silvestre), Thomas Eisner (ecólogo) e
citados, de autoria desses cientistas. Não abordarei Daniel Janzen (biólogo). Eles certamente ajudaram
os numerosos textos de comentaristas, discípulos e a introduzir na agenda ambiental não apenas a
críticos. No entanto, alguns dados biográficos e questão da extinção de espécies, mas a causa cor-
bibliográficos foram obtidos em sites acessados via relata da preservação das florestas tropicais (em
pesquisas simples no browser Google, usando ape- virtude dos altos índices de biodiversidade), tema
nas os nomes dos autores. Alguns deles – como consideravelmente relevante para o desenvolvi-
Meadows, Hardin e Lovelock – têm sites especifica- mento da consciência ambiental brasileira, por
mente dedicados a eles. motivos óbvios. A esse respeito, ver Wilson (1994).
4 Os subtítulos desta seção indicam as distintas ques- 8 Chega a ser constrangedor a apropriação equivo-
tões ambientais que cada autor identificou e con- cada, por parte de cientistas sociais novatos na área
A PRIMAZIA DOS CIENTISTAS NATURAIS… 23

de ambientalismo, de temas e termos relacionados à de Barros (agrônomo), Alceo Magnanini (biólogo),


extinção de espécies e à proteção da biodiversidade Harald Edgard Strang (agrônomo), Paulo Nogueira
. Em dois encontros recentes de estudiosos e ativis- Neto (biólogo), Adelmar Coimbra Filho (biólogo),
tas do meio ambiente (um deles realizado no Olivério Pinto (biólogo), Helmut Sick (biólogo),
Brasil), ouvi sociólogos afirmarem publicamente Maria Tereza Jorge Pádua (agrônoma), José
que certos grupos sociais – indígenas, seringueiros Lutzemberger (agrônomo), Flávio Lewgoy (geneti-
e outras populações “tradicionais” da Amazônia – cista e químico) e Sebastião Pinheiro (agrônomo).
protegem e mesmo enriquecem a biodiversidade, Sobre esses pioneiros cientistas brasileiros envolvi-
pois “criam espécies novas”. Solicitados pelas pla- dos na questão ambiental, ver Franco (2002) e
téias a identificarem que espécies seriam essas, os Urban (1998; 2001).
palestrantes citaram arroz, milho, cana-de-açúcar, 11 Não abordei aqui as questões relativas à “determi-
laranja e manga, ou seja, espécies domesticadas, ori- nação genética” do comportamento humano e da
ginárias de outras regiões, continentes ou biomas. A aplicabilidade das leis da evolução e do mecanismo
ânsia de defender as virtudes ambientalistas desses da seleção natural à cultura humana. Por serem
grupos se soma à ignorância sobre o que seja a muito mais complexas e polêmicas, ainda estão
criação de uma espécie, o que gera afirmações longe de atrair cientistas naturais, de um lado, e
canhestras como essas, que fazem cair no ridículo cientistas sociais, de outro, para um campo comum.
as causas que pretendem defender. Com efeito, essas questões vão além da criação de
9 Foi-lhe negado o apoio financeiro solicitado aos temas e de linhas de pesquisa, pois se encontram
órgãos ingleses de fomento à pesquisa para a via- na raiz da própria identidade dessas ciências, mos-
gem. Os pareceristas a consideraram implausível e trando a origem comum das ciências sociais com a
irrelevante. Lovelock financiou a viagem e a pes- biologia. Para quem se interessa pela interface
quisa que se seguiu a ela com recursos próprios. entre a biologia e a sociologia, é um tema de gran-
Isso mostra que as próprias instituições de pesqui- de relevância, no qual biólogos e sociólogos têm
sa tinham resistência em apoiar estudos ambientais. feito investimentos consideráveis. Edward O.
10 Não pude, no espaço restrito deste artigo, dar o Wilson defende desde a década de 1970 uma abor-
merecimento devido a outros cientistas pioneiros dagem “dura” – a sociobiologia –, apresentada
ou “ícones” da questão ambiental. Apresento, pois, mais recentemente de forma um pouco mais
de forma breve autores também relevantes nesse “suave” (consilience), mas ainda assim bastante
sentido: Edward O. Wilson (1929), zoólogo, um assertiva (cf. Wilson, 1975, 1978, 1998). Ele defen-
dos principais codificadores das questões acerca
de nada menos do que a “unificação” do saber
da biodiversidade, da extinção de espécies e da
científico sobre a cultura humana sob a liderança
proteção dos ecossistemas (inclusive florestas tro-
da biologia evolutiva. Para uma discussão mais
picais úmidas); Stephen J. Gould (1941-2002),
ponderada – mesmo que próxima da de Wilson –
paleontólogo, um dos renovadores do darwinismo
sobre a questão nature versus nurture (natureza
que contribuiu muito para o melhor entendimento
versus cultura), ver Ehrlich (2002).
da extinção contemporânea de plantas e animais;
Amory Lovins (1947), físico, que se notabilizou por
discutir os aspectos ambientais, sociais, econômicos
e políticos das diversas modalidades (soft e hard)
BIBLIOGRAFIA
de energia; Barry Commoner (1917), ecólogo, pro-
ALLABY, Michael (ed.). (1998), A dictionary of
lífico divulgador das dimensões políticas e tecnoló-
ecology. 2. ed. Oxford, Oxford University
gicas das questões ambientais; Lester Brown (1940),
Press.
agrônomo e economista agrícola, fundador do
famoso Worldwatch Institute. No Brasil, merecem BUTTEL, Frederic H. (1986), “Sociology and the
entrar em lista similar: Alberto José Sampaio (botâ- environment: the winding road toward
nico), Frederico Carlos Hoehne (biólogo), Cândido human ecology”. International Social
de Mello Leitão (zoólogo), José Cândido de Melo Science Journal, 109: 337-356.
Carvalho (veterinário), Luiz Emygdio de Mello
Filho (botânico), João Murça Pires (agrônomo), CARSON, Rachel L. (1955 [1950]), The Sea around
Augusto Ruschi (biólogo), Ibsen de Gusmão us. Revised edition. Nova York, Mentor
Câmara, Paulo Moreira da Silva, José Luiz Bélart Books [edição original: Oxford, Oxford
(oficiais da Marinha de Guerra), Wanderbilt Duarte University Press, 1950].
24 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 62

