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Por uma etnografia dos cuidados de saúde após a alta hospitalar

TEMAS LIVRES FREE THEMES


Ethnography of health care after hospital discharge

Edna Aparecida Barbosa de Castro 1


Kenneth Rochel de Camargo Junior 2

Abstract This paper presents an analysis of how Resumo Este texto apresenta uma compreensão
Clifford Geertz’ anthropological approach con- de como a abordagem antropológica de Clifford
tributes to studies and investigations on health Geertz contribui para estudos e investigações so-
care. Geertz’ approach relies basically on a semi- bre o cuidado de saúde. Geertz apóia-se numa
otic conception of culture adopting thick descrip- concepção de cultura essencialmente semiótica;
tion as the axis for interpretive elaborations and adota a descrição densa como eixo das elabora-
defending cultural interpretation as a science al- ções interpretativas, defendendo a interpretação
lowing to understand processes and to construct cultural como ciência que possibilita compreen-
knowledge. We will present an overview of some der processos e construir conhecimentos. Apre-
constitutive elements of that author’s thoughts sentaremos uma leitura de elementos constituti-
we consider relevant for understanding the hu- vos do pensamento desse autor, que consideramos
man experience of dealing with the disease/health relevantes à compreensão da experiência huma-
process. The challenging question is how families na ao lidar com o processo saúde doença. Do cam-
deal with the need to provide care to a diseased po da saúde coletiva, a questão que nos desafia é
relative after hospital discharge. We use this issue como famílias lidam com a necessidade de prati-
as an excuse for expounding this theoretical ap- car cuidados de saúde com um membro doente
proach, interweaving the two areas. The micro- que demanda cuidados específicos após uma alta
focus is the kind of healthcare that takes place hospitalar. Adotamos como pretexto essa questão
outside the cultural environment where the tech- para expor essa abordagem teórica, articulando
nical forms of care based on scientific knowledge os dois campos. O microfoco é o cuidado de saúde
occur. We will briefly discuss how this question que ocorre fora do ambiente cultural em que os
becomes evident in an object of study, and how it cuidados técnicos, rebuscados pelo saber científi-
can be investigated according to the ethnography co, acontecem. Discutiremos brevemente como
proposed by Geertz (op. cit.), allowing, in the end, essa questão se evidencia num objeto de estudo e
1
Faculdade de Enfermagem, for some considerations that further contribute como ela pode ser investigada segundo a etnogra-
Universidade Federal de Juiz
de Fora. Campus
to the construction of knowledge in public health. fia proposta por Geertz, possibilitando, ao final,
Universitário, Martelos. Key words Ethnology, Cultural interpretation, considerações que contribuem para a construção
36.036-330 Juiz de Fora Health care do conhecimento no campo da Saúde Coletiva.
MG. edna.castro@ufjf.edu.br
2
Instituto de Medicina
Palavras-chave Etnologia, Interpretação cultu-
Social, Universidade ral, Cuidado de saúde
Estadual do Rio de Janeiro.
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Castro, E. A. B. & Camargo Jr., K. R.

