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Abstract This paper presents an analysis of how Resumo Este texto apresenta uma compreensão
Clifford Geertz’ anthropological approach con- de como a abordagem antropológica de Clifford
tributes to studies and investigations on health Geertz contribui para estudos e investigações so-
care. Geertz’ approach relies basically on a semi- bre o cuidado de saúde. Geertz apóia-se numa
otic conception of culture adopting thick descrip- concepção de cultura essencialmente semiótica;
tion as the axis for interpretive elaborations and adota a descrição densa como eixo das elabora-
defending cultural interpretation as a science al- ções interpretativas, defendendo a interpretação
lowing to understand processes and to construct cultural como ciência que possibilita compreen-
knowledge. We will present an overview of some der processos e construir conhecimentos. Apre-
constitutive elements of that author’s thoughts sentaremos uma leitura de elementos constituti-
we consider relevant for understanding the hu- vos do pensamento desse autor, que consideramos
man experience of dealing with the disease/health relevantes à compreensão da experiência huma-
process. The challenging question is how families na ao lidar com o processo saúde doença. Do cam-
deal with the need to provide care to a diseased po da saúde coletiva, a questão que nos desafia é
relative after hospital discharge. We use this issue como famílias lidam com a necessidade de prati-
as an excuse for expounding this theoretical ap- car cuidados de saúde com um membro doente
proach, interweaving the two areas. The micro- que demanda cuidados específicos após uma alta
focus is the kind of healthcare that takes place hospitalar. Adotamos como pretexto essa questão
outside the cultural environment where the tech- para expor essa abordagem teórica, articulando
nical forms of care based on scientific knowledge os dois campos. O microfoco é o cuidado de saúde
occur. We will briefly discuss how this question que ocorre fora do ambiente cultural em que os
becomes evident in an object of study, and how it cuidados técnicos, rebuscados pelo saber científi-
can be investigated according to the ethnography co, acontecem. Discutiremos brevemente como
proposed by Geertz (op. cit.), allowing, in the end, essa questão se evidencia num objeto de estudo e
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Faculdade de Enfermagem, for some considerations that further contribute como ela pode ser investigada segundo a etnogra-
Universidade Federal de Juiz
de Fora. Campus
to the construction of knowledge in public health. fia proposta por Geertz, possibilitando, ao final,
Universitário, Martelos. Key words Ethnology, Cultural interpretation, considerações que contribuem para a construção
36.036-330 Juiz de Fora Health care do conhecimento no campo da Saúde Coletiva.
MG. edna.castro@ufjf.edu.br
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Instituto de Medicina
Palavras-chave Etnologia, Interpretação cultu-
Social, Universidade ral, Cuidado de saúde
Estadual do Rio de Janeiro.
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Castro, E. A. B. & Camargo Jr., K. R.
que garanta um dia a mais, além da necessidade “o homem é um animal amarrado a teias de sig-
de um transplante de fígado. nificados que ele mesmo teceu”. A cultura passa,
O estar numa fila de transplante já angaria então, a ser para ele essas teias, cuja análise e cuja
alguma esperança, mas a agilidade para o “an- interpretação permitem uma ciência interpreta-
dar” da fila vai sendo buscada e, por vezes, com tiva à procura do significado, em vez de uma ciência
empenho, através de convivência com políticos, experimental em busca de leis. Distancia-se das
com médicos ou pessoas influentes no interior ciências explicativas quando propõe o afunila-
do sistema de saúde. Ainda que organizadas por mento das questões de estudo, a microscopia e o
legislações claras e submetidas a constantes fis- aprofundamento nalgum ponto pouco esclare-
calizações, sobretudo pela sociedade civil organi- cido. Nas palavras de Geertz5, “é justamente uma
zada, as tentativas ocorrem e vão dando sentido explicação que se procura ao construir expres-
à vida. sões sociais enigmáticas na sua superfície. Toda-
O sentimento de abandono fica-nos evidente via, essa afirmativa, uma doutrina numa cláusu-
ao confrontar o cotidiano dessas pessoas com as la, por si mesma, requer uma explicação”.
