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O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE

DA PSICOLOGIA*.
UMA INVESTIGAÇÃO METODOLÓGICA

A pedra que rejeitaram os construtores,


essa veio a ser a pedra angular. ..

U ltim am ente, cada vez soam com m aior freqüência


vozes que colocam o problem a da psicologia geral como um
problem a de prim eiríssim a im portância. Essas colocações, e
isto é o mais notável, não partem dos filósofos (para quem
isso se converteu num costum e profissional) nem dos psicó­
logos teóricos, mas dos psicó lo g o s práticos, q u e estudam
aspectos concretos da psicologia aplicada, e dos psiquiatras e
psicotécnicos, representantes da parte mais exata e precisa de
n o ssa ciência. É ev id en te q u e nos en co n tram o s d ian te de
um a encruzilhada, tanto no que se refere ao desenvolvim ento
na pesquisa quanto ao acúm ulo de material experim ental, à
sistem atízaçio dos conhecim entos e à form ação de princípios
e leis fu n d am en tais. C o n tin u ar a v a n ç a n d o em linha reta,
seguir realizando o m esm o trabalho, dedicar-se a acum ular
material paulatinam ente, resulta estéril e inclusive impossível.
Para seguir adiante é preciso dem arcar um caminho.
D essa crise m etodológica, da evidente necessidade de
direção qu e m ostram uma série de disciplinas particulares -
num d eterm in ad o nível de co n h ecim en to s - de coo rd en ar

* “Istorítcheskii smisl psikhologuttcheskovo krízissa”. Obra escrita em


1927, publicada pela primeira vez nas Obras escolhidas. Ver nota da p. 421.
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criticamente dados heterogéneos, de sistematizar leis disper­


sas, de interpretar e comprovar os resultados, de depurar mé­
todos e conceitos, de estabelecer princípios fundam entais,
em síntese, de dar coerência ao conhecim ento, é de tudo
isto que surge a ciência geral.
Por isso, o conceito da psicologia geral não coincide em
absoluto com esse outro conceito básico, central para uma
série de disciplinas específicas, que é o de psicologia teórica.
Esta ultima (que conforma essencialm ente a psicologia do
homem adulto normal) deveria ser considerada como uma
das disciplinas particulares, junto com a psicologia animal e a
psicopatologia. O fato de que até agora tenha desem penha­
do, e continue a fazê-lo em parte, esse papel de fator genera­
lizador e formador até certo ponto da estrutura e dos sistemas
das disciplinas concretas, às quais proporciona conceitos fun­
damentais, e as quais conforma, segundo sua própria estrutu­
ra, se explica pela história do desenvolvim ento da ciência,
mas nâo se deve a uma necessidade lógica. Embora a psicolo­
gia do homem normal tenha desem penhado um papel direti­
vo, isto não decorre da própria natureza da ciência, mas
dependeu de condições externas: basta que estas variem para
que a psicologia do homem normal perca esse papel diretivo.
Naqueles sistemas psicológicos que cultivam o conceito de
inconsciente, o papel dessa disciplina diretiva, cujos princi­
pais conceitos servem de pontos de partida para as ciências
afins, é desem penhado pela psicopatologia. Tais são, por
exemplo, os sistemas de S. Freud, A. Adler e E. Kretschmer.
Para este último, esse papel determ inante da psicopato­
logia jã não m antém relação com o co n ceito cen tral de
inconsciente, como ocorre em Freud e Adler. Ou seja: jã não
se formula a psicopatologia como primordial porque estuda
o objeto fundamental (o inconsciente), mas se recorre a um
critério essencialmente m etodológico segundo o qual a es­
sência e a natureza dos fenôm enos a estudar se revelam em
sua forma mais pura em suas manifestações extremas, pato­
lógicas. Por conseguinte, é preciso ir da patologia à normali­
dade, explicar e com preender o homem normal a partir da
patologia e não o inverso, como se vinha fazendo até agora.
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 205

A chave cia psicologia está na patologia; e não porque esta


última tenha desvendado e estudado antes as raízes da psi­
que, mas porque esta é a natureza interna dos fatos que, por
sua vez, condiciona a natureza do conhecim ento científico
sobre esses fatos. Se, para a psicologia tradicional, qualquer
pessoa corn uma psicopatologia é, como objeto de estudo,
uma pessoa em m aior ou m enor grau norm al e deve ser
definida em relação à normalidade, para os novos sistemas,
qualquer pessoa normal é mais ou menos patológica e deve,
portanto, ser interpretada como uma variante de tal ou qual
tipo patológico. Em termos simples, alguns sistemas consi­
deram a pessoa normal como protótipo e o indivíduo pato­
lógico com o uma variedade ou variante desse protótipo;
outros, pelo contrário, tomam com o m odelo o fenôm eno
patológico e consideram o normal como uma de suas varie­
dades. E quem poderá dizer como a psicologia geral futura
vai resolver esse debate?
Além dessas duas alternativas (um a que adota com o
padrão o hom em normal e outra que adota o patológico),
que respondem a critérios em parte empíricos e em parte
conceituais, existem outros sistemas que se baseiam na psi­
cologia animal, É o caso, por exemplo, da maioria dos cur­
sos norte-americanos de comportam ento e dos russos de re-
flexologia, que desenvolvem todo seu sistema partindo do
conceito de reflexo condicionado, que é tomado como prin­
cípio central. Além de conceder um papel de protagonista à
psicologia animal empírica na elaboração dos conceitos fun­
damentais, uma série de autores a apresentam como a disci­
plina geral a que outras disciplinas deveriam se referir.
Argumentam que, já que a psicologia animal foi aquela que
deu lugar à ciência do com portam ento e constitui o ponto
de partida da análise objetiva do psíquico, e visto que essa
ciência é estritam ente uma ciência biológica, a ela corres­
ponde elaborar os conceitos fundamentais da ciência e pro­
porciona-los a outras disciplinas psicológicas.
Este é, por exem plo, o ponto de vista de I. P. Pávlov.
Em sua opinião, o que os psicólogos fazem não pode se
refletir na psicologia animal, mas o que os psicólogos com-
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parados fazem determina em grande parte a tarefa dos psi­


cólogos; estes constroem a superestrutura e os prim eiros
estabelecem os fundam entos (1950). De fato, a fonte de
o n d e extraím os as p rin cip ais categ o rias para analisar e
explicar o com portam ento, a instância a que recorrem os
para comprovar nossos resultados, o m odelo que nos serve
para aperfeiçoar nossos métodos é a psicologia animal.
Encontram o-nos de novo diante de uma inversão nos
papéis que a psicologia tradicional tinha atribuído às diver­
sas disciplinas. O ponto de referência era o homem e dele
se partia para dar conta do psiquismo animal; interpretando
suas m anifestações por analogia com nós mesmos. E nem
sempre a questão podia ser reduzida a um grosseiro antro­
pomorfismo; com freqüência, existiam fundam entos m eto­
dológicos sérios que aconselhavam seguir essa via na pes­
quisa: a psicologia subjetiva não podia funcionar de outra
maneira. Via na psicologia do homem a chave da psicologia
dos animais e nas formas superiores a chave da interpreta­
ção das inferiores. O pesquisador nem sempre deve seguir o
mesmo cam inho seguido pela natureza, com freqüência é
mais vantajoso o caminho inverso.
Era para esse conceito de m étodo “inverso" que Marx
apontava quando afirmava que a “anatomia do homem era a
chave da anatomia do macaco” (K. Marx, F. Engels; Obras, t.
46, parte I, p. 42). “Só poderem os com preender as conjeturas
sobre a existência de uma consciência elevada nas espécies
inferiores se já souberm os previam ente em que consiste o
mais elevado.” Assim, a econom ia burguesa nos oferece a
chave da economia antiga etc. Mas não no sentido como o
interpretam os economistas, que apagam todas as diferenças
históricas e vêem todas as formas da sociedade como formas
burguesas. Podemos com preender o obrok1ou os dízimos se
conhecermos os mecanismos do arrendamento agrário, mas
não podem os identificá-los com este último” (ibidem).

1. Obrok, sistema cie tributação do camponês em benefício de proprie­


tário das terras, existente na Rússia durante o regime de servidão (abolido em
1861). Consistia no pagamento anual de uma determinada quantidade de
metal ou em espécie. (N.T.E.)
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Com preender o obrok a partir da renda e a forma feudal


a partir da burguesa: é exatamente o mesmo procedimento
metodológico mediante o qual compreendem os e definimos
o pensam ento e os rudim entos da linguagem nos animais a
partir do pensam ento evoluído e da linguagem do homem.
Só podem os co m p reen d er cabalm ente um a determ inada
etapa no processo de desenvolvimento - ou, inclusive, o pró­
prio processo - se conhecem os o resultado ao qual se dirige
esse desenvolvimento, a forma final que adota e a maneira
como o faz. Trata-se unicamente, é claro, de transferir num
plano metodológico categorias e conceitos fundamentais do
superior para o inferior e não de extrapolar sem mais nem
menos observações e generalizações empíricas. Por exem ­
plo, os conceitos de classe social e de luta de classes mani­
festam-se com toda nitidez quando se analisa o sistema ca­
pitalista, mas também são a chave de todas as formas pré-
capitalistas da sociedade, embora as classes sociais sejam di­
ferentes e não ocorram as mesmas formas de luta. Ou seja,
trata-se de diferentes estágios concretos no desenvolvimen­
to da categoria “classe social”. Mas todas essas característi­
cas, que permitem diferenciar as formas históricas de épocas
anteriores das formas capitalistas, não só não se apagam
mas, pelo contrário, só se tornam acessíveis quando analisa­
das a partir de categorias e conceitos obtidos da análise de
outra formação superior.
“A sociedade burguesa - esclarece Marx - é a organiza­
ção histórica de produção mais desenvolvida e multiforme.
Por isso, a análise dos tipos de relação que se dão em seu
seio e a interpretação de sua estrutura nos oferecem , ao
mesmo tem po, a possibilidade de analisar a estrutura e as
relações sociais de todas as formas de sociedade desapareci­
das, cujos despojos e elem entos serviram para construí-la.
Alguns restos ainda não superados desses despojos e ele­
m entos continuam arrastando sua existência dentro da so­
ciedade burguesa, e o que em formas precedentes de socie­
dade só existia como indício desenvolveu-se nela até alcan­
çar seu pleno valor, e assim por diante.” (Ibidem.) O cami­
nho torna-se mais fácil de com preender quando se conhece
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seu final; é este, além disso, que dã sentido a cada etapa


particular.
Esse é um dos possíveis caminhos metodológicos, e há
uma série de ciências em que ele é suficientemente justifica­
do, É aplicável à psicologia? Pávlov, partindo precisamente
de um p o n to de vista m etodológico, nega o cam inho do
homem ao animal; não se trata de que os fenômenos huma­
nos sejam essencialm ente diferentes dos anim ais, mas de
que não se pode aplicar aos animais as categorias e concei­
tos psicológicos hum anos. Seria estéril - de um ponto de
vista cognitivo - fazê-lo. Por isso, Pávlov defende o caminho
contrário: o do animal ao humano, por considerá-lo como o
caminho de investigação mais direto e aquele que repete o
seguido pela natureza. Conforme suas palavras, “se partimos
de conceitos psicológicos, que não têm lugar no espaço real,
não podem os penetrar no m ecanism o do com portam ento
dos animais, no mecanismo dessas relações” (1950, p. 207).
Por conseguinte, a questão não está nos fatos, mas nos
conceitos, ou seja, na forma de imaginar esses fatos. “Nossos
fatos, nós os imaginamos sob a forma de espaço e tempo;
para nós, trata-se de fatos totalmente científico-naturais; pelo
contrário, os fatos psíquicos são concebidos exclusivamente
de forma tem poral”, diz ( ibidem, p. 104). Pávlov estabelece
explícitamente que se trata não só de emancipar-se dos con­
ceitos psicológicos, mas de elaborar uma nova psicologia
com a ajuda dos conceitos dotados de uma referência espa­
cial; essa nova psicologia demonstra que sua formulação não
é somente aplicável a determinado grupo de fatos, mas que
é uma formulação de princípios conceituais e, portanto, nâo
se limita a reclamar independência para seu campo de inves­
tigação, mas pode estender sua influência a todas as esferas
do conhecim ento psicológico apoiando-se nesse novo tipo
de conceito que se desenvolve no espaço.
Em sua opinião, mais cedo ou mais tarde a ciência tras­
ladará ao psiquismo humano os dados objetivos “guiando-se
pela similitude ou pela identidade das manifestações exter­
nas” e explicará objetivamente a natureza e o mecanismo da
consciência ( ibidem, p. 23). Seu caminho vai do simples ao
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complexo, do animal ao homem. “O simples, o elem entar -


diz ele - pode ser com preendido sem o complexo, ao passo
que esclarecer o complexo если o elem entar é impossível.”
A partir desses dados constituir-se-á “a base do conhecim en­
to psicológico” ( ibidem , p. 105). E no prólogo cio livro no
qual expõe os vinte anos de experiência no estudo do com­
portam ento animal, Pávlov declara que “está profunda, irre­
vogável e firm em ente convencido de que assim, seguindo
no fundam ental esse caminho" se conseguirá “conhecer o
mecanismo e as leis da natureza humana" ( ibidem , p. 17).
Eis aqui uma nova controvérsia entre o estudo dos ani­
mais e a psicologia do homem. A situação é , de fato, muito
semelhante à controvérsia entre a psicopatologia e a psicolo­
gia do homem normal. Que disciplina deve reger, unir, ela­
borar os conceitos fundamentais, os princípios e os métodos,
comprovar e sistematizar os dados de todos os outros domí­
nios? Se, antes, a psicologia tradicional considerava o animal
como um antepassado mais ou m enos distante do homem,
agora, em contrapartida, a reflexologia se inclina a conside­
rar o hom em como “um animal bípede, sem plum as”, nas
palavras de Platão. Antes, definia-se e descrevia-se a psique
do animal com conceitos e term os extraídos das investiga­
ções do homem; agora, o com portam ento dos animais nos
proporciona “a chave para com preender o com portam ento
do hom em ” e o que chamamos “comportamento humano" é
interpretado exclusivamente como derivado do fato de que
um certo animal caminha ereto e por isso fala, e de que dis­
põe de mãos com o polegar oposto.
Podemos nos perguntar de novo: quem, afora a futura
psicologia geral, resolverá essa controvérsia entre o homem
e o animai em psicologia, controvérsia de cuja solução de­
pende nada mais nada m enos do que o destino futuro de
nossa ciência?

A partir da análise dos três tipos de sistema psicológico


de que nos ocupamos, percebe-se até que ponto amadure-
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ceu a necessidade de uma psicologia geral e delineam os,


em parte, os limites e o conteúdo aproxim ado desse concei­
to. A partir de agora nos m anterem os nessa via para nossa
análise: partirem os de uma série de fatos, ainda que só se
trate de fatos de caráter muito geral e abstrato (com o tal ou
qual sistema psicológico e seu m odelo, as tendências e o
destino de diferentes teorias, estes ou aqueles m étodos de
conhecim ento, categorizações científicas e esquem as etc.).
Não os trataremos do ponto de vista da lógica abstrata, pu­
ram ente filosófica, mas como determ inados fatos da história
da ciência. Ou seja, como acontecim entos concretos, histori­
cam ente vivos, Referir-no-em os aos sistem as levando em
conta suas tendências, as oposições entre uns e outros, seus
condicionam entos reais e sua essência teórico-cognitiva,
isto é, sua correspondência com a realidade, ao conheci­
mento da qual estão destinados. É através da análise da rea­
lidade científica e não por meio de raciocínios abstratos que
pretendem os obter uma idéia clara da essência da psicolo­
gia individual e social —como aspectos de uma mesma ciên­
cia - e do destino histórico de ambas. E do mesmo m odo
que o político extrai suas regras de atuação da análise dos
acontecim entos, extrairem os dessa análise nossas regras
para organizar a investigação m etodológica, que se baseia
no estudo histórico das formas concretas que a ciência foi
adotando e na análise teórica dessas formas para chegar a
princípios generalizadores, comprovados e válidos. Em nos­
sa opinião, é aí que deve estar o germ e dessa psicologia
geral, conceito que procuraremos esclarecer neste capítulo.
A primeira coisa que podem os estabelecer através dessa
análise são os limites entre a psicologia geral e a psicologia
teórica do homem normal. Vimos que esta não tem por que
identificar-se com a psicologia geral, mas que, para alguns
sistemas, é antes de mais nada um a disciplina particular,
outro ramo passando a ter esse caráter geral, vimos que o
papel da psicologia geral pode ser desem penhado (e de fato
isso ocorre) pela psicopatologia e pela teoria do com porta­
m ento animal. A. I. Vvedienskí supunha que à psicologia
geral “seria muito mais correto chamá-la de psicologia bási-
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ca, porque essa parte constitui a base de toda a psicologia”


(1917, p, 5), H. Hõffding, que supunha possível fazer psico­
logía “através de vários procedim entos e m étodos”, que afir­
mava que “não existe uma psicologia, mas m uitas”, e que
não via a necessidade de unidade, tendia a considerar a psi­
cologia subjetiva como “a base em torno da qual, como em
torno de um centro, devem se agrupar as riquezas de outras
fontes de co nhecim ento” (1980, p, 30). Com efeito, seria
mais oportuno neste caso falar de uma psicologia básica ou
central ao invés de falar de uma psicologia geral. Mas é pre­
ciso m uito dogm atism o e muita ingenuidade presunçosa
para não ver que surgem outros sistemas com uma base e
um centro totalm ente distintos e que, nesses outros siste­
mas, o que os psicólogos acadêmicos consideram “o básico”
se desloca para a periferia pela própria natureza das coisas.
Toda uma série de sistemas consideraram que a psicologia
subjetiva era básica ou central, coisa tão compreensível em
seu momento quanto o é agora o fato de que tenha perdido
sua im portância. T erm inológicam ente seria mais correto
falar de psicologia teórica, diferenciando-a da psicologia
aplicada, como faz E. Münsterberg (1922). Tudo que se refe­
re ao homem normal e adulto constituiria um ramo especial,
junto com a psicologia infantil, a psicologia animal e a psi­
copatologia.
A psicologia teórica, assinala L. Binswanger, não é nem
a psicologia geral nem uma parte dela, mas é um objeto da
psicologia geral. Esta última se coloca perguntas tais como se
é possível, em geral, a psicologia teórica, e que estrutura e
utilidade têm seus conceitos. A psicologia teórica nâo pode
ser identificada com a psicologia geral, jã que o que esta se
coloca precisam ente como problem a fundam ental não é o
problema da criação de teorias em psicologia (1922, p. 5).
Hã um segundo ponto que nossa análise perm ite esta­
belecer com certeza: o próprio fato de que a psicologia teó­
rica, e posteriorm ente outras disciplinas, tenha desem pe­
nhado o papel de ciência geral está condicionado, por um
lado, pela ausência de uma psicologia geral, e, por outro,
pela grande n ecessidade que existe dela e de que sejam
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desem penhadas suas funções para tornar possível a pesqui­


sa científica. A psicologia está grávida de uma disciplina
geral, mas ainda não deu à luz.
A terceira questão que podemos deduzir de nossa análise
é a distinção entre duas fases no desenvolvimento de qual­
quer ciência geral, de qualquer disciplina geral, como mostra
a história da ciência e da metodologia. Na primeira fase de
desenvolvimento, a disciplina geral distingue-se da especial
somente por um traço puramente qualitativo. Essa diferença,
como diz corretam ente Binswanger, ocorre na maioria das
ciências. Assim, distinguimos a botânica geral e a especial, a
biologia e a fisiología, a patologia e a psiquiatria etc. Para a
disciplina geral o objeto de estudo é o geral, o que é próprio
de todos os objetos da ciência em questão. A disciplina parti­
cular ocupa-se, em contrapartida, do que é próprio de grupos
ou inclusive de indivíduos dentro de uma mesma categoria
de objetos. Nesse sentido, concedia-se o nome de especial à
disciplina que agora chamamos diferencial; e nesse mesmo
sentido, esse ramo da psicología era denominado de “indivi­
dual’’. A parte geral da botânica ou da zoologia estuda o que
existe de comum a todas as plantas ou a todos os animais; a
psicologia, o que é próprio de todos os homens. Para isso,
abstraiu-se da diversidade dos fenômenos em questão o con­
ceito de um ou outro traço comum, próprio de todos ou da
maioria deles e esse traço, que fora despojado da diversidade
real dos traços concretos, se transformou em objeto de estudo
da disciplina geral. Por isso, considerou-se que o que distin­
guía essa disciplina e seu objetivo consistia em apresentar
cientificamente fatos que são com uns ao maior núm ero de
fenômenos particulares do ramo de conhecimento em ques­
tão (I. Biswanger, 1922, p. 3).
Esse estágio de busca no qual se tenta definir um con­
ceito abstrato e comum para todas as disciplinas psicológi­
cas (no qual se constitui o objeto de todas elas e no qual se
determina o que deve ser destacado do caos dos fenômenos
isolados e o que tem valor cognitivo para a psicologia den­
tre todos os fenôm enos) é um estágio epic aparece muito
claram ente em nossa análise. Permite que calibrem os que
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significado podem ter essas buscas para nossa ciência no


momento histórico atual de seu desenvolvimento, qual é o
conceito que procuramos como objeto da psicologia e qual
é a resposta que procuramos para a pergunta do que é que
a psicologia estuda.
Todo fenôm eno concreto é absolutam ente infinito e
inesgotável se considerarmos em separado cada um de seus
traços. Em todos os fenôm enos sempre é preciso buscar o
que os converte em objeto científico. É isso precisam ente
que distingue a observação de um eclipse do sol por parte
de um astrônomo da observação desse fenômeno a título de
sim ples curiosidade. Na prim eira observação se destacará
do fenôm eno aquilo que o transforma em um fato astronô­
mico; na segunda, só se observarão aqueles traços que por
acaso chamam a atenção.
O que é que têm em comum todos os fenômenos que a
psicologia estuda, o que é que transforma em fatos psíqui­
cos os mais diversos fenôm enos - desde a secreção da sali­
va nos cachorros até o prazer da tragédia o que têm em
comum os desvarios de um louco e os rigorosíssimos cálcu­
los de um matemático? A psicologia tradicional responde: o
que têm em comum é que todos eles são fenômenos psíqui­
cos, que não se desenvolvem no espaço e só sào acessíveis
à percepção do sujeito que os vive. A refiexologia responde:
o que têm em com um é que todos esses fenôm enos são
fatos de com portam ento, processos correlativos de ativida­
de, reflexos, atos de resposta do organismo. Os psicanalistas
dizem: o que há de comum a todos esses fatos, o mais pri­
mário. o que os une e constitui sua base é o inconsciente.
Portanto, essas três respostas estabelecem três significados
distintos da psicologia geral, a qual definem como a ciência
1) do psíquico e de suas propriedades, ou 2) do com porta­
mento, ou 3) do inconsciente.
Disto se deduz a importância da concepção geral para
delimitar o objeto da ciência. Qualquer fato, expresso con­
secutivamente a partir da concepção de cada um desses três
sistemas, adotará três formas totalm ente distintas; m elhor
dizendo, terem os três fatos distintos. E, à m edida que a
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ciência avançar, à medida que se acumularem os fatos, obte­


remos sucessivamente três generalizações distintas, três clas­
sificações distintas, três sistemas distintos, três ciências dis­
tintas, que estarão tanto mais afastadas do fato comum que
as unia e ta n to m ais afastad as um as das o u tras, q u an to
m aior for o su c e sso com q u e se d esen v o lv erem . Pouco
depois de seu aparecim ento, essas ciências se verão obriga­
das a selecionar distintos fatos e a própria seleção dos fatos
d eterm inará na seqüência o desenvolvim ento da ciência.
K. Koffka foi o primeiro a expor a idéia de que, se as coisas
continuarem assim, a psicologia introspectiva e a psicologia
do com portam ento passarão a constituir duas ciências dife­
rentes. O cam inho de uma estará tão distante do da outra,
que é “impossível dizer com segurança se conduzirão real­
m ente a um mesmo objetivo” (K. Koffka, 1926, p. 179).
Também Pávlov e B ékhterev com partilham , na essên­
cia, da mesma opinião; para eles é plausível a idéia da exis­
tência paralela de duas ciências: a psicologia e a reflexolo-
gia, que estudam o mesmo mas de perspectivas diferentes.
“Não nego a psicologia como conhecim ento do m undo inte­
rior do hom em ”, diz Pávlov a esse respeito (1950, p. 125).
Para Békhterev, a reflexologia não se contrapõe à psicologia
subjetiva nem exclui, por m enos que seja, esta última, mas
delimita uma esfera particular da pesquisa, ou seja: cria uma
ciência paralela nova. Ele mesmo fala das estreitas relações
entre ambas as disciplinas científicas e inclusive de uma “re­
flexologia subjetiva”, que surgirá inevitavelmente no futuro
(1923). Certamente, é preciso dizer que tanto Pávlov quanto
Békhterev negam de fato a psicologia e confiam na possibi­
lidade de abarcar integralmente todo o ramo do saber sobre
o homem valendo-se do método objetivo, o que equivale a
admitir que só pode haver uma ciência, em bora em palavra
reconheçam duas. É assim que o conceito geral predeterm i­
na o conteúdo da ciência.
Atualmente, a psicanálise, o behaviorism o e a psicolo­
gia subjetiva operam não apenas com diferentes conceitos,
mas tam bém com fatos diferentes. Fatos tão indubitáveis,
tão reais, tão com uns a todos, como o com plexo de Édipo
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 215

dos psicanalistas, que sim plesm ente não existem para o u ­


tros psicólogos; para muitos trata-se da mais louca fantasía.
Para W. Stem, que em geral adota uma atitude benevolente
para com a psicanálise, as interpretações psicanalíticas, tão
habituais na escola de Freud e tão inquestionáveis para os
psicanalistas quanto a m edição da tem peratura num hospi­
tal, e os fatos cuja existência afirmam, lhe fazem lembrar a
quiromancia e a astrologia do século XVI. Para Pávlov, a afir­
mação de que o cachorro lem brou da alimentação ao escu­
tar a c am p ain h a não passa d e um a fan tasia. Do m e s m o
m odo, os introspeccionistas consideram q u e nos atos de
pensam ento não existem os movimentos musculares descri­
tos pelos condutivistas.
Mas o conceito essencial que age como suporte na ciên­
cia, o que poderíam os denom inar abstração primária, não só
está determ inando o conteúdo das disciplinas particulares,
como também seu caráter integrador e, portanto, a forma de
explicar os fatos, o princípio explicativo essencial da ciência.
E, assim com o nas disciplinas particulares se dã uma
tendência a transformar-se em ciência geral e a estender sua
influência às áreas próximas, a ciência geral surge da neces­
sidade de unir ramos heterogêneos do saber. Quando disci­
plinas análogas acumulam suficiente quantidade de material
em domínios relativamente distantes entre si, surge a neces­
sidade de unificar o material heterogêneo, de estabelecer e
determ inar a relação entre os diferentes dom ínios e entre
cada um deles e a totalidade do saber científico. Como esta­
belecer relação entre os materiais da patologia, da psicolo­
gia animal, da psicologia social? Vimos que o substrato da
unidade é dado fundam entalm ente pela abstração primária,
Mas a união de material heterogêneo - como defende a psi­
cologia da gestalt - não pode ser alcançada m ediante a sim­
ples aposição da conjunção “e ”, m ediante a simples união
ou adição das partes, de modo que cada uma delas conserve
o equilíbrio e a independência. A unidade consegue-se por
meio da subordinação e o dom ínio, por meio da renúncia
das disciplinas particulares à soberania em favor de uma
ciência geral. D entro do novo conjunto não se produz a
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coexistência de disciplinas, mas um sistema hierárquico, do­


tado de um centro principal e outros secundários, como o
sistema solar. De forma que a unidade é o que determina o
papel, o sentido e o significado de cada dom ínio isolado:
isto é, nao só determina o conteúdo da ciência, mas também
a forma explicativa a ser adotada, o princípio de generaliza­
ção que cora o tem po, à m edida que a ciência evolui, se
transformará em sen principio explicativo.
Aceitar a psique, o inconsciente ou o com portam ento
com o conceitos prim ogênitos significa não ser reunir três
categorias distintas de fatos, como também oferecer três dife­
rentes formas de explicar esses fatos.
A tendencia a generalizar e integrar os conhecim entos
transform a-se assim em um a tendência a explicá-Jos e o
caráter de integração do conceito generalizador o transfor­
ma em princípio explicativo, porque explicar significa esta­
belecer uma conexão entre vários fatos ou vários grupos de
fatos, explicar é referir uma série de fenôm enos a outra,
explicar significa para a ciência definir em termos de causas.
Enquanto a integração se dá no seio de uma disciplina, a
explicação será levada a cabo por meio da conexão causai
de fenôm enos que estão dentro de um mesmo domínio. Mas
quando elevamos nossas generalizações por cima de disci­
plinas particulares, unificamos fatos de diferentes domínios,
isto é, e sta b e le c e m o s g e n e ra liz a çõ e s de se g u n d o grau,
devemos buscar de imediato uma explicação de grau supe­
rior, ou seja, a conexão de todos os âm bitos do conheci­
m ento em questão com fatos que estão fora deles. Dessa
maneira, quando buscamos um princípio explicativo saímos
dos limites da ciência particular e nos vemos obrigados a
situar esses fenôm enos num contexto mais amplo.
Existe, pois, uma tendência a estabelecer um princípio
explicativo unitário e a que este atue a partir de fora dos
limites em que nasceu a ciência, convertendo-se desse m o­
do num princípio explicativo, não mais das categorias da
realidade a que se referia num princípio, mas do sistema
global da realidade, e não só da ciência em que surgiu, mas
do sistema científico em sua totalidade. Essa tendência esta-
Ини тшпПН

О SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 217

ria na origem da rivalidade interdisciplinar pela supremacia.


O fato de que exista um conceito generalizador e, assim
como se dá uma batalha entre as disciplinas para conseguir
esse conceito generalizador, tam bém se dará irremediavel­
mente uma batalha pelo principio, Com efeito-, a reflexolo-
gía não só formula o conceito de comportamento, como tam­
bém o princípio do reflexo condicionado, ou seja, a explica­
ção do comportam ento com base na experiência externa do
anim al. E é difícil d izer qual d essas duas idéias é m ais
im portante para esta corrente teórica. Se descartarm os o
princípio dos reflexos condicionados ficarem os som ente
com o com portam ento. Ou seja, com um sistema de movi­
m entos e de formas de agir que têm sua explicação na cons­
ciência, matéria da qual se ocupa faz muito tem po a psicolo­
gia subjetiva. Se descartarmos o conceito e ficaremos apenas
com o princípio, terem os um a psicologia assoeiacionísta
sensualista. De uma e da outra trataremos mais adiante. Por
hora, o im portante é estabelecer que tanto a generalização
do conceito quanto o princípio generalizador criam a ciên­
cia geral, mas somente se ambos vierem unidos, se aparece­
rem ao mesmo tem po. Do mesmo m odo, a psicopatologia
não só apresenta o conceito generalizador do inconsciente,
como o interpreta de forma explicativa recorrendo ao prin­
cípio da sexualidade. Para a psicanálise, generalizar as disci­
plinas psicológicas e integrá-las sobre a base do conceito do
inconsciente supõe explicar totalmente - a partir da sexuali­
dade - o m undo que a psicologia estuda.
Ambas as tendências - a tendência à integração e à gene­
ralização - ainda aparecem unidas e é difícil distinguidas: a
segunda não se manifesta com suficiente clareza e, às vezes,
inclusive pode não estar presente. Q uando coincide com a
primeira, isso se deve mais uma vez a fatores históricos e não
a uma necessidade lógica. Mas quando se dá um confronto
entre disciplinas pela supremacia, essa tendência à generali­
zação costum a aparecer em outra série de fatos, podendo
fazê-lo de forma limpa, isto é, independentem ente da primei­
ra tendência. Em ambos os casos, pode-se dizer que as duas
tendências se manifestam em sua forma mais pura.
218 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

Assim, na psicologia tradicional, o conceito do psíquico


pode estar presente em muitas explicações, embora não em
qualquer uma: associacionism o, psicologia do ato, teoria
das faculdades etc. Isto é, a relação existente entre a genera­
lização e a integração é estreita, mas não inevitável. Um
conceito admite uma série de explicações e vice-versa. Mais
ainda, nos sistemas da psicologia do inconsciente, esse con­
ceito fundam ental não é obrigatoriam ente interpretado co­
mo sexualidade. Em A. Adler e C. Jung, a explicação básica
é dada por outros princípios. Por conseguinte, no confronto
disciplinar ocorrerá necessária e logicamente essa primeira
tendência do saber rumo à integração mas a segunda ten­
dência nem sem pre se manifestará como uma necessidade
lógica, mas aparecerá em função dos condicionam entos his­
tóricos. Por isso é mais fácil analisá-la em sua aparência
mais pura, no confronto de princípios e escolas dentro de
uma mesma disciplina.

Podem os, portanto, afirmar que qualquer descoberta


mais ou menos importante em qualquer ramo, qualquer des­
coberta que saia dos limites desse domínio parcial, tenderá
a se transformar num princípio explicativo de todos os fenô­
m enos psicológicos e obrigará a psicologia a sair de seus
próprios limites, levando-a a domínios mais amplos do sa­
ber. Essa tendência manifestou-se nas últimas décadas com
uma regularidade e constância tão extraordinária, e com tal
uniformidade nos mais diversos ramos, que é possível reali­
zar previsões sobre o processo de evolução de tal ou qual
conceito ou descoberta, de tal ou qual idéia. Por sua vez,
essa rep etição regular que ocorre na evolução das mais
diversas idéias demonstra de forma evidente (com uma evi­
dência que raras vezes se apresenta ao historiador da ciên­
cia e ao m etodólogo) a necessidade objetiva que subjaz ao
desenvolvimento da ciência, uma necessidade que podere­
mos descobrir se enfocarmos os fatos da ciência de um ponto
0 SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 219

de vista também científico. Isto coloca a possibilidade de


uma metodologia científica sobre uma base histórica.
A regularidade na m udança e no desenvolvim ento das
idéias, o aparecim ento e a morte dos conceitos, inclusive a
mudança de categorizações etc., tudo isso pode ser explica­
do cientificamente se relacionarm os a ciência em questão:
1) com o substrato sócio-cultural da época; 2) com as leis e
condições gerais do conhecimento científico; 3) com as exi­
gências objetivas que a natureza dos fenômenos objetos de
estudo coloca para o conhecim ento científico no estágio
atual da investigação. Ou seja, em última instância, com as
exigências da realidade objetiva que a ciência em questão
estuda, Porque o conhecimento científico deverá se adaptar,
se acom odar às particularidades dos fatos que sâo estuda­
dos, deverá se estruturar de acordo com suas exigências, E
por isso, na variação do fato científico cabe descobrir sem­
pre a participação dos fatos objetivos que essa ciência estu­
da. Procuraremos levar em conta, em nossa análise, os três
pontos de vista.
Podemos expressar esquem áticam ente o destino geral e
a linha de desenvolvim ento dessas idéias explicativas do
seguinte modo: em prim eiro lugar, se dã uma descoberta
real qualquer mais ou m enos importante, qualquer desco­
berta que modifique a idéia habitual sobre todo um âmbito
de fenôm enos de referência e que inclusive ultrapasse os
limites desse grupo parcial de fenôm enos onde foi observa­
da e formulada.
Segue-se a isso o estágio de propagação da influência
dessas mesmas idéias aos domínios contíguos ou, por assim
dizer, a expansão das idéias a um número de fatos maior do
que originalmente abarcava. Tudo isso dá lugar a uma modi­
ficação da própria idéia (ou sua aplicação): aparece uma
formulação mais abstrata desta e a conexão com os fatos a
que deve sua origem vai se debilitando, ainda que essa co­
nexão aja como garantia da autenticidade da nova idéia, na
medida em que esta com eça sua marcha conquistadora, e
isso é muito importante enquanto descoberta científicamen­
te comprovada.
220 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

Em seu terceiro estágio de desenvolvim ento a idéia,


que já impregnou em maior ou m enor grau a disciplina em
cujo seio surgiu inicialmente, viu-se por isso parcialm ente
modificada e modificou por sua vez a configuração estrutu­
ral e o alcance da disciplina. Jã desviada dos fatos a que
deve sua origem, a idéia, que existia em forma de princípio
formulado mais ou menos abstratamente, passa ao nível da
confrontação pelo dom ínio no seio da disciplina, isto é, à
fase de integração. Isso costuma acontecer porque a idéia,
como princípio explicativo, conseguiu se apoderar de toda a
disciplina, ou seja, adaptou-se ao conceito e o conceito que
servia de base para a disciplina adaptou-se em parte a ela e
esta age agora de acordo com ele. E, em nossa análise, tro­
peçamos precisam ente com esse estágio misto de existência
da idéia, quando ambas as tendências se apoiam m utuam en­
te. Continuando sua expansão na corrente da tendência à
integração, a idéia se transfere facilmente para as disciplinas
contíguas, sem deixar, ela mesma, de se modificar, dilatan­
do-se à m edida que incorpora novos fatos e m odificando
por sua vez os ramos em que penetra. O destino da idéia
está, nessa etapa, totalm ente u nido ao da disciplina que
representa e que luta pelo domínio.
No quarto estágio, a idéia volta a se desprender do con­
ceito inicial, já que o próprio fato de em preender uma con­
quista (mesmo que essa conquista seja apenas um projeto,
defendido por uma escola ou pela totalidade do âmbito do
conhecim ento psicológico, por todas as disciplinas) impul­
siona o desenvolvimento da idéia. A idéia continuará sendo
um princípio explicativo na m edida em que ultrapassar os
limites do conceito principal; porque, como vimos, explicar
significa sair dos próprios limites em busca de causas exter­
nas. Se a idéia coincidisse por com pleto com o conceito
principal, não explicaria mais nada. Mas visto que o concei­
to principal não pode logicam ente continuar se desenvol­
vendo (se assim fosse estaria negando a si mesmo, jã que seu
sentido está em definir um ramo do conhecimento psicológi­
co: por isso sua própria essência o impede de sair de seus
limites) deverá se produzir novamente a separação do con-
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 221

ceito e da explicação. Além disso, a própria integração pres­


supõe logicamente (como mostramos mais acima) o estabe­
lecimento de conexões com uma esfera mais ampla de co­
nhecimentos, a saída dos próprios limites, e é isso que faz a
idéia quando se separa do conceito. Certas vezes age como
ligação entre a psicologia e numerosos ramos externos a ela,
como a biología, a físico-química ou a mecânica, enquanto o
conceito principal faz com que se afaste deles. As funções
desses aliados, que agem temporariamente juntos, mudaram
de novo. Outras vezes, a idéia incorpora-se abertam ente a
este ou aquele sistema filosófico, estendendo-se, modifican­
do-se e modificando os mais remotos âmbitos da realidade, a
totalidade do universo, form ulando-se com o um princípio
universal ou inclusive como uma ideologia.
Essa descoberta, inchada até se transformar em ideolo­
gia, como a rã que se transform ou em boi, alcança o mais
perigoso estágio de desenvolvimento, o quinto: estoura facil­
mente, como uma bolha de sabão; em todo caso, entra no
estágio de luta e negação em que se encontra agora por toda
parte. É verdade que já antes, nos estágios precedentes, ocor­
rera uma luta contra a idéia. Mas então tratava-se da reação
normal ao movimento desta, a resistência de cada ramo isola­
do a suas tendências conquistadoras. A força inicial que havia
engendrado sua descoberta a protegia da verdadeira luta pela
existência, com o a mãe protege seus familiares. Som ente
agora, depois de ter se separado por completo dos fatos que
a originaram, depois de ter sido desenvolvida até os limites
lógicos, levada até as últimas conclusões e generalizada o
máximo possível, é que a idéia descobre finalmente o que na
verdade é e se manifesta com seu verdadeiro rosto. Por mais
estranho que pareça, precisamente quando foi levada até sua
forma filosófica, quando parece velada por várias capas e se
encontra m uito longe de suas raízes diretas e das causas
sociais que a engendraram , som ente agora descobre o que
quer, o que é, de que tendências sociais procede, a que inte­
resses de classe serve. Somente depois de ter se desenvolvido
até se transformar numa ideologia ou até conseguir conexão
com ela, a idéia parcial, de fato científico que era, se transfer-
222 te o r í a e m étodo em p sico lo g ía

ma de novo num fato da vida social; ou seja, retorna ao seio


de onde surgiu. Somente ao se transformar de novo em urna
parte da vida social, põe em evidencia sua natureza social,
que vivia, naturalmente, o tempo todo nela, mas que perma­
necia oculta sob a máscara do ato cognitivo e na qualidade
de tal figurava.
Pois bem, nesse estágio o destino da idéia se determina
aproxim adam ente assim. À nova idéia, como ao novo fidal­
go, indicam sua origem burguesa, ou seja: sua origem real.
Limitam-na aos ramos de onde procede; obrigam-na a retro­
ceder em seu desenvolvim ento; reconhecem -na com o des­
coberta parcial, mas rejeitam-na como ideologia; e agora se
estabelecem novos procedim entos para considerar a ela e
aos fatos a ela relacionados com o uma descoberta parcial.
Dito de outra m aneira, outras ideologias que representam
outras tendências e forças sociais reconquistam a idéia e
inclusive seu cam po inicial, elaboram seu p onto de vista
sobre ela e, então, ou a idéia morre ou continua existindo,
mais ou menos incluída estreitam ente em tal ou qual ideolo­
gia entre uma série de ideologias, compartilhando seu desti­
no e realizando suas funções, mas deixa de existir como
idéia revolucionadora da ciência; é uma idéia que se ap o ­
sentou do serviço e que obteve em seu departam ento o grau
de general.
Por q ue deixa de existir a idéia com o tal? P orque no
cam po da ideologia rege a lei, d escoberta p or Engels, da
concentração de idéias em torno de dois pólos - o idealismo
e o m aterialism o que corresp o n d em aos dois pólos da
vida social, às duas principais classes que lutam. A natureza
social das idéias manifesta-se com muito mais facilidade em
um fato filosófico do que como fato científico: termina seu
papel de agente ideológico oculto disfarçado de fato cientí­
fico e fica desmascarada, com eçando então a participar co­
mo um elem ento a mais na luta de classes das idéias. Aqui,
na qualidade de pequeno elem ento de uma enorm e soma,
desaparece como uma gota de água no oceano e deixa de
existir por si mesma.
0 SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 223

É este o caminho que percorre em psicologia qualquer


descoberta que tenda a se transformar num princípio explica­
tivo. O próprio aparecim ento de tais idéias explica-se pela
existência de uma necessidade científica (arraigada, no fim
das contas, na natureza dos fenôm enos em estudo) e pela
forma como se manifesta essa necessidade numa determinada
etapa do conhecimento: em outras palavras, pela natureza da
ciência e, em última instância, pela natureza da realidade psí­
quica que essa ciência estuda. Mas a única coisa que a histó­
ria da ciência pode explicar é por que surgiu a necessidade
de novas idéias num determinado estágio do desenvolvimen­
to e por que esse nascimento era impossível cem anos antes.
Que descobertas concretas se desenvolvem no seio de uma
ideologia e quais nâo; que idéias se destacam, que caminho
percorrem, que destino alcançam, tudo isso depende de fato­
res externos à história da ciência e que a determinam.
Caberia uma comparação a respeito da doutrina da arte
de G. V. Plékhanov. A n atu reza d o to u o hom em de uma
necessidade estética que possibilita que este tenha idéias
estéticas, gostos e sensações. Mas estabelecer com exatidão
que gostos, idéias e sensações vai ter o hom em social em
questão numa determinada época histórica não é diretam en­
te deduzível da natureza do homem. Essa resposta só nos
pode ser dada por uma interpretação materialista da história
(G. V. Plékhanov, 1922). Contudo, esse raciocínio não é, em
essência, o fruto de uma com paração ou de uma metáfora,
mas responde ponto a ponto a uma lei geral que Plékhanov
aplicou parcialm ente aos problem as da arte. Na verdade, a
in terpretação científica nada mais é do que um a forma a
mais de atividade do homem social entre outras atividades.
Por conseguinte, o conhecim ento científico, considerado
com o co n h ecim en to da n a tu re z a e não com o ideologia,
constitui um tipo de trabalho e como todo trabalho é, antes
de mais nada, um processo entre o homem e a natureza. E,
nesse processo, o próprio hom em enfrenta a natureza en ­
quanto força surgida de seu seio. Trata-se, pois, de um pro-
224 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

cesso condicionado tanto pelas propriedades da natureza


transformada quanto pelas propriedades da força transforma­
dora da natureza; ou seja, condicionado, .neste caso, pela
natureza dos fenómenos psíquicos e pelas condições cogniti­
vas do homem (G. V. Plékhanov, 1922a). Por isso, os fenô­
menos psíquicos, enquanto fenômenos naturais (ou seja, nâo
m odificados), não podem explicar o desenvolvim ento, o
movimento, as mudanças na história da ciência. Esta é uma
verdade evidente. Não obstante, em qualquer estágio de
desenvolvim ento é possível isolar, diferenciar e abstrair as
exigências que a própria natureza faz sobre os fenôm enos
que devem ser estudados no nível atual de conhecimento de
que se dispõe. Nível que evidentem ente nâo é determinado
pela natureza dos fenômenos, mas pela história do homem.
Justamente porque no nosso nível atual de conhecimentos as
propriedades naturais dos fenôm enos psíquicos constituem
uma categoria puram ente histórica (já cjue essas proprieda­
des variam durante o processo de conhecimento e a soma de
determinadas propriedades é uma magnitude puram ente his­
tórica) cabe considerá-las como a causa ou como uma das
causas do desenvolvimento histórico da ciência.
Como exemplo do padrão evolutivo que seguem em psi­
cologia as idéias gerais que acabamos de descrever, vamos
analisar o destino de quatro conjuntos de idéias que tiveram
influência nas últimas décadas. Para isso, vamos nos interes­
sar somente pelo fato que torna possível o aparecimento des­
sas idéias e nâo pelas idéias em si, isto é, por aquele fato que
tem suas raízes na história da ciência e não fora dela. Nâo nos
porem os a analisar por que precisamente essas idéias e sua
história, e não outras, são importantes como sintoma, como
indicador do estado em que vive a história da ciência. Não
nos interessa agora a pergunta histórica, mas a metodológica:
até que p o n to foram d e sco b e rto s e em que m edida s io
conhecidos os fatos psíquicos e que m udanças se exige na
estrutura da ciência para poder avançar no conhecim ento
sobre a base do já conhecido? O destino dos quatro conjuntos
de idéias permitirá evidenciar o conteúdo e a magnitude das
necessidades da ciência no m om ento atual. A história da
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 225

ciencia é importante na medida em que determina o grau de


conhecimento dos fatos psíquicos.
Os quatro conjuntos de idéias a que nos referimos sao
as da psicanálise, da reflexologia, da psicologia da Gestalt e
o personalismo.
As idéias da psicanálise nasceram de descobertas espe­
cíficas no campo da neurose; estabeleceu-se de forma indis­
cutível o fato de que toda uma série de fenóm enos psíqui­
cos é determ inada pelo inconsciente e o fato de que a se­
xualidade se oculta numa série de atividades e sob formas
que anteriormente não eram consideradas eróticas. Paulati­
namente, esta descoberta concreta, respaldada pelo éxito de
sua aplicação terapêutica e com a autoridade que isso lhe
conferia (isto é, sancionada pela veracidade de sua prática),
foi transposta por uma série de campos adjacentes, como a
psicologia da vida cotidiana ou a psicologia infantil, além de
apropriar-se da totalidade dos enfoques teóricos sobre a
neurose. No confronto disciplinar, essa idéia se impôs sobre
os mais distantes ramos da psicologia, sustentando-se que
com ela se poderia estudar a psicologia da arte ou a psicolo­
gia dos povos. Mas a psicanálise estava ultrapassando desta
forma os limites da psicologia: a sexualidade se transforma­
va no princípio metafísico cie uma série de idéias metafísi­
cas, a psicanálise se transformava em ideologia, a psicologia
se transformava em meta psicologia. A psicanálise dispõe de
sua própria teoria do conhecimento e de sua própria metafí­
sica, de sua sociologia e de sua matemática. O comunismo e
o totem, a Igreja e a obra de Dostoiévski, o ocultism o e a
publicidade, o mito e as invenções de Leonardo da Vinci são
apenas sexo disfarçado e mascarado.
Semelhante foi o caminho seguido pela idéia do reflexo
condicionado. Todos sabem que surgiu do estudo da saliva-
Ção psíquica dos cachorros. Mas acabou se estendendo tam­
bém a outros fenôm enos e conquistou a psicologia animal.
O sistema de Békhterev, po r sua vez, pôs todo seu em pe­
nho em se aproximar e se ligar a todos os campos da psico­
logia para acabar submetendo-os. Todo sonho, pensamento,
trabalho ou criação é um reflexo. A psicologia da arte, a psi-
226 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

cotecnia e a paidología, a psicopatologia e inclusive a psico­


logia subjetiva acabam submetidas. E agora a reñexologia só
lida com princíp io s e leis universais, com a essência da
mecânica. Assim como a psicanálise se transforma em meta-
psicologia através da biologia, a reñexologia se transforma
através desta última em ideologia energética. () sumário de
um curso de reñexologia é o catálogo universal das leis do
universo. E, de novo, assim como na psicanálise, no mundo
tudo é reflexo. Anna Karênina e a cleptom ania, a luta de
classes e a paisagem , o idiom a e os so n h o s tam bém são
reflexos (V. M. Bekhterev, 1921, 1923).
A psicologia da Gestalt surge inicialmente de pesquisas
psicológicas concretas sobre os processos de percepção da
forma e é aí que recebe seu batizado prático: passou pela
prova da verdade. Mas por ter nascido na mesma época que
a psicanálise e a reñexologia, realiza o mesmo caminho que
elas com surpreendente uniform idade. Entra na psicologia
animal e constata que o pensam ento dos macacos também é
um processo gestáltico: no caso da psicologia da arte e da
psicologia dos povos, constata que o conceito pré-histórico
do m undo e a criação da arte também são Gestalten, a psi­
cologia infantil e a psicopatologia tam bém passam a fazer
parte da Gestalt, assim como o desenvolvim ento da criança
e as doenças psíquicas. Transformada finalmente em ideolo­
gia, a psicologia da Gestalt descobre as Gestalten na física e
na química, na fisiología e na biologia, e a Gestalt, enxuga­
da até chegar a se converter numa fórmula lógica, aparece
no fundam ento do m undo; ao criar o m undo, disse Deus:
“q ue seja G e sta lt” e tu d o se transform ou em G estalt (M.
Wertheimer, 1925; W. Kõhler. 1917, 1920; K. Koffka, 1925).
O personalismo, por último, surge inicialmente das pes­
quisas da psicologia diferencial. O princípio da personalida­
de, de tão grande valor para a mensuração em psicologia ou
para os enfoques relativos às aptidões etc., expandiu-se pri­
m eiro ao longo da psicologia para depois ultrapassar seus
limites. No conceito de individualidade, sob a forma de per­
sonalismo crítico, cabia influir não só o homem, mas também
os animais e as plantas. Só mais um passo, que já foi dado na
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 227

história da psicanálise e da reñexologia, e todo o m undo se


transformaria em personalidade. A filosofia, que com eçara
contrapondo a individualidade às coisas, arrebatando-a der
domínio destas, terminou reconhecendo que todas as coisas
eram individualidades. Disto resultou que as coisas não exis­
tiam em absoluto. A coisa é unicamente uma parte da indivi­
dualidade: dã na mesma a perna do hom em e a perna da
cadeira: mas com o essa parte é, por sua vez, com posta de
partes etc., até o infinito, a perna do hom em ou da mesa
volta a ser uma individualidade em relação a suas partes e
uma parte som ente em relação ao conjunto. O sistema solar
e as formigas, o bonde de Hindenburg, a mesa e a pantera
são igualmente individualidades (W. Stern, 1924).
Esses destinos, tão sem elhantes como quatro gotas da
mesma chuva, arrastam as idéias pelo mesmo cam inho. O
volume do conceito aumenta e tende ao infinito e, de acor­
do com a conhecida lei da lógica, seu conteúdo tende com
idêntica celeridade a zero. Cada um a dessas idéias é, no
lugar que lhe corresponde, extraordinariam ente rica quanto
a seu conteúdo, está cheia de significado e sentido, está
plena de valor e é frutífera. Mas quando as idéias se elevam
â categoria de leis universais passam a valer o mesmo, tanto
umas quanto as outras são absolutam ente iguais entre si,
isto é, simples e redondos zeros; a individualidade de Stern
é para Békhterev um com plexo de reflexos, para W erthei­
mer uma Gestalt e para Freud sexualidade.
E no quin to estágio de d esenvolvim ento todas essas
idéias enfrentam a mesma crítica, que pode ser resumida em
uma única fórm ula. À p sican álise se diz: o p rin c íp io da
sexualidade inconsciente é insubstituível para explicar as
neuroses histéricas, mas não lança luz alguma sobre a estru­
tura do m undo nem sobre o desenvolvim ento da história. À
reflexologia dizem; não se pode com eter um erro lógico. O
reflexo constitui apenas um dos capítulos da psicologia, não
impregna sua totalidade nem, naturalmente, a totalidade do
m undo (V. A. Vágner, 1923; L. S. Vigotski, 1925a). Aos psi­
cólogos da Gestalt dizem: vocês encontraram um princípio
m uito valioso em seu cam po; mas, se o pen sam en to não
228 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

supõe outra coisa que momentos de unidade e integridade


ou, o que dá na mesma, só encerra uma fórmula gestáltica, e
se essa fórmula expressa a essência de qualquer processo
orgânico e inclusive físico, o quadro do m undo seria evi-
dentem ente de uma perfeição e simplicidade assombrosas: a
eletricidade, a força da gravidade e o pensam ento humano
se reduziriam a um denom inador comum. Não se pode en­
fiar pensam ento e atitude num m esm o saco de estruturas
que não demonstrem primeiro que seu posto está no mesmo
recipiente que as funções estruturais. O novo fator funciona
num campo muito amplo, mas limitado: como princípio uni­
versal não resiste à crítica. E, ainda que graças ao modo de
pensar de alguns audazes teóricos tenha im perado a lei de
conseguir “tudo ou nada” nas tentativas explicativas, os pes­
quisadores p ru d en tes se vêem obrigados, atu an d o com o
contrapeso, a levar em consideração a teimosia dos fatos.
Porque procurar explicar tudo equivale a não explicar nada.
Essa tendência que qualquer idéia nova em psicologia
tem de se transformar em lei universal, não significa que a
psicologia deve, na verdade, basear-se em leis universais,
que todas essas idéias estão esperando que chegue a idéia-
mestra e ponha em seu devido lugar cada idéia particular e
lhe indique qual é seu significado? A regularidade do cami­
nho que com surpreendente constância percorrem as mais
diversas idéias está naturalm ente evidenciando que esse
caminho está predeterm inado pela necessidade objetiva de
um prin cíp io explicativo, e é p recisam en te p o rq u e esse
princípio falta e não existe que alguns princípios parciais
ocupam seu lugar. A psicologia deu-se conta de que para
ela é uma questão de vida ou morte encontrar um princípio
explicativo geral e se agarra a qualquer idéia, mesmo que
seja falsa.
Spinoza, em seu Tratado da correção do intelecto, des­
creve assim esse estado de consciência: “(...) como um doen­
te que sofre de um a enferm idade letal, prevendo a morte
certa se não em pregar determ inado rem édio, sente-se na
contingência de procurá-lo, ainda que incerto, com todas as
forças, pois que nele está sua única esperança" (1924, p. 63).
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 229

Ao longo da evolução das descobertas parciais sobre os


principios gerais, pudem os observar como se manifestava
cm sua forma pura uma tendência à explicação, que já apa­
recera na luta pelo predom ínio que se dá entre disciplinas.
Mas com isso já chegam os à segunda fase da evolução da
ciência geral, aquela a que nos referimos brevem ente acima.
Na primeira fase, determ inada pela tendência à generaliza­
ção, a ciência geral se diferencia das ciências particulares
por sua estrutura interna. Como veremos, nem todas as ciên­
cias percorrem ambas as fases em seu desenvolvimento; na
maioria delas a disciplina geral só se dã na prim eira fase.
Veremos claramente a causa disso quando formularmos com
exatidão sua diferença qualitativa para com a segunda fase.
Já vimos como o princípio explicativo nos obriga a sair
dos limites de uma ciência determ inada para interpretar a
totalidade do saber como uma categoria particular que exis­
te entre toda uma série de categorias, isto é, nos leva aos
últim os e mais gerais princípios, que são essencíalm ente
princípios filosóficos. Nesse sentido, a ciência geral é a filo­
sofia das disciplinas particulares.
N esse sentido L. B insw anger diz que a ciência geral
estuda os fundamentos e os problemas de todo um setor da
realidade, como, por exemplo, a biologia geral (1922, p, 3).
É curioso que o livro que deu origem à biologia geral se
chamasse Filosofia da zoologia (J. B. Lamarck). Quanto mais
longe chega a investigação geral, continua Binsw anger,
maior é o setor que abarca e mais abstrato e distante da rea­
lidade diretam ente percebida é o objeto dessa investigação.
No lugar de plantas, animais ou pessoas, o objeto de que se
ocupa a ciência é a m anifestação da vida, força e matéria,
como na física, ao invés dos corpos e suas mudanças. Para
qualquer ciência chega, mais cedo ou mais tarde, o momen­
to em que deve ter consciência de si mesma como um con­
junto, com preender seus métodos e trasladar a atenção dos
atos e fenôm enos aos conceitos que utiliza. Mas, a partir
desse momento, a ciência geral passa a se distinguir da par-
228 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

supõe outra coisa que m omentos de unidade e integridade


ou, o que dá na mesma, só encerra uma fórmula gestáltica, e
se essa fórmula expressa a essência de qualquer processo
orgânico e inclusive físico, o quadro do m undo seria evi­
dentem ente de uma perfeição e simplicidade assombrosas: a
eletricidade, a força da gravidade e o pensam ento humano
se reduziriam a um denom inador comum. Xào se pode en­
fiar pensam ento e atitude num m esm o saco de estruturas
que não demonstrem primeiro que seu posto está no mesmo
recipiente que as funções estruturais. O novo fator funciona
num campo muito amplo, mas limitado: como princípio uni­
versal nào resiste à crítica. E, ainda que graças ao modo de
pensar de alguns audazes teóricos tenha imperado a lei de
conseguir “tudo ou nada” nas tentativas explicativas, os pes­
q uisadores p ru d en tes se vêem obrigados, atuando com o
contrapeso, a levar em consideração a teimosia dos fatos.
Porque procurar explicar tudo equivale a não explicar nada,
Essa tendência que qualquer idéia nova cm psicologia
tem de se transform ar em lei universal, não significa que a
psicologia deve, na verdade, basear-se em leis universais,
que todas essas idéias estão esperando que chegue a idéia-
mestra e ponha em seu devido lugar cada idéia particular e
lhe indique qual é seu significado? A regularidade do cami­
nho que com surpreendente constância percorrem as mais
diversas idéias está naturalm ente evidenciando que esse
caminho está predeterm inado pela necessidade objetiva de
um p rincípio explicativo, e é p recisam ente p o rq u e esse
principio falta e nào existe que alguns princípios parciais
ocupam seu lugar. A psicologia deu-se conta de que para
ela é uma questão de vida ou morte encontrar um princípio
explicativo geral e se agarra a qualquer idéia, m esmo que
seja falsa,
Spinoza, em seu Tratado da correção do intelecto, des­
creve assim esse estado de consciência: “(...) como um doen­
te que sofre de uma enferm idade letal, prevendo a morte
certa se não em pregar determ inado rem édio, sente-se na
contingência de procurá-lo, ainda que incerto, com todas as
forças, pois que nele está sua única esperança” (1924, p. 63).
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 229