Introdução Destacamos, ainda, que, do lugar onde nos


encontramos, e na compreensão de lugar defendi-
Este artigo apresenta uma leitura da obra de Cli- da por Certeau2, assumimos os riscos de produ-
fford Geertz, que busca recolher elementos teóri- zir um discurso particularizado. A intenção, toda-
cos que possam servir à produção de estudos via, é provocar uma discussão que explicite limi-
relativos ao cuidado da saúde das pessoas, segui- tes, articulando o campo da Saúde Coletiva com
da de um relato sumário da análise produzida outro, o da antropologia. E o navegar nessas “duas
em uma aplicação concreta deste quadro refe- grandes águas” (metáfora adotada pelo antropó-
rencial a uma investigação empírica, no caso a logo Octávio Bonnet4 ao referir-se à articulação
tese de doutorado “A vida após a alta”, defendida aqui proposta) permite apresentar uma compre-
em dezembro de 2005 no programa de pós-gra- ensão de como a interpretação cultural defendida
duação em Saúde Coletiva do Instituto de Medi- pelo antropólogo Clifford Geertz5-8 pode contri-
cina Social da UERJ1. buir para estudos e investigações sobre cuidados
Como Michel de Certeau2, um historiador de saúde no campo da Saúde Coletiva.
que envereda pelo mundo da antropologia cul- Em especial, tomando como foco de análise
tural para compreender os fenômenos e os pro- o processo de investigação sobre o “cuidado pela
cessos históricos de nosso tempo, lançamo-nos família” em estudos da vida após a alta hospita-
ao mesmo mundo, acreditando que ele nos pos- lar, sem a intenção de apresentar aqui os achados
sibilitaria compreender algumas das indefinições com seu corpo de evidências.
existentes no planejamento da oferta de serviços
de saúde no Brasil. Convencidos pelo argumen-
to de que convivemos numa sociedade historica- A vida após a alta: delimitando o problema
mente construída a partir de “culturas”, olhamos
para o fenômeno cuidado de saúde também no Uma notada indefinição na prática da assistência
plural. Cuidados, numa dimensão cultural, sig- à saúde sobre quem é o responsável pelos cuida-
nificarão, portanto, neste texto, cuidados segun- dos de que uma pessoa passa a depender após
do “culturas” de cuidar. uma internação hospitalar por uma doença gra-
Debruçar-nos-emos sobre um pensamento ve reveste-se num problema de natureza assis-
que acreditamos contribuir para uma aborda- tencial no atual contexto da oferta de serviços do
gem metodológica, quando o objeto é compreen- Sistema Único de Saúde brasileiro. O dilema está
der fenômenos que se encontram no âmbito das na existência de necessidade de cuidados especi-
relações entre sujeitos que necessitam de cuida- alizados, demandados por cidadãos usuários do
dos e os que cuidam (institucionalmente ou não). SUS em sua trajetória após uma alta hospitalar,
Em específico, a compreensão do “cuidado prati- que não se encontram incluídos no conjunto de
cado pela família” como um fenômeno que se ex- atividades rotineiramente ofertadas pelas equi-
pressa na forma de uma cultura de cuidar no in- pes de saúde da família e nem tampouco no das
terior das relações entre pessoas, na dinâmica do equipes de especialistas no interior dos hospitais.
viver e, acrescenta-se, do viver em sociedades ur- Quais são os eventos que se constroem no
banizadas. E considerando, ainda, a convivência âmbito da família em suas relações e na convi-
dos sujeitos com um sistema de saúde e com uma vência com um membro doente e com a “obriga-
cultura institucionalizada de cuidados de saúde. ção”, “responsabilidade” ou “compromisso” de
O olhar que pretendemos primeiro é para a cuidar? Como estas relações se dão, bem como o
“família que cuida”, como base para a análise da processo de gestão do cuidado por parte dela
relação entre família e a necessidade de cuidados frente às diversas situações postas pelo cotidia-
no domicílio, a partir de cenários culturais orien- no, em seu contexto cultural mais restrito, sem
tados por um cotidiano. Neste texto, ao nos refe- perder de vista a sua inserção em contextos cul-
rirmos ao termo cotidiano, consideraremos a turais globalizadores?
compreensão que Pinheiro3, de dentro do campo No contexto da vida após a alta hospitalar
da Saúde Coletiva, defende. Essa autora se refere por tratamentos de grande complexidade, cirur-
a este como sendo o lócus onde se expressam não gias ou tratamentos intensivos, é possível acredi-
somente as experiências de vida na perspectiva tar que a família usuária do SUS dará conta de
individual que o termo cotidiano possa sugerir, assimilar conhecimentos específicos aos cuida-
mas os contextos de relações distintas que envol- dos, de praticá-los para prosseguir dando o alí-
vem tanto pessoas, como coletividades e institui- vio de que seus membros necessitam diante da
ções em espaços e tempos determinados. doença ou do tratamento? É possível acreditar
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que o sistema público de saúde, através de suas mesma saiu de alta hospitalar com a sonda na-
autoridades e planejadores, conseguirá absorver, soentérica, para alimentação, usando fraldas,
resolver ou ao menos dar uma resposta a esse pois ficara com incontinência urinária e fecal e,
problema, com suas políticas e estratégias, apoi- ainda, dependente de uma cadeira de rodas. Todo
ando-se, sobretudo, na premissa constitucional o lado esquerdo de seu corpo não se movia (he-
de que “saúde é um direito de todos e dever do miplegia à esquerda), também não deglutia os
Estado”? alimentos com segurança e se comunicava com
Parecem existir lacunas assistenciais entre um gestos e murmúrios. Por um período de quatro
e outro nível de atenção, tal como vem se conso- meses após a alta, ela permaneceu com a mesma
lidando a organização da atenção apoiada na sonda, sujeita a elevados riscos de vida. Recebia
diretriz de hierarquização. cuidados contínuos por uma sobrinha de 27
anos, solteira, mãe de três filhos pequenos (um
amamentando), que cursara até a sétima série
O delineamento do estudo do ensino fundamental, contratada pela família
nuclear para essa função.
Preliminarmente à observação etnográfica, cons- A observação contínua, por um período de
tituímos uma amostra de 137 pacientes interna- dois anos, do cotidiano dessa paciente junto a
dos numa UTI tipo II, de um hospital público, sua família mostrou o descaso, a desconsidera-
no segundo semestre de 2003. Destes, 66 tiveram ção e a falta de compromisso por parte dos agen-
alta hospitalar e, entre os últimos, 36 ficaram tes do sistema em lidar com o conjunto de neces-
totalmente dependentes de cuidados em casa. sidades de cuidados especializados que manifes-
Todos eles demandariam acompanhamento por tava. Para além de uma questão de habilidades e
equipe de saúde, após a alta hospitalar, uma vez de competências dos profissionais de saúde, es-
que o seu estado de saúde no momento da alta tamos, antes, diante de uma imperiosa necessi-
era considerado “melhorado”. Eram seres huma- dade de definição: até onde vai a responsabilida-
nos adultos ou idosos que ficariam “dependen- de das equipes de saúde envolvidas, consideran-
tes” de cuidados básicos para a vida e/ou de pro- do-se o atual fluxo hierarquizado das ações de
cedimentos especializados, como sondagens, ir- saúde? Quem, entre os níveis de atenção, deve ser
rigações, curativos, oxigenoterapia, entre outros. a principal referência, ou a de melhor resolutivi-
Adotando a etnografia como metodologia, dade para o usuário nessas condições?
aproximamo-nos de doze famílias buscando Outra família observada ao longo da pesqui-
compreender como estas lidavam com a necessi- sa de campo evidenciou a convivência com as
dade de realizar cuidados após a alta hospitalar complicações de uma cirrose hepática. Observa-
em um dos membros doente. Observamos de mos que o ser humano que convive com uma
modo sistemático seis destas famílias e uma se doença grave, como, por exemplo, a total perda
evidenciou como o “grande caso” para a análise de função do fígado, secundariamente a uma cir-
que se segue. As famílias, residentes na cidade de rose hepática causada pelo alcoolismo, por vezes
Juiz de Fora, compartilham de uma mesma cul- se sente como um moribundo nas fases de agu-
tura assistencial e são submetidas a um mesmo dização pelo déficit da função hepática. E, do
padrão de organização e de fluxo de atendimen- ponto de vista daquele que vivia o adoecimento,
to no sistema de saúde local. O ambiente micros- notava-se certo silêncio ao se falar da doença,
cópico, preferencial da pesquisa era o ambiente evitando-se prenunciar um futuro, um sentido
onde o paciente residia com sua família. para a sua vida.
Esta etnografia da vida após a alta hospitalar As hemorragias digestivas, complicação re-
permitiu-nos apreender e analisar que, quando a corrente nesse tipo de adoecimento hepático, por
família recebe a grande carga emocional de “ter que causa de varizes que surgem no esôfago, são con-
cuidar”, quando é tomada de modo abrupto por sideradas emergenciais e colocam a vida em ris-
aquela “chegada de hora”, sem prenúncios, a res- co. A convivência com esse risco leva a família e o
posta emocional sobrepuja as de expediente práti- próprio doente a desejarem um vínculo “fácil”
co, modificando-se, posteriormente, tais reações. com um serviço de saúde que lhes compreenda
Apreendemos respostas como essas ao acom- as angústias e que lhes dê segurança de que o
panhar, desde a internação, a trajetória de uma doente “viverá” por ter um atendimento rápido e
mulher de 53 anos, usuária do SUS, de família preciso. É o viver que está por detrás da luta por
considerada de “baixa renda”, internada por um condições de tratamento. Não somente das amea-
segundo Acidente Vascular Encefálico (AVE). A çadoras hemorragias, mas do medicamento caro
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que garanta um dia a mais, além da necessidade “o homem é um animal amarrado a teias de sig-
de um transplante de fígado. nificados que ele mesmo teceu”. A cultura passa,
O estar numa fila de transplante já angaria então, a ser para ele essas teias, cuja análise e cuja
