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Florestan Fe ·rnandes
Professor da Universidade de São Paulo
lntroducão .:,
lise pode ser considerada de três ângulos distintos como técnica tera-
pêutica, como técnica e método de investigação, e como teoria sôbre o
comportamento humano procurarei expo -r os argumentos a serem de-
batidos segundo essa ordem didática .
'
132 Fll1rcstan Fer11andcs
lizacão
.,
de técnicas de investigação adequadas à natureza do objeto da
psic ·ologia n ão afetassem 11em a objetividade e a precisão das observa-
ções , nem o vigor da análise, nem o car ,áter indutivo e geral das ex-
plicações descobertas.
A situ ação clínica fêz com que a unidade básica de investigação
fôsse o paciente e com que a comu11icação verbal se constituísse como
o instru1nento fundamental da obse1·vação. Em semelhantes condi ções ,
o inve st igactor ti11ha que usar regularmente duas técnicas de investi-
gc::ção, que permitiam conhecer e reconstruir as experiências anteriores
ou atuais do pac ·iente: a entrevista e o estudo de caso, sendo que êste
tendia p ara o modêlo da história de vida, embora envolvendo também,
de modo parcial, o estudo de determinadas situações de convivência e,
especialmente, da família. A situação clínica ainda comportava amplo
aproveitamento da observação direta. Em si mesma, ela fornecia ao
investigador exemplos concretos da capacidade de ajustamento e de
interação emocional ou social do paciente; graças à aplicação de técni-
cas clínicas, c·omo a hipnose ou a transferência, fornecia um desdobra-
mento da observação direta, deveras fecu ·ndo para a descrição de rea-
ções ou de tendências dinâmicas, dificilmente acessíveis à simples co-
municação verbal. Para o es.tudo de símbolos e dos sonhos, êsses re-
cursos de investigação foram completados pe1o método comparativo.
Pode-se afirmar que essas técnicas e métodos de investigação permitiam
conhecer os processos mentais em têrmos de configurações da vida psí-
quic ·a e conduziam · diretamente à de ·scrição destas sob a tríplice pers-
pectiva da herança bio-psíquica, da participação da cultura e dos efei-
tos psicológicos da socialização.
Como a situação clínica oferecia uma base segura de observação,
de crítica e de seleção dos dados, a elaboração interpretativa de mate-
riais com sentido ou d•e conexões simbólicas podia se concentrar nos ca-
racteres essenciais dos proc ·essos mentais, descritos não obstante através
de casos particulares. Foi por isso que Freud conseguiu alcançar uma
solução para o problema da formação da inferência nas ciências sociais 7,
que não encontra p·aralelo na obra de nenhum out1·0 grande investiga-
dor. Partindo de procedimentos rigorosamente empírico-indutivos (no-
te-se: esta afirmação só se aplica às investigações feitas em situações clí-
nicas) , selecionava por meio · da análise as instâncias interpretativamente
releva11tes, agrupava-as para obter uma reconstrução sintética do fenô-
meno e, por fim, podia alimentar a c·onvicção íntima de lidar exclusi-
v amente com os caracteres típicos ou essenciais dos processos investi-
gados. Essa passagem do caso particular ao caso típico, às vêzes, é con -
seguida por vias tortuosas e discutíveis ou mediante certos artifícios in-
Psi c análise e Sociologia 135
sisten1a dessa ordem se pode1·ia dizer que êle não oferece limites pré-
fixados e inalteráveis à investigação científica. Daí a legitimidade da
aplica çã o do ponto de vista psicológico à investigação de situações que
poderi a m ser definidas, formalmente , como parte do objeto de outras .
disciplinas.
O me sn10 raciocínio poderia ser desenvolvido com referência às ou-
tras ciên cias sociais. Todavia, não é isso o que interessa aqui. Mas , sim ,
que à luz dêss ·es argumentos mt1itas das tentativ'as empreendidas po r
Freud ou outros in,,.7estigadores , são legítimas e necessárias do ponto de
vista ps icológi co. O psic ·analista não pode espe1·ar, de braços cruzados ,
que o b iólogo, o etnólogo ou o sociólogo resolvam certos problemas fun-
damen t a.is sê bre as relações da psique humana com o organismo, a cul-
tura e a sociedade. O que poderia oco1·re1· se1·ia que, depend .endo do ca-
ráter ma is ou menos específico dos problemas, êles nunca seriam re-
solvidos .. .
