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Pedro Henrique Ramos Prado Vasques1

Resumo Introdução
O texto tem como principal objetivo estimular um Inúmeros cientistas vêm alertando o inédito grau
exercício de reflexão, propondo uma avaliação crítica de impacto e irreversibilidade das ações humanas
do ambientalismo a partir do limiar de suas formu- sobre nós próprios e nosso entorno.2 Seus traba-

No limiar
lações intelectuais. Esse movimento implica situar a lhos expõem o quão próximo estamos de um cenário
ideia de meio ambiente em termos de uma história catastrófico, sobretudo para populações pobres e
dos conceitos ou racionalidades sobre os entornos grupos sociais localizados em espaços atingidos em

do ambientalismo
e suas relações com os seres humanos. Seguimos maior intensidade pela mudança do clima. Apesar de
nessa direção para que, dessa maneira, seja possível compreendermos a importância da divulgação des-
nos distanciarmos dos conceitos e das temporalida- sas pesquisas, que nos parece uma tarefa impres-
des dominantes, a fim de contribuir para o restabele- cindível, a adoção de uma retórica de prenúncio do
cimento da sensibilidade e do olhar para a diversida- apocalipse não só é apenas uma dentre várias possí-
Reflexões para pensar sobre seus contornos de imanente à dimensão ética dos Direitos Humanos. veis, como também pode estar associada à produção
Não se trata de assumir uma postura relativista que de indiferença de outros efeitos contraproducentes,
à luz da diversidade acolha o intolerável, mas de colaborar para a produ- dada a incomensurabilidade entre a construção dis-
ção de ferramentas úteis à confecção de alternativas cursiva da catástrofe e as possibilidades de ação hu-
para lidar com os conflitos contemporâneos. mana coletiva. Há outros caminhos, sobretudo, pro-
porcionados pelas ciências sociais e que vão além

2. LOVEJOY, Thomas E.; NOBRE, Carlos. Amazon tipping point: Last chance
1. Pesquisador associado ao Centro de Estudos de Cultura Contemporânea for action. Sciences Advances, v. 5, n. 12, 2019. DOI: https://doi.org/10.1126/
Pedro Henrique Ramos Prado Vasques1 (CEDEC) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre
Estados Unidos (INCT-INEU).
sciadv.aba2949; MARQUES, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental. Campinas:
Editora Unicamp, 2015.

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da divulgação científica das pesquisas sobre meio Como dito, pretendemos assumir uma posição tindo sobre suas implicações tanto para a formulação é, como desdobramento das reconfigurações sociais,
ambiente e clima sem a mediação de suas dimen- crítica em relação a tais discursos e práticas, sem das políticas públicas quanto para a compreensão políticas e econômicas observadas na segunda me-
sões políticas e sociais. Tomando como premissa a que isso implique negar a relevância das informa- e a relação dos sujeitos consigo próprios e seu en- tade do século XX. Portanto, diz respeito a questões
importância dos debates produzidos no entorno de ções e das tendências problemáticas que elas reve- torno.3 Apesar de sua plasticidade, o ambientalismo muito particulares de um momento específico das
um campo de análise climático-ambiental, a proposta lam. O que será feito por uma análise geral sobre a possui grande dificuldade para conciliar seus discur- democracias liberais ocidentais contemporâneas re-
do presente capítulo é estimular um deslocamento emergência e a consolidação do discurso ambien- sos, objetivos e práticas com a diversidade em sua lacionado, por exemplo, à aceleração dos processos
de perspectiva em direção ao limiar de tais abor- tal. Em seguida, aprofundamos a reflexão crítica a plenitude e autonomia. Em geral, ou incorpora tais de urbanização, à ameaça do uso de armas e energia
dagens ambientalistas. Nosso intuito é o de buscar partir de questionamentos relacionados às formas particularidades, implicando a sua homogeneização nuclear, ao crescimento do consumo e da poluição
construir um olhar crítico e, para tanto, que se colo- de relação dos sujeitos com o meio ambiente, a or- a partir dos contornos próprios da razão ambiental, industrial e aos acordos internacionais firmados no
que à margem dos conceitos e tem- ganização das formas jurídicas para ou as antagoniza, submetendo seus opositores à re- pós-guerra. Desse
poralidades dos discursos e práticas lidar com a agenda ambiental e a lação dada pelo cumprimento ou violação das normas modo, reiteramos
atuais. Em especial, haja vista que construção de alternativas que pri- e dos padrões de comportamento. Nesse contexto, o que a concepção
sua incorporação em vários contex- vilegiem a diversidade de sentidos discurso catastrofista explicita e, ao mesmo tempo, contemporânea
tos, dentre eles, o brasileiro, se deu atribuída pelos sujeitos ao entorno. acentua essa dificuldade para lidar com a diversidade de meio ambien-
apesar de uma avaliação crítica pro- Essa reorientação não implica, por- na medida em que se vale da urgência para legitimar te é apenas mais
funda acerca de suas implicações. E, tanto, jogar por terra tudo aquilo que seu modelo – pouco, ou nada, crítico – de adesão ao uma dentre várias
ao desenvolver outras perspectivas vem sendo construído nesse campo. ambientalismo. outras formas de
de análise que nos auxiliem a repen- Não há dúvida de que o ambientalis- compreendermos
sar tais fenômenos, esse exercício mo é indispensável, em especial no Caminhando em direção ao limiar nós mesmos, o en-
poderá também nos oferecer pistas momento atual, em que observamos a do ambientalismo torno e nossa rela-
para organizar alternativas de pensamento e ação ascensão de um neoconservadorismo autoritário que Inicialmente, propomos repensar o caráter atem- ção com ele.