instituições sociais preconizadas para resolvê-lo. Teceu seu argumento de defesa da interpreta-
No interior do sistema público de saúde, o fluxo ção cultural como possibilidade de se “fazer ciên-
do usuário, regido pelas políticas nacionais e lo- cia”, a partir da elaboração de uma análise crítica
cais, vem sendo ordenado sistematicamente, con- e comparativa ao pensamento científico predo-
forme as agudizações ou agravos de doenças. As minante, defendido pelas ciências naturais. Partiu
pessoas dependentes do SUS não estão mais li- do pressuposto de que as leis resultantes de teori-
vres a procurar “o seu médico” ou seu serviço de as científicas não explicam tudo, em especial o
saúde, mas estão sujeitas a uma trajetória orien- que é humano. Devemos, portanto, “isolar” jus-
tadora peculiar ao atendimento, que pode ser tamente aquilo que as ciências naturais não expli-
demorado demais para as pessoas e nem sempre cam; algo que esteja no bojo das relações huma-
garantir que chegará ao ambiente onde haja mai- nas e cuja investigação e compreensão sejam fa-
or vínculo entre os sujeitos envolvidos ou que vorecidas pela interpretação cultural. Isso signifi-
garanta ao interessado no cuidado a segurança ca identificar o que, certamente, não se poderia
de os profissionais reconhecerem o seu proble- transformar em leis pelo pensamento científico
ma de saúde e, portanto, agirem com rapidez. tradicional, uma vez que os praticantes das ciên-
cias naturais investem em reduzir fenômenos
eminentemente humanos ao mesmo fluxo de
Abordagem interpretativa das culturas comportamento de seus objetos inanimados ou
de cuidados de saúde após a alta hospitalar irracionais, ou, ainda, a modelos matemáticos.
O “isolar” o cuidado em saúde, como fenô-
O foco central desta seção é apresentar como o meno de estudo, nesse viés de pensamento, pres-
pensamento de Clifford Geertz5-8 pode ser ado- supõe, primeiro, que admitamos que essa seja uma
tado para compreendermos questões próprias prática eminentemente humana, realizada entre
do campo da Saúde Coletiva, como as aponta- pessoas. Sendo assim, são dois os lugares com
das acima. Referimo-nos à teoria interpretativa saberes, vocações e culturas distintas: um, o lugar
da cultura defendida por esse autor. da pessoa que sofre e que requer os cuidados e
Não será possível aqui, mas em outras opor- outro, o daquela que produz e que aplica o cuida-
tunidades, o aprofundamento em aspectos con- do de saúde na forma de ações direcionadas ao
ceituais que a questão como um todo requer e que dele necessita. Essas ações, concebidas e ela-
merece, como, por exemplo, sobre família e so- boradas por um processo mental, se exteriori-
bre cuidado. Entretanto, é a dimensão cultural zam e concretizam através de ações num contexto
do cuidado de saúde que é praticado por pessoas e com capacidade de alterações no conjunto de
que convivem de modo significativo em ambien- necessidades do outro. Costumeiramente, deno-
te familiar que buscaremos enfocar enquanto minamos de cuidado de saúde ações que provo-
pretexto para apresentar um olhar, um pensa- cam respostas de alívio ou sensação de conforto e
mento antropológico que possibilita à etnogra- segurança em uma pessoa, secundariamente à
fia o “status” de uma ciência interpretativa. intervenção física ou subjetiva previamente pla-
Geertz5 desenvolveu seu pensamento sobre nejada e aplicada por outra. O cuidado revertido
interpretação cultural, assumindo uma compre- em ações pode permitir gradações para uma maior
ensão essencialmente semiótica de cultura, origi- ou menor satisfação de necessidades.
nária do pensamento weberiano, segundo o qual Existe, portanto, um processo de pensamen-
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em casa. E é justamente quando se compreende forço intelectual que ele representa. Nas palavras
o que é a etnografia, ou mais exatamente, o que é de Geertz5, “um risco elaborado para uma des-
a sua prática, é que se pode começar a entender o crição densa”.
