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Doris Gomes 1
Marco Aurélio Da Ros 2
Abstract This study deals with the construction Resumo Este artigo trata da construção do esti-
of the Odontological Thought Style about the eti- lo de pensamento odontológico baseado na etio-
ology of caries. As a reference we use the theory of logia da cárie. Tem como referencial a epistemo-
Ludwik Fleck (1896 –1961) maintaining that logia de Ludwick Fleck (1896-1961),na qual o
knowledge is a result of social activity and that conhecimento é o resultado da atividade social e
each individual with certain knowledge belongs to cada conhecedor pertence a um coletivo e um
a certain cultural environment, a thought-collec- estilo de pensamento. O estudo das transforma-
tive sharing the same thought-style. The sources ções na teoria foi desenvolvido através de livros
used for studying the transformations in the theo- clássicos e artigos coletados no Medline/Pubmed,
ry were classic literature and a universe of 161 com as palavras-chave: dental caries/etiology/
articles published between 1980 and 2001, selected theoretical, de 1980 a 2001, um universo de 161
from the Medline/Pubmed base using the key words artigos selecionados. Na construção histórica do
dental caries/etiology/theoretical. Based on the conhecimento etiológico, apontou-se um macro-
analysis of these articles and books we identified a estilo de pensamento caracterizado como multi-
macro style of thinking characterized as multi- causal-biologicista. Foram identificadas cinco
causal-biologicist transforming the etiological tendências à transformação do estilo: a biologi-
knowledge mainly since the mid 90s. In this stage, cista, que segue o modelo proposto por Keyes; a
in which the period of classicism of the theory does clínico-epidemiológica, que incorpora algumas
not respond any more to the reality of the disease características da visão epidemiológica junta-
revealed in epidemiological studies, five distinct mente com a ciência clínica tradicional; a clíni-
trends could be identified: the biological; the clin- co-biologicista, localizada nas figuras de Thyls-
ical-biological; the clinical-epidemiological; the trup e Fejerskov, considera as evidências epide-
biopsychosocial and the social. Thus, one of the miológicas, mas parte de uma visão clínica da
challenges posed to odontology today is to trans- boca em direção ao meio externo; a biopsicosso-
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Núcleo Florianópolis de form its thought-style adapting it to the new social cial, que acolhe num mesmo patamar os fatores
Bioética, SOEBRAS/
FUNORTE. Rua Trajano 265,
reality of the disease. biológicos, psicológicos e sociais; e a social, que
sobreloja Centro. Key words Etiology of caries, Fleck, Thought- propõe formas de abordagem da doença partin-
88010-010. Florianópolis style do-se do geral para o específico.
SC. dorisgomes@bol.com.br
2
Departamento de Saúde
Palavras-chave Etiologia da cárie, Fleck, Estilo
Pública, Universidade de pensamento
Federal de Santa Catarina.
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Gomes, D. & Da Ros, M. A.
tigados há algum tempo na sua relação com a tes amplos de saúde. No debate sobre as limita-
cárie. O autor afirma que um grande número de ções da abordagem do estilo de vida, Sheiham
estudos tem mostrado que a experiência de cárie é identifica que o papel da causação no comporta-
mais alta em classes sociais mais baixas do que mento individual tem sido exagerado.
em classes sociais mais altas; que status famili- Há fortes indicativos que apontam fatores
ar, performance escolar, mudança de dieta rela- mais diretamente relacionados com a estrutura
cionada ao padrão socioeconômico, experiên- social como sendo poderosos agentes etiológi-
cia de cárie, idade e educação dos pais são vari- cos. Desigualdade na saúde não é fundamentada
áveis que identificam estes fatores sociais. apenas na relação rico/pobre, mas numa relação
Woolfolk13, ao discutir um modelo de res- em declive, pessoas no topo do estrato são mais
ponsabilidade social para a odontologia, afirma saudáveis do que aquelas apenas abaixo destas, e
que paciente com maior história de doença tem assim por diante. Isto sugere que comportamen-
freqüentemente se servido menos de cuidados e to relatado de saúde não é uma simples liberda-
que uma mudança na forma de encarar os cui- de de escolha, mas significantemente determina-
dados dentais faz-se necessária. Tradicionalmen- do pelo meio social em que pessoas vivem e tra-
te, os serviços de odontologia são prestados em balham. Comportamento e estilo de vida são
troca de pagamento, segundo o autor, um méto- problemas relatados no meio social e cultural,
do inaceitável quando cada vez menos pessoas taxados como problemas do indivíduo.