à luz da diversidade imanente à dimensão ética dos vem colocando sob tensão as democracias liberais poral e universal arbitrariamente imbuído à categoria Dentre as concepções implicadas em contextos
Direitos Humanos. Assim, o trabalho não vai se de- ocidentais. Nesse contexto, há um especial cuidado meio ambiente. É preciso lembrar que sua emergên- que nos são mais próximos e reconhecidos, é possí-
bruçar sobre questões já amplamente tratadas pela para que a proposta não o marginalize e, tampou- cia se dá em determinada conjuntura histórica, isto vel destacar as derivadas das cosmologias de etnias
literatura, por exemplo, envolvendo o Painel Intergo- co, se aproxime de tais orientações conservadoras indígenas latino-americanas, a própria construção do
vernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) ou e autoritárias. Desse modo, ao nos deslocarmos em 3. VASQUES, Pedro H. R. P. O governo ambiental no Brasil: uma análise a partir mito indígena pelo colonizador português, as figuras
dos processos de avaliação de impacto ambiental. Tese (Doutorado) – Instituto
tampouco os Objetivos do Desenvolvimento Susten- direção ao seu limiar, pretendemos explicitar os con- de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, Campinas, SP, 2018. p. 325. Dis- do sertão e do sertanejo e aquela que ganha maior
ponível em: http://repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/332346. Acesso em:
tável da Organização das Nações Unidas. tornos imanentes da racionalidade ambiental, refle- 30 set. 2021. destaque no final do século XIX e início do XX, a con-

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cepção conservacionista. Até a emergência do am- 1890) e Yellowstone (1872), e na criação e implemen- mentos históricos e artísticos”, são criadas estruturas em que essa se
bientalismo, esta última será a razão dominante de tação de normas jurídicas como o Forest Reserve Act burocráticas, como o Serviço Florestal (1922), insti- firmou protagonis-
percepção, compreensão e gestão do entorno em vá- (1892), voltado à gestão florestal, e o Reclamation tuídas áreas protegidas, como os Parques Nacionais ta, propomos que
rios territórios, revestindo-se de particularidades nos Act (1902), ligado à gestão de recursos hídricos. de Itatiaia (1934; 1937) e do Iguaçu (1939), e é orga- essa seja pensada
contextos específicos. Nos Estados Unidos, um dos No Brasil, para além das críticas feitas por pen- nizada uma pluralidade de associações civis ligadas a partir da história
lugares em que toma forma, terá como fundamento sadores abolicionistas como José Bonifácio, Joaquim a essa agenda. O declínio do conservacionismo no dos conceitos ou
intelectual saberes derivados das ciências naturais, Nabuco, André Rebouças e Euclides da Cunha às plano institucional ocorrerá, no entanto, a partir da racionalidades so-
explicitados em textos como Walking (1862), de Hen- formas de exploração da natureza ao longo do século aproximação dos militares junto a Vargas e sua recu- bre os entornos e
ry D. Thoreau, ou Man and Nature (1864), por Ge- XIX,6 o conservacionismo norte-americano será in- peração será verificada com outros contornos após a suas relações com
orge Marsh, e, ainda que mantenha a natureza (wil- corporado e adaptado pelas elites intelectuais brasi- década de 1960. os seres humanos.
