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TEMAS LIVRES FREE THEMES


A etiologia da cárie
no estilo de pensamento da ciência odontológica

The etiology of carie: the construction of a thought-style

Doris Gomes 1
Marco Aurélio Da Ros 2

Abstract This study deals with the construction Resumo Este artigo trata da construção do esti-
of the Odontological Thought Style about the eti- lo de pensamento odontológico baseado na etio-
ology of caries. As a reference we use the theory of logia da cárie. Tem como referencial a epistemo-
Ludwik Fleck (1896 –1961) maintaining that logia de Ludwick Fleck (1896-1961),na qual o
knowledge is a result of social activity and that conhecimento é o resultado da atividade social e
each individual with certain knowledge belongs to cada conhecedor pertence a um coletivo e um
a certain cultural environment, a thought-collec- estilo de pensamento. O estudo das transforma-
tive sharing the same thought-style. The sources ções na teoria foi desenvolvido através de livros
used for studying the transformations in the theo- clássicos e artigos coletados no Medline/Pubmed,
ry were classic literature and a universe of 161 com as palavras-chave: dental caries/etiology/
articles published between 1980 and 2001, selected theoretical, de 1980 a 2001, um universo de 161
from the Medline/Pubmed base using the key words artigos selecionados. Na construção histórica do
dental caries/etiology/theoretical. Based on the conhecimento etiológico, apontou-se um macro-
analysis of these articles and books we identified a estilo de pensamento caracterizado como multi-
macro style of thinking characterized as multi- causal-biologicista. Foram identificadas cinco
causal-biologicist transforming the etiological tendências à transformação do estilo: a biologi-
knowledge mainly since the mid 90s. In this stage, cista, que segue o modelo proposto por Keyes; a
in which the period of classicism of the theory does clínico-epidemiológica, que incorpora algumas
not respond any more to the reality of the disease características da visão epidemiológica junta-
revealed in epidemiological studies, five distinct mente com a ciência clínica tradicional; a clíni-
trends could be identified: the biological; the clin- co-biologicista, localizada nas figuras de Thyls-
ical-biological; the clinical-epidemiological; the trup e Fejerskov, considera as evidências epide-
biopsychosocial and the social. Thus, one of the miológicas, mas parte de uma visão clínica da
challenges posed to odontology today is to trans- boca em direção ao meio externo; a biopsicosso-
1
Núcleo Florianópolis de form its thought-style adapting it to the new social cial, que acolhe num mesmo patamar os fatores
Bioética, SOEBRAS/
FUNORTE. Rua Trajano 265,
reality of the disease. biológicos, psicológicos e sociais; e a social, que
sobreloja Centro. Key words Etiology of caries, Fleck, Thought- propõe formas de abordagem da doença partin-
88010-010. Florianópolis style do-se do geral para o específico.
SC. dorisgomes@bol.com.br
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Departamento de Saúde
Palavras-chave Etiologia da cárie, Fleck, Estilo
Pública, Universidade de pensamento
Federal de Santa Catarina.
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Gomes, D. & Da Ros, M. A.

Introdução sujeito (indivíduo) e objeto (realidade objetiva),


mediada pelo estado de conhecimento, entrela-
Quando se remete o pensamento para a história çadas em relações históricas e estilizadas, psicos-
da cárie, observam-se três momentos distintos socialmente construídas. Para Fleck, o conhecer
de caracterização da doença nas sociedades hu- representa a atividade mais condicionada social-
manas. Apesar da cárie acompanhar o ser hu- mente da pessoa e o conhecimento é a criação
mano desde a sua pré-história, o padrão de ado- social por excelência. Ao analisar as descobertas
ecer nas comunidades primitivas caracteriza-se científicas, Fleck dimensiona a construção do
por uma doença de baixo impacto populacional, novo conhecimento além das fronteiras do indi-
em termos quantitativos e de severidade. Conco- víduo-pesquisador. A tradição, a formação e o
mitante ao processo “civilizatório”, com a intro- costume dariam origem a uma disposição para
dução de novos hábitos alimentares e de vida, perceber e atuar conforme um estilo de pensa-
especialmente a partir da crescente industrializa- mento, em um coletivo de pensamento, ou seja,
ção e urbanização, a cárie transforma-se em uma de forma dirigida e restrita.
moléstia violenta e de alta prevalência, signifi- As pressuposições, os enunciados protocola-
cando um grave problema de saúde pública. Já res baseados em uma observação direta (dados),
na última década do século XX, relata-se outro não seriam neutros ou seguiriam um sistema de
importante fenômeno no acometimento da do- pensamento lógico, mas adequados ao estilo de
ença. A queda da prevalência e severidade, espe- pensamento. Portanto, o sujeito conhecedor não
cialmente aos doze anos de idade, indica uma seria consciente, a princípio, da natureza hipotéti-
escalada decrescente de valores do índice CPO-D ca de sua afirmação, não possuindo uma obser-
(dentes cariados, perdidos e obturados)1 . É um vação pura ou direta, mas uma observação ad-
dos desafios da odontologia na atualidade: trans- quirida por experiência, carregada de pressuposi-
formar seu pensamento, adaptando-o à nova re- ções que indicam a orientação. Esta construção
alidade social da doença. não ocorre de forma lógica e retilínea, pois se fos-
Seguindo o princípio de que o entendimento sem claros e facilmente reprodutíveis não seriam
causal só pode dar-se através do estudo dos pro- os objetos da investigação, mas já de demonstra-
cessos gerais da sociedade em sua inter-relação ção. Quanto mais novo é um campo de investiga-
com os processos particulares ou epidemiológi- ção, menos claros são os experimentos, é o mo-
cos, concebem-se diferentes teorias da causali- mento do ver caótico e confuso.