Ao longo da evolução das descobertas parciais sobre os


princípios gerais, pudem os observar como se manifestava
em sua forma pura uma tendência à explicação, que já apa­
recera na luta pelo predomínio que se dã entre disciplinas.
Mas com isso já chegam os à segunda fase da evolução da
ciência geral, aquela a que nos referimos brevemente acima.
Na primeira fase, determinada pela tendência à generaliza­
ção, a ciência geral se diferencia das ciências particulares
por sua estrutura interna. Como veremos, nem todas as ciên­
cias percorrem ambas as fases em seu desenvolvimento; na
maioria delas a disciplina geral só se dá na prim eira fase.
Veremos claramente a causa disso quando formularmos com
exatidão sua diferença qualitativa para com a segunda fase.
Já vimos como o princípio explicativo nos obriga a sair
dos limites de uma ciência determ inada para interpretar a
totalidade do saber como uma categoria particular que exis­
te entre toda uma série de categorias, isto é, nos leva aos
últimos e mais gerais princípios, que são essencialm ente
princípios filosóficos. Nesse sentido, a ciência geral é a filo­
sofia das disciplinas particulares.
Nesse sentido L. Dinsw anger diz que a ciência geral
estuda os fundam entos e os problemas de todo um setor da
realidade, como, por exemplo, a biologia geral (1922, p. 3)-
É curioso que o livro que deu origem à biologia geral se
chamasse Filosofia da zoología (J, fí. Lamarck). Quanto mais
longe chega a investigação geral, co ntinua R insw anger,
maior é o setor que abarca e mais abstrato e distante da rea­
lidade diretamente percebida é o objeto dessa investigação.
No lugar de plantas, animais ou pessoas, o objeto de que se
ocupa a ciência é a m anifestação da vida, força e matéria,
como na física, ao invés dos corpos e suas mudanças. Para
qualquer ciência chega, mais cedo ou mais tarde, o momen­
to em que deve ter consciência de si mesma como um con­
junto, com preender seus métodos e trasladar a atenção dos
atos e fenôm enos aos conceitos que utiliza. Mas, a partir
desse momento, a ciência geral passa a se distinguir da par-
230 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

ticular, não porque tenha um âmbito mais amplo, um con­


teúdo maior, mas porque está organizada qualitativam ente
de outra forma. Já não estuda os mesmos objetos que a ciên­
cia particular, mas analisa seus conceitos; transforma-se nu­
ma investigação crítica, no sentido em que E. Kant em pre­
gou essa expressão. A análise crítica não é mais uma análise
biológica ou física, mas centrada nos conceitos da biologia e
da física. Binsw anger define, portanto, a psicologia geral
como a interpretação crítica dos principais conceitos da psi­
cologia, o que, em duas palavras, pode ser resum ido como a
“crítica da psicologia”. É um ramo da metodologia geral, isto
é, uma parte da lógica, cuja tarefa consiste em estudar como
se aplicam as diferentes formas e normas lógicas em distin­
tas ciências em função da natureza real, formal e material
que o objeto apresente, em função do m odo de abordar o
conhecim ento dos problem as (1922, pp. 3-5).
Mas esse raciocínio, embora baseado em premissas ló-
gico-formais, só é em parte veraz. É verdade que a ciência
geral é a doutrina dos fundam entos últimos, dos princípios e
problem as gerais do ramo do saber em questão e que, por
conseguinte, seu objeto, sua forma de análise, seus critérios,
são diferentes dos das disciplinas particulares. Mas não é
verdade que seja unicamente uma parte da lógica, uma dis­
ciplina lógica. Não é correto que a biologia geral tenha dei­
xado de ser uma disciplina biológica, ou que a psicologia
geral tenha deixado de ser psicologia e tenham ambas se
transformado em lógica, nem que sejam somente crítica no
sentido kantiano, que trabalha som ente com conceitos. Se
nos ativermos à natureza interna do saber científico, isso é
falso tanto de seu ponto de vista histórico, quanto fático.
É errôneo historicamente, isto é, não responde à situa­
ção real dos fatos em nenhuma das ciências, Não existe uma
ciência geral com a forma descrita por Binswanger. Inclusi­
ve a biologia geral tal como existe na realidade (a biologia
cujos fu n d am e n to s foram e sta b e le c id o s por Lam arck e
Darwin em seus trabalhos), a biologia que é até agora o có­
digo do conhecimento real da matéria viva não é, evidente­
mente, uma parte da lógica, mas uma ciência natural, ainda
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 231

que de alto, nível. É claro que não se ocupa de objetos vivos


e concretos, de plantas ou animais, mas de abstrações tais
como o organismo, a evolução das espécies, a seleção natu­
ral, a vida. Mas aquilo que estuda com a ajuda dessas abstra­
ções é, em última instância, a mesma realidade que a zoolo­
gia e a botânica. Seria um equívoco afirmar que estuda con­
ceitos e não a realidade refletida neles, assim como o seria
dizer que o engenheiro que estuda o projeto de uma máqui­
na estuda o projeto e não a máquina ou que um anatomista
que estuda em um atlas anatômico estuda desenhos, e não o
esqueleto hum ano. Porque também os conceitos s io somen­
te desenhos, fotografias, esquemas da realidade e ao estudá-
los estudamos modelos dessa última, assim como mediante
um a planta ou um m apa geográfico estudam os um país
ou uma cidade estranha.
O próprio Binswanger vê-se obrigado a reconhecer, em
relação a ciências tão desenvolvidas como a física e a quími­
ca, que se cria entre os pólos crítico e empírico um amplo
campo de investigação que conhecem os sob a denominação
de física (ou química) teórica ou geral. A psicologia científi­
co-natural teórica, afirma o psicólogo suíço, também se com­
porta de um m odo similar quando tenta atuar segundo os
parâm etros da física. Por mais abstratam ente que a física
teórica formule o objeto de seu estudo, por exemplo, a “dis­
ciplina das d ep en d ên cias causais entre os fenôm enos da
natureza”, estuda fatos reais. A física geral analisa o próprio
conceito de fenôm eno físico, de conexão física causal, mas
não as leis e teorias particulares sobre cuja base puderam
ser explicados os fenôm enos reais com o fisicam ente cau­
sais: antes, a própria explicação física constitui um objeto de
investigação da física geral (L. Binswanger, 1922, pp. 4-5).
Como vemos, o próprio Binswanger reconhece que sua
concepção da ciência geral difere precisamente neste ponto
da concepção atual que ocorre em uma série de ciências. C)
que as distingue não é o maior ou menor grau de abstração
dos conceitos, ou o fato de que estes estejam mais ou menos
distantes dos fatos reais ou empíricos, nem as dependências
causais que estabelecem como objeto geral de uma ciência.
232 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

mas que se diferenciam em seu objetivo final: a física geral se


orienta, em última instância, para fatos reais que quer expli­
car com a ajuda de conceitos abstratos. Idealmente, a ciência
geral não se orienta para os fatos reais mas para os próprios
conceitos, e nada tem a ver com os fatos reais.
O que se verifica é que, quando surgem oposiçòes entre
teoria e história, quando existem, como neste caso, divergên­
cias entre a idéia e o fato, a discussão sc resolve sempre em
um sentido ou no outro. Mas nas investigações sobre os prin­
cípios, os argumentos sobre os fatos são, às vezes, inoportu­
nos. Aqui, ante a crítica que indica a não-conformidade entre
idéias e fatos pode-se responder com razão e com sentido:
pior para os fatos. Nesse caso, pior para as ciências, se estas
se encontram na fase de desenvolvimento em que ainda não
alcançaram o grau de ciência geral. O fato de que a ciência
geral ainda não exista nesse sentido não quer dizer que não
vá existir, que não deva existir, que não seja possível nem
necessário iniciá-la. Por isso, o problema deve ser estudado
desde suas raízes lógicas; somente então será possível expli­
car tam bém o significado histórico da divergência entre a
ciência natural e sua idéia abstrata.
De fato, é importante estabelecer duas teses.
1) Todo conceito científico-natural, por mais alto que
seja seu grau de abstração em relação ao fato em pírico,
encerra também uma concentração, um sedimento da reali­
dade concreta e real de cujo conhecimento científico surgiu,
ainda que seja só em uma solução muito fraca. Ou seja, a
qualquer conceito, ainda que se trate do mais abstrato - do
último - corresponde um certo grau de realidade, represen­
tada no conceito em forma abstrata, segregada da realidade;
inclusive conceitos puram ente fictícios, não mais científico-
naturais, mas m atem áticos, são, no fim das contas, uma
repercussão, um reflexo de relações reais entre coisas e pro­
cessos reais, ainda que não procedam de um conhecimento
experimental, real, mas tenham surgido a priori, segundo o
cam inho dedutivo, de operações especulativas lógicas. In­
clusive um conceito tão abstrato com o a série num érica,
inclusive uma ficção tão patente como o zero (isto é, a idéia
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 233

da ausência de qualquer m agnitude) são, com o m ostrou


Engels, plenam ente qualitativos. Ou seja, são, em última ins­
tância, reais, são correspondências muito distantes e abstra­
tas das relações reais entre as coisas. A realidade existe
inclusive dentro das abstrações imaginárias das m atem áti­
cas. “Dezesseis não é somente a soma de 16 unidades, mas
é tam bém o q uadrado de 4 e a quarta potência de 2 (...)
Somente os núm eros pares são divisíveis por 2 (...) Para 3
rege a regra da soma dos algarismos (...) Para 7 rege uma
regra especial’’ (K. Marx, F. Engels, Obras, t. 20, p. 573). “O
zero anula qualquer outro número pelo qual se multiplique;
e, ao se combinar com outro número como divisor ou como
dividendo, transform a este núm ero, no prim eiro caso, em
in fin itam en te g ran d e e, no seg u n d o , em infin itam en te
pequeno (...)” ( ibidem, p. 576). Sobre todos esses conceitos
da matemática caberia dizer o que Engels diz do zero, em­
pregando palavras de Hegel: “O nada de algo é um determi­
nado nada” ( ibidem, p. 577), ou seja, um nada real, no fim
das contas. Mas, não serão talvez essas qualidades, proprie­
dades ou determ inações dos conceitos com o tal, que não
mantêm a menor relação com a realidade?
F. Engels considera claram ente errônea a opinião de
que a m atemática trata de criações puram ente livres e de
produtos do espírito hum ano que carecem de toda corres­
pondência no m undo objetivo. O correto é precisamente o
contrário. Na natureza encontram os p ro tó tip o s de todas
essas quantidades imaginárias. A molécula possui proprie­
dades em relação à massa correspondente, idênticas às que
possui a diferencial matemática em relação a sua variável.
“A natureza opera com essas diferenciais, com as moléculas,
exatam ente do mesmo m odo e respeitando as mesmas leis
que a matemática com suas diferenciais abstratas” ( ibidem ,
p. 583). Em matemática esquecem os todas essas analogias e
por isso suas abstrações se transformam em algo enigmáti­
co. Sempre podem os encontrar “relações reais, das quais foi
tomada (...) a relação matemática e inclusive casos naturais
análogos ao m odo m atem ático em que age essa relação ”
( ibidem, p. 586). Protótipos do infinito matemático e outros
234 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

conceitos figuram no m undo real. “O infinito m atem ático


está tomado, aínda que seja de um m odo inconsciente, da
realidade, razão pela qual só pode ser com preendido partin­
do da realidade e nào de si mesmo, da abstração matemáti­
ca” (ibidem).
Se isto é verdade em relação à abstração m atem ática
(isto é, em relação à máxima abstração possível) o será de
maneira ainda mais evidente quando o aplicamos às abstra­
ções reais das ciências naturais; estas terão de ser explica­
das, naturalm ente, partin d o apenas da realidade de que
foram tomadas e não partindo delas mesmas, das próprias
abstrações.
2) A segunda tese que é necessário estabelecer para
realiz.ar uma análise de princípio do problem a da ciência
geral é oposta à primeira. Se aquela afirmava que na mais
alta abstração científica há um elem ento de realidade, esta,
como teorema contrário, estabelece que todo fato científico-
natural isolado, por mais em pírico e pouco m aduro que
seja, jã encerra uma abstração primária. O fato real e o fato
científico distinguem -se precisam ente um do o u tro pelo
fato de que este último constitui o fato real reconhecido em
determ inado sistema, isto é, uma abstração de certos traços
da inesgotável soma de signos do fato natural. O material da
ciência não é constituído pelo material natural cru, mas pelo
material logicam ente elaborado que se destaca de acordo
com um determinado signo. Os corpos físicos, o movimen­
to, a substância, são abstrações. O próprio ato de denom inar
um fato m ediante a palavra supõe superpor a ele um con­
ceito, o de destacar nele uma de suas facetas significa inter­
pretá-lo assimilando-o à categoria dos fenômenos reconhe­
cida anteriormente pela experiência. Q ualquer palavra já é
uma teoria, como observaram faz tem po os lingüistas e mos­
trou perfeitamente A. A. Potebnía.
Tudo que é descrito com o fato já é teoria, diz Müns-
terberg, recordando as palavras de Goethe, ao fundamentar
a necessidade da metodologia (1922). Q uando tropeçam os
com o que denominamos vaca e dizemos: “isto é uma vaca”,
ao ato de perceber unimos o de pensar, incluindo a mencio-
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 235

nada percepção num conceito geral; a criança, ao nom ear


pela primeira vez as coisas, realiza autênticos descobrimen­
tos. O que se vê não é, na verdade, uma vaca. Não se vêem
as vacas. O que se vê é algo grande, preto, que se move, mu­
ge etc,; e se compreende que é uma vaca e este ato é um ato
de classificação, de inclusão de um fenômeno isolado dentro
da categoria de fenôm enos análogos, de sistematizaçào da
experiência etc. Assim, a própria língua encerra os funda­
mentos e as possibilidades da cogniçâo científica do fato. A
palavra é o germe da ciência e nesse sentido caire dizer que
no começo da ciência estava a palavra.
Q uem viu, quem p erceb eu fatos em píricos, com o o
calor oculto na form ação do vapor? Em nenhum processo
real podem os percebê-lo diretamente, mas podem os dedu­
zir obrigatoriamente esse fato e deduzir significa operar com
conceitos.
Um bom exemplo da existência de abstrações e da par­
ticipação do pensam ento em todo fato científico é encontra­
do em Engels. As formigas têm olhos diferentes dos nossos;
vêem raios químicos invisíveis para nós. Isto é um fato. Co­
mo foi estabelecido? Como podem os saber que “as formigas
vêem coisas invisíveis para nós”? Baseamos isto, naturalm en­
te, nas percepções de nossos olhos, mas também na ativida­
de de nosso pensam ento. Por conseguinte, o estabelecim en­
to do fato científico já é um produto do pensam ento, isto é,
do conceito. “É claro que jamais chegaremos a saber como
as form igas vêem os raios quím icos. E para aquele para
quem isto for uma tortura, não vemos que rem édio ofere­
cer” (K. Marx, F. Engels, Obras, t. 20, p. 555)*.

* Assinalemos, a propósito, que neste exemplo psicológico pode-se ver


como não coincidem em psicologia o fato científico e o da experiência direta.
É possível estudar como as formigas vêem e inclusive como vêem coisas invi­
síveis para nós e não saber que coisas são estas para as formigas. Ou seja, é
possível estalrelecer fatos psíquicos sem partir de modo algum da experiência
interna, em outras palavras, sem uma origem subjetiva. Engels não considera
que isto seja importante para o fato científico: para quem isto for uma tortura,
diz, nào vemos qual remédio podemos oferecer.
236 TEORIA £ MÉTODO EM PSICOLOGIA

Eis aqui o m elhor exem plo de falta de coincidência


entre o fato real e o científico. Nesse caso a discrepância se
m anifesta com especial clareza, mas em qualquer fato se
apresenta, em m aior ou m enor m edida. Nunca vim os os
raios químicos nem percebem os as sensações das formigas;
ou seja: com o fato real da experiência direta, a visão dos
raios químicos por parte das formigas não existe para nós.
Mas para a existência coletiva da hum anidade existe sim
como fato científico. O que dizer então do fato da rotação
da Terra em torno do Sol? Trata-se neste caso de um fato
real, que para chegar a ser um fato científico teve de inver­
ter o curso natural do pensam ento do homem, apesar de a
rotação da Terra em torno do Sol ter sido estudada por meio
das observações da rotação do Sol em torno da Terra.
Dispomos agora do necessário para resolver o proble­
ma e podem os nos dirigir diretam ente para nosso objetivo.
Se a base de qualquer conceito científico é constituída pelos
fatos e, por sua vez, a dos fatos científicos está nos concei­
tos, depreende-se inevitavelmente cjue, quanto a seu objeto
de análise, a diferença entre as ciências gerais e as empíricas
é puram ente quantitativa e não conceituai: trata-se de dife­
rentes graus e não de diferentes naturezas de um fenômeno.
As ciências gerais não se ocupam de objetos reais, mas de
abstrações; não estudam as plantas e os animais, mas a vida:
seu objetivo são os conceitos científicos. Mas a vida também
é parte da realidade e esses conceitos têm protótipos na rea­
lidade. As ciências particulares têm como objeto fatos reais
com existência efetiva: não estudam a vida em geral, mas
classes e grupos reais de plantas e animais. Mas também as
plantas e os animais, o vidoeiro e o tigre, e inclusive este
vidoeiro e este tigre já são conceitos. O fato e o conceito
constituem o objeto de certas disciplinas, mas só em grau
diferente, em proporção diferente. Por conseguinte, a física
geral não deixa de ser uma disciplina física e não se trans­
forma em parte da lógica pelo fato de que se ocupe dos
conceitos físicos mais abstratos; até m esm o neles se reco­
nhece, no fim das contas, um determ inado fragm ento da
realidade.
0 SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 237

Mas pode ser que a natureza dos objetivos da disciplina


geral ou da particular seja na verdade a mesma, pode ser que
só as distinga a proporção da relação entre o conceito e o
fato e que a diferença de principio que permite incluir urna
delas na lógica e a outra na física esteja na direção, no objeti­
vo, no ponto de vista de ambas as análises, no distinto papel,
poder-se-ia dizer, que desem penham os mesmos elementos
em ambos os casos. Não poderíamos dizer que tanto o con­
ceito quanto o fato participam da form ação do objeto de
um a ou de outra ciência, mas num caso - no da ciência
empírica - recorremos aos conceitos para conhecer os fatos
e no segundo - na ciência geral - utilizamos os fatos para
conhecer os próprios conceitos? No primeiro caso, o concei­
to não é um objeto, um fim, um objetivo de conhecimento.
Os conceitos são instrum entos da ciência, meios, procedi­
mentos auxiliares, mas o fim desta, seu objeto, são os fatos;
com o resultado do conhecim ento aum enta o núm ero de
fatos que conhecemos e não o de conceitos; estes, em con­
trapartida, como todos os instrumentos de trabalho, se des­
gastam com o uso, se deterioram, necessitam ser revisados e,
com freqüência, substituídos. No segundo caso, pelo contrá­
rio, estudam os os próprios conceitos como tal, sua relação
com os fatos é apenas um meio, um procedimento, um méto­
do, a comprovação de sua utilidade. Como resultado disso
não conhecemos novos fatos, mas adquirimos ou novos con­
ceitos ou novos conhecimentos sobre os conceitos. Porque se
pode olhar duas vezes uma gota de água com um microscó­
pio e serão dois processos totalmente distintos, apesar de a
gota e o microscópio serem os mesmos; na primeira vez, por
meio do m icroscópio estudam os a com posição da gota de
água; na segunda, mediante o exame da gota de água, com­
provamos a própria validade do microscópio, não é assim?
Mas a dificuldade do problem a consiste precisam ente
em que isto não é assim. É verdade que, na ciência particu­
lar, utilizamos os conceitos como instrumentos para conhe­
cer os fatos. Mas, à medida que os utilizamos, os comprova­
mos, os estudam os, os dominamos, os modificamos, elimi­
namos os conceitos inúteis e criamos outros novos. Já no
238 T E O R IA E M É T O D O EM P S IC O L O G IA

p rim e iro e s tá g io d e e la b o r a ç ã o c ie n tífic a d o m a te ria l e m p íri­


c o , o e m p r e g o d e c o n c e ito s im p lic a u m a c rític a a o s p r ó p r io s
c o n c e ito s s o b a p e rs p e c tiv a d o s fa to s e p e rm ite q u e a lg u n s
c o n c e i t o s s e j a m c o m p a r a d o s c o m o u t r o s e que a l g u n s s e j a m
m o d ific a d o s . Q u e s irv a m d e e x e m p lo o s d o is fa to s c ie n tífi­
c o s q u e a c a b a m o s d e m e n c io n a r, q u e n ã o p e rte n c e m em
a b s o lu to à c iê n c ia g e ra l: a ro ta ç ã o d a T e rra e m to r n o d o S o l
e a v is ã o d a s fo rm ig a s . Q u a n to tr a b a lh o c rític o s o b r e n o s s a s
p e rc e p ç õ e s e, p o rta n to , q u a n to s c o n c e ito s re la c io n a d o s c o m
e la s , q u a n ta s a n á lis e s d ire ta s d o s c o n c e ito s (v is ã o - n ã o -
v is ã o , m o v im e n to a p a r e n te ) , q u a n ta c r ia ç ã o d e n o v o s c o n ­
c e ito s , q u a n ta s c o n e x õ e s n o v a s e n tr e o s c o n c e ito s , q u a n to s
tip o s d e c o n c e ito d e v is ã o , d e lu z , d e m o v im e n to e tc . fo ra m
n e c e s s á r io s p a r a e s ta b e le c e r e s s e s fa to s ! F in a lm e n te , s e r á
q u e a p r ó p r i a s e l e ç ã o d o s f a t o s q u e q u e r e m o s c o n h e c e r não
o c o rre e m fu n ç ã o d e u m a a n á lis e c o n c e itu a i e n ã o só d e
f a to s ? P o r q u e s e o s c o n c e i t o s , n a q u a l i d a d e d e i n s t r u m e n t o s ,
e s tiv e s s e m d e s tin a d o s d e a n te m ã o a d e te r m in a d o s fa to s d a
e x p e riê n c ia , to d a a c iê n c ia s e ria d is p e n s á v e l: m ilh a re s d e
fu n c io n á rio s re g is tra d o re s o u e s ta d is ta s c o n ta d o r e s te r-s e -
i a m dedicado a d i s t r i b u i r t o d o o U n i v e r s o e m f i c h a s , c o l u ­
n a s , s e ç õ e s . O c o n c e ito c ie n tífic o s e d is tin g u e d o re g is tro n o
a to d a e s c o lh a d o c o n c e ito n e c e s s á r io , o u s e ja , n a a n á lis e d o
fa to e n a a n á lis e d o c o n c e ito .
T o d a p a la v ra é u m a te o ria ; a d e n o m in a ç ã o d o o b je tiv o
é o c o n c e ito q u e a e le s e a p lic a . É v e r d a d e q u e c o m a a ju d a
d a s p a la v ra s q u e re m o s in te r p r e ta r o s o b je tiv o s . M as é q u e
c a d a d e n o m in a ç ã o , c a d a u tiliz a ç ã o d a p a la v ra , d e s s e e m ­
b r iã o d a c iê n c ia , c o n s titu i u m a c rític a d a p a la v ra , u m d e s ­
g a s te d e s u a im a g e m , u m a a m p lia ç ã o d e s e u s ig n ific a d o . O s
lin g ü is ta s d e m o n s tr a r a m c o m to d a c la re z a c o m o a s p a la v ra s
v a r i a m c o m o uso; c a s o c o n t r á r i o , a l í n g u a n ã o s e r e n o v a r i a
n u n c a , a s p a la v ra s n ã o m o rre ria m , n ã o n a s c e ria m , n ã o e n v e ­
lh e c e ria m .
F in a lm e n te , q u a lq u e r d e s c o b e rta n a c iê n c ia , q u a lq u e r
p a s s o p a ra f re n te n a c iê n c ia e m p íric a , é s e m p r e a o m e s m o
t e m p o u m a t o d e c r í t i c a d o c o n c e i t o . 1. P . P ã v l o v d e s c o b r i u
o f a to n o s re f le x o s c o n d ic io n a d o s ; m a s s e r á q u e n ã o c rio u
O SIG N IFICA DO H ISTÓ RICO DA C R IS E DA P SIC O L O G IA 239

a o m e s m o te m p o u m n o v o c o n c e ito ; s e rá q u e a n te s n ã o se
d a v a o n o m e d e reflexo a u m m o v i m e n t o a p r e n d i d o , r e s u l ­
t a d o d o a d e s t r a m e n t o ? N ã o p o d i a s e r d e o u t r a f o r m a : se a
c iê n c ia s ó d e s c o b r is s e fa to s , s e m a m p lia r c o m is s o o s lim ite s
d o s c o n c e ito s , n a d a d e s c o b riria d e n o v o ; p e rm a n e c e ria
e s ta n c a d a , s e lim ita ria a e n c o n tr a r a c a d a v e z n o v o s e x e m ­
p l a r e s d o s m e s m o s c o n c e i t o s . T o d o n o v o g r ã o d e u m f a t o já
é u m a a m p lia ç ã o d o c o n c e ito . T o d a n o v a re la ç ã o d e s c o b e rta
e n tr e d o is fa to s e x ig e im e d ia ta m e n te a c rític a d o s d o is c o n ­
c e ito s c o r r e s p o n d e n te s e o e s ta b e le c im e n to d e n o v a s re la ­
ç õ e s e n tre e le s . O re fle x o c o n d ic io n a d o é a d e s c o b e r ta d e
u m n o v o fa to c o m a a ju d a d e u m v e lh o c o n c e ito . S o u b e m o s
q u e a s a tis fa ç ã o p s íq u ic a s u rg e d ire ta m e n te d o re fle x o , m e ­
lh o r d iz e n d o , q u e é o p r ó p r io re fle x o , m a s q u e a tu a e m
o u tra s c o n d iç õ e s . M as, a o m e s m o te m p o , ê a d e s c o b e rta d e
u rn n o v o c o n c e ito c o m a a ju d a d e u m a n tig o fa to : c o m a
a j u d a d o f a t o c o n h e c i d o d e t o d o s d e q u e ‘T ic o c o m á g u a n a
b o c a ' a o v e r a c o m id a ”, o b tiv e m o s u m c o n c e ito to ta lm e n te
n o v o d o re fle x o . N o s s a id é ia d e le s e m o d ific o u d ia m e tra l­
m e n te ; a n te s , o r e fle x o e ra s in ô n im o d e u m fa to p r é - p s íq u i-
c o , i n c o n s c i e n t e , invariável. A g o r a n o s r e f l e x o s s e a g r u p a
to d a a p s iq u e , o re fle x o d e m o n s tr o u s e r o m e c a n is m o m a is
fle x ív e l e tc . C o m o is to te ria s id o p o s s ív e l s e P á v lo v tiv e s s e
e s tu d a d o s o m e n te o fa to d a s a liv a ç ã o e n ã o o c o n c e ito d e
re fle x o ? E m e s s ê n c ia ê a m e s m a c o is a , m a s e x p r e s s o d e d u a s
f o r m a s d i s t i n t a s , já q u e e m t o d a d e s c o b e r t a c i e n t í f i c a o
c o n h e c im e n to d o fa to é , n a m e s m a m é d ia , o c o n h e c im e n to
d o c o n c e ito . A a n á lis e c ie n tífic a d o s fa to s s e d ife re n c ia p r e ­
c is a m e n te d o re g is tr o d o s m e s m o s p o r q u e im p lic a a a c u m u ­
l a ç ã o d e c o n c e i t o s , i m p l i c a a inter-relaçâo d e c o n c e i t o s e
fa to s , r e s s a lta n d o o s p r im e ir o s .
F in a lm e n te , ê n a s c iê n c ia s p a rtic u la re s q u e n a s c e m to ­
d o s o s c o n c e ito s q u e a c iê n c ia g e ra l e s tu d a . P o rq u e n ã o é
n a ló g ic a q u e n a s c e m a s c iê n c ia s n a tu r a is , n ã o é e la q u e
lh e s fo rn e c e c o n c e ito s p r e p a r a d o s d e a n te m ã o . C o m o se

2. Na expressão russa figura a palavra “saliva”: sliunki tekut (trad, lit.:


“minha saliva caí"). (N.T.E.)
240 TEORÍA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

poderia então admitir que o trabalho de criação de concei­


tos cada vez mais abstratos se produza de forma totalmente
inconsciente? Como é possível a existência de teorias, de
leis, hipóteses alternativas sem a crítica de conceitos? Como
se pode criar em geral uma teoria ou lançar uma hipótese,
ou seja, algo que ultrapasse os limites dos fatos, sem traba­
lhar com os conceitos?
Poderia então acontecer que nas ciências particulares a
análise dos conceitos se faça superficialm ente, junto com
outras coisas, à medida que se vai estudando os fatos, e que
a ciência geral estude exclusivam ente conceitos? Isto tam­
bém seria errôneo. Vimos que os conceitos abstratos com
que opera a ciência geral encerram um núcleo real. Coloca-
se então a seguinte pergunta: o que a ciência faz com esse
núcleo: prescinde dele, esquece-o, se oculta por trás da
inexpugnável fortaleza da abstração, como as matérias pu­
ras, e não recorre a esse núcleo nem no processo de análise,
nem em seu resultado, como se o núcleo real não existisse
em absoluto? Basta estudar o tipo de análise que se utiliza
na ciência geral e seu resultado final para ver que não é
assim. Será que os conceitos são analisados através de pura
dedução, da descoberta de relações lógicas entre eles e nào
através de uma nova indução, de uma nova análise, do esta­
belecimento de novas relações, em suma, através do traba­
lho sobre o co n teú d o real desses conceitos? Porque não
desenvolvemos nosso pensam ento a partir de premissas par­
ciais, como em matemática, mas induzimos, criamos novas
abstrações. É assim que atua a biologia geral e a física geral.
Nenhuma ciência geral pode agir de outro modo, visto que
a fórmula lógica “A é B” é substituída por definições, isto é,
por А e В reais: a massa, o movimento, o corpo, o organis­
mo. E como resultado da análise realizada pela ciência geral
não obtemos, como é lógico, novas fórmulas de inter-rela-
ção de conceitos, mas novos fatos: conhecem os por exem ­
plo a evolução, ou a herança, ou a inércia. Como conhece­
mos o conceito de evolução? Que cam inho seguim os para
alcançá-lo? Com parando fatos tais como os dados que pro­
vêm da anatomia comparada, da fisiología, da botânica e da
O S IG N IF IC A D O H IS T Ó R IC O D A C R IS E DA P S IC O L O G IA 241

zoología, da embriología e da fototecnia, da zootecnia etc.


Ou seja, atuamos da mesma maneira que nas ciencias parti­
culares, com fatos individuais; e b asean d o -n o s no novo
estudo de fatos originados em distintas ciências estabelece­
mos outros novos. D urante todo o processo de análise e
como resultado dele, operam os com fatos.
Por conseguinte, as diferenças existentes quanto a obje­
tivos, direção e formação dos conceitos e os fatos entre as
ciências gerais e as particulares voltam a ser somente dife­
renças quantitativas, diferenças de grau e não de natureza.
Diferenças que não são absolutas nem de princípios.
Passem os finalm ente à definição positiva do que é a
ciência geral. Poderia parecer que, se as diferenças entre
ciências gerais e particulares, no que se refere a seu objeto e
formas de análise, são apenas relativas e não absolutas, quan­
titativas e não de princípio, careceríam os de fundam entos
para delim itar as ciências de um p o nto de vista teórico.
Poderia parecer que não existe uma ciência geral, só ciências
particulares. Mas, é claro, isto não é correto. Â quantidade
nesse caso se transforma em qualidade e estabelece a origem
de uma ciência qualitativa distinta, mas não a exclui da famí­
lia das ciências em questão nem a transfere para a lógica.
Que a base de qualquer conceito científico esteja fundam en­
tada num fato não significa que em todo conceito científico o
fato esteja representado do mesmo modo. No conceito mate­
mático de infinito, a realidade se nos apresenta de um modo
totalmente diferente de como aparece no conceito do reflexo
condicionado. Nos conceitos de ordem superior com que
opera a ciência geral, a realidade aparece representada de
um modo distinto de como a representa a ciência empírica. E
esse procedimento, esse tipo, essa forma de apresentação da
realidade pelas diferentes ciências é o que determina a estru­
tura das disciplinas.
Mas essa diferença no m odo de apresentar a realidade,
ou seja, de estruturar os conceitos, tampouco deve ser inter­
pretada como absoluta. Entre a ciência em pírica e a geral
existem muitos graus de transição: nem uma só ciência digna
deste nome, diz Binswanger, pode “se limitar à simples acu-
242 T E O R IA E M É T O D O E M P S IC O L O G IA

mulação de conceitos, tenderá antes a transformar todo con­


ceito em regra, as regras em leis, as leis em teorias” (1922, p.
4). À medida que se acumula saber científico dentro da pró­
pria ciência, elaboram -se sem cessar conceitos, m étodos e
teorias. Ou seja, a transição de um pólo ao outro - do fato ao
conceito - que se produz, faz com que desapareça o abismo
lógico, o abismo intransponível entre a ciência geral e a par­
ticular. Esse processo é o que dá origem à independência
real e à necessidade da ciência geral. Assim como a própria
disciplina particular realiza em seu interior todo esse traba­
lho de elaborar os fatos, convertendo-os em leis e estas, atra­
vés das teorias, em hipóteses, a ciência geral leva a cabo
esse mesmo trabalho para uma série de ciências particulares,
seguindo um procedimento idêntico e com os mesmos fins.
Esse raciocínio é absolutam ente análogo ao que segue
Spinoza quanto fala do método. Recorrendo a uma compara­
ção do âmbito industrial, o processo metodológico, eqüivale­
ria, por sua natureza, à elaboração de meios de produção.
Mas na indústria a elaboração de m eios de produção não
constitui um processo inicial especial, mas uma parte do p r o
cesso geral de produção e depende dos mesmos processos e
instrumentos de produção que o resto da produção.
“Para isso, deve-se prim eiram ente considerar - argu­
menta Spinoza - que não haverá aqui uma investigação sem
fim; a saber, para descobrir qual o m elhor m étodo de inves­
tigar a verdade não é necessário outro método para investi­
gar qual o m étodo de investigar a verdade; e para que se
investigue esse segundo m étodo, não é necessário um ter­
ceiro, e assim ao infinito: por esse m odo nunca se chegaria
ao conhecim ento da verdade, ou, am es, a conhecim ento
algum. O mesmo se diria dos instrumentos materiais, sobre
os quais se argumentaria de igual forma, pois para forjar o
ferro precisar-se-ia de um martelo e, para se ter martelo, é
preciso fazê-lo, para o que se necessita de outro martelo e
de outros instrum entos, os quais tam bém supõem outros
instrumentos, e assim ao infinito; e desse modo em vão ten ­
taria alguém provar que homem nenhum tem poder de for­
jar o ferro. Mas com o os hom ens no com eço, com instru-
O S IG N IF IC A D O H IS T Ó R IC O D A C R IS E D A P S IC O L O G IA 243

m entos inatos, puderam fabricar algum as coisas m uito fá­


ceis, ainda que laboriosa e im perfeitam ente, feito o que
fabricaram outras coisas mais difíceis, com menos trabalho e
mais perfeição, passando assim gradativam ente das obras
mais simples aos instrumentos e destes a outras obras e ins­
trum entos, para chegar a fazer tantas coisas e tâo difíceis
com pouco trabalho, também o intelecto, por sua força nati­
va, faz para si instrum entos intelectuais e por m eio deles
adquire outras forças para outras obras intelectuais, graças
às quais fabrica outros instrumentos ou poder de continuar
investigando e assim prosseguindo gradativamente até atin­
gir o cume da sabedoria” (1914, pp, 81-4).
Inclusive a corrente metodológica cujo representante é
Binswanger não pode deixar de reconhecer que a produção
de instrumentos e a criação não são dois processos indepen­
dentes na ciência, mas duas facetas de um mesmo processo,
que caminham de mãos dadas. Seguindo H, Rickert, Bins­
wanger define toda a ciência como a elaboração de um ma­
terial. E por isso se coloca dois problemas em relação a cada
ciência: o problem a do material e o de sua elaboração. No
entanto, não é possível estabelecer uma distinção taxativa
entre o material de uma ciência e sua elaboração, porque o
próprio conceito de objeto de q ualquer ciência em pírica
implica um alto grau de elaboração, Binswanger estabelece
uma diferença entre o material bruto, o objeto real e o obje­
to científico; este último é criado pela ciência por meio de
conceitos procedentes do objeto real (Binswanger, 1922, pp.
7-8). Se form ulam os um terceiro círculo de problem as -
sobre a relação entre o material e a elaboração, isto é, entre
o objeto e o m étodo da ciência também neste caso a dis­
cussão pode girar somente em torno de o que é que define
o que: o m étodo define o objeto ou o inverso. Alguns, como
K. Stumpf, supõem que a única diferença entre os métodos
decorre da diferença entre os objetos. Outros, como Rickert,
opinam que distintos objetos, tanto físicos quanto psíquicos,
exigem o m esm o m étodo ( ib id em , pp. 21-2). Mas, com o
podem os ver, tam pouco aqui existem fundamentos que per­
mitam delimitar entre a ciência geral e a particular.
244 T E O R IA E M É T O D O EM P S IC O L O G IA

A única coisa que tudo isso demonstra é que é impossí­


vel definir de forma absoluta o conceito de ciência geral, só
cabendo fazê-lo em relação à ciência particular. Não se dife­
rencia desta última nem pelo objeto, nem pelo método, nem
pelo fim, nem pelo resultado de suas análises. Em relação a
toda uma série de ciências particulares, que estudam sob o
m esm o po n to de vista âm bitos contíguos da realidade, a
ciência geral realiza o m esm o tra b a lh o , e m p re g an d o o
mesmo procedim ento e com o mesmo fim que cada uma das
ciências particulares. Vimos que nenhuma ciência se limita
simplesmente a acumular material, mas o submete a um tra­
tam ento multiforme e nuiltigradual, que perm ite agrupar e
generalizar esse m aterial criando teorias e hipóteses, que
ajudam a interpretar com maior amplidão a realidade e que
a ilustram com fatos particulares isolados. A ciência geral
contínua a tarefa das ciências particulares. Quando o mate­
rial alcançou o grau máximo de generalização possível na
ciência particular em questão, a últim a generalização só
pode ocorrer fora de seus limites, m ediante com parações
com uma série de ciências próxim as. É isto que a ciência
geral faz. Sua única diferença em relação às ciências particu­
lares consiste em realizar o trabalho sobre a base do realiza­
do por uma série de ciências. Se efetuasse esse mesmo tra­
balho som ente em relação a um a ciência nunca teria se
transform ado num a disciplina independente e teria conti­
nuado como parte dessa mesma ciência. Por isso pode-se
definir a ciência geral como a ciência que recebe o material
de uma série de ciências particulares e leva a cabo uma ela­
boração e generalização posterior do mesmo, im possível
dentro de cada disciplina em separado.
Por isso, a relação entre a ciência geral e a ciência parti­
cular é a mesma que a existente entre a teoria dessa ciência
particular e um a série de leis particulares suas. Ou seja,
trata-se de uma diferença em função do grau de generaliza­
ção dos fenôm enos a estudar. A ciência geral surge da ne­
cessidade de continuar o trabalho das ciências particulares
alí onde estas últimas se detêm . A relação entre a ciência
geral e as teorias, leis, hipóteses e métodos das ciências par-
O S IG N IF IC A D O H IS T Ó R IC O D A C R IS E D A P S IC O L O G IA 245

titulares é a mesma que a existente entre estas e os fatos da


realidade que estudam , A biología recebe material proce­
dente de distintas ciências e o elabora assim com o o faz
com o seu cada ciência particular. A única diferença consis­
te em que a biología começa ali onde termina a embriología,
a zoologia, a anatom ia etc, A biología reúne um material
tomado de diferentes ciências, assim como cada uma dessas
ciencias reúne distintos materiais,
Esse ponto de vista explica tanto a estrutura lógica da
ciência geral quanto sua estrutura real e seu papel histórico.
Se aceitarm os a opinião oposta de que a ciência geral é
parte da lógica, seria inexplicável, em primeiro lugar, por
que precisamente as disciplinas muito desenvolvidas são as
que conseguiram criar e elaborar até os m enores detalhes
seus métodos, seus conceitos básicos e suas teorias, as que
dão lugar a ciências gerais. Deveriam ser as disciplinas no­
vas e jovens, as que começam, que mais necessitariam ado­
tar os conceitos e os métodos de outras ciências. Em segun­
do lugar, por que é um grupo de disciplinas próximas que
se integra na biologia geral e nâo se constitui em ciência
geral cada um a das ciências - a botânica, a zoologia, a
antropologia - separadamente? É porque não se pode defi­
nir uma lógica da zoologia ou da botânica, separadam ente,
assim como existe uma lógica da álgebra? De fato, tais disci­
plinas isoladas podem existir e existem, mas nem por isso se
transformam em ciências gerais, assim como a metodologia
da botânica não se converte em biologia.
L. Binswanger parte, da mesma forma que toda sua cor­
rente, de uma concepção idealista do saber científico, ou
seja, de prem issas idealistas de caráter gnoseológico e de
uma concepção lógico-formal das ciências. Para ele, os con­
ceitos estão sep arad o s dos objetos reais p o r um abism o
intransponível. O saber tem suas leis. sua natureza e seu
apriorism o. Conduz a uma realidade conhecida. Por isso,
para Binswanger, é impossível estudar esses apriorism os,
essas leis, esses conhecimentos isolados, independentem en­
te do que se conhece com eles. Segundo ele, é possível apli­
car a crítica da razão científica em biologia, psicologia, ftsi-
246 T E O R IA E M É T O D O E M P S IC O L O G IA

ca, assim com o para Kant era possível a crítica da razão


pura, Binswanger está disposto a admitir que os métodos de
conhecim ento determ inam a realidade, assim com o para
Kant a razão ditava leis para a natureza. Para ele, as relações
entre as ciências não estão determinadas por seu desenvol­
vimento histórico nem pelas exigências da experiência cien­
tífica (isto é, pelas exigências da própria realidade que se
conhece através da ciência), mas pela estrutura lógico-for­
mal dos conceitos.
Esse enfoque nào seria concebível sob outra perspecti­
va filosófica, pois renunciaríamos a essas premissas lógico-
formais e gnoseológicas e isso suporia a queda im ediata
dessa concepção da ciência geral. Basta adotarm os a p ers­
pectiva realista-objetiva - isto é, materialista em gnoseologia
e dialética em lógica - na análise teórica do conhecim ento
científico para que aquela teoria se to m e inviável. Esse
novo enfoque nos indica que a realidade determ ina nossa
experiência; que a realidade determina o objeto da ciência e
seu método, e que é totalmente impossível estudar os con­
ceitos de q u a lq u e r ciência p re sc in d in d o das realid ad es
representadas por esses conceitos.
F. Engels assinala várias vezes que para a lógica dialética
a m etodologia das ciências é o reflexo da m etodologia da
realidade. “A classificação das ciências - diz ele cada uma
das quais analisa uma forma especial de devir ou uma série
de form as de devir c o e re n te s e que se transform am nas
outras, é, portanto, a classificação, a ordenação em sua suces­
são inerente dessas mesmas formas de devir e nisso reside
sua importância” (K. Marx, F. Engels, Obras, t. 20, pp. 564-5).
É possível ser mais claro? Quando classificamos as ciências,
estabelecemos a hierarquia da própria realidade. “A dialética
subjetiva, o pensam ento dialético não é mais do que um
reflexo do devir através de contradições (...)” ( ibidem , p.
526). Aqui aparece claramente a exigência de levar em con­
sideração a dialética objetiva da natureza na hora de investi­
gar a dialética subjetiva em tal ou qual.ciência, ou seja, o pen­
samento dialético. Naturalmente, isso não significa de modo
algum que fechemos os olhos para as condições subjetivas
desse pensamento. O próprio Engels, que estabeleceu a cor-
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 247

respondértela entre a realidade e o pensamento em matemáti­


ca, diz que “todas as leis num éricas dependem do sistema
adotado e encontram -se condicionadas por ele. Assim, nos
sistemas de base dois e de base três, dois por dois não é igual
a quatro, mas a cem ou a onze" ( ibidem, p. 574). Podemos
dar mais um passo e dizer que os pressupostos subjetivos de
que parte o processo de conhecimento se manifestam sempre
em nosso modo de expressar as leis da natureza e de relacio­
nar diferentes conceitos; devem ser levados em conta, mas
sempre como reflexo da dialética objetiva.
Por conseguinte, à crítica gnoseológica e â lógica for­
mal, com o fundam entos da psicologia geral, deve se con­
trapor a dialética, que “se concebe como a ciência das leis
mais gerais de todo devir. Isto significa que suas leis devem
reger tanto o devir da natureza e a historia humana quanto
o que se dá no cam po do pen sam en to ” ( ibidem , p, 582).
Isto quer dizer que a dialética da psicologia (é assim que
podem os den o m in ar de forma breve a psicologia geral,
contra a definição de Binswanger de “crítica da psicologia”)
é a ciência das form as mais gerais do devir tal com o se
manifesta no com portam ento e nos processos de conheci­
m ento, isto é, assim como a dialética da ciência natural é,
ao m esm o tempo, a dialética da natureza, a dialética da psi­
cologia é, por sua vez, a dialética do homem como objeto
da psicologia,
Engels considera inclusive que a classificação puram en­
te lógica dos juízos de Hegel se baseia nào só no pensam en­
to, mas também nas leis da natureza, Esse é precisam ente o
traço que ele considera distinto da lógica dialética. “(..,) O
que em Hegel aparece como um desenvolvimento da forma
discursiva do juízo como tal, responde ao desenvolvimento
de ncxssos conhecimentos teóricos sobre a natureza do devir
em geral, conhecim entos que descansam sobre uma base
empírica. O que demonstra, com efeito, que as leis do pen­
samento e as leis naturais coincidem necessariamente entre
si quando são conhecidas de um m odo acertado” ( ibidem ,
pp. 539-40). Essas palavras encerram a chave da psicologia
geral com o parte da dialética: essa correspondência entre
248 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

pensam ento e realidade que se dã na ciência constitui ao


mesmo tempo o objeto e o critério fundamental e inclusive
o método da psicologia geral, isto é, seu princípio geral.

A psicologia geral mantém com as disciplinas particula­


res a mesm a relação que a álgebra com a aritmética. Esta
opera com qu an tid ad es determ inadas, concretas; aquela
estuda todas as formas gerais possíveis de relações entre as
quantidades; por co n seg u in te, cada operação aritm ética
pode ser considerada como um caso particular de fórmula
algébrica. Disto se depreende evidentem ente que para cada
disciplina particular e para cada uma de suas leis não lhe é
indiferente que caso particular de qual fórmula geral é. O
que diferencia a ciência geral e lhe atribuiu seu papel de
protagonista não em ana do fato de que esteja acima das
ciências, ou de que se baseie na lógica, isto é, nos últimos
fundam entos do conhecim ento científico, mas do fato de
que está por baixo das ciências particulares, de que parte
das próprias ciências e estas delegam à ciência geral sua
sanção de verdade. A ciência geral surge, portanto, da situa­
ção prevalecente que ocupa em relação às ciências particu­
lares; resum e sua soberania, é sua portadora. Se represen­
tássemos graficamente em forma de um círculo o sistema de
conhecim entos que abarcam todas as disciplinas psicológi­
cas, a ciência geral seria o centro da circunferência.
Suponhamos agora que tem os vários centros distintos,
como no caso da discussão entre disciplinas especiais que
p rete n d em ser o c e n tro , ou da p re te n sã o de d ife ren te s
idéias de ser o princípio explicativo central. É evidente que
corresponderão a elas distintas circunferências; como cada
novo centro será ao mesmo tem po um ponto periférico da
antiga circunferência, obterem os, por conseguinte, várias
circunferências que se cortam entre si. Essa nova distribui­
ção de cada circunferência representaria graficam ente em
nosso exem plo um setor particular de conhecim ento dos
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 240

quais se ocupa a psicologia a partir de seu próprio centro,


ou seja, enquanto disciplina geral.
Aquele que adotar o ponto de vista da disciplina geral
ou, o que dá na m esm a, colocar os fatos das disciplinas
gerais não num plano de igualdade, mas com o m aterial
científico, e se perguntar como essas disciplinas abordam os
fatos da realidade, substituirá im ediatam ente o ponto de
vista da crítica pelo da análise. A crítica se acha no mesmo
plano que o criticado e se desenvolve integralmente no seio
de uma disciplina concreta. Seu objetivo é exclusivam ente
crítico e não positivo: só lhe interessa se tal ou qual teoria é
verdadeira ou não e em que grau; avalia e julga, mas não
analisa. A critica B, mas ambos ocupam a mesma posição
em relação aos fatos. A questão muda quando A começa a
adotar em relação а В a mesma posição que este em relação
aos fatos, ou seja, não criticar B, mas analisá-lo. A análise já
pertence à ciência geral; suas tarefas não são críticas, mas
positivas; não lhe interessa avaliar tal ou qual doutrina, mas
conhecer algo novo sobre os fatos que a doutrina apresenta.
Então, quando a ciência utiliza a crítica como método, tanto
o processo [a investigação - R.R.j, quanto o resultado desse
processo se diferenciarão radicalmente da discussão crítica.
Em última instância, a crítica formula opiniões, ainda que se
trate de opiniões sólidas e seriam ente fundam entadas, ao
passo que a análise geral estabelece leis e fatos objetivos.
Somente quem elevar sua análise do plano da discussão
crítica de tal ou qual sistem a até a altura da investigação
básica, com a ajuda dos métodos da ciência geral, descobri­
rá o verdadeiro significado da crise da psicologia e percebe­
rá a estrutura subjacente no atual confronto de idéias e posi­
ções, um confronto condicionado pelo próprio desenvolvi­
mento da ciência e pela natureza da realidade a estudar na
fase de seu conhecim ento. Em lugar do caos de opiniões
heterogêneas, do m osaico de opiniões discrepantes, verá
um q u a d ro h a rm o n io so dos critério s fu n d am en tais que
regem o desenvolvimento científico. Perceberá o sistema de
tendências objetivas que necessariamente ocorrerão na tare­
fa histórica do desenvolvimento da ciência e que atuam com
250 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

a força de urna mola de aço, apesar de investigações e teóri­


cos. Em vez de discutir e avaliar criticam ente tal ou qual
autor, em vez de tachá-lo de inconsciente ou contraditório,
se dedicará à análise positiva das exigencias que as tendên­
cias objetivas da ciência colocam . Conseguirá assim fazer
um mapa do esqueleto da ciencia geral enquanto sistema de
leis, princípios e fatos determinados, em vez de um conjun­
to de opiniões sobre opiniões.
Somente um investigador assim captará com fidelidade
e precisão o significado da catástrofe que se está produzin­
do e obterá uma idéia clara do papel que cada teoria e esco­
la desem penha, do lugar que ocupa e do significado que
tem. Em vez de recorrer ao impressionismo e à subjetivida­
de inevitáveis em toda crítica, se guiará pela certeza científi­
ca e pela veracidade. Desaparecerão para ele (e esse será o
prim eiro resultado do novo ponto de vista) as diferenças
individuais. Com preenderá o papel do individuo na historia;
com preenderá que não se pode explicar as pretensões de
universalismo da reflexologia partindo de erros e opiniões
pessoais, de particularidades, da ignorância de seus criado­
res, assim como não se pode explicar a Revolução Francesa
baseando-se na corrupção dos reis e da corte. Poderá anali­
sar em que medida o desenvolvimento da ciência depende
da boa ou má vontade de seus artífices, o que é que se pode
explicar em função dessa vontade e o que, pelo contrário,
deve ser explicado para além déla, com base nas tendências
objetivas que atuam apesar desses artífices. É evidente que
o caráter universal que adota em Békhterev a perspectiva
reflexológica é determ inado tanto pelas peculiaridades de
uma criação pessoal quanto por sua bagagem científica. Mas
tam bém para Pãvlov, com uma m entalidade e uma e x p e ­
riência científica distintas, a reflexologia constitui a “última
ciência”, a “onipotente ciência natural”, que proporcionará a
“verdadeira, com pleta e total felicidade hum ana” (1950, p.
17). O m esm o cam inho percorrem , de forma diferente, o
behaviorismo e a psicologia da Gestalt. Fica claro que o que
é preciso estudar, em vez do mosaico da boa ou má vontade
dos investigadores, é a unidade dos processos de regenera-
0 SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 251

ção do tecido científico em psicologia, que está condicio­


nando a vontade de todos os investigadores.

Podemos desvendar o significado exato da dependência


en tre cada o p e ra ç ã o psicológica e a lei geral, to m an d o
como exemplo qualquer problem a que tenha ultrapassado
os limites da disciplina particular que o formulou,
Q uando T. Lipps, ao falar do subconsciente, diz que
não é tanto uma questão psicológica quanto uma questão da
psicologia, está se referindo a que o subconsciente é um
problem a da psicologia geral (1914). Com isto queria ape­
nas significar que a questão do subconsciente não se resol­
veria como resultado de tal ou qual análise parcial, mas de
u m a investigação básica com os m étodos da ciência geral.
O u seja, com parando amplíssimos dados dos mais diversos
setores da ciência: relacionando o problem a com algumas
d a s premissas fundamentais do conhecim ento científico, por
u m lado, e com alguns dos resultados mais generalizados de
todas as ciências, por outro lado; encontrando o lugar desse
conceito dentro do sistema dos conceitos fundam entais da
psicologia; realizando uma análise dialética essencial sobre
a natureza do conceito e sobre as qualidades da realidade
q u e este abstraiu. Essa análise precede logicam ente qual­
q u e r análise concreta sobre aspectos parciais da vida sub­
consciente e determina a maneira como as próprias análises
d e v e m ser formuladas.
Como bem disse M ünsterberg: “Em últim a instância,
mais vale o b ter um a resposta provisória e relativam ente
exata a uma pergunta corretamente formulada do que con­
testar, com a exatidão de uma décima, uma pergunta formu­
lada de forma eq u iv o cad a” (1922, p. 6). Na criação e na
Investigação científica, a formulação correta a uma pergunta
nflo é um ato menos importante do que a elaboração da res­
posta adequada, e exige m uito mais responsabilidade. A
Imensa maioria das pesquisas psicológicas m odernas anota
252 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

corn o maior cuidado e exatidão a última fração decimal da


resposta a uma pergunta formulada erroneam ente na raiz.
O tipo e o revestim ento dos m ateriais que estudem os
variarão em função de aceitarmos, junto com Münsterberg,
que o subconsciente é simplesmente fisiológico e não psico­
lógico; ou que convenham os com outros em considerar os
fenôm enos tem porariam ente ausentes da consciência como
subconscientes (com o toda uma massa de lem branças, co­
nhecim entos e hábitos potencialm ente conscientes) ou de
q u e cham em os su b c o n sc ie n te s aos fen ô m en o s que nào
alcançaram o limiar da consciência, que são minimamente
conscientes, periféricos no campo da consciência, automáti­
cos e irreconhecíveis; ou de que encontrem os na base do
deslocam ento subconsciente, junto com Freud, uma tendên­
cia de caráter sexual, ou em nosso segundo eu uma perso­
nalidade especial; ou que, finalmente, ciemos a todos esses
fenômenos o nome de “in-”, “sub-”, ou superconsdentes ou
admitamos as três denominações, como faz Stern. Tudo isso
fará variar seriamente o tipo, o revestimento, a composição
e as propriedades do material a estudar. A pergunta pressu­
põe em parte a resposta.
As tentativas ecléticas de conjugar elementos heterogê­
neos, de natureza distinta e de diferentes origens científicas,
carecem desse caráter sistemático, dessa sensação de estilo,
dessa conexão entre nexos que proporciona o submetimen-
to das teses particulares a uma única idéia que ocupa um
lugar central no sistem a de que faz parte. Tais são, por
exemplo, as sínteses do behaviorismo e da psicologia freu­
diana nas publicações norte-am ericanas; o freudism o sem
Freud dos sistemas de A. Adler e C. jung; o freudismo refle-
xológico de Békhterev e A. B. Zalkincl e, finalmente, as ten­
tativas de unir a psicologia freudiana e o marxismo (A. R.
Luria, 1925; B. D. Fridman, 1925). Quantos exemplos só no
cam po do subconsciente! Todas essas colocações tomam o
rabo de um sistema e o adaptam à cabeça do outro, interca­
lan d o no m eio o tro n co de um terc eiro . Não é q u e tão
m onstruosas com binações sejam errôneas, todas elas são
verídicas até o último décim o, mas a pergunta a que pro-
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 253

curam re s p o n d e r está form ulada de m odo eq u iv o cad o .