podem pagar. O código de ética da ADA (Ameri- O autor sustenta a idéia de que ações para
can Dental Association) preconiza que os dentis- mudança de comportamento específico de saúde
tas devem usar sua especialidade, conhecimento oral não se fazem tão eficientes quanto amplas
e experiência para melhorar a saúde dental das estratégias de promoção de saúde focadas na re-
pessoas, encorajando-as a assumir um papel de dução de algumas doenças. Existem fatores de
liderança em suas comunidades. Mas parece que risco em comum com importante número de
a prática dos profissionais não está refletindo doenças crônicas como cardiovasculares, cânce-
este modelo de responsabilidade social. A reali- res e injúrias. Os programas de saúde bucal têm
dade do nível de pobreza ascendente nas décadas sido desenvolvidos isolados de outras iniciativas
de 1980 e 90 na população norte-americana traz de saúde, o que pode levar a uma duplicação no
implicações para o modelo de responsabilidade esforço e em mensagens conflitantes e contradi-
social, visto que o não tratamento de doenças tórias transmitidas ao público15, sem alcance a
orais é consideravelmente mais agudo entre pes- soluções coletivas como ações da comunidade
soas pobres e o investimento de recursos para que suportem mudanças no meio, legislação,
saúde pública vem diminuindo. Até mesmo o melhora de pessoal técnico, estímulo à que as
atendimento que vinha sendo desenvolvido nas pessoas sejam reivindicadores na sociedade e
universidades com baixo ou nenhum custo está mudanças coletivas na estrutura com determi-
agora sendo direcionado ao lucro. nações de saúde. A chave do conceito para um
Sheiham14 enfatiza que os métodos de educa- enfoque integrado de risco comum é esta pro-
ção em saúde da boca, como estão sendo utiliza- moção de saúde geral, que tem maior impacto
dos, não são apenas relativamente ineficientes, em um grande número de doenças com um bai-
mas também muito caros em termos financeiros xo custo, alta eficiência e efetividade, mais do que
e de recursos humanos. O público está, portan- o enfoque específico da doença.
to, progressivamente tornando-se cético e can-
sado de mensagens de saúde, visto que estas es-
tratégias são teoricamente defeituosas. O con- Discussão
traste deste pensamento com a abordagem co-
mumente usada em saúde da boca, ou seja, a Com a iniciativa de governos em diminuir os
teoria dominante sobre saúde e doença, está na custos com a saúde e em resposta aos modelos
determinação da saúde, principalmente, por fa- socialistas e de bem-estar social europeus que
tores político-sociais. Negar a necessidade de de- mantinham como prioridade ações preventivas,
senvolvimento de políticas sociais efetivas para o uso sistemático do flúor foi ampliado e incor-
auxílio à saúde em favor da concentração dos porado à prática de saúde pública já na década
problemas no comportamento de saúde indivi- de 1970. O coletivo odontológico, antes de influ-
dual não é apenas uma super simplificação, mas enciar com sua prática hegemônica clínico-indi-
uma evasão de responsabilidade. Concentrar a vidual a queda na prevalência da doença, vê nas
atenção em estilo de vida obscurece determinan- ações preventivas em larga escala um dos gran-
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para dar as respostas teóricas e práticas à crise Esta contextualização da formação profissio-
do movimento social. Autoras como Bodstein et nal, calcada na prática e com significativa distân-
al.19 defendem que o desafio dos novos tempos cia da teoria científica, passa a experimentar trans-
está na compreensão da tendência de consolida- formações e estrutura-se concomitante à medici-
ção de uma sociedade crescentemente individua- na, mais propriamente a partir da década de 1960,
lista. Propõem um marco teórico “pós-moder- no modelo flexneriano de ensino universitário.
no” que focaliza aspectos culturais e subjetivos, Estas transformações acompanham as mudan-
contidos em grupos nos indivíduos em si. ças experimentadas pela sociedade brasileira, que
No bojo deste debate, a odontologia coletiva expressa forte crescimento econômico, industrial
passa a evidenciar os contrastes relacionados à e urbano, marcado por uma imensa desigualda-
doença e classe social, que representam outro de social, tornando-se mais complexa e com ele-
aspecto da relação do meio social com a preva- vada tecnologia. Com um crescimento notável no
lência da doença, traduzido na forma desigual número de cirurgiões-dentistas em atividade no
com que a cárie é sentida em grupos populacio- país, forma-se a corporação, que impulsiona a
nais distintos. O avanço da microeletrônica e da criação do Conselho Federal de Odontologia
bioestatística dá suporte ao desenvolvimento e (CFO) e os Conselhos Regionais (CRO)23.