dade. A teoria unicausal reconhece como única a A meta de todas as ciências empíricas seria,
causa da produção da doença, partindo de fora então, a elaboração de um “solo firme de fatos”,
do organismo agredido. Concepção dominante onde todo o fato teria uma tripla relação com o
que ganha força com o advento do capitalismo, coletivo de pensamento: “todo fato tem que si-
pois as explicações sobrenaturais eram substitu- tuar-se na linha dos interesses intelectuais do seu
ídas pelo avanço científico pautado nas desco- coletivo de pensamento”, ou seja, ter importân-
bertas bacteriológicas. Temos a importante con- cia para este coletivo. O fato tem que “fazer-se
tribuição de Willoughby Miller que, em 1890, presente a cada componente como coerção do
baseado nas “descobertas” de Pasteur, identifica pensamento e também como forma diretamente
alguns microorganismos que transformam açú- experienciável”, ou seja, convencer e servir de
car em ácido lático. Delineia-se, então, a princi- exemplo. O fato tem que ser expresso no estilo
pal marca do estilo de pensamento odontológi- do coletivo de pensamento. Portanto, a trans-
co ou “científico”: a bactéria como etiologia da formação do estilo advinda do descobrimento
doença. Esta visão simplificada encaixa-se aos de fatos e a posterior coerção e construção teóri-
padrões de prática odontológica estabelecidos e ca fazem parte do processo de conhecimento e
às exigências da profissão. Este corpo teórico vai cristalizam um coletivo de pensamento e um es-
sofrer transformações de acordo com os dife- tilo de pensamento2.
rentes momentos históricos e suas realidades A epistemologia do tipo veni-vidi-vici, onde
explicativas. o investigador é suprimido ao seu estilo aliado a
As tendências teóricas estudadas, na análise componentes intuitivos, fazem parte da origem
dos modelos etiológicos em fase de transforma- do conhecimento dentro da visão positivista do-
ção do estilo, foram estabelecidas utilizando minante. Já a epistemologia racional de Fleck se
como referencial a epistemologia de Ludwik Fle- baseia na tripolaridade de função cognoscitiva e
ck. Epistemologia esta que concebe a construção na relação recíproca entre o conhecer e seus três
do saber a partir de uma relação dialética entre fatores, o que conduz necessariamente à investi-
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gação do estilo de pensamento, pois este é seu Resultados
objeto por excelência. Isto significa que a cons-
trução do saber científico passa pela definição do As teorias multicausais para saúde se consoli-
estilo de pensamento e do coletivo de pensamen- dam nas décadas de 1960/70, quando a crise ca-
to num momento histórico dado, investigando- pitalista obriga a redução de gastos do Estado
se suas características de tendência à persistência, com as áreas sociais e são observadas as eviden-
circulação intercoletiva de idéias e transforma- tes relações entre elevação dos níveis sociais, ur-
ção do estilo. banos e tecnológicos das sociedades modernas e
mudança nos padrões de adoecer e morrer. Há
queda no acometimento das doenças infecto-
Metodologia contagiosas e aumento das crônico-degenerati-
vas, além da desigualdade social situada nas di-
Para compreensão da causalidade das doenças ferenças de classe e maior ou menor acometi-
de maneira geral e para o entendimento dos esti- mento de enfermidades. Assim, as interpretações
los de pensamento em relação à etiologia da cá- causais que sugerem medidas coletivas baratas
rie, dentre outras possíveis fontes para pesquisa de controle das doenças nascem como uma res-
como teses, entrevistas, anais congressuais, op- posta prática, sem tocar no modelo de atenção
tou-se por uma coleta de dados através de livros médica e nas causas estruturais e distinguem-se
e artigos. Então, foram pesquisados os artigos dos modelos de determinação social. O modelo
publicados em bases de dados disponíveis na da tríade ecológica de Leavell & Clark, que orde-
Internet na área da saúde através da Bireme, Bi- na as causas dentro de três possíveis categorias
blioteca Virtual em Saúde do Centro Latino- ou fatores (agente, hospedeiro e ambiente) e ig-
Americano e do Caribe de Informação em Ciên- nora a categoria social do homem, revela-se he-
cias da Saúde, que engloba Medline, Lilacs e BBO, gemônico para a área da saúde.
e alguns livros clássicos ministrados em odonto- Desta forma, Keyes3, em 1969, desenvolve a
logia e saúde pública. Através desta coleta inicial, tríade etiológica em que a cárie dental segue inte-
conseguimos estabelecer a hipótese de causação rações entre três essenciais grupos de fatores:
da doença, entender este conceito em termos de substrato oral, certos tipos de bactérias e susceti-
saúde pública e sua historicidade. bilidade do hospedeiro. Identifica que a sacarose
Para o estudo dos artigos selecionados se- favorece os processos de cárie, estabelece o cará-
gundo padrões internacionais que demonstrem ter infecto-contagioso da doença e responsabili-
os principais debates sobre o tema no mundo, za, definitivamente, o Streptococus mutans por
foram procurados artigos do Medline/Pubmed, sua causação. Este modelo etiológico ou macro-
de 1980 a 2001, e foram encontrados 161 artigos tendência multicausal-biologicista se torna carac-
em dental caries/etiology and theoretical. Optou- terístico ao estilo de pensamento da “ciência
se pelos artigos teóricos, na interpretação da con- odontológica”.