_________. (1962), Silent spring. Nova York, life on earth. Oxford, Oxford University
Ballantine. Press.
_________. (1995 [1941]), Under the sea. Nova LOVELOCK, James E. (1988), The ages of gaia.
York, Mentor Books [edição original: Nova York, EW. W. Norton.
Oxford, Oxford University Press, 1941].
MEADOWS, Donella et al. (1972), The limits to
CMMAD – Comissão Mundial de Meio Ambiente e growth. Nova York, Universe Books [edi-
Desenvolvimento. (1987), Nosso futuro ção brasileira: Limites do crescimento. 2
comum. Rio de Janeiro, Editora da ed. São Paulo, Perspectiva, 1978].
Fundação Getúlio Vargas.
MEADOWS, Donella et al. (1992), Beyond the
COTTRELL, W. Frederick. (1955), Energy and limits. White River Junction, Vermont,
society: the relation between energy, social Chelsea Green Publishing Company.
changes and economic development.
Nova York, McGraw-Hill. OLSON, Mancur & LANDSBERG, Hand H. (eds.).
(1973), The no-growth society. Nova York,
DUNLAP, Riley E. & CATTON, William R. (1979), Norton.
“Environmental sociology”. Annual
Review of Sociology, 5: 243-273. OSTROM, Elinor. (1990), Governing the com-
mons: the evolution of institutions for col-
EHRLICH, Paul R. (1986 [1968]), The population lective action. Cambridge, Cambridge
bomb. Revised edition. Nova York, University Press.
Random House.
SACHS, Ignacy. (1986), Ecodesenvolvimento: cres-
_________. (2002), Human natures: genes, cultu-
cer sem destruir. São Paulo, Vértice.
res and the human prospect. Nova York,
Penguin. SCHUMACHER, E. F. (1973), Small is beautiful:
economic as if people matterred. Londres,
EHRLICH, Paul R. & EHRLICH, Anne. (1984
Blond & Briggs.
[1974]), The end of affluence. Nova York,
Random House, 1984. SEARS, Paul B. (1988 [1935]), Deserts on the
march. Washington, D.C., Island Press
_________. (1985 [1981]), Extinction: the causes
(Conservation Classics Series) [edição ori-
and consequences if the disappearance of
species. Nova York, Ballantine Books [edi- ginal: University of Oklahoma Press,
ção original: Nova York, Random House, 1935].
1981]. SILVA, Pedro Paulo de Lima et al. (2002),
FIELD, Donald R. & BURCH JR., William R. Dicionário brasileiro de ciências ambien-
(1988), Rural sociology and the environ- tais. 2 ed., revista e ampliada. Rio de
ment. Middleton, Wisconsin, Social Janeiro, Thex.
Ecology Press. URBAN, Teresa. (1998), Saudade do Matão.
FRANCO, José Luiz de Andrade. (2002), Proteção Curitiba, Editora da Universidade Federal
à natureza e identidade nacional: 1930- do Paraná.
1940. Tese de doutorado, Departamento _________. (2001), Missão (quase) impossível:
de História da Universidade de Brasília. aventuras e desventuras do movimento
HARDIN, Garrett. (1968), “The tragedy of the ambientalista no Brasil. São Paulo,
commons”. Science, 162: 1243-1248. Editora Peirópolis.
LEOPOLD, Aldo. (1984 [1949]), A sand county WILSON, Edward O. (1975), Sociobiology: the new
almanac. Nova York, Ballantine Books synthesis. Cambridge, Harvard University
[edição original: Oxford, Oxford Press.
University Press, 1949].
_________. (1978), On human nature.
LOVELOCK, James E. (1979), Gaia: a new look at Cambridge, Harvard University Press.
A PRIMAZIA DOS CIENTISTAS NATURAIS… 25

