Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O artigo examina a idéia geral de patologia sob o ponto de vista da biologia evolucionista. Focaliza os instru-
mentos analíticos conceituais da psicologia evolucionista a partir das idéias de causa próxima e causa última,
com vistas a uma nova compreensão dos distúrbios psiquiátricos, em particular dos apresentados por adictos.
Indica como o exame da função adaptativa dos sintomas conduz à identificação do sistema funcional subjacente
e orienta a investigação. O exercício de um percurso analítico de mão-dupla, das causas últimas para as
próximas e vice-versa, é aplicado à compreensão de distúrbios como autismo e esquizofrenia, que têm a ver
com o “cérebro social” e a “teoria da mente”; e à análise das características de 19 casos de pacientes adictos
portadores de jogo patológico, compra compulsiva, sexo compulsivo e dependência de drogas.
Descritores: Psicopatologia evolucionista. Distúrbios psiquiátricos. Adictos.
As relações estabelecidas entre a psicolo- gico. Para além do limite da mera busca de
gia evolucionista e os distúrbios psiquiátricos marcadores (genéticos/bioquímicos) mais ou
criam um campo fértil de onde provêm concei- menos específicos ou distúrbios dos neuro-
tos paradigmáticos que podem ser aplicados a transmissores, essa nova circunstância das rela-
síndromes clínicas específicas. A partir do de- ções entre psicologia evolucionista e distúrbios
senvolvimento tecnológico e científico, o diag- psiquiátricos gera duas dimensões a partir das
nóstico psicopatológico tem-se beneficiado de quais podemos pensar ou no nível da causali-
múltiplas maneiras. Como nos lembra Brüne dade imediata do fenômeno que se estuda (cau-
(2001), a possibilidade, antes inimaginável, de sa próxima) ou no nível de suas causas últimas,
‘olhar o cérebro pensando’ expandiu a compre- que remete ao valor adaptativo e à evolução do
ensão dos distúrbios psíquicos no nível fisioló- processo psicológico em questão, efetivamente
Fabíola Luz, Médica psiquiatra, doutoranda do A idéia desse artigo surgiu quando uma das autoras
Instiuto de Psicologia, USP, SP. Rua Joaquim Antunes (Fabiola Luz) resolveu buscar e desenvolver instru-
767/61, Pinheiros, São Paulo, SP . CEP: 05415-012. mentos conceituais da Psicologia Evolucionista, den-
E-mail: fabiluz@attglobal.net. Martin Brüne, De- tro do programa de Mestrado em Psicologia Experi-
partamento de Psiquiatria e Psicoterapia da Ruhr- mental, sob a orientação da terceira autora. É nesse
University de Bochum. Vera Silvia Raad Bussab, percurso que teve a oportunidade de entrar em con-
Instituto de Psicologia USP, São Paulo. tato com o professor Martin Brüne.
119
Fabíola Luz, Martin Brüne e Vera Silvia Raad Bussab
120
Psicopatologia evolucionista
próximo sob a orientação da noção de aptidão. cos associados às inflamações – rubor, calor, tu-
Conforme raciocínio desenvolvido por Nesse e mor e dor – podem ser compreendidos como
Williams (1997) vamos imaginar dois grupos igualmente voltados para o combate dos ele-
(A e B), o primeiro formado por indivíduos fe- mentos causadores do problema. Doenças psí-
bris que passaram pela prescrição do antitérmi- quicas cuja expressão equivale a um sintoma
co; o segundo, composto por indivíduos igual- como fobias, erotomania, também podem ser
mente febris e, no entanto, livres da prescrição. mais facilmente compreendidas sob a ótica
Acompanhamos o quadro clínico durante um evolucionista, que esclarece as funções desses
período e notamos que o tempo de remissão sintomas e as condições causais típicas de seus
definitiva do sintoma do grupo A foi maior, ou mecanismos subjacentes.