ceitualização utilizada pelos autores sob uma óti- Identifica-se a circulação intercoletiva de idéi-
ca fleckiana. A percepção do estilo de pensamen- as entre odontologia e as ciências da saúde de
to, que acontece juntamente com o aprofunda- maneira geral, visto que, para Fleck, a comunica-
mento do estudo teórico e da visita ao objeto, ção não ocorre nunca sem transformação da idéia
segue as seguintes diretrizes: determinação histó- e sim produzindo uma remodelação de acordo
rica do estilo, caracterização de um coletivo de com o estilo, que intracoletivamente se traduz em
pensamento (grupo de pesquisadores ou gru- um reforçamento e, intercoletivamente, em uma
pos), bibliografias e metodologia utilizadas e lin- mudança fundamental do pensamento comuni-
guagem. Ressalta-se como de fundamental im- cado de idéias. Observa-se que o modelo unicau-
portância a contemplação do pensamento teóri- sal de Miller acompanha a “era bacteriológica” e o
co principal (análise de conteúdo), que engloba modelo de Keyes, a tríade de Leavell & Clark.
as concepções em relação à causação da doença A partir da tríade e das experiências de Vipe-
através de uma análise de elementos teóricos co- lholm e Hopenwood House, que consolidam o
muns, linguagem específica (palavras e frases açúcar como o “arquiinimigo” dos dentes, os
utilizadas) e referências bibliográficas. programas educativos passam a combater o uso
desenfreado do açúcar. As pesquisas se voltam
para identificação de microorganismos impor-
tantes no processo de causação da doença e es-
tratégias para o seu controle (vacinas e produtos
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Gomes, D. & Da Ros, M. A.

antimicrobianos). Os programas preventivos lação e pergunta-se como considerar a avaliação


orientados pela saúde pública vão estimular o do risco de cárie. Acrescenta que outras variáveis
uso do flúor nas fontes de abastecimento públi- somam-se às relatadas na tríade de Keyes. Preco-
co. A formação profissional caracteriza-se pelo niza fatores etiológicos e não etiológicos para
aprofundamento do modelo flexneriano de en- avaliação predecessora do risco: os primeiros são
sino, que ao invés de impulsionar a odontologia considerados o risco verdadeiro ou a causa da
para uma cultura científica totalizada, acentua o doença e são localizados no Streptococos mutans,
pensar mecanicista, baseado em alta tecnologia e a contagem de bactérias preconizada por Bo Kras-
especialização e numa prática distante da reali- se é o indicador de risco apontado. Os não etio-
dade social, ou mesmo de forma a negá-la. lógicos são aqueles relacionados à ocorrência da
Ao final da década de 1980, Bo Krasse já con- doença como os fatores socioeconômicos: ren-
sidera o declínio da prevalência da doença de da; fatores psicossociais como atitudes saudá-
maneira marcante nos países desenvolvidos e veis; variáveis clínicas como dentes obturados e
atribui este declínio ao aumento da resistência fatores laboratoriais como nível salivar de cálcio.
dentinária conseguida devido ao maior uso do Bokhout et al.6 problematizam a necessidade
flúor. Aponta como preditor de cáries uma “con- de um novo modelo coerente de doença. Anali-
tagem de bactérias”. Ernest Newbrum4 modifica sam que o modelo da “causa suficiente” pode ser
de forma subliminar a tríade de Keyes, acrescen- ponto de partida para o seu desenvolvimento,
tando um quarto fator: o tempo. O que não alte- levando-se em conta, também, fatores de risco
ra de forma substancial este modelo multicausal “independentes” (saliva, flúor, higiene oral e die-
centrado no biológico. ta) que interagem com o componente de causa
A partir de meados da década de 1990, os como um protetor, bem como no comportamen-
autores passam a observar uma diminuição na to de auto-risco. Este modelo para cáries dentais
prevalência da doença cárie aos doze anos de ida- é um modelo biológico no qual distinções entre
de, primeiramente nos países desenvolvidos com protetores e fatores de aumento de risco são fei-
o acometimento desigual da enfermidade em gru- tos. Com este modelo, seria possível avaliar a
pos populacionais distintos. Vários estudos bus- extensão do relacionamento entre um determi-
cam as razões para este fenômeno, identificando nante (fenômeno externo) e cáries dentais, fa-
uma crise no campo das explicações de causali- zendo distinção entre fatores causais e proteto-
dade da doença. Os modelos unicausais ou mul- res, efeitos modificadores e confounders, usando
ticausais calcados no biológico não conseguem técnicas multivariadas.