_________. (1994), Naturalist. Washington, Island


Press.
_________. (1998), Consilience: the unity of know-
ledge. Nova York, Alfred A. Knopf.
RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 161

A PRIMAZIA DOS CIENTISTAS NATURAL SCIENTISTS AS LA PRIMAUTÉ DES


NATURAIS NA CONSTRUÇÃO DA LEADERS IN THE CREATION OF SCIENTIFIQUES NATURELS DANS
AGENDA AMBIENTAL THE CONTEMPORARY LA CONSTRUCTION DE
CONTEMPORÂNEA ENVIRONMENTAL AGENDA L’AGENDA ENVIRONNEMENTAL
CONTEMPORAIN

José Augusto Drummond José Augusto Drummond José Augusto Drummond

Palavras-chave: Questão Keywords: Environmental issues; Mots-clés: Environnement; Pollution;


ambiental; Poluição; Crescimento Pollution; Population growth; Croissance démographique;
populacional; Recursos naturais; Natural resources; Desertification; Ressources naturelles; Désertification;
Desertificação; Extinção de espécies. Extinction of species. Extinction des espèces.

Este artigo discute as contribuições de The article discusses the contribu- L’article aborde les contributions de
sete cientistas naturais – Paul Sears, tions made by seven natural scien- sept chercheurs du domaine des
Aldo Leopold, Rachel Carson, Paul tists – Paul Sears, Aldo Leopold, sciences naturelles – Paul Sears, Aldo
Ehrlich, Donella Meadows, Garrett Rachel Carson, Paul Ehrlich, Donella Leopold, Rachel Carson, Paul Ehrlich,
Hardin e James Lovelock – na cons- Meadows, Garrett Hardin, and James Donella Meadows, Garrett Hardin et
trução da agenda ambiental contem- Lovelock to the establishment of the James Lovelock – à la construction
porânea. O autor sustenta que os contemporary environmental agen- de l’agenda environnemental con-
cientistas sociais chegaram a ela de da. It argues that almost every major temporain. L’auteur défend que les
forma retardatária e, por vezes, par- issue in this agenda was brought up scientifiques sociaux ont conçu cet
cialmente equivocada por se apega- and publicized originally by natural agenda de façon retardataire et, par-
rem a uma tradição de explicar o scientists. Social scientists interested in fois, partiellement inexacte, car ils se
“social apenas pelo social”. Muitos these issues were latecomers, mostly sont attachés à une tradition qui
cometeram ainda o erro de ignorar as because they held on to the “human explique le social uniquement par le
contribuições daqueles pioneiros, com exemption paradigm.” Sometimes social. Nombreux sont ceux qui ont
prejuízo para as suas próprias análi- they also ignore the contributions of commis l’erreur d’ignorer les contri-
ses. Creio que seja imprescindível que their colleagues in the natural sci- butions de ces pionniers, au détri-
pesquisadores do campo das ciências ences, a flaw that affects negatively ment de leurs propres analyses stric-
exatas e humanas dialoguem de the quality of their own endeavors. tement sociales. Le texte propose
forma mais intensa sobre os temas da The article proposes that social scien- que les chercheurs, dans les domai-
agenda ambiental. tists and natural scientists should nes des sciences sociales et des
deepen their exchanges on environ- sciences naturelles, dialoguent de
mental matters. manière plus intensive sur les thèmes
de l’agenda environnemental.

Você também pode gostar