alguma esperança, mas a agilidade para o “an- interpretação permitem uma ciência interpreta-
dar” da fila vai sendo buscada e, por vezes, com tiva à procura do significado, em vez de uma ciência
empenho, através de convivência com políticos, experimental em busca de leis. Distancia-se das
com médicos ou pessoas influentes no interior ciências explicativas quando propõe o afunila-
do sistema de saúde. Ainda que organizadas por mento das questões de estudo, a microscopia e o
legislações claras e submetidas a constantes fis- aprofundamento nalgum ponto pouco esclare-
calizações, sobretudo pela sociedade civil organi- cido. Nas palavras de Geertz5, “é justamente uma
zada, as tentativas ocorrem e vão dando sentido explicação que se procura ao construir expres-
à vida. sões sociais enigmáticas na sua superfície. Toda-
O sentimento de abandono fica-nos evidente via, essa afirmativa, uma doutrina numa cláusu-
ao confrontar o cotidiano dessas pessoas com as la, por si mesma, requer uma explicação”.
instituições sociais preconizadas para resolvê-lo. Teceu seu argumento de defesa da interpreta-
No interior do sistema público de saúde, o fluxo ção cultural como possibilidade de se “fazer ciên-
do usuário, regido pelas políticas nacionais e lo- cia”, a partir da elaboração de uma análise crítica
cais, vem sendo ordenado sistematicamente, con- e comparativa ao pensamento científico predo-
forme as agudizações ou agravos de doenças. As minante, defendido pelas ciências naturais. Partiu
pessoas dependentes do SUS não estão mais li- do pressuposto de que as leis resultantes de teori-
vres a procurar “o seu médico” ou seu serviço de as científicas não explicam tudo, em especial o
saúde, mas estão sujeitas a uma trajetória orien- que é humano. Devemos, portanto, “isolar” jus-
tadora peculiar ao atendimento, que pode ser tamente aquilo que as ciências naturais não expli-
demorado demais para as pessoas e nem sempre cam; algo que esteja no bojo das relações huma-
garantir que chegará ao ambiente onde haja mai- nas e cuja investigação e compreensão sejam fa-
or vínculo entre os sujeitos envolvidos ou que vorecidas pela interpretação cultural. Isso signifi-
garanta ao interessado no cuidado a segurança ca identificar o que, certamente, não se poderia
de os profissionais reconhecerem o seu proble- transformar em leis pelo pensamento científico
ma de saúde e, portanto, agirem com rapidez. tradicional, uma vez que os praticantes das ciên-
cias naturais investem em reduzir fenômenos
eminentemente humanos ao mesmo fluxo de
Abordagem interpretativa das culturas comportamento de seus objetos inanimados ou
de cuidados de saúde após a alta hospitalar irracionais, ou, ainda, a modelos matemáticos.
O “isolar” o cuidado em saúde, como fenô-
O foco central desta seção é apresentar como o meno de estudo, nesse viés de pensamento, pres-
pensamento de Clifford Geertz5-8 pode ser ado- supõe, primeiro, que admitamos que essa seja uma
tado para compreendermos questões próprias prática eminentemente humana, realizada entre
do campo da Saúde Coletiva, como as aponta- pessoas. Sendo assim, são dois os lugares com
das acima. Referimo-nos à teoria interpretativa saberes, vocações e culturas distintas: um, o lugar
da cultura defendida por esse autor. da pessoa que sofre e que requer os cuidados e
Não será possível aqui, mas em outras opor- outro, o daquela que produz e que aplica o cuida-
tunidades, o aprofundamento em aspectos con- do de saúde na forma de ações direcionadas ao
ceituais que a questão como um todo requer e que dele necessita. Essas ações, concebidas e ela-
merece, como, por exemplo, sobre família e so- boradas por um processo mental, se exteriori-
bre cuidado. Entretanto, é a dimensão cultural zam e concretizam através de ações num contexto
do cuidado de saúde que é praticado por pessoas e com capacidade de alterações no conjunto de
que convivem de modo significativo em ambien- necessidades do outro. Costumeiramente, deno-
te familiar que buscaremos enfocar enquanto minamos de cuidado de saúde ações que provo-
pretexto para apresentar um olhar, um pensa- cam respostas de alívio ou sensação de conforto e
mento antropológico que possibilita à etnogra- segurança em uma pessoa, secundariamente à
fia o “status” de uma ciência interpretativa. intervenção física ou subjetiva previamente pla-
Geertz5 desenvolveu seu pensamento sobre nejada e aplicada por outra. O cuidado revertido
interpretação cultural, assumindo uma compre- em ações pode permitir gradações para uma maior
ensão essencialmente semiótica de cultura, origi- ou menor satisfação de necessidades.
nária do pensamento weberiano, segundo o qual Existe, portanto, um processo de pensamen-
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to; de um lado, o dos profissionais de saúde, que ger9 sobre o cuidado de enfermagem, na dimen-
se esforçam em identificar em seres humanos, e são transcultural defendida por ela, a intenção
em contextos culturalmente definidos, suas ne- não é generalizar particularidades ou formas de
cessidades, acumulando informações sobre elas, cuidados e nem de defender que isso seja possível
que se associam aos seus saberes sobre cuida- ou não, mas de reconhecer que se trata de um
dos, permitindo uma organização mental acerca fenômeno eminentemente humano, produzido
de formas de exteriorizar as tomadas de decisão. pelos homens em suas relações entre si e com o
Nem sempre o foco é para a pessoa que tem as mundo. Significa compreender que o homem,
necessidades, mas para as necessidades em si, por natureza, tem potencial para o “cuidar de si”
descoladas de um contexto de vida. Cuidados, e o “cuidar de outros”, e o cuidado segue pelas
como uma prática extraída da relação entre hu- gerações transcultural e universalmente, mas sem
manos, somente poderão ser compreendidos se, descartar a diversidade cultural que contribui
antes, localizarmos os ambientes de vivência e de para a presente elucidação sobre aspectos pon-
convivência destas pessoas. Compreendê-los na tuais. O cuidado é, portanto, significativo ao
dinâmica da vida, culturalmente concebidos e homem. Cuidado para a vida. E, se um cuidado
praticados por um membro da família a um outro de natureza cultural, pode então ser interpretado
doente, pode ser possível a partir da interpreta- a partir das teias de significados tecidas pelo ho-
ção dos processos de construção mental de tais mem que cuida e pelo que recebe o cuidado. Pode
ações, como também do processo que culmina ser interpretado, sobretudo, em momentos de
com as necessidades especificamente destas e não maior fragilidade em seus contextos de vida, quan-
de outras ações. do este se especializa, tornando-se um cuidado
Dificilmente conseguiremos compreender técnico e decorrente das manifestações do corpo
necessidades humanas a partir de metodologias mediante uma doença ou tratamento próprio do
que tentam, por exemplo, medi-las, tipificá-las e setor de saúde.
defini-las com exatidão através de característi- Quando é esse cuidar específico que nós bus-
cas, manifestações ou expressão de um grupo de camos compreender, um cuidar que resulta do
sujeitos de um dado contexto cultural ou socie- homem em suas relações sociais, dificilmente o
dade, com a finalidade de generalizá-las para conseguimos através de metodologias estrutu-
outros sujeitos, sejam eles de quaisquer contex- radas, que, antes de interpretar os significados
tos culturais ou sociais. de cada fio de uma teia culturalmente tecida pelo
É possível que, nalgum momento da vida, os homem que cuida, consideram o cuidado especi-
seres humanos necessitem de cuidados de ou- alizado como um objeto cognoscível, possível de
tros, como uma lei do cuidado em saúde, sobre- ser identificado ou definido a partir de fórmulas
tudo quando consideramos que o cuidado ex- ou operações matemáticas. A idéia não é negar o
trapola a saúde, destacando seu antagônico, a valor de evidências vindas de tais modelos que
doença. Neste caso, o cuidado será para a vida. subsidiam intervenções clínicas, por exemplo,
Então, crianças e idosos podem estar incluídos, mas é alertar que não devem ser a “máxima do
como extremos de começo e final da vida, como cuidado” e a referência única no campo das prá-
grupos humanos que necessitarão inevitavelmen- ticas das profissões de saúde.
te de cuidados de outros. O tipo e forma de enca- Para Geertz5, o operacionismo como dogma
rar o cuidado emanado é que não pode ser gene- metodológico nunca fez muito sentido no que con-
ralizado de uma cultura para outra. No mínimo, cerne às ciências sociais e, a não ser por alguns
alguma adaptação terá que ser feita. cantos, já bem varridos – “o behaviorismo” skin-
Outra assertiva universal poderia ser a de que neriano, os testes de inteligência, etc. estão, agora,
todo ser humano tem potencial para cuidar de si praticamente mortos. Segundo ele, se quisermos
e de outros, como defendeu Leininger9. Entre- compreender o que é a ciência, devemos olhar,
tanto, “o como” se cuida de si e de outros, ou seja, primeiro, não para suas teorias ou as suas des-
o processo de cuidado não poderá ser generali- cobertas, e, certamente, não para o que seus apo-
zado de uma cultura para outra. Concordamos logistas dizem sobre ela, e sim precisamos ver o
que existem aspectos comuns e universais no que que os praticantes da ciência fazem.
tange à necessidade e à prática de cuidados entre É etnografia o que a antropologia social faz e,
humanos, coexistindo, todavia, com uma diver- no caso, consideramos como uma prática ade-
sidade de “modos de cuidar” que parecem estar quada para se compreender o cuidado que vai
em consonância com a diversidade cultural. sendo tecido pela família ao cuidar de um mem-
Ao nos referirmos ao pensamento de Leinin- bro que, de súbito, passa a demandar cuidados
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em casa. E é justamente quando se compreende forço intelectual que ele representa. Nas palavras
o que é a etnografia, ou mais exatamente, o que é de Geertz5, “um risco elaborado para uma des-