Pode-se m ultiplicar o núm ero de habitantes do Paraguai
pelo de verstas que há da Terra ao Sol e dividir o produto
obtido pela duração média da vida do elefante e realizar
im pecavelm ente to d a a o p e ra ç ã o , sem se e n g a n ar num
único algarismo, e ainda assim o núm ero obtido pcxle con­
duzir ao erro aquele que quiser saber qual é a renda nacio­
nal do Paraguai. É isso o que fazem os ecléticos: respondem
à pergunta formulada pela filosofia marxista com o que lhes
sugere a metapsicologia freudiana.
Para mostrar a arbitrariedade dessas tentativas, deter-
nos-emos em três tipos de casos de união de uma pergunta
de um tipo com uma resposta de outro. Não pretendem os,
de forma alguma, esgotar toda a gama de tentativas ecléticas
com esses três exemplos.
A primeira tentativa de assimilar a uma escola qualquer
os produtos científicos de outra consiste em transferir direta­
mente as leis, os fatos, as teorias, as idéias etc. Em apoderar-
se de um setor mais ou menos amplo, ocupado por outros
investigadores, em anexar um território alheio. Tal política
de anexação direta costuma ser vivida por todo sistema cien­
tífico novo que estenda sua influência a disciplinas próximas
c pretenda ocupar um papel diretor na ciência geral. Seu
próprio material é excessivam ente reduzido e esse mesmo
sistema absorve e subordina corpos estranhos, modificándo­
os ligeiramente e preenchendo assim o vazio de seus exten­
sos limites. Geralmente, o que resulta é um conglomerado de
teorias científicas e fatos embutidos com horrível arbitrarie-
diide dentro dos limites da idéia que os une.
Assim é o sistema da reflexologia de V. M. Békhterev.
Para ele tudo vale, inclusive a teoria de A. 1. Vvedienski so­
bre a íncognoscibilidade do eu alheio (ou seja, a expressão
extrema do solipsismo e do idealismo em psicologia), bas-
lundo-lhe que essa teoria confirme mais ou menos sua tese
particular da necessidade do m étodo objetivo. O fato de
C|Ue, dentro do conjunto geral de todo o sistema, essa idéia
ÜU íncognoscibilidade represente uma profunda brecha que
lolupa os fundamentos do enfoque realista da personalida-
254 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

de nào inc:omoda o a u to r (assin alem o s q u e V vedienski


apóia sua teoria nos trabalhos de,., Pávlov, sem se dar conta
de que ao cham ar em seu auxílio o sistema da psicologia
objetiva está recorrendo a seu carrasco). Mas para o meto-
dólogo é profundam ente significativo que antípodas como
“V vedienski-Pávlov” e “B ékhterev-V vedienski” não só se
desmintam entre si mas que pressuponham necessariamente
a existência de ambos e vejam na coincidência de suas con­
clusões o testem unho da “firmeza dessas conclusões”. Para
o terceiro lou seja, para o m etodólogo - R.R.l fica claro que
não se trata de uma coincidência de conclusões obtidas de
forma totalm ente independente por representantes de dife­
rentes especialidades (por exemplo, o filósofo Vvedienski e
o fisiólogo Pávlov), mas da coincidência dos pontos de vista
de partida, que têm sua origem nas premissas filosóficas do
idealism o dualista. Essa “coincidência” é predeterm inada
desde o próprio princípio: Békhterev aceita Vvedienski; se
um tem razão, o outro também terá,
O princípio da relatividade de A. Einstein e os princí­
pios da mecânica newtoniana, incompatíveis entre si, ajus­
tam -se perfeitam ente no sistem a eclético. A Reflexologia
coletiva de Békhterev reúne o catálogo positivo das leis uni­
versais. Nesse sentido, a metodologia do sistema se caracte­
riza por um pensam ento volátil e impulsivo, por uma inércia
de idéias que, através de uma comunicação direta, saltando
todos os trâmites interm ediários, nos leva à lei da relação
proporcional entre a velocidade do m ovim ento e a força
motriz, estabelecida em m ecânica, ao fato da participação
dos Estados Unidos da América na I Guerra européia e vice-
versa, do experim ento de um certo doutor Schwarzmann
sobre os limites da freqüência das excitações cutâneas, que
permitem a formação do reflexo concatenado, à “lei univer­
sal da relatividade, que se m anifesta por toda parte e que
alcançou sua culm inação d efinitiva na relação e n tre os
astros e os planetas nas brilhantes investigações de Einstein”
(V. M. Békhterev, 1923, p. 344).
Não é preciso dizer que a anexação de áreas psicológi­
cas é decidida e audaz. As investigações dos processos men-
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 255

tais superiores realizadas pela escola de Wurtzburgo, assim


como os resultados dos estudos de outros representantes da
psicologia subjetiva, “podem ser coordenadas com o esque­
ma dos reflexos cerebrais ou com binatorios” ( ib id em , p.
387). Não é necessário assinalar que apenas com esta frase
se apagam todas as premissas essenciais do sistema próprio:
se tudo p o d e se co o rd en ar com o esquem a do reflexo e
tudo “está com pletam ente de aco rd o ” com a reflexologia,
inclusive o descoberto pela psicologia subjetiva, por que ir
contra essa psicologia? As d e sc o b e rta s realizad as em
Wurtzburgo foram obtidas com um m étodo que, na opinião
de B ékhterev, não conduzem à v erdade; e, no en tan to ,
estão com pletam ente de acordo com a verdade objetiva.
Como isto é possível?
Com a mesma despreocupação se procede à anexação
do território da psicanálise. Para isso basta declarar que “a
doutrina dos com plexos de C. Jung corresponde perfeita-
mente aos dados da reflexologia”, mas num parágrafo ante­
rior assinalamos que essa doutrina se baseia num a análise
subjetiva, que Békhterev rejeita. Não importa: encontram o-
nos num m undo de uma harmonia pré-estabelecida, de uma
maravilhosa correspondência, de uma admirável coincidên­
cia de doutrinas baseadas em análises falsas e dados proce­
dentes das ciências exatas; mais precisamente, encontramo-
nos num m undo de “revoluções term inológicas”, segundo
expressão de P. P. Blonski (1925a, p. 226).
Toda nossa época eclética está cheia dessas coincidên­
cias. Por exemplo, A. B. Zalkínd anexa esses mesmos seto­
res da psicanálise e da doutrina dos com plexos em nom e
dos setores dom inantes. Ocorre que a escola psicanalítica
desenvolveu o mesmo conceito de dominancia, só que “com
outras expressões e com outros m étodos”, com plena inde­
pendência da escola reflexológica. “A corrente dos com ple­
xos" dos psicanalistas, a “orientação estratégica” dos adleria-
nos são os mesmos dominantes, mas em formulações fisio­
lógicas gerais, A anexação, a transposição mecânica de frag­
mentos de um sistema alheio ao próprio, parece se produzir
neste caso, com o em todos os casos, sem pre de m aneira
256 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

milagrosa e como evidência de verdade. Semelhante coinci­


dência teórica e prática “quase milagrosa” de duas doutrinas
que operam com um material manifestamente distinto e que
em pregam m étodos to talm en te diferen tes constitui um a
prova convincente da correção do cam inho fundam ental
que segue a atual reflexologia*. Lembremos que para Vve-
dienski sua coincidência com Pávlov era também uma prova
de veracidade de suas teses. Mais ainda: essa coincidência
m ostra, como indica várias vezes Bekhterev, que se pode
chegar a uma verdade coincidente através de métodos com ­
pletamente distintos. Na verdade, o que prova a coincidên­
cia é apenas a carência metodológica de princípios e o ecle­
tismo do sistema em que se estabelece a coincidência. Um
refrão oriental diz que quem pega um lenço alheio pega o
odor alheio; quem pega dos psicanalistas a doutrina dos
complexos de Jung, a catarse de Freud, a orientação estraté­
gica de Adler, pega também uma boa dose de odor desses
sistemas, ou seja, do espírito filosófico de seus autores.
Se esse primeiro procedim ento de importação de idéias
alheias de uma escola para outra lembra a anexação de um
território alheio, o segundo procedim ento de associação de
idéias alheias assem elha-se a um tratado de aliança entre
dois países, m ediante o qual nenhum dos dois perde sua
independência, mas ambos concordam em atuar conjunta­
mente, partindo da com unidade de interesses. Este é o pro­
cedimento a que se costuma recorrer quando se quer asso­
ciar o marxismo e a psicologia freudiana. Nesse caso, utili­
za-se o m étodo que por analogia com a geometria podería-

* É curioso que Bekhterev veja essa coincidência subjetiva do conceito


de dominante com relação a um setor totalmente distinto; quando descreve a
escola de Jung e de Freud e a orientação dos complexos, encontra também,
naturalmente, plena coincidência com os dados que a reflexologia apresenta,
mas não com o dominante. A este correspondem, em contrapartida, os fenô­
menos descritos pela escola de Wurtzburgo, ou seja que “participa dos pro­
cessos da lógica” individualmente e correlaciona com o conceito de tendência
determinante (1923, p. 386). A enorme heterogeneidade de coincidências con­
cretas (o dominante equivale ou ao conceito, ou à tendência dominante, ou à
atenção, segundo A. A. Ukhtemski) é a melhor prova da vacuidade. da inutili­
dade, da esterilidade e da arbitrariedade dessas coincidências.
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 257

mos denom inar “método de superposição lógica de concei­


tos", Defíne-se o sistema marxista como monista, materialis­
ta, dialético etc. Depois se estabelece o monismo, o materia­
lismo etc, do sistema freudiano; ao superpor os conceitos,
estes coincidem, e declara-se a união dos sistemas. Através
de um procedim ento elem entar elimínam-se contradições
grosseiras, bruscas, que saltam à vista, excluindo-as simples-
mente do sistema, considerando-as exageradas etc, É assim
que se dessexualiza o freudismo, porque o pansexualism o
não co ncorda de m odo algum com a filosofia de Marx.
“Bom”, dizem-nos, “admitamos o freudismo sem os postula­
dos da sexualidade”. Mas ocorre que esses postulados cons­
tituem precisamente o nervo, a alma, o centro de todo o sis­
tema. É possível aceitar um sistema sem seu centro? Porque
a psicologia freudiana sem o postulado da natureza sexual
do inconsciente é o mesmo que o cristianismo sem Cristo ou
o budismo sem Alá.
Seria, naturalm ente, um m ilagre histórico que o O ci­
dente tivesse surgido e tivesse se criado um sistema acabado
de filosofia marxista sobre raízes filosóficas totalm ente dis­
tintas e uma situação cultural completam ente diferente. Isto
teria significado que a filosofia não determina em absoluto o
desenvolvim ento da ciência. Vejamos se não: partem de
Schopenhauer para criar a psicologia marxista, o que equi­
vale à mesma total esterilidade da tentativa de unir psicolo­
gia freudiana e marxismo, assim como o sucesso da coinci­
dência bekhtereviana significaria a bancarrota do m étodo
objetivo: se os dados da análise subjetiva coincidem inte­
gralm ente com os da objetiva, deveríam os nos perguntar
por que é pior a análise subjetiva. Se Freud pensava, sem se
dar conta, em outros sistem as filosóficos ou se, aderindo
conscientemente a eles, criou a doutrina marxista da psique,
em nom e do que, cabe perguntar-se, deve-se infringir tão
frutífero erro: se em Freud não é preciso modificar nada, na
opinião desses autores, para que unir a psicanálise ao mar­
xismo? No fio dessa argum entação surge uma curiosa per­
gunta: como é possível que a evolução lógica de um sistema
que coincide por completo com o marxismo o leve a consi-
258 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

derar que o fundamental é a idéia da sexualidade, sendo o


caráter fundam ental dessa idéia claram ente inconciliável
com o marxismo? Um m étodo não é responsável em alguma
medida pelas conclusões conseguidas com sua ajuda? Corner
é possível que um m étodo veraz, que cria um sistema veraz,
baseado em premissas verazes, tenha levado seus autores a
uma teoria falsa, a uma idéia central falsa? É preciso possuir
uma grande dose de d esp reo cu p ação m etodológica para
não ver esses problem as, que surgem inevitavelm ente em
toda tentativa m ecânica de deslocar o centro de qualquer
sistema científico-, nesse caso, da doutrina de Schopenhauer
sobre a vontade como base do mundo à doutrina de Marx so­
bre o desenvolvimento dialético da matéria.
Mas o pior ainda nos espera. Essas tentativas conduzem
a fechar os olhos para fatos contraditórios, levam a não
prestar atenção a amplíssimas áreas, a princípios capitais,
introduzem m onstruosas tergiversações nos dois sistemas
que se procura unir. Obriga a realizar em ambos transforma­
ções como as que leva a cabo a álgebra para demonstrar a
identidade de duas expressões. Mas transform ar o aspecto
dos sistemas, operando com magnitudes absolutamente dis­
sím iles às algébricas, sem pre leva, de fato, a deform ar a
essência dos próprios sistemas.
Por exem plo, no artigo de A. R. Luria, a psicanálise é
apresentada com o o “sistema de psicologia m onista”, cuja
m etodologia “coincide com a m etodologia do m arxism o”
(1925, p. 55). Para demonstrá-lo, operam -se transformações
verdadeiram ente ingênuas em am bos os sistemas, em de­
corrência das quais acabam “coincidindo”. Vejamos breve­
mente essas transformações. Antes de mais nada, no artigo
inclui-se o marximo na metodologia geral da época (junto
com Darwin, Kant, Pávlov, Einstein, que, juntos, estabele­
cem o fundam ento m etodológico da época). O papel e a
im portância de cada um dos m encionados autores são, é
claro, profundam ente distintos por princípio. E o papel do
m aterialism o dialético é absolutam ente diferente por sua
própria natureza. D esconhecer isto im plicaria, em geral,
excluir m ecanicam ente o m étodo som ativo das “grandes
0 SIGNIFICADO HISTÓ RICO DA C R IS E DA PS IC OLOGIA 259

conquistas científicas”. Basta reduzir a um d e n o m i n a d o r


comum todos esses nomes e o marxismo para que n ã o seja
difícil a adesão a este último de qualquer “grande conquista
científica”, porque essa é precisam ente a premissa; porque
é precisam ente nela e não na conclusão que se encerra a
“coincidência” que se busca. A “m etodologia fundam ental
da é p o c a ” é c o m p o sta pela som a das d e sc o b e rta s de
P á v l o v , Einstein etc.; o m arxism o é uma das descobertas
que fazem parte do “grupo de princípios obrigatórios para
todas as ciências conexas”. Aí, ou seja, na primeira página,
poderiam dar-se por term inados todos os raciocínios: basta
citar juntos Einstein e Freud (porque também este represen­
ta uma “grande conquista científica” e participa, portanto,
do “fundam ento m etodológico geral da época”). Mas quan­
ta confiança carente de espírito crítico 6 preciso ter para
extrair da soma de s o b r e n o m e s famosos a metodologia de
uma época!
Não existe uma só m etodologia fundam ental de uma
época; o que existe na verdade são conjuntos de princípios
m etodológicos e m litígio, p ro fu n d am en te hostis, que se
excluem uns aos outros e cada teoria - a de Pávlov, a de
Einstein etc. - tem seus valores metodológicos. Extrair dos
parênteses a metodologia geral da época e diluir nela o mar­
xismo significa transformar não só a aparência mas também
a essência do marxismo.
Mas essas transformações também as experimenta inevi­
tavelm ente a psicologia freudiana. O próprio Freud teria
estranhado muito saber que a psicanálise é um sistema de
psicologia monista e que ele “continua m etodológicamente
(...) o materialismo histórico” (B. D. Fridman, 1925, p. 159).
Evidentemente, nenhuma revista psicanalítica publicaria arti­
gos de Luria ou de Fridm an. E isso é m uito im portante.
Porque nos encontramos diante de uma situação muito estra­
nha: Freud e sua escola não se declaram em momento algum
monistas, nem materialistas, nem dialéticos, nem continua­
dores do materialismo histórico. Em contrapartida, declaram
a respeito deles: “vocês são isto, aquilo e mais aquilo; vocês
mesmos n io sabem o que são”. Não que essa situação seja
260 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

im p o ssív el, ela poderia ocorrer, mas exige que se esclareça


com precisão as bases m etodológicas da doutrina, que se
estabeleça com o a concebem e como a desenvolveram seus
autores e ? depois, q ue se d e s m i n t a com clareza o s fu n d a ­
m entos da m esm a e se indique de que bases se serviu a p s i ­
c a n á l i s e para desenvolver u m sistema de m etodologia alheia
a seus autores. Ao invés disto, sem uma só análise dos con­
ceitos principais de Freud, sem pesar e iluminar criticamente
suas premissas e pontos de partida, sem ilustrar criticamente a
gênese de suas idéias, inclusive sem um a sim ples informação
de com o Freud de fato concebe os fundam entos filosóficos
de seus sistemas, se afirma, m edíante a acum ulação lógico-
formal de fatos, a identidade dos dois sistemas.
Mas, pode ser verídica essa característica lógico-formal
de am bos os sistemas? J á vimos com o se extrai do m arxis­
mo sua contribuição à m etodologia geral da época, na qual
tudo se reduz, de forma exem plar e ingênua, a um denom i­
nador com um ; por Einstein, P á v l o v e Marx serem ciência,,
devem ter um fundam ento com um . Mas nisto a psicologia
freudiana se desfigura ainda mais. Não me refiro ao f a t o de
d e s p o j á - l a da idéia central, seguindo um procedim ento m e­
cânico, com o faz A. B. Z alkind (1924), que silencia essa
idéia em seu artigo (o que tam bém é curioso). Mas vejamos
o suposto m onism o da psicanálise, com o que Freud não
teria estad o de acordo. O nde, em q u e palavras, com que
m otivo se passou ao terreno do m o n ism o filosófico a que
se refere o artigo? Será que toda redução de um certo grupo
de fatos à unidade em pírica é monismo? Ao contrário, Freud
re c o n h e c e se m p re o p s íq u ic o , ou seja, o in c o n s c ie n te ,
com o um a força especial, que não pode ser reduzida a n e­
nhum a outra. Além do mais, por que esse m onism o “ m a t e ­
r i a l i s t a ” no sentido filosófico? O m aterialism o m édico (que
reconhece a influência de órgãos isolados etc. nas form a­
ções p síq u ic a s) a in d a está m uito d ista n te do filosófico.
D esem penha fundam entalm ente um papel gnoseológico na
filosofia m arxista, e Freud se m antém no gnoseológico no
terren o da filosofia idealista. É um fato (n ão só não d e s­
m entido, mas nem sequer analisado pelos autores da “coin-
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 261

cidêncía”) q u e a doutrina de Freud sobre o papel prim ario


das paixões cegas, papel que se reflete de form a in co n s­
ciente e desvirtuada na consciência, rem onta díretam ente
da metafísica idealista da vontade e das representações de
Schopenhauer. Em suas conclusões mais extrem as, o pró­
prio Freud indica q u e se en co n tra n o p o rto de S c h o p e n ­
hauer. Mas tam bém em suas prem issas fundam entais, assim
com o nas linhas determ inantes de seu sistema, esta ligado a
filosofia do g ran d e p essim ista, com o p o d e e v id e n c ia r a
mais sim ples análise.
E tam bém em seus trab alh o s “ p r á t i c o s ” a psicanálise
mostra suas tendências profundam ente estáticas e náo diná­
micas, conservadoras, anticlialétieas e anti-históricas. Reduz
os processos psíquicos superiores - individuais e coletivos -
díretam ente a raízes q ue evoluíram p o u co , prim itivas, em
essên cia pré-h istó ricas, p r é - h u m a n a s , sem deix ar espaço
para a história. A obra de F. M. Dostoiévski é analisada do
m esm o m odo que os totens e tabus das tribos primitivas; a
igreja cristã, o com unism o, a horda primitiva, tudo isso pro­
cede na psicanálise de uma mesma fonte. Q ue tais ten d ên ­
cias estejam presentes na psicanálise fica patente em todos
os trabalhos dessa escola que tratam dos problem as da cul­
tura, da sociologia, da história. C om provam os, p o rtan to ,
que náo segue, mas que nega, a m etodologia do marxismo.
Mas sobre isso, nem uma palavra.
Por último e em terceiro lugar, todos os conceitos prin­
cipais do sistema psicológico de Freud rem ontam a T. Lipps.
Os conceitos de “inconsciente”, de “energia psíquica ligada
a determ inadas representações”, das pulsões com o base da
psique, da luta das pulsões e das transferências, da natureza
afetiva da consciência etc. Em outras palavras, as raízes psi­
cológicas de Freud penetram as cam adas espiritualistas da
psicologia de Lipps. Como é possível não levar isto absolu­
tam ente em conta ao falar da m etodologia de Freud?
Por conseguinte, vemos de onde surge Freud e para o n ­
de se dirige seu sistema; de Schopenhauer e Lipps a Kohlnay
e a psicologia das m assas. É preciso ser m onstruosam ente
tolerante para silenciar a m etapsícologia, a psicologia so-
262 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

ciai*, a teoria da sexualidade de Freud, quando se explica o


sistema da psicanálise. Esse m odo de expor o sistema leva­
ria uma pessoa que não conhecesse Freud a ter uma idéia
equivocada sobre ele. O próprio Freud teria sido o primeiro
a protestar contra a denom inação de “sistema”. Em sua opi­
nião, um dos maiores méritos da psicanálise e de seu autor
consiste em que este elude conscientem ente o caráter do
sistema (1925). O próprio Freud rejeita o “monismo” da psi­
canálise: não insiste em reconhecer o caráter exclusivo e
original dos fatos descobertos por ele; não procura em abso­
luto “apresentar uma teoria exaustiva da vida espiritual do
hom em ”. Limita-se a exigir a aplicação de sua tese para com­
pletar e corrigir nossos conhecimentos obtidos por qualquer
m eio {ibidem ). Em o u tro lugar diz que a p sicanálise se
caracteriza por sua técnica e não por seu conteúdo. Tam­
bém manifesta que a teoria psicológica é somente tem porá­
ria e que será substituída por uma teoria orgânica.
Tudo isto pode facilmente conduzir ao erro. Pode pare­
cer que a psicanálise carece, com efeito, de sistema e que
seus dados podem ser utilizados para corrigir e am pliar
qualquer sistema de conhecimentos adquirido por qualquer
outro meio. Mas isso é profundam ente errôneo. Do que a
psicanálise carece é de uma teoria-sistema apriorista; como
ocorre com Pávlov, Freud descobriu demais para criar um
sistema abstrato. Mas da mesma forma que o herói de Moliè­
re que, sem su sp eitar, falava d u ran te toda sua vida em
prosa, Freud, como investigador, criava um sistema: ao in­
tro d u zir um novo vocábulo, ao relacio n ar um term o ao
outro, ao descrever um novo fato, ao extrair uma nova con­
clusão ia criando, passo a passo, um sistema. O que aconte­
ce é que a estrutura de seu sistema é muito específica, muito
obscura e com plicada e é muito difícil orientar-se nela. É

* E curioso assinalar que não só os críticos de Freud criam em seu nome


uma nova psicologia social, mas que também os reflexólogos (A. B. Zalkind)
rejeitam as tentativas da reflexologia de “penetrar” no campo dos fenômenos
sociais, de explicá-los através dela, assim como algumas de suas pretensões
filosóficas gerais e também o método de pesquisa “em algum lugar" (A. B,
Zalkind, 1924).
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 263

muito mais fácil fazê-lo nos sistemas m etodológicos cons­


cientes, precisos, livres de contradições, que têm plena
consciência de seus mestres, que foram unificados e estrutu­
rados logicamente; é muito mais difícil avaliar com correção
e descobrir a verdadeira natureza das metodologias incons­
cientes, que se formam espontânea, contraditoriamente, sob
as mais diversas influências, às quais pertence justamente a
psicanálise. Por isso, esta exige uma análise m etodológica
particularmente escrupulosa e crítica e não a ingênua super­
posição dos traços de dois sistemas distintos.
“Para uma pessoa não versada nos problemas científico-
metodológicos - diz V. N. Ivanóvski -, o método é o mesmo
para todas as ciências” (1923, p. 249). E a ciência que mais
sofreu com essa falta de compreensão do problema foi a psi­
cologia. Sempre a incluíram na biologia ou na sociologia. Em
poucas ocasiões suas leis e teorias foram avaliadas mediante
o critério da própria metodologia psicológica, ou seja, partin­
do de um interesse pelo pensam ento científico psicológico
enquanto tal, de sua teoria e de sua m etodologia, de suas
fontes, formas e fundamentos. É por isso que em nossa críti­
ca de sistemas alheios, na avaliação de sua veracidade, care­
cemos do fundamental: da compreensão de seu fundamento
metodológico, que é o único que pode levar à avaliação cor­
reta do con h ecim en to no que diz resp eito a seu caráter
demonstrável e indubitável (V. N. Ivanóvski, 1923). E, nesse
sentido, duvidar de tudo, não crer em nada de pés juntos,
exigir de toda tese seus fundamentos e suas fontes do conhe­
cimento é a primeira regra da metodologia da ciência. Assim
nos protegemos de um erro ainda maior: não mais conside­
rar iguais os m étodos de todas as ciências, mas crer que a
estrutura de todas as ciências é a mesma.
“A mente sem experiência representa, por assim dizer,
cada ciência num plano: dado que a ciência constitui um co­
nhecimento fidedigno, indubitável, nela tudo deve ser fide­
digno; todo seu conteúdo deve ser obtido e dem onstrado
através de um mesmo método, que proporciona um conheci­
mento fidedigno. Não é o que ocorre na realidade: em toda
ciência nos encontramos, sem dúvida alguma, com fatos iso-
264 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

lados comprovados (e grupos de fatos análogos), com teses


e leis gerais estabelecidas de forma inquestionável, mas tam­
bém com suposições, hipóteses, que algum as vezes têm
caráter tem porário e provisório e outras, em contrapartida,
indicam os últimos limites de nossos conhecimentos (numa
determ inada época, pelo menos); encontram os conclusões
m ais ou m enos ín dubítãveis de teses e sta h e le c id a d e de
forma inamovível; como estruturas que ampliam os limites
de nossos conhecimentos ou que têm o significado de “fic-
ções" introduzidas conscientemente; com analogias, genera­
lizações aproximadas etc. A ciência tem uma estrutura varia­
da e a compreensão desse fato tem um significado importan­
tíssimo para a cultura científica do indivíduo. Cada tese cien­
tífica particular possui seu grau de autenticidade próprio,
inerente apenas a ela e dependente do procedimento e grau
de sua fundamentação metodológica, e a ciência - enfocada
metodológicamente - não constitui uma superfície homogê­
nea contínua, mas um mosaico de teses de diferentes graus
de autenticidade” ( ibidem, p, 250).
Por isso, o segundo procedim ento de fusão dos siste­
mas comete dois erros principais: 1) a combinação do m éto­
do de todas as ciências (Fánstein, Pávlov, A. Comte, Marx) e
2) a reunião de toda a h eterogênea estrutura do sistem a
científico num plano, numa “superfície hom ogênea contí­
nua”. A limitação da personalidade ao dinheiro; da honesti­
dade, da tenacidade e outras coisas mil ao erotism o anal
(A. R, Luria, 1925) ainda não significa monismo; e a confu­
são dessa lese, quanto a sua natureza e seu grau de autenti­
cidade, com os princípios do marxismo, é um enorm e erro.
O princípio que se depreende dessa tese, a idéia geral que
está por trás dela, sua importância metodológica, o método
de análise que lhe é prescrito são profundam ente conserva­
dores: assim como o presidiário está acorrentado à prisão,
na psicanálise o caráter o está ao erotism o infantil, a vida
hum ana está predeterm inada no mais essencial pelos confli­
tos infantis, tudo nela consiste em eliminar o complexo de
Édipo etc,, a cultura e a vida da humanidade se aproximam
novamente da vida primitiva. É precisamente essa capacida-
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 265

de de separar os fatos de seus significados visíveis e próxi­


mos a condição primeira e necessária da anáiíse. Isto não
quer dizer de maneira alguma que tudo na psicanálise con­
tradiz o marxismo. Não é esse o problema que aqui me preo­
cupa. O que me preocupa é ressaltar como devem ser uni­
dos dois sistemas de idéias (m etodológicam ente) e com o
não devem ser unidos (sem espírito crítico).
No enfoque nio-crítico cada um vê o que quer e não o
que é: um marxista encontra na psicanálise o monismo, o
m aterialism o ou a dialética que não aparecem nela; um
fisiólogo como A. K. Lients supõe que “a psicanálise é um
sistema psicológico somente de nome; na verdade, é objeti­
vo, fisiológico” (1922, p. 69). E o m etodólogo Binswanger
parecer ser o único que, em seu trabalho dedicado a Freud,
assinala еще, a seu ver, é o psicológico, isto é, o antifisioló­
gico, que constitui o principal mérito de Freud em psiquia­
tria. “Mas - acrescenta - esse conhecim ento ainda não se
conhece a si mesmo, isto é, carece da com preensão de seus
conceitos principais, de seus logos" (1922, p. 5).
Por isso torna-se particularmente difícil estudar o conhe­
cimento que ainda não tomou consciência de si mesmo e de
seus logos. O que, naturalmente, não significa de modo al­
gum que os m arxistas nào devam estudar o inconsciente
pelo m ero fato de que as principais concepções de Freud
contradizem o materialismo dialético. Pelo contrário, precisa­
mente porque a psicanálise estuda seu objeto com base em
meios impróprios, é necessário conquistá-la para o marxis­
mo, estudá-la empregando os meios da verdadeira m etodo­
logia. De outro modo, se na psicanálise tudo coincidisse com
o marxismo, não seria preciso mudar nada nela e os psicólo­
gos poderiam desenvolvê-la precisamente como psicanalis­
tas e não como marxistas. E para levar a cabo esse estudo é
preciso observar, antes de mais nada, a natureza metodológi­
ca de cada idéia, de cada tese. Nessas condições, as idéias
mais metapsicolõgicas podem ser interessantes e ilustrativas;
por exemplo, a doutrina de Freud sobre a pulsâo de morte.
No prefácio que escrevi para a tradução do livro de Freud
sobre esse tema tentei dem onstrar que, por menos convin-
266 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

centes que sejam suas conformações reais (neuroses traumá­


ticas e repetição de sensações desagradáveis no jogo infan­
til), por mais paradoxal e contraditória que seja sua compa­
ração com as idéias biológicas universalmente aceitas, por
mais clara que seja a coincidência de suas conclusões com a
filosofia do nirvana, o conceito com que Freud opera, o
conceito de pulsâo de morte, responde à necessidade da
biologia atual de dominar a idéia da morte, assim como a
matemática teve necessidade em determinado momento do
conceito de número negativo. Formulo a tese de que o con­
ceito de vida em biologia alcançou uma grande clareza. A
ciência assimilou-o e sabe como operar com ele, como ana­
lisar e interpretar o vivo. mas ainda não se conseguiu domi­
nar o conceito da morte. No lugar desse conceito entreábre­
se um oco, um lugar vazio. A morte é interpretada somente
como uma contraposição contraditória da vida, como a au­
sência de vida, em suma, como o nào-ser. Mas a morte é um
fato que tem também seu significado positivo, é um aspecto
particular do ser e não só do não-ser; é um certo algo e não
o completo nada. E esse significado positivo da morte é des­
conhecido pela biologia. Na verdade, a morte é a lei univer­
sal do vivo; é impossível conceber que esse fenômeno nada
represente no organismo, isto é, nos processos da vida. É
difícil crer que a morte careça de significado ou só tenha um
significado negativo.
Engels manifesta uma opinião análoga a esta. Refere-se
à idéia de Hegel de que não pode haver uma fisiología cien­
tífica que nào considere a morte como elemento essencial
da vida e que não compreenda que a negação da vida está
incluída de fato na própria vida, de modo que a vida se con­
cebe sempre com referência a seu resultado necessário, a
morte, sempre contida nela em estado germinal. É precisa­
mente a isto que se reduz a concepção dialética da vida:
“Viver é morrer" (K. Marx, F. Engels, Obras, t. 20, p. 611).
É precisamente esta a idéia defendida por mim no men­
cionado prefácio do livro de Freud: a necessidade de assimi­
lar o conceito da morte aos princípios da biologia e de de­
signar - ainda que por enquanto com o “x" algébrico ou a
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 267

paradoxal “pulsão de morte” - esse registro ainda desconhe­


cido, mas que indubitavelmente existe, com que a tendência
para a morte está representada no organismo, Com isto nâo
quero dizer que a solução dada por Freud a esse problema
seja um caminho real na ciência nem uma via para todos. É
mais uma trilha alpina sobre os precipícios para aqueles que
nâo padecem de vertigem. Creio que a ciência tam bém
necessita de semelhantes livros: livros que não descubram
verdade, mas que ensinem a buscar a verdade, ainda que
não a tenham encontrado. Nesse prefácio eu dizia claramen­
te que a importância do livro não depende da comprovação
real de sua autenticidade: em essência, a questão fica corre­
tamente formulada. E para formular tais questões é preciso
mais criatividade do que para levar a cabo uma observação
ordinária em qualquer ciência, de acordo com o m odelo
estabelecido (L. S. Vigotski, A. R. Luria, 1925).
Um dos críticos desse livro manifestou uma profunda
incompreensão do problema metodológico implicado nessa
apreciação, uma completa confiança nos traços exteriores
das idéias, um temor isento de espírito crítico ante a fisiolo­
gía do pessimismo e decidiu de súbito que “Schopenhauer
significa pessimismo”. Não compreendeu que existem pro­
blemas aos quais não se pocie chegar voando, sem mancar,
e que nesses casos nâo é um pecado mancar, como diz fran­
camente Freud. Aquele que vir nisto apenas urna claudica-
ção está cego metodológicamente. Com efeito, não é difícil
dizer que Hegel era idealista, isto se grita aos quatro ventos.
O genial está em ver no sistema de Hegel um idealismo que
pendia sobre a cabeça do materialismo. Ou seja, separar a
verdade metodológica (a dialética) da falsidade real, ver que
Hegel caminhava rumo à verdade mancando.
Este não é mais do que um exemplo isolado do cami­
nho adequado para assimilar as idéias científicas; é necessá­
rio elevar-se por cima de seu conteúdo real e colocar à
prova seu significado essencial. Mas para isso é necessário
ter um ponto de apoio fora dessas idéias. Quando se fica
com os dois pés no terreno das próprias idéias, quando se
trabalha com conceitos elaborados a partir delas, torna-se
268 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

impossível situar-se fora. Para referir-se criticamente a um


sistema alheio é preciso antes de mais nada dispor de um sis­
tema de princípios próprio. Julgar Freud à luz de princípios
extraídos do próprio Freud significa justificá-lo de antemão.
E esse procedimento de assimilar idéias alheias constitui o
terceiro tipo de integração de idéias do qual passamos a nos
ocupar agora.
Empregaremos de novo um exemplo isolado para facili­
tar a descoberta e a exposição dessa nova formulação meto­
dológica. No laboratório de Pãvlov formulou-se o problema
de transformar experimentalmente excitantes vestigiais e
reflexos condicionados vestigiais em excitantes condiciona­
dos efetivos. Para isso era preciso “eliminar a inibição" conse­
guida por meio do reflexo vestigial. Como fazê-lo? Para alcan­
çar esse objetivo, Yu. P. Frolov recorreu a um procedimento
que tinha uma certa analogia com procedimentos da escola
de Freud. Mediante a destruição dos complexos inibidores
estáveis reconstruía precisamente a situação em que esses
complexos tinham se formado anteriormente. E o experimen­
to deu certo. Considero que o procedimento metodológico
utilizado constitui basicamente um modo correto para formu­
lar tanto o tema de Freud quanto, em geral, todas as teses
alheias. Procuraremos descrever esse procedimento.
Em primeiro lugar, nesse caso o problema surgiu no
curso de investigações próprias sobre a natureza cia inibição
interna. Portanto, a tarefa fora colocada, formulada e com­
preendida à luz de princípios próprios e.da mesma maneira
utilizaram-se os conceitos da escola pavloviana na formula­
ção teórica do trabalho experimental e na delimitação de
sua importância. Sabemos o que é um reflexo vestigial e
também sabemos o que é um reflexo afetivo-, transformar
um em outro significa eliminar a inibição e assim sucessiva­
mente, ou seja, todo o mecanismo do processo é concebido
em categorias completamente determinadas e homogêneas.
A analogia com a catarse tinha somente um valor heurístico;
encurtou o caminho da própria busca e conduziu rapida­
mente ao objetivo. Mas foi adotado apenas como uma supo­
sição, uma suposição que se verificou ¡mediatamente atra-
0 SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 269

vés do experimento. E, depois de ter resolvido sua própria


tarefa, o autor chegou à terceira e última conclusão: os fenô­
menos descritos por Freud podem ser comprovados experi­
mentalmente em animais e ser analisados posteriormente
utilizando o método dos reflexos salivares condicionados.
Comprovar as teses de Freud por meio das idéias de
Pávlov não é em absoluto o mesmo que fazê-lo através das
próprias idéias. Pois bem, a demonstração dessa possibilida­
de não foi estabelecida analíticamente, mas através da experi­
mentação. O fundamental consiste em que quando o autor
tropeçou no curso de suas próprias investigações com fenô­
menos análogos aos descritos pela escola de Freud, em
nenhum momento passou para um território alheio, mas con­
seguiu fazer avançar sua investigação servindo-se deles. Sua
descoberta tem um sentido, um valor, um lugar, um significa­
do dentro do sistema de Pávlov e não no sistema de Freud.
Os círculos de ambos os sistemas coincidem num ponto
de intersecçào: ali se tocam, e esse ponto é do domínio de
ambos. Mas sua origem, seu significado e seu valor estão
determinados por sua posição no primeiro sistema. Com
essa investigação chegou-se a uma nova descoberta, estabe­
leceu-se um novo fato, estudou-se um novo aspecto e tudo
isto dentro da doutrina dos reflexos condicionados e não
dentro da psicanálise. Dessa maneira, desaparece qualquer
coincidência “quase milagrosa”!
Para ilustrar o abismo que pode existir entre duas ma­
neiras de proceder, basta ver como Békhterev realiza uma
elaboração reflexológica da idéia da catarse baseando-se na
descoberta de uma coincidência verbal. A relação entre os
dois sistemas se resume fundamentalmente na catarse: o
depreciado “efeito do impulso mímico-somátíco inibido”.
Por acaso esse efeito não constitui uma descarga daquele
reflexo que, ao ser reprimido, oprime a personalidade e a
“coage”, transformando-a em doente? Por acaso essa descar­
ga em forma de reflexo da catarse nào permite resolver de
forma natural o estado mórbido? “O sofrimento chorado não
constitui uma descarga do reflexo reprimido? (V. M. Békh-
terev, 1923, p. 380).
270 T E O R IA E M É T O D O EM P S IC O L O G IA

Cada palavra desse texto ê um a pérola: “Im pulso mimi-


co-som ático”, p o d e haver algo m ais claro e m ais exato? Para
evitar a lin guagem da psico lo g ia subjetiva, B ekh terev n ao
d esp reza o idiom a vulgar, ap esar do q u e a term inologia de
Freud não p o d e a p arecer com m aior clareza. Com o é q u e o
reflex o rep rim id o , ao “o p rim ir” a p e rs o n a lid a d e , a coage?
P or q u e o so frim en to c h o ra d o é um a d e sca rg a d o reflex o
rep rim id o ? O q u e fazer se a p e sso a chora n o m esm o m o­
m en to em q u e e x p e rim e n ta seu sofrim ento? T erm ina a fir­
m an d o tam bém q u e o p e n sa m e n to é um reflex o in ib id o e
que a co n cen tração , ligada à reten ção da corrente nervosa, é
ac o m p a n h a d a de fen ô m en o s co n scien tes. O h, inibição sal­
vadora! N um a pagina perm ite explicar os fen ô m en o s co n s­
cientes e na seguinte os inconscientes!
T u d o q u e foi d ito acim a d e m o n s tra c la ra m e n te q u e
q u a n d o se fala do inconsciente ê p reciso distinguir en tre o
problem a m etodológico e o em pírico, o u seja, en tre a q u es­
tão psicológica e a da própria psicologia. E stabelecer a dis­
tinção com q u e iniciam os esta parte do texto. A união acríli­
ca de am bos co n d u z a um a grosseira deform ação de toda a
questão. O sim pósio sobre o inconsciente (1912) m ostra que
a solução dos fundam entos d o problem a ultrapassa os limi­
tes da psicologia em pírica e está inevitavelm ente relaciona­
da co m c o n v ic ç õ e s filosóficas g erais. Q u a n d o aceitam o s,
com o F. B ren tan o , q u e não existe o in co n sc ien te , ou com
M ünsterherg, q u e é sim plesm ente fisiológico, o u com Schu-
b ert-S o ld ern , q u e é um a categoria g n o se o lo g ic a m e n te n e c es­
sária, o u com F reu d , q u e é se x u a l, n o sso s a r g u m e n to s e
conclusões v ã o além dos lim ites da investigação em pírica,
Entre os autores russos, E. D alié m atiza os m ovim entos
g n o s e o ló g ic o s q u e im p u lsio n am a e la b o ra ç ã o do co n ceito
de inconsciente. Na sua opinião, na base desse conceito e n ­
contra-se a tentativa d e d efe n d e r a in d ep en d ên cia da p sico ­
logia com o ciência explicativa contra a u su rp a ç à o dos m éto ­
dos e p rin c íp io s fisiológicos: a exigência d e q u e o psíquico
se explique a partir do psíquico e não do fisiológico, de q u e
a p sic o lo g ia se m a n te n h a d e n tro de si m esm a, d e n tro de
seu s p r ó p r io s lim ites, na análise e na d escrição dos fatos,
O S IG N IF I C A D O H I S T Ó R IC O D A C R I S E D A P S I C O L O G I A 271

a in d a q u e isto ex ija p e n e tr a r n o c a m in h o d a s h i p ó t e s e s
am plas. Dalíé assinala q u e as estruturas ou hipóteses p sico ­
lógicas s ã o a p e n as um pro lo n g am en to m ental de fenôm enos
hom ogêneos d en tro de um m esm o sistem a in d e p e n d e n te da
realidade. As tarefas da psicologia e suas exigências teórico-
cognitivas lhe p rescrevem lutar, com a ajuda do in conscien­
te, contra as tentativas u su rp ad o ras da fisiología. A vida psí­
q u ica tra n sc o rre com in te rv alo s, e stá c h eia de lacu n as, O
q u e ocorre com a consciência d u ran te o sono, com as lem ­
branças q u e n ão reco n h ecem o s aqui e agora? Se q u erem o s
explicar o psíquico a partir do psíquico sem recorrer a outro
âm bito d e fenôm enos, sem nos trasladarm os para a fisiolo­
gía, se q u e re m o s p re e n c h e r os in te rv a lo s , as la c u n a s, as
om issões na vida da psique, tem os de su p o r q u e esses fen ô ­
m enos c o n tin u a m e x istin d o de um a form a esp ecial: com o
algo q u e é, ao m esm o tem po, inconsciente e psíquico. Essa
in te rp re ta ç ã o d o in c o n sc ie n te co m o c o n je tu ra n e c essá ria ,
com o co n tinuação e co m plem ento h ipotético da experiência
psíquica, tam bém é desenvolvida p o r W. Stern (1924).
E. Dalié distingue dois asp ecto s no problem a: o real e o
hip o tético ou m etodológico. Este ú ltim o d eterm ina o valor
cognitivo ou m etodológico q u e tem para a psicología a cate­
goria d o inconsciente. A tarefa consiste em esclarecer o sig­
nificado e o âm bito de fenôm enos q u e esse conceito e n c e r­
ra p ara a p s ic o lo g ia com o ciência explicativa, No cam inho
de Jerusalém , o autor pensa q u e se trata antes de m ais nada
de um a categoria ou d e um p ro c e s s o d e p en sam en to d e que
não se p o d e p re s c in d ir para explicar a vida espiritual, e faz
referên cia a um â m b ito e sp e c ia l d e fe n ô m e n o s . D alié diz
com razão q u e o inconsciente é um conceito criado a partir
d e d a d o s in d u h itã v e is d a e x p e riê n c ia p s íq u ic a , d e um a
experiência q u e exige necessariam ente ser com pletada com
a h ipótese d o inconsciente. Disto decorre a natureza m uito
com plexa de to d as as teses q u e operam com esse conceito:
em cada tese é preciso distinguir o q u e p ro ced e dos dados
da ex p eriên cia psíq u ica irrefutável e o q u e p ro v ém da n e ­
c e ssid a d e h ip o té tic a , e q u a l é o grau de a u te n tic id a d e de
um a e outra. N os tra b a lh o s críticos q u e ex am in am o s acim a
272 T E O R IA E M É T O D O EM P S IC O L O G IA

os dois aspectos do problem a se misturam: a hipótese e o


fato, o princípio e a observação empírica, a ficção e a lei, a
estrutura e a generalização, tudo aparece entrem eado for­
mando um verdadeiro emaranhado.
Nesses trabalhos críticos a questão principal perm anece
intocada: Lients e Luría asseguram a Freud que a psicanálise
é um sistema fisiológico; mas o próprio Freud é inimigo da
concepção fisiológica do inconsciente. Dalié tem toda razão
ao dizer que essa questão da natureza psicológica ou fisio­
lógica do inconsciente é a prim eira fase e a mais importante
de todo o problema. Antes de descrever e classificar psico­
logicamente o problem a do subconsciente, devem os saber
se estamos operando neste caso com algo fisiológico ou psí­
quico, é preciso dem onstrar que o inconsciente é, em geral,
uma realidade psíquica. Em suma, para resolver psicologica­
m ente o problema do inconsciente é necessário formulá-lo
como problema da própria psicologia.8

A necessidade de estudar os fundam entos dos conceitos


da ciência geral (essa espécie de álgebra das ciências parti­
culares) e seu papel na organização das disciplinas particu­
lares manifesta-se com mais clareza ainda quando a psicolo­
gia toma emprestados conceitos de outras ciências. Ao que
tudo indica, nos encontram os neste caso em melhores con­
dições para passar os resultados de uma ciência ao sistema
de outra, porque o grau de autenticidade, de clareza e de
fundam entação das teses ou leis em prestadas costuma ser
muito mais elevado do que o das teses e leis psicológicas.
Por exemplo, introduzimos no sistema psicológico de expli­
cação uma lei estabelecida em fisiología ou em embriologia,
um princípio biológico, uma hipótese anatômica, um exem­
plo etnológico, uma classificação histórica etc. As teses e
construções dessas ciências m uito desenvolvidas, que par­
tem de princípios bem fundam entados, costumam estar ana­
lisadas m etodológicam ente com uma exatidão muito maior
O S IG N IF IC A D O H IS T Ó R IC O D A C R IS E D A P S IC O L O G IA 273

do que as teses das escolas psicológicas, que se servem de


conceitos criados recentem ente, pouco sistematizados, para
estudar domínios totalmente novos (isto ocorre, por exem­
plo, na escola de Freud, que aínda não tom ou consciência
de si mesma). Nesse caso, tomamos em prestado um produto
mais elaborado, operam os com magnitudes mais determina­
das, mais exatas e mais claras; os perigos de erro diminuem,
a probabilidade de êxito aumenta.
Por outro lado, como a contribuição procede neste caso
de outras ciências, o material é mais estranho, mais hetero­
gêneo do ponto cie vista m etodológico, e as condições de
sua assimilação se tornam mais difíceis. A facilidade ou difi­
culdade que apresentam as condições dos dados em com pa­
ração com as que examinam os anteriorm ente nos levam a
estabelecer um processo necessário de diversificação na aná­
lise teórica que substitua a diferenciação real que oferece a
experimentação.
Detenhamo-nos num fato que parece muito paradoxal à
primeira vista e que, por isso mesmo, é bem cômodo para a
análise. A reflexologia, que estabelece em todas as esferas
essas coincidências tão milagrosas entre seus dados e os da
análise subjetiva e que quer construir seu sistema baseando-
se nas ciências naturais exatas, vê-se surpreendentem ente
obrigada a protestar precisamente contra a transposição das
leis das ciências naturais â psicologia,
Quando N. M. Schelovánov3 investiga os métodos da re­
flexologia genética, rejeita (com absoluto e inesperado fun­
dam ento) que sua escola deva imitar as ciências naturais
trasladando à psicologia subjetiva aqueles métodos que pro­
porcionaram enorm es resultados nas primeiras, mas que sâo
pouco úteis para estudar a psicologia subjetiva. J. Herbart e
G. Fechner trasladam mecanicam ente a análise matemática
para a psicologia e W. W undt o experim ento fisiológico.

3. Sehelovánov, Nikolai Matviêiekitch (n. 1892-?), Fisiólogo soviético,


discípulo de Békhterev que investigou o comportamento infantil na primeira
infância. Desenvolve idéias semelhantes às que cita Vigotski, em obra de
1929. CN.R.R.)
274 TEORIA E MÉTODO E M PSICOLOGIA

W. Preyer formula o problema da psicogênese por analogia


com a biologia e depois S. Hall e outros adotam em biologia
o princípio de M üller-Haeckel e aplicam -no incontrolada­
mente não só como princípio metodológico, mas como prin­
cípio explicativo do “desenvolvim ento espiritual” da crian­
ça. Não é que sejamos, diz o autor, contra a aplicação de
métodos provados e fecundos. Mas sua utilização só é possí­
vel quando o problema é formulado corretam ente e quando
o m étodo responde à natureza do objeto a estudar. De outro
m odo, obtém -se a ilusão de que se trata de algo científico
(um exemplo característico disto é a reflexologia russa). O
véu das ciências naturais com o qual, segundo uma expres­
são de I. Petzoldr, se cobre a mais retrógrada metafísica não
salvou nem Herbart, nem Wundt: nem as fórmulas matemá­
ticas, nem os aparelhos exatos salvaram do fracasso o pro­
blema mal formulado.
Lembremo-nos de M ünsterberg e de suas observações
sobre o último dígito decimal, extraído como resposta a uma
pergunta falsa. Em biologia, a lei genética - explica o autor
- constitui a generalização teórica de uma série de fatos e
sua aplicação em psicologia é o resultado de uma especula­
ção superficial, baseada exclusivamente na analogia de fatos
de âmbitos diversos. (Não é assim que a reflexologia - sem
levar a cabo sua própria investigação m ediante uma espe­
culação análoga, toma de vivos e mortos, de Einstein e de
Freud, modelos preparados para suas estruturas?) Esse prin­
cípio explicativo converte-se no ponto final de toda uma -
cadeia de erros quando se aplica em psicologia, não na qua­
lidade de hipótese de trabalho, mas como um princípio teó­
rico estabelecido, terminado, fundam entado cientificamente
por fatos pertencentes a outra esfera de conhecimento.
Não vamos, como faz o defensor dessa opinião, exami­
nar a questão a fundo. Existe literatura abundante, inclusive

4. Pazoldt, Josef (1862-1929). Filósofo empírico-crítico alemão. Conside­


rava o mundo externo como um conjunto de imagens sensitivas, diferentes
para distintos objetos. Reduzia a gnoseologia à psicologia e considerava
sujeito do conhecimento o indivíduo separado dos nexos sociais. (N.R.R.)
O S IG N IF IC A D O H IS T Ó R IC O D A C R IS E D A P S IC O L O G IA 275

a russa. O que interessa é ilustrar como muitas questões for­


m uladas de form a equivocada pela psicologia adquirem
aparência científica graças aos empréstimos procedentes das
ciências naturais, Como resultado de sua análise m etodoló­
gica, N. M. Schelovánov chega à conclusão de que o m étodo
genético é basicam ente inviável na psicologia em pírica e
que, por isso, nào modifica a relação entre a psicologia e a
biologia. Mas, por que em psicologia infantil se formulou
equivocadam ente o problem a do desenvolvim ento, o que
conduziu a uma enorm e perda de trabalho inútil? Schelová­
nov pensa que a psicologia da infância nada pode oferecer
de novo além do que oferece a psicologia geral. No entanto,
a psicologia geral não existe como sistema único e suas con­
tradições teóricas tom am impossível a psicologia infantil.
De forma disfarçada e imperceptível para o próprio investi­
gador, as premissas teóricas predeterm inam por com pleto o
procedim ento de tratam ento dos fatos empíricos. Predeter­
minam a interpretação dos fatos recolhidos nas observações
em função da teoria sustentada por tal ou qual autor. Essa é
a m elhor refutação ao em pirism o im aginário das ciências
naturais. Por isso é impossível trasladar os fatos de uma teo­
ria a outra: caberia pensar que um fato sem pre é um fato,
que um mesmo objeto - a criança - e um mesmo m étodo -
a observação objetiva - só permitiriam transpor os fatos da
psicologia para a reflexologia se se partisse de diferentes
objetivos e distintas prem issas de partida, O autor só se
equivoca em duas teses.
Seu primeiro erro consiste em pensar que a psicologia
infantil conseguiu resultados positivos quando se serviu de
princípios de biologia geral e não de princípios psicológi­
cos, como ocorre, a seu ver, na teoria do jogo desenvolvida
por K. Gross, quando, na verdade, constitui um dos melho­
res exem plos do que ê um estudo puram ente psicológico
sem recorrer a empréstimos. Um estudo comparativo e obje­
tivo, m etodológicam ente irrepreensível e transparente, in­
ternamente coerente desde a coleta e descrição dos fatos até
as últimas generalizações teóricas. Gross proporcionou uma
teoria do jogo para a biologia. Criou a teoria com um méto-
276 TEO RIA E M ÉTO D O EM PSIC O L O G IA

do psicológico, e não a tom ou da biologia; resolveu seu


problem a não à luz da biologia mas formulando para si tam­
bém tarefas psicológicas gerais. De fato, o que ocorre é pre­
cisam ente o contrario do que Schelovãnov sustenta: a psico­
logia infantil conseguiu resultados teóricos valiosos precisa­
m ente quando não recorreu a empréstimos, mas seguiu seu
cam in h o p ró p rio . O p ró p rio G ross m an ifesta-se a to d o
m o m en to c o n tra os e m p réstim o s. S. H all, re c o rre n d o a
em préstim os tom ados de E. H aeckel, desenvolveu idéias
psicológicas baseadas em ab surdas análises forçadas, ao
passo que Gross, seguindo seu próprio caminho, desenvol­
veu idéias úteis para a própria biologia, idéias não menos
úteis do que a lei de Haeckel. Lembremos também a teoria
da linguagem de Stern, a teoria do pensam ento infantil de
Bühler e Koffka, a teoria dos níveis de Bühler, a do adestra­
m ento de Thorndike: todas são psicologias do mais puro
estilo. Schelovãnov chega a uma conclusão errônea: o papel
da psicologia da infância não se limita em absoluto à acu­
mulação de dados reais e a uma classificação prévia, ou se­
ja, a um trabalho preparatório. Mas é precisam ente a isto
que, de modo inevitável, pode e deve se ver reduzido o pa­
pel dos princípios lógicos desenvolvidos p o r Schelovãnov
junto com Békhterev. Porque a nova disciplina reflexológíca
carece de idéias sobre a infância, de um a co ncep ção do
desenvolvim ento, de objetivos de investigação: ou seja, des­
conhece o problem a do com portam ento e da personalidade
infantil e só dispõe do princípio da observação objetiva, que
no fundo só é uma boa regra técnica; no entanto, com essa
arma ninguém descobriu uma grande verdade.
O segundo erro do autor relaciona-se com o primeiro.
Schelovãnov m o com preende o valor positivo da psicologia
e subestim a seu papel porque parte da idéia m etodológica
(bastante infantil) de que, ao que tudo indica, só se pode
estudar aquilo q ue nos p roporciona a experiência direta.
Toda sua teoria “m etodológica” se baseia num silogismo: 1)
a psicologia estuda a consciência; 2) a experiência direta
nos oferece a consciência do adulto (“o estudo empírico do
desenvolvim ento filogenético e ontogenético da consciência
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA C R ISE DA PSICOLOGIA 277

é impossível”); 3) por conseguinte, a psicología infantil não


é possível.
No entanto, constitui um grave erro pensar que a ciên­
cia só pode estudar o que nos mostra a experiencia direta.
Como o psicólogo estuda o inconsciente, como o historia­
dor e o geólogo estudam o passado, o físico-óptico os raios
invisíveis, o filósofo as línguas clássicas? Os estudos basea­
dos na análise de vestígios de influências, em m étodos de
interpretação e reconstrução, na crítica e na indagação do
significado foram tão úteis quanto os baseados no m étodo
da observação “em pírica” direta. ¥. N. Ivanóvski explicou
isto muito bem ao falar da m etodologia das ciências, expon-
do precisam ente o exem plo da psicologia. A experiência
direta desem penha um papel m enor inclusive nas ciências
experimentais. M. Planck diz: a unificação de todo o sistema
da física teórica é conseguida graças a sua libertação dos
aspectos antropom órficos e, em particular, das percepções
sensoriais específicas. Na doutrina da luz e, em geral, da
energia radiante, afirma Planck, a física opera com m étodos
nos quais “o olho hum ano quase não intervém, atua som en­
te como um aparelho ocasional (é verdade que de grande
sensibilidade), já que capta raios dentro de uma reduzida
zona do espectro, que quase não alcança a am plitude de
uma oitava. Para o resto de espectro intervém, no lugar do
olhos, outros a p arelh o s de p e rcep ção e de mensuração,
como por exem plo o detector de ondas, o term oelem ento, o
barôm etro, o radióm etro, a chapa fotográfica, a câmara de
ionização. Portanto, a separação entre o conceito físico prin­
cipal e a percepção sensorial específica produziu-se na ópti­
ca assim com o na m ecânica, on d e o conceito de força já
perdeu há muito tem po seu nexo inicial com as sensações
musculares” (19П , pp. 8, 112-3).
Por conseguinte, a física estuda precisam ente aquilo
que o olho não vê; porque se estamos de acordo, junto com
o autor (N. M. Schelovãnov - Red.) e com Stern, acerca de
que a infância é para nós um paraíso perdido, e de que para
nós, adultos, jã é impossível penetrar por com pleto nas pro­
priedades e na estrutura da alma infantil (porque nâo nos é
278 T E O R IA E M É T O D O E M P S IC O L O G IA

oferecida nas sensações diretas), é necessário reconhecer


tam bém que os raios que não estão ao alcance direto de
nossos olhos são outro paraíso perdido para sempre, que a
inquisição espanhola é um inferno perdido para sem pre etc.
Mas aí está o qu id da questão: o conhecim ento científico e a
percepção direta não coincidem em absoluto. Não podem os
viver as impressões infantis, do mesmo modo que não po­
dem os ver a Revolução Francesa e, no entanto, a criança
que vive seu paraíso com toda naturalidade e o contem porâ­
neo que viu com seus olhos os episódios mais importantes
da Revolução estão, apesar disso, mais distantes do que nós
do conhecim ento científico desses fatos. Não só as ciências
da cultura, mas também as da natureza constroem seus con­
ceitos independentem ente da experiência direta; lembremos
as palavras de Engels sobre as formigas e sobre os limites de
nosso olho.
Como se comportam as ciências no estudo do que não
se nos oferece diretamente? Em geral, reconstroem, elaboram
seu objeto de estudo recorrendo ao m étodo de explicar ou
interpretar seus vestígios ou influências, isto é, recorrendo a
elem entos que lhes proporcionam uma experiência direta.
Assim, o h isto ria d o r in terp reta vestígios - d o cu m en to s,
memórias, jornais etc. - e, no entanto, a história é precisa­
mente a ciência do passado, reconstruído segundo seus ves­
tígios, Não é a ciência dos vestígios do passado, mas do pró­
prio passado. Não é a ciência dos documentos de uma revo­
lução, mas da própria revolução. O mesmo acontece com a
psicologia infantil: será que a infância, a alma infantil não
está a nosso alcance, não deixa vestígios, não se manifesta
para fora, não pode ser descoberta? A questão consiste ape­
nas em como, com que m étodo interpretar esses vestígios:
esses vestígios podem ser interpretados por analogia com a
experiência adulta? A questão é, portanto, a de encontrar
uma interpretação correta e não de renunciar por completo
a interpretá-los. Os historiadores conhecem mais de uma
construção equivocada, baseada em docum entos verídicos
mas em falsas interpretações. Q ue conclusão tiram os de
tudo isto? De que a história é um “paraíso para sempre per-
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 279

dido”? A mesma lógica que chama de paraíso perdido a psi­


cologia infantil faz o mesmo com a história. E se o historia­
dor ou o geólogo ou o físico pensassem como o reflexólo-
go, diriam : com o o p a ssa d o da h u m an id a d e e da T erra
(como a alma infantil) não estão diretam ente a nosso alcan­
ce e só está diretam ente a nosso alcance o presente (como a
consciência do adulto), tendemos a interpretar erroneam en­
te o passado por analogia com o presente ou com um “pe­
queno p resen te” (a criança é um adulto p equeno), e por
conseguinte a história e a geologia são subjetivas, são im ­
possíveis; só é possível a história da época atual (psicologia
do adulto) e a história do passado pode ser estudada apenas
com o ciências dos vestigios do passado, dos d o cu m en ­
tos com o tal, e não do passado com o tal (o que equivale
aos p rocedim entos de estu d o dos reflexos sem a m enor
interpretação dos mesmos).
Em essência, é esse dogma da experiência direta como
única fonte e limite natural do conhecim ento científico que
mantém e lança no vazio toda a teoria sobre o m étodo dos
reflexólogos. Vvedíenski e Békhterev procedem de uma raiz
comum: ambos supõem que a ciência só pode estudar o que
a íntrospecção oferece; ou seja, a percepção direta do psicó­
logo. Alguns, ao confiar a alma a esse olho da íntrospecção,
constroem toda a ciência conforme suas propriedades e os
lim ites de suas possibilidades; outros, ao não confiarem
nele, querem estudar unicamente o que se pode captar com
o olho verdadeiro. Por isto digo que a reflexologia se orga­
niza m etodológicam ente conform e o mesmo princípio se­
gundo o qual a história deveria ser definida como a ciência
dos documentos do passado, A reflexologia, graças a muitos
princípios frutíferos das ciências naturais, transform ou-se
numa corrente profundam ente progressista em psicologia,
mas com o teoria do m étodo é profundam ente reacionária,
porque retrocede ao preconceito sensualista ingênuo de que
só é possível estudar aquilo que percebem os e na medida
em que o percebemos.
Exatam ente da mesma m aneira que a física se liberta
dos elem entos antropom órficos, ou seja, das percepções
280 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

sensoriais específicas e trabalha sem necessidade de que os


olhos vejam diretam ente os objetos que estuda, assim a psi­
cologia deve tratar o conceito do psíquico; independente­
m ente de que se ofereça ou não à observação direta, do
mesmo m odo que a mecânica atua com independência da
sensação m uscular e os ópticos da visual. Os subjetivistas -
supõem que refutaram o método objetivo ao demonstrar que
as noções sobre o com portam ento encerram geneticamente
germ es de introspecção - G. I. Tchelpánov'5 (1925), S. V.
Kravkov67(1922), Yu. V. Portugãlov’ (1925). Mas a origem
genética do conceito nada nos diz de sua natureza lógica:
também o conceito de força em mecânica remonta genetica­
mente à sensação muscular.
A introspecção coloca um problem a técnico e não de
princípio: é um instrumento entre outros, como o olho para
os físicos. Será em pregada na medida em que for útil. Não
existem questões de princípio sobre a natureza e a veracida­
de do saber ou dos limites do conhecim ento que nos obri­
guem a aceitar ou rejeitar esse instrumento. Engels dem ons­
trou que os limites do conhecim ento dos fenôm enos lumi­
nosos não são determinados pela estrutura natural do olho;
Planck diz o mesmo em nome da física atual. Separar o con­
ceito psicológico fundamental da percepção concreta cons­
titui a tarefa imediata da psicologia. A própria introspecção
deve ser explicada em term os dos postulados, m étodos e

5. Tchelpánov, Guerrgui Ivánovitch (1862-193®. Psicólogo e filósofo


idealista nisso. Fundador (1912) e diretor (até 1923) do Instituto Psicológico
de Moscou, o primeiro criado na Rússia. Partia do princípio do denominado
paralelismo empírico da alma e do corpo. Considerava a introspecção como a
única fonte dos fenômenos psíquicos e relegava o experimento a um papel
auxiliar, considerando, junto com Wundt, que soa principal importância con­
sistia em tornar mais exata a introspecção. (N.R.R.)
6. Kravkov, Serguiéi Vassilievitch (1893-1951). Psicólogo soviético, espe­
cialista no campo da investigação da psieofisiologia dos órgãos dos sentidos.
L. S. Vigotski criticou-o pelo trabalho “Introspecção”, publicado em 1922.
(N.R.R.)
7. Portugãlov, Yuri Vemiamínovitch (1876-?). Psiquiatra, psicólogo.
(N.R.R.)
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 281

princípios universais da psicologia. Deve transform ar-se


num problema específico da psicologia.
Se isto for assim, coloca-se a questão da natureza da
interpretação, ou seja, do m étodo indireto. Muitos dizem: “a
história in te rp re ta os vestígios do p assad o , mas a física
observa o invisível com a ajuda de instrum entos de forma
tão direta como se o visse com os olhos. Os instrum entos
são a pro lo n g ação dos órgãos sensoriaís do cientista: o
microscópio, o telescópio, o telefone etc. convertem o invi­
sível em visível e em objeto da experiência direta; a física
não interpreta o invisível, ela o vê”.
Mas essa opinião é falsa. A análise metodológica da sig­
nificação dos aparelhos científicos evidenciou, já faz tempo,
que estes desem penham um papel novo e fundam ental e
que não se limitam a prolongar os órgãos sensoriais. O pró­
prio term ôm etro pode servir de exem plo desse novo com­
ponente que os instrumentos introduzem nos métodos cien­
tíficos: no term ôm etro lemos a tem peratura; esse aparelho
não reforça nem prolonga a sensação de calor da maneira
como o m icroscópio continua o olho, mas nos em ancipa
plenam ente da sensação no estudo do calor: o termômetro
pode ser utilizado por alguém que careça dessa sensação,
ao passo que um cego não pode fazer uso do microscópio.
A termometria constitui um m odelo puro do m étodo indire­
to: porque, diferente do que acontece com o microscópio,
não estudam os aquilo que vimos - a elevação do mercúrio,
a dilatação do álcool mas o calor e suas mudanças, indi­
cados pelo mercúrio ou pelo álcool, interpretamos as indica­
ções do term ôm etro, reconstruím os o fenôm eno a estudar
por suas marcas, por sua influência na dilatação do corpo. É
assim que são feitos todos os instrumentos a que se refere
Planck como meios para estudar o invisível. Por conseguin­
te, in terp retar significa reconstruir o fenôm eno segundo
suas m arcas e influências, baseando-se em regularidades
estabelecidas anteriormente (neste caso, na lei da dilatação
dos corpos em conseqüência do calor). Não existe uma dife­
rença essencial entre o em prego do term ôm etro e a inter­
pretação que se dá na história ou na psicologia. O mesmo
282 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

pode ser dito de todas as ciências; são independentes das


percepções sensoriais específicas,
K, Stumpf fala de um matemático cego, Sourderson, que
escreveu um m anual de geometria; A. M. Scherbina" conta
que sua cegueira não o impedia de explicar óptica para os
videntCvS (1908). É que todos os instrum entos que Planck
m enciona podem ser adaptados aos cegos, assim com o já
existem relógios, termômetros e livros para cegos. De modo
que um não-vidente também poderia se dedicar à óptica: é
uma questão de técnica e não de essência.
K. N. Kornilov89 (1922) demonstrou muito bem que: 1) O
fato de que existam divergências de critério a respeito de
questões metodológicas nas formulações experimentais faci­
lita muito o aparecim ento de conflitos. Esses conflitos dão
lugar ao desenvolvimento de diversas correntes em psicolo­
gia. Por exemplo, as diferentes formas de conceber a utiliza­
ção do cronoscopio a propósito de sua colocação num ou
noutro lugar nos experim entos deram origem a diferentes
maneiras de formular o método e o sistema teórico psicológi­
co em seu conjunto, formulações que separaram a escola de
W. Wundt da de O. Küple; 2) O m étodo experimental nada
trouxe de novo para a psicologia: para Wundt é um corretivo
dá introspecção; para N. Ach, os dados desta última só po­
dem ser controlados por meio de outros dados introspecti­
vos, como se a sensação de calor só pudesse ser controlada
por meio de outras sensações; para Deichler, as valorações
numéricas nos proporcionam uma medida de até que ponto