derness) em uma condição hierárquica inferior, a ser leiras – e.g., Hermann Von Ihering, Alberto Loefgren, Então, ao invés da universalidade própria da razão Esse rearranjo permite evitar a produção de análises
subjugada pelos seres humanos, coloca em xeque a Edmundo Navarro de Andrade, Alberto Torres. Ele de- ambiental contemporânea, temos a pluralidade. Essa, sobre experiências pretéritas mediante o uso de téc-
razão liberal e o mito da superabundância,4 em que sempenhará papel de destaque na conformação de por sua vez, implica uma abertura para refletir sobre nicas próprias de contextos atuais. Haja vista que,
os recursos naturais seriam inexauríveis e que sua seu pensamento e ação ao longo da Primeira Repú- os efeitos concretos dessa racionalidade, não ape- nas situações em que esse cuidado não é seguido,
exploração pelo colonizador seria tanto um direito di- blica e da Era Vargas, produzindo inúmeras implica- nas para estabelecer distinções, mas no sentido de a observação dele derivada tende tanto a ser condi-
vino como o único ções, em especial, entre as décadas de 1920 e 1940. identificar elementos que ajudem a compreender as cionada por fundamentos epistêmicos e intelectuais
caminho possível Nesse caso, o conservacionismo foi capaz de encon- razões, os desejos e os interesses desses sujeitos. Ao anacrônicos quanto contribui para tornar inacessíveis
para a prosperida- trar ressonância no interior do Estado, haja vista sua pensarmos a ideia de meio ambiente à luz da história quaisquer tentativas de compreensão dos sujeitos e
de.5 Suas ideias articulação com a ideia de projeto nacional. É nesse e, principalmente, a partir de seu limiar, sua condição seus objetos por meio das categorias e significações
são materializa- período que são editadas normas como os Códigos aparentemente evidente e não refletida se desfaz, per- mobilizadas nas respectivas circunstâncias e contex-
das na criação de Florestal, de Caça e Pesca, de Águas, de Minas, de dendo a qualidade de eixo interpretativo que produzi- tos. Abre-se a perspectiva de conhecer o outro, que,
áreas protegidas, Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas, ria um fio de continuidade capaz de conectar as várias de alguma forma, se coloca fora ou em oposição a ela,
como os Parques inclui-se uma previsão constitucional (1934) especí- concepções de entorno ao longo dos espaços e das indo além do antagonismo intratável.
Nacionais de Yo- fica sobre a proteção das “belezas naturais e monu- temporalidades. À medida que a distanciamos dessa Desse modo, o exercício pode ser conduzido por
semite (1864; função nuclear, ela passaria, então, a compor mais várias formas de aproximação. Destacamos aquela
6. PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica um elo no conjunto de possibilidades de compreensão relacionada à dinâmica de reorganização do contexto
ambiental no Brasil escravista (1786-1888). Rio de Janeiro: Zahar, 2004; FRAN-
4. UDALL, Stewart L. The Quiet Crisis. New York: Avon Books, 1968.
CO, José Luiz de Andrade; DRUMMOND, José Augusto. Proteção à natureza do entorno. Assim, se pretendemos falar em história internacional após a Segunda Guerra, e que implicou
5. KLINE, Benjamin. First Along the River: a brief history of the U.S. environmen- e identidade nacional no Brasil, anos 1920-1940. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz,
tal movement. 4. ed. Plymouth: Rowman & Littlefield Publishers, 2011. 2009. ambiental para além dos lugares e dos momentos a produção de novas formas e instrumentos de me-

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diação das relações entre as nações. autorizados a decidir sobre sua ges- Dentre outros, a caracterização de um sistema gem de abordagens locais e nacionais em direção ao
No que interessa a presente análise, tão – uma vez que o domínio sobre planetário, homogêneo, único e interligado viabiliza- regional e global, enfocando exatamente no modo de
ressaltamos dois elementos, quais tais bens não mais se tratava de uma ria o estabelecimento de regras de acesso, explora- tratar a soberania sobre os recursos e as medidas de
sejam, a vedação a novos colonialis- questão de direito de propriedade –, o ção e troca igualmente uniformes. Assim, a criação organização e cooperação internacional. No entanto,
mos e a valorização das soberanias quadro decisório possível, e, sobretu- de tais normatividades contribuiria para circunscre- esse percurso não se deu sem resistências e confli-
das nações periféricas – cuja influên- do, estabeleceu sua adequada gestão ver os possíveis participantes autorizados a integrar tos. Para além das possibilidades de convergência,
cia da Guerra Fria seria também muito como condição da própria soberania. as dinâmicas competitivas – i.e., aqueles capazes de a organização dessa forma de percepção e compre-
importante –, como elementos-chave Em complementação, a vedação a atender a todas diretrizes ambientais –, bem como ensão do entorno foi também resultado de embates