que representa a análise antropológica como for- A etnografia é, nesse viés de pensamento, uma
ma de conhecimento. O objeto da etnografia ad- descrição densa. Geertz5 adota a noção de descri-
vém de uma hierarquia estratificada de estrutu- ção densa de Gilbert Ryle, a partir de dois ensaios
ras significantes. Nos escritos etnográficos aca- daquele autor, dos quais se abstrai a idéia, ou
bados, o que chamamos de “nossos dados” é constructo teórico, da descrição densa. Um de-
realmente, como diz Geertz5, “a nossa própria les, o ensaio sobre as piscadelas iniciadas por um
construção”: [...] das construções de outras pesso- garoto que queria imitar outro que piscava. Ryle
as, do que elas e seus compatriotas se propõem – prossegue decodificando e esclarece que o pri-
está obscurecido, pois a maior parte do que preci- meiro garoto pisca por um tique nervoso, o se-
samos para compreender um acontecimento par- gundo pisca para imitá-lo, daí depreende-se a
ticular, um ritual, uma idéia ou o que quer que intencionalidade do imitar. E prossegue acrescen-
seja, está insinuando como informação de fundo tando que um terceiro garoto pisca para outro,
antes da coisa em si mesma ser examinada direta- como o primeiro, porém de modo conspiratório
mente. [...] Bem no fundo da base factual a rocha (um código cultural) e assim por diante. Ao des-
dura, se é que existe uma, de todo empreendimen- crever as diversas possibilidades de piscadelas dos
to, nós já estamos explicando e, o que é pior, expli- garotos, ele quer evidenciar pelo menos dois as-
cando explicações. [...] A tarefa soa muito pareci- pectos: um é a existência dos significados e outro
da com a tarefa de um decifrador de códigos, quan- é o potencial do observador humano de inter-
do, na verdade, ela é muito parecida com a do crí- pretar. Isso dá o caráter de densidade à descri-
tico literário – e determinar sua base social e sua ção, diferenciando de um relatório puramente
importância. descritivo, que exclui a interpretação humana e
A análise em etnografia representa a ação de se fixa em variáveis como, por exemplo, o núme-
escolher entre as estruturas de significação (có- ro de movimentos dos olhos que se repetem; os
digos estabelecidos ou as expressões mistificadas músculos envolvidos, etc., e, para isso, bastar-
que possam ser decodificadas) determinando sua se-ia analisar uma filmagem.
base social e sua importância no contexto da in- Nas palavras do próprio Geertz5, a exigência
vestigação. Quadros desiguais de interpretação de atenção de um relatório etnográfico não repou-
relacionados ao mundo dos diferentes sujeitos sa tanto na capacidade do autor em captar os fatos
podem surgir e devem ser explicitados no texto, primitivos em lugares distantes e levá-los para casa
evidenciando-se a relação existente entre eles e como uma máscara ou um entalho, mas no grau
que sentido fazem no sentido global da questão em que ele é capaz de esclarecer o que ocorre em
em análise. tais lugares, para reduzir a perplexidade. Isso sig-
O que o etnógrafo enfrenta, de fato (a não nifica dizer que poderemos encontrar outros
ser quando está seguindo as rotinas mais auto- problemas, que inicialmente não nos ocorreram,
matizadas de coletar os dados), é uma multipli- cabendo-nos contínuas “avaliações” durante o
cidade de estruturas conceituais complexas, mui- trabalho de campo. E prossegue dizendo: Se a
tas delas sobrepostas ou amarradas umas as etnografia é uma descrição densa e os etnógrafos
outras. Isso significa, primeiro, apreender; de- são os que fazem a descrição, então a questão de-
pois, interpretar e, por último, apresentar. terminante para qualquer exemplo dado, seja um
Com isso, queremos dizer que o desafio as- diário de campo sarcástico ou uma monografia
sumido pela etnografia não se reduz a um con- alentada do tipo Malinowski, é se ela separa as
junto de técnicas, nem aos processos que a defi- piscadelas dos tiques nervosos e as piscadelas ver-
nem enquanto método de investigação e que são dadeiras das imitadas.
determinados e expressos nos livros-texto. Não Uma descrição densa não necessariamente se
se reduz a uma lista de procedimentos, como, refere a um texto longo e prolixo, mas a um texto
por exemplo, estabelecer relações; selecionar in- que apresenta as evidências prenhes de significa-
formantes; transcrever textos; levantar genealo- dos que permitiram ao observador interpretar
gias; mapear campos ou manter um diário. Sem os sentidos que fazem num dado contexto cultu-
a intenção de banalizá-las no âmbito do proces- ral, emitindo suas asserções que possibilitam a
so investigativo, queremos frisar que o que defi- ele e a outros compreender uma dada questão.
ne o método antropológico, para além das ferra- As evidências são os dados brutos extraídos do
mentas adotadas pelo etnógrafo, é o tipo de es- campo (partes das notas de observações, falas
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tros, ou seja, os sujeitos como vimos, até então, ente), adotando formas não usuais (as da cultu-
considerando na prática de nossas investigações ra hospitalar, por exemplo) de praticar o cuida-
acadêmicas: nossos principais interlocutores nas do, põem em evidência a arbitrariedade do com-
observações participantes, entrevistas, enfim, na portamento humano. O seu ir-e-vir com ou sem
prática etnográfica em saúde. rotinas estabelecidas.