8. Scherbinа, Aleksandr Moisiéiektch (1887-?). Psicólogo e pedagogo


soviético. (N.R.R.)
9. Kornilov, Konstantin Nikoláievich (1879-1957). Psicólogo soviético.
Iniciador da reestruturação do sistema de conhecimento psicológico sobre a
base da metodologia do marxismo. Manifestou-se contra o subjetivismo de G. I.
Tchelpãnov, a reflexologia de Bekhterev e o behaviorismo norte-americano.
Defendeu como concepção marxista em psicologia a reatologia, conclamada a
suprimir o exclusivismo da psicologia subjetiva (empírica) e objetiva (reflexo­
logia) mediante a síntese dessas duas tendências. Posteriormente, no entanto,
renunciou a essa tese. Estudou o problema da psicologia pedagógica e da psi­
cologia da personalidade. (N R.R.)
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 283

é correta a introspecçâo. Em síntese, o experim ento nào -


amplia o conhecimento, mas o controla. A psicologia ainda
não tem uma metodologia de seus aparelhos nem formulou
uma m aneira de conceber os aparelhos que nos liberte da
introspecçâo (com o o term ôm etro liberta da sensação de
calor), em vez de se limitar a controlá-la e reforçá-la. A filo­
sofia do cronoscopio coloca problemas mais difíceis do que
sua técnica. Mas teremos oportunidade de falar mais vezes
sobre o m étodo indireto em psicologia.
G. P. Zelionii afirma com razão que entre nós a palavra
“m étodo” inclui duas coisas distintas: 1) a m etodologia da
pesquisa, o procedimento técnico; e 2) o método de conhe­
cimento, que determina o objetivo da pesquisa, o caráter e a
natureza de uma ciência. Em psicologia, o m étodo é subjeti­
vo, ainda que a metodologia possa ser parcialmente objetiva.
Em fisiología, o m étodo é objetivo, ainda que a metodologia
possa ser parcialmente subjetiva (por exemplo, na fisiología
dos órgãos dos sentidos acontece isto). O experim ento re­
formou a metodologia, mas não o método. É por isso que só
atribui valor nas ciências naturais ao procedim ento de diag­
nóstico e não ao m étodo psicológico.
É nessa questão que está o q u id de todos os problemas
metodológicos próprios da psicologia. A necessidade de sair
de uma vez por todas dos limites da experiência direta é um
assunto de vida ou morte para ela. Separar, libertar os con­
ceitos científicos da percepção específica só é possível com
o m étodo indireto. C ientificam ente, a objeção de que o
método indireto é inferior ao direto é profundam ente errô­
nea. Precisamente porque não ilustra a totalidade da sensa­
ção, mas som ente um aspecto dela, é que é capaz de d e­
sem penhar a tarefa científica: isola, analisa, destaca, abstrai
traços; tam bém na observação direta destacam os a parte a
observar. Para aquele que se tortura com o fato de não com ­
partilhar com as formigas a percepção direta dos raios quí­
micos, não sabem os que rem édio oferecer, diz Engels; no
entanto, conhecem os melhor do que as formigas a natureza
desses raios. A tarefa da ciência não consiste em fazer com
que as sensações sejam percebidas: se assim fosse, em vez
284 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

de fazer ciência bastaria registrarmos nossas percepções. Na


verdade, também para a psicologia se coloca o problema da
limitação de nossa experiência direta, porque toda a psique
responde às características de um instrumento que selecio­
na, isola traços dos fenôm enos. Um olho que tudo visse,
precisam ente por isto nada veria; uma consciência que se
desse conta de tudo, não se daria conta de nada; se a intros-
pecçâo tivesse consciência de tudo, não teria consciência de
nada. Nossa consciência encontra-se encerrada entre dois
limiares, vemos apenas um pequeno fragmento do mundo;
nossos sentidos nos apresentam um m undo com pendiado
em extratos que são importantes para nós. E no interior des­
ses limiares absolutos, tam pouco se capta toda a diversidade
de m udanças e m atizes, mas a p e rcep ção das m udanças
depende de novos limiares. É como se a consciência seguis­
se a natureza por saltos, com omissões, com lacunas. A psi­
que seleciona certos pontos estáveis da realidade em meio
ao fluxo geral. Cria para si ilhas de segurança no fluxo de
H eráclito. É um órgão seleto r, uma p e n e ira que filtra o
m undo e o modifica de forma que seja possível agir. É nisto
que se encontra seu papel positivo, não no reflexo (também
o nâo-psíquico é capaz de refletir; o term ôm etro é mais
exato do que a sensação), mas no fato de que nem sempre
se revela exato refletir, ou seja, deformar subjetivam ente a
realidade em benefício do organismo.
Se víssemos tudo (sem limiares absolutos), se percebês­
semos todas as m udanças, sem um único minuto de inter­
rupção (sem limiares relativos), teríamos diante de nós um
caos (lembramos da quantidade de objetos que o microscó­
pio nos revela em uma gota de água). O que seria então um
copo de água? E um rio? Uma barragem reflete tudo, uma
pedra reage, em essência, a tudo. Mas sua reação é igual à
excitação: causa aliqua effectum. A reação do organismo é
“mais cara”: não é igual ao efeito. Gasta forças potenciais,
seleciona os estímulos. A psique é uma forma superior de se­
leção: o verm elho, o azul, o forte, o ácido. Apresenta-nos
um m undo cortado em porções. A tarefa da psicologia con­
siste precisamente em esclarecer qual é o proveito de que o
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 285

olho não veja tudo aquilo que segundo a óptica poderia ser
visto. Há algo como um funil que se estreita e que leva das
reações inferiores às superiores.
Seria errôneo pensar que não vemos aquilo que é biolo­
gicamente inútil para nós. Seria inútil para nós ver os micró­
bios? Os órgãos dos sentidos apresentam claramente marcas
de que são, antes de mais nada, órgãos de seleção. O pala­
dar é evidentemente um órgão seletor da digestão. O olfato,
uma parte do processo respiratório: são como pontos alfan­
degários de fronteira que servem para comprovar as excita­
ções procedentes do exterior. Cada órgão toma o m undo
cum grano salís, como o coeficiente de especificação a que
se referia Hegel, e como um “índice de relação”, assim como
a qualidade de um objeto determina a intensidade e o cará­
ter da influência qualitativa de outra qualidade. Por isto exis­
te uma completa analogia entre a seleção do olho e a poste­
rior seleção do instrumento: ambos são órgãos de seleção (o
que fazemos no experimento). De forma que a própria natu­
reza psíquica do conhecimento constitui a raiz dessa neces­
sidade, que o conhecimento científico tem, de se libertar da
percepção direta.
Por isso, a evidência direta apresenta uma identidade
fundamental com a analogia utilizada como critério de ver­
dade científica: ambas devem submeter-se a uma análise crí­
tica; ambas podem tanto enganar quanto dizer a verdade. A
evidência da rotação do Sol em torno da Terra nos engana, a
analogia em que se baseia a análise espectral conduz à ver­
dade. É essa a razão pela qual alguns propõem a legitimida­
de da analogia como método básico da psicologia animal. A
analogia é com pletam ente admissível som ente quando se
especificam aquelas condições que a tornam exata; o que
aconteceu até agora é que a analogia nada mais fez do que
proporcionar histórias e curiosidades, porque se recorria a
ela onde não era adequada pela própria essência dos fatos.
Mas a analogia pode proporcionar resultados tão úteis quan­
to os da análise espectral. Por isso, a situação em física e em
psicologia é essencialmente a mesma; m etodológicamente,
só se diferenciam em grau.
286 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

A seqüência psíquica apresenta-se a nós como um frag­


mento: mas, para onde desaparecem e de onde aparecem
todos os elementos da vida psíquica? Vemo-nos obrigados a
continuar a seqüência conhecida de suposições, Ê precisa­
mente nesse sentido que H. Hoffding introduz esse conceito,
que corresponde ao de energia potencial em física; por isso,
Leibniz introduz os elem entos infinitam ente pequenos da
consciência. “Vem o-nos obrigados a continuar a vida da
consciência no inconsciente para não cometer um disparate”
(H. Hoffding, 1980, p. 87), No entanto, para Hoffding o “in­
consciente é o conceito limite da consciência”, e nesse limite
podem os “ponderar a possibilidade” m ediante hipóteses,
mas “ampliar consideravelm ente os conhecim entos reais é
impossível (...) Em comparação com o m undo físico, o mun­
do espiritual é para nós um fragmento; só podem os comple-
m entãdo através de hipóteses” (ibidem),
Mas inclusive esse respeito pelos limites da ciência pa­
rece insuficiente para outros autores. Do inconsciente só
podemos afirmar que existe; por sua própria definição, não
é objeto da experiência; demonstrá-lo com fatos da observa­
ção, como tenta Hoffding, é ilícito. A palavra inconsciente
tem dois significados, existem dois tipos de inconsciente que
não devem ser confundidos. É por isso que a discussão gira
em torno de um objeto duplo: por um lado sobre as hipóte­
ses e por outro sobre os fatos observáveis.
Mas se derm os som ente mais um passo nessa direção
voltaremos ao ponto de partida: à dificuldade que nos obri­
gou a supor o inconsciente.
A psicologia encontra-se aqui numa situação tragicómi­
ca: quero e não posso. Vê-se obrigada a aceitar o incons­
ciente para não cometer um disparate, mas ao aceitá-lo co­
m ete um disparate ainda m aior e retrocede aterrorizada,
Como quem foge de uma fera e, ao tropeçar em um perigo
ainda maior, retrocede até o menor. Mas, não dá na mesma
morrer por uma ou outra coisa? Wundt vê nessa teoria o eco
da filosofia naturalista mística dos começos do século XIX.
Em sua esteira, N. N. Langue aceita que a psique inconscien­
te é um conceito internam ente contraditório, o inconsciente
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 287

deve ser explicado física e químicamente, mas não psicolo­


gicamente, caso contrário abrimos as portas da ciência para
“agentes m ísticos”, para “estruturas arbitrárias, que nunca
podemos com provar” (1914, p. 251)-
Ou se ja, retom am os a Hoffding: existe a série físico-
química que, em alguns pontos fragm entados, é acom pa­
nhada de imediato ex nihilo pela seqüência psíquica; ten­
tem com preender e interpretar científicam ente esse “frag­
m ento”, O que significa essa discussão para o metodólogo?
É necessário sair psicologicamente dos limites da consciên­
cia percebida diretamente, de m odo a deslindar o conceito
da sensação. A psicología com o ciência da consciência é,
por princípio, impossível; e é duplam ente impossível como
ciência da psique inconsciente. Parece não haver saída, não
existir solução para essa quadratura do círculo. Mas a física
encontra-se exatamente na mesma situação; efetivamente, a
seqüência física se estende inclusive mais que a psicológica,
mas tam pouco ela é infinita e foi também a ciência que deu
continuidade a essa experiência, desconectando o olho. É
precisamente esta a tarefa da psicologia.
Nesse sentido, para a psicologia a interpretação não é
só uma amarga necessidade, mas um m odo de conhecim en­
to libertador, essencialmente fecundo, salto vítale que, para
os maus saltadores, se transforma em salto moríale. A psico­
logia terá de confeccionar sua filosofia dos aparelhos, assim
como os físicos têm sua filosofia do term ôm etro. De fato,
em psicologia as duas partes desse debate recorrem à inter­
pretação: o subjetivista dispõe, no fim das contas, da pala­
vra da pessoa submetida à prova, ou seja, que o comporta­
m ento e sua psique é um com portam ento interpretado. O
objetivista tam bém interpreta inevitavelm ente. O próprio
conceito da reação inclui a necessidade de interpretação, de
significado, de conexão, de relações. De fato: actio e reactio
Nâo conceitos inicialmente mecânicos, de modo que é p re d ­
ito observar a ambos e formular a lei. Mas em psicologia e
fisiología a reação nâo é igual ao estímulo, tem um significa­
do, um fim, isto é, desem penha um a determ inada função
dentro de um grande conjunto, está relacionada qualitativa-
288 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

mente com seu excítame; e esse significado da reação como


função do conjunto, essa qualidade das reações mútuas, não
é proporcionada pelo experimento mas as encontramos atra­
vés da dedução. Em síntese e numa form ulação geral: ao
estudar a conduta como sistema de reações, não estudamos
os atos de conduta em si mesmos (com o órgãos), mas em
suas relações com outros atos - estímulos. E a reação, assim
como a qualidade que essa reação possuí, seu significado,
não são nunca objeto de nossa percepção direta. Sobretudo
se considerarmos que se trata da reação de duas séries hete­
rogêneas - os estímulos e as reações. Isto é muito importan­
te: a reação é uma resposta; a resposta só pode ser estudada
pela qualidade de suas relações com a pergunta, e é esse o
significado da resposta, que não se encontra na percepção,
mas na interpretação.
De fato, é essa a interpretação de todos os autores.
V. M. Békhterev distingue o reflexo criativo. O proble­
ma está no excitante: a criação ou reflexo simbólico é a rea­
ção para responder a esse excitante. Mas os conceitos de
criatividade e de sím bolo são conceitos sem ânticos e não
experimentos: o reflexo é criativo se se acha, com o estímu­
lo, numa reação que cría algo novo; é simbólico se substituí
outro reflexo, mas não é possível ver diretam ente o caráter
simbólico ou criativo do reflexo.
I. P. Pãvlov distingue distintos tipos de reflexo: o de
liberdade, o de objetivo, o de alimentação, o defensivo. Mas
a liberdade ou o objetivo não podem ser vistos, não têm um
órgão, como, por exemplo, os órgãos de nutrição; tam pouco
são funções; estão integrados pelos mesm os m ovim entos
que os demais; a defesa, a liberdade e o objetivo são o sig­
nificado desses reflexos.
K. N. Kornilov distingue as reações em ocionais, as de
escolha, a associativa, a de reconhecim ento etc. Novamente,
uma classificação segundo o significado, isto é, segundo a
interpretação, sobre a base da relação estímulo-resposta entre
eles.
J. Watson, em bora admita idênticas distinções segundo
o significado, diz francamente que atualmente o psicólogo
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 289

da conduta chega à conclusão da existência de um proces­


so adulto de pensam ento, utilizando apenas a lógica. Com
isto, tem consciência de seu m étodo e refuta brilhantem en­
te E. Titchener, que defende a tese de que o psicólogo da
conduta não pode, precisam ente por sê-lo, admitir o pro­
cesso do pensam ento se carece dos meios para observá-lo
diretam ente e por isso adota a via introspectiva para estu-
dã-lo. Mas W atson diferencia radicalm ente o conceito de
pensam ento do de percepção do pensam ento na introspec-
ção, assim corno o term ôm etro nos em ancipa da sensação
quando criamos o conceito de calor. Por isto sublinha: “Se
alguma vez conseguim os estudar cientificamente a natureza
íntima do pensam ento (...) devem os isto em grande medida
aos aparelhos científicos” (1926, p. 301). Por isso, no fim
das contas “a situação do psicólogo não é tão lamentável:
também os fisiólogos se contentam em observar os resulta­
dos finais e utilizam a lógica”. “O partidário da psicologia
de conduta sente que deve manter firmemente essa posição
diante do problem a do pensam ento” ( ibidem , p. 302). E o
significado é para Watson um problem a experimental. Que
podemos resolver, partindo do que nos foi dado, e por meio
do pensam ento.
E. Thorndike distingue as reações de sentimento, dedu­
ção, talento, destreza (1925). De novo, interpretação.
Tudo consiste em como interpretar: por analogia com a
introspecção própria, por analogia com as funções biológi­
cas etc. Por isso, Koffka tem razão quando afirma: não exis­
te um critério objetivo acerca da consciência, não sabemos
se na verdade existe ou não a consciência, mas isto não nos
aflige em absoluto. Não obstante, o com portam ento é tal
que a consciência que lhe pertence, se existe, deverá ter
uma determinada estrutura; por isso, o comportamento deve
ser explicado justam ente en q u an to consciente. Ou, para
expressá-lo de outra m aneira mais paradoxal: se cada um
tivesse som ente as reações que podem ser observadas por
todos, ninguém poderia observar nada. Ou seja, que a base
da observação científica consiste em sair dos limites do visí­
vel e buscar seu significado, que não pode ser observado.
290 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

Koffka tem razão. Tinha razão quando afirmava que o


behaviorism o está condenado â esterilidade se se limitar a
estudar o que observa, se seu ideal consistir em conhecer o
sentido e a velocidade de m ovim ento de cada mem bro, a
secreção de cada glândula, como resultado de cada estímu­
lo. Seu campo será constituído unicamente de fatos da fisio­
logía dos m úsculos e das glândulas. A descrição “este ani­
mal foge de um certo perigo, por mais insuficiente que seja,
caracteriza no entanto cem vezes mais o comportam ento do
animal do que a fórmula que nos dá o movimento de todas
suas patas, com suas velocidades variáveis, as curvas da res­
piração, do pulso etc.” (K. Koffka, 1926).
W. K õhler m ostrou com os fatos corno se p o d e d e ­
m onstrar sem introspecção alguma a existência de pensa­
m ento nos macacos e inclusive estudar através do m étodo
introspectivo reações objetivas que desvendam o andam en­
to e a estrutura desse processo (1917). Kornilov tornou evi­
dente como ê possível medir com o m étodo indireto a osci­
lação energética de diferentes operações do pensam ento,
utilizando o dinam oscópio de m aneira análoga ao termo-
m etro (1922). O erro de W undt consiste precisam ente no
em prego m ecânico de aparelhos e do m étodo matemático
não para am pliar, mas para controlar e corrigir, não para
libertar-se da introspecção mas para se ligar a ela. Em es­
sência, na maioria das investigações de Wundt, a introspec­
ção sobra: serve apenas para destacar os experim entos que
fracassaram . Mas é radical e absolutam ente desnecessária
na doutrina de Kornilov. Não obstante, a psicologia ainda
tem de criar seu term ôm etro; a investigação de Kornilov
abre o caminho para isso.
Podemos resumir nossas conclusões sobre a investiga­
ção do dogm a estritam ente sensualista, rem etendo-nos às
palavras de Engels sobre a atividade do olho ao qual se
acrescenta o pensam ento, que nos permite descobrir que as
formigas vêem o que para nós é invisível.
D urante m uito tem po a psicologia procurou alcançar
não o conhecim ento, mas a sensação. C ontinuando com
nosso exemplo, buscava mais compartilhar com as formigas
0 SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 291

sua percepção visual da sensação dos raios químicos do que


conhecer cientificamente sua visão.
Existem dois tipos de sistema científico segundo a ar­
mação m etodológica que os sustenta. A m etodologia viria
sempre a ser a ossamenta, como o esqueleto no organismo
do animal. Os animais mais simples, como o caracol e a tar­
taruga, levam seu esqueleto na parte externa e, assim como
as ostras, podem ser separados da ossamenta, sendo o que
resta uma massa mole, pouco diferenciada; os animais supe­
riores têm o esqueleto no interior e o convertem em seu
apoio interno, o osso de cada um de seus movimentos. Em
psicologia também é preciso diferenciar os tipos inferiores e
superiores de organização metodológica.
Eis aqui a melhor refutação do ilusório empirismo das
ciências naturais. O que se constata é que nada podem os
trasladar de uma matéria a outra. Ainda que nos pareça que
um fato simples é um fato, que um mesmo objeto - a crian­
ça - e um mesmo m étodo - a observação objetiva - nos per­
mitem, ainda que os objetivos finais e as premissas iniciais
sejam distintos, trasladar, por exemplo, os fatos da psicolo­
gia para a reflexologia. E que a diferença surgiria somente
na interpretação dos mesmos fatos. No entanto, os sistemas
de Ptolomeu e de Copérnico também se baseavam, no fim
das contas, nos mesmos fatos, mas vemos que os fatos con­
seguidos com a ajuda de diferentes princípios cognitivos são
justamente fatos distintos.
Portanto, a discussão sobre a aplicação do princípio
biogenético em psicologia não é simplesmente uma discus­
são sobre os fatos. Os fatos são indubitáveis e existem dois
grupos deles: por um lado, a recapitulação dos estudos rea­
lizados até agora sobre o desenvolvim ento da estrutura do
organismo e, por outro, os indubitáveis traços de semelhan­
ça que existem entre a filogênese e a ontogênese da psique.
E desejamos sublinhar que tam pouco a respeito dessa sem e­
lhança cabe qualquer discussão. Koffka, que impugna essa
teoria e nos apresenta uma análise metodológica dela, afir­
ma no entanto, de forma rotunda, que as analogias de que
parte essa teoria - mesmo sendo falsa - existem realmente e
292 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

sem a m enor duvida. A discussão refere-se mais ao valor


dessas analogias, que nâo pode ser estabelecido sem que se
analise a fundo os princípios da psicologia infantil e sem
que se tenha uma idéia geral da infância, urna concepção de
sua im portância e de seu sentido biológico e sem que se
disponha de uma teoria determ inada sobre o desenvolvi­
mento da criança (K. Koffka, 1925). Encontrar analogias em
qualquer parte é muito fácil; a questão é como foram procu­
radas, (Note-se que analogias parecidas podem também ser
encontradas no com portam ento do adulto.) Nessas desco­
bertas podem ocorrer dois erros típicos: um é, por exemplo,
o que comete S. Hall, como evidenciaram Thorndike e Gross
numa excelente análise crítica. Este último autor considera
com razão que a tarefa da ciência e o sentido de toda com­
paração é de não só destacar os traços coincidentes, mas
sobretudo procurar as diferenças que se dão dentro dessa
semelhança (1906). Por conseguinte, a psicologia compara­
tiva nâo só deve com preender o homem como animal, mas,
mais ainda, como não-animal.
A aplicação sim plista do princípio psicogenético deu
assim lugar à busca de afinidades em qualquer lugar, de
modo que um m étodo correto e alguns fatos estabelecidos
com exatidão, mas não criticamente aplicados, conduziram
a monstruosos artifícios e a afirmações falsas. Por exemplo,
já que no jogo infantil se mantiveram, por tradição, muitas
influências do passado ancestral (arco e flecha, brincadeira
de roda), Hall vê nisso a repetição e ao mesmo tem po a gra­
dual eliminação, sob uma forma mais inofensiva, do que é
próprio dos animais e dos estágios pré-históricos de desen­
volvimento; o que para Gross dem onstra uma surpreenden­
te carência de senso crítico, O medo de gatos e de cachorros
seria assim uma reminiscência dos tem pos em que esses ani­
mais ainda eram selvagens; a água atrai as crianças porque
procedem os de animais aquáticos; o movimento automático
das m ãos nas crianças p equenas é uma rem iniscência de
nossos antepassados que nadavam na água etc.
O erro consiste, por conseguinte, em interpretar todo
com portam ento da criança como uma recapitulação e em
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 293

renunciar a qualquer princípio de com provação e de sele­


ção das an alo g ias que perm ita d ife ren c iar os fatos que
devem ser objeto dessa interpretação dos que não devem
sê-lo. E, justamente, o jogo nos animais não pode ser objeto
dessa explicação. “Pode-se explicar o jogo do tigre jovem
com sua vítima?” - pergunta K. Gross (1906). É claro que é
impossível com preender o jogo como uma recapitulação da
evolução filogenética. É, pelo contrário, uma antecipação da
futura atividade do tigre e não uma repetição de seu desen­
volvim ento passado; deve ser explicado e com preendido
partindo-se da relação com o futuro tigre, à luz da qual o
jogo adquire um significado, e não à luz do passado de sua
espécie. O passado da espécie manifesta-se aqui num senti­
do totalmente distinto; através do fu tu ro do indivíduo, que
esse passado predeterm ina, em bora nào diretam ente, nem
no sentido da mera repetição.
E aonde nos leva esse raciocínio? Justam ente a ver que
no nível biológico e precisamente na série de fenôm enos que
são homogêneos em outros níveis de evolução e onde for­
m ulamos uma com paração com seu análogo hom ogêneo,
essa teoria quase-biológica mostra-se inconsistente. Se com­
pararmos o jogo da criança com o do tigre, isto é, com o dos
mamíferos superiores, e levarmos em conta não só as sem e­
lhanças, mas também as diferenças, descobriremos o signifi­
cado biológico comum , que está contido precisam ente em
suas diferenças (o tigrinho brinca de caçar como o tigre; a
criança brinca de ser gente grande; ambos exercitam para a
vida futura as funções necessárias - teoria de K. Gross). Mas
ao com parar fenôm enos heterogêneos (o jogo do hom em
com a água - a vida dos anfíbios na água), e apesar da gran­
de analogia externa e aparente, a teoria carece biologica­
mente de sentido.
A um argum ento tão contundente Thorndike acrescenta
sua observação sobre a distinta ordem em que os mesmos
princípios biológicos aparecem na ontogênese e na filogêne-
se. Assim, a consciência surge muito cedo na ontogênese e
muito tarde na filogênese; pelo contrário, a atração sexual
aparece muito cedo na filogênese e muito tarde na ontogê-
294 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

nese (E. Thorndike, 1925). W. Stern, utilizando considera­


ções análogas, critica essa mesma teoria em sua aplicação
ao jogo.
Um erro de outro tipo é o que com ete P. P. Blonski
quando defende - legítimamente - a validade dessa lei para
o desenvolvimento embrionário do ponto de vista da biome­
cánica, fazendo ver que seria um milagre se não existisse.
Blonski assinala a natureza hipotética de tais considerações
(“não muito dem onstráveís’’) para chegar finalmente a afir­
má-las (“pode ser assim”). Ou seja, depois de fundamentar a
possibilidade metodológica da hipótese de trabalho, o autor,
em vez de passar à análise e à com provação da hipótese,
adota o caminho de Hall e já explica o com portam ento da
criança p artin d o de analogias m uito com preensíveis: no
gosto da criança por trepar em árvores vê a recapitulação,
não da vida dos macacos, mas dos hom ens primitivos, que
no entanto viviam entre rochas e gelo-, no ato de arrancar o
papel de parede, vê o atavismo de arrancar a casca das árvo­
res etc, (P. P. Blonski, 1921). O mais curioso de tudo é que
esse erro leva Blonski ao mesmo que a Hall: ã negação do
jogo. Como apontam Gross e W. Stern, justamente onde mais
an alo g ias en tre a o n to g ên e se e a filogênese podem ser
extraídas é que esse paralelism o é mais inconsistente. Por
sorte, Blonski, como se estivesse dando um exemplo da ine­
vitável pressão das leis m etodológicas do conhecim ento
científico, não recorre nem mesmo a termos novos; não vê a
necessidade de denom inar a atividade da criança por meio
de um “termo novo” (jogo). Isto nos mostra que em seu pro­
cesso metodológico perdeu primeiro o significado do jogo e,
em seguida e conseqüentem ente (o que o honra), renuncia
também ao termo que expressa esse significado. Porque, na
verdade, se a atividade ou o comportamento da criança são
atavismos, são somente uma recapitulação do passado, então
o term o “jo g o ” é im próprio. Essa atividade nada tem em
comum com o jogo do tigre, como mostrou Gross, E a decla­
ração de Blonski “Não gosto desse term o” deveria ser tradu­
zida m etodológicam ente assim: “Perdi a com preensão e o
sentido desse conceito” (I92T).
o s ig n ific a d o h i s t ó r i c o d a c r i s e D A P S IC O L O G IA 295

Somente assim, seguindo cada princípio até suas últi­


mas conclusões, levando cada conceito até o limite a que
tende, analisando até o fim de cada etapa do pensam ento,
pensando-a às vezes a partir da posição do autor, pode-se
determ inar a natureza m etodológica do fenôm eno a anali­
sar. Por isso, somente na ciência em que o conceito foi ori­
ginariamente cunhado e onde o conceito se desenvolveu e
foi levado até o limite de sua expressão, ele é utilizado de
forma consciente e não cega. Quando o trasladamos a outra
ciência fic a cego e não nos leva a parte alguma, Esse tipo de
trasladaçào cega do principio biogenético, do experim ento
ou do m étodo m atem ático próprios das ciências naturais
deu à psicología a aparência de algo científico, mas por
baixo dessa aparência se oculta, de fato, uma total im potên­
cia ante os fenôm enos a estudar.
Para fechar definitivamente o círculo que descreve o sig­
nificado desse princípio psicogenético na ciência, vejamos
ainda seu último destino. Porque não se trata apenas de des­
cobrir a esterilidade de um princípio e de realizar sua crítica,
indicando os casos mais curiosos e os artifícios que até os
escolares reconhecem . Dito de outra maneira, a história de
um princípio não se encerra com sua simples eliminação das
áreas que não lhe pertencem, com sua simples reprovação,
Lembremos que esse princípio estranho penetrou na ciência
através da p o nte dos fa to s, de analogias que na verdade exis­
tem e que ninguém nega. Mas à medida que esse princípio
se afiançava e se tornava forte, foi aumentando o número de
fatos, em parte falsos, em parte verdadeiros, em que se apota
sua potência imaginária. Ao mesmo tem po e por sua parte, a
crítica desses fatos e a do próprio principio atrai para a área
de análise da ciência outros novos fatos. E o problema não
se limita aos fatos: a crítica deve encontrar uma explicação
de fatos confrontados, de modo que no final ambas as teo­
rias acabam se assim ilando e se chega, sobre essa base, a
uma degeneração do princípio.
Sob a pressão dos fatos e das teorias estranhas, o novo
adventicio (o principio psicogenético) modifica sua face.
Com o princípio biogenético ocorreu o mesmo; degenerou e
296 T E O R IA E M É T O D O E M P S IC O L O G IA

hoje se apresenta em psicologia sob duas formas distintas


(sinal de que o processo de degeneração ainda não termi­
nou): 1) a teoria do útil, defendida pelo neodarw inism o e
pela escola de Thorndike, que considera que o indivíduo e
a espécie estão subordinados em seu desenvolvim ento às
mesmas leis; disto decorre uma série de coincidências mas
tam bém de não-coincidências: nem tudo que é útil para a
espécie na etapa inicial também o é para o indivíduo; 2) a
teoria da concordância, defendida em psicologia por Koffka
e por J. Dewey, e na filosofia da história por O. Spengler.
Essa teoria supõe que qualquer processo de desenvolvimen­
to tem indispensavelmente algumas etapas comuns e deter­
minadas formas sucessivas; do mais simples ao mais compli­
cado e dos níveis inferiores aos superiores.
Está longe de nossas intenções nos pronunciarmos a res­
peito da verdade de qualquer dessas posturas, ou entrar no
terreno dos fatos. O que nos interessa é acompanhar a dinâ ­
mica da reação espontânea e cega do corpo científico diante
de um objeto estranho, im portado; acom panhar as formas
dessa inflamação científica em função do tipo de infecção,
para passar da patologia à norma; esclarecer as atividades e
funções norm ais das diferentes partes integrantes: dos
órgãos” da ciência. É nisto que consiste o objetivo e o signifi­
cado de nossa análise, que, embora às vezes pareça se des­
viar, desenvolve a comparação, sugerida por Spinoza, da psi­
cologia de nossos dias com um doente grave. Se situássemos
no marco dessa metáfora o significado de nossa última digres­
são, poderíamos resumir assim nossa análise e conclusões:
A partir da análise do inconsciente, estudam os no co­
m eço a n a tu re za , a ação e p ro ce d im e n to de difusão da
infecção, a penetração a partir dos fatos de uma idéia alheia,
sua conquista do organismo e a alteração das funções deste.
Ao passar em seguida para a análise da biogênese pudemos
estudar a reação do organismo, a luta contra a infecção, a
tendência dinâmica de absorver, de expulsar, neutralizar e
assimilar o corpo estranho e de se regenerar e mobilizar for­
ças contra o contágio: falando em termos médicos, de pro­
duzir anticorpos e produzir imunidade. Resta a última e ter-
O S IG N IF IC A D O H IS T Ó R IC O D A C R IS E D A P S IC O L O G IA 297

ceira etapa: separar os fenômenos da doença das reações a


ela, o sadio do e n f e r m o , os processos de infecção e de recu­
peração. Abordarem os i s t o , com a análise da terminología
científica, na terceira e ú l t i m a digressão, para daí passar
diretam ente a form ular o diagnóstico e o prognóstico de
nosso doente: a natureza, o sentido e a saída da crise que
está se desenvolvendo.

Se alguém q u i s e s s e construir uma idéia clara e objetiva


da situação que vive agora a psicologia e das dimensões da
crise, bastaria estudar a linguagem psicológica, sua nom en­
clatura e sua terminologia, o vocabulário e a sintaxe do psi­
cólogo. A linguagem, a científica em particular, é o instru­
m ento do pensam ento, o instrum ento da análise, e basta
olhar o instrumento que a ciência utiliza para com preender o
caráter das operações a que se dedica. As linguagens alta­
mente desenvolvidas e exatas da física moderna, da química,
da fisiología (sem falar da matemática, onde ela desem penha
um papel essencial), foram se formando e aperfeiçoando ao
mesmo tem po que se desenvolvia cada uma dessas ciências,
e isto n ã o ocorreu de forma alguma espontaneam ente, mas
se produziu conscientem ente: sob a influência da tradição,
da crítica, da criatividade terminológica cunhada pelas pró­
prias sociedades e pelos congressos científicos.
A linguagem psicológica atual é, antes de mais nada,
insuficientemente terminológica: isso significa que a psico­
logia ainda não possui sua linguagem. Em seu vocabulário
encontramos um conglomerado de três classes de palavras:
1) Palavras da linguagem cotidiana, vagas, polissemân-
ticas e adaptadas à vida prática. A. F. Lazurski acusava disso
a psicologia das aptidões; consegui m ostrar que isso tam ­
bém é aplicável à linguagem da psicologia empírica e inclu­
sive, em parte, à do próprio Lazurski (L. S. Vigotski, 1925).
Como prova disto basta lem brar as dificuldades com que
deparam os tradutores em psicologia - tomemos por exem-
298 T EO R IA E M É TO D O EM P S IC O L O G IA

pio o sentido da visão (sentido no significado de sensação)


- para apreciar o metamorfismo, a inexatidão da linguagem
cotidiana;
2) Tam bém m aculam a linguagem dos psicólogos as
palavras da linguagem filosófica que já perderam sua cone­
xão com o significado original, igualmente polissemânticas,
em conseqüência da luta entre as distintas escolas filosófi­
cas, e extremam ente abstratas. A. Lalande vê nelas a princi­
pal fonte de imprecisão em psicologia: os tropos dessa lin­
guagem favorecem um pensam ento indeterminado; as m etá­
foras, valiosas enquanto ilustração, são perigosas enquanto
fórmulas, pois levam à personificação dos fatos e das fun­
ções psicológicas; os sistemas ou teorias são interpretados
através de “ismos” entre os quais são inventados ou imagi­
nados pequenos dramas mitológicos (L. Lalande, 1929);
3) Finalmente, os vocábulos e formas da linguagem to­
madas das ciências naturais e empregados em sentido figu­
rado servem diretamente para enganar. Quando um psicólo­
go raciocina sobre a energia e a força, inclusive sobre a
intensidade, ou quando se refere à excitação etc., encobre
sempre por trás de uma palavra científica um conceito não-
científico, quer enganando díretam ente, quer ressaltando,
uma vez mais, a absoluta vaguidade do conceito, que deno­
mina com um termo exato, mais alheio.
O caráter obscuro dessa linguagem psicológica, aponta
corretam ente Lalande, provém tanto da sintaxe quanto do
vocabulário: na própria construção da frase psicológica não
encontramos menos dramas mitológicos do que no vocabu­
lário. E a isto eu acrescentaria que o estilo, a maneira de se
expressar da ciência desem penha um papel não m enos im­
portante. Em uma só palavra, todos os elementos, todas as
funções da linguagem trazem as marcas da idade da ciência
que os utiliza e determinam assim o caráter de seu trabalho.
Seria errôneo pensar que os psicólogos não se deram
conta da miscelânea, da inexatidão e do caráter mitológico
de sua linguagem. Não encontram os quase nenhum autor
que não tenha se detido de uma ou outra forma no proble­
ma da terminologia. Na verdade, os psicólogos pretendiam
O S IG N IF IC A D O H IS T Ó R IC O D A C R IS E D A P S IC O L O G IA 299

¿escrever, analisar e estudar coisas especialm ente delicadas


6 cheias de matizes, e procuravam transmitir as incom pará­
veis particularidades das ciências espirituais, fatos sui gene­
ris, aqueles onde pela prim eira vez a ciência procurava
transmitir a própria sensação, ou seja, quando propunha a
SUa linguagem tarefas de que h ab itu alm en te se o cupa a
expressão literária. Por isso os psicólogos aconselharam
■prender psicologia com os grandes romancistas, pois eles
mesm os falavam o idiom a da literatura im pressionista, e
Inclusive os melhores, os psicólogos de estilo mais brilhan­
te, viam-se impotentes para criar uma língua exata e escre­
viam de form a m etaforicam ente expressiva: inculcavam ,
desenhavam, representavam , mas não protocolizavam. As­
sim são James, Lipps, Binet.
О VI Congresso Internacional de psicólogos celebrado
em Genebra (1909) colocou essa questão na ordem do dia e
publicou duas comunicações - de J. Baldwin e E. Claparède
mas não fizeram mais que estabelecer as regras das possibi­
lidades lingüísticas, embora Claparède tenha tentado definir
quarenta termos de laboratório. O dicionário de Baldwin na
Inglaterra, o dicionário técnico e crítico de filosofia na Fran­
ça m uito fizeram , mas apesar deles a situação piora ano
após ano e torna-se impossível ler um livro novo servindo-
se desses dicionários. A enciclopédia de onde extraí esses
dados coloca como uma de suas tarefas introduzir rigidez e
estabilidade na terminologia, mas dá lugar a uma nova insta­
bilidade, ao introduzir um novo sistema de signos (). Dumas,
1924).
A linguagem é apenas uma mostra evidente das m udan­
ças moleculares que vive a ciência; reflete processos inter­
nos e nào-formalizados - tendências de desenvolvim ento,
reforma e crescimento. Admitamos portanto o princípio de
que o confuso estado da linguagem da psicologia reflete o
confuso estado de nossa ciência. Não entrarem os mais a
fundo na essên cia dessa relação: irem os tom á-la com o
ponto de partida para analisar as atuais mudanças molecula­
res ou term inológicas em psicologia. Talvez possam os ler
nelas o destino presente e futuro da ciência.
300 T E O R IA E M É T O D O E M P S IC O L O G IA

Comecemos, antes de mais nada, por aqueles que clara­


m ente negam uma significação essencial para a linguagem
da ciência e consideram essa discussão como uma logoma­
quia escolástica. Assim, Tchelpãnov vê na intenção de subs­
tituir a terminologia subjetiva por outra objetiva uma preten­
são ridícula, o cúmulo do absurdo. Cita, para respaldar sua
tese, os zoopsicólogos (Th. Beer, A. Bethe, Ya. I. Ikskiul)
que diziam “foto-receptor” em vez de “olho”, “estibo-recep­
tor” em vez de “nariz”, “receptor” em vez de “órgão dos sen­
tidos” etc. (G, I. Tchelpánov, 1925).
Nesse mesmo sentido G. I. Tchelpánov tende a reduzir
a um mero jogo de palavras a reforma levada a cabo pelos
behavioristas; pensa que nas obras de J. Watson a palavra
“sensação” ou “representação” foi substituída por “reação”.
Para mostrar ao leitor a diferença entre a psicologia corrente
e a de um behaviorista, Tchelpãnov cita exemplos do novo
m odo de expressão: “Na psicologia atual se diz.- ‘Se um
nervo óptico qualquer se excita com uma mescla de ondas
de cores complementares surgirá nele a consciência da cor
branca’. Segundo Watson, neste caso é preciso dizer: Reage
e ela com o à cor b ran c a ” (1926). D edução triunfante do
autor: o problem a não varia com a palavra em pregada; a
única diferença consiste nas palavras. Mas, será realmente
assim? Para um psicólogo como Tchelpãnov sem dúvida é.
Q uem não investiga nem d esco b re algo nervo não po d e
com preender por que os investigadores introduzem novas
palavras para os novos fenômenos. Para quem não tem um
ponto de vista próprio sobre as coisas e aceita tanto Spinoza
quanto Husserl, tanto Marx quanto Platão, considerar a su­
bstituição de um termo como algo essencial é uma vã pre­
tensão. Quem assimila ecleticamente - por ordem de surgi­
mento - todas as escolas, correntes e tendências existentes
na Europa Ocidental necessita de um a linguagem confusa,
indeterm inada, niveladora, cotidiana, por exemplo: “como
se diz na psicologia tradicional”. Para quem pensa a psicolo­
gia som ente em forma de m anual, defender a linguagem
cotidiana passa a ser uma questão vital e, já que toda uma
multidão de psicólogos empíricos pertence a esse tipo, essa
O S IG N IF IC A D O H IS T Ó R IC O D A C R IS E D A P S IC O L O G IA 301

psicologia fala essa miscelânea de jargão confuso, na qual a


consciência da cor branca é um sim ples fato, sem crítica
subseqüente,
Para Tchelpánov, essas distinções são um capricho, uma
excentricidade. No entanto, por que essa excentricidade é
tão regular? Não haverá nela algo de necessário? Watson e
Pávlov, Békhterev e Kornilov, Beth e Ikskiul (o informe de
Tchelpánov pode ser ampliado a d libitum em qualquer esfe­
ra da ciência), Kõhler e Koffka, e tantos outros, dão prova
dessa excentricidade. Ou seja, a tendência a introduzir uma
nova terminologia encerra certa necessidade objetiva.
Podemos dizer de antem ão que a palavra, ao nom ear
um fa to , proporciona ao mesmo tempo a filo so fia do fa to ,
sua teoria, seu sistema. Quando digo: “consciência da cor”,
possuo certas associações científicas, o fato se incorpora a
um a série de fenôm enos, dou um significado ao fato; no
entanto, quando digo “reação ao branco”, tudo é com pleta­
mente diferente.
Mas Tchelpánov só finge quando afirma que se trata so­
mente de uma questão de palavras. Porque sua própria tese
( “as reformas na terminologia não são necessárias”') é a con­
clusão de outra tese: não sâo necessárias reformas na psico­
logia. Não é preciso explicar que Tchelpánov se enredou
numa série de contradições: afirma por um lado que Watson
m uda so m en te as palavras e su ste n ta, p o r ou tro , q u e o
behaviorismo desfigura a psicologia, Mas das duas uma: ou
Watson joga com as palavras, e neste caso o behaviorismo é
a coisa mais inocente, uma alegre anedota, como Tchelpánov
gosta de imaginar para se tranqüilizar ou, por trás da mu­
dança das palavras se oculta a m udança dos problem as e
então a mudança de palavras não é algo tão cômico. A revo­
lução arranca sempre das coisas os nomes velhos, tanto em
política quanto em ciência.
Mas o c u p e m o -n o s agora d a q u e le s au to re s que têm
consciência da significação que se oculta por trás das pala­
vras novas: para eles é claro que os novos fatos e o novo
ponto de vista sobre eles exigem novas palavras. Esses psi­
cólogos dividem-se em dois grupos-, uns, os ecléticos puros,
302 T E O R IA i M É T O D O EM P S IC O L O G IA

que misturam alegremente os velhos e os novos vocábulos e


vêem nisso uma lei eterna; outros, no entanto, falam nessa
linguagem m ista p o r n e c essid ad e , não co in cid em com
nenhum a das partes em litígio e procuram chegar a um idio­
ma único criando o seu próprio.
Vimos que ecléticos tão m anifestos com o T horndike
utilizam o termo “reação” tanto para o caráter, a destreza, a
ação, quanto para o objetivo e o subjetivo. Por não conse­
guir resolver o problema da natureza dos fenôm enos a estu­
dar e dos princípios de análise, despoja sim plesm ente de
significado tanto os termos subjetivos quanto os objetivos e
as unidades “estím ulo-reaçâo” são sim plesm ente para ele
uma forma cômoda de descrever os fenômenos.
O utros, com o V. P. Pillsburi, fazem do ecletism o um
princípio: as discussões sobre o m étodo geral e sobre as
perspectivas podem talvez interessar o psicólogo técnico. As
sensações e as percepções são formuladas por ele nos ter­
mos dos estruturalistas e os atos, de qualquer tipo. nos dos
behavioristas; no que lhe diz respeito inclina-se para o fun­
cionalismo. A diferença de termos conduz a uma discordân­
cia; mas ele prefere esse em prego de termos de muitas esco­
las aos de uma só (V. B. Pillsberi, 1917). E, sendo conse­
qüente com essa postura, mostra-nos com exemplos da vida
cotidiana e com palavras aproximadas, a que a psicologia se
dedica, ao invés de ap resen tar uma definição formal; ao
expor três definições da psicologia como ciência da alma,
da consciência e do comportam ento, chega à conclusão de
que essas diferenças podem ser deixadas de lado quando se
descreve a vida espiritual. É evidente que também a termi­
nologia é indiferente para nosso autor.
Koffka (1925) e outros procuraram apresentar uma sín­
tese no nível de princípios da velha e nova terminologias.
Esses autores com preendem perfeitamente que a palavra é a
teoria do fato designado, e por isso, por trás dos distintos
sistemas de termos vêem dois sistemas distintos de concei­
tos: o com portam ento tem dois aspectos (o que está ao al­
cance da observação científico-natural e o q ue está ao al­
cance da sensação), aos quais respondem os conceitos fun-
O S IG N IF IC A D O H IS T Ó R IC O D A C R IS E D A P S IC O L O G IA 303

e descritivo. Os conceitos e os term os funcionáis-


c io n a l
objetivos pertencem à categoría do científico natural, ao
passo que os conceitos e termos f e n o m ê n i c o - d e s c r i t i v o s são
(para o com portam ento) absolutamente estranhos. Com fre­
qüência, esse fato ap arece velado pela língua, q ue nem
sempre dispõe de termos concretos para um ou outro gêne­
ro de conceitos, já que a linguagem cotidiana nâo é lingua­
gem científica.
O mérito dos norte-americanos consiste em terem com ­
batido o anedotism o subjetivo na psicologia animal, mas
nós não teremos medo de em pregar conceitos descritivos ao
explicar o com portam ento dos animais. Os norte-am erica­
nos foram longe demais, são objetivos demais.
E, de novo, encontramos algo realmente curioso: a teo­
ria da Gestalt, profundam ente dupla em seu interior (que
reflete e une em seu seio duas tendências contrapostas que,
como mostraremos mais adiante, determinam de fato todo o
problema da crise e seu destino), quer conservar por princí­
pio e para sem pre um a linguagem d u p la , já que parte da
dupla natureza do com portam ento. Não obstante, as ciên­
cias não estudam o que se encontra em estreita vizinhança
na natureza, mas o que é próximo e hom ogêneo conceituai-
mente. Como pode existir um a ciência sobre dois gêneros,
sobre classes de fenôm enos totalm ente distintas, que exi­
gem evidentem ente dois métodos diferentes, dois princípios
explicativos etc.? P orque é a u n id ad e do ponto de vista
sobre o objeto que garante a unidade da ciência. Como se
pode estruturar uma ciência a partir de dois pontos de vista?
D e novo, a contradição nos termos responde exatamente à
contradição nos princípios.
A questão é um pouco diferente no outro grupo (funda­
m entalm ente entre os psicólogos russos), aquele dos que
utilizam tanto certos termos quanto outros, mas que vêem
nisso uma concessão à época de transição. Esse entretem po,
segundo a expressão de um psicólogo, exige roupa que
com bine o casaco de pele e o terno de verão, algo mais
abrigado e algo mais leve. Assim, B I on ski sustenta que a
questão não consiste em como denom inar os fenôm enos a
304 T E O R IA E M É T O D O E M P S IC O L O G IA

estudar, mas em como interpretá-los. Utilizamos o vocabulá­


rio habitual de nossa língua mas nessas palavras correntes
induzimos o conteúdo correspondente à ciência do século
XIX. Não se trata de evitar a expressão: “o cachorro fica
bravo”. Trata-se de que essa frase não seja uma explicação
(P. P. Blonski, 1925). De fato, nisto está contida uma total
condenação da velha terminologia: porque utilizando essa
term inologia esta frase p reten d ia ser precisam en te um a
explicação. N0 entanto, o importante é que para se transfor­
mar num problema científico essa frase deverá ser formula­
da de maneira apropriada, e não m ediante termos popula­
res. Aqueles que Blonski chama de pedantes da term inolo­
gia percebem melhor do que ele, de fato, que por trás dessa
frase se oculta um conteúdo, condensado nela pela história
da ciência. Seguindo Blonski, m uitos em pregam duas lin­
guagens, sem considerar contudo que isso implica uma ques­
tão de princípio. Assim faz K. N. Kornilov, assim faço eu,
repetindo a reflexão de Pávlov: que importância tem corno
chamã-los: psíquicos ou nervosos compostos?
Mas, apesar de tudo, os exem plos que dem os já m os­
tram os limites de um bilingüismo desse tipo. E aqui os limi­
tes dem onstram com mais clareza ainda o mesmo que nos
indicou nossa análise prévia dos elem entos anteriores: o
bilingüismo é o signo externo de um a dualidade do pensa­
mento. Pode-se falar em pregando dois idiomas desde que
se exponham conteúdos distintos, ou dois aspectos distintos
desse conteúdo, e então, que im portância tem realm ente
como os chamemos?
Recapitulemos, pois: os psicólogos em píricos necessi­
tam de uma linguagem cotidiana indeterm inada, confusa,
plurissemântica, vaga, uma linguagem tal que o que nela ê
dito possa co ncordar com q u alquer coisa - hoje com os
padres da Igreja, amanhã com Marx necessitam de termos
que não ofereçam uma qualificação filosófica ciara da natu­
reza do fenôm eno e nem ao menos uma descrição clara do
mesmo, porque os psicólogos empíricos não com preendem
com clareza e não vêem com clareza seu objeto. Os ecléti­
cos necessitam de m aneira provisória de duas linguagens
O S IG N IF IC A D O H IS T Ó R IC O D A C R IS E D A P S IC O L O G IA 305

enquanto se mantêm dentro do ponto de vista eclético, mas


quando abandonam esse terreno e procuram designar e des­
crever de novo o fato descoberto deixam de ser indiferentes
á linguagem, à palavra.
Assim, K. N. Kornilov, ao descobrir um novo fenômeno,
está disposto a reconverter toda a área à qual atribui esse
fenôm eno, todo um capítulo da psicologia em uma nova
ciência - a reatologia (K. N. Kornilov, 1922), e em outro
lugar contrapõe o reflexo à reação e aprecia uma diferença
essencial entre ambos os termos. As bases de cada um dos
termos supõem duas filosofias e duas m etodologias total­
mente distintas. Para ele, a reação é um conceito biológico,
ao passo que o reflexo é um conceito fisiológico estrito; o
reflexo só é objetivo, a reação, subjetivo-objetiva. De modo
que parece claro que o fenôm eno adquire um significado se
ü denominamos reflexo e outro se o denominamos reação.
Chamar as coisas de uma forma ou outra não é, portan­
to, indiferente, e o pedantim o se justifica quando está res­
paldado pela investigação ou pela filosofia, porque é cons­
ciente de que um erro nas palavras implica um erro na com­
preensão. Não é à toa que Blonski vê uma coincidência
entre seu trabalho e o ensaio de psicologia de L. Jemson -
um espécim e característico da m entalidade pequeno-bur-
guesa e do ecletismo da ciência (L. Jemson, 1925). Na frase
“o cachorro fica bravo” não é cabível ver um problema por­
que, como mostrou corretam ente Sehelovánov, a escolha do
termo responde ao ponto final e não ao inicial da investiga­
ção: na medida em que se designa tal ou qual complexo de
reações com um term o psicológico qualquer, pode-se dar
por descartada qualquer tentativa posterior de análise (N, M.
Sehelovánov, 1929). Se Blonski tivesse abandonado o terre­
no do ecletismo como Kornilov e tivesse escolhido o campo
da investigação ou dos princípios, teria se dado conta disto.
Nenhum psicólogo teria deixado de percebê-lo.
E um observador habitualm ente tão irônico em relação
“revoluções term inológicas” como Tchelpánov adota de
repente um surpreendente pedantism o e protesta contra a
denom inação de “reatologia”. Como se fosse um pedanle
306 TE O R IA E M ÉTODO EM PS IC O L O G IA

professor de escola t c h e k o v i a n o , proclama que esse termo


provoca perplexidade, em primeiro lugar, etimológicamente
e, em segundo, teoricamente. A formação etimológica da
palavra é totalmente errônea, declara com serenidade o
autor - deveria se dizer “reaciologia”. Naturalmente, isto é o
cumulo do analfabetismo lingüístico e supõe a mais comple­
ta infração de todos os princípios terminológicos do VI
Congresso, que trabalha sobre a base internacional (greco-
latina) de construção dos termos, visto que, ao que parece,
Kornilov não construiu seu termo partindo da palavra “rea­
ção” de Nizhni Novgorod10, mas de obi reactio e, portanto,
de forma totalmente correta. Teria sido interessante ver co­
mo Tchelpánov teria traduzido “reaciologia” para o francês,
o alemão etc. Mas, na verdade, não se trata disso, mas de
outra coisa: conforme declara Tchelpánov, no sistema das
concepções psicológicas de Kornilov esse termo não tem,
aparentemente, cabimento. Mas pensemos com proprieda­
de. O importante é reconhecer o valor do termo dentro do sis­
tema conceituai. Dentro de urna certa interpretação, até
mesmo a reflexologia tern sua raison d'etre.
N ã o se deve pensar que essas minucias carecem de im­
portância pelo fato de serem excessivamente intrincadas,
contraditórias, equivocadas etc. É justamente al que se en­
contra a diferença entre um ponto de vista científico e um
prático. H. Münsterberg esclareceu que o jardineiro gosta de
suas tulipas e não gosta de erva daninha, ao passo que o
botânico, que descreve e explica, não gosta nem deixa de
gostar de nada, e de seu ponto de vista não pode gostar ou
deixar de gostar do que quer que seja, Para a ciência do
homem, diz ele, a estupidez humana não é menos interes­
sante do que a sabedoria humana: é um material indiferente,
cuja única pretensão seria sua existência como elo de uma
cadeia de fenômenos ( I I . Münsterberg, 1922). Para o psicó­
logo eclético - para quem a terminologia é indiferente - um
fato, enquanto elo de uma cadeia de fenômenos, adquire

10, Nome da cidade de Górki até 1932. (N.T.E.)