para avaliar o percurso que viabilizou práticas colonialistas contribuiu para as ações dos Estados soberanos nos seus próprios entre vários atores, inclusive, estatais e grandes
a produção das formas de percepção que os Estados centrais não mais dis- territórios, definindo limites para, por exemplo, eles corporações, que – entre outros – contribuíram para
e compreensão do entorno hoje dominantes. Em face putassem os recursos mediante guerra e conquista, formularem normas e políticas de natureza distin- aproximar a agenda ambiental da economia. As ar-
da construção de um novo quadro normativo, que se mas privilegiando a economia como lugar primeiro ta daquelas pactuadas nos fóruns multilaterais ou ticulações de países periféricos, como o Brasil, fo-
caracterizava pela organização do cenário interna- das interações e confrontos. Em síntese, o mercado transgredindo os acordos internacionais. Isso viria a ram significativas nesse processo. Veja, por exem-
cional a partir de práticas competitivas, orientação seria o espaço de preferência para definir as formas ser efetivado, em geral, por meio de constrangimen- plo, o papel desempenhado pela comitiva brasileira,
essa que também implicou a circunscrição das possi- dos fluxos dos recursos, estabelecendo as condições tos e sanções jurídicas, econômicas e financeiras, em conjunto com a da Índia, no âmbito das reuniões
bilidades de ações imperialistas por parte dos Esta- e as possibilidades da soberania. Em um primeiro mo- e, em última análise, mediante o questionamento da preparatórias para a Conferência de Estocolmo, em
dos nacionais, mantinha-se indispensável continuar mento, essa arquitetura institucional se revestiria de qualidade de sua soberania. Em contrapartida, pa- Founex, na Suíça. Não só a adesão de ambos os pa-
acessando os recursos de outros territórios, inclusive uma elevada capacidade de convergência com o am- drões mínimos de gestão ambiental íses foi determinante para o sucesso
das colônias e demais países periféricos. Isso implica bientalismo emergente na segunda metade do século foram estabelecidos em normas in- do evento em 1972, mas também sua
dizer que a reestruturação do contexto internacional XX – e, nesse sentido, também contribuiu para forta- ternacionais, criando-se incentivos e atuação proativa junto a demais paí-
no pós-guerra, dentre outros, passava também pela lecê-lo. Em momento seguinte, o ambientalismo teria pressões para serem incorporados ses em desenvolvimento.8
reorganização dos fluxos de recursos – inclusive, na- contribuído (e vice-versa) para o estabelecimento das pelos países em seus ordenamentos Nesse novo quadro em constru-
turais – entre as nações. novas práticas econômicas, legitimando-as, bem como e instituições nacionais. ção, o ser humano passaria a ser
Uma das construções normativas mais importan- fornecendo subsídios intelectuais e operacionais que É possível acompanhar a trajetória percebido como um fator-chave nas
tes para essa dinâmica foi o entendimento de que ajudariam a definir os contornos, nesse caso, das boas de construção desse discurso conver- questões envolvendo a natureza, sus-
as nações seriam soberanas sobre os recursos em práticas de mercado, aceitas no jogo concorrencial. gente a partir dos acordos e conferên-
seus territórios.7 Esse movimento definiu os atores cias internacionais realizados a partir 8. LAGO, André Aranha Corrêa do. Estocolmo, Rio, Joanesburgo. O Brasil e as
econômica internacional. Revista de informação legislativa, v. 21, n. 81, p. 213- três conferências ambientais das Nações Unidas. Brasília: Instituto Rio Branco,
7. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. As Nações Unidas e a nova ordem 32, jan./mar. 1984. Suplemento. do final dos anos 1940. Neles se explicita a passa- Fundação Alexandre Gusmão, 2007.

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citando que outros saberes, para além das ciências agenda no plano doméstico, ainda que muito aquém sa racionalidade ambiental se deu no país sem que bientais? Quais são os caminhos possíveis capazes
naturais, fossem mobilizados no âmbito da sua inte- das expectativas dos atores locais e internacionais. viesse acompanhada de uma crítica profunda. Uma de articular múltiplos atores e interesses na cons-
gração com dimensões políticas, sociais, culturais e Com instituições ocupadas por burocratas que cul- das razões pelas quais torna-se fundamental repen- trução de horizontes comuns, sem, necessariamen-
econômicas. Assim, se a partir dessas novas direti- tivavam uma visão pré-ambientalista, associada à sar sua trajetória. te, depender da sua organização por meio de uma
vas internacionais a ideia de poluição nos países do tradição conservacionista brasileira que ganhou for- abordagem que marginalize as particularidades dos
Norte global passava a ser conectada ao consumis- ma na Primeira República,9 o ambientalismo emerge Aprofundando a crítica sobre a vários grupos sociais e suas respectivas formas de
mo e à sua produção industrial, no Sul, a pobreza se- em oposição tanto à ditadura quanto a esse conser- razão ambiental percepção e compreensão do entorno?