refletir as mudanças no padrão de adoecer. Fleck Numa tendência distinta, Thylstrup e Fejer-
diria que esta ciência entra num momento onde skov apontam que alguns modelos multifatori-
as “complicações” adquirem forma e traduzem a ais sugeriram o abandono da terminologia tra-
necessidade de transformação do estilo de pen- dicional de causas para a categoria mais ampla e
samento. A partir daí, são sustentadas propos- não específica de determinantes. Utilizam, então,
tas teóricas com distintas construções em torno as categorias “fatores determinantes” e “fatores
do macro estilo de pensamento “odontológico” confundidores”. A relação entre a placa dentária
ou “biologicista” e identificam-se cinco tendênci- e os múltiplos determinantes biológicos que in-
as à sua transformação. fluenciam a probabilidade de se desenvolver a
A tendência hegemônica, encontrada na mai- lesão são considerados fatores determinantes. Os
oria dos artigos, é balizada no esquema propos- autores mantêm o núcleo no pensamento biolo-
to por Keyes como causa suficiente. Nestes arti- gicista, vistas as relações de forma mais comple-
gos, busca-se entender a relação dos componen- xas, e acrescentam como fator “complicador” o
tes da tríade e cárie de raiz, cárie secundária, cárie social. Thylstrup et al.7 desenvolvem investiga-
em bebês, modificações na dieta, efeitos iatrogê- ções sobre a remineralização de esmaltes com
nicos de aparelhos ortodônticos, relação com manchas brancas, trabalhando com pesquisas
doenças sistêmicas, doenças crônico-degenerati- em modelos de cárie in situ, que segundo Fejer-
vas, síndromes, HIV, cigarros, goma de mascar skov et al.8, podem ser capazes de obter resulta-
com adoçantes, genética do Streptococus mutans dos similares àqueles calculados em ensaios clí-
e materiais restauradores. nicos. Tentam reproduzir laboratorialmente as
Outra tendência situa-se na visão biológica condições da cavidade bucal e conseguem acom-
com a incorporação da epidemiologia. Virgínia panhar a progressão das cáries do esmalte em
Powell 5 afirma que 60 % ou mais de casos de dente vital (in vivo), permitindo estudos repeti-
cárie desenvolvem-se em apenas 20 % da popu- dos sem ser do mesmo indivíduo (in situ).
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As variáveis sociais são simplificadas e locali- cos mutans desenvolvem alta prevalência de cá-
zadas; por isto, os condicionantes sociais não são rie. Mas, outros estudos têm mostrado que al-
observados como determinantes do processo. O gumas crianças com alta infecção por Streptoco-
ver dirigido (Fleck) do observador exclui do cam- cos mutans e outras com baixa infecção têm alta
po de investigação a possibilidade de um dese- taxa de cárie.
nho mais totalizante. Este coletivo de pensamen- 3. As cáries de mamadeira são o mais signifi-
to pode ser considerado como de cientistas que cante problema em crianças pré-escolares, onde
possuem uma visão clínica, individualizada e é demonstrada clara combinação entre alta in-
compartimentalizada do fenômeno, que utilizam gestão de sacarose e infecção por Streptococos
tecnologia de ponta e incorporam dados epide- mutans como fatores de risco.
miológicos de maneira simplificada. Apropriam- 4. Embora a presença de cáries seja um dos
se da estatística e epidemiologia, mas conside- melhores preditores de incidência, é uma avalia-
ram o meio social/comportamental como fator ção de risco insatisfatória, pois é usada apenas
confundidor. Mesmo se tratando de autores de- quando uma pessoa já foi afetada pela doença.
tentores de uma visão clínica da doença, adap- 5. Escovação tem sido componente básico em
tam a nova realidade ao velho esquema, desta programas preventivos, mas estudos não têm
maneira, transformando-o. A partir das insti- demonstrado consistência na relação entre re-
tuições de ensino superior, são adotadas postu- moção de placa dental e prevalência de cárie.
ras clínico-preventivistas-individuais em detri- 6. Fatores sociodemográficos, tais como edu-
mento da pouca ou nenhuma ênfase dada a tra- cação de pais, ocupação dos pais, status de po-
balhos junto às populações. Podem ser citadas breza e raça ou etnia, também têm recebido aten-
como vantagens deste enfoque o quase esgota- ção como fatores de risco de cáries. Numa visão
mento teórico no que se refere ao estudo clínico e de conjunto, crianças de alta classe social têm
minucioso da enfermidade. baixo nível de cárie.
Em outra clara tendência estão autores que 7. Fatores de risco de cárie na família podem
consideram os fatores biológico, social e psicoló- ser associados com genética e fatores do meio
gico com peso igual. Reisine et al. 9 indicam que ambiente, tais como: hábitos similares de alimen-
numerosos estudos nos Estados Unidos, entre tação, similar prática de higiene oral, similar ex-
outros, demonstram um consistente achado en- posição ao flúor e similar condição dental. Adici-
tre baixo status socioeconômico e baixa utiliza- onalmente, há evidências de amostras similares
ção de serviços dentais, altas taxas de edentulis- de Streptococos mutans entre membros da mes-
mo, incremento do risco de cárie, baixo status de ma família.
higiene oral e pouca adesão a recomendações de 8. Um modelo de risco de cárie usando uma
comportamento saudável em prevenção dental. combinação do biológico, do social e variáveis
Afirmam que a odontologia já domina os fatores psicológicas dá maior compreensão do processo
biológicos e os dentistas estão tornando-se mais de desenvolvimento de cárie que usando variá-
conscientes do papel dos fatores não-biológicos veis biológicas somente.
na etiologia e administração das doenças dentais. Na odontologia, a adaptação a estas mudan-
Litt et al.10 consideram que este modelo tem sido ças na avaliação de risco (para atingir aqueles in-
explorado em uma variedade de problemas de divíduos que desenvolverão a doença) e a prática
saúde, estendendo-se das doenças de pulmão à baseada na prevenção entram em conflito com a
esquizofrenia. Portanto, é altamente relevante para tradição de serviço por honorários. Apesar disto,
o dentista um modelo biopsicossocial, visto que segundo o autor, as escolas de odontologia estão
somente variáveis biológicas têm limitado a habi- partindo para o esforço de integração da avalia-
lidade para predizer risco de cáries. ção de risco com os cuidados ao paciente.