seja, o grupo permaneceu doente por mais tem-
po. O grupo B, livre da interferência do Cumpre observar, no entanto, que tal ra-
fármaco, precisou contar com recursos naturais, ciocínio não se estende a uma proposição abso-
cujo núcleo deve conter a explicação que nos luta na qual todo distúrbio, síndrome ou sinto-
interessa, ou seja, a função da febre. Tendo sido ma tenha sempre uma espécie de valor adaptativo
observado que foi esse o grupo em que as pes- oculto. Há que se considerar também o mais evi-
soas ficaram menos tempo doentes, podemos dente, o caso em que as doenças revelam os li-
supor que, apesar de sintoma, a febre se com- mites de reação dos organismos e a ausência ou
portou como um anti-séptico natural, o que está insuficiência dos processos de defesa. Refletem,
longe de ser pouco. Ora, numa época em que nessas situações, os mecanismos evolutivos em
os antitérmicos e antibióticos eram impensáveis, ação eliminando variações menos adaptadas e
por exemplo, no caso de nossos ancestrais re- selecionando as variações mais resistentes ao con-
motos, a natureza os dotou de um eficiente sis- junto de circunstâncias provocadoras das doen-
tema de manutenção da vida, selecionando o ças em questão.
sintoma como satisfatoriamente adaptado.
“Mesmo que muitos estudos estabeleçam que a Mas temos de levar em conta que, nas
febre normalmente é importante para comba- patologias, muitas adaptações comportam-se
ter a infecção, isso não justificaria uma política como compromissos ou permutas de traços
inflexível de estimular a febre ou até deixá-la adaptativos não raro divergentes. Tomemos
rotineiramente subir até seu nível natural. Uma como ilustração a situação de pessoas que têm
perspectiva evolutiva chama a atenção para os alelo sanguíneo para a anemia falciforme; como
custos e benefícios de uma adaptação como a é sabido, tais pessoas são mais bem protegidas
febre. Se não houvesse desvantagem compensa- contra as infecções causadas pela malária. Essa
tória em ter o corpo humano funcionando a 40 espécie de permuta da natureza condiciona por
graus, ele deveria permanecer nessa temperatu- um lado um tipo de fluxo sanguíneo anormal
ra o tempo todo, a fim de prevenir o apareci- e, para o caráter homozigoto, a morte. Por ou-
mento de infecções”. (Nesse & Williams, 1997, p. tro, na hipótese de contaminação pela malária,
27). O percurso analítico de mão dupla, do nível estará garantida certa sobrevida; daí o caráter
próximo para o último e vice-versa, parece ga- dos compromissos e permutas acima referidos.
rantir a operacionalidade da busca da pergunta Numa primeira abordagem poderíamos chegar
original, com isso ampliando nossa compreen- a uma contradição insolúvel na manutenção
são sobre o fenômeno tanto na superficialidade desse traço não-adaptativo (anemia falciforme),
quanto na profundidade, ademais de modular porém a circunstância atenuante da defesa ‘ex-
nossa ação clínico-terapêutica. traordinária’ em relação às conseqüências da
malária funciona como o fundamento para a
Na esteira do exemplo da febre, é possível
compreensão da sua conservação no processo
salientar a função de diversos sintomas proteto-
da seleção natural (Nesse e Williams, 1997).
res, às vezes confundidos com a própria doen-
ça: a função adaptativa da tosse pode ser enten- Em âmbito psicológico, analogamente,
dida como sendo a de eliminar secreções ou distúrbios condicionados por determinados gru-
fatores irritativos das vias aéreas superiores; do pos genéticos como aqueles que predispõem,
mesmo modo, cada um dos quatro sinais clássi- por exemplo, à depressão, podem levar à ma-
121
Fabíola Luz, Martin Brüne e Vera Silvia Raad Bussab
nifestação do sintoma como um fator adaptativo. (Trivers, 1971, 1972, 1974); à Teoria da Mente
Dito de outro modo, nas formas mais brandas, a (Tomasello, 2001) e ao Apego (Bowlby, 2002).
depressão acarretaria a adoção inconsciente de Poucos estudos foram desenvolvidos, até o mo-
uma “estratégia de perda de status” por parte do mento, no sentido de mapear toda a variedade
doente, caracterizada por uma identificação com e alcance dos sistemas comportamentais na ex-
o fracasso; o expediente reduz a carga da cha- plicação evolucionista dos fenômenos psico-
mada competição social, proporcionando patológicos detectados no nível próximo: dis-
profilaticamente um alívio das tensões e um túrbios de ansiedade, depressão, anorexia
redimensionamento das condições de vida no nervosa, o caso dos adictos, para citar alguns.