ria elencada como decisiva para compreender o mau vacionismo, e é construído em sinergia com o mo- Introduzido o exercício que busca explicitar os ca- Em relação ao primeiro questionamento, destaca-
uso dos recursos naturais, ou seja, aquele contrário vimento pela redemocratização. Ou seja, a defesa minhos possíveis para se pensar a razão ambiental a mos que o discurso ambientalista oferece nas últimas
às boas práticas internacionais. Esse movimento, do meio ambiente partir do seu limiar, décadas a racionalidade, isto é, o modo de constituir
sintetizado na ideia de desenvolvimento sustentável, será mobilizada propomos aprofun- e tratar os objetos, o conhecimento e os instrumen-
será de difícil aplicação nos países periféricos que, sob a perspectiva dar nossa reflexão tos intelectuais e operacionais para a organização
em especial, na América Latina, viviam sob regimes da emancipação, crítica, mantendo da ação dos sujeitos e instituições nas democracias
autoritários. Além disso, outros elementos restringi- autonomia e liber- seus pressupostos liberais ocidentais em questões envolvendo o entor-
riam a sua operacionalização, como os altos custos dade, sendo pro- em suspenso e à no. Isso significa dizer que, mesmo que as ações dos
das propostas, as limitadas tecnologias existentes, tagonizada nes- margem de seus sujeitos e das instituições sejam lastreadas por expe-
a falta de ajuda financeira internacional e os inapli- se momento por conceitos e tem- riências locais, sua compreensão, bem como os dis-
cáveis e pretensiosos planos formulados a despeito exilados políticos poralidades. Nes- cursos e as práticas deles derivados, passa a ser arti-
das realidades locais. E, se o precário cumprimen- que retornam ao sa direção, apre- culada por meio de ferramentas – e visando objetivos
to das normas ambientais não fosse suficiente para país e acabam por sentamos alguns – dadas pelo dispositivo ambiental. E esses podem ou
questionar o quadro instituído no pós-guerra, as ten- aliar seus discursos com o de grupos vulneráveis, questionamentos, ainda que sem a pretensão de que não ser convergentes com as questões inicialmente
sões postas pelas expectativas não atendidas dos como indígenas, seringueiros, atingidos por barra- se formulem respostas acabadas: como as relações postas pelas formas locais e particulares de percep-
ambientalistas seriam importantes para manter a es- gens, que já vinham desempenhando importante pa- dos sujeitos com o meio ambiente são organizadas, ção e experimentação do entorno. Isso não significa
tabilidade dessa pactuação. pel nas lutas populares. Essa aproximação torna-se haja vista sua dimensão homogeneizante de saberes, dizer que práticas ou percepções divergentes do am-
A integração do Brasil nessa dinâmica vai se possível dada a aparente capacidade de a referida discursos e práticas, tornando rarefeitas as peculia- bientalismo foram abandonadas, mas tão apenas que
dar, como dito, ainda no curso do regime militar. A agenda conciliar aspectos sociais com questões re- ridades locais e regionais? De que modo as formas elas têm sido postas à margem dos debates que ga-
participação do país nas conferências internacio- lativas à natureza. Ocorre que a incorporação des- jurídicas se organizam (ou pretendem se organizar) nham maior protagonismo. Assim, elementos afeitos
nais atribui um certo ímpeto à implementação dessa 9. VASQUES, op. cit. nas disputas construídas no entorno de questões am- ao discurso ambientalista tendem a ser aqueles mais

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valorizados, notadamente, dada sua capacidade de estabelecimento da relação entre terras indígenas e ções doutrinárias. Passou-se a tutelar bens inéditos, À luz do princí-
comunicação e entendimento com vários sujeitos em baixas taxas de desmatamento. Não há uma via de como a qualidade do ar, e até a conferir a condição de pio de eficiência,
diversos territórios. Vide, por exemplo, o debate cor- mão dupla, na qual busca-se compreender as práti- sujeito de direitos a elementos da própria natureza, norma jurídica e
rente sobre mudança do clima. cas desses sujeitos, bem como respeitar as formas como um rio ou uma floresta.10 Contudo, ao fazê-lo, saber científico
Contudo, indicarmos os contornos assumidos pelo diversas nas quais percebem e se relacionam com o exercício da adequação dos conceitos e normas e são distribuídos vi-
ambientalismo não implica dizer que este seja estan- o entorno. Ao contrário, repete-se, a todo momen- das possíveis formas de coerção passou, em larga sando a previsibi-
que ou que esteja imune a tensões e mudanças. A to, o exaustivo exercício de fixar seu pensamento e medida, a ser fixado por critérios determinados por lidade, contribuem
elevada plasticidade do dispositivo ambiental expli- conduta no quadro do ambientalismo. Dinâmica essa aspectos oriundos de outros campos científicos – por para a definição
cita-se pela sua convergência com as dinâmicas de que passa também a ser reproduzida pelas próprias exemplo, por meio do estabelecimento de padrões de dos riscos e opor-
mercado, incorporando elementos externos, inclusive comunidades, ainda que isso possa ocorrer de forma qualidade, práticas concorrenciais, atributos financei- tunidades econô-
aqueles aparentemente inconciliáveis com o próprio crítica e estratégica. Ao menos para povos indígenas, ros etc. Essa dinâmica contribuiu para dar ainda maior micos e, principalmente, estabelecem os requisitos