a sua prática, é que se pode começar a entender o crição densa”.
que representa a análise antropológica como for- A etnografia é, nesse viés de pensamento, uma
ma de conhecimento. O objeto da etnografia ad- descrição densa. Geertz5 adota a noção de descri-
vém de uma hierarquia estratificada de estrutu- ção densa de Gilbert Ryle, a partir de dois ensaios
ras significantes. Nos escritos etnográficos aca- daquele autor, dos quais se abstrai a idéia, ou
bados, o que chamamos de “nossos dados” é constructo teórico, da descrição densa. Um de-
realmente, como diz Geertz5, “a nossa própria les, o ensaio sobre as piscadelas iniciadas por um
construção”: [...] das construções de outras pesso- garoto que queria imitar outro que piscava. Ryle
as, do que elas e seus compatriotas se propõem – prossegue decodificando e esclarece que o pri-
está obscurecido, pois a maior parte do que preci- meiro garoto pisca por um tique nervoso, o se-
samos para compreender um acontecimento par- gundo pisca para imitá-lo, daí depreende-se a
ticular, um ritual, uma idéia ou o que quer que intencionalidade do imitar. E prossegue acrescen-
seja, está insinuando como informação de fundo tando que um terceiro garoto pisca para outro,
antes da coisa em si mesma ser examinada direta- como o primeiro, porém de modo conspiratório
mente. [...] Bem no fundo da base factual a rocha (um código cultural) e assim por diante. Ao des-
dura, se é que existe uma, de todo empreendimen- crever as diversas possibilidades de piscadelas dos
to, nós já estamos explicando e, o que é pior, expli- garotos, ele quer evidenciar pelo menos dois as-
cando explicações. [...] A tarefa soa muito pareci- pectos: um é a existência dos significados e outro
da com a tarefa de um decifrador de códigos, quan- é o potencial do observador humano de inter-
do, na verdade, ela é muito parecida com a do crí- pretar. Isso dá o caráter de densidade à descri-
tico literário – e determinar sua base social e sua ção, diferenciando de um relatório puramente
importância. descritivo, que exclui a interpretação humana e
A análise em etnografia representa a ação de se fixa em variáveis como, por exemplo, o núme-
escolher entre as estruturas de significação (có- ro de movimentos dos olhos que se repetem; os
digos estabelecidos ou as expressões mistificadas músculos envolvidos, etc., e, para isso, bastar-
que possam ser decodificadas) determinando sua se-ia analisar uma filmagem.
base social e sua importância no contexto da in- Nas palavras do próprio Geertz5, a exigência
vestigação. Quadros desiguais de interpretação de atenção de um relatório etnográfico não repou-
relacionados ao mundo dos diferentes sujeitos sa tanto na capacidade do autor em captar os fatos
podem surgir e devem ser explicitados no texto, primitivos em lugares distantes e levá-los para casa
evidenciando-se a relação existente entre eles e como uma máscara ou um entalho, mas no grau
que sentido fazem no sentido global da questão em que ele é capaz de esclarecer o que ocorre em
em análise. tais lugares, para reduzir a perplexidade. Isso sig-
O que o etnógrafo enfrenta, de fato (a não nifica dizer que poderemos encontrar outros
ser quando está seguindo as rotinas mais auto- problemas, que inicialmente não nos ocorreram,
matizadas de coletar os dados), é uma multipli- cabendo-nos contínuas “avaliações” durante o
cidade de estruturas conceituais complexas, mui- trabalho de campo. E prossegue dizendo: Se a
tas delas sobrepostas ou amarradas umas as etnografia é uma descrição densa e os etnógrafos
outras. Isso significa, primeiro, apreender; de- são os que fazem a descrição, então a questão de-
pois, interpretar e, por último, apresentar. terminante para qualquer exemplo dado, seja um
Com isso, queremos dizer que o desafio as- diário de campo sarcástico ou uma monografia
sumido pela etnografia não se reduz a um con- alentada do tipo Malinowski, é se ela separa as
junto de técnicas, nem aos processos que a defi- piscadelas dos tiques nervosos e as piscadelas ver-
nem enquanto método de investigação e que são dadeiras das imitadas.
determinados e expressos nos livros-texto. Não Uma descrição densa não necessariamente se
se reduz a uma lista de procedimentos, como, refere a um texto longo e prolixo, mas a um texto
por exemplo, estabelecer relações; selecionar in- que apresenta as evidências prenhes de significa-
formantes; transcrever textos; levantar genealo- dos que permitiram ao observador interpretar
gias; mapear campos ou manter um diário. Sem os sentidos que fazem num dado contexto cultu-
a intenção de banalizá-las no âmbito do proces- ral, emitindo suas asserções que possibilitam a
so investigativo, queremos frisar que o que defi- ele e a outros compreender uma dada questão.
ne o método antropológico, para além das ferra- As evidências são os dados brutos extraídos do
mentas adotadas pelo etnógrafo, é o tipo de es- campo (partes das notas de observações, falas
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ou outros artefatos colhidos no campo). Tor- xonomias, paradigmas, tabelas, genealogias, etc.,
nam-se evidências exatamente quando seguidas comprometendo a interpretação cultural.
da interpretação na qual agregamos os significa- Em nosso caso, devemos estar atentos se, no
dos apreendidos da cultura corrente, permitin- estudo do cuidado, aquilo que estamos interpre-
do elaborações de asserções acerca do fenômeno tando reflete o que os membros das famílias fa-
a que se referem. A densidade também se relacio- zem e se fazem de modo consciente, quando pres-
na à experiência do investigador. tam o cuidado em casa; se o que evidenciam, na
Neste caso, a tradição de sermos enfermeiros forma de falas, comportamentos, enfim, de res-
ou médicos com uma história de vida profissio- postas humanas, representa o que sentem e pen-
nal na área da saúde, de relações sociais e de for- sam “realmente” acerca do que fazem, ou se re-
mação acadêmica na área das ciências humanas, presentam, como pontua Geertz5, “apenas simu-
enfim, de leituras sobre o objeto em observação, lações inteligentes, equivalentes lógicos, mas subs-
será a experiência que nos permitirá apreender tantivamente diferentes do que eles pensam”.
os sinais prenhes de significados a serem inter- Ao fazermos uma interpretação, devemos le-
pretados à luz de um contexto de vida e de cuida- var em consideração a origem social e cultural
dos de saúde, e, posteriormente, professados na das pessoas e como relatam o seu modo de viver
forma de descrição. antes e após o adoecimento, ou seja, a noção que
Numa teorização do cuidado a partir da sua têm de seu próprio corpo e a relação deste com a
prática pela família mediante uma situação de vida. Se, ao narrarmos os discursos de nossos
agravo à saúde, o comportamento humano vai sujeitos, ou ao descrevermos os significados ex-
sendo visto como uma ação simbólica, na qual a traídos de seus contextos, adotarmos uma cons-
intenção de cuidar e o como se cuida do outro, trução de representações impecáveis, de ordem
que lhe é significativo, vão sendo apreendidos. formal, mas cuja existência verdadeira pratica-
Todavia, a questão sobre a qual nos debruçamos mente ninguém pode acreditar, corremos o risco
ao querer estudar os comportamentos huma- de estar contribuindo para o descrédito da análi-
nos de cuidado é que deve estar clara, com o grau se cultural, além de falsearmos uma prática e em
de importância que lhe asseguramos: para que muito pouco contribuir para o avanço do estudo
queremos saber isso? e da prática do cuidado de saúde. Nesta concep-
Dois são os cuidados que devemos ter ao per- ção, parafraseando Geertz5, uma boa interpreta-
seguirmos tal compreensão, tomando a cultura ção, de qualquer coisa – um poema, uma pessoa,
como possibilidade de interpretação do compor- uma história, um ritual, uma instituição, uma
tamento
5
humano de cuidado, como pontua Ge- sociedade – leva-nos ao cerne do que estamos
ertz : primeiro, ao imaginarmos que a cultura é propondo interpretar. Quando isso não ocorre,
uma realidade superorgânica, autocontida, com nos conduz ao contrário, a algo diferente.
forças e propósitos em si mesma, poderíamos Devemos estar atentos se, no cotidiano ob-
“reificá-la”; segundo, se nos satisfazemos com a servado, as pessoas simulam comportamentos
idéia de que ela consiste no padrão bruto de acon- para ser aprovadas pelo padrão cultural, enquan-
tecimentos comportamentais que de fato obser- to seus pensamentos não conferem com o pa-
vamos ocorrer em uma ou outra comunidade drão cultural corrente; para que não interprete-
identificável, isso significa reduzi-la. mos outra coisa diferente daquilo que realmente
Com isso, ter cuidado para não a reificar ou está acontecendo naquele contexto que estamos
reduzir significa que não devemos considerar ou estudando. Nem sempre as respostas fornecidas
nos apoiarmos na idéia de que exista um local formalmente ou através dos discursos dos sujei-
específico para a localização da cultura. Geertz5 tos, emanados de um processo de pensamento
defende a idéia de que a cultura não está localiza- em torno de uma questão, serão fidedignas a uma
da nem na mente nem no coração dos homens, cultura se descoladas de uma estrutura de signi-
podendo estar em qualquer outro lugar fora do ficados estabelecidos socialmente. Aí está o valor
corpo. da observação etnográfica.
Assim, ao tomarmos as culturas humanas Para Geertz5, “a cultura consiste em estrutu-
como objeto de estudo, devemos evitar o subjeti- ras de significados socialmente estabelecidos nos
vismo extremo associado a um objetivismo tam- termos dos quais, [por exemplo], as pessoas fa-
bém extremo. Aliás, juntos ou separados, subjeti- zem certas coisas, como sinais de conspiração e
vismo e objetivismo quando adotados de modo se alienam ou percebem os insultos e respondem
extremados podem levar a uma explosão de aná- a eles”. E isso, nesta visão, não é mais do que
lises particulares, que surgem sob a forma de ta- dizer que “esse é um fenômeno psicológico, uma
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Castro, E. A. B. & Camargo Jr., K. R.