O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA C R ISE DA PSICOLO G IA 307

repentinamente, e em relação com a posição que ocupa,


uma importância primordial e passa a revestir-se de grande
valor metodológico. E também tem grande valor o fato de
que outros autores ecléticos cheguem pelo mesmo caminho
ao que também chegou Kornilov; nem o reflexo condiciona­
do, nem o concatenado lhes parecem suficientemente claros
ou compreensíveis: a base da nova psicologia é constituída
por reações e roda a psicologia desenvolvida por Pãvlov,
Békhterev e J. Watson não se denomina nem reflexologia
nem behaviorismo, mas psychologie de la reaction, ou seja,
reatologia. Ainda que os ecléticos cheguem a conclusões
opostas sobre algo, há algo que os aproxima; o procedimen­
to, o processo por meio do qual eles encontram, em geral,
suas conclusões.
Achamos essa mesma regularidade em todos os reflexó-
logos - quer sejam investigadores quer teóricos, Watson
está convencido de que podemos escrever um curso de psi­
cologia e não empregar as palavras “consciência”, “conteú-
do”, “introspecçào comprovada”, “imaginação” etc. (1926). E
para ele essa opção não é simplesmente uma questão termi­
nológica, mas substancial: assim como o químico não pode
falar no idioma da alquimia e o astrônomo no do horósco­
po. E dá um magnífico exemplo.- a diferença entre a reação
óptica e a imagem óptica tem para ele uma grande impor­
tância teórica, já que nela se encerra a diferença entre o
monismo conseqüente e o dualismo conseqüente (ibidem).
Para ele, a palavra é um tentáculo, com o qual a filosofia
abarca o fato. São inúmeros os volumes escritos com a ter­
minologia da consciência, mas, por mais valor que tenham,
a consciência só pode ser definida e expressa se for traduzi­
da para o idioma objetivo. Porque a consciência e o restan­
te, segundo o pensamento de Watson, sào apenas expres­
sões indeterminadas. E a nova linha rompe ao mesmo tem­
po com as teorias e com a terminologia habituais. Watson
condena a “psicologia do comportamento do meio-termo”
(que prejudica toda essa corrente) e afirma que, se os prin­
cípios da nova psicologia não são capazes de conservar toda
sya clareza, seus limites se verão deformados e obscurecí-
308 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

dos e esse enfoque perderá seu valor. Em conseqüência


dessa vaguidade, a psicologia funcional desm oronou. Se o
behaviorismo tem futuro deverá romper por com pleto com
o conceito da consciência.
Não obstante, Watson não decidiu se se converte no sis­
tema dom inante em psicologia ou se mantém simplesmente
com o uma co n cep ção m etodológica. Por isso tom a com
excessiva freqüência a metodologia do senso comum como
base da investigação, pois em sua tentativa de se libertar da
filosofia desliza para o ponto de vista do “indivíduo corren­
te ”, entendendo por indivíduo corrente, não as principais
características da praxis da pessoa, mas o senso comum do
hom em de negócios norte-am ericano m édio. Em sua o p i­
nião, o homem corrente deve aplaudir o behaviorismo, pens
a vida cotidiana lhe ensinou a agir e, portanto, ao tom ar
contato com a ciência da conduta, não sofre mudança algu­
ma no método, nem qualquer variação no objeto (ibidem).
Mas é justamente aí que o behaviorismo recebe seu ve­
redicto: o estudo científico exige írreversivelmente m udan­
ças no objeto (ou seja, exige elaborar esse objeto em con­
ceitos) e no método. Contudo, os psicólogos behaviorístas
interpretam o com portam ento de m aneira cotidiana, e em
seus raciocínios e descrições percebe-se m uito da forma
pequeno-burguesa de opinar. Por isso, tanto o behaviorismo
radical quanto o de compromisso não conseguem estabele­
cer - nem em seu estilo e linguagem, nem em seus princí­
pios e método - uma fronteira entre a interpretação da vida
habitual e a do vulgar. Libertando a linguagem da “alqui­
m ia”, os behaviorístas voltaram a maculá-la com uma lingua­
gem vulgar e nào-terminológica. Isto os aproxima de Tchel-
pánov: a única diferença deve ser atribuída aos costum es
diversos do pequeno-burguês norte-am ericano e do russo.
Em vista disto, a recrim inação de que a nova psicologia é
uma psicologia pequeno-burguesa é, em parte, correta.
Pãvlov relaciona essa vaguidade do idioma, que Blonski
considera apenas falta de pedantism o, com o fracasso dos
norte-am ericanos. Vê nisso um “erro p aten te”, que freia o
êxito do enfoque e que, sem dúvida, será corrigido mais
O S IG N IF IC A D O H IS T Ó R IC O D A C R I S E D A P S IC O L O G IA 309

cedo ou mais tarde. Trata-se do em prego, na investigação


do com portam ento dos anim ais - em essência, objetiva
de conceitos e classificações psicológicas. Daí se originam,
na maioria das vezes, o caráter casual e complicado de seus
procedimentos metodológicos e, sempre, a incoerência e a
falta de sistema de um material que carece de fundam ento
planificado (1950, p. 237). Não é possível expressar com
maior clareza o papel e a função da linguagem na investiga­
ção científica, E Pávlov deve seu êxito a sua enorm e coerên­
cia m etodológica, antes de mais nada na linguagem. Suas
investigações sobre a atividade das glândulas salivares nos
cachorros passou a ser a doutrina da atividade do sistema
nervoso superior dos animais - exclusivamente - e de seu
comportamento, porque elevou o estudo da secreção salivar
a uma enorme altura teórica e criou um sistema diáfano de
conceitos que serviu de base para a ciência.
A intransigência de Pávlov nas questões metodológicas
é digna de admiração. Seu livro nos introduz no laboratório
de suas investigações e nos ensina a criar o idioma científi­
co. Para começar, que importância tem como denom inar um
fenôm eno? No entanto, p au latinam ente, cada passo que
damos é reforçado com uma palavra nova, cada nova regu­
laridade exige um termo e esclarece o significado e o valor
de uso dos termos novos. A escolha do termos e dos concei­
tos predeterm ina o resultado da investigação: “(...) com o
teria sido possível superpor o sistema de conceitos carentes
de espaço da psicologia m oderna à construção material do
cérebro?” ( ibidem, p. 254),
Quando E. Thorndike fala da reação do humor e a estu­
da, cria conceitos e leis que nos desviam do cérebro. Para
Pávlov, recorrer a esse m étodo é uma covardia. Thorndike
recorre com freqüência a explicações psicológicas, em parte
por costume e em parte devido a um certo “distanciamento
mental”. “Mas logo compreendi em que consistia sua pouca
Utilidade. Encontrava-me em dificuldades cada vez que não
via a conexão entre os fenômenos. Suas contribuições para
a psicologia estavam en cerrad as nas palavras: ‘o anim al
lembrou’, ‘o animal quis', ‘o animal acertou’, ou seja, trata-
310 T E O R IA E M É T O D O EM P S IC O L O G IA

т -se apenas de um procedim ento a-determinisla de pensar,


que prescindia de um a causa real” [o grifo é meu - L.V.]
( ibidem, pp. 273-4). No modo de expressão dos psicólogos,
Pãvlov vê uma ofensa ao pensam ento sério.
E, quando Pãvlov implanta no laboratório uma multa
para quem empregar termos psicológicos, esse fato não tem
menos importância, nem é menos significativo para a histó­
ria da teoria da ciência, do que a discussão sobre o símbolo
da fé para a história da religião. Só T chelpãnov pode rir
disto: como cientista, Pãvlov não multa porque se utiliza um
termo inadequado num manual, ou na exposição da disci­
plina, mas no laboratório - durante o processo de pesquisa.
É claro que o que a multa castigava era o pensam ento não-
causal, carente de espaço, indefinido e mitológico, que atra­
vés dessa palavra se inoculava no processo cia pesquisa e
ameaçava prejudicar toda a indagação (como ocorre no caso
dos psicólogos norte-am ericanos) ao introduzir a incoerên­
cia, a falta de sistema, ao arrebatar o fundamento.
Mas G. I. Tchelpãnov nem chega a suspeitar que os no­
vos vocábulos podem ser necessários no laboratório e na
investigação e que o significado e o sentido dessa estão
determ inados pelas palavras em pregadas. Critica Pãvlov,
dizendo que “inibição” é uma expressão confusa e hipotéti­
ca e que o mesmo pode ser dito a respeito do termo “desíni-
bição” (G. I. Tchelpãnov, 1925). É verdade que não sabemos
o que acontece no cérebro durante a inibição. Apesar disso
é um conceito magnífico, diáfano: antes de mais nada, está
term inologizado, isto é, exatam ente determ inado em seu
significado e limites. Em segundo lugar, é honrado, ou seja,
diz tudo e som ente o que sabe. E m esm o que ainda não
tenhamos com pletam ente claros os processos de inibição no
cérebro, a palavra e o conceito de “inibição” estão, no en­
tanto, absolutamente claros. Em terceiro lugar, é um concei­
to situado no nível dos princípios e é um conceito científico:
ou seja, introduz o fato no sistema, situa-o num fundam en­
to, explica-о hipoteticamente, mas ao mesmo tem po causal­
m ente, É evidente que representam os com mais clareza o
olho do que o analisador; é precisam ente p o r isto que a
O SIG NIFICA DO H ISTÓ R IC O DA C R IS E DA PS IC O L O G IA 311

palavra “olho” nada diz em ciência e o term o “analisador


óptico” diz menos e mais do que a palavra “olho”, com pa­
rando-a com a de outros órgãos e que, graças a esse termo
(analisador óptico), conectou-se toda a via sensorial que vai
desde o olho até o córtex cerebral e indicou-se seu papel no
sistema de comportamento: é tudo isso o que o novo termo
expressa. Que essas palavras nos devem fazer pensar nas
sensações visuais é verdade, mas a origem genética da pala­
vra e seu significado terminológico são duas coisas absolu­
tam ente distintas. A palavra escolhida não encerra em si
nada relativo à sensação; pode perfeitam ente ser utilizada
por um cego. Por isso, aqueles que na esteira de Tchelpãnov
procuram descobrir em Pãvlov um lapso ou ver fragmentos
da psicologia e tachá-lo de inconseqüente, nâo com preen­
dem o significado da questão: se Pãvlov fala da alegria, da
atenção do idiota (o cachorro), isto apenas significa que o
mecanismo da alegria, da atenção etc. ainda não foi estuda­
do, que ainda se trata de pontos obscuros do sistema e que
não é uma questão de princípio, ou uma contradição.
Mas tudo isto pode parecer equivocado se o raciocínio
não for completado com a face oposta. Naturalmente, a coe­
rência terminológica pode se transformar num pendatismo,
em puro “palavrório”, num zero à esquerda (como na escola
de Békhterev). Q uando é que isso ocorre? Quando a palavra
adere como uma etiqueta a uma mercadoria jã preparada e
nâo nasce durante o processo de pesquisa. Então, não ter-
minologiza, não delimita, mas introduz confusão no sistema
de conceitos, convertendo-o numa miscelânea.
Trata-se neste caso de um trabalho novamente etiqueta­
do que nada esclarece porque, naturalm ente, não é difícil
inventar todo um catálogo de denom inações: reflexo de
finalidade, reflexo de Deus, reflexo de direito, reflexo de li­
berdade etc. Pode-se encontrar o reflexo de qualquer coisa.
O problema é que isto só nos faz perder tempo. E, por con­
seguinte, não desm ente nada, mas, de acordo com o m étodo
do contrário, confirma a regra geral: as novas palavras acom­
panham o passo das novas investigações.
312 T E O R IA E M É T O D O EM P S IC O L O G IA

Resumamos. Vimos que em qualquer campo a palavra,


assim como o sol numa gota de água, reflete integralmente os
processos e tendências no desenvolvim ento da ciência. Na
ciência m anifesta-se uma certa unidade nos princípios do
conhecimento, que vai desde os princípios mais elevados até
a escolha da palavra. O que nos proporciona essa unidade
de todo o sistema científico? Um esqueleto metodológico de
princípios. O investigador na medida em que for somente um
técnico, um registrador e um executor, é sempre um filósofo,
que durante a investigação e a descrição pensa no fenômeno,
e sua forma de pensar se reflete nas palavras que utiliza. A
multa pavloviana constitui a base de uma extraordinária disci­
plina de pensamento: é a própria disciplina da mente o fun­
dam ento da introspecçâo científica do mundo, como a reli­
gião no sistema monástico. Quem for ao laboratório com sua
palavra se verá obrigado a repetir o exemplo de Pávlov. Â
palavra é a filosofia do fato, por ser sua mitologia e sua teoria
científica. Q uando G. K. Lichtenberg dizia: “Es denkt sollte
man sagen, so wie m an sagt: es blitz?11, combatia a mitologia
na linguagem. Dizer cogito significa muito, já que deverá ser
traduzido por: “penso”. Será que um fisiólogo estaria de acor­
do em dizer.- “Levo a cabo uma excitação no nervo”? Dizer
“Penso” e “A cho” implica colocar duas teorias opostas do
pensam ento: assim, toda a teoria das atitudes m entais de
Binet exige o primeiro, a teoria de Freud o segundo, e a de
Külpe, às vezes, a primeira expressão, e outras a segunda.
Hõffding cita com simpatia o filósofo Foster, que afirma que
as impressões do animal que carece de hemisférios cerebrais
devem ser denom inadas sensações (...) ou teremos de criar
para elas um a palavra totalmente nova (H. Hõffding, 1908, p.
80), porque deparam os com uma categoria nova de fatos e
temos de escolher a forma como iremos pensá-la: relacionan-
do-a com a velha categoria, ou de uma maneira nova.
Um autor russo, N. N. Langue, compreendia o valor da
terminologia. Ao afirmar que a psicologia carece de sistema 1

11. “Pensa-se, dever-se-ia dizer, como se diz: relampagueia.” (N.R.E.)


O SIG NIFICA DO H ISTÓ R IC O DA C R ISE DA PSIC O L O G IA 313

geral, que a crise atingiu toda a ciência psicológica, assinala:


“Pode-se dizer sem tem or de exagerar que a descrição de
qualquer processo psíquico adota um aspecto ou outro se­
gundo o caracterizemos e estudem os nas categorias de dis­
tintos sistem as psicológicos com o os de: Ebbinghaus ou
Wundt, Stumpf ou Avenário, M einong ou Binet, James ou
G. E. Müller. Naturalmente, o aspecto puram ente real deve­
rá, neste caso, continuar sendo o mesmo, não obstante, na
ciência, pelo menos em psicologia, separar o falo a descre­
ver de sua teoria, ou seja, das categorias científicas com a
ajuda das quais se leva a cabo sua descrição, é com freqüên­
cia muito difícil e às vezes até mesmo impossível, porque
em psicologia (com o, com certeza, tam bém em física, na
opinião de Duhem ) toda descrição já é sem pre uma certa
teoria (...) Para o observador superficial, as investigações
reais, sobretudo as de caráter experimental, parecem inde­
pendentes dessas divergências nas categorias científicas fun­
dam entais que separam d iferentes escolas p sico ló g icas”
(N. N. Langue, 1914, p. 43). Mas a própria form ulação da
questão, o diferente em prego dos termos psicológicos, en­
cerra sempre uma ou outra interpretação dos mesmos, que
corresponde a uma ou outra teoria e, por conseguinte, a
totalidade do resultado real da investigação m antém-se ou
desaparece junto com a veracidade ou falsidade do sistema
psicológico. As investigações, observações e m ensurações
mais exatas podem , portanto, ser falsas ou, pelo m enos,
perder sua im portância se m udar o sentido das principais
teorias psicológicas.
Crises desse tipo destruíram ou desvalorizaram conjun­
tos inteiros de fatos e ocorreram mais de uma vez na ciên­
cia. Langue (1914) compara-as com os terremotos, que sur­
gem devido a deform ações profundas nas entranhas da Ter­
ra; assim soçobrou a alquimia. O “subalternism o”, que tanto
de desenvolveu no estágio atual da ciência, ou seja, a sepa­
ração entre a execução da função técnica da investigação
(fundam entalm ente a m anutenção dos aparelhos, de acordo
com um padrão pré-fixado), por um lado, e o pensam ento
científico, por outro, reflete-se antes de mais nada na degra-
314 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

d ação da linguagem cientifica. De fato, trata-se de algo


m uito conhecido por todos os psicólogos que pensam que
nas investigações m etodológicas o problem a terminológico,
que exige uma complicadíssima análise, em vez de um sim­
ples informe, constitui a parte do leão (L, Binswanger, 1922).
Para H. Rickert, a criação de uma term inologia m onosse-
mântica constituí a principal tarefa da psicologia, anterior a
qualquer investigação, porque nas descrições primitivas é
preciso escolher os significados das palavras que “ao gene­
ralizar, sim plifiquem ” a enorm e diversidade e pluralidade
dos fenôm enos psíquicos (L. Binsw anger, 1922). De fato,
Engels já havia ex p re sso essa m esm a idéia d an d o com o
exem plo a química. “Em química orgânica, o significado de
um corpo e tam bém , portanto, de seu nom e não depende
mais som ente de sua com posição, mas sim do lugar desse
corpo na série a que pertence. Por conseguinte, se um cor­
po faz parte de tal ou qual série, seu antigo nome se trans­
formará num obstáculo para sua com preensão, e será ne­
cessário substituí-lo por um nom e da série (parafinas etc.)”
(K. Marx e F. Engels, Obras, t. 20, p. 609). O que aqui al­
cançou a rigidez de uma regra química existe em forma de
princípio geral em todo o cam po da linguagem científica.
“Paralelismo - diz Langue - é à primeira vista uma pala­
vra inocente, que encobre, não obstante, um terrível pensa­
mento, o do caráter colateral e casual da técnica no m undo
dos fenôm enos físicos” (1914, p. 96). Essa inocente palavra
tem uma história ilustrativa. Introduzida por Leibniz, come­
çou a ser utilizada na resolução do problem a psicológico,
q u e rem onta a Spinoza, m udando m uitas vezes de nome:
Hõffding a denom ina hipótese do subtexto, considerando
que esta é a “única denom inação precisa e oportuna”. Com
freqüência, o nom e de monismo, em pregado corretamente,
é etim ológicam ente correto, mas se m ostra inconveniente
porque a ele recorreu “a ideologia imprecisa e inconseqüen­
te”. As denom inações de paralelismo e dualidade não valem
porque “exageram a idéia de que é preciso pensar no espiri­
tual e no material com o em duas séries de desenvolvimento
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 315

totalm ente in d ep en d en tes (quase com o um par de trilhos


num a estrada de ferro); e essa hipótese é precisam ente a
que nos reconhece”. É preciso dar o nom e de dualidade não
à h ip ó te se de Spinoza, m as à de C. W olff (H. H offding,
1908, p. 91).
Portanto, a u m a hipótese chamam 1) de monismo; ou 2)
de dualism o; ou 3) de paralelism o; ou 4) de identidade.
A crescentem os que o círculo de m arxistas q ue ressuscita
essa hipótese (com o mostraremos mais adiante): Plékhanov
e depois dele Sarabiianov12, Frankfurt e outros, vêem nela
precisam ente a teoria da u n id a d e , m as n ã o a id e n tid a d e
entre o psíquico e o físico. Como é que isto pode ter aconte­
cido? Evidentemente, essa mesma hipótese pode ser desen­
volvida sobre a base de distintas co n cep çõ es gerais e pode
chegar a ter tal ou qual significado em função delas: uns res­
saltam nela a dualidade, outros o m onism o etc. Hoffding
assinala que não exclui uma hipótese metafísica mais pro­
funda, particularm ente o idealismo (1908). Para passarem a
fazer parte da concepção filosófica do mundo, as hipóteses
exigem um novo tratam ento, que consiste em ressaltar tal
ou qual aspecto. É m uito im portante o esclarecim ento de
Langue-. “Encontramos paralelismo psicofísico nos represen­
tantes das mais diversas correntes filosóficas: nos dualistas
(adeptos de Descartes) e nos monistas (Spinoza), em Leib­
niz (idealismo metafísico), nos positivistas-agnósticos (Bain,
Spencer), na m etafísica v o lu n tarista (W undt e P au lsen )”
(1914, p. 76).
H. Hoffding fala do inconsciente enquanto conclusão
de um a h ip ó te s e d e id e n tid a d e : “Agimos n este caso de
forma análoga ao fisiólogo que com pleta um fragmento de
um escritor antigo por m eio de uma análise contextual. O
mundo espiritual é também, e em com paração com o mun­
do físico, um fragm ento: só podem os com pletá-lo com a
ajuda de uma hipótese (...)” (1908, p. 87). Essa é a inevitável
conclusão do paralelismo.

12. Sarabiianov, Vladimir Nikoláievitch (1886-1952). Filósofo soviético.


(N .R .R .)
316 T E O R IA E M É T O D O E M P S IC O L O G IA

Por isso Tchelpãnov não deixa de ter razão quando diz


que até 1922 denominava essa doutrina de paralelismo e a
partir de 1922, de materialismo. Teria toda razão se sua filo­
sofia não se acom odasse às circunstâncias de um m odo
mecânico, O mesmo ocorre com a palavra “função” (refiro-
me a função no sentido matemático). Na fórmula: “a cons­
ciência é uma função do cérebro” encontram o-nos diante da
teoria do paralelism o, na de “sentido fisiológico” estamos
em presença do materialismo. Por isso, quando Kornilov in­
troduz o conceito e o termo de relação funcional entre psi­
que e corpo e, apesar de reconhecer o paralelismo da hipó­
tese dualista, introduz sem se dar conta essa teoria, porque,
ao rejeitar o conceito de função no sentido fisiológico, resta
portanto o segundo sentido (K. N. Kornilov, 1925).
Vemos, por conseguinte, que quer se comece a descri­
ção de um experim ento a partir de hipóteses muito gerais,
quer se termine com um comentário sobre detalhes como os
que vimos, a palavra reflete a doença geral da ciência. O
específicamente novo que aprendem os da análise das pala­
vras é a idéia do caráter molecular dos processos na ciência.
Cada célula do organismo científico descobre processos de
infecção e de luta. E aqui encontram os uma das idéias cen­
trais sobre o caráter do conhecim ento científico: o conheci­
m ento manifesla-se para nós como um profundíssim o pro­
cesso único. Finalmente, também verificamos a metáfora do
sadio e do enfermo nos processos da ciência e o que é ver­
dade a respeito da palavra também o é a respeito da teoria.
 palavra faz avançar a ciência na m edida em que 1) entra
no lugar conquistado pela investigação, isto é, na medida
em que resp o n d e ao estad o objetivo das coisas; e 2) se
soma a princípios iniciais certos, ou seja, às fórmulas mais
generalizadas deste m undo objetivo.
Vemos, portanto, que o estudo científico é ao mesmo
tempo tanto o estudo do fato quanto o do procedim ento de
cogniçào desse fato. Em outras palavras, é o trabalho m eto­
dológico sobre a própria ciência, na m edida em que essa
avança ou toma consciência de suas conclusões. A escolha
da palavra já implica um processo metodológico. É fácil ver
O S IG N IF IC A D O H IS T Ó R IC O D A C R I S E D A P S IC O L O G IA 317

O processo simultâneo da metodologia e do experim ento em


Pávlov, Portanto, a ciencia é filosófica até seus últimos ele­
mentos, até as palavras, está perpassada, poderíamos dizer,
de metodologia. Isso coincide com a concepção marxista da
filosofia como “ciência das ciências”, com o a síntese que
penetra na ciência. Nesse sentido, diz Engels: “Q ualquer
que seja a atitude que os naturalistas adotem , a filosofia
sempre os domina (...) Somente quando a ciência da nature­
za e da história tiverem assimilado a dialética, será dispensá­
vel e desaparecerá, absorvida pela ciência positiva, toda a
quinquilharia filosófica (...)” (K, Marx e F. Engels, Obras, t.
20, p. 525).
Os naturalistas imaginam que se libertam da filosofia
quando a ignoram, mas não são mais do que escravos, pri­
sioneiros da mais detestável filosofia, com posta por uma
miscelânea de concepções fragmentárias e carentes de siste­
ma, posto que os investigadores não podem dar um passo
sem pensar, e o pensam ento exige definições lógicas. A
questão de como interpretar os problem as metodológicos:
"separadam ente das próprias ciências” ou introduzindo a
Bnálise m etodológica na própria ciência (na form ação, na
Investigação) é um problem a de conveniência pedagógica.
Tem razão S. L. Frank11 quando diz que todos os livros de
psicologia tratam de problemas de psicologia filosófica nos
prólogos e nas conclusões (1917). Uma coisa é, no entanto,
expor a m etodologia - “introduzir a compreensão da m eto­
dologia” o que, repetimos, é questão da técnica pedagógi­
ca; outra coisa é levar a cabo a investigação metodológica.
Isto exige uma análise especial.
A palavra científica tende ao signo matemático, isto é,
lio term o puro. Porque a fórm ula m atem ática é tam bém
constituída por uma série de palavras, mas palavras termino-
loglzadas até o fundo e por isso convencionais em alta esca­
lei, Por isso, lodo significado é científico, desde que seja 13

13. Frank, Semion Lidvígovitch (1877-1950). Filósofo religioso russo.


( N .H .R .)
318 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

m atem ático (Kant). Mas o idiom a da psicologia em pírica é o


a n típ o d a d ire to d o idiom a m atem ático. Com o m ostraram
Locke, Leibniz e toda a lingüística, todas as palavras da psi­
cologia são m etáforas tornadas dos espaços do universo.

10

Passem os para form ulações positivas. Através de análi­


ses fragm entárias de alguns elem entos concretos da ciência,
aprendem os a ver nela um conjunto com plexo, dinâm ico, e
cjue se desenvolve com regularidade, Q ue etapa de d esen ­
volvim ento está vivendo agora nossa ciência, qual é o signi­
ficado e qual é a natureza da crise de que está padecendo e
qual será seu resultado? Passem os a dar resp o stas a estas
perguntas, Q uando se conhece um pouco a m etodologia (e
a história) das ciências, a ciência com eça a ser vista p o r nós
n ão com o um conjunto m orto, acabado, imóvel, integrado
por princípios p reparados de antem ão, mas com o um siste­
ma vivo, em constante evolução e avanço, de fatos dem ons­
tra d o s, leis, s u p o siç õ e s, e stru tu ra s e c o n c lu sõ e s, q u e se
com pletam ininterruptam ente, são criticados, com provados,
re je ita d o s p a rc ia lm e n te , in te rp re ta d o s e o rg a n iz a d o s de
novo etc. A ciência com eça a ser co m p reendida d ia lé tic a -
m e n te em seu m ovim ento, pela perspectiva de sua dinâm i­
ca, de seu crescim ento, desenvolvim ento, evolução. É desse
ponto de vista q ue se deve avaliar e com preender cada eta­
pa de desenvolvim ento. Portanto, nosso prim eiro po n to de
vista é o d o reconhecim ento da crise. Q uanto a seu signifi­
cado, é com preendido de m odo m uito diferente. Eis aqui as
principais interpretações.
Em prim eiro lugar, existem psicólogos que sim plesm en­
te negam a existência da crise. É o caso de T chelpánov e,
em geral, da maioria dos psicólogos russos da velha escola
(so m e n te L angue e talv ez F rank se d e ra m co n ta do q u e
ac o n te c e em n o ssa ciência). Na o p in ião d essa m aioria de
psicólogos, em nossa ciência tudo anda bem, assim com o na
m ineralogía. A crise vem de fora.- algum as pessoas em preen-
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 319

dem a reform a da ciência, porque a partir de alguma ideolo­


gia su a rev isão se fez n e c e ssá ria . Mas n ão co n tam o s em
nossa ciência com uma base objetiva que perm ita sustentar
nem um nem outro, É verdade que no processo da discus­
são foi necessário reconhecer q ue tam bém na América co ­
m eçaram a reform ar a ciência, m as o cu lto u -se cu id a d o sa ­
m e n te d o s le ito re s , ta lv e z a té sem m ás in te n ç õ e s , q u e
n e n h u m dos psicólogos que deixaram algum a marca na ciên­
cia escapou da crise.
A prim eira in terp retação - a neg ação da crise - é tão
cega que não nos interessa. Para explicá-la basta considerar
que esse tipo de psicólogos, na verdade ecléticos e popula-
rizad o res d e idéias alheias, n ão só n u n ca se ded icaram à
investigação nem à filosofia de sua ciência, com o nem m es­
m o a v a lia ra m c ritic a m e n te c a d a n o v a e sco la. A ceitaram
tudo: a escola de W urtzburgo e a fenom enología de Husserl,
o e x p e rim e n ta lis m o d e W u n d t-T itc h e n e r e o m arx ism o ,
Spencer e Platão. Esses indivíduos não só estão teoricam en­
te fora da ciência n o que se refere aos grandes m ovim entos
que nela se produzem , com o tam pouco desem penham qual­
q u e r p a p e l na p rática: os em p írico s traíram a p sicologia
em pírica em sua defesa dela; os ecléticos assim ilaram tudo
que foram capazes de idéias contrárias a eles; os populariza-
dores não p o d em ser inim igos de ninguém , p opularizarão
som ente a psicologia q ue triunfe. A tualm ente, Tchelpánov
se preocupa m uito com o marxismo; depois estudará a refle-
xologia, e o p rim eiro m anual de b eh av io rism o triu n fan te
será escrito precisam ente por ele ou por algum de seus dis­
cípulos. Em seu conjunto são professores e exam inadores,
m ercadores e portad o res de cu ltu ra14, mas em suas escolas
não surgiu um a só investigação de certa im portância.
O utros vêem a crise, mas para eles tudo tem um valor
subjetivo. A crise dividiu a psicologia em dois cam pos. Os
limites entre am bos se estabelecem sem pre entre o autor do

14. Transliteraçâo ao russo do alemão Kulturtrâger, Emprega-se ironica­


mente para denominar os colonizadores imperialistas, que encobrem a escra-
vlzaçâo dos povos dos países de que se apoderam com falsas declarações de
Implantação de cultura. (N.T.E.)
320 T E O R IA E M É T O D O EM P S IC O L O G IA

ponto de vista em questão e todo o resto do mundo. Mas,


segundo expressão de Lotze, até o verme m eio am assado
contrapõe sua imagem a todo o universo. Este é o ponto de
vista oficial do behaviorismo militante. Assim, Watson acre­
dita que existem duas psicologias: a verdadeira - a dele - e
a falsa; a velha m orre em conseqüência de seu caráter de
compromisso; no máximo chega a ver a existência dos psi­
cólogos que buscam um compromisso; a tradição medieval,
com a qual W undt não quis romper, arruinou a psicologia
sem alma (J. W atson, 1926). Como o leitor pode observar,
Watson simplifica até o limite e não encontra nenhum a difi­
culdade especial para transform ar a psicologia em ciência
natural. Isso coincide para Watson com o ponto de vista do
hom em consciente, ou seja, com a m etodologia do senso
comum. É da mesma maneira que Békhterev avalia as épo­
cas da psicologia: tudo que for anterior a ele é errado, tudo
que for posterior, verdadeiro. Assim avaliam a crise muitos
dos psicólogos: este é, na qualidade de subjetivo, o ponto
de vista mais simples e mais ingênuo. Os psicólogos de que
nos ocupamos no capítulo do inconsciente também racioci­
nam assim: existe a psicologia em pírica, im pregnada de
idealismo metafísico, o qual constitui uma reminiscencia; e
existe a verdadeira m etodologia da época, que coincide
com o marxismo. Tudo que não pertence ao primeiro já é,
por si mesmo, o segundo, pois não existe um terceiro. E,
visto que a psicanálise se contrapõe frontalmente à psicolo­
gia empírica, isto basta para reconhecê-la como um sistema
marxista! Para esses psicólogos, a crise coincide com a luta
que estão travando. Existem aliados e inimigos, outras dife­
renças não existem.
Não são melhores os diagnósticos objetivo-empíricos da
crise: calcula-se o número de escolas e se estabelece a pon­
tuação da crise. Allport, ao enunciar as correntes da psicolo­
gia norte-americana, adota esse ponto de vista - o cómputo
de escolas -; a escola de James e a de Titchener, o behavio­
rismo e a psicanálise. Enumera além disso toda uma série de
unidades, que participam do estudo da ciência, mas não
realiza a m enor tentativa de penetrar o significado objetivo
O S IG N IF IC A D O H IS T Ó R IC O D A C R I S E D A P S IC O L O G IA 321

do que defende cada escola, de com preender a dinám ica


das relações delas entre si.
O erro torna-se ainda mais profundo entre aqueles que
começam a perceber os aspectos essenciais da crise. Apaga­
se então o límite entre essa crise e qualquer outra, entre a
crise na psicologia e em qualquer outra ciência, entre qual­
quer divergência e discussão particular e a crise; em suma,
adm ite-se um enfoque anti-histórico e antim etodológico,
que conduz em geral ao absurdo.
Yu. V. Portugãlov, na sua tentativa de dem onstrar o
caráter provisório e relativo da reflexología, não só desliza
para o mais puro agnosticism o e relativismo, como chega
inclusive ao absurdo. “Na química, na mecânica, na eletrofí-
sica e na eletrofisiologia do cérebro está ocorrendo uma
m udança total, e até agora nada se dem onstrou de forma
clara e determ inada” (Yu, V. Portugálov, 1925, p. 12). As
pessoas crédulas depositam sua confiança nas ciências natu­
rais, mas “por nos limitarmos a nosso próprio ambiente mé­
dico, acreditam os, pondo a mão no peito, acreditam os na
firmeza e na estabilidade das ciências naturais (...) e acredi­
tam elas próprias (...) em sua firmeza, estabilidade e veraci­
dade?” (ibidem ). Em seguida, enum era todas as m udanças
teóricas nas ciências da natureza, m isturando tudo num
monte; entre a falta de firmeza ou a instabilidade de uma
determinada teoria e todas as ciências naturais coloca-se o
sinal de igualdade, o que lhe serve de base para duvidar da
veracidade destas últimas. Apresenta assim o processo de
m udança de teorias e de perspectivas nas ciências com o
uma demonstração de sua impotência. Que isto seja agnosti­
cismo é claro e evidente, mas vale a pena selecionarm os
dois de seus pontos para comentá-los: 1) dentro do caos de
concepções com que são pintadas as ciências naturais, que
não dispõem de um só ponto de estabilidade, a única coisa
firme é (...) a psicologia infantil subjetiva, baseada na intros-
pecção; 2) dentre todas as ciências em que se demonstra a
Inconsistência das ciências naturais, entre a óptica e a bacte­
riologia, inclui-se a geometria. Resulta que: Euclides disse
que a soma dos ângulos de um triângulo equivale a dois
retos; Lobachevski destrona Euclides e dem onstra que a
322 T E O R IA E M É T O D O E M P S IC O L O G IA

m encionada soma é m enos do que dois retos e Riemann


destrona L o b ach ev sk i e demonstra que é mais do que dois
retos” (ibidem, p. 13).
Tropeçam os mais de uma vez com a analogia entre a
psicologia e a geom etria, em função do que vale a pena
recordar essa amostra de a-m etodologia: 1) a geom etria é
uma ciência natural); 2) e assim, Lineu, Cuvier, Darwin tam­
bém se “destronaram ” um ao outro; 3) do mesmo modo que
a Euclides, Lobachevski e a este G. F. B. Riemann; se final­
mente Lobachevski destrona Euclides e demonstra (...) Mas
até mesmo a instrução mais elementar inclui a noção de que
não se trata do conhecimento de triângulo reais, mas de figu­
ras ideais nos sistemas m atem áticos - sistemas dedutivos,
onde estes três princípios se depreendem de três premissas
distintas e não se contradizem, assim como diferentes siste­
mas aritméticos de cómputo nào contradizem o sistema deci­
mal. Todo.s-eles coexistem c al está radicado seu sentido e sua
natureza metodológica. Mas que valor pode ter para diagnos­
ticar a crise na ciência indutiva um ponto de vista que consi­
dera crise dois nom es quaisquer em ordem consecutiva, e
toma como refutação da verdade qualquer opinião nova?
O que mais se aproxima da realidade é o diagnóstico de
K. N. Kornilov (1925), que vê a luta de duas correntes - a
reflexologia e a psicologia empírica - e sua síntese: a psico­
logia marxista.
Por sua vez, Yu, V. Frankfurt (1926) expõe a opinião de
que a reflexologia não pode ser encerrada em simples pa­
rênteses, que não existem tendências e correntes contraditó­
rias. Isto é ainda mais válido para a psicologia empírica. De
forma alguma existe apenas uma psicologia empírica. Mas
essa abordagem simplificada do problema responde ao fato
de ter sido feita como programa de ação, com fins mais de
orientação crítica e de delimitação da crise do que de análi­
se desta. Para isto faltaria indicar as causas, a tendência, a
dinâmica, o prognóstico da crise; é apenas o agrupam ento
lógico dos pontos de vista existentes na URSS.
Portanto, em tudo que vim os até agora, não aparece
uma teoria da crise, mas uma relação subjetiva dos estados-
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 323

maiores, do ponto de vista das partes em litigio. O im por­


tante aqui é vencer o inimigo, ninguém quer perder tempo
em estudá-lo.
Mais próximo da teoría da crise está N. N. Langue, que
já fornece um embrião de descrição da mesma. No entanto,
mais sente do que com preende a crise. Não é possível acre­
ditar nele, nem mesmo em seus esclarecimentos históricos.
Para ele, a crise começa com a queda do associaeionismo.
tomando, desta forma o motivo mais próximo como causa.
Depois de estabelecer que em psicologia “ocorre atualmente
uma certa crise geral”, continua: “Consiste na substituição do
antigo associaeionism o por uma nova teoria psicológica”
(N. N. Langue, 1914, p, 43). Mas inclusive isto já é falso,
ainda que seja apenas porque nunca se reconheceu que o
associaeionismo fosse um sistema psicológico reconhecido
universalm ente, ou que constituísse a alma da ciência, mas
que foi e continua .sendo uma das correntes em litígio, que se
viram reforçadas últimamente e que renascem na reflexologia
e no behaviorísmo. A psicologia de J. S. Mill, Bain e Spencer
nunca foi mais do que é hoje. Tem lutado contra a psicologia
das faculdades (J. Herbart) e continua lutando até hoje, É uma
apreciação muito subjetiva ver no associaeionismo a raiz da
crise (Langue considera que a raiz da crise é a negação da
doutrina sensualista): mas em nossos próprios dias a teoria de
Gestalt formula o associaeionismo como o principal vício de
toda a psicologia - incluindo-se a novíssima.
Na verdade, não é uma característica geral a que agrupa
os partidários desse princípio. Existem fundam entos muito
mais profundos para definir seus distintos agrupam entos.
Tam pouco é totalm ente correto limitar o problem a a uma
luta entre as concepções de psicólogos individualizados: o
importante é descobrir o que têm em comum e de contradi­
tório as opiniões individualizadas. A orientação equivocada
de Langue na crise arruinou seu próprio trabalho: em sua
defesa do princípio da psicologia realista, biológica, arreme­
te contra Ribot e apóia-se em H usserl e outros idealistas
extremos, que negam a possibilidade da psicologia com o
ciência natural. Mas há algo, e não pouco importante, que
324 TEORÍA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

estabeleceu co rretam en te. Eis aqui aquelas dentre suas teses


que consideram os corretas:
1) A usência de um sistem a de ciência u n iv e rsa lm e n te
reco n h ec id o . Cada uma das exposições sobre psicología dos
mais d estac ad o s autores está pensada segundo um sistema
c o m p letam en te distinto. T odos os co n ceito s e c a te g o ria s
principais são interpretados de forma diferente. A crise abar­
ca os próprios fundam entos da ciência.
2) A crise é destruidora, mas benéfica: nela se oculta o
au g e da ciên cia, seu e n riq u e c im e n to , sua força, e não a
im p o tên cia e a falência. A se rie d a d e da crise d eve-se ao
caráter interm ediário do território da psicologia, entre a so­
ciologia e a biologia, en tre as quais Kant q ueria dividir a
psicologia.
3) Nâo é possível realizar um trabalho psicológico sem
estabelecer os princípios fundam entais dessa ciência. Antes
de iniciar a construção, é preciso colocar os alicerces.
4) Finalm ente, a tarefa geral - a criação de um a nova
teoria - é um “sistem a de ciência renovado”. Nâo obstante,
Langue concebe essa tarefa de m aneira equivocada-, consiste
para ele na “avaliação crítica de todas as correntes p sico ló ­
g icas atuais e na tentativa d e colocá-las em co n co rd ân cia”
(N. N. Langue, 1924, p. 43). E tenta igualm ente colocar de
a c o rd o o inconciliável: H usserl e a p sicologia biológica;
arrem ete, junto com Jam es, contra Spencer e renuncia ã b io­
logia, junto com D ilthey. A idéia da p o ssib ilid ad e de um
acordo vai nele até dar por estabelecido que “a m udança jã
se produziu (...) contra o associadonism o e a psicologia fi­
siológica” ( ibidem , p, 47) e que todas as novas tendências
têm em com um o po n to de partida e o objetivo. À isto se
deve o fato de que caracterize de m odo globalístico a crise:
terrem oto, lam açal etc. Para Langue “chegou o período do
caos” e a tarefa a realizar é sim plesm ente a “crítica e a análi­
se lógica” de diferentes opiniões, q ue têm sua origem numa
causa comum. É exatam ente o m esm o quadro da crise que
pintavam durante a sétima década do século XIX os cientis­
tas que então participavam dessa luta. O caso individual de
Langue ê o m elhor testem unho de luta das forças reais que
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 325

atuam na crise e a determinam: em vez de ver na psicología


a discussão e os problem as provocados pela críse, considera
que o postulado que necessanam ente se d epreende d a crise
é a u n ião da psicología objetiva e subjetiva. A partir disso,
desenvolve essa dualidade através de todo o sistema. E, ao
o por uma in terp retação realista ou biológica da p siq u e a
c o n cep ção idealista de P. N a to rp (1909), aceita de fato a
existência de d u a s psicologias, com o verem os mais adiante.
Mas o mais curioso é que Ebbinghaus, a quem Langue
co n sid era asso ciacio n ista, ou seja, p sicó lo g o pré-crítico ,
define a crise com mais exatidão: em sua opinião, a relativa
im perfeição da psicologia se manifesta em que quase todos
os problem as mais gerais do debate não deixaram de estar
em pauta até hoje. Em outras ciências existe unanim idade
na totalidade dos princípios últimos e das concepções fun­
dam entais que servirão de base para a investigação e q u an ­
do existem m udanças estas não adquirem o caráter de uma
crise: o consenso se restabelece logo. Muito diferente é, na
opinião de Ebbinghaus, o que ocorre na psicologia. Aqui, as
concepções básicas são objeto perm anente de sérias dúvi­
das, de constante discussão.
A falta de consenso constituí para Ebbinghaus um fenô­
m eno crônico: a ausência na psicologia de fundam entos cla­
ros e fidedignos. Jã B rentano, com o nom e de quem Lange
inicia sua cronologia da crise, form ulou em 1874 a exigência
d e q u e no lugar de m uitas psicologias se c ria sse um a só.
Evidentem ente, na época não só existiam m uitas correntes
n o lugar de um sistem a, m as m u ita s psicologias. Tam bém
agora este é o diagnóstico mais correto da crise. Também ago­
ra os m eto d ô lo g o s afirmam que nos encontram os no m esmo
ponto que o indicado p o r B rentano (L. Bínswanger, 1922).
Isso significa q u e em psicologia não ocorre sim plesm ente
uma luta de critérios, entre aqueles com que se pode conse­
guir chegar a um consenso e os que jã estão unidos por uma
com unidade de inimigo e de objetivo; nem sequer se trata de
u m a lu ta d e c o rre n te s ou d e te n d ê n c ia s d e n tro d e um a
m esm a ciência, m as de um a lu ta entre c iê n c ia s d is tin ta s .
D izer q u e existem m uitas p sico lo g ias significa d izer que
326 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

lutam d iferen tes tipos reais de ciência, que se excluem


mutuamente. A psicanálise, a psicologia intencional, a refle-
xologia, todas eias são distintos tipos de ciência, disciplinas
independentes que tendem a se transformar em uma psicolo­
gia gerai. ou seja, a subordinar e excluir outras disciplinas. Jã
vimos o significado e os traços objetivos dessa tendência
para uma ciência com um . Não existe e rro m aior do que
tomar essa luta por uma luta de critérios. Binswanger come­
ça lembrando as exigências de Brentano e a observação de
Windelbancl de que, para cada representante da psicologia,
esta começa de novo, E a causa disso não consiste, segundo
ele, na carência de material real, que existe acum ulado em
excesso, como tam pouco na carência de princípios filosófi-
c o - m e to d o ló g ic o s , q u e tam bém são su ficien tes, m as na
carência de um trabalho conjunto na psicologia entre os filó­
sofos e os empíricos: “Não existe uma só ciência na qual a
teoria e a prática sigam caminhos tão distintos” (L. Binswan­
ger, 1922, p. 6). A conclusão desse autor é que para a psico­
logia falta m etodología e o im portante ê que agora não se
pode criar a metodologia. Não é possível dizer que a psicolo­
gia geral já cumpriu suas tarefas como ramo da metodologia.
Ao contrário, para onde quer que se olhe, reina sem pre a
imperfeição, a insegurança, a dúvida, a contradição. Pode­
mos apenas falar do problema da psicologia geral e, inclusi­
ve, nem mesmo dele, mas somente da introdução ao mesmo
( ibidem , p. 5). B insw anger vê nos psicólogos “audácia e
vontade quanto à [criação de uma nova] psicologia”. Para
isso têm de romper com preconceitos seculares, o que mos­
tra uma coisa: que até hoje não se criou a psicologia geral.
Não devemos nos perguntar, como faz Bergson, o que teria
acontecido se Kepler, Galileu ou Newton tivessem sido psi­
cólogos, mas o que ainda pode acontecer, apesar de esses
três ilustres cientistas terem sido matemáticos (ibidem).
Pode parecer, por conseguinte, que os caos existente
na psicologia é com pletam ente natural e que o sentido da
crise (tal como esta foi com preendida em nossa ciência) é:
existem muitas psicologias que, ao tentarem definir um a p si­
cologia geral, tendem a criar um a só psicologia. Falta um
Galileu para a psicologia, ou seja, um gênio que crie as bases
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 327

fundam entais da ciência. Era esta a opinião geral da m eto­


dologia européia, tal como tomou corpo no final do século
XIX. Alguns autores, principalm ente franceses, continuam
m antendo essa opinião hoje em dia. Na Rússia ela sempre
foi defendida por Vagner (1923), que é quase o único psicó­
logo que se ocupou de questões metodológicas e que chega
a essa mesma opinião sobre a base da análise que realiza de
“L’Année Psychologique”, ou seja, do resum o da literatura
Universal. Sua conclusão é: contamos, p a r conseguinte, com
um a série de escolas psicológicas, mas não temos um a psico­
logia global como área psicológica independente. Mas o fato
de que ela não exista não significa que não possa existir
(ibidem ). Som ente a história da ciência dará uma resposta
p a r a a pergunta de onde encontrá-la.
Foi assim, de fato, que se desenvolveu a biologia. No
século XVII, dois naturalistas estabeleceram o com eço de
dois setores da zoología: Buffon, que se dedicou à descrição
dos animais e de seu modo de vida, e Lineu, a sua classifica­
ção. Paulatinam ente foram sc tornando presentes uma série
de novos problem as, surgiu a m orfología, a anatom ia etc.
Essas investigações se desenvolviam de forma isolada e eram
Como ciências separadas, que nâo m antinham uma com a
Outra a m enor relação, afora o fato de que todas elas estuda­
vam os animais. As distintas ciências enfrentavam-se entre si,
procuravam ocupar uma posição predominante, jã que o con­
tato entre elas crescia e não podiam continuar mantendo-se
afastadas. O genial Lamarck conseguiu integrar esses conhe­
cim entos isolados num livro, que denom inou Filosofia da
Zoologia. Uniu suas investigações pessoais com as alheias,
entre elas as de Buffon e Lineu, resumiu-as, coordenou-as
entre si e criou esse ramo da ciência que Trevinarius denomi­
nou biologia geral. A partir de disciplinas dispersas cria-se
U m a ciência única e abstrata, que se ergue graças ao trabalho
de Darwin. O que aconteceu com as disciplinas da biologia
antes de se fundirem na biologia geral ou na zoologia abstra­
ta no começo do século XIX é o que acontece agora com a
psicologia, na opinião de Vagner, no começo do século XX.
Essa tardia síntese em forma de psicologia geral deve repetir a
328 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

síntese de Lamarck, ou seja, basear-se num principio análogo.


E Vagner vê nisso algo mais do que uma simples analogia.
Para ele, a psicologia deverá percorrer um cam inho que,
embora não semelhante, seja o mesmo. A biopsicología é uma
parte da biologia. É a abstração e síntese de escolas psicoló­
gicas concretas e seu conteúdo é constituído pelas conquistas
de todas essas escolas e, assim como ocorre com a biologia
geral, não pode ter um método de investigação próprio, utili­
zando em cada ocasião aquele da ciência que faz parte dela.
Leva em conta as conquistas, comprovando-as do ponto de
vista da teoria evolucionista, e indica-lhes o lugar correspon­
dente no sistema geral (V. A, Vagner, 1923). Essa é a expres­
são de uma opinião mais ou menos comum.
Mas as reflexões de Vagner colocam algumas dúvidas:
1) segundo sua interpretação, ou a psicologia geral é uma
parte da biologia e se funda na doutrina da evolução, que
constitui seus fundam entos e, portanto, não necessita de seu
Lamarck e de seu Darwin e das descobertas destes, podendo
realizar sua síntese sobre a base de princípios já existentes;
2) ou então a psicologia geral ainda está por surgir, seguin­
do o mesmo caminho que a biologia geral e não faz parte da
ciência biológica com o elem ento desta, mas existe junto
dela; som ente assim é cabível in te rp re ta r essa analogia
como uma possível analogia entre dois conjuntos indepen­
dentes e semelhantes, mas não entre o destino de um con­
ju n to (a biologia) e um a parte (a psicologia). Outra afirma­
ção de Vagner que provoca nossa perplexidade é a dc que a
biopsicología proporciona “precisamente o mesmo que Marx
exige da psicologia ( ibidem , p. 53). Mas, em geral, assim
com o a análise fo rm a l que Vagner realiza é, ao que tudo
indica, indiscutivelm ente exata, sua tentativa de resolver
materialmente o problema e definir o conteúdo da psicolo­
gia geral é m etodológicam ente inconsistente. Poderíam os
dizer que nem sequer o desenvolveu.
Mas nâo desejam os nos o c u p ar desse extrem o. Vol­
temos à análise formal. É verdade que a psicologia de nos­
sos dias está vivendo a mesma situação que a biologia ante­
rior a Lamarck e caminha para uma mesma conclusão?
O SIGNIFICADO H ISTÓ RICO DA C R IS E DA PSIC O L O G IA 329

Dizer isto é silenciar o aspecto mats importante e deter­


m in a n te da crise e apresentar a totalidade da situação de
forma tergiversada. Que a psicologia tenda para o acordo ou
a ruptura, que surja a psicologia geral da união ou desunião
das disciplinas psicológicas, dependerá de:
- o que essas disciplinas incluem: ou partes do con­
junto futuro, com o a sistem ática, a m orfología e a an ato ­
mia, ou princípios de conhecim ento que se excluam m utua­
mente; e de:
- qual é a natureza da confrontação entre as discipli­
nas, ou seja, se são resolvíveis ou inconciliáveis as contradi­
ções que minam a psicologia.
E essa análise das condições específicas desde as quais
a psicologia parte para a criação de uma ciência geral é o
que falta a Vagner, Langue e outros. No entretem po, a meto­
dologia européia jã se deu conta de até que ponto chegou a
crise e deixou claro que psicologias existem, quantas são e
quais são as possíveis saídas. Mas para adotar essa possível
via de solução é preciso terminar por completo com o equí­
voco de que a psicologia contínua, ao que tudo indica, o
caminho jã percorrido pela biologia e de que, no final dele,
simplesmente se incorporará a ela com o parte sua. Pensar
assim significa não ver que entre a psicologia do homem e a
dos animais se interpôs a sociologia e que esta dividiu a psi­
cologia em duas partes. Por isso Kant a catalogou (a psico­
logia) em dois setores. Será preciso construir a teoria da
crise de tal forma que seja possível responder tam bém a
essa pergunta.1

11

Aquilo que oculta a todos os investigadores a verdadei­


ra situação da psicologia é o caráter empírico de suas estru­
turas. É necessário desprender dessas estruturas esse caráter
fm pírico, como uma película, como a casca de uma fruta,
pera vê-las tal como são na realidade. Porque, geralmente,
‘1 * crê de pés juntos no empirismo e partindo dele se renun-
330 T E O R IA E M É T O D O EM P S IC O L O G IA

cia a qualquer análise posterior, interpretando assim a enor­


me diversidade da psicologia como uma unidade científica
estabelecida por decreto e sobre uma base comum e tom an­
do todas as divergências como algo secundário dentro dessa
unidade. Mas esta é uma idéia falsa, uma ilusão. Na verda­
de, a psicologia empírica, entendida como ciência que pos­
sui pelo menos um. princípio comum, nào existe e as tentati­
vas de criá-la conduziram ao fracasso e à bancarrota na me­
dida em que procuravam criar u n icam en te a psicologia
empírica. Os num erosos psicólogos que englobam dentro
de parênteses gerais muitas psicologias a partir de um traço
comum qualquer contraposto ao seu, como a psicanálise, a
reflexologia, o behavíorísm o (consciência - inconsciente,
subjetivismo - objetivismo, espiritualism o - materialismo),
não vêem que dentro dessa psicologia empírica ocorrem os
mesmos processos que se dão entre ela e o ramo de que se
desgarrou, e que inclusive o desenvolvim ento desses mes­
mos ram os está subm etido a ten d ên cia s m ais gerais cuja
atuação - e sua correta interpretação - só pode ocorrer den­
tro do plano geral da totalidade da ciência; dentro dos pa­
rênteses encontra-se toda a psicologia. Como fica então o
empirismo da psicologia atual? Antes de mais nada, como
um conceito puram ente negativo, tanto por sua origem his­
tórica como por seu significado metodológico. E só com isso
nào pode unir nada. Empírica significa em prim eiro lugar:
“psicologia sem alm a” (langue), psicologia sem metafísica
algum a (V vedienski), psicologia baseada na experiência
(Hõffding). Não é necessário esclarecer que estamos na ver­
dade diante de definições de caráter negativo, que nada nos
dizem a respeito do que trata a psicologia, sobre qual é seu
significado positivo,
No entanto, o significado objetivo dessa definição nega­
tiva foi m udando desde hã algum tempo, até agora. No prin­
cípio não mascarava nada, pois a tarefa da ciência consistia
em libertar-se de algo, e o termo constituía um a consigna
para isso. Hoje, contudo, se disfarçou de definição positiva
(que cada autor introduz em sua ciência e nos- processos de
realidade que ocorrem na ciência). Na verdade, o correto
O SIG NIFICA DO HISTÓ RICO DA C R IS E DA PSIC O LO G IA 331

teria sido tomá-la como urna consigna temporária. No entan­


to, aplicar hoje o termo “em pírica” para a psicología implica
renunciarmos a optar por um principio filosófico determina­
do, significa a renúncia a deixar claras suas premissas finais,
a reconhecer sua autêntica natureza científica. A própria
renúncia tem também um significado histórico e uma causa
- de que nos ocuparem os mais adiante porém nada nos
diz sobre a natureza da ciência, mas mascara tal natureza.
Em quem mais claram ente se aprecia isto é no kantiano
Vvedienski, embora todos os empíricos adiram a sua formu­
lação. Por exemplo, Hoffding diz o mesmo. E, embora todos
se inclinem em maior ou menor grau para um lado ou outro,
Vvedienski apresenta o equilibrio ideal: “A psicologia é obri­
gada a fo rm u la r todas suas conclusões de fo rm a que sejam
igualm ente aceitáveis e obrigatórias, tanto para o m ateria­
lismo q u anto p a ra o esplritualismo, ju n to com o monismo
psicofísico” (А. I. Vvedienski, 1917, p. 3>-
Nessa form ulação já se vê que o em pirism o enuncia
seus objetivos de uma forma tal que revela ao mesmo tempo
sua impossibilidade. Na verdade, sobre a base do empiris­
mo, ou seja, da renúncia total a algumas premissas funda­
mentais, lo rn a-se lógica e historicam ente impossível qual­
quer conhecim ento científico, A ciência natural, qual com
essa definição a psicologia quer se parecer, é pela sua pró­
pria natureza e graças a sua nào falseada essência sempre e
espontaneam ente m aterialista. Todos os psicólogos estão
de acordo com que as ciências da natureza, assim com o
toda a práxis humana, naturalmente não resolvem a questão
relativa à essência da matéria e do espírito, mas aceitam par­
tir de um determ inado pressuposto: concretam ente da pre­
missa da realidade, de que esta existe objetiva e regular­
mente fora de nós e é cognoscível. E isto é, como afirmou
várias vezes V. I, Lênin, a própria essência do materialismo
( Obras completas, t. 18, pp. 149 ss.). A existência, enquanto
ciência, das ciências naturais, deve-se à faculdade de discri­
m inar em nossa experiência aquilo que existe objetiva e
independentem ente do subjetivo, e isto é algo em torno do
que não há discrepância em nenhuma interpretação filosofé
332 T E O R IA E M ÉTO D O EM P S IC O L O G IA

ca, nem sequer naquelas que, no seio das ciências naturais,


seguem um raciocínio idealista. As ciências naturais, inde­
pendentem ente de seus representantes, são de per si mate­
rialistas. Pois bem: de forma igualmente espontânea e inde­
pendentem ente das diversas idéias de seus representantes, a
psicologia partiu de concepções idealistas.
De fato, não existe um só sistema empirico em psicolo­
gia: todos vão além dos limites do empirismo. O que na ver­
dade é compreensível, porque de uma idéia totalmente ne­
gativa nada se p o d e deduzir; da “a b s te n ç ã o ”, seg u n d o
expressão de Vvedienski, nada pode nascer. De fato, todos
os sistemas foram se enredando em suas conclusões e foram
parar em cheio na metafísica: o primeiro foi o próprio Vve­
dienski, com sua teoria do solipsismo, uma manifestação ex­
trema do idealismo.
Se a psicanálise fala abertam ente de metapsicologia, de
uma forma encoberta qualquer outra psicologia sem alma
também tem, ainda que não recorra a metafísica alguma, sua
própria metafísica. Embora baseada na experiência, a psico­
logia incluiu em seu seio o que não estava baseado nessa
experiência. Para dizê-lo em poucas palavras: toda psicolo­
gia teve sua metapsicologia. Pode ser que não a tenha reco­
nhecido, mas isso não muda as coisas. Tchelpánov, que é
quem nesta discussão mais se esconde por trás da palavra
“em pírica” e quer segregar a palavra ciência do campo da
filosofia, conclui, no entanto, que esta (a ciência) deve ter
uma “su p e re stru tu ra ” e um a “in fra-estru tu ra” filosóficas.
Tchelpánov denomina infra-estrutura a investigação prévia e
os conceitos filosóficos que devem ser levados em conta
antes de se proceder ao estudo da psicologia-, só com essa
infra-estrutura se pode construir a psicologia empírica (G. I.
Tchelpánov, 1924). Isto não o im pede de afirmar em pági­
nas su b seq ü en tes que a psicologia precisa estar livre de
qualquer filosofia; no entanto, na conclusão volta a reco­
nhecer que são precisam ente os problem as metodológicos os
problemas imediatos da psicologia atual.
Seria errôneo pensar que do conceito de psicologia em­
pírica nada podem os extrair além de aspectos negativos.
O SIG NIFICA DO H ISTÓ RICO DA C R IS E DA PSIC O LO G IA 333

Esse conceito contém também indicações sobre processos


positivos na ciência, que ficam encobertos sob esse nome.
Com a palavra “em pirica”, a psicologia deseja situar-se no
grupo das ciências naturais. Nisso todos estão de acordo.
Mas trata-se de ver o que significa esse conceito de “empíri­
ca” aplicado à psicologia. No prólogo à Enciclopédia, T. Ribot
(que procura heroicam ente colocar em prática o consenso e
a unidade a que se referem Langue e Vagner, dem onstran­
do, ao fazê-lo, a impossibilidade disso) diz que a psicologia
é uma parte da biologia, que não é nem m aterialista nem
espiritualista, pois, caso contrário, perderia o direito ao no­
me de ciência. Em que se diferencia de outras partes da bio­
logia? Somente no fato de que se ocupa de fenôm enos spiri-
tuels e não físicos (1923).
Fácil solução: a psicologia desejaria ser um a ciência
natural, mas ocupando-se de coisas de natureza com pleta­
mente distinta daquelas de que se ocupam as ciências natu­
rais. Mas, a natureza dos fenôm enos a estudar não condicio­
na o caráter da ciência? Será que são possíveis na qualidade
de naturais a história, a lógica, a geom etria, a história do
teatro? Quando Tchelpánov insiste em que a psicologia seja
uma ciência empírica, como a física ou a mineralogía, não
adere nisso a Pávlov, como seria natural, e começa a vocife­
rar quando se trata de considerar a psicologia como ciência
natural. O que oculta Tchelpánov por trás dessa assim ila­
ção? Quer que a psicologia seja a ciência natural 1) de fenô­
menos de natureza absolutam ente distinta dos fenôm enos
físicos; 2) que estes sejam conhecidos através de um proce­
dimento totalmente distinto do que são objeto as ciências da
natureza. Mas, o que, p e rg u n ta m o -n o s, p o d em ter em
comum as ciências naturais e a psicologia com um objeto
distinto e um m étodo distinto de cognição? E Vvedienski, ao
explicar a significação do caráter em pírico da psicologia,
diZ: “Por isso a significação do caráter empirico da psicolo­
gia atual como a ciência natural dos fenôm enos espirituais,
OU como a história natural dos fenôm enos espirituais’ (A. I.
Vvedienski, 1917, p. 3). Mas isso significa que a psicologia
quer ser a ciência natural de fenôm enos não-naturais e que
334 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

o que a aproxima das ciências naturais é um traço puram en­


te negativo - a renúncia à metafísica - e nenhum positivo,
W. Jam es esclareceu de form a b rilh an te o fundo do
assunto. A psicologia deve formular, assim como o fazem as
ciências naturais, sua tese principal. E ninguém faz tanto
quanto Jam es para dem onstrar a natureza “não científico-
natural” do psíquico. James mostra que todas as ciências acei­
tam como dogma as premissas conhecidas. Assim, as ciências
naturais partem de uma premissa materialista, ainda que urna
análise mais profunda leve ao idealismo E da mesma maneira
se comporta a psicologia: adota outra premissa e por conse­
guinte assemelha-se às ciências naturais somente pelo fato de
que aceita como dogma, sem espírito crítico, premissas co­
nhecidas, que são intrínsecamente opostas.
Segundo Ribot, essa tendência é o traço principal da
psicologia do século XIX; além deste m enciona também a
tendência da psicologia a apresentar alguns princípios e um
m étodo próprios (algo que A. Comte nega à psicologia) e a
se colocar na mesma relação diante da biologia que esta
tem com a física. Não obstante, Ribot reconhece que aquilo
que se denom ina psicologia inclui várias categorias de in­
vestigação, m uito distintas por seu objetivo e m étodo. E
quando, apesar dessas diferenças, os autores da E ncielo-
pédia tentaram parir1' o sistema da psicologia e incluir nela
Pávlov e Bergson, evidenciou-se que a tarefa não era reali­
zável, em função do que Dumas conclui: a unidade de 25
autores consiste em sua renúncia às especulações ontológi-
cas (1924).
É fácil adivinhar a que conduz essa colocação: a renún­
cia a especulações ontológicas (o empirismo), se fo r conse­
qüente, leva a renunciar aos princípios meiodolõgico-cons-
trutivos na estruturação do sistema, desemboca no ecleticis-
mo. E, na m edida em que é inconseqüente, conduz a uma
metodologia oculta, não-crítica, confusa, Na Enciclopédia, os
autores franceses deram um a brilhante dem onstração de 15

15. Assim no manuscrito de L. S. Vigotski. ÍN.R.R.)


O SIG NIFICA DO HISTÓ RICO DA C R IS E OA PSIC O LO G IA 335

ambas as coisas-, a psicologia cias reações de Pãvlov é tão


aceitável quanto a instropectiva, mas em capítulos diferentes
do livro. Na maneira de discutir os fatos e colocar os proble­
mas, inclusive o vocabulário, esses autores mostram tendên­
cias ao associaeionismo, ao racionalismo, ao bergsonismo,
ao sintetismo... e explicam mais adiante que em certos capí­
tulos se servem da concepção bergsoníana, em outros recor­
rem à linguagem do associaeionismo e do atomismo, e ainda
em outros do behaviorismo etc. O Traité quer ser apartidá-
rio, objetivo e completo; se nem sempre o consegue, resume
Dumas, a diferença de opiniões testem unha uma atividade
intelectual e, no fim das contas, nisso representa sua época e
seu país (ibidem). Isto sim é verdade.
A diferença de opiniões - e vimos quão longe chega -
nos convence som ente da im possibilidade de m anter hoje
uma psicologia apartidãria, mesmo deixando de lado a fatí­
dica dualidade do Traidê d e psychologic, para o qual ou a
psicologia é uma parte da biologia, ou m antém com ela a
mesma relação que esta última diante da física.
Por conseguinte, o conceito de psicologia empírica en­
cerra uma contradição m etodológica insolúvel: é a ciência
natural de coisas nào-naturais, um projeto para desenvolver
com o m étodo das ciências da natureza sistemas de saber
totalmente opostos a ela, ou seja, que partem de premissas
com pletam ente opostas. Essa contradição refletiu-se com
efeitos desastrosos nas construções metodológicas da psico­
logia empírica: esvaziou-a.
A tese de que existem d u a s psicologias (a científico-
natural, materialista, e a espiritualista) expressa com mais
precisão o significado da crise do que a tese da existência de
muitas psicologias. Psicologias, sendo exato, existem duas:
dois tipos distintos, inconciliáveis de ciência; duas constru­
ções do sistema de saber radicalmente diferentes. O restante
são só diferenças nas perspectivas, escolas, hipóteses; com­
binações parciais, tão completas, tão confusas e entrem ea­
das, cegas e caóticas, que com freqüência é muito difícil se
orientar. Mas, na verdade, a luta só se dá entre duas tendên­
cias que subjazem e atuam em todas as correntes em litígio.
336 T E O R IA E M É TO D O EM P S IC O L O G IA