Tinanoff 11 destaca alguns aspectos essenci- Outra tendência é caracterizada por autores
ais para uma nova e necessária visão da doença: que sustentam a importância de fatores sociais
1. O consumo de açúcar ainda é considerado na causalidade da doença. Hunter12 afirma que,
fator mais importante na etiologia da cárie. Mas desde Miller, a teoria químico-parasitária é su-
estudos, como os de Burt et al., não têm funda- portada ainda com mais evidências, mas na iden-
mentado uma consistente correlação entre relato tificação do processo biológico, os fatores são li-
de freqüência no consumo de açúcar e experiên- mitados a um local, uma operação dentro da boca
cia de cárie em humanos. humana. O diagrama de Keyes identificaria os
2. Estudos clássicos da odontologia mostram fatores de risco locais para cárie. Como fatores de
que crianças com grande infecção por Streptoco- risco gerais, acrescenta os fatores sociais, já inves-
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Gomes, D. & Da Ros, M. A.

tigados há algum tempo na sua relação com a tes amplos de saúde. No debate sobre as limita-
cárie. O autor afirma que um grande número de ções da abordagem do estilo de vida, Sheiham
estudos tem mostrado que a experiência de cárie é identifica que o papel da causação no comporta-
mais alta em classes sociais mais baixas do que mento individual tem sido exagerado.
em classes sociais mais altas; que status famili- Há fortes indicativos que apontam fatores
ar, performance escolar, mudança de dieta rela- mais diretamente relacionados com a estrutura
cionada ao padrão socioeconômico, experiên- social como sendo poderosos agentes etiológi-
cia de cárie, idade e educação dos pais são vari- cos. Desigualdade na saúde não é fundamentada
áveis que identificam estes fatores sociais. apenas na relação rico/pobre, mas numa relação
Woolfolk13, ao discutir um modelo de res- em declive, pessoas no topo do estrato são mais
ponsabilidade social para a odontologia, afirma saudáveis do que aquelas apenas abaixo destas, e
que paciente com maior história de doença tem assim por diante. Isto sugere que comportamen-
freqüentemente se servido menos de cuidados e to relatado de saúde não é uma simples liberda-
que uma mudança na forma de encarar os cui- de de escolha, mas significantemente determina-
dados dentais faz-se necessária. Tradicionalmen- do pelo meio social em que pessoas vivem e tra-
te, os serviços de odontologia são prestados em balham. Comportamento e estilo de vida são
troca de pagamento, segundo o autor, um méto- problemas relatados no meio social e cultural,
do inaceitável quando cada vez menos pessoas taxados como problemas do indivíduo.
podem pagar. O código de ética da ADA (Ameri- O autor sustenta a idéia de que ações para
can Dental Association) preconiza que os dentis- mudança de comportamento específico de saúde
tas devem usar sua especialidade, conhecimento oral não se fazem tão eficientes quanto amplas
e experiência para melhorar a saúde dental das estratégias de promoção de saúde focadas na re-
pessoas, encorajando-as a assumir um papel de dução de algumas doenças. Existem fatores de
liderança em suas comunidades. Mas parece que risco em comum com importante número de
a prática dos profissionais não está refletindo doenças crônicas como cardiovasculares, cânce-
este modelo de responsabilidade social. A reali- res e injúrias. Os programas de saúde bucal têm
dade do nível de pobreza ascendente nas décadas sido desenvolvidos isolados de outras iniciativas
de 1980 e 90 na população norte-americana traz de saúde, o que pode levar a uma duplicação no
implicações para o modelo de responsabilidade esforço e em mensagens conflitantes e contradi-
social, visto que o não tratamento de doenças tórias transmitidas ao público15, sem alcance a
orais é consideravelmente mais agudo entre pes- soluções coletivas como ações da comunidade
soas pobres e o investimento de recursos para que suportem mudanças no meio, legislação,
saúde pública vem diminuindo. Até mesmo o melhora de pessoal técnico, estímulo à que as
atendimento que vinha sendo desenvolvido nas pessoas sejam reivindicadores na sociedade e
universidades com baixo ou nenhum custo está mudanças coletivas na estrutura com determi-
agora sendo direcionado ao lucro. nações de saúde. A chave do conceito para um
Sheiham14 enfatiza que os métodos de educa- enfoque integrado de risco comum é esta pro-
ção em saúde da boca, como estão sendo utiliza- moção de saúde geral, que tem maior impacto
dos, não são apenas relativamente ineficientes, em um grande número de doenças com um bai-
mas também muito caros em termos financeiros xo custo, alta eficiência e efetividade, mais do que
e de recursos humanos. O público está, portan- o enfoque específico da doença.