ambientalismo. É o caso de saberes e práticas cultu- ao marginalizar a diversidade, circunscrevendo as transversalidade às formas jurídicas contemporâneas, de ingresso no mercado assim considerado legal e
rais próprios de comunidades tradicionais. Dadas de- possibilidades de autonomia, o discurso ambiental permitindo sua operação mediante uma racionalidade legítimo pela comunidade internacional do pós-guer-
terminadas condições que tornaram possível sua in- fortalece – ainda que indiretamente – a lógica assi- homogênea e intercambiável, em que os parâmetros ra. Nesse modo de organização da economia e do
corporação pelo ambientalismo, esta vem se dando, milacionista, por exemplo, explicitada na revogada são dados por saberes científicos que não precisam entorno, o acesso aos recursos naturais se tornaria
em regra, de modo a enfraquecer suas particularida- Convenção 107 da Organização Internacional do ter relação político-territorial com o respectivo sistema possível mediante o cumprimento de regras mínimas
des em favor de dinâmicas de homogeneização que Trabalho, e tal como se observa no posicionamento jurídico, e cuja razão interpretativa é extraída da eco- que, sobretudo, orientam as práticas econômicas,
fortalecem o próprio discurso ambiental – o que pode do Supremo Tribunal Federal (STF) no caso da Terra nomia, notadamente, dos mecanismos de concorrên- oferecendo os contornos necessários ao estabeleci-
ser observado, Indígena Raposa Serra do Sol. cia e eficiência. A repetição de argumentos baseados mento de dinâmicas concorrenciais. Ao fazê-lo, per-
por exemplo, nos Sobre a segunda questão, é possível lembrar que em dados científicos como fundamentos nas ações de mitiria também definir e identificar aqueles habilitados
debates sobre a as ordens jurídicas, inclusive as nacionais, também litigância climática ajuizadas nos tribunais nacionais, para participar da dinâmica de disputa no mercado
conciliação da tra- vêm sofrendo influência do ambientalismo, sendo ob- apesar de suas diferentes regras substantivas e pro- – i.e., os que detém recursos suficientes para aces-
dicionalidade com jeto de significativas transformações a partir do final cessuais, é uma das formas de ilustrar a questão.11 sar ou que diretamente possuem acesso às melho-
os objetivos de do século XX. Em síntese, observou-se a emergência res tecnologias disponíveis. Eventual permeabilidade
conservação que, de formas concorrentes às tradicionais abordagens sociocultural tenderia a se confundir com adesão às
em termos práti- individualistas do direito, com a incorporação de no- 10. Por exemplo, ver a sentença T-622/16, proferida pela Corte Constitucio-
nal da Colômbia, disponível em: https://www.corteconstitucional.gov.co/relato-
verdades científicas dominantes, caso contrário, se-
cos, é operaciona- vos objetos submetidos à norma jurídica, o que susci- ria/2016/t-622-16.htm. Acesso em: 24 maio 2021. ria percebida como antagonista às pretensas razões
11. Ver: http://climatecasechart.com/climate-change-litigation/. Acesso em: 13
lizada por meio do tou adequações às suas formas operativas e justifica- maio 2021. ambientais. No entanto, ainda que o ambientalismo

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mais progressista possa defender que essa adesão pactuações do pós-guerra. Assim, esse modelo limita um caminho possível, e o caso norte-americano nos do mito da engenhosidade norte-americana, disputan-
seja a mais ampla possível, no âmbito do mercado, as dimensões inclusiva e participativa dos processos ajuda a pensar essa questão. do a questão em termos econômicos e, em especial,
essa relação instrumental se daria estritamente na político-jurídicos de formulação e aplicação da nor- Em síntese, quando se observa a ascensão de tais buscando agregar todos aqueles que haviam se sen-
medida necessária à organização da concorrência, ma jurídica, já que apenas aqueles habilitados por grupos nos Estados Unidos, uma das estratégias mais tido prejudicados por políticas públicas de gestão dos
bem como da habilitação dos potenciais participan- tais saberes estariam autorizados para dizer sobre eficazes empregada nos anos 1980 para cooptar e for- recursos naturais desde o New Deal. Seus principais
tes. o conteúdo do direito e as condições de justiça. Um talecer sua agenda foi a associação da política ambien- argumentos residiam tanto na ilegitimidade do gover-
Incorpora-se ao direito a aparência de que ele caminho possível para se observar essa dinâmica tal democrata como produtora de ressentimento.12 O no federal para dizer sobre questões locais quanto na
próprio, tal como as ciências, seria orientado por um é acompanhar aqueles que foram autorizados (bem final dos anos 1960 e início dos 1970 é amplamente percepção de que sua interferência representaria uma
vetor de contínua evolução em que não se admitiriam como aqueles que tiveram seus pedidos recusados) reconhecido como uma era de ouro do ambientalismo violação das liberdades individuais, limitando o direito
caminhos alternativos – próprios de a participar das audiências públicas norte-americano. No entanto, as crises de acesso às riquezas do país, logo,
processos deliberativos – e, em última realizadas pelo STF em temas ligados do petróleo a partir de 1973 marcariam das possibilidades de prosperidade.