O resultado precedente permite colocar em novas bases as tão de-
batida s interp1·eta ·çÕes de Freud sôb1·e os fundamentos da vida grupal
e as origens da civilização. A análise que êle faz da importância da vida
grupal nas manifestações da libido e da influência de laços libidinais
nas relações dos membros do grupo com o líder ou entre si permite co-
loc·ar questões fundamentais, como as relativas à dinâmica do compor-
tamento ir1d1,1idual em situações grupais. O sociólogo nada tem a con-
testar e11quanto a análise permanece dentro de tais limites, podendo,
mesmo, beneficiar-se dela. Quando Freud vê nessas conexões um prin-
cípio para explicar a origem, a est1·utura e o funcionamento dos grupos,
a çoisa Inuda de figura. E' que, então, passa a considerar o fenômeno
em outro nível de int·egração, o do sistema da vida grupal, sem tomar os
necessários cuidados para redefinir a influência funcional ou causal da
libido dentro da nova constelação de f atôres ativos 10 • Raciocínio sim i-
lar se aplica às suas interpretações da formação e da evolução da ci-
vilização. A idéia de Freud de que o complexo de Édipo permite ex-
plicar a origem da civilização e as manifestações primordiais da reli-
gião, da mor ..~l, da sociedade e da arte encontra sérias objeções na socio-
logia. Já se disse que ela se baseia e·m construções conjecturais ( supo-
sições conce1·nentes à existência · da horda paternal e à sua transforma-
ção, pelo parricídio , em b,ando fraternal) e que envolve uma generaliza-
ção abusiva dos argumentos fu11damentados empirican1ente ( ou seja: as
conclusões não se atém aos fenômenos investigados e aos seus e·feitos
o totemi~mo, as proibições do incesto e as regras de exogamia, estu-
dados psicolr.:gic·amente) . Contudo, a restrição capital diz respeito aos
procedimentos de indução por analogia, explorados por ·Freud com o in-
tuito evidente de generalizar a teoria do complexo de Édipo. Explica-
ções descobertas pela investigação psicanalítica da formação e da orga-
niza ção da personalidade, foran1 estendidas e aplicadas interpretativa-
Psic~1ni1lise e Sociologia 141
mente além dos limites da vida psíquica individual e sem nenhum pro-
pósito claramente definido de assinalar se os f atôres psicológicos exer-
cem influências dinâmicas específicas, seja na produção, seja na orien-
tação de determinados pro ·cessos sóc·io-culturais.
Isso no::. faz voltar ao tema da colaboração interdisciplinar. Esta
não poderá significar, de nenhuma maneira , que a solução ,de proble-
mas específicos da psicanálise, que envolvem polarizações do tipo perso-
nalidade-e.c,trutura social, possa ser alcançada mediante a associação do
psic ·analista com o sociólogo. O progresso teórico a ser obtido na coope-
ração interdisciplinar traduz duas coisas bem diferentes. Primeiro, maior
economia e efic ·iên .cia na organização de pesquisas, pelo emp ·rêgo de téc-
nicc:.s adequadas de coleta, organização e interp1·etação dos dados. S·e-
gundo, possibilidade de formular e resolver novos problemas refe-
rentes à adequação de conceitos, à verificação de hipóteses ou à com-
provação de explicações que se apresentam, geralmente , nas chama-
das ''áreas de fronteiras'' das investigações. Na situação atual, os soció-
log os podem prestar boa e produtiva colaboração aos psicanalistas ape-
na s no p1·in1eiro plano. Ou seja, na cooperação en1 pesquisas que tom·em
por objeto fenômeno ·s de interêsse mútuo ( como o preconceito racial,
por exemplo). No segundo plano, a cooperação é mais difícil , porque a
soc iologia ainda está lutando c·om dificuldade ·s elementares na esfera
d a sistematização teó ,rica. Não ob·stante, algo pode ser conseguido se
os alvos teóricos das i11vestigações cairem em campos nos quais a socio-
logi a tem experimentado progressos positivos.
ConclusÕ€·s
Diante de u1n auditório de psicólogos, a presente discussão se orien-
tou para temas que dizem respeito ao aproveitamento dos resultados
da psicanálise pelos sociólogos e às pe ·rspectivas de pesquisas interdis-
cipl inares. E .m ambos os assuntos se evidencia qu •e as tra11sformações
sof ridas nos últi1nos anos pela sociologia, as quais tendem a valorizar a
pesq uisa e a definir objetivos teóricos precisos , contribuíram para uma
mel hor compreensão da psic ·análise e para criar condi ções favoráveis ao
trab alho cooperativo. Contudo, os psicanalistas já se acostumaram a re-
solve r por meios próp1·ios o·s problemas mais complicados e difíceis , o
que levanta a questão de saber se tais alte1·ações possuem, de fato, &1-
gu ma significação para êles.
N01'AS
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Lei Psycltftll<tlyse <le l c1 17 i e Soc·ir ,l e rles Pe1zples P1·imiti/s, traclt1ção ele S.
Ja11l(élévitcJ1. Pa1·is, Pa} '<)t, 1!)47; Gro111J Psycl1ology a11rl tlie A11alysis of lhe
ErJo, tracluç~ão c_le JLt111cs Strél( :l1c'.} r, J ...011tlon, 1'11e Jíog .ê.lrth P1·ess, i11111r. ele
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