característica da mente, da personalidade, da es- marginalização dos fundamentos intersubjetivos


trutura cognitiva de alguém”. O desafio passa a do trabalho de campo, pela sua exclusão dos textos
ser o de “tentar formular a base na qual se imagi- etnográficos sérios, relegando-os aos prefácios, me-
na, sempre excessivamente, estar-se situado. Eis mórias, anedotas, confissões e assim por diante.
no que consiste o texto antropológico como em- Posteriormente, o conjunto de regras disciplinares
preendimento científico”. foi sendo substituído.
Podemos considerar que existe um contexto James Clifford10 considera que a nova ten-
cultural de cuidados no âmbito do SUS; uma es- dência de nomear e citar os informantes de for-
trutura de significados que vem sendo estabele- ma mais completa e de introduzir elementos pes-
cida ao longo de sua implantação. As condições soais no texto está alterando a estratégia discur-
que definem o acesso aos serviços de saúde po- siva da etnografia e seu modo de autoridade, am-
dem influenciar nas respostas e nos movimentos pliando-a. O valor das evidências etnográficas
de busca de cuidados pelos seus usuários. Como relaciona-se, diretamente, com “o estar lá” do pes-
exemplos, temos o comportamento que umas quisador. O estar “dentro” do mundo dos sujei-
pessoas exibem nos serviços com o fim de obter tos. E esse estar lá consideramos uma importan-
a resolução de seus problemas de saúde, de ne- te forma de participação tendo em vista o tal “rito
cessidade de cuidados ou, ainda, os conflitos que de passagem pessoal”. O processo de reflexão
expõem a um profissional ou às equipes de saú- permite transformações em ambos os mundos:
de. Conceber, entretanto, que tais simulações o dos sujeitos e o do investigador.
acontecem significa admitir que esses sujeitos que Uma consideração acerca de alguns estudos e
as exibem reconhecem a existência de uma con- pesquisas em saúde realizadas à luz dos conheci-
juntura de cuidados de saúde, da tal cultura em mentos originados no campo das ciências sociais
torno da oferta dos serviços. Para outras pesso- e humanas é que nem sempre encontram uma
as, todavia, o comportamento de busca de cui- forma de comunicação que permita aos sujeitos
dados pode ser o de nem buscar, numa manifes- envolvidos numa determinada prática da saúde
tação de completa ausência de noção da existên- compreender os processos estudados, contribu-
cia seja do serviço seja do seu direito a ele. E as- indo pouco com os processos de mudança. Uma
sim por diante. A empreitada etnográfica está em, crítica se relaciona aos textos rebuscados, em lin-
ao identificar tais comportamentos, decodificar guagem por vezes incompreensível, dificultando
a teia de significados na qual se tecem. o acesso aos “produtos da ciência”, alargando o
Na concepção de Clifford10, um valor de in- “abismo” notado entre aqueles que “produzem”
vestigações etnográficas interpretativas está, prin- as teorias sobre o cuidado e aqueles que “conso-
cipalmente, na origem e tipo de dado encontra- mem” um trabalho acadêmico, ou seja, os que
do (histórias, conversas, eventos, por exemplo) cotidianamente executam o cuidado de saúde.
e na forma em que tais achados são apresenta- A linguagem, dentre outras, torna-se uma
dos, adotando alegorias, próprias de um estilo ferramenta fundamental e Merleau-Ponty11, ao
literário, para interpretá-los. “Qualquer história discorrer sobre a experiência da expressão em
tem uma propensão a gerar outra história na sua relação com a ciência, diz que a virtude da
mente do leitor (ou ouvinte), a repetir e deslocar linguagem é lançar-nos sobre o que ela significa.
alguma história anterior”. Entretanto, para que O trecho a seguir, dito por Merleau-Ponty11, evi-
se produza esse efeito, o texto deve ser cuidado- dencia, justamente, aquela que parece ser a prin-
samente tratado. Podemos utilizar as “alegorias” cipal contribuição de um relatório que se propõe
ou a técnica da narrativa, que permite, seja no à interpretação de cenários culturais dados no
“falar do outro”, seja no falar de um padrão de campo da Saúde Coletiva: Ora, é de fato um re-
idéias ou eventos, uma espontaneidade artística, sultado da linguagem fazer-se esquecer ao conse-
de natureza, por vezes, até poética, que “quebra” guir exprimir. À medida que sou cativado por um
o caráter unicamente descritivo, rígido e formal, livro, não vejo mais as letras na página, não sei
típico da escrita dos textos técnicos da saúde. mais quando virei a página. [...] Quando alguém
Acrescenta-nos Clifford10, que [...] o trabalho de – autor ou amigo – soube exprimir-se, os signos
campo antropológico tem sido representado tanto são imediatamente esquecidos, só permanece o sen-
como um “laboratório” científico quanto como um tido, e a perfeição da linguagem é, de fato, passar
“rito de passagem” pessoal. As duas metáforas cap- despercebida.
tam precisamente a impossível tentativa da disci- Numa leitura prazerosa, em que captamos
plina em fundir práticas objetivas e subjetivas. Até os sentidos dos acontecimentos narrados, estes
recentemente, a impossibilidade era mascarada pela se instalam em nossa memória, permitindo-nos
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Ciência & Saúde Coletiva, 13(Sup 2):2075-2088, 2008