to, progressivamente tornando-se cético e can-
sado de mensagens de saúde, visto que estas es-
tratégias são teoricamente defeituosas. O con- Discussão
traste deste pensamento com a abordagem co-
mumente usada em saúde da boca, ou seja, a Com a iniciativa de governos em diminuir os
teoria dominante sobre saúde e doença, está na custos com a saúde e em resposta aos modelos
determinação da saúde, principalmente, por fa- socialistas e de bem-estar social europeus que
tores político-sociais. Negar a necessidade de de- mantinham como prioridade ações preventivas,
senvolvimento de políticas sociais efetivas para o uso sistemático do flúor foi ampliado e incor-
auxílio à saúde em favor da concentração dos porado à prática de saúde pública já na década
problemas no comportamento de saúde indivi- de 1970. O coletivo odontológico, antes de influ-
dual não é apenas uma super simplificação, mas enciar com sua prática hegemônica clínico-indi-
uma evasão de responsabilidade. Concentrar a vidual a queda na prevalência da doença, vê nas
atenção em estilo de vida obscurece determinan- ações preventivas em larga escala um dos gran-
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des responsáveis pelas mudanças no padrão de a abordagem da medicina clínica não consegue
adoecer, especialmente aos doze anos de idade. A as melhorias das condições de saúde das coletivi-
fluoretação das águas de abastecimento público dades, aciona o questionamento da concepção
e incorporação do flúor aos dentifrícios vão in- de doença como fenômeno biológico individu-
terferir mais sobre o entendimento do processo al16. Assim, as complicações advindas do conflito
saúde-doença quando sentidos os efeitos da sua biológico e social se refletem na teoria e na práti-
atuação na diminuição da prevalência da cárie, ca odontológica. O conceito de determinação
do que propriamente na sua utilização conscien- social das doenças, adormecido pela fúria das
te pelo coletivo dos dentistas. descobertas da bacteriologia e as explicações do-
Além disto, o padrão de vida das sociedades minantes positivistas ou neopositivistas de cau-
modernas e urbanizadas caminha no sentido de salidade, volta à tona no momento onde o pós
manterem estabilizadas, ou pelo menos contro- “era do ouro” conturbado desencaixa o quebra-
ladas, doenças de caráter infecto-contagioso como cabeça das relações socioeconômicas e o sistema
a cárie, apesar de grandes desigualdades no pa- entra em crise de respostas. Traz, assim, uma crí-
drão de adoecer, que seguem os antagonismos na tica histórico-estrutural da fragilidade e fragmen-
distribuição da riqueza socialmente produzida. A tação das análises e propostas práticas da feno-
explicação dos fenômenos ligados à saúde, por- menologia e positivismo, e floresce respondendo
tanto, se encaixa nesta disputa ideológico-teórica, aos anseios da sociedade.
que foca a relação da medicina com a estrutura No Brasil, no processo de construção do Sis-
social, a efetividade da ação médica e os determi- tema Único de Saúde (SUS), estabeleceu-se um
nantes sociais da doença. Até a década de 1970, confronto entre o complexo médico-industrial e
estava garantido o predomínio do pensamento o movimento sanitário. Todos estes movimen-
positivista, dado pelo poder de transformação tos que conflitavam com o complexo médico in-
social das instituições médicas e do efeito positivo dustrial propugnavam a construção de um sis-
do desenvolvimento econômico sobre a saúde. tema de saúde mais humanizado, que diminuís-
O crescimento das forças produtivas nas dé- se os determinantes de doença da população,
cadas de 1950/60 e sua relação de desigualdade na além da luta pela redemocratização do país. Par-
distribuição da renda, bem como os reflexos das te deste movimento vai acontecer dentro das aca-
conquistas no campo social, geram movimentos demias para instrumentalizar cientificamente a
reivindicatórios. São assinalados os efeitos nega- proposta de transformação. Distintamente da
tivos da medicalização e o caráter das instituições Saúde Pública, é construído o campo de investi-
médicas. Surgem programas alternativos de au- gação denominado de Saúde Coletiva17. Este pas-
tocuidado da saúde, atenção primária, revitaliza- sa a refletir as mudanças qualitativas e transfere
ção da medicina tradicional, participação comu- o principal debate do foco biológico para os fo-
nitária na atenção à saúde, etc. Os Estados, assu- cos: grupos, classes e relações sociais referidos ao
mindo uma política de redução nos gastos soci- processo saúde-doença. Está posto na ordem do
ais, estimulam a utilização e incorporam muitas dia necessidades de conquistas sociais profun-
destas ações alternativas baratas. No campo da das para a maioria da população com a revisão e
epidemiologia, a tendência ecológica eclode com avaliação de um sistema de saúde defasado do
o estabelecimento de regras básicas da análise epi- diagnóstico das necessidades e aspirações soci-
demiológica (incidência e prevalência, delimita- ais. Através do estudo dialético, saúde/doença
ções do conceito de risco, adoção da bioestatística passa a ser tratado como categoria histórica,
como instrumento analítico de escolha). Com a como um processo fundamentado na base ma-
introdução da computação eletrônica, as pesqui- terial de sua produção e com as características
sas desta área sofrem uma verdadeira revolução, biológicas e culturais com que se manifesta18.
tomando novo impulso. Já na década de 1990, o panorama mundial
Ao mesmo tempo em que a multicausalidade apresenta uma alteração significativa com a crise
torna-se uma visão hegemônica, a discussão se a do socialismo real e a aplicação do ideário neoli-
doença é essencialmente biológica ou social é re- beral. As principais características deste ideário
tomada. A dificuldade na geração de conheci- são de exclusão de políticas sociais, sufocamento
mentos e conceitos explicativos sobre as mudan- de movimentos sociais e sindicais e a lógica do
ças nos padrões de adoecer e morrer das socie- mercado ditando as regras na saúde e educação.
dades industrializadas (as cardiopatias, proble- O processo de implementação sistemática destas
mas vasculares e doenças crônico- degenerati- ações traz um impacto na produção científica da
vas), aliada a uma crise na prática médica, onde saúde coletiva, onde novos eixos são procurados
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Gomes, D. & Da Ros, M. A.