Que isto é assim, que o significado da crise é expresso


por duas e não por muitas psicologias, que todo o restante é
uma luta dentro de cada uma dessas duas psicologias, um
cam po de açào diferente e com um significado totalm ente
distinto; que a criação da psicologia geral não é uma ques­
tão de acordo, mas de ruptura; de tudo isto a metodologia jã
se deu conta faz muito tem po, e ninguém o discute mais.
Todo este volume sobre o significado da crise se centra na di­
ferença entre essa tese e os três tópicos de K. N. Kornilov:
1) para Kornilov não coincidem os conceitos de psicologia
materialista e reflexologia; 2) tampouco, para cie, coincidem
os conceitos de empírica e idealista; 3) nossa apreciação do
papel da psicologia marxista diverge da dele. Em última ins­
tância tratamos aqui de duas tendências que foram afloran­
do nas lutas que ocorriam entre muitas das correntes da psi­
cologia e inclusive no seio de algumas delas. E, em termos
gerais, parece indiscutível que a criação da psicologia geral
não culminará numa terceira psicologia, além das duas em
litígio, mas que se fará sobre uma destas.
M ünsterberg, que nos fez tomar consciência de que o
conceito de em pirism o encerra um conflito m etodológico
que uma teoria lúcida deverá resolver se quiser tom ar possí­
vel a investigação, afirma em sua obra capital sobre a meto­
dologia: “este livro não oculta o fato de que quer ser comba­
tivo, que defende o idealismo contra o naturalismo. Quero
garantir de maneira definitiva o direito do idealismo na psi­
cologia” (H. M ünsterberg, 1922). Ao passar em revista as
bases teórico-cognitivas da psicologia em pírica, M ünster­
berg declara que isso é o mais importante que falta à psico­
logia de nossos dias, na qual os principais conceitos apare­
cem unidos por pura causalidade e na qual os processos
cognitivos lógicos estão abandonados ao instinto. A propos­
ta de M ünsterberg é a síntese do idealism o ético de I. G.
Fichte com a psicologia fisiológica de nosso tempo, porque
o triunfo do idealismo não consiste em se afastar da investi­
gação empírica, mas em dar a esta um lugar em seu terreno.
M ünsterberg mostrou que o naturalismo e o idealismo são
inconciliáveis, e é por isso que diz que se trata de um livro
O SIGNIFICADO H ISTÓ R IC O DA C R IS E DA PSIC O L O G IA 337

sobre o idealismo militante. E afirma, ao refcrir-se à constru­


ção de uma psicología geral, que é uma tem eridade e um
p erigo, e que n ão devem ser aceitos nem p acto s nem
uniões. E M ünsterberg coloca abeitam ente a existência de
duas ciências, afirmando que a psicologia ocupa uma posi­
ção singular e que sabemos incomparavelmente mais sobre
os fatos psicológicos agora do que em qualquer outra época
mas que, contudo, sabemos muito menos sobre o que é, na
verdade, a psicologia.
A unidade que externam ente se nota entre os métodos
não deve ocultar-nos o fato de que diferentes psicólogos se
referem a psicologias totalmente distintas. Essas confronta­
ções no seio da psicologia só podem ser com preendidas e
superadas da seguinte maneira, segundo esse autor: “A psi­
cologia de nossos dias luta contra o preconceito de que, ao
que tudo indica, existe somente um tipo de psicologia (...)
O -conceito de psicologia encerra duas tarefas científicas
totalm ente distintas, que devem ser radicalmente distingui­
das e para as quais o melhor seria utilizar termos especiais.
Com efeito, existem duas classes de psicologia” ( ibidem, p.
7). Na ciência atual encontram os todas as formas e tipos
possíveis de mistura de duas ciências numa imaginária uni­
dade. O que as ciências têm em comum é seu objeto, mas
Isso nada nos diz sobre elas mesmas: a geologia, a geografia
e a agronomia estudam a terra e, no entanto, a construção e
o princípio de cogniçào científica são em cada uma diferen­
tes. M ediante a descrição podem os transform ar a psique
numa cadeia de causas e ações e podem os representá-la
Como uma combinação de elem entos, e isso pode ser feito
tanto objetiva quanto subjetivamente. Se levarmos ambas as
Interpretações até suas últimas conseqüências e lhes dermos
forma científica, obterem os duas “disciplinas teóricas radi­
calmente distintas”. “Uma é a psicologia causal e a outra a
ideológica e intencional” ( ibidem, p. 9).
A existência de duas psicologias é tão evidente que
todos a aceitaram. As divergências se manifestam unicamente
ПЯ definição exata de cada uma delas; alguns sublinham cer­
to» matizes, outros, outros. Seria muito interessante analisar
338 T E O R IA E M É T O D O EM P S IC O L O G IA

todas essas oscilações, porque cada uma delas testem unha


determ inada tendência objetiva que encontra saída por um
ou outro pólo, e a organização e amplitude das divergências
mostram que os dois tipos de ciência, assim como as duas
borboletas de um mesmo casulo, existem, embora ainda em
forma de tendências que não chegaram a se diferenciar.
Mas, por enquanto, não nos interessam suas divergên­
cias, e sim o que têm em comum e nesse sentido surgem
duas perguntas: qual é a natureza geral de ambas as ciências
e quais são as causas que deram lugar a que o empirismo se
divida em naturalism o e idealismo1
Todos estão de acordo em que são precisam ente esses
dois elem entos que constituem a base de ambas as ciências
e que, por conseguinte, uma é uma psicologia científico-
natural e a outra idealista, qualquer que seja o nom e que
lhes dêem os diferentes autores. De acordo com Münster-
berg, todos estão de acordo em atribuir a diferença, não ao
material ou ao objeto, mas ao modo fundamental de conhe­
cimento: quer seja a interpretação dos fenôm enos segundo
o princípio da causalidade, m antendo basicamente o mesmo
tipo de conexão e a mesma linha de sentido para todos os
fenômenos; quer seja a interpretação intencional dos fenô­
menos, considerando-os atividades espirituais e orientadas
para um objetivo, isentas de toda conexão material. Dilthey,
que denomina a essas duas ciências psicologia explicativa e
psicologia descritiva, atribuí essa subdivisão a C. Wolff, que
dividia a psicologia em racional e em pírica, e, portanto,
localiza essa bifurcação no surgimento mesmo da psicologia
empírica. Dilthey a'ssinala que esse desdobram ento se man­
teve ininterruptam ente ao longo de todo o desenvolvimento
de nossa ciência e volta a se m anifestar explicitam ente na
escola de J. Herbart (1849) e nos trabalhos de T. Waitz (W.
Dilthey, 1924). O m étodo da psicologia explicativa é idênti­
co ao das ciências naturais e seu postulado (que não existe
nenhum fenôm eno psíquico sem um fenôm eno físico cor­
respondente) a conduz à falência corno ciência independen
te, seus problem as passando para a mâo da fisiología ( ibi­
dem ). Tam bém segundo B insw anger (1922) a psicologia
O SIGNIFICADO HISTÓ RICO DA C R IS E DA PSIC O LO G IA 339

descritiva e a explicativa têm a mesma significação que a


que foi dada nas ciências naturais à sistemática e à explica­
ção - suas duas partes fundamentais.
A psicologia atual - doutrina da alma sem alma - inter­
namente contraditória, decom põe-se em duas partes. A psi­
cologia descritiva por um lado, que não tende à explicação,
mas à descrição e à compreensão: o que os poetas, especial­
mente Shakespeare, apresentam sob a forma de imagens, ela
converte em objeto de análise, em conceitos. Por outro lado,
a psicologia explicativa, científico-natural, que não pode ser­
vir de base para as ciências do espírito e sobre a qual se
constrói o direito penal determ inista, que nào deixa lugar
para a liberdade nem para o problema da cultura. Pelo con­
trário, a psicologia descritiva “constituirá a base das ciências
do espírito, de forma análoga a como as matemáticas são a
base das ciências naturais” (W. Dilthey, 1924, p. 66).
G. Stout renuncia categoricamente a considerar a psicolo­
gia analítica como ciência natural: é uma ciência positiva, no
sentido de que em seu campo o que existe, o real, são os fatos
e não a norma, o que deve ser. Está alinhada junto com a
matemática, as ciências da natureza ou a gnoseologia. Mas
não é uma ciência física. Entre a psicologia e o físico existe
tamanho abismo, que se toma impossível captar suas relações
‘mútuas. Nenhuma das atuais ciências sobre a matéria m antém
; alguma relação com a psicologia que possamos equiparar com
a da química e da física com a biologia: ou seja, uma relação
que vá desde as regras mais gerais até as mais particulares,
mas essencialmenle homogêneas (G. Stout, 1923).
L. B insw anger considera q u e a divisão p rin c ip a l em
todos os problem as de m etodología é a que se dá en tre as
concepções científico-naturais e não-científico-naturais dos
fatos psicológicos. Binswanger explica franca e claram ente
q u e existem duas psicologias rad icalm en te d istin ta s , e,
apoiando-se em Zigvart, considera como origem da cisão a
luta contra a psicologia científico-natural, que nos co n d u zi­
ria à fenomenología das sensações, à base da lógica pura de
Husserl e a uma psicologia empírica ainda que não científi-
Co-natural (A. Pfender, K. Jaspers),
340 T EO R IA E M É T O D O EM P S IC O L O G IA

A posição contrária é ocupada por Bleuler. Rejeita a


opinião de W undt de que a psicologia não é uma ciência
natural e de acordo com Rickert a denom ina generalizadora,
referindo-se àquela psicologia que Dilthey denomina expli­
cativa ou construtiva.
Não nos poremos agora a analisar o fundo da questão:
a possibilidade de conceber a psicologia como ciência natu­
ral e os conceitos-chave com que poderia assim se construir.
Essa já é uma discussão a ser desenvolvida dentro de um a
psicologia e constitui o objeto de nossa exposição no próxi­
mo cap ítulo desta obra, D eixam os também aberta outra
questão: a de se a psicologia ê na verdade e em sentido pre­
ciso uma ciência natural (e, de acordo com os autores euro­
peus, empregamos essa palavra para indicar mais claramen­
te o caráter m aterialista desse g ên ero de conhecim ento:
com o a psicologia da E uropa O cidental d e sco n h e c e ou
quase desco n h ece os problem as da psicologia social, os
con h ecim en to s psicológicos coincidem para ela com as
ciências naturais). Mas inclusive esse problem a continua
tendo um caráter especial e muito profundo: o de mostrar
que é possível a psicologia como ciência materialista e que
esse fato não faz parte do problema do significado da crise
psicológica como um todo.
Quase todos os autores russos que escreveram algo sé­
rio sobre psicologia aceitam essa segregação - naturalmente
a partir de palavras alheias o que mostra até que ponto
essas idéias da psicologia européia alcançaram um reconhe­
cimento geral, ao mencionar as divergências existentes entre
Windelband e Rickert por um lado (que incluem a psicolo­
gia nas ciências naturais) e W undt e Dilthey por outro, toma
p artid o destes últim os, por considerar am bas as opções
como duas ciências distintas (N. N. Langue, 1914). E o curio­
so é que ao fazê-lo critique P. Natorp enquanto porta-voz da
interpretação idealista da psicologia e contraponha a ele
a interpretação realista ou biológica. E, no entanto, Natorp,
como mostra Münsterberg, exigia desde o princípio o mes­
mo que ele: uma ciência que subjetivasse e outra que objeti­
vasse o espírito, ou seja, duas ciências.
O SIGNIFICADO HISTÓ RICO DA C R IS E DA PSIC O L O G IA 341

Reunindo ambos os pontos de vista num único postula­


do, N. N. Langue reflete em seu livro essas ten d e n c ia s
inconciliáveis, ao considerar que o significado da crise está
em luta contra o associacionism o. Expõe com verdadeira
simpatía as idéias de Dilthey e Münsterberg e formula: “re­
sultaram diferentes psicologias", os psicólogos descobriram
duas caras, assim como Jano: uma dirigida para a fisiología
e as ciências naturais, e outra para as ciências do espírito,
para a história, a sociologia: uma ê a ciência das causas, a
outra, a dos valores ( ibidem, p. 63). Parece que seria preciso
escolher um a das duas, e Langue as une.
E Tchelpánov faz o mesmo, convidando-nos a crer que
a psicologia é uma ciência materialista, apresentando, para
sustentar isto, o testem unho de James, evitando mencionar
que é a ele que pertence a idéia das duas psicologias na lite­
ratura russa. Nessa idéia das duas psicologias é que real­
mente vale a pena nos determos.
Tchelpánov expõe, de acordo com Dilthey, Stout, Mei-
nong, Husserl, a idéia do m étodo analítico, que conduz ao
conhecim ento de idéias apriorísticas. A psicologia analítica
é a psicologia básica. Como tal deve se antepor à constru­
ção da psicologia infantil, da psicologia animal e da psicolo­
gia experimental-objetíva e servir de base para os diferentes
tipos de investigação psicológica. Parece, portanto, que a
psicologia analítica está longe da mineralogía e da física ou
de aceitar a separação radical entre a psicologia por um
lado e a filosofia e o idealismo por outro.
Quem quiser demonstrar que salto G. I. Tchelpánov deu
a partir de 1922 em suas colocações psicológicas não deve
se deter em suas fórmulas filosóficas de caráter geral ou em
determ inadas fases, mas em sua doutrina sobre o m étodo
analítico, Tchelpánov protesta contra a confusão que se dá
entre as tarefas da psicologia explicativa e as da descritiva, e
explica que uma se encontra em clara contradição com a
outra. Para não dar lugar a dúvidas sobre qual é a psicologia
a que confere im portância prim ordial, relaciona-a com a
fenomenología de Husserl e com sua doutrina sobre as es­
sências ideais e explica que o “eidos” ou essência de Husserl
342 T E O R IA E M É TO D O EM P S IC O L O G IA

são as idéias de Platão, com certas correções. Para Husserl, a


fenomenología pertence à psicologia descritiva, assim como
a matemática à física. E essas ciências, da mesma forma que
a geometria, constituem a ciência das essências, das possibi­
lidades ideais, ao passo que as segundas [como a física ou a
psicologia explicativa - R.E.] a dos fatos. A fenom enología
possibilita assim tanto a psicologia explicativa quanto a des­
critiva.
Tchelpanov, em contraposição à opinião de Husserl,
pensa que a psicologia analítica abarca parcialmente a feno­
menología e que o m étodo desta é suficientemente idêntico
ao analítico. Tchelpánov explica assim seu desacordo com
Husserl, desacordo no qual identifica a psicologa eidética
com a fenomenología: a psicologia atual é somente empíri­
ca, ou seja, indutiva, apesar de que tam bém existem nela
verdades fenomenológicas. Por isso pensa que não se deve
separar a fenomenología da psicologia. A base dos métodos
experimentáis-objetivos, que tão timidamente defende Tchel­
pánov contra Husserl, deve ser fenomenológica. Assim foi e
assim será, termina esse autor.
Como comparar com isto as afirmações de que a psico­
logia só é empírica, que exclui por sua própria natureza o
idealismo e que é independente da filosofia?
Podemos resumir: independentem ente dos nomes atri­
buídos a essas subdivisões, por mais diversos que sejam os
matizes de significado que se apliquem a cada termo, o fun­
do da questão continua sendo o mesmo em todos os casos e
se reduz a dois princípios.
1) Em psicologia o em pirism o surgiu, de fato, tão es­
pontaneam ente de prem issas idealistas como o fizeram as
ciências naturais de premissas materialistas; ou seja, a psico­
logia empírica teve por base o idealismo.
2) Na época da crise, o empirismo se dividiu, devido a
certas causas, em psicologia idealista e m aterialista (delas
falarem os mais adiante). Essa diferença nas palavras tam ­
bém é explicada por Münsterberg com uma unidade de sig­
nificado: p odem os falar de psicologia causai ao m esm o
tem po que de psicologia intencional, ou de psicologia do
O SIGNIFICADO H ISTÓ RICO DA C R ISE DA PSIC O L O G IA 343

espírito ao mesmo tem po que de psicologia da consciência,


ou se psicologia da com preensão ao mesmo tempo que de
psicologia explicativa. A única coisa que tem im portância
essencial é o fato de que reconhecem os dois gêneros de psi­
cologia (H. Münsterberg, 1922, p. 10). Em outro lugar, Müns-
terberg contrapõe a psicologia do conteúdo da consciência
e a do espírito, ou a do conteúdo e a dos atos, ou a das sen­
sações e a intencional.
Em essência, o que fizemos foi pôr em evidência a tese,
há muito estabelecida em nossa ciência, de seu profundo dua­
lismo, que impregna todo seu desenvolvimento e, portanto,
aderimos a um indubitável princípio histórico. Nossa tarefa
não inclui a história da ciência e podemos deixar de lado a
questão das raízes históricas desse dualismo, limitando-nos a
constatar simplesmente o fato e a explicar as causas próximas
que conduziram à agudização e cisão desse dualismo na crise.
É, essencialmente, o mesmo fato que aquele indicado pela
inclinação da psicologia para dois pólos, como, por exemplo,
a existência nela da “psicoteleologia” e da “psícobiología”; o
que Dessoir denominou canto para duas vozes da psicologia
atual que, na sua opinião, nunca deixará de ser ouvido.

12

Detenham o-nos agora brevem ente nas causas mais pró­


ximas da crise, em suas forças motoras.
Quais dentre seus fatores em purram a crise para uma
ruptura; e quais, pelo contrário, a sofrem de forma passiva e
somente como um mal inevitável? É claro que só vamos nos
ocupar aqui das forças m otoras que se acham dentro de
nossa ciência, deixando de lado todas as demais. E é legiti­
mo agir assim, pois as causas e fenôm enos externos - so­
ciais e ideológicos - estão, no fim das contas e de um modo
ou outro, representados por sua vez por forças que existem
e atuam dentro de nossa ciência. Por isso analisaremos ape­
nas as causas mais próximas localizadas em nossa própria
CiCncia, renunciando a posteriores análises.
344 T E O R IA E M É T O D O EM P S IC O L O G IA

E com ecem os partindo de uma só afirmação: o desen­


volvimento da psicologia aplicada, em toda sua amplitude, é
a principal força motora da crise em sua últim a fase.
A atitude da psicologia acadêmica em relação à aplica­
da continua sendo meio depreciativa, com o em relação a
um a ciência sem i-exata. Não cabe discutir que nem tudo
anda bem nesse setor da psicologia, mas para um observa­
dor que se situe por cima de tais problemas, ou seja, para o
metodólogo, não cabe a m enor dúvida de que a psicologia
aplicada desem penha hoje em dia o papel de protagonista
no desenvolvimento de nossa ciência: nela está representa­
do tudo que existe em psicologia de progressivo, de saudá­
vel, tudo que encerra o germe do futuro; é ela que apresen­
ta melhores trabalhos metodológicos. É somente estudando
essa área que podem os ter uma idéia da significação do que
está acontecendo e das possibilidades da psicologia real.
Na história da ciência o centro se deslocou: o que se
encontrava na periferia passou a ser o centro do círculo. E o
mesmo que se diz da filosofia, repudiada pelo empirismo,
cabe dizer da psicologia aplicada: a pedra que os construto­
res rejeitaram veio a ser a pedra angular.
Três fatos sustentam esta nossa afirmação. O primeiro,
a prática. Aí (através da psicotecnia, da psiquiatria, da psi­
cologia infantil, da psicologia criminal) pela prim eira vez a
psicologia defrontou com a praxis altam ente organizada.-
industrial, educativa, política, militar. Esse contato obriga a
psicologia a reestruturar seus princípios de forma que pos­
sam passar pela prova suprema da prática. A psicologia viu-
se obrigada a assimilar e introduzir na ciência uma grande
quantidade de reservas de experiências, de psicologia práti­
ca e de hábitos, acum ulados ao longo de séculos, porque,
tanto a Igreja quanto a arte militar, a política ou a industria,
na medida em que regularizaram e organizaram de forma
consciente a psique, se apoiam numa enorm e experiência
psicológica, ainda que científicamente desordenada. (Todo
psicólogo experim entou pessoalm ente essa influência da
ciência aplicada, hoje em período de reorganização.) Para o
desenvolvim ento da psicologia, a aplicação desem penha o
O SIGNIFICADO H ISTÓ RICO DA C R IS E DA PSIC O L O G IA 345

mesmo papel que desem penhou a m edicina para a anato­


mia e a fisiología e a técnica para as ciências físicas. Mão é
possível exagerar a im portância da nova psicologia para
toda a ciência: o psicólogo poderia compor um hino a ela.
Essa psicologia, que é chamada pela prática a confirmar
a veracidade do pensam ento e que não procura tanto expli­
car a psique mas com preendê-la e dom iná-la, estabelece
entre as disciplinas práticas e no próprio seio da estrutura
da ciência uma relação total e essencialm ente distinta da
que se dava na psicologia anterior. Nesta, a prática era uma
colônia da teoria, que dependia em tudo de sua metrópole;
a prática era uma conclusão, um anexo, uma saída, em últi­
ma instância, fora dos limites da ciência; uma operação que
se achava do outro lado da ciência, que estava por trás dela,
que começava ali onde se considerava que a tarefa científica
havia terminado. O êxito ou fracasso da prática não se refle­
tia em absoluto no destino da teoria. Agora a situação ê a
inversa; a prática coloca as tarefas e é o juiz suprem o da
teoria, o critério de verdade; dita como construir os concei­
tos e como formular as leis.
Isto nos leva diretam ente ao segundo fato; â metodolo­
gia. Por mais estranho e paradoxal que pareça à prim eira
vista, é precisam ente a prática, como principio construtivo
da ciência, que exige uma filosofia, ou seja, um m etodolo­
gia da ciência. O que absolutam ente não está em contradi­
ção com a atitude irrefletida e “despreocupada”, segundo o
termo em pregado por M ünsterberg, que tem a psicotecnia
em relação aos seus princípios; na verdade, tanto a prática
quanto a m etodologia da psicotecnia são, com freqüência,
surpreendentem ente impotentes, débeis, superficiais, inclu­
sive ridículas. Os diagnósticos da psicotecnia não dizem
n ad a e fazem lem brar as reflexões sobre a m edicina dos
Charlatâes de Molière; sua metodologia é a cada vez inventa­
da ad hoc e carece de disposição critica; com freqüência foi
denom inada de psicologia de verão, ou seja, leve, efêmera,
pouco séria. Tudo isto é correto. Mas não modifica em abso­
luto o fato essencial: é justamente essa psicologia que gera
Uma m etodologia férrea. Como diz M ünsterberg, é não só
346 T E O R IA E M É T O D O EM P S IC O L O G IA

quando enfrentamos os problemas gerais, mas também cada


vez que exam inam os questões concretas, que nos vemos
obrigados a analisar de novo os princípios da psicotecnia
(1922, p. 6).
Por isso afirmo, apesar de que mais de uma vez se viu
com prom etida, apesar de que seu valor prático seja quase
nulo e suas teorias com freqüência ridículas, sua im portân­
cia metodológica é enorme. O princípio da prática e sua filo­
sofia se impõem uma vez mais; a pedra que foi rejeitada
pelos construtores, esta veio a ser a pedra angular. Aí se en­
contra o significado completo da crise.
L. Bínswanger diz que não é da lógica, da gnoseologia
ou da metafísica, mas da metodologia (da doutrina do m éto­
do científico para Binswanger) que esperam os a resolução
da questão mais geral, a “questão de q u estõ es” de toda a
psicologia, o problem a que abarca os dem ais problem as
da psicologia: o da psicologia subjetiva e objetiva. Mas nós
concretaríamos: da metodologia da psicotecnia, ou seja, da
filosofia da prática. Por mais insignificante que seja o valor
prático e teórico da escola de m ensuraçào de Binet ou de
outros testes psicoténícos, por pior que o teste seja em si,
no entanto seu valor como idéia, como princípio m etodoló­
gico, com o tarefa, com o perspectiva, é enorm e. As mais
complexas contradições da m etodologia psicológica recaem
sobre o terreno da prática, porque som ente aí podem en ­
contrar solução. Nesse terreno as discussões deixam de ser
estéreis e chega-se a resultados. O método, ou seja, o cami­
n h o seguido, é visto com o um m eio de cogniçâo: mas o
m étodo é determinado em todos seus pontos pelo objetivo a
que conduz. Por isso, a prática reestrutura toda a m etodolo­
gia da ciência.
O terceiro fato, que vem redefinir o papel da psicotec­
nia, pode ser com preendido partindo dos dois prim eiros.
Consiste em que a psicotecnia ê uma psicologia unilateral,
incita à ruptura e formaliza a psicologia real. Também a psi­
quiatria ultrapassa os limites da psicologia idealista; para
tratar dos doentes e curá-los não podem os nos basear na
introspecção; nada há de mais absurdo do que aplicar esse
O SIGNIFICADO HISTÓ RICO DA C R IS E DA PSIC O L O G IA 347

enfoque à psiquiatria. A psicotecnia, com o assinalou I. N.


Shpilréin, também se deu conta de que não pode separar as
funções psicológicas das fisiológicas e busca um conceito
integral. Escrevendo sobre os grandes professores (de quem
a psicologia espera inspiração), eu disse certa vez que pro­
vavelmente nenhum deles confiaria o comando de um barco
à inspiração do capitão ou a direção de urna fábrica à inspi­
ração de um engenheiro; cada um deles escolheria um mari­
nheiro com petente e um técnico experiente. E esse maior
rigor que, em geral, só pode ser exigido da ciência, passará,
graças à extrema seriedade da prática, a revitalizar a psico­
logia. A indústria e o exército, a educação e o tratam ento
dos doentes ressuscitarão e reformarão a ciência. Para sele­
cionar condutores de bonde não serve a psicologia eidética
de Husserl, que não se preocupava com a veracidade de
suas afirmações, assim como tam pouco serve a contem pla­
ção de entes e nem mesmo os valores interessam. Mas essa
opção não garante, em absoluto, a psicologia contra a catás­
trofe. O objetivo dessa psicologia orientada para a prática
não é fazer a psicologia de Shakespeare em versão concei­
tuai, como o é para Dílthey, mas a p sicotecnia. Em suma:
uma teoria científica que leve à subordinação e ao domínio
da psique, ao manejo artificial do comportamento.
E é Münsterberg, esse idealista militante, quem estabe­
lece as bases da psicotecnia, ou seja, de um a psicologia
materialista no mais alto sentido. Stern, não menos entusias­
ta do idealismo, elabora a m etodologia da psicologia dife­
rencial e põe em evidência com demolidora clareza a incon­
sistência da psicologia idealista.
Como pode ter ocorrido que idealistas extremistas atuem
em favor do m aterialism o? Isso m ostra quão profunda e
objetivamente penetraram no desenvolvim ento da psicolo­
gia as duas tendências em litígio e quão pouco coincidem
com o que o psicólogo fala de si mesmo, ou seja, corn as
convicções filosóficas subjetivas. Evidencia tam bém a es­
pantosa com plexidade do quadro da crise e de que modo
tão inextricável aparecem misturadas ambas as tendências;
que ziguezagues tão quebrados, tão inesperados e parado-
348 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

xais segue a linha de frente nessa batalha em curso na psi­


cologia; o fro n te situ a-se com freq ü ên cia dentro de um
mesmo sistema, muitas vezes inclusive dentro de um termo,
Esses fatos mostram, finalmente, como essa luta de duas psi­
cologias, embora não coincida com a de muitas concepções
e escolas psicológicas, estã por trás delas e as determina-, que
enganosas são, enfim, as formas exteriores da crise e como
é preciso com provar o verdadeiro significado que se oculta
em seu interior.
Recorramos a M ünsterberg. A questão sobre a legitimi­
dade da psicologia causai tem im portância decisiva para a
psicotecnia. Porque essa psicologia causai de caráter unila­
teral só entra realm ente em vigor por meio da psicotecnia.
Por si mesma a psicologia causai é só um a resposta a per­
guntas form uladas artificialmente: porque a vida espiritual
não exige explicação, mas com preensão. Somente a psico­
tecnia po d e trabalhar com essa form ulação “artificial” da
questão, dem onstrando assim que essa formulação é legíti­
ma e necessária. “Portanto, som ente na psicotecnia se mani­
festa o verdadeiro significado da psicologia explicativa e,
por conseguinte, é nela que culmina o sistema das ciências
psicológicas” (H. Münsterberg, 1922, pp. 8-9). É difícil mos­
trar com m aior clareza as forças objetivas das tendências
existentes e as n ão -coincidências entre as convicções do
filósofo e o significado objetivo de seu trabalho: a psicolo­
gia materialista não é natural, diz o idealista, mas eu estou
obrigado a trabalhar precisamente com essa psicologia.
A psicotecnia estã orientada para a ação, para a prática,
e nesse caso o está por princípio e não por outras causas,
com o ocorre com as interpretações e explicações puram ente
teóricas. Por isso, a psicotecnia não pode vacilar na escolha
da psicologia de que necessita (nem mesmo quando a ela­
boram idealistas convictos), só se ocupa da psicologia cau­
sa, objetiva; a psicologia não-causal não desem penha papel
algum na psicotecnia.
Esse princípio de orientação para a ação tem, portanto,
uma importância decisiva em todas as ciências psicotécnicas.
É conscientem ente unilateral. Somente a psicotecnia é uma
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 349

ciência empírica no amplo sentido da palavra. E é inevitavel­


mente uma ciência comparativa. Justam ente por ser uma psi­
cologia fisiológica é tão im portante para essa ciência sua
relação com os pro cesso físicos. T rata-se de uma ciência
experimental. E a fórmula geral é: '‘Partimos de que a única
psicologia de que necessita a psicotecnia deverá ser uma
ciência descritivo-explicativa. Agora podem os acrescentar
que essa psicologia é, além disso, um a ciência em pírica,
comparativa, que utiliza os dados da fisiología e, finalmente,
uma ciência experimental ( ibidem , p. 13). Isso significa que
a psicotecnia representa uma virada na ciência e marca uma
época em sua evolução. Sob esse ponto de vista, Münster­
berg diz que é difícil que a psicologia empírica tenha surgido
antes de meados do século XIX. Inclusive naquelas escolas
que renegavam a metafísica e analisavam os fatos, eram ou­
tros os interesses que regiam as investigações. Enquanto a
psicologia não se transformou em ciência natural foi impos­
sível recorrer [ao experim ento - R.R.]. Mas a introdução do
experimento deu lugar a uma situação paradoxal, inconcebí­
vel nas ciências da natureza: utilizavam-se aparelhos psicoló­
gicos equivalentes ao que podem ler sido a primeira máqui­
na ou o telégrafo nos laboratórios, mas esses aparelhos não
eram utilizados na prática. Esse m ovim ento experim ental
Bâo atingia a educação ou o direito, ou o comércio e a in­
dústria, a vida social ou a medicina. Até mesmo em nossos
dias considera-se uma profanação da investigação seu conta­
to com a prática e se recom enda esperar até que a psicologia
chegue ao auge de seu sistema teórico. Mas a experiência
das ciências naturais diz outra coisa: a medicina e a técnica
ftflo esperaram até que a anatom ia e a física celebrassem
leus últimos triunfos. A vida necessita da psicologia e de sua
prática e em conseqüência desse contato com a vida é que se
: deve esperar um auge na psicologia.
Evidentemente, M ünsterberg não teria sido idealista se
flâo tivesse adm itido seus p rin cíp io s tal com o são e não
tivesse reservado um poder especial aos ilimitados direitos
do Idealismo. Mas sente-se obrigado a trasladar sua discus-
Mo para outra área ao reconhecer a inconsistência do idea-
350 T E O R IA E M É T O D O EM P S IC O L O G IA

lism o n o c a m p o d o cau sai, q u e é a q u e le q u e alim en ta a prá­


tica da p sic o lo g ia . E x p lica a “to le râ n c ia g n o s e o ló g ic a ”, de-
d u z in d o -a d a in te rp re ta ç ã o id ealista d a e ssê n c ia d a ciência,
q u e n ã o p ro c u ra ria d ife re n c ia r c o n c e ito s v e rd a d e iro s e fal­
sos, m as ú teis e in ú te is p a ra re p re s e n ta r o o bjetivo. E a c re d i­
ta q u e p o d e r á se e s ta b e le c e r u m a c e rta tré g u a te m p o rá ria
e n tre o s p sic ó lo g o s assim q u e e ste s a b a n d o n a re m o cam p o
d e b a ta lh a d a s te o ria s p sic o ló g ic a s ( ib id e m ).
T o d a a o b ra d e M ü n ste rb e rg é u m e x e m p lo s u r p r e e n ­
d e n te d o d e s a c o rd o in te rn o e n tre a m eto d o lo g ia, q u e d e te r­
m in a a ciên cia, e a filosofia, q u e d e te rm in a a id eo lo g ia, p re ­
cisa m e n te p o rq u e se trata d e um m e to d ó lo g o e de um filóso­
fo c o n s e q ü e n te até o fim, isto é, d e um p e n sa d o r c o n tra d itó ­
rio até o fim. C o m p re e n d e q u e , s e n d o m ate ria lista n o q u e
ta n g e à p sico lo g ia causai, e idealista q u a n to à teleo ló g ica, se
e n c o n tra num a e sp é c ie d e d u p la c o n ta b ilid a d e q u e o b rig a to ­
ria m e n te tem d e ser p o u c o e sc ru p u lo sa , p o rq u e os n ú m ero s
n u m a p á g in a n ã o c o in c id e m co m os d a o utra: p o rq u e , n o fim
d a s co n tas e a p e s a r d e tu d o , só é possív el um a v erd ad e. Para
ele, n o e n ta n to , n á o é a p ró p ria vida, m as a e la b o ra ç ão lógi­
ca d a vida q u e co n stitu i a v e rd a d e , e esta últim a ela b o ra ç ão
p o d e se r d ife re n te e s e r d e te rm in a d a p o r m uitos p o n to s d e
vista (ib id e m , p. 30). M ü n sterb erg c o m p re e n d e q u e o q u e a
c iê n c ia e m p íric a e x ig e n ã o é a re n ú n c ia a o p o n to d e vista
g n o se o ló g íc o m as um a te o r ia d e te r m in a d a , p o is em d ife re n ­
te s ciên cias se utilizam d ife re n te s p o n to s d e vista g n o seo ló -
gico s. N o in te re sse da p rática, e x p re ssa m o s a v e rd a d e num a
lin g u ag em , n o in te re sse d o e sp írito , em outra.
Se e n tre o s n a tu ra lis ta s e x is te m d iv e rg ê n c ia s em su as
o p in iõ e s, e sta s n ã o se refe re m às p rem issas fu n d a m e n ta is da
c iê n c ia , P ara u m b o tâ n ic o n ã o e x is te a m e n o r d ific u ld a d e
em se p ô r d e a c o rd o com o u tro in v e stig a d o r so b re o c aráter
d o m aterial n o q u a l tra b a lh a . N e n h u m b o tâ n ic o se d e té m na
q u e s tã o relativ a a o q u e significa n a v e rd a d e o falo d e q u e as
p la n ta s e x ista m n o e s p a ç o e n o te m p o , q u e n e la s ex ercem
seu d o m ín io as leis da c a u sa lid a d e . M as a n a tu re z a d o m a te ­
rial p sic o ló g ic o n ã o p e rm ite s e p a ra r o s p rin c íp io s p sico ló g i­
c o s d a s te o ria s filo só ficas d a m esm a m an eira q u e se const*
O SIG NIFICA DO HISTÓ R IC O DA C R IS E DA PSIC O LO G IA 351

gue em outras ciências empíricas. O psicólogo engana-se


totalmente a si mesmo se acreditar que o trabalho de labora­
tório pode levá-lo a resolver as questões fundam entais de
sua ciência: essas questões pertencem à filosofia. Quem não
quiser discutir questões de princípio terá que aceitar a limi­
tação de e sta b e le c e r im plicitam ente com o base de suas
investigações concretas um a ou outra teoria gnoseológiea
{ibidem). Foram precisamente a tolerância gnoseológiea e a
não-renúncia à gnoseologia que levaram M ünsterberg à
idéia de duas psicologias, uma das quais nega a outra, mas
que podem, ambas, ser aceitas por um filósofo. Porque tole­
rância não significa ateísmo; na mesquita é maometano, na
catedral, cristão.
Mas isto pode conduzir a um grave erro, o de pensar
que uma psicologia dupla leva ao reconhecim ento parcial
dos direitos da psicologia causai ou ao de supor que essa
dualidade se traslada para a própria psicologia, que fica
dividida em dois campos; ou ao erro de crer que também
dentro da psicologia causai Münsterberg declara a tolerân­
cia, ainda que não seja absolutam ente assim. Eis o que ele
diz; “Pode existir junto da psicologia causai outra que pense
Ideológicam ente, podem os e devem os tratar na psicologia
Científica a apercepção ou a criação de tarefas, ou os afetos
8 a vontade, ou o pensam ento? Ou essas questões funda­
mentais não interessam ao psicotécnico, já que este sabe
■Que em qualquer caso podemos dominar todos os processos
C funções psíquicas em pregando o idiom a da psicologia
'Causal e que dessa interpretação causal só a psícotecnia
pode se ocupar? ( ibidem, p. 11)''.
Portanto, as duas psicologias nunca se cruzam entre si,
punca se complementam, servem a duas verdades, uma no
‘nteresse da prática, outra no interesse do espírito. Mas a
dupla causalidade está na ideologia de Münsterberg, não na
ideologia. Um materialista aceitará totalmente a psicologia
;usal de M ünsterberg e, no entanto, rejeitará a dualidade
Si ciências; o idealista, pelo contrário, rejeitará a dualidade e
citará por completo a concepção telealógica da psicologia;
próprio Münsterberg declara a tolerância gnoseológiea e
352 T E O R IA E M É T O D O EM P S IC O L O G IA

aceita am bas as ciências, m as trata uma na qualidade de


materialista e a outra na qualidade de idealista. Portanto, as
discussões sobre a dualidade desenvolvem-se fora da psico­
logia causai; não se alinha com nada e não é pessoalmente
membro de ciência alguma.
Esse exem plo ilustrativo de como na ciência o idealis­
mo se vê obrigado a se situar no terreno do m aterialism o
pode ser confirmado em todos os seus pontos tomando-se
qualquer outro pensador.
Por exemplo, W. Stern (que chegou à psicologia objeti­
va a partir da investigação das diferenças, que, por sua vez,
também constitui um dos problemas geradores da nova psi­
cologia) percorreu o mesmo caminho.
Mas nós nâo estudamos os pensadores e sim seu desti­
no, ou seja, os processos objetivos que estão por trás deles e
os conduzem. E esses processos não são descobertos através
da indução, mas da análise. Conforme expressão de Engels,
uma m áquina a vapor prova as leis da transform ação da
energia de forma não m enos concludente do que 100 mil
máquinas (K. Marx e F. Engels, Obras, t. 20, p. 543). Como
fato curioso só temos de acrescentar que os psicólogos rus­
sos que fazem o prólogo à tradução ao russo de Münsterberg
assinalam, entre outros méritos do autor, o de que responde
às aspirações da psicologia do comportamento e às exigên­
cias do enfoque integral do indivíduo que evita a atomizaçào
de sua organização psicofísica. O que os grandes idealistas
fazem, os pequenos repetem como uma farsa.
Podemos resumir. Consideramos que a causa da crise é
ao mesmo tem po sua força motora, que por isso apresenta
não só interesse histórico, mas tam bém desem penha um
papel capital - m etodológico - , jã que não só deu lugar à
crise, mas que continua determ inando seu curso e destino
posteriores. E essa causa situa-se no desenvolvim ento da
psicologia aplicada, que deu lugar à reestruturação de toda
a metodologia da ciência sobre a base do princípio da práti­
ca, ou seja, de sua transform ação em ciência natural. Esse
princípio exerce sua pressão na psicología e a empurra no
sentido de se decom por em duas ciências, o que assegurará
O SIG NIFICA DO H ISTÓ R IC O DA C R IS E DA PSIC O LO G IA 353

no futuro o desenvolvimento correto da psicologia materia­


lista. A prática e a filosofía passam a ocupar o lugar mais im­
portante.
Para m uitos psicólogos a introdução do experim ento
constituiu uma reform a básica da psicologia, e chegaram
inclusive a identificar psicología experimental com psicolo­
gia científica. Prognosticaram que o futuro pertence apenas
¿ psicologia experim ental e viram nesse qualificativo um
importantíssimo princípio metodológico. Mas o experimento
manteve-se em psicologia somente no nível de um simples
jrocedim ento técnico, não foi utilizado baseando-se em
'rincípios rigorosos e deu lugar, como no caso de N. Ach, a
ua própria negação. Atualmente, muitos psicólogos vêem a
Saída na metodologia, na correta estruturação dos princípios
e esperam que a salvação venha da parte contrária. Mas tam­
bém essa via é estéril. Somente a renúncia radical ao empí-
lsmo cego, que persegue as sensações introspectivas dire­
tes e está cindido internam ente em dois; somente a emanci­
pação da introspecçào, sua exclusão de um modo parecido
como foram ignorados os olhos em física; somente a rup-
jra em duas psicologias e a escolha entre ambas de uma só
ferecem a saída para a crise. A unidade dialética da meto-
ologia e da prática corn a psicologia constituí o destino e a
rte de uma dessas psicologías; a completa renúncia à prã-
‘ca e à contem plação das essências ideais são a sorte e o
“Stino da outra; a ruptura total e a separação entre ambas
До a sorte e o destino comum que espera a ambas. Essa
ptura jã se iniciou, está se prod u zin d o e culm inará no
mite imposto pela prática.

13

Por mais claram ente que possam os ter a p re se n ta d o


ssa análise da tese histórica e metodológica da crescente
ptura das duas psicologias como fórmula da dinâmica da
Ue, essa tese continua sendo discutível para muitos. Não é
lg» que nos preocupe: consideram os que as tendências
354 T E O R IA E M É T O D O EM P S IC O L O G IA

que encontramos expressam a realidade porque sua existên­


cia ê o b j e t i v a e n à o depende da concepção de tal ou qual
autor, mas, pelo contrário, é a realidade que determina essas
concepções, já q u e se transformam em concepções p s i c o l ó ­
g i c a s e se incorporam ao processo de desenvolvim ento tia
ciência.
Por isso não devemos estranhar q u e existam duas p o s i ­
ç õ e s no problema: desde o primeiro momento c o n s i d e r a m o s
que nosso objetivo não era tanto investigar a s posições, mas
investigar para onde se dirigiam. É isso que diferencia a análi­
se crítica sobre as concepções de tal ou qual autor da análise
metodológica do problem a em s i . Diante de uma coisa, no
entanto, nào devemos nos manter indiferentes: diante das p r ó ­
p r i a s posições, pois somos precisamente nós que devemos sei
c a p a z e s de explicá-las, de descobrir sua lógica interna e o b j e ­
t i v a , de apresentar claramente toda luta entre posições como
expressão complexa da luta de duas psicologias. Em seu c o n
junto, esta é uma tarefa crítica baseada numa análise real c i o s
fatos, e é preciso dem onstrar, sobre a casuística das mais
im portantes correntes da psicologia, o que pode oferecer,
como via de interpretação, a tese que propomos. D e m o n s t r a r
essa possibilidade, estabelecer o desenvolvimento essencial
dessa análise é parte da tarefa a que nos propusemos aqui.
Parece que o mais simples é analisar os sistemas que se
apresentam abertam ente por parte de uma das duas t e n d ó n
cias ou inclusive estudar a q u e l e s sistemas que as c o n f i m
d e m . Mas é m uito m ais d i f í c i l , e po rtan to mais a t r a e n t e ,
outra tarefa: mostrar sobre os casos concretos desses s i s t c
mas q u a i s deles se situam em um princípio fo ra da luta, fora
dessas duas tendências e procuram a saída numa terceira
via, negando assim, aparentem ente, nossa tese da existência
de duas únicas vias em psicologia. Existe ainda uma terceira
via, dizem: é possível fundir as duas tendências em litígio,
ou subordinar uma à outra, ou suprimi-las e criar uma nova,
ou subordinar as duas a uma terceira etc. Para confirmai
nossa tese é, pois, essencial e enorm emente importante mus
trar para onde conduz essa terceira via, porque vê-lo f a z
com que desmorone.
O SIG N IFICA D O H ISTÓ R IC O DA C R IS E DA PSIC O L O G IA 355

De acordo com o procedim ento que adotam os nesta


ra, veremos como atuam as duas tendências objetivas nos
‘tem as conceituais dos partidários da terceira via: essas
as tendências aparecem em tais sistemas já d o m i n a d a s o u
ntinuam sen d o a s donas da situação? Em sum a, quem
nduz quem, o cavalo ou o cocheiro?
Antes de m ais nada, delim itarem os com precisão as
“ncepçôes e as tendências. Uma concepção pode se identi-
Car a si m esm a com o determ in ad a ten d ên cia e, ap esar
‘e s o , não coincidir com ela. Por exemplo, o behaviorismo
razão quando afirma que a psicologia científica só é
ssível com o ciência natural; no entanto, isso nào quer
e r que a realize enquanto tal, que não comprometa essa
ê i a . Para toda concepção, a tendência é urna tarefa e não
f a t o ; ter consciência da tarefa nào significa saber resol-
d a . D entro de um a tendência podem existir diferentes
ncepçôes e numa concepção podem estar representadas
i diversos graus ambas as tendências.
Partindo dessas claras limitações, podem os passar aos
t e m a s da terceira via. Embora sejam numerosos, a m a i o r i a
deve ou a cegos, que confundem inconscientem ente os
8 caminhos, ou a ecléticos conscientes, que pulam de um
inho para outro, Façamos vista grossa; interessam -nos
princípios e não suas deform ações. Os princípios são
"feamente três: a teoria da Gestalt, o personalismo e a psi-
*0gia marxista. Analisemos, pois, esses três princípios no
ei que nos interessa. As três escolas estão unidas pela
n v i c ç ã o comum de que a psicologia como ciência não é
Idivel nem so b re a base da psicologia em pírica, nem
r e a base do behaviorismo e que existe um terceiro ca-
h o que está por cima destes dois caminhos e que permi-
l e v a r a cabo a psicologia científica sem renunciar a ne­
m a das duas form ulações, mas unindo-as num t o d o .
8 sistema resolve esta tarefa a seu modo e cada um c u m -
Ш Ш alternativa, e todos juntos esgotam todas as p o s s i -
ttdes lógicas da terceira via, se os situarmos nos limites
U m experimento metodológico que montamos para levar
nte nossa análise.
mm щ ! i и И[ Пi ¡ i i и п i i i 11¡i i 11¡ i ¡ ii ¡ 11П и ! i I iíi ¡ И i i i 11ií 11м П i i ! I ¡¡i¡

356 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

A teoria da Gestalt resolve o problem a introduzindo о


conceito fundamental de estrutura (Gestalt), que engloba os
aspectos funcional e descritivo do com portam ento, o que
equivale a dizer que é um conceito psicofísico. Unir esses
dois aspectos no objeto de urna ciencia só é possível se se
encontrar em ambos algo verdadeiram ente com um e se for
precisam ente esse algo com um que se converte em objeto
de estudo. P orque, se se co n sid erar a p sique e o corpo
como duas coisas separadas por um abismo, que não coinci­
dem em propriedade alguma, será materialmente impossível
uma ciência sobre duas coisas distintas. É este o eixo da
m etodologia dessa nova teoria. O princípio da Gestalt é
aplicável de modo uniforme a toda a natureza, não é uma
propriedade privativa da psique; o princípio tem, pois, cará­
ter psicofísico e é aplicável à fisiología, à física e, em geral,
a todas as ciências reais. A psique é apenas parte do com­
portamento, os processos conscientes são processos parciais
de grandes conjuntos (K. Koffka, 1925). M. W ertheimer pre­
cisa ainda mais. A teoria da Gestalt reduz-se ao seguinte:
tudo que tem lugar em um a parte de um conjunto qualquer
é determ inado pelas leis internas da estrutura desse conjun­
to. “A teoria da Gestalt é isso, nem mais nem m enos” (M.
Wertheimer, 1925, p. 7). O psicólogo W. Kõhler (1924) mos­
trou que também em física ocorrem basicamente esses mes­
mos processos. Trata-se de um fato notável do ponto de
vista metodológico e um argum ento decisivo para a teoria da
Gestalt. O princípio de estudo é igual para o físico, o orgâ­
nico e o inorgânico, o que significa que a psicologia se
introduz no contexto das ciências naturais e que a investiga­
ção psicológica é possível dentro de princípios físicos. Em
vez da absurda união do psíquico e do físico como elem en­
tos absolutam ente heterogêneos, a teoria da Gestalt afirma
sua conexão: são parte de um todo. Somente um europeu
de cultura sofisticada po d e separar o psíquico do físico,
como nós fazemos. Quando uma pessoa dança, será que de
um lado se encontra a soma dos movimentos musculares e
do outro a alegria e o entusiasmo? Um e outro estão estrutu­
ralmente próximos. A consciência não contribui com nada
O SIGNIFICADO HISTÓ RICO DA C R ISE DA PSIC O LO G IA 357

basicamente novo que exija outras formas de estudo. Onde


estão os limites entre o materialismo e o idealismo? Existem
teorias psicológicas e inclusive num erosos m anuais que,
apesar de só falarem de elementos da consciência, são mais
insensíveis, mais absurdos, mais inexpressivos, mais m ate­
rialistas que uma árvore que cresce.
Q ual é o significado dessas colocações da Gestalt?
Apenas de que a teoria da Gestalt realiza uma psicologia
materialista, já que básica e metodológicamente constrói de
forma sistemática seu sistema. Aparentemente, isto está em
contradição com a teoria da Gestalt sobre as reações fenomé­
nicas, sobre a introspecção, mas só aparentem ente, porque
para os psicólogos dessa escola a psique é parte fenom énica
do com portam ento. Em suma, a escola da Geátalt escolhe
desde o principio um dos dois caminhos, e não o terceiro.
Podemos formular outras perguntas: a teoria da Gestalt
desenvolve seu enfoque conscientemente? Não tropeça com
contradições em seus critérios? Escolheu corretam ente os
m étodos para desenvolver essa alternativa? Mas não é isso
que nos interessa aqui, e sim o sistema m etodológico dos
princípios. E nessa linha podem os chegar a dizer que tudo
que na teoria da Gestalt não coincide com essa tendência é
a manifestação de outra tendência. Se se descreve a psique
em pregando os mesmos conceitos que a física, estamos na
via da psicologia científico-natural.
É fácil ver q u e na teo ria do p e rso n alism o W. Stern
(1924) desenvolve a alternativa contrária. Em seu desejo de
evitar ambas as vias e escolher uma terceira, ele se situa de
fato em um a das duas, na da psicologia idealista. Stern
parte de que carecemos de Psicologia, mas que temos mui­
tas psicologias. Em seu desejo de manter o objeto da psico­
logia na mira de uma ou outra tendência, introduz o concei­
to de atos e funções psicofisicam ente neutros e chega a
admitir que o psíquico e o físico percorrem as mesmas fases
de desenvolvimento e que essa divisão é um fato secundá­
rio, q u e aparece q u a n d o se ap re se n ta ao sujeito um ou
outro; o fato principal é a existência de uma pessoa psicofi­
sicamente neutra e de seus atos, atos psicofisicamente neu-
358 T E O R IA E M É T O D O EM P S IC O L O G IA

tros. Portanto, a unidade é conseguida introduzindo-se o


conceito de ato neutro psicofísico.
Mas o que na verdade se oculta por trás dessa fórmula?
Stern percorre o caminho inverso, que já conhecemos, ao da
teoria da Gestalt. Para ele, o organismo e inclusive os siste­
mas inorgânicos sáo tam bém individualidades psicofísicas
neutras; as plantas, o sistema solar e o hom em devem ser
interpretados de forma basicam ente igual, mas m ediante a
extensão do princípio teflexológico ao m undo nào-psíquico.
Temos diante de nós uma psicologia teleológica. A terceira
via revelou-se de novo um a das duas vias conhecidas. Mais
uma vez tropeçam os aqui com a metodologia do personalis­
mo: e a psicologia do perso n alism o é a co n stru ção que
idealm ente cabe esperar de acordo com esses princípios
metodológicos. Se de fato o é, é uma outra questão. Na ver­
dade, Stern, assim com o M ünsterberg, vê-se obrigado a
mostrar-se partidário da psicologia causai na área da psico­
logia diferencial, ou seja, apresenta de fato uma concepção
materialista da consciência. De novo ocorre dentro de seu
sistema a luta que já conhecem os e para além da qual quise­
ra se situar sem êxito.
O terceiro sistema que procura se situar na terceira via
é o da psicologia marxista, que hoje está se formando diante
de nossos olhos. A análise dela é difícil, porque não dispõe
ainda de sua metodologia e procura encontrá-la já termina­
da buscando-a em expressões casuais dos fundadores do
marxismo. Mas querer encontrar em obras alheias uma fór­
mula terminada da psique passaria a significar exigir “a ciên­
cia antes da própria ciência”. Podem os dizer sobre essas
tentativas que a heterogeneidade do material, sua incoerên­
cia, a variação que sofre o significado da frase fora do con­
texto, o caráter polêmico da maioria das opiniões - exatas
somente na negação dos pensam entos falsos, mas vazias e
genéricas no sentido da definição positiva das tarefas - não
perm item de m odo algum esperar desses trabalhos outra
coisa além de um monte cie citações mais ou m enos casuais
e sua interpretação escolástica.
O SIGNIFICADO H ISTÓ RICO DA C R IS E DA PSIC O LO G IA 359

Outro defeito formal dessa tentativa é que mistura dois


objetivos em suas investigações: porque uma coisa é estudar
a doutrina marxista do ponto de vista histérico-filosófico e
outra muito diferente é analisar diretam ente os problem as
propostos por esses pensadores. Se juntarmos ambas as tare­
fas teremos uma dupla desvantagem: para resolver o proble­
ma se utiliza um autor, mas o problem a se coloca somente
dentro das m edidas e do plano em que o autor o trata de
passagem e por um motivo completamente distinto: esse tra­
tam ento casual leva a formular os problemas de m odo des­
virtuado, sem abordar seus problemas centrais e sem desen­
volvê-los como sua própria essência exigiria. Além disso, o
tem or à contradição verbal leva a confundir a perspectiva
gnoseológica e a metodológica e assim sucessivamente.
Mas o segundo objetivo - o estudo do autor - tam pou­
co é alcançado por esse caminho, porque o autor se m oder­
niza sem querer, se vê arrastado na discussão atual e, o que
é mais importante, é grosseira m ente deform ado pela siste­
m a tiz a d o arbitrária de citações arrancadas de diferentes
lugares, Poderíamos portanto dizer que: em primeiro lugar,
não se busca lâ de onde procede-, em segundo lugar, não o
que é necessário, e em terceiro, não como é preciso. Não lá
de onde procede, porque nem em Plékhanov nem em qual­
quer outro marxista há o que se busca neles, não dispõem ,
não só de uma m etodologia acabada, mas nem mesmo do
germe dela; esses autores não tinham se colocado esse pro­
blema e suas manifestações sobre o tema têm antes de mais
nada um caráter não-psicológico; carecem inclusive de uma
doutrina gnoseológica sobre a maneira de conhecer o psí­
quico. Porque nào é tão fácil criar nem que seja apenas a
hipótese da relação psicofísica! Plékhanov teria inscrito seu
nome na história da filosofia junto com Spinoza se tivesse
criado uma doutrina psicofísica qualquer. Nào podia fazê-lo
porque Plékhanov nunca se ocupou da psicofisiologia, e a
ciência ainda não podia dar motivos para construir sem e­
lhante hipótese.
De fato, por trás da hipótese de Spinoza se encontra
toda a física de Galileu: m anifesta-se nela, traduzida para
360 T E O R IA E M É TO D O EM P S IC O L O G IA

uma linguagem filosófica, toda a experiência acum ulada


(fundamentalmente a partir das ciências naturais, que foram
as primeiras a conhecer a unidade e a regularidade do mun­
do), E o que essa doutrina podia engendrar em psicologia?
Plékhanov e outros sem pre se interessaram pelo objetivo
local: o objetivo polêmico, em geral explicativo do contex­
to, mas não o pensam ento independente, generalizado, ele­
vado à categoria de doutrina.
Não o que é necessário porque, ao passo que o que se
necessita é de um sistema m etodológico de princípios que
permitam iniciar a investigação, o que realm ente se busca é
a resposta à questão de que se encontra em um hipotético
ponto final científico das investigações coletivas de muitos
anos, Mas se já existisse a resposta não haveria necessida­
de de construir a psicologia marxista. O critério externo da
fórmula que se busca deve ser sua utilidade metodológica;
em vez disso, busca-se uma fórmula de importância onto-
lógica, que diga o mínimo possível, que seja prudente, que
se a b ste n h a de q u a lq u e r reso lu ção . Q u a n d o o q u e nos
falta é uma fórm ula que nos preste serviço nas investiga­
ções se busca, em contrapartida, um a a que tenham os de
servir, um a fórm ula que nos vem os na obrigação de d e ­
m onstrar. Dessa busca só decorrem fórm ulas que p a ra li­
sam m etodológicam ente a investigação, como os conceitos
negativos etc. De m odo que é impossível ver como pode­
mos desenvolver nossa ciência a partir dessas expressões
casuais.
Não como é preciso, porque o pensam ento fica cons­
trangido por um princípio de autoridade; não se estudam
m étodos, mas dogm as. Além do mais, a superposição de
duas fórmulas [frases ou expressões - R.E.] nem representa a
lib ertação do m étodo lógico, nem su p õ e a aceitação do
enfoque crítico e da investigação livre do problema.
Os três vícios devem -se a uma única causa: à incom ­
preensão da tarefa histórica da psicologia e do significado da
crise. A esse tem a dedicam os específicam ente o próxim o
capítulo. Neste procurarem os delimitar melhor a separação
entre as concepções e o sistema, para retirar deste a respon-
O SIG NIFICA DO H ISTÓ RICO DA C R IS E DA PSIC O LO G IA 361

sabilídade pelos pecados das concepções. Para isso devemos


apontar que estamos diante de uma interpretação errônea do
sistema, uma interpretação que não sabe para onde vai.
Para o terceiro sistema que estamos com entando (a psi­
cologia m arxista), a base dessa terceira via em psicologia
encontra-se no conceito de reação que, à diferença do con­
ceito de reflexo e do de fenôm eno psíquico, inclui tanto o
aspecto objetivo quanto o subjetivo no ato integral da rea­
ção. Não obstante, diferentemente da teoria da Gestalt e da
de Stern, a nova teoria renuncia à prem issa m etodológica
que une em um só conceito ambas as vertentes da reação,
Pois, nem a suposição da existência na psique das mesmas
estruturas que na física, nem a da existência na natureza
inorgânica de uma enteléquia ou pessoa, ou seja, nem a via
da teoria da Gestalt nem a de Stern nos permitem alcançar o
objetivo.
A nova teoria aceita, de acordo com Plékhanov, a dou­
trina do paralelismo psicofísico e a completa irredutibilida-
de do psíquico ao físico, redução na qual vê um materialis­
mo grosseiro e vulgar. Mas com o é possível um a ciência
sobre duas categorias de realidade, radical e qualitatívamen-
te heterogêneas e irredutíveis? Como se pode fundi-las num
ato de reação integral? Podemos responder de duas m anei­
ras a essas perguntas. Kornilov advoga uma relação funcio­
nal entre ambas as categorias, ainda que com isso faça pica-
dinho de qualquer possível integridade, porque na relação
funcional podem estar incluídas m agnitudes diferentes de
fato. Não se pode, portanto, investigar em psicologia partin­
do do conceito de reação, porque nesse conceito estão in ­
cluídos dois elem entos funcionalm ente d ep en d en tes que
não podem ser reduzidos a uma unidade. Com isso Kornilov
não resolve o problema psicológico, mas o transfere para o
interior de cada elemento e com isso torna impossível avan­
çar um só passo na investigação, pois estendeu sua interpre­
tação para a totalidade da psicologia. Se nas propostas ante­
riores não estava a relação entre os campos da psique e da
fisiología em nível global, aqui a confusão e, portanto, a
Insolubilidade do problema se acham em cada reação, uma
362 T E O R IA E M É T O D O EM P S IC O L O G IA

a uma. O que nos traz então, metodológicamente, a solução


cie Kornilov para o problema? O fato de resolvê-lo experi­
mentalmente, empíricamente, em cada caso isolado, em vez
de fazê-lo problemáticamente (hipoteticam ente) no começo
da investigação. Infelizmente isso não é possível, como nào
o é um a ciência com dois m étodos distintos de cogniçâo ou
que se sirva de meios de investigação essencialmente distin­
tos. A isso se deve o fato de que K. N. Kornilov não veja na
intm specçâo um simples procedim ento técnico, mas o único
meio adequado para conhecer o psíquico. Está claro que a
integridade metodológica da reação não passa do nível dos
desejos, continua sendo p ia desideria, e que, de fato, a con­
cepção desse autor nos conduz a duas ciências distintas com
dois m étodos distintos, que estudam dois aspectos diferen­
tes da existência.
D evem os com entar tam bém a resposta ao problem a
que dá Yu. V. Frankfurt (1926). Seguindo os passos de G. V.
Plékhanov, esse autor se enreda numa irremediável e inso­
lúvel contradição, ao querer dem onstrar a materialidade da
psique ¡material e ao qu erer vincular na psicologia dois
caminhos não vinculáveis na ciência. A linha de seu raciocí­
nio é a seguinte: os idealistas vêem na matéria a outra es­
sência do espírito; os m aterialistas m ecanícistas vêem no
espírito a outra essência da matéria. O materialismo dialéti­
co conserva os dois termos da antinomia. Para ele a psique
é, entre outras m uitas propriedades: 1) uma propriedade
especial que pode ser reduzida ao movimento; 2) um estado
internet da matéria em movim ento; 3) o lado subjetivo do
processo material. Tentarei colocar em evidência ao longo
desta exposição sistemática das concepções psicológicas o
caráter contraditório e heterogêneo dessas fórmulas e acre­
dito poder mostrar como deforma o significado esse tipo de
comparação de pensam entos arrancados de contextos total­
mente distintos.
O que aqui nos interessa é única e exclusivam ente o
aspecto metodológico do problema: como pode ser possível
construir um a ciência sobre dois tipos de essência radical­
mente diferentes. Não têm nada em comum, não podem ser
O SIG NIFICA DO HISTÓ RICO DA C R IS E DA PSIC O LO G IA 363

unificados, mas talvez exista entre eles uma relação de igual


valor que permita uni-los. Nao, Plékhanov o diz claramente:
o marxismo não reconhece “a possibilidade de explicar ou
descobrir um a classe de fenôm enos servindo-se de represen-
lações ou de conceitos 'desenvolvidos'para explicar ou des­
crever um a classe distinta" (citação em Yu. V. Frankfurt,
1926, p. 51). “A psique - diz Frankfurt - é uma propriedade
especial, descrita ou explicada com a ajuda de seus concei­
tos ou re p re se n ta ç õ e s especiais" (ib id e m ). O utra vez o
m esmo (pp. 52-3), diferentes conceitos. Mas isso significa
que existem duas ciências, uma sobre o com portam ento
como forma peculiar do m ovim ento do indivíduo, a outra
sobre a psique como imobilidade. Frankfurt refere-se justa­
m ente à fisiología, tanto em sentido estrito quanto amplo,
ou seja, incluindo tam bém neste a psique. Mas, será isto
fisiología? Basta desejá-lo para que a ciência surja, de acor­
do com nosso fiat? Que nos m ostrem um só exem plo de
uma ciência realizada sobre dois tipos deferentes de realida­
de, explicados e descritos com a ajuda de distintos concei­
tos, ou que nos mostrem pelo menos a possibilidade de tal
tipo de ciência.
O raciocinio que expom os em seguida reco lh e dois
pontos que mostram categoricamente a impossibilidade de
uma ciência assim.
1) A psique é uma qualidade ou propriedade especial
da matéria, mas a qualidade não é uma parte da coisa, e sim
uma faculdade especial.
A matéria possui muitas qualidades da coisa, um a delas
a psique. Plékhanov compara a relação entre a psique e o
movimento com as relações entre a propriedade de crescer e
de arder com facilidade da árvore, a dureza e o brilho do
gelo. Mas, neste caso, por que só existem dois membros da
antinomia? Deveria haver tantos quantas propriedades, ou
seja, muitos, infinitamente muitos. Evidentemente e em con­
traposição ao que defende Tchernichevski, existe algo em
comum a todas as qualidades, existe um conceito com um
que pode agrupar todas as qualidades da matéria; o brilho e
dureza do gelo e a facilidade de queimar e o crescimento da
364 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