o envolvimento tão logo nos coloquemos diante outro lugar, uma aldeia distante, por exemplo,
de tais acontecimentos. cujos costumes e cultura são-nos completamen-
A prática de interpretação cultural em Saúde te estranhos. Como, por exemplo, Geertz5-8, ci-
Coletiva, resultante de um trabalho de campo dadão norte-americano, foi a Bali e lá identificou
etnográfico, contribui, por exemplo, para se des- e estudou os significados das rinhas ou “brigas
crever a experiência humana que se desenvolve de galos” na vida dos balineses. Estamos ambos,
ao lidar com o processo saúde-doença, explici- famílias que cuidam e profissionais que cuida-
tando os significados que se estabelecem em tor- mos, mergulhados numa mesma cultura brasi-
no deste, permitindo a outros vivenciarem, ou leira e, ainda, ao que acrescenta Certeau2, numa
experimentarem, de modo semelhante, o que essa convivência com uma contracultura e separados,
lida representa para aqueles sujeitos. pelo que Gilberto Velho2 enfatiza e estuda, pelas
O lidar de pessoas com agravos à saúde e de subculturas.
suas famílias após a alta hospitalar com a neces- Cada uma das profissões de saúde reconhe-
sidade de cuidados passa, momentaneamente, de cidas pela sociedade brasileira se organiza com
um fenômeno dinâmico, em processo contínuo, suas culturas “de cuidar do outro” no contexto
a objeto de atenção e estudo, na medida em que de um sistema de saúde que, por sua vez, se orga-
o que se busca é uma compreensão microscópica niza a partir de uma regulação dessas culturas
do cuidado aí praticado. Entretanto, a decodifi- associadas à cultura de cuidado que se institui na
cação de linguagem, ou o achado de significados, sociedade civil e, ainda, no âmbito dos planeja-
requer árduos investimentos e envolvimento pes- dores, gestores e políticos.
soal aprofundado no mundo dos sujeitos ou ce- Parecem existir pelo menos dois riscos ao se
nários que se quer interpretar. A missão mais falar “por”, quando observamos como as famíli-
árdua, talvez, esteja no conversar com as famíli- as cuidam de seus membros que são usuários de
as que cuidam de um membro doente ou em um sistema de saúde público. Primeiro, porque é
situação que requer cuidados humanos ou técni- desse lugar, onde a prática profissional busca
cos, e depois alargar o discurso delas para outros orientar-se segundo uma racionalidade, que dela
grupos que cuidam institucionalmente ou não. saímos também. Ambos, cidadãos usuários e
No conjunto do empreendimento etnográfico, profissionais, conjugamos nossas culturas num
esse parece ser o que apresenta maior grau de ambiente comum, porém em lados diferentes. O
dificuldade. A experiência acumulada parece in- segundo risco seria o de tentar desconsiderar-
fluenciar a entrada, permanência e saída do cam- mos por completo os aspectos de nossa vida pri-
po de observação. vada, que pode estar envolta ou não por práticas
Geertz5 assume um pressuposto de que o fa- místicas ou crenças que nos aproximam ou nos
lar por alguém parece ser um processo misterio- distanciam da vida de nossos sujeitos. Isso signi-
so. Isso pode ser devido ao fato de que falar a fica dizer que é possível que em nós já existam os
alguém não parece, definitivamente, misterioso conflitos. Adotamos para nós uma prática de
na lida cotidiana. O que naturalmente e de modo cuidados culturalmente distante daquela que pra-
predominante fazemos, como profissionais, ao ticamos profissionalmente.
praticarmos o cuidado de saúde no interior de Ao nos referirmos à prática de cuidados mar-
instituições, é emitir para as pessoas o que devem cada pela cultura, destacamos que não falamos
fazer; como devem se cuidar. de uma cultura como poder, mas como algo ao
Entretanto, estamos de um lado em que a qual, como diz Geertz5, podem ser atribuídos ca-
cultura de cuidado vai sendo instituída sob sualmente os acontecimentos sociais, os compor-
influência dos saberes e comportamentos insti- tamentos, as instituições ou os processos; ela é um
tucionalizados e tidos como científicos. O sair do contexto, algo dentro do qual eles podem ser descri-
lugar, no qual também somos cuidadores, e ir ao tos de forma inteligível, isto é, com densidade”. O
mundo do sujeito que pressupomos se autocui- desafio passa a ser o de ver as coisas “do ponto de
dar, para compreender a sua cultura de cuidar, vista do nativo.
muito mais do que simplesmente lhe falar, ofere- O que o autor quer dizer com o “ver as coisas
ce riscos e limites. O grande limite parece estar do ponto de vista do nativo” é que as descrições
entre a dificuldade que isso representa e o risco culturais que fazemos devem ser encaradas em
de que o nosso saber oriente o tal discurso que termos das nossas interpretações sobre fenôme-
procuramos. nos que surgem e se tecem no âmbito das rela-
O risco começa já no encontro com essas fa- ções humanas. No campo da Saúde Coletiva,
mílias, porque não é o mesmo que ir para um podemos considerar que “nativos” são os ou-
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Castro, E. A. B. & Camargo Jr., K. R.

tros, ou seja, os sujeitos como vimos, até então, ente), adotando formas não usuais (as da cultu-
considerando na prática de nossas investigações ra hospitalar, por exemplo) de praticar o cuida-
acadêmicas: nossos principais interlocutores nas do, põem em evidência a arbitrariedade do com-
observações participantes, entrevistas, enfim, na portamento humano. O seu ir-e-vir com ou sem
prática etnográfica em saúde. rotinas estabelecidas.
De um ponto de vista epistemológico, isso
significa que compreender a cultura de cuidado
pelas famílias expõe o que lhes é “normal” em A vida após a alta:
seu cotidiano e, como pontua Geertz5 e em nosso conclusões a partir do estudo etnográfico
caso, podemos concordar, ver as coisas sob a
ótica do sujeito não significa uma redução de uma Encerrando este artigo, apresentamos algumas
particularidade de cuidar. considerações sobre o cuidado de saúde após a
Uma coisa é o olhar para as pessoas em sua alta hospitalar, objeto de atenção e estudo cujo
teia de relações cotidianas, que é onde o cuidado processo de investigação discutimos antes, sob o
acontece, e outra é o olhar para o cuidado que enfoque do pensamento antropológico de Cli-
praticam que extraímos dessa teia, talvez numa ford Geertz. Por razões de espaço, não será pos-
forma bruta, e tentar estudá-lo. No estudo do sível incluir o material empírico que conduziu a
cuidado praticado pelas famílias na dimensão essa análise.
cultural que tomamos, a análise penetra na vida e Nos momentos que antecedem à saída do
no cotidiano dos sujeitos, mas isso não significa hospital, um primeiro e notado esforço de adap-
que descreveremos a vida deles e toda a sua teia de tação pela família se inicia. A distância existente
relações exatamente como são. A linha entre a entre o hospital e a casa parece estimular respos-
cultura do cuidado como um fato natural e a cul- tas humanas à condição de adoecimento ou de
tura do cuidado como entidade teórica tende a agravo que fica a cargo da família. No caminho
ser obscurecida segundo esse viés de pensamento. de volta, evidenciam-se as expressões caracteri-
Finalmente, ao olharmos para a vida de nos- zadoras de angústia através de falas, fácies, olha-
sos sujeitos, o que inicialmente fazemos é inter- res, respirações profundas, permitindo interpre-
pretar. Interpretamos o que dizem sobre si, so- tações indicativas de que se inicia um processo
bre seu núcleo familiar e sobre parentes. Inter- rumo à adaptação.
pretamos o que achamos que querem dizer quan- Os primeiros comportamentos indicativos de
do não expressam verbalmente o que fazem, fi- um modo de cuidar pela família iniciaram-se em
cando nas entrelinhas, ou ainda, no avesso do resposta de sofrimento, associado a uma angús-
que tecem. O não visível. Interpretamos também tia que parecia estar relacionada à falta de recur-
o que achamos que eles pensam e querem para sos para o alívio deste. Recursos de diversas na-
resolver o problema de saúde de seu familiar turezas: ambiente adequado, suporte financeiro
doente, suas expectativas. Estaremos, enfim, no para aquisição de medicamentos e tecnologias,
caso do estudo da vida após uma alta hospitalar, acesso a serviços, conhecimentos, entre outros.
atentos ao comportamento das pessoas que con- Ao viver momentos de forte tensão emocional,
vivem naquele ambiente. Devemos nos atentar iniciada desde o surgimento da doença ou agudi-
“ao comportamento, e com exatidão, pois é atra- zação de um agravo em um de seus membros,
vés do fluxo do comportamento - ou mais preci- também durante a internação, no momento da
samente da ação social - que as formas culturais alta e após esta, a família empenhada no acolhi-
encontram articulação”. mento do membro doente desenvolve seus pró-
Assim, o significado de “cuidar” para a famí- prios modos de cuidar. Modos de cuidar eviden-
lia vai emergindo do papel que ela desempenha ciados pelas trajetórias de buscas e pedidos de
na sociedade contemporânea, com as nuances ajuda, seja num entorno microssociológico de
das subculturas envolvidas. E o padrão de vida convivência, seja no interior do sistema de saúde.
que daí decorre, para a população de baixa renda Apreendemos o cuidado desenvolvido pela
e usuária do Sistema Único de Saúde, quase sem- família após a alta, primeiro, pela observação e
pre, evidencia um conjunto de desafios frente a reconhecimento de um cotidiano de convivência
uma crescente vulnerabilidade da vida humana intrafamiliar. Este se evidenciou através de con-
aos chamados fatores de risco. As observações flitos entre os membros, que se organizaram para
etnográficas em cenários dessa natureza, que desenvolvê-lo ou, ainda, especializando-se, no
buscam encontrar “o comum” nas famílias que interior da família a partir de uma redefinição de
cuidam (ou tentam cuidar de um membro do- papéis pelos membros.
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Ciência & Saúde Coletiva, 13(Sup 2):2075-2088, 2008