aplicação da epidemiologia, que joga importante Mas, longe de impulsionar a odontologia para
papel na “ciência odontológica”, quando demons- uma cultura científica de uma forma totalizada,
tra a realidade social da cárie. Além das mudan- este modelo acentua o pensar mecanicista, base-
ças na prevalência e severidade da doença, a ina- ado em alta tecnologia e especialização e numa
dequação da prática odontológica vigente no prática distante da realidade social, ou mesmo
país, “centrada nas ações clínico-cirúrgicas indi- de forma a negá-la. Desta maneira, caracteriza-
viduais e em enfoques biologicistas em detrimen- se pelo biologicismo “que pressupõe o reconhe-
to da compreensão e enfrentamento dos deter- cimento, exclusivo e crescente, da natureza bioló-
minantes sociais do processo saúde-doença”20, gica das doenças e de suas causas e conseqüênci-
leva a uma hegemonia ainda maior do mercado as”; pela natureza individual de seu objeto e con-
na saúde em detrimento das necessidades da cepção mecanicista do homem, com crescente
maioria da população. O que pode representar corporização do conhecimento em tecnologia de
um antagonismo existente entre as transforma- alta densidade de capital e predominância da es-
ções na teoria e a prática curativa. pecialização. Portanto, as faculdades de odonto-
Ao longo de sua história, a odontologia veio logia brasileiras poderiam ser consideradas es-
se organizando sem dar grande importância aos paços de difusão ideológica de uma prática des-
aspectos científicos da profissão e com uma gran- tituída de função social e que estaria em crise,
de tradição de não-legalização de sua prática. A dado sua ineficácia, ineficiência, desigualdade de
utilização de todo aparato técnico restaurador se acesso e iatrogenicidade24.
forma no século XIX e continua, com muita ênfa- No Brasil dos anos 1980, acompanhando
se, avançando durante todo o século XX. O den- todo um momento de mobilização social pelo
tista incorpora a característica de artesão “um téc- fim da ditadura, eclode nas Conferências Nacio-
nico – talvez o primeiro estabelecido da atenção nais de Saúde a constatação de que os recursos
médica – interpretado pela população como al- humanos em odontologia eram inadequados
guém que irá realizar um trabalho que começa e para as resoluções dos problemas de saúde bucal
termina no ato executado”21. A “descoberta” do da população brasileira. Aprofundam-se, então,
micróbio da cárie veio embasar “cientificamente” e apesar da visão biologicista hegemônica, as ações
a profissão nascente na idéia da unicausalidade. A preventivas com amplo espectro de ação popu-
biologização do conceito de causa entrelaça-se com lacional e as pesquisas que trarão respostas tam-
a biologização desta odontologia. Para Botazzo22, bém no campo da odontologia social ou coleti-
a boca que fazia parte do discurso e pensamento va. Mas, Costa et al.25 demonstram que, apesar
médico da época (estomatológico), diferenciou- dos esforços na implementação do SUS, os indi-
se dando lugar à corporação dos dentistas. A sis- víduos localizados no estrato mais baixo de ren-
tematização dos conhecimentos de então, sobre a da apresentaram, nos anos de 1998 a 2003, pio-
cavidade num corpo teórico que deveria propor- res condições de saúde, pior função física e me-
cionar maior eficácia a uma intervenção clínica, nor uso de serviços de saúde. A incorporação do
“não toma nem a doença nem o doente geral como dentista ao PSF (Programa de Saúde da Famí-
seu objeto, mas ao contrário, é apenas um lugar lia), o programa Brasil sorridente e uma nova
doente que lhe servirá de emulação”. visão humanista do acolhimento e atenção à saú-
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de vista da “doença social”. O conceito parte sem- alteração hegemônica da teoria e a transição para
pre de seu núcleo biológico para extrapolar no um novo estilo de pensamento é condicionada
social desqualificado. Tanto assim ocorre, que a por mudanças que vão além deste debate teórico
avaliação de risco ainda se dá de forma individu- puro. Transcendem a este estudo respostas soci-
alizada e a contagem de bactérias de Bo Krasse ais ao impacto destas teorias em transformação
ainda é o preditor de risco de cáries mais citado e na prática cotidiana do profissional da odonto-
utilizado. Mas ele é um preditor clínico-biológi- logia do século XXI.
co, não epidemiológico e social.
Com o esforço de uma observação dialética,
constata-se que a necessidade do novo entra em
contradição com o pensamento tradicional con-
solidado ou a tendência à persistência. Abre-se o Colaboradores
espaço obrigatório à época das complicações,
onde aparecem as exceções e os fatos que não D Gomes trabalhou na concepção e redação do
conseguem ser naturalizados. Esta nova realida- artigo e MA Da Ros trabalhou na revisão crítica
de impulsiona a transformação do estilo, mas a do artigo.
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