árvore. Caso contrário, existiriam tantas ciências quantas


propriedades: uma sobre o brilho do gelo, outra sobre sua
dureza. O que diz Tchernichevski é simplesmente absurdo
enquanto princípio metodológico. Também dentro da psique
existem diferentes qualidades; a dor se parece tanto à doçura
quanto o brilho à dureza (outra propriedade de novo).
O que ocorre é que Plékhanov opera com o conceito
geral de psique, que incluí um grande número das mais
diversas qualidades e esse conceito geral, que inclui todas
as demais qualidades, é o movimento. Evidentemente, a
relação entre psique e movimento é, essencialmente, dife-
rente da que existe entre as diversas qualidades: o brilho e a
dureza são, no fim das contas, movimento; e a dor e a doçu­
ra são, no fim das contas, psique. A psique não é uma de
muitas propriedades, mas uma de duas. Portanto e em últi­
ma instância, existem dois princípios e não um nem muitos.
Metodológicamente, isso significa que se mantém integral­
mente o dualismo da ciência. Isto fica especialmente claro
se passarmos para nosso segundo ponto.
2) Segundo Plékhanov (1922) a psique não influi no físi­
co. Ao passo que Frankfurt (1926) esclarece que influí em si
mesma de forma mediata, através do fisiológico, que possui
uma eficácia específica. Se unirmos dois triângulos retângu­
los, sua forma dará lugar a uma nova, a um quadrado, e não
são as formas em si que o causam “como um segundo aspec­
to ‘formal’ da união de nossos dois triângulos”. Indiquemos
que existe uma formulação exata da famosa Schattenteorie -
teoria das sombras: quando duas pessoas se dão as mãos,
suas sombras fazem o mesmo. Segundo Frankfurt, as som­
bras “influem” uma na outra através dos corpos.
Mas o problema metodológico não se encontra aí. Terá
Frankfurt consciência de que chegou a uma formulação
monstruosa para um materialista sobre a natureza de nossa
ciência? Porque, na verdade, o que é essa ciência das som­
bras, das formas, das imagens especulares? Frankfurt com­
preende mais ou menos aonde chegou, mas não se dá conta
do que isso significa. Será por acaso possível uma ciência
natural só das formas, uma autêntica ciência que empregue
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 365

a indução, o conceito da causalidade? Somente em geome­


tria estudamos formas abstratas. Com isto se disse a última
palavra: a psicologia é possível em geometria. Mas essa é
precisamente a expressão suprema da psicologia eidética de
Husserl e também assim é a psicologia descritiva de Dilthey,
definida como matemática do espírito, como também a
fenomenología de Tchelpãnov, a psicologia analítica de
Stout, Meinong, Schmidt-Kowazk. 1'odas elas compartilham
com Frankfurt sua estrutura fundamental: todas utilizam a
mesma analogia, que podemos comentar em dois pontos.
1) É preciso estudar a psique, assim como as formas
geométricas, fora da causalidade; dois triângulos não en­
gendram um quadrado, o círculo nada sabe da pirâmide;
nenhuma das relações do mundo real pode ser transposta
para o mundo ideal das formas e das essências psíquicas:
elas só podem ser descritas, analisadas e classificadas, mas
não explicadas. Dilthey considera que a propriedade princi­
pal da psique consiste em que seus componentes não estão
ligados pela lei da causalidade: “As representações não
encerram os fundamentos necessários para transformá-las
em sentimentos; cabe imaginar um ser que possua unica­
mente a faculdade de representação, que no calor do com­
bate fosse um espectador indiferente e abúlico de sua pró­
pria destruição. Os sentimentos não encerram os fundamen­
tos necessários para transformá-los em processos volitivos;
podemos imaginar esse mesmo indivíduo, olhando o com­
bate que se desenvolve a sua volta com sentimento de te­
mor e espanto, ainda que esses sentimentos não se manifes­
tem como movimentos defensivos” (1924, p. 99).
Precisamente porque essas concepções são indetermi­
nistas, não motivadas e carecem de espaço, precisamente
porque são construídas segundo o tipo das abstrações geo­
métricas, Pávlov rejeita sua utilidade para a ciência: não
mantêm relação com a construção material do cérebro. Pre­
cisamente por serem geométricas, dizemos de acordo com
Pávlov que não são úteis para a ciência real.
Mas como é possível uma ciência que una o método geo­
métrico com o científico-indutivo? Dilthey compreendia per-
366 T EO R IA E M É TO D O EM P S IC O L O G IA

feitamente que o materialismo e a psicologia explicativa se


pressupõem mutuamente. “O último é constituído em todos
seus matizes pela psicologia explicativa. Toda teoria que se
fundamente nas relações dos processos físicos e que só neles
inclua os fatos psíquicos é materialismo” ( ibidem, p. 30).
É precisam ente o desejo de defender a independência
do espírito e de todas as ciências do espírito, o m edo de
transpor para esse m undo espiritual a regularidade e a n e­
cessidade que reina na natureza que faz com que se tema a
psicologia descritiva. “Nenhuma (...) das psicologias expli­
cativas pode servir de base para as ciências do espírito” ( ibi­
d e m , p. 64). Isso significa que a ciência do espírito não
pode ser estudada de forma materialista. Se Frankfurt com­
preendesse o que significa de fato sua exigência de uma psi­
cologia concebida como geometria ou seu postulado de que
a conexào específica - a “eficácia” - não é a causalidade
física da psique, com preenderia ao mesmo tem po que sua
renúncia à psicologia explicativa implica nada mais do que
a renúncia aos conceitos de organização em todo o campo
do espírito, e é isso o que se discute. Os idealistas russos
compreendem isso perfeitamente: a tese de Dilthey sobre a
psicologia é para eles uma tese que se opõe à interpretação
mecanicista do processo histórico.
2) O segundo traço da psicologia a que chegou Frank­
furt co n siste no m étodo, na n a tu re za do c o n h ecim en to
dessa ciência. Se não se estabelece uma relação entre a psi­
que e os processos da natureza, se a psique está à margem
da causalidade, se não pode ser estudada de forma indutiva,
observ an d o fatos reais e gen eralizan d o -o s, será preciso
estudá-la pelo método especulativo: captando diretamente a
verdade nessas idéias platônicas ou essências psíquicas. Em
geometria a indução não cabe; o que se dem onstrou para
um triângulo foi demonstrado para todos. Nela não estuda­
mos triângulos reais, mas abstrações ideais - suas proprie­
dades particulares isoladas das coisas, levadas ao limite e
tom adas em forma com pletam ente ideal. Para Husserl, a
fenom enología mantém a mesma relação com a psicologia
que a matemática com as ciências naturais. Mas seria impos-
O SIG NIFICA DO H ISTÓ R IC O DA C R ISE DA PSIC O LO G IA 367

sível realizar a geometria e a psicologia, segundo Frankfurt,


como ciências naturais. Separa-as - do natural - o método.
A indução baseia-se na repetida observação dos fatos e na
generalização obtida experimentalmente; o método analítico
Cfenomenológico) baseia-se na percepção da verdade de
forma direta e de uma só vez. E convém insistirmos sobre
isso: temos de saber com exatidão qual é a ciência com a
qual querem os rom per por com pleto. Propor esse dilema
entre a doutrina da indução e a da análise supõe uma enor­
me incom preensão que é preciso desmascarar.
Tam bém na psicologia causai e nas ciências naturais
emprega-se a análise de forma completamente planificada e
também nelas é freqüente deduzir a partir de um a só obser­
vação um a regularidade geral. De fato, o predom ínio da
indução e da elaboração m atemática junto com a falta de
desenvolvim ento da análise arruinaram em grande parte a
obra de Wundt e de toda a psicologia experimental.
Em que se diferenciam uma análise da outra ou, para
não cair em erro, o m étodo analítico der fenomenológico? Se
conseguirmos saber isto, traçaremos em nosso mapa a últi­
ma linha de separação entre as duas psicologias.
O método de análise nas ciências naturais e na psicolo­
gia causai consiste em estudar um fenômeno, representante
típico de toda uma série e em deduzir a partir dela princípios
aplicáveis a toda a série. Tchelpánov esclarece essa tese com
O exemplo do estudo das propriedades de diferentes gases.
Por exemplo, afirmamos algo sobre as propriedades de todos
os gases, depois de termos realizado o experimento com um
gás qualquer. E chegamos a tal conclusão porque subenten­
demos que o gás que nos serviu para o experimento possui
as propriedades de todos os outros gases. Num raciocínio
desse tipo intervém, ao mesmo tempo, segundo Tchelpánov,
o método indutivo e o analítico.
Estará isto correto, ou seja, é realmente possível mistu­
rar, unir o m étodo geométrico com o científico-natural, ou
só se dá aqui uma mistura de termos, e Tchelpánov emprega
a palavra análise em dois sentidos completamente diferen­
tes? A pergunta é importante demais para não nos determos
368 T E O R IA E M É T O D O E M P S IC O L O G IA

nela: junto com a necessidade de diferenciar as duas psico­


logias está também a necessidade de demarcar o mais pro­
fundam ente e o mais separadam ente possível seus métodos,
já que não podem ter m étodos com uns. E afora o fato de
que nos interessa explicitar o m étodo que d ep o is dessa
dem arcação corresponderá à psicologia descritiva (porque
desejamos conhecê-la a fundo), não queremos ceder nessa
distribuição nem um ápice do território que nos pertence; o
m étodo analítico é importante demais na construção da psi­
cologia social, com o verem os m ais ad ian te, para que o
entreguem os sem luta.
Ao explicar o princípio hegeliano na metodologia m ar­
xista, nossos marxistas afirmam com razão que cada coisa
p o d e ser c o n sid e ra d a com o um m icrocosm o, com o um
m odelo global, em que se reflete todo o mundo. Baseando-
se nisto, dizem que investigar até o fundo, esgotar uma coi­
sa qualquer, um objeto, um fenôm eno significa conhecer o
m undo inteiro em todas as suas conexões. Nesse sentido,
podem os dizer que cada pessoa é em maior ou m enor grau
o modelo da sociedade, ou melhor, da classe a que perten­
ce, já que nela se reflete a totalidade das relações sociais.
Podem os ver que nessa colocação o conhecim ento do
singular é a chave de toda a psicologia social; de modo que
devemos conquistar para a psicologia o direito de conside­
rar o singular, ou seja, o indivíduo, como um microcosmo,
como um tipo, como um exemplo ou m odelo da sociedade,
Deixemos, no entanto, por enquanto este ponto e espere­
mos o m om ento em que ficarem os sós, cara a cara com a
psicologia causal, para poder falar dele, pois antes devemos
prosseguir e esgotar essa tarefa prévia de dissecação.
A partir do exemplo apresentado por Tchelpánov sobre
os gases podem os dar por certo que a análise não nega, em
física, a indução, e que precisam ente graças a ela se torna
possível realizar uma observação que nos proporciona uma
conclusão geral. Mas, temos realmente o direito de ampliar
nossa conclusão de um para todos os gases? Evidentemente,
mas somente porque através de observações indutivas pre­
cedentes elaboram os um conceito geral de gás e estabelece-
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 369

mós o volume e o conteúdo desse conceito. Temos direito,


além disso, porque estudam os o gás em questão, concreto,
não enquanto tal, mas de um ponto de vista distinto, estu­
dando as propriedades gerais do gás que se realizam nele. E
devem os precisam ente essa possibilidade - ou seja, esse
ponto de vista que nos permite separar nesse caso concreto
aquilo que lhe é próprio do que é geral - à análise.
Portanto, a análise não se contrapõe basicamente à in­
dução, mas está perto dela: é sua forma superior, que des­
m ente seu sentido (a iteração). A póia-se na indução e a
guia. É a análise que coloca as questões; que constitui a
base de todo experimento: todo experimento é um a análise
em ação, assim como toda análise é um experimento que se
leva a cabo na mente. Por isso, o correto seria denominar a
análise de m étodo experimental, Na verdade, quando reali­
zo um experimento, estudo A, B, C..., ou seja, uma série de
fenôm enos concretos, e distribuo as conclusões atribuindo-
as a diversos g rupos: a todas as pessoas, às crianças em
idade escolar, à atividade etc. A análise é o que oferece o
volume de propagação das conclusões, isto é, o fato de des­
tacar em A, B, C, os traços com uns ao grupo em questão.
Mas ainda mais: no experim ento observo sempre um sinto­
ma do fenôm eno e isto é mais uma vez trabalho da análise.
Passemos ao m étodo indutivo para explicar a análise:
examinemos uma série de aplicações desse método.
1. P. Pávlov estuda a atividade real da glândula salivar
nos cachorros. O que perm ite denom inar seu experim ento
de estudo da atividade nervosa superior dos animais? Não
deveria ter com provado seus experim entos no cavalo, no
corvo etc., em todos os animais, ou pelo menos na maioria
deles, para ter direito de tirar conclusões? Ou talvez devesse
ter denom inado seu experim ento assim: estudo da salivação
dos cachorros? Mas é que Pávlov não estudou específica­
mente a salivação dos cachorros enquanto tal, e seu experi­
m ento em nada aum entou nossos conhecim entos sobre o
próprio cachorro, nem sobre a salivação em si. No cachorro
não estudou o cachorro, mas o anim al em geral, e na saliva­
ção estudou o reflexo em geral, isto é, em e a partir desse
370 T E O R IA E M É T O D O E M P S IC O L O G IA

animal e desse fenôm eno destacou o que existe em comum


a todos os fenôm enos hom ogêneos. Por isso, suas conclu­
sões referem-se não apenas a todos os animais, mas também
a toda a biologia: o fato estabelecido da secreção de saliva
nos cachorros pavlovianos em resposta a sinais emitidos por
Pãvlov se transforma diretam ente num princípio biológico
geral: a transformação da experiência hereditária em indivi­
dual. E isso foi possível porque Pávlov abstraiu ao máximo
o fenôm eno que estudava de suas condições específicas,
captou de forma genial o comum no individual.
Em que se apoiou para poder ampliar suas conclusões?
Naturalmente, no seguinte: aquilo a que estendemos nossas
conclusões deve se referir aos mesmos elementos, de modo
que nos apoiamos na semelhança previamente estabelecida
(a classe de reflexos hereditários em todos os animais, o sis­
tem a nervoso, etc.). Pávlov descobriu um a lei biológica
geral, ao estudar os cachorros. Estudou no cachorro o que
constituí a base do animal.
Este é o caminho m etodológico de qualquer princípio
explicativo. Na verdade, Pávlov não estendeu suas conclu­
sões, já que o grau de extensão estava dado de antemão na
própria formulação do experimento. E o mesmo caso se dá
com Л. A. Ukhtomskí. Ukhtomski estudou diversos prepara­
dos de rãs; se tivesse estendido suas conclusões a todas as
rãs, tralar-se-ia de uma indução; mas ele fala do dominante
como princípio da psicologia dos heróis de Guerra e paz, e
isto se deve à análise. Ch. Sherrington estudou em vários
cachorros e gatos os reflexos de se coçar e de flexão das
patas traseiras e estabeleceu o princípio da competição pelo
cam po motor, como constituinte básico da personalidade.
Mas nem Ukhtomski nem Sherrington acrescentaram qual­
quer coisa ao estudo das rãs e dos gatos enquanto tal.
Fica claro que não deixa de ser uma tarefa absoluta­
mente concreta definir no nível prático os limites exatos do
princípio geral e com eles o grau de aplicabilidade às dife­
rentes espécies de um determ inado gênero*, pode ser que o
reflexo condicionado tenha seu limite superior no com por­
tamento da criatura humana e o inferior no dos invertebra­
dos, e por baixo e por cima se apresente de uma forma ab-
O S IG N IF IC A D O H IS T Ó R IC O DA C R IS E D A P S IC O L O G IA 371

sólidamente distinta. Dentro desses limites é mais aplicável


ao cachorro do que à galinha e pode-se estabelecer com
precisão em que medida é aplicável a cada um deles. Mas
tudo isto já é induçào: o estudo do específicamente indivi­
dual em relação a um princípio com base na análise, Esse
processo é fracionável até o infinito: podem os estudar a
aplicabilidade do princípio a diferentes raças, idades e sexos
de cachorros; e aincla mais a um cachorro individual e inclu­
sive num dia e hora determinados etc. E o mesmo podemos
fazer a respeito de um domínio ou área mais geral.
Tentei introduzir a aplicação desse método pessoalm en­
te na psicologia consciente1", buscando deduzir as leis da
psicologia da arte m ediante a análise de uma fábula, um
romance e uma tragédia. Para isso, parti da idéia de que as
formas mais desenvolvidas da arte são a chave das formas
atrasadas, como a anatomia do homem o é em relação à dos
macacos; que a tragédia de Shakespeare nos explica os enig­
mas da arte primitiva e não o contrário. Além do mais, faço
afirmações sobre ioda a arte e não comprovo, no entanto,
minhas conclusões na música, na pintura etc. Mais ainda:
não as comprovo sequer em todas ou na maioria das varie­
dades de literatura; tomo somente um romance, urna tragé­
dia. Com que direito? Não estudei as fábulas nem as tragé­
dias e menos ainda uma d a d a fábula ou uma dada tragédia.
Estudei nelas o que constitui a base de toda a arte: a nature­
za e o m ecanism o da reação estética. Apoiei-me nos e le ­
mentos gerais da forma e do material inerentes a toda a ar te.
Escolhi para a análise a fábula, o romance e a tragédia mais
difíceis, precisam ente aqueles em que estão especialm ente
patentes as leis gerais: selecionei os m onstros dentro das
tragédias etc. Essa análise pressupõe fazer abstração dos tra­
ços concretos da fábula como um gênero determinado para
concentrar o esforço na essência da reação estética. Por isso
não digo n a d a sobre a fábula enquanto tal. E o próprio sub­
título: “Análise da reação estética” indica que a finalidade da16

16. P s ik y v lo g u la isk u sstm i. P sico lo g ia d a a r te , 1924. P u b lic a d o em russo


e m 1 9 7 0 . T r a d u ç ã o e s p a n h o la B a rra i, B a r c e lo n a , 1 9 7 0 . (N .R .E .)
372 T E O R IA E M É T O D O E M P S IC O L O G IA

investigação não consiste na exposição sistemática da dou­


trina psicológica da arte em todo o seu volume e amplitude
(todas as variedades da arte, todos os problem as etc.) nem
sequer na investigação indutiva de uma série determ inada
de fatos, mas justam ente na análise dos processos em sua
essência.
Por conseguinte, o m étodo analítico-objetivo está muito
próximo do experimento; sua importância vai mais além der
que inclui seu cam po de observação. Evidentemente, tam­
bém os princípios que explicam a arte nos falam de uma
reação que de fato nunca ocorreu de forma pura, que sem ­
pre se produziu com seu “coeficiente de especificação”.
Descobrir os limites, o grau e as formas de aplicação de
um princípio é o objeto da autêntica investigação. Q ue a
história m ostre que artes em que épocas e que formas caí­
ram em desuso na arte: minha tarefa é mostrar como se pro­
duz o fa to em geral. E essa é a abordagem m etodológica
geral em todas as teorias da arte atual: estudam a essência
das reações, sabendo que estas nunca se dão de forma pura,
ainda que os diversos tipos, normas ou limites formem sem­
pre parte de toda reação concreta e determ inem o caráter
específico desta. Por isso nunca ocorre na arte a reação es­
tética puta: e, de fato, sem pre aparece com binada com as
mais difíceis e variadas formas de ideologia (moral, política
etc,). Inclusive pensam que as m anifestações estéticas não
são mais importantes na arte do que a vaidade na multipli­
cação das espécies: constituiriam apenas a fachada, o Vor-
lust, a isca, ao passo que o significado do ato é outro (S.
Freud e sua escola); outros supõem que histórica e psicolo­
gicamente a arte e a estética são dois círculos secantes, são
uma parte comum e outra diferenciada (Utiz). Tudo isso é
verdade, mas o fato de que o princípio tenha sido abstraído
através de tudo isso em nada altera sua veracidade. Só signi­
fica que a reação estética é assim.; mas uma outra coisa é en­
contrar os limites e o significado da própria reação estética
dentro da arte.
Ê justamente isto que se consegue por meio da abstra­
ção e da análise. Ainda que sua semelhança com o experi-
O S IG N IF IC A D O H IS T Ó R IC O DA C R IS E D A P S IC O L O G IA 373

m entó se limite ao fato de que tam bém neste se dá urna


combinação artificial de fenômenos na qual a ação de urna
lei determ inada deve ser levada a cabo da forma mais pura-,
é um cepo para a natureza, é a análise da ação. Aquela que
realizamos na análise também é uma com binação artificial
de fenôm enos m uito parecida, em bora levada a cabo por
meio da abstração mental. Podemos vê-la com especial cla­
reza quando aplicarnos a análise a estruturas artificiais. Já
que estas não estão orientadas para objetivos científicos,
mas práticos, estão calculadas para que urna determinada lei
psicológica ou física aja. E isso ocorre igualmente nos casos
da máquina, da anedota, da lírica, da mnemotécnica ou de
um d estacam ento m ilitar. Em todos esses casos estam os
diante de experim entos práticos. Por isso a análise desses
casos equivale a um experimento sobre fenóm enos já termi­
nados. Por seu significado a análise está muito próxima da
patología - esse experimento m ontado pela própria nature­
za. A única diferença consiste em que a doença proporciona
a eliminação, a separação dos traços individuais, ao passo
que aquí, pelo contrário, tem lugar a presença, a escolha
dos traços necessários. Mas o resultado é o mesmo. Toda
poesia lírica é um experimento parecido.
A tarefa da análise consiste em descobrir a lei que serve
de base para o experimento natural. Mas inclusive quando a
análise nào opera com máquinas, ou seja, quando não reali­
zamos um experim ento prático, mas operam os com um fe­
nôm eno qualquer, a análise é essencialmente similar ao ex­
perimento. Poderíamos alegar o quanto complicam e afinam
nossa investigação os aparelhos e até que pom o nos tornam
mais razoáveis, mais fortes ou mais perspicazes. Mas tudo
isso também se dá no experimento.
Poder-se-ia pensar que, assim como o experim ento, a
análise deform a a realidade, ou seja, cria condições artifi­
ciais para a observação, por isso a exigência de que o expe­
rimento tenha vitalidade e naturalidade, >Mas se sobre esse
requisito primam as exigências técnicas o experim ento pode
se ver conduzido ao absurdo: não devemos assustar a peça
que buscam os. Por outro lado, a força da análise está na
374 T E O R IA ВM É T O D O E M P S IC O L O G IA

abstração, assim como a do experim ento na artificialidade.


O experim ento de Pãvlov é a melhor mostra disso. Para o
cachorro constitui um experim ento natural - é alimentado
etc mas para o cientista é o auge da artificialidade, pois
conseguimos recolher uma secreção de saliva ao atuar sobre
uma zona determinada: dá-se uma combinação nào-natural.
Do mesmo modo, para analisar uma máquina é melhor des­
truí-la, necessitamos provocar deterioração, quer em nível
mental quer real, do mecanismo, para alcançar, como uma
forma estética, sua deformação.
Se nos lembrarmos do que dissemos anteriormente sobre
o método indireto, poderem os nos dar conta facilmente de
que a análise e o experimento pressupõem o estudo indireto:
através da análise dos estímulos chegamos finalmente a des­
vendar o mecanismo da reação; pela análise do destacamen­
to, interpretamos o movimento dos soldados; pela forma da
fábula, podemos compreender as reações que esta causa.
Em essência é o mesmo que diz Marx quando compara
a força da abstração com o microscópio e com os reagentes
químicos nas ciências naturais. Todo O capital está escrito
seguindo esse método: Marx analisa a “célula" da sociedade
burguesa - a forma do valor da mercadoria - e mostra que é
mais fácil estudar o organismo desenvolvido do que a célu­
la. Nesta lê a estrutura de toda a construção e de todas as
formas econômicas. Para o leigo, diz ele, pode parecer que
sua análise se perde num labirinto de sutilezas. E, com efei­
to, sã o sutilezas; do m esm o tipo que nos apresenta, por
exemplo, a anatomia micrológíca (K. Marx e F. Engels, Obras,
t. 23, p. 6). Se alguém conseguisse descobrir essa célula em
p sicologia - o mecanismo de uma reação teria encontrado
a chave de toda a psicologia.
Por isso, m etodológicam ente, a análise é uma arma
p oten tíssim a. Engels explica aos “om ni-inducionislas” que
“nem com toda a indução do mundo teríamos podido chegar
alguma vez a ver claramente o processo da indução. Para isso,
não haveria outro caminho além de analisar esse processo”
(K. Marx e F. Engels, Obras, t. 20, p. 542). E mais adiante
indica os erros - que podemos encontrar a cada passo - da
O S IG N IF IC A D O H IS T Ó R IC O D A C R IS E D A P S IC O L O G IA 375

indução. Em outro lugar Engels compara ambos os métodos e


toma cia termodinâmica um exemplo de como a indução não
pode pretender ser a forma única e nem mesmo a predom i­
nante das descobertas científicas. "A máquina a vapor provou
do modo mais concludente como se pode, com o calor, obter
movimento mecânico: 100 mil máquinas a vapor não o pro­
vam mais do que um a só (...)” ( ib id e m , p. 543). "A primeira
pessoa que propôs isto seriamente foi Sadi Carnol. Mas não
por indução. Estudou a máquina a vapor, analisou-a e viu
que o processo causador não se apresentava nela de um
modo puro, mas sim encoberto por diversos processos aces­
sórios, descartou essas circunstâncias concomitantes e irrele­
vantes para o processo essencial e construiu uma máquina a
vapor ideal (...), a rigor impossível de construir, como não
pode ser construída, por exemplo, uma linha ou uma superfí­
cie geométrica, mas que, a seu modo, presta o mesmo serviço
que essas abstrações matemáticas, ao apresentar para nós o
processo em sua forma pura, como um processo independen­
te e sem falsear” ( ibidem , , pp. 543-4).
Poderíam os dem onstrar como e onde é aplicável essa
análise como método de investigação em psicologia aplicada,
mas podemos dizer, limitando-nos ainda a uma formulação
geral, que a análise é a aplicação do método empregado e a
avaliação do significado dos fenômenos obtidos. Neste senti­
do, cabe dizer que a análise sem preé própria da investigação,
pois, caso contrário, a indução se transformaria num registro.
Em que se diferencia essa análise da de Tchelpãnov?
Em quatro traços: 1) o método analítico está orientado para
o conhecimento de realidades e persegue o mesmo objetivo
que a indução, ao m étodo fenom enológico não pressupõe
em absoluto a existência da essência para a qual está dirigi­
do: seu objeto pode ser uma pura fantasia, desprovida de
toda existência; 2) o método analítico estuda os fatos e con­
duz a um conhecimento que compartilha a autenticidade de
tais fatos, ao passo que o método fenomenológico consegue
verdades apodíticas, cuja autenticidade tem caráter absoluto
e obrigatório; 3) o m étodo analítico é um caso particular do
conhecim ento experim ental - ou seja, do conhecim ento
376 TEO R IA E M ÉTODO EM PSIC O LO G IA

real, segundo Hume ao passo que o método fenomenoló-


gico é apriorístico, não é uma variedade de experimento ou
de conhecimento real; 4) o método analítico, a partir de
fatos estudados e generalizados anteriormente e através do
estudo de novos fatos individuais, conduz, em última instân­
cia, a novas generalizações relativas e reais, que têm suas
fronteiras, seu grau de aplicação, suas limitações e inclusive
suas exceções, ao passo que o método fenomenológico leva
ao conhecimento, não do geral , mas das idéias, das essên­
cias, O geral se conhece por indução, a essência por institui­
ção. As essências estão à margem do tempo e da realidade e
não se referem a coisas temporárias nem reais.
Como podemos ver, a diferença entre os dois métodos
é tão grande quanto poderia ser. Enquanto um método -
que denominaremos analítico - é o das ciências reais, natu­
rais, o outro - o fenomenológico ou apriorístico - é o das
ciências matemáticas e da ciência pura do espírito.
Por que Tchelpánov denomina seu método de analítico,
afirmando sua identidade com o fenomenológico? Em pri­
meiro lugar, trata-se de um evidente erro metodológico que
o próprio autor procura várias vezes esclarecer. Nesse senti­
do, afirma que o método analítico não é idêntico à análise
habitual que a psicologia aplica, pois nos proporciona co­
nhecimentos de natureza distinta da indução - lembremos
quais eram concretamente essas diferenças, todas elas esta­
belecidas por Tchelpánov. Portanto, estamos falando de duas
variedades de análise, que apenas têm em comum o termo.
O emprego de um termo comum induz à confusão e é preci­
so, portanto, diferenciar nele esses dois significados.
Além disso, fica claro que a análise aplicada no caso do
gás, que Tchelpánov invoca como possível réplica à teoria
que defende o critério individual como principal signo do
método “analítico”, é uma análise científico-natural e não
fenomenológica. O que ocorre, simplesmente, é que o autor
se equivoca quando vê aí uma combinação da análise e da
indução: é somente uma análise, mas não do tipo que ele
pensa. Nenhum dos quatro pontos diferenciadores de am­
bos os métodos deixa lugar a dúvidas nesse sentido: 1) está
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA C R ISE DA PSICOLOG IA 377

orientada para fatos reais e não para “possibilidades ideais”;


2) possui somente veracidade real, e não apodítica; 3) é
aposteriorístico; 4) conduz a generalizações que têm limite e
grau, mas não à contemplação da essência. Em geral, surge
da experiência, da indução, e não da intuição.
Essa absurda união num mesmo experimento dos mé­
todos fenomenológico e indutivo deixa totalmente claro que
estamos diante de um manifesto erro e confusão de termos;
um erro que Tchelpánov mostra em detalhes com seu exem­
plo dos gases: é o mesmo que se tivéssemos demonstrado
em parte o teorema de Pitágoras e em parte tivéssemos
complementado seu estudo com triângulos reais. Um absur­
do. Embora por trás desse erro se oculte um significado: os
psicanalistas nos ensinaram a ser sensíveis e a desconfiar
dos erros. Tchelpánov pertence aos conformistas: vê a duali­
dade da psicologia, mas não compartilha, junto com Husserl,
da separação total entre a psicologia e a fenomenología;
para ele, a psicologia é em parte fenomenología; dentro
dela existem variedades fenomenológicas, que constituem
seu eixo como ciência; mas, ao mesmo tempo, Tchelpánov
tem pena da psicologia experimental, da qual Husserl
zomba depreciativamente; Tchelpánov quer unir o que não
se pode unir, e na sua história dos gases figura pela única
vez o método analítico (fenomenológico) junto com a indu­
ção em física quando estuda os gases reais. E oculta essa
confusão com o termo geral de “analítica”.
A divisão do duplo método analítico em fenomenológi­
co e analítico-indutivo nos permite visualizar os dois pontos
extremos sobre os quais gravita a discrepância entre as duas
psicologias, seus pontos de partida gnoseológícos. Essa
diferenciação entre ambos os extremos tem para mim uma
enorme importância e vejo nela o ápice e o centro de toda
essa análise, e agora me parece tão clara como um simples
arpejo. A fenomenología (psicología descritiva) parte da
diferença radical entre a natureza física e a existência psí­
quica. Enquanto na natureza distinguimos fenômenos e exis­
tências, “Na esfera psíquica não existe diferença entre fenô­
meno e existência” (E. Husserl, 1911, p. 25). Embora a natu-
378 T E O R IA E M É T O D O EM P S IC O L O G IA

reza seja uma existência que se manifesta através de fenô­


menos, não podemos em absoluto afirmar o mesmo a res­
peito da existência psíquica. Aqui, o fenômeno e a existência
coincidem entre si. Seria difícil apresentar uma fórmula mais
precisa do idealismo psicológico. F, esta é a fórmula gnoseo-
lógica do materialismo psicológico: “A diferença entre pen­
samento e realidade não foi apagada em psicologia, inclusi­
ve, no seio do pensamento pode-se distinguir entre o pensa­
mento e o pensamento sobre o próprio pensam ento” (L.
Freuerbach, 1955, p. 216). Nestas duas fórmulas se resume a
essência dessa discussão.
De qualquer forma é preciso saber formular o problema
gnoseológico sobre a psique e também desvendar nele a
diferença entre existência e pensamento, como nos ensina a
fazer o materialismo em sua teoria do conhecimento do
mundo exterior. O reconhecim ento da diferença radical
entre psique e natureza física oculta a identificação em psi­
cologia do fenôm eno com a existência, do espírito com a
matéria, ou seja, oculta a resolução da antinomia mediante
a eliminação no conhecimento psicológico de um membro -
a matéria - no conhecer psicológico: é a quintessência do
idealismo de Husserl. Por outro lado, na distinção em psico­
logia entre o fenômeno e a existência e no reconhecimento
da existência como objeto real de estudo, manifesta-se o
materialismo de Feuerbach.
Comprometo-me a demonstrar diante de todos os filó­
sofos que vocês quiserem - tanto idealistas quanto materia­
listas - que nisso consiste a essência das divergências entre
o idealismo e o materialismo em psicologia, e que somente
as fórmulas de Husserl e Feuerbach constituem a solução
conseqüente do problema nos dois sentidos possíveis; que a
primeira é a fórmula da fenomenología e a segunda a da
psicologia materialista. E me comprometo, partindo dessa
comparação, a cortar a psicologia ainda quente, seccionan-
do-a exatamente em dois corpos estranhos unidos por enga­
no; só isto corresponde à situação objetiva das coisas c
todas as discrepancias, todas as divergências, toda a confu­
são devem-se unicamente à errônea e pouco clara formula­
ção do problema gnoseológico.
O SIG N IFICA D O H ISTO R IC O DA C R IS E DA P S IC O L O G IA 379

Disso se depreende que Frankfurt, ao tomar da psicolo­


gia empírica somente o reconhecimento form al da psique,
toma com ele sua gnoseología e su as conclusões e se vê
obrigado a cair na fenomenología; e que, ao reclamar para
estudar a psique um método que corresponda a sua qualida­
de, exige, sem se dar coma, o método fenomenológico. Sua
concepção é esse materialismo que Hõffding define com
muita razão como “espíritualismo dualista em miniatura”
(1908, p. 64). Precisamente em miniatura, por sua tentativa
de reduzir, de diminuir quantítativamente a eficacia da psi­
que ¡material, de atribuir-lhe 0,001 de influência. Mas essa
solução radical não pode, em absoluto, surgir da formulação
quantitativa da questão. Das duas uma: ou Deus existe ou
não existe; ou as almas dos mortos aparecem ou não apa­
recem; ou os fenômenos espirituais (espiritualistas para J.
Watson) são imateriais ou materiais. Às respostas de que
Deus existe mas é muito pequeno; ou de que as almas dos
mortos não aparecem mas partículas muito pequenas delas
visitam, aínda que de vez em quando, os espíritos; ou de
que a psique ê material mas distinta der resto da matéria, são
anedóticas. V. 1. Lênin escrevia aos construtores de Deus que
, OS diferenciava pouco dos que buscavam Deus17: em geral, o
. que importa é aceitar ou rejeitar o diabólico, porque entre
j iceitar um diabo azul ou amarelo hã muito pouca diferença.
| v • A confusão entre o problema gnoseológico e o antológico
ssultante da transposição para a psicologia de conclusões
estabelecidas, em vez de realizar a partir dela todo o pro-
Icesso de raciocínio, provoca a deformação de um ou de ou-
|jro problema. Quando isto é feito, é comum identificar o
lubjetivo com o psíquico, e a partir dai se conclui que o psí-
|UÍco não pode ser objetivo; também se confunde a cons-
¡lência gnoseológica (como um dos termos da antinomia su-

17. A “busca de Deus” e a “construção cie Deus” (em russo “bogoiska-


tlMvu'* e “bogostroítielstvo”) são duas correntes religioso-filosóficas surgidas
nek> da intelectualidade liberal tussa depois da derrota da revolução de
-1907. Suas tentativas de buscar e construir uma nova religião “socialista”,
i unir a religião com o marxismo não passavam de uma das diversas formas
(donárias ele revisionismo do marxismo. (N.T.E.)
380 T E O R IA E M É T O D O E M PSICOLOGIA

jeito-objeto) com a consciência em pírica, psicológica, e a


partir disto se diz que a consciência não pode ser material e
que supor tal coisa é “m achism o”w. Como resultado dessa
colocação chega-se ao neoplatonism o, dentro do espírito
das essências infalíveis, nas quais a existência coincide com
o fenômeno. É uma fuga do idealismo que leva a mergulhar
nele de cabeça. Jã que se teme mais do que ao fogo identifi­
car a existência com a consciência, chega-se assim em psi­
cologia a identificá-las totalm ente, numa linha husserliana.
Mas, como esclarece muito bem Hõffding, não se deve con­
fundir a relação entre o sujeito e o objeto com a relação en­
tre a alma e o corpo. A diferença entre o espírito e a matéria
é uma diferença que se estabelece no nível do conteúdo de
nosso conhecimento, ao passo que a diferença entre sujeito
e objeto pode ser estabelecida independentem ente do con­
teúdo desse último. Tanto a alma quanto o corpo são para
nós objetivos, mas enquanto os objetos espirituais são por
sua própria essência afins ao sujeito cognoscitivo, o corpo é
para nós somente objeto.
A relação entre o sujeito e o objeto constituí “um pro­
blema da consciência, a relação entre o espírito e matéria é
um problema da realidade” (H. Hõffding, 1908, p. 214).
Distinguir e fundam entar exatam ente ambos os proble­
mas nos limites da psicologia materialista não é uma tarefa
que devamos abordar neste lugar, ainda que devamos indi­
car aqui a possibilidade de duas soluções, assinalar os limi­
tes existentes entre idealism o e m aterialism o e apontar a
existência de uma fórmula materialista. Forque a distinção -
distinção até o fim - é a tarefa da psicologia atual. E se mui­
tos “marxistas” se mostram incapazes de assinalar a diferen­
ça entre sua teoria do conhecim ento psicológico e a teoria
idealista é porque tal diferença não existe. Utilizando uma
metáfora de Spinoza, comparamos nossa ciência com o doen­
te desenganado que busca uma m edicina que não oferece

18. Relativo ao físico E. Mach. Mach propõe uma ciência baseada no


maior número possível de fatos observáveis organizados no menor número
possível de princípios e critica os modelos de conhecimento baseados em
“analogias”. (N.R.E.)
O S IG N IF IC A D O H IS T Ó R IC O D A C R IS E D A P S IC O L O G IA 381

‘peranças: agora vemos que somente o bisturí do cirurgião


de salvar a situação. Espera-nos urna sangrenta operação:
uitos manuais terão de ser picados, assim como o véu do
mplo; muitas frases ficarão sem pé nem cabeça, ao passo
Ue algumas teorias serão mutiladas justamente na altura do
nco. Só nos resta definir o limite, a linha de separação, o
iço que descreverá o futuro bisturí.
E o que afirmamos é que essa linha passa entre a fórmu-
de Husserl e a de Feuerbach. Temos, contudo, o problema
‘e que no marxismo a questão da gnoseologia no terreno da
Sicología nunca foi formulada e, portanto, não se colocou a
refa de distinguir os dois problemas a que se refere Hõffding,
O passo que, de fato, foram os idealistas que conseguiram
Iluminar ao máximo esse problema. Afirmamos também que
>0 ponto de vista de nossos “marxistas” não é outro que uma
Concepção “machista ”em psicologia: a identificação da reali­
dade e da consciência. Mas das duas uma: ou a psique nos é
ipresentada diretamente pela introspecção, e neste caso nos
'Colocamos do lado de Husserl; ou é necessário distinguir
líela sujeito e objeto, realidade e pensam ento, e neste caso
atamos do lado de Feuerbach. Mas, o que significa isto?
Significa que minha alegria e minha consecução introspecti-
VI dessa alegria são coisas distintas.
Entre nós está m uito em voga a frase de Feuerbach: o
~Ue para mim é um ato espiritual, ¡material, supra-sensível,
em si um ato material, sensível (L. Feuerbach, 1955, p. 214).
Costuma-se recorrer a essa frase para, confirmar a psicologia
tubjetiva e, no entanto, essa citação fala contra ela. Porque:
0 que devemos estudar, o próprio ato tal como é, ou o ato
tol como eu o represento? Um materialista, reagindo da mes-
ma maneira que diante da pergunta sobre a objetividade do
Biundo, dirá sem pensar: o ato objetivo em si; enquanto o
Idealista dirá: minha percepção. Mas então um mesmo ato
•Ш diversas situações - ébrio e sóbrio, jovem e adulto, hoje
• ontem - será para mim e para os demais distinto na intros­
pecção. Mais ainda, na introspecção será impossível captar
0 pensam ento ou a com paração, porque se trata de atos in­
conscientes e nossa com preensão introspectiva deles não é
382 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

um conceito funcional, ou seja, não foi deduzido a partir da


experiência objetiva. O que é p reciso estudar, o que se
pode estudar: o próprio pensam ento, ou o pensam ento do
pensamento? Não deve haver sombra de dúvida na resposta
a esta pergunta. Mas existe um a dificuldade que im pede
uma contestação clara. Com esta dificuldade tropeçaram to­
dos os filósofos que tentaram levar a cabo a divisão da psi­
cologia. K. Stumpf, que separou as funções psíquicas dos fe­
nômenos, pergunta: quem, que ciência vai estudar os fenô­
menos aos quais renunciam a física e a psicologia? E admite
o surgimento de uma ciência especial, que não é nem psico­
logia nem física. O utro psicólogo (A. Pfender) renuncia a
reconhecer as sensações como objeto da psicologia, basean­
do-se unicam ente em que a física renuncia a reconhecê-las
como suas. Onde devem estar? A fenom enología de Husserl
é a resposta e essa pergunta.
Entre nós também há quem pergunte: se se estudará o
próprio pensam ento e não o pensam ento sobre o p en sa­
mento, o próprio ato e não o ato que eu me represento, o
objetivo e não o subjetivo, quem, então, vai estudar o verda­
deiram ente subjetivo, a deform ação subjetiva dos objetos?
Em física, procuramos eliminar o subjetivo daquilo que per­
cebemos como objetivo; em psicologia, ao estudar a percep­
ção, voltamos a exigir, mais uma vez, que se separe a per­
cepção em si, tal com o é, do que p arece para cada um.
Quem vai estudar isto duas vezes eliminado, isso que parece
para cada um ?
Mas o problema do que as coisas “parecem ” é também
algo que “parece” um problema. Porque na ciência se trata
de conhecer a verdade, e não o que parece ser a causa de
algo que parece ser, ou seja, os fatos deverão ser tomados tal
como existem, independentem ente de cada um de nós. Esse
parecido é em si uma ilusão (no exemplo mais relevante de
Titchener, as linhas m üllerianas são fisicamente iguais, ao
passo que psicologicamente uma é mais comprida). Parece
que aqui nos encontram os com dois diferentes pontos de
vista da física e da psicologia, embora tal diferença não exis­
ta na realidade-, surge da falta de coincidência entre dois
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 383

processos que existem realmente. Se se conhece a natureza


física de duas linhas e as leis objetivas do olho obteremos a
partir delas e como conclusão a explicação disso que parece
ocorrer: uma ilusão. O estudo do conhecimento subjetivo é
coisa da lógica e da teoria histórica do conhecimento: como
existência, o subjetivo é o resultado de dois processos, em si
mesmos objetivos. A alma nem sempre é sujeito: na intros-
pecção se divide em objeto e sujeito. E podem os nos p er­
guntar: coincidem na introspecção o fenôm eno e a existên­
cia? Basta que apliquemos ao sujeito-objeto psicológico a fór­
mula gnoseológica materialista apresentada por V. I. Lênin
(análoga em G. V. Plékhanov) para que possamos ver o que
ocorre: “(...) a única ‘propriedade’ da matéria, em cujo co­
nhecimento está relacionado filosoficamente o materialismo,
é a propriedade de ser um a realidade objetiva, de existir fora
de nossa consciência” (V. I. Lênin, Obras completas, t. 18, p.
275). “(...) O conceito de matéria (...) não significa gnoseolo-
gicamente nada mais que: uma realidade objetiva que existe
independentem ente da consciência humana e está refletida
por ela” ( ibidem, p. 276). Em outro lugar, V. I. Lênin diz que
isso é, em essência, o princípio do realismo, embora prefira
evitar essa palavra, porque “foi m anuseada por pensadores
inconseqüentes”.
Por conseguinte, essa fórmula fala, ao que tudo indica,
contra nosso ponto de vista: a consciência não pode existir
fora de nossa consciência. Mas, com o indicou com razão
Plékhanov, a autoconsciência é a consciência da consciên­
cia. E a consciência pode existir sem autoconsciência: posso
ver sem saber que vejo. Por isso Pávlov tem razão quando
diz que se pode viver com fenômenos subjetivos, mas que é
Impossível estudá-los.
Nenhum a ciência épossível a não ser separando direta­
mente a sensação do conhecimento: o fato surpreendente é
que somente o psicólogo introspeccionista pensa que a sen­
sação e o conhecimento coincidem. Se a essência e a forma
de m anifestação das coisas coincidissem , diz Marx, toda
Ciência seria desnecessária (K. Marx e F. Engels, Obras, t.
25 parte II, p. 384). Se em psicologia o fenôm eno e a exis-
,
384 T E O R IA E M É T O D O E M P S IC O L O G IA

tência fossem o mesmo, cada hom em seria psicólogo-den­


tista e a ciência seria impossível, só seria possível o registro.
Mas, evidentem ente, um a coisa é viver, sentir, e outra estu­
dar, como diz Pávlov.
Podemos citar a esse respeito um curiosíssimo exemplo
apresentado por E. Titchener. Titchener, conseqüente intros-
pectivista e paralelista, chega à conclusão de que os fenóme­
nos espirituais só podem ser descritos, mas não explicados.
“Mas se tentássemos nos limitar a uma psicologia descritiva
pura”, afirma, “convencer-nos-íamos de que neste caso não
existe a m enor esperança de alcançar uma ciência real do
espírito. A psicologia descritiva seria, em relação à psicologia
científica, o mesmo (...) que é a ideologia que uma criança
cria em seu laboratório infantil em relação à ideologia de um
naturalista experiente (...) Nela não haveria nem unidade
nem conexão (...) Para conseguir que a psicologia seja cien­
tífica não só devemos descrever a alma, mas também expli­
cá-la. D evem os resp o n d e r à perg u n ta ‘por que?’. E aqui
esbarram os em uma dificuldade. Não podem os estudar um
processo espiritual como causa de outro processo espiritual.
E, por outro lado, tam pouco podem os estudar os processos
nervosos com o causa dos processos espirituais. Uma parte
não pode ser a causa de outra” (1924, pp. 32-3).
Essa é, nem mais nem menos, a situação para onde vai
a psicologia descritiva. E o autor acredita encontrar a saida
num puro jogo de palavras: só cabe explicar os fenômenos
espirituais em relação ao corpo. O sistem a nervoso, diz
Titchener, não condiciona a alma, mas a explica. Explica-se
da mesma forma que o mapa de um país explica aspectos
fragm entários das m ontanhas, dos rios e das cidades, que
vemos de maneira fugaz quando passamos junto deles num
veículo. A atitude para com o corpo nada acrescenta aos
fatos da psicologia, a única coisa que faz é colocar em nos­
sas mãos o princípio para explicar essa última.
Se renunciarmos a isto, só existem dois caminhos para
superar a vida psíquica fragmentária: o puram ente descriti­
vo, ou seja, renunciar à explicação; ou admitir a existência
do inconsciente. Ambos os cam inhos foram experim enta-
O S IG N IF IC A D O H IS T Ó R IC O D A C R IS E D A P S IC O L O G IA 385

dos. Mas o primeiro nunca nos conduzirá à psicologia cien­


tífica e o segundo nos levará voluntariamente do campo dos
fatos ao das ficções. Estas são as alternativas da ciência. Isso
está perfeitamente claro. Mas, é possível uma ciência com o
princípio explicativo escolhido por esse autor? É possível
uma ciência sobre aspectos fragm entários das m ontanhas,
dos rios e das cidades, aos quais no exemplo de Titchener se
compara a psique? Além do mais, como e por que o mapa
explica esses aspectos, por que poderíamos explicar as par­
tes do país com a ajuda do m apa deste? O m apa é uma
cópia do país, explica na medida em que nele está refletido
o país, ou seja, que o hom ogêneo explica o homogêneo. A
ciência é im possível sobre tal princípio. De fato, o autor
reduz tudo a um a explicação causai jã que, para ele, tanto a
explicação causai quanto a paralelista estão determ inadas
como indicação das circunstâncias ou condições próximas
em que ocorre o fenôm eno descrito. Mas tam pouco esse
caminho conduz à ciência: “condições próxim as” boas são,
em geologia, o período glacial, em física, a desintegração do
átomo, em astronomia, a formação dos planetas, em biolo­
gia, a evolução. Porque às “condições próxim as” seguem ,
em física, outras “condições próxim as”, e a série causai é
infinita p o r princípio, e nas indicações paralelistas a ques­
tão se limita irremediavelmente a com parar sua explicação
com a do aparecim ento do orvalho em física. Em maus len­
çóis estaria a física se não fosse além de indicar as condi­
ções próximas e as explicações análogas: simplesmente dei­
xaria de existir como ciência.
Portanto, vemos que a psicologia como conhecim ento
tem dois cam inhos: ou o da ciência e neste caso deverá
saber explicar; ou o conhecim ento de visões fragmentárias
e, neste caso, é im possível com o ciência. Porque operar
com a analogia geométrica nos conduz ao erro. A psicologia
geométrica é absolutam ente impossível, porque carece do
traço fundam ental: a abstração perfeita, ainda que opere
com objetos reais. Recordemos a esse respeito a tentativa de
Spinoza de analisar geom etricam ente os vícios e as b o b a ­
gens humanas e de estudar os atos e paixões hum anos exa-
386 TEORIA E METODO EM PSICOLOGIA

tamente da mesma forma que se fossem linhas, superfícies e


corpos. Mas esse caminho não serve a nenhum a outra ciên­
cia, exceto à psicologia descritiva: porque da geometria não
há nele mais do que o estilo verbal e a aparência do irrebatí-
vel das demonstrações, e todo o resto - incluindo a essência
- procede de um modo nâo-científico de pensar.
E. Husserl formula sem rodeios a diferença entre a fe­
nom enología e a matemática: enquanto esta é uma ciência
exata, aquela é descritiva. Nem mais nem menos: para ser
apodítica, à fenom enología nada mais falta do que um p e ­
queno detalhe, a exatidão! Imaginem uma matemática ine­
xata e obterão uma psicologia geométrica.
Em última instância, a questão se resume, como já disse­
mos, a delimitar o problema ontológico e gnoseológico. Em
gnoseologia, aquilo que parece existe, mas afirmar que aqui­
lo é realmente a existência é falso. Em ontologia, o que pare­
ce não existe em absoluto. Ou os fenômenos psíquicos exis­
tem e então são materiais e objetivos, ou não existem e não
po d em ser estu d ad o s. É im possível q u a lq u e r ciência só
sobre o subjetivo, sobre o que parece, sobre fantasmas, sobre
o que não existe. O que não existe não existe em absoluto, e
não vale o “meio não” e o “meio sim”. Temos de enfrentar
isto. Não cabe dizer: no mundo existem coisas reais e irreais
- o irreal não existe. O irreal deve ser explicado como a nâo-
coincidência, como a relação entre duas coisas reais; o subje­
tivo como a conseqüência de dois processos objetivos. O
subjetivo é o aparente, e por isso não existe.
Com entando a diferença entre o subjetivo e o objetivo
em psicologia, L. Feuerbach faz uma observação: “Do mesmo
m odo que, para mim, meu corpo pertence à categoria do
im ponderável, carece de peso, em bora instrinsecam ente e
para os demais seja um corpo pesado” (1955, p. 214).
Nessa frase fica claro que realidade Feuerbach atribuía
ao subjetivo. Afirma expressam ente esse autor: “Em psicolo­
gia vão parar na nossa boca p o m binhos fritos; na nossa
consciência e na nossa sensação vão parar somente conclu­
sões, somente resultados, não premissas, nem processos do
organism o” ( ibidem , p. 213). Mas, é possível uma ciência
sobre resultados sem premissas?
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 387

Stern expressou m uito bem esse aspecto ao afirmar,


seguindo G. T. Fechner, que o psíquico e o físico sâo o con­
vexo e o côncavo: uma linha aparece para nós às vezes de
uma maneira, às vezes de outra. Mas intrínsecamente não é
côncava, nem convexa, mas arredondada, e é precisamente
assim que querem os conhecê-la, in d ep en d en te de como
possa nos parecer.
H. Hõffding o com para tam bém com um mesmo con­
teúdo, expresso em dois idiom as e que não conseguim os
reduzir a uma protolíngua comum. Mas querem os saber o
conteúdo e não o idiom a em que está expresso. Em física,
nos libertamos do idioma para estudar o conteúdo. O mes­
mo teremos de fazer em psicologia.
Comparemos a consciência, como se faz com freqüên­
cia, com o reflexo especular. O objetivo A aparece refletido
no espelho como a. Naturalmente, seria falso dizer que a é
tão real quanto A, em bora seja intrínsecam ente real ainda
que seja de outro modo. A mesa e seu reflexo no espelho
não são igualmente reais, mas o são de maneira diferente.
O reflexo, enquanto reflexo e como imagem da mesa, como
uma segunda m esa no espelho, é irreal, é um espectro.
Mas, será que o reflexo da mesa como refraçào dos raios
luminosos no plano do espelho não é um objeto tão m ate­
rial e real quanto a mesa? Caso contrário, seria um milagre.
Então diríamos: existem coisas (a mesa) e seu espectro (o
reflexo). Mas existem só coisas (a mesa) e o reflexo da luz
no plano, e os espectros são as relações aparentes entre as
coisas. Por isso, é impossível qualquer ciência sobre espec­
tros especulares, mas isso não quer dizer que nunca sejamos
capazes de explicar o reflexo, o espectro: se conhecem os a
coisa e as leis da refraçào da luz, sem pre explicarem os,
predirem os e invocarem os à vontade e m odificarem os o
espectro. É isso que fazem as pessoas que dom inam os
espelhos: não estudam os reflexos especulares, mas o m o­
vimento dos raios luminosos e explicam o reflexo. É impos­
sível uma ciência sobre espectros especulares, mas a teoria
da luz e das coisas que repele e reflete explica totalm ente
os “espectros”.
388 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