caso de perda do status social (Price, Soloman,
Gardner, Gilbert, & Rohde, 1994). No entanto, Nessa perspectiva, pode se revelar pro-
aumentada a proporção de gravidade do qua- dutivo estender as idéias acima a uma patologia
dro depressivo, o modelo explicativo parece psíquica específica em que o quadro clínico equi-
perder validade, uma vez que não há aqui pro- vale a um sintoma, como no caso da erotomania
priamente fatores identificáveis de promoção de – a convicção delirante de ser amado por de-
ajustamento individual. terminada pessoa. O campo de reflexão sobre o
fenômeno alarga-se ao limite da mesma busca
que aplicamos ao caso da febre, ou seja, qual a
função do sintoma - erotomania - detectado no
Correlações aplicadas nível próximo? A partir disso, e entre as vias
explicativas evolucionistas que surgem, apare-
Vamos explorar um pouco mais a utili- ce aquela talvez mais conveniente que seria a
dade dessa nova ferramenta para elucidar a de ser vista como uma variação patológica da
perspectiva evolucionista aplicada na compre- estratégia de seleção de parceiros e de repro-
ensão das patologias mentais, disciplina que tem dução. No nível próximo observamos que a pa-
sido designada, a partir da segunda metade do tologia é mais comum em mulheres solteiras que
século 20, como psicopatologia evolucionista. se encontram, com freqüência, em período tar-
Voltando à idéia de um percurso analítico de dio de sua fase reprodutiva e que elegem, como
mão dupla, entre a causa última e a causa pró- objeto de amor, homens socialmente bem
xima, a interrogação sobre a função do sintoma posicionados (freqüentemente médicos, padres,
conduz à busca dos sistemas comportamentais políticos, celebridades). Esses dados sugerem
que lhe possam dar ancoragem em uma expli- que estamos lidando com variantes nos meca-
cação de tipo evolucionista. A identificação do nismos subjacentes às causas últimas das estra-
sistema e a constatação de sua funcionalidade tégias de reprodução humana. Conforme aná-
conduzem, por sua vez, a pesquisas orientadas lise do delírio amoroso feita por Brüne (2002)
sobre os fatores determinantes no nível próxi- “... trata-se de um excesso numa determinada
mo, em termos de ontogêrnese e de causação estratégia da escolha de parceiro, que aponta
imediata, assim como orientam investigações a para uma preferência de parceiros potenciais
respeito do ambiente contemporâneo em con- com alto status social.” (...) “porque nessa estra-
traste com o ambiente de adaptabilidade tégia trata-se de assegurar recursos para si e para
evolutiva. Cria-se um roteiro organizador da potenciais descendentes; as mulheres que ado-
pesquisa; na imagem de Tooby e Cosmides eceram não têm, em geral, um relacionamento
(1992), é como oferecer um mapa aéreo a um fixo e muitas vezes tentam forçar o contato com
andarilho perdido em floresta densa. seus objetos de amor” (Brüne, 2002, p. 130). Isso
significa que no delírio existe um exagero na
É fácil notar que, a partir da variedade tentativa de assegurar o parceiro competente para
de sintomas, poderíamos chegar a uma propor- si própria e para a possível prole.
cional variedade de sistemas no nível último. A
psicologia evolucionista tem definido alguns Tal postulado está plenamente de acordo
desses sistemas funcionais, como os relaciona- com a chamada Teoria da Estratégia Sexual (Buss
dos ao Altruísmo recíproco, ao Investimento dos & Schmitt, 1993). Por meio do critério analítico
pais, à Seleção Sexual e ao Conflito pais-prole da causa última surgem hipóteses sobre sistemas
122
Psicopatologia evolucionista
funcionais que foram selecionados e que, por- trato (Cosmides, 1989). Além disso, os primatas
tanto, passaram a fazer parte da estrutura bioló- humanos (e, talvez, até certo ponto os primatas
gica dos indivíduos de uma espécie. Neste caso - não-humanos) desenvolveram a capacidade
a erotomania - o sistema comportamental privi- única de inferir estados mentais de outros indi-
legiado para compreender sua função é o da víduos, que equivale ao sistema comportamental
Seleção Sexual (Brüne, 2001). chamado Teoria da Mente. Assim, nesta espécie
de área fundamental, a do “cérebro social”, ocor-
O resultado, para além dessa conclusão, é
rem soluções adaptativas em função de situa-
o de promover uma integração daquilo que po-
ções evolucionariamente determinantes e rela-
deria ser considerado como explicações estan-
cionadas a problemas do meio ambiente social,
ques (da psicofarmacologia, da genética, da psi-
tais como: questões de status social, sucesso no
canálise e da psiquiatria) das potências
acasalamento, demanda e concessão de cuida-
explicativas baseadas nos corpus de conhecimen-
dos (Gilbert, 1998).