análise, qualquer outra rota passaria à agenda ambiental. seu declínio. Isso porque, se por um Ainda que a narrativa econômica tenha
a ser percebida como um potencial Por fim, sobre a possibilidade de lado os problemas de abastecimento perdido força nos anos seguintes, a di-
retrocesso. Nesse quadro, a delibe- se pensar formas de resistências que de combustíveis suscitavam o desen- mensão moral do discurso manteve-se
ração política passa a ser circunscrita não dependam de marginalizar os volvimento de alternativas, por outro protagonista. Por um lado, organizado
por um conjunto determinado de sa- modos de vida que aparecem como a resposta dada pela presidência de- no entorno da ideia de privação e, por
beres científicos cuja instrumentaliza- particularidades locais para a cons- mocrata de Jimmy Carter limitou-se em outro, de esquecimento, sendo ambas
ção permitiria produzir convergências trução de amplas articulações, o larga medida a insistir na narrativa de associadas à atuação democrata e ar-
entre as demandas ambientais e o contexto atual – marcado pela emer- racionamento, construída valendo-se ticuladas como produtoras de ressenti-
funcionamento equilibrado do merca- gência de autoritarismos e pelo forta- da emergente retórica ambientalista. A mento. A dificuldade do ambientalismo
do, cabendo ao Estado e, nesse sentido, ao bom go- lecimento de grupos nacionalistas neoconservadores difícil adesão da população suscitou os contornos des- de lidar com essas questões produziu, dentre outros,
verno, incorporá-los e aplicá-los visando garantir um –, poderia avaliar esse debate como contraprodu- sa estratégia, oferecendo elementos importantes para afastamentos e oposições que persistem até os dias
espaço controlado e propício à eficiência econômica. cente ou como um incentivo a retrocessos. No en- os grupos conservadores organizarem sua oposição. atuais.
A partir de tais afirmações não se pretende sustentar tanto, o alinhamento dessas duas perspectivas – i.e., Com a vitória dos republicanos em 1980, Reagan sub- Quando estudamos a construção desse antago-
que tal racionalidade seja observada de forma ho- os limites do ambientalismo e a ascensão de movi- verte a lógica da escassez por meio da mobilização nismo a partir do ambientalismo, é possível verificar
mogênea, sem conflitos e tensões, mas tão apenas mentos conservadores – oferece pistas para pensar que são rarefeitas as aberturas que permitem ana-
12. VASQUES, Pedro H. R. P. A política ambiental norte-americana para a ter-
que esta opera como eixo teórico e prático dominan- aberturas. Nessa perspectiva, o estudo dos grupos ceira década do século XXI: limites e possibilidades à luz da conjuntura e do lisar e lidar com as ações e as motivações desses
passado. In: CRUZ, Sebastião V. (org.). O Governo Trump, as eleições de 2020
te – configurando um dos pilares organizativos das que se colocam em antagonismo ao ambientalismo é e a crise na política norte-americana. São Paulo: Unesp, 2021. No prelo. sujeitos, senão sob a condição de opositores. As ver-

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dades científicas que habitam a razão ambiental não compreender os valores, as diferenças e as particu- Considerações finais da contemporização de questões inconciliáveis. A
admitem defecções. Desviantes dos padrões estabe- laridades desses sujeitos. O fazemos a fim de evitar O século XX, em especial, a partir da sua segun- abertura cognitiva proposta visa contribuir de modo
lecidos são qualificados como detratores, amplamen- enquadramentos nos quais a diversidade de sentidos da metade, é marcado por uma mudança profunda a oferecer outros meios para que, tanto se possa
te reconhecidos como poluidores. Para lidar com tais dada pelos sujeitos às suas dinâmicas de interação nas formas de percepção, compreensão e governo compreender melhor os antagonismos, como não se
violações, a única alternativa possível é a reconstitui- com o entorno é perdida. Para além das situações do entorno. Conforme exposto, essa transformação impeça ou dificulte o florescimento de alternativas,
ção da adesão ao próprio ambientalismo. Pouco im- em que essa pluralidade é tornada inacessível pelos foi sintetizada na ideia de meio ambiente, à qual se redescobrindo, ainda, as pluralidades marginalizadas