para dar as respostas teóricas e práticas à crise Esta contextualização da formação profissio-
do movimento social. Autoras como Bodstein et nal, calcada na prática e com significativa distân-
al.19 defendem que o desafio dos novos tempos cia da teoria científica, passa a experimentar trans-
está na compreensão da tendência de consolida- formações e estrutura-se concomitante à medici-
ção de uma sociedade crescentemente individua- na, mais propriamente a partir da década de 1960,
lista. Propõem um marco teórico “pós-moder- no modelo flexneriano de ensino universitário.
no” que focaliza aspectos culturais e subjetivos, Estas transformações acompanham as mudan-
contidos em grupos nos indivíduos em si. ças experimentadas pela sociedade brasileira, que
No bojo deste debate, a odontologia coletiva expressa forte crescimento econômico, industrial
passa a evidenciar os contrastes relacionados à e urbano, marcado por uma imensa desigualda-
doença e classe social, que representam outro de social, tornando-se mais complexa e com ele-
aspecto da relação do meio social com a preva- vada tecnologia. Com um crescimento notável no
lência da doença, traduzido na forma desigual número de cirurgiões-dentistas em atividade no
com que a cárie é sentida em grupos populacio- país, forma-se a corporação, que impulsiona a
nais distintos. O avanço da microeletrônica e da criação do Conselho Federal de Odontologia
bioestatística dá suporte ao desenvolvimento e (CFO) e os Conselhos Regionais (CRO)23.
aplicação da epidemiologia, que joga importante Mas, longe de impulsionar a odontologia para
papel na “ciência odontológica”, quando demons- uma cultura científica de uma forma totalizada,
tra a realidade social da cárie. Além das mudan- este modelo acentua o pensar mecanicista, base-
ças na prevalência e severidade da doença, a ina- ado em alta tecnologia e especialização e numa
dequação da prática odontológica vigente no prática distante da realidade social, ou mesmo
país, “centrada nas ações clínico-cirúrgicas indi- de forma a negá-la. Desta maneira, caracteriza-
viduais e em enfoques biologicistas em detrimen- se pelo biologicismo “que pressupõe o reconhe-
to da compreensão e enfrentamento dos deter- cimento, exclusivo e crescente, da natureza bioló-
minantes sociais do processo saúde-doença”20, gica das doenças e de suas causas e conseqüênci-
leva a uma hegemonia ainda maior do mercado as”; pela natureza individual de seu objeto e con-
na saúde em detrimento das necessidades da cepção mecanicista do homem, com crescente
maioria da população. O que pode representar corporização do conhecimento em tecnologia de
um antagonismo existente entre as transforma- alta densidade de capital e predominância da es-
ções na teoria e a prática curativa. pecialização. Portanto, as faculdades de odonto-
Ao longo de sua história, a odontologia veio logia brasileiras poderiam ser consideradas es-
se organizando sem dar grande importância aos paços de difusão ideológica de uma prática des-
aspectos científicos da profissão e com uma gran- tituída de função social e que estaria em crise,
de tradição de não-legalização de sua prática. A dado sua ineficácia, ineficiência, desigualdade de
utilização de todo aparato técnico restaurador se acesso e iatrogenicidade24.
forma no século XIX e continua, com muita ênfa- No Brasil dos anos 1980, acompanhando
se, avançando durante todo o século XX. O den- todo um momento de mobilização social pelo
tista incorpora a característica de artesão “um téc- fim da ditadura, eclode nas Conferências Nacio-
nico – talvez o primeiro estabelecido da atenção nais de Saúde a constatação de que os recursos
médica – interpretado pela população como al- humanos em odontologia eram inadequados
guém que irá realizar um trabalho que começa e para as resoluções dos problemas de saúde bucal
termina no ato executado”21. A “descoberta” do da população brasileira. Aprofundam-se, então,
micróbio da cárie veio embasar “cientificamente” e apesar da visão biologicista hegemônica, as ações
a profissão nascente na idéia da unicausalidade. A preventivas com amplo espectro de ação popu-
biologização do conceito de causa entrelaça-se com lacional e as pesquisas que trarão respostas tam-
a biologização desta odontologia. Para Botazzo22, bém no campo da odontologia social ou coleti-
a boca que fazia parte do discurso e pensamento va. Mas, Costa et al.25 demonstram que, apesar
médico da época (estomatológico), diferenciou- dos esforços na implementação do SUS, os indi-
se dando lugar à corporação dos dentistas. A sis- víduos localizados no estrato mais baixo de ren-
tematização dos conhecimentos de então, sobre a da apresentaram, nos anos de 1998 a 2003, pio-
cavidade num corpo teórico que deveria propor- res condições de saúde, pior função física e me-
cionar maior eficácia a uma intervenção clínica, nor uso de serviços de saúde. A incorporação do
“não toma nem a doença nem o doente geral como dentista ao PSF (Programa de Saúde da Famí-
seu objeto, mas ao contrário, é apenas um lugar lia), o programa Brasil sorridente e uma nova
doente que lhe servirá de emulação”. visão humanista do acolhimento e atenção à saú-
1089

Ciência & Saúde Coletiva, 13(3):1081-1090, 2008


de com ênfase no trabalho interdisciplinar surge que as seguem passam a ter legitimidade científi-
como política de Estado prioritária a partir do ca e se convertem em fato científico. Portanto, a
último governo26. O que reflete uma necessidade dependência de qualquer fato científico ao estilo
represada nas últimas décadas no Brasil de de- é evidente e uma coerção do pensamento é pre-
mocratização no acesso à odontologia. parada, disponibilizada intelectualmente e orien-
Assim, as complicações advindas do conflito tada a ver e atuar de uma forma e não de outra.