to e tradição de cada uma dessas áreas. Assim, a
interpretação evolucionista pode ser vista como
integrativa, na medida em que “apresenta um Vamos ilustrar agora o alcance explicativo
instrumento heurístico que abrange dados in- do sistema funcional específico citado, a Teoria
dividuais, interpessoais e biológicos”. (Brüne, da Mente, que tem sido relacionada a algumas
2002, p. 55). Além disso, a dimensão cultural psicopatologias.
também pode ser aí incluída, uma vez que não
se contrapõe à vertente biológica, pois essa lei-
tura compreende que os mecanismos culturais Teoria da mente
são baseados em mecanismos psicologicamente
evoluídos. (Buss, 1995; Tooby & Cosmides, 1992). A expressão teoria da mente (ToM) refe-
O que se revela aqui é a tônica principal re-se à capacidade cognitiva de assumir a pers-
desse artigo, ou seja, para sermos pragmáticos, pectiva mental do outro, à capacidade de re-
a utilidade do âmbito destas causas últimas como presentar os estados mentais próprios e de outra
fator decisivo de explicação e reunificação do pessoa, em termos de pensamentos, crenças e
conhecimento dos mais variados sintomas liga- intenções. Considera-se que a Teoria da Mente
dos ao comportamento humano em relação di- emergiu na evolução hominida como adapta-
reta com os seus sistemas comportamentais. ção a um ambiente social de complexidade cres-
cente (Brothers, 1990), embora o conceito tenha
De um modo geral, podemos redimen- sido inspirado por estudos do comportamento
sionar a idéia dos distúrbios psiquiátricos social de chimpanzés (Premack & Woodruff,
reposicionando-os no campo dos chamados dis- 1978). Acumulam-se demonstrações da origem
túrbios do “cérebro social” (Brüne, 2003). Os primata dessa capacidade, ao mesmo tempo em
cérebros dos primatas, humanos inclusive, pos- que os dados comparativos corroboram a idéia
suem mecanismos adaptativos emocionais, de que no homem a ToM alcança patamares
cognitivos e de comportamento que evoluíram únicos de complexidade (Tomasello, 2003). Há
para interagir com o meio ambiente social. A evidências de que o sistema neural subjacente à
notável importância da questão social para a ToM tenha evoluído a partir da capacidade de
sobrevivência do indivíduo e para o sucesso monitorar movimentos de outro ser vivo – com
reprodutivo fez com que os pesquisadores su- sede no sulco temporal superior, no córtex pré-
gerissem que, a princípio, os humanos desen- frontal medial e no giro cingulado anterior
volveram “cérebros sociais” capazes de proces- (Siegal & Varley, 2002), e também a partir de
sar toda a informação que culmina na percepção estruturas neurais associadas ao comportamento
correta e na forma de ser dos seres da mesma imitativo, os chamados neurônios-espelho
espécie (Brothers, 1990). Há evidências (Gallese & Goldman, 1998). Tudo indica que o
empíricas comfirmando esse ponto de vista. Por monitoramento do comportamento de coespe-
exemplo, os humanos entendem mais facilmen- cíficos deve ter formado a base para a evolução
te as regras se estas estiverem em um contexto do monitoramento da mente dos outros.
social em vez de em contexto de raciocínio abs-
123
Fabíola Luz, Martin Brüne e Vera Silvia Raad Bussab
124
Psicopatologia evolucionista
125
Fabíola Luz, Martin Brüne e Vera Silvia Raad Bussab
126
Psicopatologia evolucionista
os – quem sabe conquistar vantagens em relação muitas vezes, coloca em risco a vida dos envolvi-
a outros homens –, ainda que somente na fanta- dos. As afecções sexualmente transmissíveis, em
sia: muitas vezes o jogo é solitário. Cabe a ressal- particular a Aids, constituem o risco maior a que
va de que, a rigor, cada jogador é, obviamente, se expoem esses indivíduos, nos dias de hoje.