O mesmo ocorre em psicologia: o subjetivo, o espectro


em si, deve ser com preendido como a conseqüência, como
o resultado, como o pom binho frito, de dois processos obje­
tivos. O enigma da psique se resolverá como o do espelho,
não estudando espectros, mas estudando duas séries de pro­
cessos objetivos, de cuja integração surgem os espectros
como reflexos aparentes de um no outro. Em si, a aparência
hão existe.
Voltemos de novo ao espelho. Identificar A e a, a mesa
e seu reflexo especular seria idealismo: a é em geral imate-
ríal, som ente A é material, e sua m aterialidade é sinônim o
de sua existência independente de a. Mas seria igualmente
idealismo identificar a com X (com processos que ocorrem
intrínsecamente no espelho). Seria errôneo dizer: a existên­
cia e o p en sam en to não coincidem fo r a do esp elh o , na
natureza, ali A não é a, A é uma coisa, a um espectro; mas a
existência e o pensam ento coincidem no espelho, aqui a é
X, a é um espectro e X tam bém o é. Não se pode dizer: o
reflexo da mesa é a mesa, mas tam pouco se pode dizer que
o reflexo da mesa é a refração dos raios luminosos; a não é
nem A nem X, A e X são processos reais, ao passo que a é um
resultado aparente, isto é, irreal, que surge deles (de A e de
X). A mesa refletida não existe, mas tanto a mesa quanto a
luz existem. O reflexo da mesa não coincide com os proces­
sos reais da luz no espelho, como tam pouco com a própria
mesa.
De outro m odo, teríam os de adm itir a existência no
m undo tanto de m atéria quanto de espectros. Lembremos
que o próprio espelho é um a parte dessa mesma natureza
da q u a l f a z p a rte o objeto existente fo ra do espelho e que
está submetido a todas as suas leis. Porque a pedra angular
do materialismo é a tese de que a consciência e o cérebro
são produto e parte da natureza e refletem o resto da natu­
reza. Ou seja, que a existência objetiva de X e A, indepen-
dentem ente de a, é um axioma da psicologia materialista.
Podemos term inar aqui nosso longo raciocínio. Vemos
que o terceiro caminho, o da psicologia da Gestalt e o do
personalism o, foi em am bos os casos essencialm ente um
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 389

dos que já conhecíamos. Agora veremos que o terceiro ca­


minho, o da denom inada “psicologia marxista”, é uma tenta­
tiva de unir a am bos. Essa tentativa conduz a urna nova
separação dentro do mesmo sistema científico: aquele que
realizar essa união se verá obrigado a seguir, como Münster-
berg, duas trilhas distintas.
Do m esm o m odo que, na lenda, duas árvores unidas
pelas cúpulas separaram em dois o corpo do velho príncipe,
todo sistema científico se verá separado em dois se se unir a
dois troncos diferentes, A psicologia marxista só pode ser
uma ciência natural, mas a via de Frankfurt a conduz à feno­
menología. É verdade que em certo lugar o próprio Frank­
furt se m anifesta conscientem ente contra o fato de que a
psicologia possa ser uma ciência natural (1926). Mas, em
primeiro lugar, confunde erroneam ente as ciências naturais
com as biológicas: a psicologia pode ser uma ciência natu­
ral, sem ser biológica; e, em segundo lugar, utiliza o concei­
to de “natural” em seu sentido maís direto e real, como indi­
cação sobre a natureza orgânica e inorgânica do objeto, e
não em seu sentido metodológico fundamental.
Na literatura russa, V. N. Ivanóvski introduziu o mesmo
uso desse termo, aceito há muito tempo na ciência ocidental.
Diz que é preciso diferenciar rigorosamente da matemática,
e das ciências auténticam ente matemáticas, aquelas outras
ciências que se ocupam de coisas, de objetos e de processos
“reais”, do que “realm ente” existe, é Por isso, essas últimas
Ciencias podem ser chamadas de reais ou naturais (no ampio
sentido desta palavra). Entre nós, o termo “ciências naturais”
costum a ser em pregado num sentido mais estrito, apenas
para denominar as disciplinas que, embora estudem a natu­
reza orgânica e inorgânica, não abarcam a natureza social e
consciente, que com freqüência é distinta da “natura”; algo
assim como “inatural” ou “supernatural”, se não “antinatural”
(V. N. Ivanóvski, 1923). Estou convencido, por minha parte,
de que ampliar o termo “natural” a tudo que existe na reali­
dade é completamente racional.
A possibilidade da psicologia como ciência é, antes de
mais nada, um problema metodológico. Em nenhum a ciên-
390 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

cia existem tantas dificuldades, controvérsias insolúveis,


uniões de questões diversas, como em psicologia. O objeto
da psicologia é o mais difícil que existe no m undo, o que
m enos se deixa estudar; sua m aneira de conhecer terá de
estar cheia de subterfúgios e precauções especiais para pro­
porcionar o que dela se espera.
Em todo meu discurso estou me referindo, justamente,
ao que foi m encionado acima: aos princípios da ciência a
respeito do real. Nesse sentido, Marx, segundo suas pala­
vras, estuda o processo de desenvolvimento das formações
econômicas como um processo histórico-natural.
Nenhuma ciência apresenta tanta diversidade e amplitu­
de de problemas metodológicos, tão sérias dificuldades, tão
insolúveis contradições como a nossa. Por isso, não se pode
dar nela nenhum passo sem realizar m ilhares de cálculos
prévios nem adotar as devidas precauções.
Com isso se reconhece, de um modo ou de outro, que a
crise tende a criar uma metodologia, que se luta por uma psi­
cologia geral. Quem tentar evitar esse problem a e pular a
metodologia para construir de sopetão tal ou qual ciência psi­
cológica particular, cairá inevitavelmente do cavalo ao querer
montar nele. Assim ocorreu com a psicologia da Gestalt, com
Stern. Partindo de princípios universais, aplicáveis igualmente
à física e à psicologia, não se pode chegar dirétamente a uma
investigação psicológica particular: é por isso que acusam
esses psicólogos de conhecerem um predicado aplicável por
igual a todo o universo. Com um conceito que abarque tanto
o sistema solar, uma árvore e o hom em não se pode, como
faz Stern, estudar as diferenças psicológicas das pessoas: para
isso é preciso uma outra escala, outra medida. O problema da
psicologia geral e particular por um lado, e da metodologia e
filosofia por outro, é um problem a de escala: não se pode
medir a estatura de um homem em quilômetros, para isso são
necessários os centímetros. E se vimos que as ciências parti­
culares tendem a sair de seus limites, a lutar por uma medida
comum, para uma escala maior, a filosofia vive, em contra­
partida, a tendência oposta: para se aproximar da ciência, é
preciso estreitar, reduzir a escala, concretizar suas teses.
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 391

As duas tendências - a filosofia e a ciência particular -


conduzem igualmente à metodologia, à ciência geral. Preci­
samente essa idéia de escala, a idéia da ciência geral, é até
agora alheia à “psicologia m arxista”, e esse é seu ponto
fraco. Tenta achar a medida direta dos elementos psicológi­
cos - as reações - em princípios universais-, a lei da transi­
ção da quantidade em qualidade, a do “esquecim ento dos
matizes da cor cinza”, segundo A. Lehman, e a da passagem
da poupança à avareza; a tríade de Hegel e a psicanálise de
Freud. Nota-se aqui claramente a falta de medida, de escala,
de elo interm ediário entre um e outro. Por isso, o m étodo
dialético vai parar, com inevitável fatalidade, na mesma série
que o experim ento, o m étodo comparativo, o dos testes e
das pesquisas. Não existe nele um sentimento de hierarquia
que estabeleça diferenças entre o procedim ento técnico de
investigação e o m étodo de conhecim ento da “natureza da
história e do pensam ento”. Dá-se assim um choque direto
das verdades reais parciais com os princípios universais,
como a tentativa de dirimir a discussão prática de Vagner e
Pávlov sobre o instinto recorrendo à quantidade-qualidade;
como a passagem da dialética à pesquisa; como a crítica da
irradiação sob um ponto de vista gnoseológico; como ope­
rar com qu ilô m etro s on d e são n ecessário s centím etros;
como os veredictos sobre Békhterev e Pávlov a partir da
altura de Hegel. Esse gasto de munição em salvas conduziu
à falsa idéia de uma terceira via. Mas o m étodo dialético não
é único em absoluto: temo-lo em biografia, em história, em
psicologia. É, pois, necessária uma metodologia, ou seja, um
sistema de conceitos intermediários, concretos, adaptados à
escala de conceitos da ciência em questão.
L. Binswanger (1922) recorda as palavras de Brentano
sobre a su rp reen d en te arte da lógica, onde um só passo
adiante tem conseqüências equiparáveis a outros mil passos
adiante na ciência. Essa força da lógica é o que não se quer
reconhecer. Segundo uma expressão feliz, a m etodologia é
a alavanca por meio da qual a filosofia dirige a ciência. As
tentativas de exercer essa direção sem metodologia, de apli­
car diretamente a força sem alavanca no ponto de aplicação
392 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

- desde Hegel até E. Meumann - dá lugar a que a ciência se


torne impossível.
Proponho, pois, esta tese: a análise da crise e da estru­
tura da psicologia testem unha indiscutivelm ente que n e ­
nhum sistema filosófico pode dominar diretam ente a psico­
logia com o ciência sem a ajuda da m etodologia, ou seja,
sem criar uma ciência geral; que a única aplicação legítima
do marxismo em psicologia seria a criação de uma psicolo­
gia geral cujos conceitos se formulem em dependência dire­
ta da dialética geral, porque essa psicologia nada seria além
da dialética da psicologia; toda aplicação do m arxism o à
psicologia por outras vias, ou a partir de outros pressupos­
tos, fora dessa form ulação, conduzirá inevitavelm ente a
construções escolásticas ou verbalistas e a dissolver a dialé­
tica em pesquisas e testes; a raciocinar sobre as coisas ba­
seando-se em seus traços externos, casuais e secundários; à
perda total de todo critério objetivo e a tentar negar todas as
tendências históricas no desenvolvim ento da psicologia; a
uma revolução sim plesm ente terminológica. Em resumo, a
uma tosca deformação do marxismo e da psicologia. Este é
o caminho de Tchelpánov,
A fórmula de Engels de não impor à natureza os princí­
pios dialéticos, mas derivá-los dela (K. Marx e F. Engels,
Obras, t. 20, p. 387) é aqui substituída pela fórmula contrá­
ria: os princípios da dialética se introduzem na psicologia a
partir de fora. Mas o caminho a seguir pelos marxistas deve
ser distinto. A aplicação direta da teoria do m aterialism o
dialético às questões das ciências naturais, e em particular
ao grupo das ciências biológicas ou à psicologia, é impossí­
vel, como o é aplicá-la diretam ente à história ou à sociolo­
gia. Existem entre nós aqueles que pensam que o problema
da “psicologia e o marxismo” limita-se a criar uma psicolo­
gia que responda ao marxismo, mas o problema é, de fato,
muito mais complexo. Da mesma maneira que a história, a
sociologia necessária de uma teoria especial intermediária,
do m aterialism o histórico, q u e esclareça o valor concreto
das leis abstratas do materialismo dialético para o grupo de
fenôm enos de que se ocupa. E igualm ente necessária é a
0 SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 393

ainda não criada, mas inevitável, teoria do marxismo bioló­


gico e do materialismo psicológico, como ciência interm e­
diária, que explique a aplicação concreta dos princípios abs­
tratos do materialismo dialético ao grupo de fenôm enos que
trabalha.
A dialética abarca a natureza, o pensam ento, a história:
é a ciência em geral, universal ao máximo. Essa teoria do
marxismo psicológico ou dialética da psicologia é o que eu
considero psicologia geral.
Para criar essas teorias interm ediárias - ou m etodolo­
gias, ou ciências gerais - será necessário desvendar a essên­
cia do grupo de fenôm enos correspondentes, as leis sobre
suas variações, suas características quantitativas e qualitati­
vas, sua causalidade, criar as categorias e conceitos que lhes
são próprios, criar seu O capital. Basta imaginar que Marx
tivesse operado com os princípios gerais da dialética, como
quantidade, qualidade, tríades, conexão universal, nó, salto
etc., sem as categorias abstratas e históricas de custo, classe,
m ercadoria, renda, capital, força produtiva, base, superes-
t r u t u r a etc., para ver quào monstruoso, quão absurdo seria
supor que fosse possível criar diretam ente qualquer ciência
marxista prescindindo de O capital. A psicologia precisa de
seu O capital - seus conceitos de classe, base, valor etc.
com os quais possa expressar, descrever e estudar seu obje­
to. Descobrir nos dados estatísticos sobre o esquecimento dos
matizes de cor cinza, em Lehmann, a confirmação da lei dos
saltos significa não modificar nada, nem da dialética, nem
da psicología. A idéia da necessidade de uma teoria inter­
mediária, sem a qual é impossível estudar à luz do marxis­
mo fatos particulares isolados, é conhecida há muito, e só
me resta assinalar a coincidência de conclusões de nossa
análise com essa idéia.
Que é a mesma que manifesta V. A. Vichnievski em sua
discussão com I. I. Stepánov (para todos fica claro que o
materialismo histórico não é o materialismo dialético, mas
sua aplicação à história. Por isso, a rigor, som ente as ciên­
cias sociais, que dispõem de sua ciência geral na história do
materialismo, podem ser chamadas de marxismo; outras ciên-
394 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

cias marxistas ainda não existem). “Assim como o m ateria­


lismo histórico não é idêntico ao m aterialism o dialético,
tampouco este último o é à teoria científico-natural específi­
ca, que, sem dúvida, está apenas n ascen d o ” (V. A. Vich-
nievski, 1925, p. 262). Stepánov, por seu lado, que identifica
a interpretação dialético-materialista da natureza com a me­
cânica, considera que essa teoria já está dada, e encontra-se
contida na concepção mecanicista das ciências naturais. O
autor cita como exemplo a discussão em psicologia sobre o
problema da introspecção (1924).
O materialismo dialético é a ciência mais abstrata e sua
aplicação direta às ciências biológicas e à psicologia, como
agora se faz, nada mais é do que um am ontoado de estrutu­
rações lógico-formáis, escolásticas, verbais, sobre categorias
gerais, abstratas, universais, de fenôm enos concretos, cujo
sentido interno e cuja correlação se desconhece. No melhor
dos casos, essa aplicação pode levar a acum ular exemplos e
ilustrações. Mas nada mais. Do ponto de vista do materialis­
mo dialético, dá na mesma que tratemos a água, o vapor, o
gelo ou a economia natural, o feudalismo ou o capitalismo:
estamos diante do mesmo processo. Mas para o materialis­
mo histórico, que riqueza qualitativa se perde com tamanha
generalização!
K. Marx denom inou sua obra O capital de Crítica da
economia política. Essa crítica da economia política é o que
agora tentam deixar de lado. Um “m a n u a l de psicologia
escrito do ponto de vista do m aterialism o dialético” viria
essencialm ente a ser igual a um “m anual de m ineralogía
escrito do ponto de vista da lógica form al”. Porque é evi­
dente que raciocinar logicamente não é algo que distinga o
manual em questão ou toda a mineralogía. Porque a dialéti­
ca não é a lógica, nem mesmo algo mais amplo. Ou um “ma­
nual de sociologia do ponto de vista do materialismo dialéti­
co”, em vez do “m aterialismo histórico”. É preciso, antes,
criar a teoria do materialismo psicológico, e no entretem po
ainda não se pode escrever manuais de psicologia dialética.
Mas, em nosso caso, também no nível do raciocínio críti­
co carecemos de um critério fundamental. A forma com que
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 395

hoje se estabelece, como se se tratasse do escritório de mar­


cas e patentes, se determ inada doutrina concorda com o
marxismo, não vai além do método da “superposição lógica”
ou seja, de contrastar a coincidência de formas, de traços
lógicos (monismo etc.). Mas é preciso saber o que se pode e
o que se deve buscar no marxismo. Não se trata de adaptar o
indivíduo ao sábado, mas o sábado ao indivíduo; o que pre­
cisamos encontrar em nossos autores é uma teoria que ajude
a conhecer a psique, mas de modo algum a solução do pro­
blema da psique, a fórmula que contenha e resuma a totali­
dade da verdade científica. Isto não pode ser encontrado nos
textos de Plékhanov pela simples razão de que não figura
neles. É uma verdade a que não tinham chegado nem Marx,
nem Engels, nem Plékhanov. É por isso que muitas fórmulas
têm um caráter fragmentário, compendiado, preliminar, cujo
valor se limita estritam ente ao contexto. De maneira geral,
podemos dizer que uma fórmula assim não pode ser estabe­
lecida de antemão, antes de se ter estudado cientificamente a
psique, mas será obtida como resultado de um trabalho cien­
tífico secular. O que sim pode ser buscado previamente nos
mestres do m arxism o não é a solução da questão, e nem
mesmo uma hipótese de trabalho (porque estas são obtidas
sobre a base da própria ciência), mas o método de constru­
ção [da hipótese - R.R.]. Não quero receber de lambuja, pes­
cando aqui e ali algumas citações, o que é a psique, o que
desejo é aprender na globalidade do método de Marx como
se constrói a ciência, como enfocar a análise da psique.
Por isso, não só se aplica o marxismo onde não é preci­
so (em manuais, em vez de na psicologia geral), como não
se extrai dele o que é preciso. O que é preciso não são opi­
niões exatas, mas um método: e não o materialismo dialéti­
co, mas o materialismo histórico. O capital deve nos ensinar
muito, porque a verdadeira psicologia social começa depois
de O capital e, no entanto, a psicologia é hoje uma psicolo­
gia anterior a O capital. V. Ya. Struminski tem toda razão
quando chama de estrutura escolástica a própria idéia de
uma psicologia marxista como síntese da tese - o empirismo
- com a antítese - a reflexologia. Uma vez encontrada a via
398 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

Aquí termina nossa análise. Encontramos tudo que pro­


curávamos? De qualquer forma, chegamos às margens. Pre­
paramos o terreno para a investigação no campo da psicolo­
gia e agora, para justificar nosso raciocínio, devemos provar
nossas conclusões na realidade e construir o esquem a da
psicologia geral. Mas antes disso ainda gostaríamos de nos
deter num ponto, que certam ente tem mais valor estilístico
do que de princípios, em bora o acabam ento estilístico de
qualquer idéia não seja totalm ente indiferente para conse­
guir expressá-la em sua totalidade.
Separamos as tarefas do m étodo, e o cam po de nosso
estudo dos princípios de nossa ciência. Ainda temos de es­
tender a dissecação ao próprio nome da psicologia. Porque
os processos de divisão que foram se perfilando na crise
acabaram se refletindo também no destino da denom inação
de nossa ciência. Diversos sistemas quase romperam com a
velha denom inação e utilizaram a sua própria para designar
a totalidade da área de investigação. É freqüente, por exem ­
plo, referir-se ao behaviorísmo como ciência do com porta­
m ento, como sinônim o de toda a psicologia e não de uma
de suas correntes. Da mesma m aneira costuma-se falar da
psicanálise ou da reatologia. Outros sistemas, em contrapar­
tida, rom pem definitivam ente com o velho nome, no qual
vêem traços de origem mitológica. É o caso da reflexologia,
que sublinha sua renúncia às tradições e põe-se a construir
num terreno novo e vazio. Não cabe discutir que tal ponto
de vista encerra algo de verdade, embora haja que conside­
rar a ciência de forma excessivamente mecânica e anti-histó­
rica para não com preender o papel da herança e da tradi­
ção, inclusive nas m udanças. A pesar de tu d o , q u a n d o
Watson exige o rompimento radical com a velha psicologia,
citando a astrologia e a alquimia como exemplos do perigo
que acossa a psicologia de meios-termos, tem de certa forma
razão.
Outros sistemas perm anecem ainda sem nome, como o
de Pávlov que, em bora denom ine às vezes seu cam po de
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 399

ao intitular sua experiência “estudo do comporta­


fisio lo g ía ,
m ento e da atividade nervosa superior”, deixa em aberto a
questão do nome. Por seu lado, Békhterev, desde seus pri­
m eiros trabalhos, se distingue sem rodeios da fisiología-,
para ele, a r e f l e x o l o g i a não é físiologia. Os discípulos de
Pávlov expõem sua doutrina sob o nom e de “ciência do
comportam ento". E, com efeito, duas ciências t ã o distintas
devem ter nomes diferentes. Esta é uma idéia que Münster-
berg há muito expunha: “Evidentemente, ainda é uma ques­
tão sujeita a debate se se deve chamar de psicologia à inter­
pretação intencional da vida interna. Mas realm ente muito-
fala em favor de conservar o nom e de psicologia para a
ciência descritiva e explicativa, excluindo da psicologia a
ciência da interpretação das sensações espirituais e das rela­
ções internas’’ (1922, p. 9).
No entanto, e embora raramente se explicite, este últi­
mo significado continua se colocando sob o nome de psico­
logia. Na maioria das vezes se faz presente através de uma
ou outra influência externa à psicologia, associada a alguns
elem entos da psicologia causai (ibidem ). Mas, como já co­
nhecem os a opinião do m esm o autor de que a confusão
atual em psicologia se deve à mistificação existente, a única
conclusão possível é escolher outro nome para a psicologia
intencional. E, em parte, é o que ocorre. A bertam ente a
fenomenología exclui de seu campo a psicologia, “necessá­
ria para determ inados fins lógicos” (ibidem, p. 10), e em vez
de efetuar uma divisão em duas ciências recorrendo a adjeti­
vos, que induzem a uma enorm e confusão (...), começa a
introduzir diferentes substantivos. Tchelpánov sustenta que
“analítico” e “ f e n o m e n o l ó g i c o ” são nomes distintos para um
mesmo m étodo e que a psicologia analítica abarca, até certo
ponto, a fenom enología, em função do que a discussão de
se a fenomenología é ou não psicologia é, em última instân­
cia, uma questão term inológica. Se acrescentarm os a isto
cjue o au to r considera que esse m étodo analítico e essa
parte da psicologia (a fenom enología) são os principais, o
lógico seria chamar de fenomenología à psicologia analítica.
O próprio Husserl prefere se limitar aos adjetivos para con-
400 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

servar a pureza de sua ciência, e fala de “psicologia eidéti-


c a ”. Mas Bínswanger escreve sem circunloquio: é preciso
diferenciar entre fenomenología pura e fenomenología em­
pírica (“psicologia descritiva”) (1922, p, 135), e vê funda­
mento para isso na introdução pelo próprio Husserl do adje­
tivo “pura”. O sinal de igualdade foi estabelecido da forma
mais m atemática, Se lem brarm os que Lotze considerava a
psicologia como matemática aplicada, que em sua definição
Bergson quase comparava a metafísica experimental com a
psicologia e que Husserl quer ver na fenomenología pura a
doutrina metafísica das essências (Bínswanger, 1922), com­
preenderem os tam bém que a própria psicologia idealista
tem a tradição e a tendência a abandonar um nome com pro­
m etido e caduco. W. Dilthey m anifesta que a psicologia
explicativa remonta à psicologia racional de Wolff, e a des­
critiva à empírica (1924).
É verdade que alguns idealistas são contrários a atribuir
esse nome à psicologia científico-natural. Por exemplo, S. L,
Frank, ao assinalar rotundam ente que sob um mesmo nome
vivem duas ciências distintas, escreve: “Em geral, o proble­
ma não se encontra no caráter mais ou menos científico de
dois diferentes m étodos de uma m esm a ciência, mas sim­
plesm ente na substituição de um a ciência por outra total­
mente diferente que, embora conserve leves traços de afini­
dade com a primeira, se ocupa, em essência, de um objeto
completam ente distinto (...) A psicologia atual se reconhece
a si mesma como ciência natural. Isso significa que a assim
denominada psicologia atual não é em absoluto psico-logia
mas sim fisio -logia (...) A magnífica denom inação de ‘psi­
cologia’ - ciência de espírito - lhe foi ilegalmente subtraída
e é utilizada sem mais nem m enos com o título de outro
cam po científico totalm ente distinto. E a subtração foi tão
absoluta que quando (em psicologia) se pensa hoje na natu­
reza da alma (...) é ocupando-se de uma questão destinada a
perm anecer inominada ou para a qual é preciso pensar uma
denom inação totalm ente n o v a” (1917, p. 3). Mas m esm o
apesar desta deform ação o nome de “psicologia” ainda não
responde em boa parte a sua essência: ocupa-se fundamen-
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 401

talm ente de psicofísica e de psicofísiologia, E S, L. Frank


propõe denom inar a nova ciência de psicologia filosófica
para “‘restabelecer’, aínda que indiretam ente, o auténtico
significado da palavra ‘psicologia’ e devolvê-lo a seu dono
legal depois dessa subtração, já praticam ente irreparável”
(ibidem, p. 19).
Encontramo-nos diante de um fato curioso: tanto a re-
flexologia, que procura rom per com a “alquimia”, quanto a
filosofia, que quer participar do restabelecim ento dos direi­
tos da psicologia no sentido prim itivo, literal e exato da
palavra, p erm anecem ¡nom inadas e am bas buscam uma
nova denominação. Mais curioso ainda é que os motivos das
duas partes são iguais: uma tem e p erder, utilizando esse
nom e, as marcas de sua origem materialista, a outra teme
que tenha perdido seu significado antigo, literal e exato. E
possível - estilísticamente - encontrar uma m elhor expres­
são da dualidade da psicologia atual? Não obstante, o pró­
prio Frank sustenta que o nome subtraído à psicologia cien-
tífico-natural é um termo fundam ental e impossível de me­
lhorar. O que nós supom os é que é precisam ente o ramo
m aterialista que deverá se denom inar psicologia. A favor
disso e contra o radicalism o dos reflexólogos falam duas
im portantes considerações. Em prim eiro lugar, ê precisa­
m ente este o ramo em que culminam todas as tendências
verdadeiram ente científicas das épocas, correntes e autores
que se viram representados na história de nossa ciência e,
portanto, esse ram o ê de fa to e p o r sua própria essência a
psicologia. Em segundo lugar, ao adotar esse nome, a nova psi­
cologia não “subtrai” dele nada, não o deforma, não se vin­
cula às marcas mitológicas que nela se conservaram , mas,
pelo contrário, guarda a lem brança histórica de todo seu
caminho, de seu ponto de partida.
Comecemos pela segunda consideração.
A psicologia, entendida na acepção de Frank, ou seja,
como ciência do espírito, seguindo a velha e exata acepção
dessa palavra, não existe. E o próprio Frank vê-se obrigado a
aceitar isto, quando se convence, com surpresa e quase com
desespero, que é quase impossível encontrar literatura com
402 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

essa orientação. Mas, ainda mais, a psicologia em pírica,


enquanto ciência terminada, tampouco existe, E, na verdade,
o que agora ocorre não é uma m udança, nem mesmo uma
reforma da ciência nem o auge ou a síntese de uma reforma
alheia, mas a autêntica realização da psicologia e a liberta­
ção nessa ciência de tu d o o que nela é capaz de crescer
diante do que não é capaz de fazc-lo. A própria psicologia
em pírica (logo cum prir-se-ào 50 anos durante os quais o
nome dessa ciência não foi utilizado em absoluto, já que cada
escola acrescenta seu adjetivo) está tão morta quanto o casu­
lo abandonado por uma borboleta ou como o ovo deixado
pelo pintínho. “Ao cham ar a psicologia de ciência natural,
queremos significar - diz James - que atualmente representa
sim plesm ente um conjunto de dados empíricos fragm entá­
rios; que seus limites são invariavelmente invadidos pelo cri­
ticismo filosófico e que as raízes dessa psicologia, seus dados
primários, devem ser analisados de um ponto de vista mais
am plo e apresentados sob outro aspecto (...) Nem mesmo
foram estabelecidos com a necessária precisão os principais
elementos e fatores no campo dos fenômenos espirituais. O
que é a psicologia no momento atual? Um monte de materiais
sobre a realidade bruta, uma considerável divergência de opi­
niões, uma série de frágeis tentativas de classificação e de
generalização empíricas de caráter puramente descritivo, um
preconceito profundam ente enraizado que nos leva a supor
que possuím os consciência em abundância, cuja existência
condiciona nossos cérebros. Mas não existe em psicologia
uma só lei, no sentido em que utilizam os essa palavra no
campo dos fenômenos físicos, nem um só princípio do qual
se possam extrair conseqüências por via dedutiva. Desconhe­
cemos inclusive os fatores entre os quais seria possível esta­
belecer relações em forma de atos psíquicos elem entares.
Resumindo, a psicologia ainda não é uma ciência, mas algo
que promete ser ciência no futuro" (1911, p. 407).
James oferece um brilhante inventário do que recebe­
mos da psicologia como herança, a descrição de seus bens e
possessões. Recebemos dela um monte de matérias brutas e
a promessa de se transformar em ciência no futuro.
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 403

O que nos vincula à mitologia através desse nome? A


psicologia, assim como a física antes de Galileu ou a quími­
ca antes de Lavoisier, ainda não é uma ciência que possa
fazer a m enor som bra à futura ciência. Mas não terão, tal­
vez, m udado as circunstâncias de maneira substancial desde
o tem po em q ue Jam es escreveu isto? Em 1923, no VIII
Congresso de psicologia experimental, Ch. Spearman repete
a definição de James e defende que tam pouco agora é a psi­
cologia uma ciência, mas apenas uma esperança de ciência.
É preciso uma grande dose do provincianism o de Nizhri
N ovgorod para apresentar a questão como o fazia Tchel-
pãnov partindo da existência de verdades imutáveis e pro­
vadas, secularm ente reconhecidas p o r todos, que alguns
tentam destruir sem mais nem menos.
A outra consideração é mais séria, porque devemos em
última instância afirmar rotundam ente que a psicologia não
tem dois herdeiros, mas só um, e que situar a discussão
som ente ao nível do nom e não é uma colocação séria: a
segunda psicologia é impossível como ciência. Mas, junto
com Pávlov, apenas podem os declarar que consideram os
desesperada a posição dessa ciência do ponto de vista cientí­
fico. Como verdadeiro cientista Pávlov nâo formula o proble­
ma da existência de um nível psíquico, mas de como estudá-
lo. Diz: “O que deve fazer o fisiólogo com os fenômenos psí­
quicos? Não pode deixar de prestar atenção a eles, visto que
ao determ inar o trabalho de conjunto do órgão estão muito
estreitamente ligados aos fenôm enos fisiológicos. E se o fisió­
logo decide estudá-los, coloca-se-lhe a questão: Como?”
(1950, p. 59). Por conseguinte, ao desenvolver nossa análise
de dissecação conceituai nâo renunciamos a nenhum fe n ô ­
meno em benefício de uma das parles dissecadas. Em nosso
caminho estudaremos tudo que existe e explicaremos como
se manifesta para nós. “Apesar dos milhares de anos em que
a hum anidade tem estudado os fatos psicológicos (...) dos
milhões de páginas dedicadas a representar o mundo interno
no homem, carecemos até agora de resultados desse traba­
lho: das leis da vida espiritual do homem ( ibidem, p. 105).
O que restar depois dessa dissecação irá parar no campo
da arte: autores de romances é como Frank continua a cha-
404 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

mar os professores de psicologia. Para Dilthey, a tarefa da


psicologia consiste em caçar nas redes de suas descrições
científicas o que se oculta em Lear, Hamlet e Macbeth, já que
v ê neles “mais psicologia que em todos os manuais de p s i c o ­
l o g i a juntos” (1924, p. 19). Mas Stern ria em surdina da psi­
cologia obtida dos romances; dizia que ê impossível orde­
nhar uma vaca pintada. E, no entanto, desmentindo seu pen­
sam ento e com o que dando razão a Dilthey, a psicologia
descritiva ad en tra, de fato, cada vez mais no m undo do
rom ance. No prim eiro congresso de psicologia individual,
como se autodenom ina essa segunda psicologia, f o i apresen­
tado um informe de Oppenheim em que pescava nas redes
dos conceitos o que Shakespeare oferecera em imagens: exa­
tam ente o que desejava Dilthey. Mas a segunda psicologia
acabará em matemática, chame-se como se chamar. É preci­
sam ente essa certeza na im possibilidade que esse tipo de
saber tem de ser ciência que condiciona nossa escolha.
O nome de nossa ciência tem, portanto, u m só herdei­
ro. Mas será por acaso possível que renuncie a sua herança?
Em absoluto. Somos dialéticos e não pensam os, de m odo
algum , que o cam inho de desenvolvim ento das ciências
ande em linha reta. E se nele hã ziguezagues, retrocessos
ou m udanças de direção com preendem os seu significado
histórico e os consideram os (assim com o o capitalism o é
uma etapa inevitável em direção ao socialismo) como elos
necessários de nossa corrente, etapas inevitáveis de nosso
trajeto. Valorizam os até aqui cada um dos passos rum o à
verdade que nossa ciência tenha podido dar, pois não p en­
samos que esta tenha começado em nós; não renunciamos
nem cedem os a ninguém a idéia de associação de Aris­
tóteles, nem a doutrina das ilusões subjetivas das sen sa­
ções, também dele e dos céticos, nem a idéia de causalida­
de clej. S. M i l l , nem a idéia da química psicológica de J. S.
M i l l , nem o “materialismo refinado” de H. Spencer, em que
Dilthey via “não uma simples base, mas um perigo” (W. Dil­
they, 1924). Em uma palavra, a totalidade da linha m ateria­
lista em psicologia, que tão cuidadosam ente rejeitam os
idealistas. Sabemos que têm razão em uma coisa: “O mate-
O SIGNIFICADO H ISTÓ RICO DA C R IS E DA PSIC O L O G IA 405

tialismo oculto da psicologia descritiva (...) influiu de forma


corruptora na economia política, no direito penal, na do u ­
trina do Estado” ( ibidem, p, 30).
A idéia da psico lo g ia dinâm ica e m atem ática de
Herbart, dos trabalhos de Fechner e Helmholtz, a concepção
de H. Taine sobre a natureza motora da psique, assim como
também a doutrina de Binet sobre o psiquismo postural ou a
mímica interna, a teoria motora de Ribot, a teoria periférica
das emoções de James-Lange, inclusive a doutrina da escola
de W urtzburgo sobre o pen sam en to ou so b re a atenção
como atividade. Em suma, cada passo rumo à verdade em
nossa ciência nos pertence. Porque de dois caminhos fize­
mos a escolha de um, não porque gostamos, mas porque o
consideramos o verdadeiro.
Por conseguinte, nessa via se recolhe em sua totalidade
o que a psicologia encerrava como ciência: desde a tentativa
de enfocar científicam ente a alma até a tentativa do pensa­
mento livre de dominar a psique, por mais que esta (a psi­
que) se veja obscurecida e paralisada pela m itologia, ou
seja, até a própria co n cep ção da estrutura c ie n tífic a da
alma, essa via abarca por completo o caminho futuro da psi­
cologia, porque a ciência é o caminho da verdade ainda que
caminhe através de erros. Porque aí encontram os justamente
o trajeto que nos conduz até nossa ciência: na própria luta,
na superação dos erros, nas dificuldades incríveis, no en-
frentam ento sobre-hum ano com preconceitos m ilenares.
Não querem os ser simplistas sem pai nem mãe; não padece­
mos de mania de grandeza pensando que a história começa
em nós nem queremos receber desta um nome limpo e tri­
vial; queremos um nome no qual tenha assentado a poeira
dos séculos. É precisam ente nisto que encontram os nosso
direito histórico, o sinal de nosso papel histórico, a preten­
são de realizar a psicologia com o ciência. D evem os nos
Considerar unidos e relacionados com o que é anterior a
nós, porque inclusive quando o estamos negando estam os
nos apoiando nele.
Vocês podem dizer: em sentido estrito esse nom e não
pode se aplicar hoje a nossa ciência, pois muda de significa-
406 T E O R IA E M ÉTO D O EM P S IC O L O G IA

do em cada época, Mas digam um nome, uma palavra, que


não tenha modificado seu significado. Será que cometemos
um erro lógico quando falamos de tinta azul ou de arte de
verão? Pelo contrário, somos fiéis a outra lógica, à da lingua­
gem. Se o geómetra continua denom inando sua ciência com
seu nom e que significa “agrim ensura”, o psicólogo pode
denominar a sua com um nome que em outros tempos signi­
ficou “doutrina da alm a”. Se hoje o conceito de agrimensura
é reduzido demais para a geometria, em outros tempos signi­
ficou um avanço decisivo, ao qual toda a geometria deve sua
existência; e se hoje a idéia da alma nos parece reacionária,
em outro tem po foi a primeira hipótese científica do homem
antigo, uma enorm e conquista do pensam ento, à qual hoje
devemos a existência de nossa ciência. Certamente os ani­
mais não possuem a idéia de alma e carecem de psicologia.
Historicamente, compreende-se que a psicologia como ciên­
cia devia começar pela idéia de alma e não podem os consi­
derar isso como fruto da ignorância e do erro, assim como
não consideramos a escravidão como resultado do mau cará­
ter. Sabemos que a ciência como caminho da verdade inclui
obrigatoriamente, e na qualidade de momentos necessários,
equívocos, falhas, preconceitos. O essencial para a ciência
não é o fato de que se produzam , mas que, ainda que se
trate de erros, conduzem â verdade, que são superáveis. Por
isso aceitamos o nome de nossa ciência com todas as marcas
que deixaram nela os erros seculares, com o sinal vivo de
superação, como cicatrizes de feridas sofridas na luta, como
testem unho vivo da verdade, que abre caminho através do
incrível enfrentam ento com a falsidade.
Em essência, é assim que procedem todas as ciências.
Será que os construtores do futuro começam todos desde os
alicerces, será que eles não são os que arrematam e herdam
tudo o que existe de verdadeiro na experiência hum ana,
será que carecem de aliados e antecessores no passado?
Que nos indiquem uma só palavra, um só nom e científico
que possa ser aplicado em sentido literal. Será que a m ate­
mática, a filosofia, a dialética, a metafísica significam o mes­
mo que em outros tempos? Q ue não nos digam que dois
O SIG NIFICA DO HISTÓ RICO DA C R ISE DA PS IC O L O G IA 407

ramos de conhecimento sobre um mesmo objeto devem ter


obrigatoriam ente o mesmo nome. Que recordem a lógica e
a psicologia do pensam ento. As ciências não se dosam e
denom inam pelo objeto de estudo, mas pelos princípios e
fins do mesmo. Por acaso o marxismo se nega, em filosofia,
a reconhecer seus antecessores? Somente as mentes anti-his­
tóricas e carentes de espírito criador se dedicam a inventar
novos nomes e ciências, mas essa atitude não combina com
o marxismo. Tchelpánov alega, diante desse problema, que
na época da Revolução Francesa o term o “psicologia” foi
substituído pelo de “ideologia”, já que naquela época a psi­
cologia era a ciência da alma; a ideologia, em contrapartida,
era considerada uma parte da zoologia e se dividia em fisio­
lógica e racional. Isso é verdade, mas o incalculável dano
que o emprego ami-histórico dessa palavra ocasionou pode
ser confirmado ao ver quão difícil se tornou decifrar, ainda
hoje, determ inadas passagens sobre a ideologia nos textos
de Marx, que ambigüidade encerra esse termo, que permite
a “ investigadores com Tchelpánov afirmarem que para Marx
ideologia significa psicologia. Nessa reforma terminológica
está, em parte, a causa de que o papel e a importância da
velha psicologia tenham sido subestim ados na história de
nossa ciência. E, finalmente, nota-se uma autêntica ruptura
com seus v erd ad eiro s an tecesso res, um a ru p tu ra com a
linha viva da unidade: Tchelpánov, que havia declarado que
a psicologia nada tinha em com um com a fisiología, jura
agora, pela Grande Revolução, que a psicologia sempre foi
fisiológica e que “a psicologia científica atual é obra da psi­
cologia da Revolução Francesa (G. 1. Tchelpánov, 1924, p.
27). Somente uma ignorância ilimitada ou o fato de contar
de forma calculada com a ignorância alheia podem ter dita­
do essas linhas. Q ue psicologia a tu a l? A de Mill ou a de
Spencer, a de Bain e Ribot? Então é verdade. Mas e a de
Dilthey e Husserl, Bergson e James, M ünsterberg e Stout,
Meinong e Lipps, Frank e Tchelpánov? É possível maior fal­
sidade? Porque todos esses construtores da nova psicologia
estabeleceram como hose da ciência outro sistema, contrário
ao de Mill e Spencer, Bain e Ribot, e zombaram destes mes-
408 T E O R IA E M É T O D O E M P S IC O L O G IA

mos nomes nos quais se esconde Tchelpánov, chamando-os


de “cachorro m orto”. Mas Tchelpánov esconde-se em nomes
alheios e contrários a ele, aproveitando-se da ambigüidade
do termo “psicologia atual”. Sim, na psicologia atual existe
uma linha que pode ser considerada obra da psicologia revo­
lucionária, mas Tchelpánov limitou-se ao longo de toda sua
vida (e agora também) a tentar acuar essa linha na parte mais
escura da ciência e separá-la da psicologia.
Repitam os mais uma vez: quão perigoso é um nom e
geral e quão anti-historicamente se comportavam os psicó­
logos da França que o traíram!
Esse nome foi inicialmente introduzido por Goclenius,
professor de Marburgo, em 1590, e foi adotado por seu dis­
cípulo Kasmann em 1594, e não por C. Wolff, em m eados
do século XVIII, nem tam pouco o em pregou pela primeira
vez M elanchton, com o se costum a p en sar erroneam ente.
Ivanovski utilizou-o como nome para denom inar a parte da
antropologia que, junto com a som atología, constitui uma
ciência. A atribuição desse termo a Melanchton baseia-se no
prólogo do editor ao tomo XIII de suas obras, no qual ele é
apontado erroneam ente como primeiro autor de uma psico­
logia. Langue, autor da psicologia sem alma, conservou o
nom e com todo direito. Mas a psicologia não se chama dou­
trina da alma? - pergunta. Como se pode imaginar uma ciên­
cia que põe em dúvida se dispõe ou não de um objeto para
estudar? Mas Langue considerava pedante e pouco prático
renunciar à denom inação tradicional pelo fato de ter variado
o objeto da ciência e convidava a aceitar sem vacilar a psi­
cologia sem alma.
É precisam ente a partir da reforma de Langue que co­
meça a interminável confusão com o nome de psicologia. O
nome em si deixou de significar algo e foi necessário acres­
centar a ele cada vez:, “sem alm a”, “sem nenhum a metafísi­
ca”, “baseada na experiência”, de um “ponto de vista em pí­
rico” e assim indefinidam ente. A psicologia sim plesm ente
deixou de existir como expressão de uma só palavra. Aí está
o erro de Langue: ao adotar o nome velho, não o dominou
por completo, não o delimitou, não o separou da tradição. Já
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 409

que a psicologia carece de alma, o que a tem já não é psico­


logia, mas outra coisa. Mas aqui, naturalm ente, faltou-lhe
nao boa vontade, mas forças e tem po; faltou m aturação а
sua análise.
Essa questão terminológica ainda contínua de pé e faz
parte do problema da divisão das duas ciências.
Como denom inarem os a psicologia científico-natural?
Chamam-na agora, com freqüência, de objetiva, nova, mar­
xista, científica, ciência do com portam ento. É claro que
manteremos para ela o nom e de psicologia. Mas, qual? Co­
mo vamos diferenciá-la de outro sistema de conhecimentos
que utilize esse mesmo nome? É suficiente enum erar uma
pequena parte das definições que atualm ente se aplicam à
psicologia para ver que carecem de unidade lógica em seu
fundamento: certas vezes, o termo significa a escola do be-
haviorísmo; outras, a psicologia da Gestalt; outras, o método
(da psicologia experimental, da psicanálise); outras, o prin­
cípio de construção (eidética, analítica, descritiva, em píri­
ca); outras, o objeto da ciência (funcional, estrutural, atual,
intencional); outras, o cam po da investigação ( In d iv id u a l
psychologies); outras, a ideologia (personalismo, marxismo,
esplritualism o, m aterialismo); outras, muitas outras coisas
(subjetiva-objetiva, construtiva-reconstrutiva, fisiológica, bio­
lógica, associativa, dialética e mais e mais). Fala-se freqüen­
tem ente de histórica e compreensiva, explicativa e intuitiva,
científica (Blonski) e “científica” (no sentido de cientifico-
natural entre os idealistas).
O que significa depois disso tudo a palavra “psicolo­
gia”? “Logo chegará o tem po - diz Stout - em que ninguém
pensará em escrever um livro sobre psicologia em geral,
com o nâo se pensa em escrever sobre matemática em ge­
ra l” (1923, p. 3). Todos os term os são instáveis, n âo se
excluem logicamente entre si, não estão terminologizados,
são confusos e obscuros, polissem ânticos, causais, e indi­
cam traços secundários, o que nâo só não ajuda a se orien­
tar, mas nos confunde mais ainda. Wundt chamou sua psi­
cologia de fisiología e logo se arrependeu, considerando-o
um erro e passando a opinar que essa mesma obra deveria
410 T E O R IA E M É T O D O EM P S IC O L O G IA

ser denominada de experimental. Esta é a melhor ilustração


do p o u co que significam to d o s esses term os. Para uns,
“experim ental” é sinônimo de “científica”, para outros é ape­
nas a denom inação do m étodo. A pontarem os som ente os
adjetivos que mais freqüentem ente se aplicam à psicologia
estudada sob uma perspectiva marxista.
Não considero conveniente, por exemplo, chamá-la de
objetiva. Tchelpánov mostra com razão que esse termo é uti­
lizado em psicologia pela ciência estrangeira nas mais diver­
sas acepções e tam bém entre nós conseguiu dar lugar a
numerosas ambigüidades e contribuiu para confundir o pro­
blema gnoseológico e metodológico do espírito e da matéria.
Esse adjetivo serviu para confundir o método como procedi­
mento técnico e como modo de cognição, o que teve como
conseqüência a interpretação do método dialético no mesmo
nível do das pesquisas, como igualmente objetivos. Também
permitiu que se dê por estabelecido que nas ciências naturais
se tenha suprimido toda utilização de índices e de distinções
subjetivas, de conceitos que em sua gênese foram subjetivos.
Com freqüência, o termo objetivo foi vulgarizado e equipara­
do a verdadeiro e o subjetivo a falso, sob a influência da utili­
zação vulgar da palavra. Além disso, o adjetivo “objetiva” não
expressa em geral o cerne da questão: só reflete a essência da
reforma em sentido condicional e em parte. Finalmente, uma
psicologia que pretende constituir uma doutrina do subjetivo
ou queira através de determ inadas vias explicar também o
subjetivo, não deve se denominar erroneamente de objetiva.
Também seria errôneo denom inar nossa ciência de psi­
cologia do comportamento, porque esse novo termo, assim
com o o anterior, não consegue nos separar de toda uma
série de correntes e, portanto, não alcança seu objetivo.
Além disso é falso porque também a nova psicologia quer
conhecer a psique. O adjetivo “do com portam ento” tem um
matiz caseiro, pequeno-burguês, que o tornou atraente para
os norte-americanos. Por exemplo, quando se coloca a tare­
fa de criar uma ciência J. Watson diz: “a idéia da personali­
dade na ciência do com portam ento e no sentido com um ”
(I926, p. 355), identificando assim a ambas, para que o “ho-
O S IG N IF IC A D O H IS T Ó R IC O D A C R IS E D A P S IC O L O G IA 411

mem com um ”, ao “tratar da ciência do comportamento, não


perceba mudança no m étodo ou qualquer variação no obje­
to” ( ibidem , cap. IX). Para uma ciência assim, uma ciência
que entre seus problem as se ocupe tam bém do seguinte:
“Por que Jorge Smith abandonou sua m ulher” ( ibidem, p. 5);
uma ciência que comece descrevendo os m étodos da vida
cotidiana, que torne impossível estabelecer distinções entre
eles e os científicos, e para a qual a única diferença consista
em que a ciência do com portam ento também estuda casos
que são irrelevantes para a vida cotidiana, que não interes­
sam ao senso comum, para essa ciência, õ termo “com porta­
m ento” é o mais adequado. Mas se chegarmos à convicção,
com o m ostrarem os mais adiante, de que tal colocação é
logicam ente inconsistente e que não oferece um critério
que, por exemplo, permita estabelecer por que o peristaltis-
mo dos intestinos, a secreção da urina ou as inflam ações
devem ser excluídas da ciência; se nos dermos conta de que
é um termo polissemântico e não está terminologizado e que
para Blonski e Pávlov, para Watson e Koffka significa coisas
totalmente distintas, o deixaremos de lado sem hesitar.
Além do mais, eu tam bém considerava equivocada a
definição de psicologia como marxista. Já disse que não é
admissível escrever manuais do ponto de vista do materialis­
mo dialético (V. Y. Struminski, 1923; K. N. Kornilov, 1925);
mas também considero que o título de “ensaio de psicologia
marxista” dado por Reisner à tradução do livrinho de Jem-
son constitui um emprego equivocado da palavra; ou inclu­
sive conceituo como errônea e aventureiras combinações do
tipo “reflexologia e m arxism o” para se referir a determ ina­
das correntes de trabalho dentro da fisiología, e não porque
duvide da possibilidade desse en foque, mas porque são
tomadas magnitudes incomensuráveis, porque' desaparecem
elementos intermediários, que são os únicos que possibili­
tam tal enfoque: perde-se e se deforma a escala. Porque o
autor não julga toda a reflexologia do ponto de vista de
todo o marxismo, mas som ente m anifestações isoladas de
grupos de m arxistas-psicológos. Seria errôneo, por exem ­
plo, formular um tem a assim: “o soviete rural e o marxis-
412 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

m o”, embora não haja dúvida de que a teoría do marxismo


conta com não menos recursos para ilustrar a questão relati­
va ao soviete rural do que a relativa à reflexologia; ainda
que o soviete de Volga seja uma idéia diretamente marxista,
está vinculada logicamente a todo um conjunto. E, no entan­
to, recorrem os a outras escalas, utilizamos conceitos inter­
mediários, mais concretos e m enos universais: falamos do
poder soviético e do soviete rural, da luta de classes e do
soviete rural. Não se deve chamar de marxista tudo que se
relaciona com o marxismo e, de fato, na maioria dos casos,
assim se entende, sem mais explicações. Se a isso acrescen­
tarmos que os psicólogos costumam apelar no marxismo ao
materialismo dialético, ou seja, a seu aspecto mais universal
e generalizado, a falta de correspondência de escala fica
ainda mais patente.
Além disso e por fim, é preciso assinalar uma dificulda­
de especial na aplicação do marxismo a novas áreas: preci­
sam ente pela situação especial que essa teoria atravessa
hoje; pela enorm e responsabilidade que representa o em ­
prego desse termo; pela especulação política e ideológica
de que é objeto; por tudo isso, não parece hoje muito opor­
tuno falar de “psicologia marxista". É mais conveniente que
outros digam de nossa psicologia que é marxista do que que
nós a denominarm os assim; aplíquemo-la aos fatos e esp e­
remos no que se refere às palavras. No fim das contas, a psi­
cologia marxista a inda não existe, é preciso compreendê-la
com o uma tarefa histó rica, m as n ão com o algo d ado.
Partindo desse estado é difícil subtrair-se à im pressão de
falta de seriedade científica e de irresp o n sab ilid ad e que
implica o emprego desse nome.
Acrescente-se a isso que a síntese entre a psicologia e o
marxismo não é levada a cabo por nenhum a escola e em ­
pregar na Europa esse termo dá com facilidade lugar a con­
fusão. Por exemplo, talvez sejam poucos os que saibam que
até mesmo a psicologia individual de Adler é considerada
vinculada ao marxismo. E convém sempre lembrar os funda­
m entos m etodológicos de uma psicologia concreta para
com preender de que psicologia falamos. Q uando demons-
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 413

trava seu direito de considerar científica essa psicologia


individual, Adler se remetia a Rickert, para quem a palavra
“psicólogo”, ao ser aplicada a um naturalista e a um historia­
dor, tem dois significados distintos, e por isso distingue a
psicologia científico-natural e a histórica; se isto não for
feito, a psicologia do historiador e a do poeta não podem
ser chamadas de psicologia, porque nada têm a ver com a
psicología. E os teóricos da nova escola adm itiram que a
psicologia histórica de Rickert e a psicologia individual são
a mesma coisa (L. Binswanger, 1922).
“A psicologia dividiu-se em dois, e a discussão gira
som ente em torno do nom e e da possibilidade teórica do
novo ramo independente. Como ciência natural, a psicologia
é impossível, e no nivel do individual nao se pode estabele­
cer lei alguma; mas não pretende explicar, e sim com preen­
der” (ibidem). Foi К. Jaspers quem introduziu essa divisão na
psicologia, embora para ele essa psicologia “compreensiva”
seja a fenomenología de Husserl. Enquanto base de toda psi­
cologia é muito im portante e inclusive insubstituível, mas
não é nem quer ser uma psicologia individual. A psicologia
compreensiva pode partir somente da teleología e foi Stern
quem assentou as bases dessa psicologia: o personalism o
não passa de outro nome da psicologia compreensiva. Mas o
personalismo procura estudar a personalidade com os meios
da psicologia experimental, aplicando os meios das ciências
naturais à psicologia diferencial, ainda que dessa maneira a
explicação e a com preensão fiquem igualmente insatisfeitas:
Somente a intuição, e não o pensam ento discursivo-causal,
pode conduzir ao objetivo. Essa psicologia considera, pois, o
título de “filosofia do ‘eu ’” como honorífico, porque não é
em absoluto psicologia, mas filosofia, e é isso o que quer
dizer. Pois bem, essa psicología, a respeito de cuja natureza
não pode restar nenhum a dúvida, é a que se remete nos seus
métodos (e um bom exemplo é sua teoria da psicologia de
massas) ao marxismo, à teoria da base e da superestrutura,
Como sendo seu fundam ento natural (W. Stern, 1924). Foi a
que ofereceu à psicologia social o melhor e até agora o mais
Interessante projeto de síntese do marxismo com a psicolo-
414 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

gia individual na teoria da luta de classes: o marxismo e a


psicologia individual devem e estão chamados a se aprofun­
darem e se fecundarem m utuam ente, A tríade hegeliana é
aplicável à vida espiritual, assim como à economia (e entre
nós). Esse projeto despertou uma interessante polêmica, na
qual, tanto na pertinência das idéias defendidas, quanto nas
questões abordadas, podem os apreciar um enfoque crítico
plenam ente marxista. Se Marx nos ensinou a com preender
os fundamentos da luta de classes, Adler fez o mesmo para
seus fundamentos psicológicos.
Isto não só ilustra a enorm e co m plexidade da atual
situação da psicologia, na qual cabem as combinações mais
inesperadas e paradoxais, com o tam bém o perigo desse
termo (outro dos paradoxos: essa mesma psicologia disputa
com a reflexologia russa o direito à teoria da relatividade).
Se a psicologia marxista é chamada de eclética e sem princí­
pios, teoria superficial e semicientífica de Jemson, se a maio­
ria dos influentes psicólogos da Gestalt se considera tam ­
bém marxista em seu trabalho científico, o termo marxista
perde precisão ao ser aplicado a escolas psicológicas inci­
pientes, que ainda não conquistaram o direito ao “marxis­
m o”. Lembro de m inha enorm e surpresa q u an d o me dei
conta disso numa inocente conversa. Mantinha, com um dos
psicólogos mais cultos, o seguinte diálogo: “De que psicolo­
gia vocês se ocupam na Rússia? O fato de que sejam marxis­
tas nada diz ainda sobre que tipo de psicólogos vocês são.
C onhecendo a popularidade de Freud na Rússia, pensei a
princípio nos adleristas: porque também eles são marxistas,
mas o que vocês têm não é uma psicología completamente
distinta? Nós também somos social-democratas, mas também
somos darw ínistas e além disso copernicanos”. O fato de
que tinha razão me é confirmado por um argum ento decisi­
vo, segundo meu ponto de vista. Na verdade, não chamare­
mos de “darwinista” nossa biologia. Isso é algo que se inclui
no próprio conceito de ciência, porque faz parte da ciência
o reconhecim ento das mais im portantes concepções. Um
marxista-historiador nunca diria: “história marxista da Rús­
sia”. Consideraria que isto se depreende dos próprios fatos.
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 415

“M arxista” é para ele sinônim o de “verdadeira, científica”;


não reconhecem os outra história a não ser a m arxista, Е
para nós a questão deve ser formulada assim: nossa ciência
se tornará marxista na medida em que se tornar verdadeira,
científica; e é precisam ente à sua transformação em verda­
deira, e não a coordená-la com a teoria de Marx, que nos
dedicaremos. Tanto para preservar o legítimo significado da
palavra, com o por responder à essência do problem a não
podem os dizer: “psicologia marxista”, no sentido em que se
diz: psicologia associativa, experimental, empírica, eidética,
A psicologia marxista não é uma escola entre outras, mas a
única psicologia verdadeira como ciência; outra psicologia,
afora ela, não p ode existir. E, pelo contrário: tudo que jã
existiu e existe de verdadeiram ente científico na psicologia
faz parte da psicologia marxista: esse conceito é mais amplo
que o de escola e inclusive o de corrente. Coincide com o
conceito de psicologia científica em geral, onde quer que se
estude e seja quem for que o faça.
É nesse sentido que Blonski (1921) emprega o termo de
“psicologia científica”. E tem toda razão. Tudo que gostaría­
mos de fazer, o significado de nossa reforma, nossa discre­
pância com os empiristas, o caráter fundam ental de nossa
ciência, nosso objetivo e o volume de nossa tarefa, seu con­
teúdo e o m étodo de execução, tudo isso se expressa nesse
term o. Um term o que me satisfaria por com pleto se não
fosse desnecessário. Sendo mais exato: o significado já está
claram ente evidente; não pode acrescentar absolutam ente
nada ao que já diz a palavra que determina. Porque “psico­
logia” é o nome de uma ciência, e não de uma obra de tea­
tro ou de um filme: só pode ser científica. Ninguém pensaria
em chamar de astronomia a descrição do céu num romance;
tampouco serve o nom e de “psicologia” à descrição dos pen­
samentos de Raskolnikov e dos desvarios de lady Macbeth.
Tudo que não descreve científicamente a psique não é psi­
cologia, mas algo distinto, qualquer coisa: publicidade, rese­
nha, crônica, literatura, lírica, filosofia, mentalidade peque-
no-burguesa, sussurro e outras coisas mil. Porque o termo
“científico” não só é aplicável ao ensaio de Blonski, como
416 TEORIA E MÉTODO EM PSICOLOGIA

também às investigações de Müller sobre a memória e aos


experim entos de Kohler com os macacos, e à doutrina dos
limiares de W eber-Fechner, e à teoria do jogo de Gross, e à
doutrina do treinam ento de Thorndike, e à teoria da associa­
ção de Aristóteles, ou seja, a tudo que na história e na atua­
lidade pertence à ciência. E me atreveria inclusive a discutir
para decidir que teorias, hipóteses e argumentos, com certe­
za falsos, refutados ou duvidosos, também podem ser cientí­
ficos. Porque o científico não coincide com o autêntico.
Uma entrada de teatro pode ser absolutam ente autêntica e
nâo ser científica. A teoria de Ilerbart sobre os sentimentos
concebidos como relações entre representações é indubita­
velmente errônea, mas também indubitavelmente científica;
som ente os fins e os meios determ inam o caráter científico
de qualquer teoria. Por isso, dizer “psicologia científica” é o
mesmo que não dizer nada. É mais válido dizer simplesmen­
te “psicologia”.
Nada mais nos resta do que aceitar esse nome. Ele enfa­
tiza perfeitam ente o que buscamos: as dimensões e o con­
teú d o de nossa tarefa. Porque esta não consiste em criar
uma escola junto a outras escolas, Nem delimita uma parte
ou faceta determinada, nem um problema, nem um procedi­
mento de interpretação da psicologia, junto com outras par­
tes, escolas etc., análogas. Trata-se de toda a psicologia em
toda sua dimensão: de uma psicologia única, que nâo admi­
te nenhum a outra. Trata-se de realizar a psicologia como
ciência.
Por isso, diremos simplesmente: psicologia. O que fare­
mos será explicar com outros term os outras co rren tes e
escolas e separar delas o científico do nâo-científico, a psi­
cologia do empirismo, da teologia, do idealismo e de tudo
mais que aderiu a nossa ciência ao longo dos séculos de sua
existência, como ao casco de um transatlântico.
N ecessitarem os de term os distintos para outra coisa:
para a divisão sistemática, moderadamente lógica, metodoló­
gica, das disciplinas dentro da psicologia: falaremos assim da
psicologia geral e infantil, da psicologia animal e da psicopa-
tologia, da psicologia diferencial e da comparada. Psicologia
O SIGNIFICADO HISTÓRICO DA CRISE DA PSICOLOGIA 417

será o nome comum de toda uma família de ciências. Porque


nossa tarefa não consiste em absoluto, em diferenciar nosso
trabalho de todo o trabalho psicológico do passado, mas em
uni-lo num só conjunto sobre urna nova base com tudo que
foi estudado científicamente pela psicologia. Nao queremos
diferenciar nossa escola da ciencia, mas esta do nao-científi­
co, a psicología da não-psicologia. Essa psicologia de que
falamos ainda não existe; terá de ser criada e não por uma só
escola. Muitas gerações de psicólogos trabalham nisso, como
dizia James: a psicologia terá seus gênios e seus investigado­
res modestos, mas o que surgir desse trabalho conjunto de
gerações de gênios e de simples mestres da ciência será, pre­
cisamente, psicologia, Com esse nome nossa ciência entrará
na nova sociedade, no limiar da qual começa a se estruturar.
Ser donos da verdade sobre a pessoa e da própria pessoa é
impossível enquanto a humanidade não for dona da verdade
sobre a sociedade e da própria sociedade. Ao contrário, na
nova sociedade nossa ciência se encontrará no centro da
vida. “O salto do reino da necessidade ao reino da liberdade”
colocará inevitavelm ente a questão do dom ínio de nosso
próprio ser, de subordiná-lo a nós mesmos. Nesse sentido,
tinha razão Pávlov, ao denominar nossa ciência de a última
ciência do hom em enquanto tal. Será, com efeito, a ú lti­
ma ciência do período histórico da humanidade ou a ciência
da pré-história dessa humanidade. Porque a nossa sociedade
criará o homem novo. Fala-se da refundiçâo do homem como
de um traço distintivo da nova humanidade e da criação arti­
ficial de uma nova ciência biológica, porque essa nova hu­
manidade será a única e a primeira espécie nova na biologia
que se cria a si mesma (...)
Na futura sociedade, a psicologia será, na verdade, a
ciência do homem novo. Sem ela, a perspectiva do marxis­
mo e da história da ciência seria incom pleta. No entanto,
essa ciência do homem novo será também psicologia. Para
isso já hoje mantemos suas rédeas em nossas mãos. Não é
preciso dizer que essa psicologia se parecerá tão pouco com
a atual como, conforme palavras de Spinoza, a constelação
do Cão se parece ao cachorro, animal ladrador {Etica, teore­
ma 17, Escolio).
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