porta o número de vezes ou a magnitude dos desvios modos a partir dos quais se percebe e constrói os atribuiu contornos universais e atemporais. Sua na- ou antagonizadas pelo ambientalismo. E, ao fazê-lo,
desde que novos compromissos sejam publicamente conflitos com seus opositores, explicitação da razão tureza altamente plástica permitiu um amplo alcan- permitir também colocar em debate e disputa a pró-
firmados. A interdição da inadequação, seja ela tem- ambiental em seus marcos de convergência depende ce e múltiplas vias de convergência, a qual desta- pria hegemonia dessa razão contemporânea do en-
porária ou permanente, não tem por objeto primeiro de ocultar, marginalizar, enfraquecer, inibir, se não camos a proeminência das dimensões científicas e torno. Assim, ainda que a tarefa de gerir emissões de
a segregação dos corpos daqueles que violam a lei, extinguir essa multiplicidade de sentidos. Dinâmicas econômicas. Por outro lado, isso também implicou carbono possa ser compreendida como imprescindí-
mas o governo do fluxo dos recursos e reputações no essas que são observadas desde o nível de escolhas uma difícil e limitada administração da diversidade. vel em um contexto de extrema gravidade como esse
mercado – i.e., desde a própria circulação geográfica individuais até incluir concepções e manifestações Ao recuperarmos a dimensão histórico-contextual da que experimentamos, buscar a adesão dos sujeitos
das coisas, passando pela constituição de imagens, institucionais. Nelas se verifica uma espécie de troca, concepção contemporânea de meio ambiente, bus- ao ambientalismo como saída, condicionando seu
até chegar às transações financeiras. O sujeito polui- em que, dentre outros, se abre mão da diversidade camos recuperar a possibilidade da sua crítica na pensar e agir, especialmente, a partir da publicização
dor é entendido como um ponto de interseção que, si- tornando possível manusear as ferramentas intelec- medida em que esse movimento nos obriga a olhar do medo, não parece ter logrado grande êxito nas úl-
multaneamente, explicita o descumprimento de impe- tuais e operacionais próprias ao ambientalismo. As- para a questão de forma contingente, aguçando a timas décadas. Talvez, se considerarmos os sujeitos
rativos jurídicos, técnico-científicos e éticos – eis que sim, recuperar os vários sentidos que os sujeitos dão imaginação no sentido de desbravar os múltiplos e suas várias formas de vida e maneiras de se rela-
percebido como uma ameaça à vida. Todavia, a con- a si próprios e ao entorno na relação entre ambos se sentidos os quais os diversos sujeitos dão ao seu cionarem com o entorno, seja possível pensar vias al-
tragosto dos mais progressistas, o resguardo que a torna uma tarefa fundamental para explicitar os limi- entorno e, por causa deles, as várias outras relações ternativas, que não partam de uma dimensão comum
razão ambiental busca conferir aos ataques às várias tes da razão ambiental como orientadora do pensa- que estabeleceriam com ele e consigo próprios. O produzida de modo heterônomo, mas da diversidade
formas de existência tem seus contornos definidos tão mento e da ação, e para se imaginar alternativas pos- restabelecimento da sensibilidade e do olhar para a imanente à dimensão ética dos Direitos Humanos. E
somente por aquela diversidade que seja conciliável síveis que não dependam de relativizar a diversidade diversidade seria, então, uma medida possível para que, desse modo, não seja necessário mobilizar o
às práticas de competição e eficiência. Não há, por- em prol de um comum que é, sobretudo, heterônomo, idealizar outros caminhos para lidar com os nossos medo, em uma retórica apocalíptica, como meio para
tanto, garantia alguma de defesa da diversidade. produzido e legitimado por verdades científicas e nar- conflitos hoje intratáveis. conquistar adesão.
O exercício de nos colocarmos no limiar do am- rativas urgentes. Isso, no entanto, não significa propor que se ado-
bientalismo visa escapar dos contornos descritos, te uma abordagem relativista, que anistie toda e
buscando ampliar os modos de olhar na tentativa de qualquer fonte de degradação do entorno em favor

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