um ser único, do mesmo modo como concebe- Assim, o sexo compulsivo pode ser compreendi-
mos por extensão, cada esquizofrênico, cada do, em termos de causa última, como um exage-
fóbico, cada farmacodependente, e assim por ro na estratégia reprodutiva de busca de parcei-
diante; a classificação se fundamenta apenas em ros. Evidentemente, todas as considerações sobre
questões estatísticas que apontam traços comuns valor adaptativo, ajustamento, normalidade e pa-
aos chamados jogadores patológicos aqui estu- tologia devem ser colocadas em contexto, em
dados. O jogador, permanecendo na experiên- função dos aspectos limitantes trazidos pelo dis-
cia de risco sente-se mais poderoso, mais capaz túrbio que compromete o bem estar e as necessi-
para futuros hipotéticos desafios, inclusive ou- dades essenciais do indivíduo, a integração soci-
tros acasalamentos que nem chegam a se concre- al no grupo de referência e assim por diante.
tizar, mas impõem-lhe o risco de perder o con- Desse modo, apesar de encontrarmos as chances
quistado. de reprodução aumentadas em função do gran-
A compradora-compulsiva, em geral mu- de número de intercursos sexuais tidos por es-
lher (Christenson et al., 1994), não costuma ter ses doentes, recordemos que o quadro muito se
a vida em ordem no momento em que se iniciam distancia dos românticos dom-juans encontra-
os sintomas. A situação familiar não apresenta dos na literatura (Luz, 2005), pois, nos casos aqui
tipicidade, a baixa auto-estima é notória e, ao estudados, a experiência sexual é buscada sem
adquirir objetos, ela relata uma sensação de pra- liberdade - por se tratar de uma compulsão -, e
zer, um aumento de autovalorização que se esvai concluída, na maioria das vezes, com sentimen-
na seqüência do ato. O alvo das compras são, tos de culpa e vergonha, conforme relatamos
principalmente, itens de beleza (Christenson et anteriormente na descrição do quadro clínico.
al., 1994), sugerindo uma função de acréscimo
do poder de acasalamento; some-se a isso a fre- A análise da dependência de drogas, por
qüente aquisição de outros objetos ou provisões outro lado, apresenta outras peculiaridades. A
para que a identifiquemos como uma coletora ela parece-nos mais difícil, por enquanto, atri-
em shoppings modernos a evocar nosso passado buir um vínculo determinante no nível último.
ancestral de caçadores-coletores. No entanto, ao Sabemos, no entanto, que o paciente fragilizado
invés de angariar recursos, que estariam aumen- em seu poder de ação busca o prazer para ten-
tando seu prestígio, está ela, de fato, tar um aumento imediato da auto-estima, o que
despendendo-os, uma vez que os objetos adqui- estabelece a ilusão de possuir condições para
ridos não contribuem efetivamente para uma qualquer desempenho posterior, seja reprodu-
satisfação duradoura. ção, competição ou alguma atividade social. Em
termos estritos isso significa um aumento da
Sabe-se que, em última análise, a natureza aptidão a partir da dinamização do funciona-
privilegia, em termos de processo de evolução mento neuroquímico, trazida pela droga, com
natural, a reprodução em detrimento da sobre- a conseqüente potencialização das emoções po-
vivência, nos casos em que a primeira independe sitivas e bloqueio das negativas (Nesse &
da segunda. Não é difícil atinar com a impor- Berridge, 1997). Assim descrito, o comporta-
tância funcional do sistema reprodutivo e nem mento passa a ser problemático na ocorrência
com a força da pressão seletiva exercida sobre de uma oferta da droga em níveis excessivos. O
esse sistema na evolução das espécies em geral aspecto cultural relevante que aqui se apresen-
(Alcock, 2001). O mesmo ocorre no comporta- ta é o de que o problema do abuso de substânci-
mento humano normal e a psicopatologia pode as e dependência tem se tornado pronunciado
se beneficiar das considerações sobre as caracte- desde o começo da produção industrial de ál-
rísticas da evolução e do desenvolvimento de cool e outras drogas (Nesse & Berridge, 1997).