O lidar com uma diversidade de formas de par um lugar de dependência de cuidados. Do
cuidados se institui para além da prioridade de lado do “doente” ou “paciente” e família, nota-se
cuidados com o corpo do familiar doente. Aos uma perda da autonomia sobre o cuidar de si,
poucos, a família passa a viver momentos de além de uma submissão aos saberes técnicos es-
adaptação a uma situação de ter que cuidar de pecializados desses profissionais de saúde.
alguém doente em casa, explicitando situações A instituição de saúde “devolve” o “doente” à
que parecem rotineiras, como: a dificuldade de família. A cultura que se institui em torno da
exercer os cuidados em casa; as queixas constan- prática assistencial desenvolvida no hospital é a
tes de cansaço com visível esgotamento físico e de que esta instituição se ocupa em curar ou dar
emocional; os movimentos de busca de ajuda de um alívio compatível à vida, no sentido de estar
pessoas e de equipamentos; as redes de aproxi- vivo. Quando o médico assinala “melhorado” no
mações solidárias, principalmente entre os vizi- boletim de alta, representando a instituição hos-
nhos, que vinham, às vezes, ajudar em atividades pitalar, percebe-se, implícita, uma crença de se
de cuidados, como o banho. Estabiliza-se o po- ter cumprido “seu papel” ao “devolver” para a
tencial de cuidados no ambiente familiar com a família, e conseqüentemente à sociedade, a pes-
demarcação dos papéis de cada um dos mem- soa, de quem, momentaneamente, se cuidou, por
bros, visando ao equilíbrio e à manutenção de algum agravo de sua saúde.
um “estado de cuidado”. Identificamos, com isso, a existência de um
Na relação com a oferta de serviços especiali- limiar entre os níveis de atenção e cuidados de
zados do SUS, um fenômeno apreendido no saúde no interior do Sistema de Saúde, demar-
momento da alta hospitalar foi um modo de as- cando o compromisso do hospital. Uma nítida
sistir e de cuidar manifestado na forma de desas- ausência de diálogo, como se existisse um muro
sistência, mas “desassistência” específica à saúde ou porta imaginária, por onde o paciente e famí-
para essa parcela da população. Esta parece estar lia atravessam para um ou outro lado, para um
relacionada ao não encontro de duas concepções ou outro mundo, com uma e outra cultura de
de cuidado e de vida. Uma oriunda dos profissi- cuidados de saúde. Esses níveis ou campos de-
onais de saúde, que, no momento, representam marcatórios estão coerentes com a diretriz de hi-
a instituição prestadora de serviços de saúde, e, erarquização adotada pelo SUS, por vezes, na con-
outra, própria do paciente e família. tramão de uma concepção acerca do princípio da
Observamos, do lado da instituição de saú- integralidade do cuidado de saúde a que se pro-
de, uma despersonificação da pessoa doente e da põe. Fica-nos uma pergunta. É possível desenvol-
família no momento da alta (“paciente do leito 8 ver ações ou cuidado de saúde integral, com aco-
que teve AVC”). Evidenciou-se uma nuance cul- lhimento das necessidades do cidadão num mo-
tural própria da instituição hospitalar, estabele- delo (rigidamente) hierarquizado de atenção à
cida pela prática dos profissionais, ao “devolver” saúde, tal como organizado hoje no SUS?
a pessoa de quem momentaneamente cuidou por O que chamamos de desassistência manifes-
algum agravo à sua saúde à família, conseqüen- tou-se por duas formas: uma proveniente da prá-
temente à sociedade, acreditando ter cumprido tica assistencial que se difunde socialmente, numa
“seu papel”. cultura de naturalização da terminalidade da vida
Tece-se, de modo gradativo, uma cultura de secundária ao adoecimento crônico, o que se evi-
instituição que se ocupa em curar ou dar um denciou pelas expressões: “não tem cura!”, “não
alívio compatível à vida à medida que assinala há mais o que fazer”, “agora é ficar com a famí-
num boletim de alta: “melhorado”. Aponta para lia”. Uma hipótese é que a impossibilidade de
a necessidade do estudo da cultura institucional recursos de cura estimule certo desânimo em in-
que parece estabelecer critérios para “devolver” o vestir no cuidado integral, privando a pessoa de
“doente” à família. algum grau de qualidade de vida. Outra forma
Noutro fenômeno apreendido no momento foi a desassistência mesmo, com seu significado
da alta hospitalar, “a entrega” do doente ou paci- de “privado de assistência, amparo, ajuda, des-
ente à família, já se pode notar uma codificação protegido”, que se observa no fluxo da organiza-
de linguagem que marca a cultura de grupos so- ção da atenção à saúde. Notamos o abandono a
ciais, orientando o tipo de abordagem que aqui que essas pessoas estão submetidas no “imenso
se pretende. Nas observações dos grupos que mundo assistencial”, conhecido como atenção
cuidam em instituições de saúde, que possuem o secundária ou de média complexidade ambula-
chamado “saber científico”, nota-se uma prática torial e hospitalar. O sofrimento de busca (às ve-
de despersonificação da pessoa que passa a ocu- zes de exaustão pelo ir daqui para lá, retornar...)
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Castro, E. A. B. & Camargo Jr., K. R.