De um ponto de vista epistemológico, isso
significa que compreender a cultura de cuidado
pelas famílias expõe o que lhes é “normal” em A vida após a alta:
seu cotidiano e, como pontua Geertz5 e em nosso conclusões a partir do estudo etnográfico
caso, podemos concordar, ver as coisas sob a
ótica do sujeito não significa uma redução de uma Encerrando este artigo, apresentamos algumas
particularidade de cuidar. considerações sobre o cuidado de saúde após a
Uma coisa é o olhar para as pessoas em sua alta hospitalar, objeto de atenção e estudo cujo
teia de relações cotidianas, que é onde o cuidado processo de investigação discutimos antes, sob o
acontece, e outra é o olhar para o cuidado que enfoque do pensamento antropológico de Cli-
praticam que extraímos dessa teia, talvez numa ford Geertz. Por razões de espaço, não será pos-
forma bruta, e tentar estudá-lo. No estudo do sível incluir o material empírico que conduziu a
cuidado praticado pelas famílias na dimensão essa análise.
cultural que tomamos, a análise penetra na vida e Nos momentos que antecedem à saída do
no cotidiano dos sujeitos, mas isso não significa hospital, um primeiro e notado esforço de adap-
que descreveremos a vida deles e toda a sua teia de tação pela família se inicia. A distância existente
relações exatamente como são. A linha entre a entre o hospital e a casa parece estimular respos-
cultura do cuidado como um fato natural e a cul- tas humanas à condição de adoecimento ou de
tura do cuidado como entidade teórica tende a agravo que fica a cargo da família. No caminho
ser obscurecida segundo esse viés de pensamento. de volta, evidenciam-se as expressões caracteri-
Finalmente, ao olharmos para a vida de nos- zadoras de angústia através de falas, fácies, olha-
sos sujeitos, o que inicialmente fazemos é inter- res, respirações profundas, permitindo interpre-
pretar. Interpretamos o que dizem sobre si, so- tações indicativas de que se inicia um processo
bre seu núcleo familiar e sobre parentes. Inter- rumo à adaptação.
pretamos o que achamos que querem dizer quan- Os primeiros comportamentos indicativos de
do não expressam verbalmente o que fazem, fi- um modo de cuidar pela família iniciaram-se em
cando nas entrelinhas, ou ainda, no avesso do resposta de sofrimento, associado a uma angús-
que tecem. O não visível. Interpretamos também tia que parecia estar relacionada à falta de recur-
o que achamos que eles pensam e querem para sos para o alívio deste. Recursos de diversas na-
resolver o problema de saúde de seu familiar turezas: ambiente adequado, suporte financeiro
doente, suas expectativas. Estaremos, enfim, no para aquisição de medicamentos e tecnologias,
caso do estudo da vida após uma alta hospitalar, acesso a serviços, conhecimentos, entre outros.
atentos ao comportamento das pessoas que con- Ao viver momentos de forte tensão emocional,
vivem naquele ambiente. Devemos nos atentar iniciada desde o surgimento da doença ou agudi-
“ao comportamento, e com exatidão, pois é atra- zação de um agravo em um de seus membros,
vés do fluxo do comportamento - ou mais preci- também durante a internação, no momento da
samente da ação social - que as formas culturais alta e após esta, a família empenhada no acolhi-
encontram articulação”. mento do membro doente desenvolve seus pró-
Assim, o significado de “cuidar” para a famí- prios modos de cuidar. Modos de cuidar eviden-
lia vai emergindo do papel que ela desempenha ciados pelas trajetórias de buscas e pedidos de
na sociedade contemporânea, com as nuances ajuda, seja num entorno microssociológico de
das subculturas envolvidas. E o padrão de vida convivência, seja no interior do sistema de saúde.
que daí decorre, para a população de baixa renda Apreendemos o cuidado desenvolvido pela
e usuária do Sistema Único de Saúde, quase sem- família após a alta, primeiro, pela observação e
pre, evidencia um conjunto de desafios frente a reconhecimento de um cotidiano de convivência
uma crescente vulnerabilidade da vida humana intrafamiliar. Este se evidenciou através de con-
aos chamados fatores de risco. As observações flitos entre os membros, que se organizaram para
etnográficas em cenários dessa natureza, que desenvolvê-lo ou, ainda, especializando-se, no
buscam encontrar “o comum” nas famílias que interior da família a partir de uma redefinição de
cuidam (ou tentam cuidar de um membro do- papéis pelos membros.