biológico-social refletem-se na teoria e na práti- Esta coerção dos indivíduos determina “o que
ca, na virada para o século XXI. A conceitualiza- não pode pensar-se de outra forma”. Uma vez
ção da multicausalidade biologicista concebida que se tem formado um sistema de opiniões es-
como “verdade científica” passa a ser colocada truturalmente completo e fechado, composto por
em xeque, tanto pelo que pode chamar-se de ci- numerosos detalhes e relações, este persistirá te-
entista constituidor deste estilo de pensamento, nazmente frente a tudo que o contradiga.
como pelos que advogam uma odontologia com Deriva-se disto que toda teoria científica tem
caráter social. A busca pela explicação deste fe- uma época de classicismo, em que só existem ei-
nômeno de declínio da doença passa a tomar xos que encaixam perfeitamente nela e outra de
espaço privilegiado na ciência odontológica. Esta complicações, onde começam a aparecer as exce-
procura faz com que muitos autores adotem uma ções. Ao final, as exceções superam os casos re-
explicação simplista, centrando a análise unica- gulares. Desta forma, o descobrimento e a
mente na disseminação de fluoretos nas últimas transformação estão entremesclados insepara-
décadas. Fugindo deste referencial, outros auto- velmente com o erro. Para reconhecer uma rela-
res adotam uma visão mais totalizadora do pro- ção, se tem que mal interpretar, negar e passar
cesso, associando este fator como um dos mui- por cima de muitas outras. Desta maneira, a ten-
tos determinantes que podem explicar esta mu- dência à persistência significa uma fixação da idéia
dança, aliado a “consumo de açúcar”, “propa- que vai além da estruturação de opiniões, mas
gandas de produtos de higiene bucal”, “progra- que está intrinsecamente ligada a esta, e que vai
mas escolares preventivos”27, urbanização, etc. além das observações empíricas, para ancorar-
De qualquer forma, o impacto sobre a “ciência se na consciência, na tradição, na psique da elite
odontológica” estabelece-se numa tendência à científica (círculo esotérico) e das massas (círcu-
transformação do estilo de pensamento. lo exotérico). Isto nos leva a entender que as con-
Somente na segunda metade da década de cepções não são sistemas lógicos, apriorísticos,
1990, mas precisamente com Thylstrup e Fejer- mas tradução de estilos de pensamento ligada a
skov, a teoria vai incorporar este “papel do soci- uma concepção de mundo.
al”, mesmo que de forma tímida e fazendo-se en- Esta concepção “lógica” é transformada em
caixar nos moldes do estilo de pensamento tradi- uma harmonia das ilusões, ou seja, em verdades
cional-biologicista, onde o social é identificado científicas como verdades absolutas de uma épo-
como um fator confundidor e não determinante. ca e que tendem a permanecer como estruturas
As mudanças tecnológicas e o avanço no conheci- rígidas e persistentes. Se uma concepção impreg-
mento e domínio humanos sobre a natureza de na suficientemente forte a um coletivo de pensa-
maneira geral trazem à tona uma complexa rede mento, de tal forma que penetra até na vida diá-
causal que vai muito além da tríade de Keyes e que ria e nos usos lingüísticos e cai convertida no
merece destaque em nossa avaliação. As compli- sentido literal da expressão, em um ponto de vis-
cações, que a nosso ver relacionam-se às mudan- ta, então uma contradição parece impensável. É
ças no padrão da doença, impulsionam as altera- muito importante o papel que a tendência à per-
ções na teoria. As “verdades científicas” são pos- sistência dos sistemas de opinião como totalida-
tas à prova. A partir destas contradições, perce- de fechada joga na operação de conhecimento.
bem-se mudanças na forma de ver a doença e Um sistema deste tipo, fechado e de acordo com
identificam-se, a partir deste trabalho, cinco ten- um estilo, não é permeável espontaneamente a
dências de transformação na teoria etiológica da nenhuma inovação. Tudo é reinterpretado até
doença cárie. fazer-se de acordo com o estilo de pensamento.
Segundo Fleck, o sucesso histórico de um es- Em uma época de classicismo da teoria, os
tilo de pensamento se particulariza nas forças do fatos são construídos e se encaixam para com-
coletivo de pensamento em coercitivo e repetiti- por o corpo científico do estilo e uma contradi-
vo, ou seja, em conhecimento objetivo e aparen- ção parece impensável e inimaginável. Desta ma-
temente real. Estas atitudes definem o estilo de neira, parece impossível à ciência odontológica
pensamento específico da ciência e os trabalhos tradicional ou “biologicista” observar sob o ponto
1090
Gomes, D. & Da Ros, M. A.

de vista da “doença social”. O conceito parte sem- alteração hegemônica da teoria e a transição para
pre de seu núcleo biológico para extrapolar no um novo estilo de pensamento é condicionada
social desqualificado. Tanto assim ocorre, que a por mudanças que vão além deste debate teórico
avaliação de risco ainda se dá de forma individu- puro. Transcendem a este estudo respostas soci-
alizada e a contagem de bactérias de Bo Krasse ais ao impacto destas teorias em transformação
ainda é o preditor de risco de cáries mais citado e na prática cotidiana do profissional da odonto-
utilizado. Mas ele é um preditor clínico-biológi- logia do século XXI.
co, não epidemiológico e social.
Com o esforço de uma observação dialética,
constata-se que a necessidade do novo entra em
contradição com o pensamento tradicional con-
solidado ou a tendência à persistência. Abre-se o Colaboradores
espaço obrigatório à época das complicações,
onde aparecem as exceções e os fatos que não D Gomes trabalhou na concepção e redação do
conseguem ser naturalizados. Esta nova realida- artigo e MA Da Ros trabalhou na revisão crítica
de impulsiona a transformação do estilo, mas a do artigo.

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