não se configura em objeto de cuidado. A trajetó- acompanhada por sentimentos de culpa, medo,
ria é incerta após a alta hospitalar, sem um víncu- frustrações e de sofrimento acerca das limitações.
lo institucional orientador dos cuidados prioritá- Um sofrimento inicial que leva a pessoa e a famí-
rios de que necessitam. lia a um equilíbrio num campo de adaptação que
A idéia de que as pessoas que sofrem algum passam a assumir como a vida após a alta, que,
tipo de agravo e que permanentemente deman- na verdade, é a vida que se pode ter dali para
dam cuidados especializados de profissionais de diante, mas numa adaptação que a própria fa-
saúde fiquem sob os cuidados da família reme- mília encontra e que dificilmente pode ser pres-
te-nos a uma reflexão sobre o que Estado pode- crita. Não é o caso de delimitar o início de uma
ria limitar-se a oferecer, que fica no plano técnico nova fase na vida sem compreender o que não
ou do cuidado institucionalizado, direcionado às foi dito, mas o que dele se pode nos enunciar
respostas objetivas de dor, relacionadas, princi- continuamente ao lidar com essas famílias.
palmente ao plano do corpo físico ou dos trans- Concordamos com Norbert Elias13 que, ao
tornos mentais. Por outro lado, tem também o estudar a relação do ser humano com a morte
potencial de cuidar da família, frente a essas con- ou eminência desta ao longo de momentos his-
dições que não deve ser descartado, o cuidado tóricos e na sociedade contemporânea, expressa
que culturalmente se espera das famílias na soci- o pensamento de que, mediante as ameaças à
edade contemporânea urbanizada ao conviver vida humana, em quaisquer circunstâncias, há
com um membro doente. uma busca de adaptação pelo homem à vida co-
Notamos, na esfera intrafamiliar, o surgimen- mum. Para Elias13, o buscar adaptar-se ao “co-
to de uma noção de “grau de dependência para o mum” ou, como diria Bourdieu14, a uma “nor-
cuidado”. O estudo possibilitou-nos uma com- ma universal”, se expressa através da formação
preensão do “grau de dependência” para o cuida- de grupos, como, por exemplo, a família.
do de saúde, do ponto de vista da integralidade Antes, então, de falar em adaptação, atenta-
do cuidado, sob três aspectos: dependência de se à dinâmica das famílias após o adoecimento
cuidados clínicos especializados; da prática de grave de um familiar e em momentos variados.
cuidados com o corpo realizado pela própria fa- O momento após uma alta hospitalar em que
mília e, ainda, a dependência das relações extra- receberam tratamentos complexos, as formas
familiares estabelecidas com o sistema de saúde obscurecidas e de lidar ou enfrentar a situação
(público ou privado) conforme as necessidades inédita se evidenciam de um modo agudo e de-
pontuais (consultas, exames, procedimentos). sordenado. Conflitos de diversas naturezas sur-
Com as fragilidades próprias da vida em con- gem e a relação delas com seu corpo e sua inser-
textos urbanos, a dependência “quase total” de ção social e com o sistema de saúde se mostra
um sistema de cuidados institucionalizados, iden- vulnerável. É possível que uma experiência prévia
tificada por este estudo, permitiu uma análise na lida com o adoecimento contribua para esse
acerca da autonomia para o cuidado e autocui- lidar atual, todavia não é uma regra que se pode
dado, mostrando que existem visões diferentes generalizar.
quando a pessoa se autocuida, que se sente segu- Na sociedade contemporânea, as respostas
ra e com autonomia permitida pelos vínculos dos membros da família parecem estar coeren-
assistenciais institucionais, e quando o autocui- tes com o que se publica a partir do progresso da
dado é prescrito num contexto de impossibilida- ciência médica. O lidar com o processo saúde-
de de ser realizado. doença, considerando uma agudização que pre-
Sobre os processos de vida após uma alta nuncia um “estágio final”, cobra uma maturida-
hospitalar, o que finalmente observamos foi que de para convivência com um “processo natural”.
ocorrência de um evento ameaçador à vida colo- Elias19 ressalta que “a idéia de um processo natu-
ca em sobressalto os membros da família, so- ral ordenado é característica de um estágio espe-
bretudo os adultos que a compõem. A primeira cífico no desenvolvimento do conhecimento e da
manifestação de uma doença grave ou uma agu- sociedade”. Podemos concordar que essa concep-
dização em caso de pessoas portadoras de doen- ção da natureza está estabelecida nas sociedades
ças crônicas representa aflição para ambas as desenvolvidas. Parece existir uma confiança ina-
partes: para a família e para aquele que, de fato, balável nas leis da natureza, nas ciências natu-
vive o problema, em dimensões distintas de va- rais, que contribui com uma sensação de segu-
lorização e de sentidos da vida. rança diante de fatos naturais.
Observamos o surgimento de uma revisão Na sociedade brasileira, todavia, notamos que
ou revalorização da vida, que quase sempre vem vivemos uma fase intermediária em termos da
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Ciência & Saúde Coletiva, 13(Sup 2):2075-2088, 2008


busca para um lidar com o sofrimento, tendo triais ou que convivem em pequenas cidades, pró-
em vista o desamparo em relação à oferta de tec- ximas do campo ou nele. Já nas sociedades in-
nologias de cuidado. O sofrimento se evidencia, dustriais e urbanizadas, tal enfrentamento se dá
como que sob uma lente de aumento. O não ter muito mais publicamente, mas dentro do domí-
à mão uma resposta de alívio leva as pessoas a nio da família. Interessante destacar algo que já
adentrarem-se num processo de busca de alter- estamos enfatizando neste trabalho: o fato de que
nativas dentro do seu próprio leque de conheci- o acolhimento dessas pessoas fica a cargo da fa-
mentos e de convivência. mília e de que elas podem experimentar ou não 13
Em sociedades consideradas mais desenvol- um tratamento amável. Na concepção de Elias ,
vidas e também na nossa, podemos concordar “não faz parte das tarefas do Estado imiscuir-se
que apenas as rotinas institucionalizadas dos hos- nesses assuntos”.
pitais dão alguma estruturação social para a situ- Contudo, as “buscas de cuidado vs a necessi-
ação de “morrer”, como diria Elias13, e acrescen- dade atendida”, ou o número de tentativas de
tamos para o “salvar da morte”, para permiti-lo, buscas e o “conseguir” ou o “não conseguir” e o
pelo menos “estar vivo”. O que está por detrás do acesso ao cuidado desejado fora do ambiente
perambular no interior do sistema de saúde, ou intrafamiliar foram situações apreendidas como
fora dele, em busca de respostas de alívio ou de rotina marcante, na relação dessas famílias com
remissão total do problema de saúde é a busca o Sistema de Saúde. Nem sempre a oferta de ser-
pelo prolongamento da vida e, portanto, uma luta viços na rede assistencial permitia o acesso, com
contra o fato natural da proximidade da morte, resolução ou satisfação das necessidades de cui-
que parece ser o pano de fundo ameaçador. dados de saúde das famílias acompanhadas.
Elias13 localiza a família como sendo a insti- O “voltar para casa”, tecido pelo paciente e
tuição social privilegiada ao enfrentamento e à família, pôs-se à mostra como um longo e tortuo-
convivência com os problemas decorrentes da so caminho, considerando a ausência ou dificulda-
velhice e da doença, nas sociedades pré-indus- de intensa de acesso aos cuidados especializados.

Colaboradores

KR Camargo-Junior orientou a concepção, a pes-


quisa, a metodologia e contribuiu na estrutura-
ção do artigo e na redação final; EAB de Castro
desenvolveu a concepção, a pesquisa, a metodo-
logia, a organização do artigo e a redação final.
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Castro, E. A. B. & Camargo Jr., K. R.

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Artigo apresentado em 28/08/2006


Aprovado em 02/03/2007
Versão final apresentada em 15/06/2007

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