nosso padrão reprodutivo. O quadro do sexo É de se supor que essa oferta excessiva leve à
compulsivo ilustra esse fenômeno, na medida farmacodependência aqueles indivíduos porta-
em que a busca indiscriminada do parceiro, dores de poucos receptores cerebrais para a dada
127
Fabíola Luz, Martin Brüne e Vera Silvia Raad Bussab
128
Psicopatologia evolucionista
Christenson et al. (1994). Compulsive buying: Nesse, R. M., & Berridge, K. C. (1997). Psychoactive
Descriptive characteristics and psychiatric drug use in evolutionary perspective. Science, 278,
comorbidity. Journal of Clinical Psychiatry, 55(1), 63-65.
5-11. Olds, J. (1969). Effects of lesions in medical forebrain
Crawford, C., & Krebs, D. L. (1998). Handbook of bundle on self-stimulation behavior. American
evolutionary psychology: Ideas, issues and applications. Journal of Physiology, 217, 1253.
New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates. Premack, D., & Woodruff, G. (1978). Does the
Del Porto, J. A. (1996). Compulsões e impulsos: Clep- chimpanzee have a “theory of mind”? Behavioral
tomania, jogar compulsivo, comprar compulsi- and Brain Sciences, 4, 515-526.
vo, compulsões sexuais. In E. C. Miguel, Trans- Price, J., Sloman, L., Gardner, R., Gilbert, P., & Rohde,
tornos do espectro obsessivo-compulsivo – Diagnóstico P. ( 1994). The social competition hypothesis of
e tratamento. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. depression. British Journal of Psychiatry, 164, 309-
DSM-IV-TR - Manual diagnóstico e estatístico de 314.
transtornos mentais (4a revisão). (2003). Porto Tinbergen, N. (1951). The study of instinct. Londres:
Alegre, RS: Artmed. Oxford University Press.
Gallese, V., & Goldman, A. (1998). Mirror-neurons Tomasello, M. (2003). Origens culturais da aquisição
and simulation theory of mind- reading. Trends do conhecimento humano. São Paulo: Martins Fon-
in Cognitive Sciences, 2, 493-501. tes.
Gilbert, P. (1998). Evolutionary psychopathology: Tooby, J., & Cosmides, L. (1992). Psychological
Why isn´t the mind better designed than it is? foundations of culture. In J. Barkow, L. Cosmides
British Journal of Medical Psychology, 71, 353-373. & J. Tooby (Eds.), The adapted mind (pp. 19-136).
Lejoyeux, M. et al. (1996). Phenomenology and Oxford: Oxford University Press.
psychopathology of uncontrolled buying. Trivers, R. L. (1971). The evolution of reciprocal
American Journal of Psychiatry, 153, 12. altruism. Quarterly Review of Biology, 46, 35-57.
Lejoyeux, M .et al. (1997). Study of compulsive Trivers, R. L. (1972). Parental investment and sexu-
buying in depressed patients. Journal of Clinical al selection. In B. Campbell (Ed.), Sexual selection
Psychiatry, 58, 4. and the descent of man (pp. 136-179). Chicago:
Luz, F. (2005). Abandono, vício e preconceito. Rio de Aldine-Atherton.
Janeiro: Atheneu. Trivers, R. L. (1974). Parent-Offspring conflict.
McElroy, S. L. et al. (1995). Kleptomania, compulsive American Zoologist, 14, 249-264.
buying and binge-eating disorder. Journal Clinical Vincent, J.-D. (1986). Biologia das paixões. Portugal:
Psychiatry, 56(suppl. 4). Publicações Europa-América.
Nesse, R. M., & Williams, G. C. (1997). Por que adoe- Vincent, J.-D. (1996). A carne e o diabo. Portugal: Pu-
cemos: A nova ciência da medicina darwinista. Rio blicações Europa-América.
de Janeiro: Campus.
Nesse, R. M. (1999). Proximate and evolutionary
studies of anxiety, stress and depression: synergy
at the interface. Neuroscience and Biobehavioral Recebido em 5 de fevereiro de 2004
Reviews, 23, 895-903. Revisão recebida em 15 de dezembro de 2004
Aceito em 2 de maio de 2005
129