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não se configura em objeto de cuidado. A trajetó- acompanhada por sentimentos de culpa, medo,
ria é incerta após a alta hospitalar, sem um víncu- frustrações e de sofrimento acerca das limitações.
lo institucional orientador dos cuidados prioritá- Um sofrimento inicial que leva a pessoa e a famí-
rios de que necessitam. lia a um equilíbrio num campo de adaptação que
A idéia de que as pessoas que sofrem algum passam a assumir como a vida após a alta, que,
tipo de agravo e que permanentemente deman- na verdade, é a vida que se pode ter dali para
dam cuidados especializados de profissionais de diante, mas numa adaptação que a própria fa-
saúde fiquem sob os cuidados da família reme- mília encontra e que dificilmente pode ser pres-
te-nos a uma reflexão sobre o que Estado pode- crita. Não é o caso de delimitar o início de uma
ria limitar-se a oferecer, que fica no plano técnico nova fase na vida sem compreender o que não
ou do cuidado institucionalizado, direcionado às foi dito, mas o que dele se pode nos enunciar
respostas objetivas de dor, relacionadas, princi- continuamente ao lidar com essas famílias.
palmente ao plano do corpo físico ou dos trans- Concordamos com Norbert Elias13 que, ao
tornos mentais. Por outro lado, tem também o estudar a relação do ser humano com a morte
potencial de cuidar da família, frente a essas con- ou eminência desta ao longo de momentos his-
dições que não deve ser descartado, o cuidado tóricos e na sociedade contemporânea, expressa
que culturalmente se espera das famílias na soci- o pensamento de que, mediante as ameaças à
edade contemporânea urbanizada ao conviver vida humana, em quaisquer circunstâncias, há
com um membro doente. uma busca de adaptação pelo homem à vida co-
Notamos, na esfera intrafamiliar, o surgimen- mum. Para Elias13, o buscar adaptar-se ao “co-
to de uma noção de “grau de dependência para o mum” ou, como diria Bourdieu14, a uma “nor-
cuidado”. O estudo possibilitou-nos uma com- ma universal”, se expressa através da formação
preensão do “grau de dependência” para o cuida- de grupos, como, por exemplo, a família.
do de saúde, do ponto de vista da integralidade Antes, então, de falar em adaptação, atenta-
do cuidado, sob três aspectos: dependência de se à dinâmica das famílias após o adoecimento
cuidados clínicos especializados; da prática de grave de um familiar e em momentos variados.
cuidados com o corpo realizado pela própria fa- O momento após uma alta hospitalar em que
mília e, ainda, a dependência das relações extra- receberam tratamentos complexos, as formas
familiares estabelecidas com o sistema de saúde obscurecidas e de lidar ou enfrentar a situação
(público ou privado) conforme as necessidades inédita se evidenciam de um modo agudo e de-
pontuais (consultas, exames, procedimentos). sordenado. Conflitos de diversas naturezas sur-
Com as fragilidades próprias da vida em con- gem e a relação delas com seu corpo e sua inser-
textos urbanos, a dependência “quase total” de ção social e com o sistema de saúde se mostra
um sistema de cuidados institucionalizados, iden- vulnerável. É possível que uma experiência prévia
tificada por este estudo, permitiu uma análise na lida com o adoecimento contribua para esse
acerca da autonomia para o cuidado e autocui- lidar atual, todavia não é uma regra que se pode
dado, mostrando que existem visões diferentes generalizar.
quando a pessoa se autocuida, que se sente segu- Na sociedade contemporânea, as respostas
ra e com autonomia permitida pelos vínculos dos membros da família parecem estar coeren-
assistenciais institucionais, e quando o autocui- tes com o que se publica a partir do progresso da
dado é prescrito num contexto de impossibilida- ciência médica. O lidar com o processo saúde-
de de ser realizado. doença, considerando uma agudização que pre-
Sobre os processos de vida após uma alta nuncia um “estágio final”, cobra uma maturida-
hospitalar, o que finalmente observamos foi que de para convivência com um “processo natural”.
ocorrência de um evento ameaçador à vida colo- Elias19 ressalta que “a idéia de um processo natu-
ca em sobressalto os membros da família, so- ral ordenado é característica de um estágio espe-
bretudo os adultos que a compõem. A primeira cífico no desenvolvimento do conhecimento e da
manifestação de uma doença grave ou uma agu- sociedade”. Podemos concordar que essa concep-
dização em caso de pessoas portadoras de doen- ção da natureza está estabelecida nas sociedades
ças crônicas representa aflição para ambas as desenvolvidas. Parece existir uma confiança ina-
partes: para a família e para aquele que, de fato, balável nas leis da natureza, nas ciências natu-
vive o problema, em dimensões distintas de va- rais, que contribui com uma sensação de segu-
lorização e de sentidos da vida. rança diante de fatos naturais.
Observamos o surgimento de uma revisão Na sociedade brasileira, todavia, notamos que
ou revalorização da vida, que quase sempre vem vivemos uma fase intermediária em termos da
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Colaboradores
Referências