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Revista de Etologia 2004, Vol.

6, N°2, 119-129 Psicopatologia evolucionista

Considerações Básicas a Respeito da Psicopatologia Evolucionista

FABÍOLA LUZ 1, MARTIN BRÜNE 2, VERA SILVIA RAAD BUSSAB1


Universidade de São Paulo
1

2 Ruhr-University of Bochum, Germany

O artigo examina a idéia geral de patologia sob o ponto de vista da biologia evolucionista. Focaliza os instru-
mentos analíticos conceituais da psicologia evolucionista a partir das idéias de causa próxima e causa última,
com vistas a uma nova compreensão dos distúrbios psiquiátricos, em particular dos apresentados por adictos.
Indica como o exame da função adaptativa dos sintomas conduz à identificação do sistema funcional subjacente
e orienta a investigação. O exercício de um percurso analítico de mão-dupla, das causas últimas para as
próximas e vice-versa, é aplicado à compreensão de distúrbios como autismo e esquizofrenia, que têm a ver
com o “cérebro social” e a “teoria da mente”; e à análise das características de 19 casos de pacientes adictos
portadores de jogo patológico, compra compulsiva, sexo compulsivo e dependência de drogas.
Descritores: Psicopatologia evolucionista. Distúrbios psiquiátricos. Adictos.

Evolutionary psychopathology: basic considerations . This article presents a general overview of


psychopathology from an evolutionary biology point of view. The conceptual analytical tools of evolutionary
psychology are examined, using as a basis the distinction between proximate and ultimate causes, aiming at
a new understanding of psychiatric disturbances, more specifically disturbances present in addictions. Taking
into account the adaptive function of symptoms leads to the identification of underlying functional systems
and guides investigation. A two-way analytical path from ultimate causes to proximate and vice-versa, is
applied to the understanding of disturbances such as autism and schizophrenia which are related to the
“social brain” and to the “theory of mind”, and also applied to the analysis of cases of addict patients, suffering
from pathological gambling, compulsive shopping, compulsive sex and drug addiction.
Index terms: Evolutionary psychopathology. Psychiatric disorders. Addiction.

As relações estabelecidas entre a psicolo- gico. Para além do limite da mera busca de
gia evolucionista e os distúrbios psiquiátricos marcadores (genéticos/bioquímicos) mais ou
criam um campo fértil de onde provêm concei- menos específicos ou distúrbios dos neuro-
tos paradigmáticos que podem ser aplicados a transmissores, essa nova circunstância das rela-
síndromes clínicas específicas. A partir do de- ções entre psicologia evolucionista e distúrbios
senvolvimento tecnológico e científico, o diag- psiquiátricos gera duas dimensões a partir das
nóstico psicopatológico tem-se beneficiado de quais podemos pensar ou no nível da causali-
múltiplas maneiras. Como nos lembra Brüne dade imediata do fenômeno que se estuda (cau-
(2001), a possibilidade, antes inimaginável, de sa próxima) ou no nível de suas causas últimas,
‘olhar o cérebro pensando’ expandiu a compre- que remete ao valor adaptativo e à evolução do
ensão dos distúrbios psíquicos no nível fisioló- processo psicológico em questão, efetivamente

Fabíola Luz, Médica psiquiatra, doutoranda do A idéia desse artigo surgiu quando uma das autoras
Instiuto de Psicologia, USP, SP. Rua Joaquim Antunes (Fabiola Luz) resolveu buscar e desenvolver instru-
767/61, Pinheiros, São Paulo, SP . CEP: 05415-012. mentos conceituais da Psicologia Evolucionista, den-
E-mail: fabiluz@attglobal.net. Martin Brüne, De- tro do programa de Mestrado em Psicologia Experi-
partamento de Psiquiatria e Psicoterapia da Ruhr- mental, sob a orientação da terceira autora. É nesse
University de Bochum. Vera Silvia Raad Bussab, percurso que teve a oportunidade de entrar em con-
Instituto de Psicologia USP, São Paulo. tato com o professor Martin Brüne.

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Fabíola Luz, Martin Brüne e Vera Silvia Raad Bussab

determinantes de todo o percurso do fenôme- características. É nessa esfera de apreensão dos


no. Coloca-se aí, provavelmente, a grande con- fenômenos (nível último) que encontramos o que
tribuição da abordagem evolucionista para a A
Bowlby (2002) chamou de “sistemas
compreensão da psicopatologia, como também comportamentais”, ao ampliar e atualizar a com-
o grande paradoxo: como é possível a doença preensão do termo comportamento instintivo.
em geral — a doença mental em particular — Tais sistemas, também chamados de “sistemas
fazer parte do arsenal selecionado para a per- motivacionais”, “sistemas funcionais”, fazem re-
petuação da espécie? ferência a comportamentos que foram moldados
pela seleção natural, presentes numa determi-
Por que aqueles traços não foram elimi- nada espécie, e de cuja eficácia depende a sobre-
nados, tendo em vista que muitos deles vão, vivência.
aparentemente, na contra-mão dos processos
vitais, como a depressão e a anorexia nervosa,
'
No nível próximo, por outro lado, cada
por exemplo? (Nesse, 1997). indivíduo produz um conjunto de fenômenos
O conceito de nível último comporta as que se prestam ao juízo de serem satisfatoria-
delimitações onde se enraíza o curso orientado mente adaptados ou não. Isto é, estamos aqui
pela aptidão abrangente. O conceito genérico no âmbito em que doença e sanidade são cate-
de aptidão refere-se à contribuição genética do gorias úteis na definição dos elementos a serem
indivíduo para a próxima geração, ao passo que avaliados pelos critérios evolucionistas, a partir
o conceito de aptidão abrangente refere-se ao dos quais encontraremos explicações, esclareci-
conceito genérico estendido à sobrevivência e B
mentos e, em última análise, soluções. Bem en-
procriação da prole e engloba também a apti- tendido, o que estamos insinuando é antes a
dão indireta que se refere à capacidade de con- preeminência deste nível como sendo uma es-
tribuir com a sobrevivência de parte dos pró- pécie de ponto de partida conceitual a partir do
prios genes no cuidado de parentes não- qual a matéria tratada se converte em foco de
descendentes diretos (Alcock, 2001). análise cujo objetivo é encontrar, no nível últi-
mo, um sistema funcional que lhe esclareça a
Essa espécie de percurso acidentado de-
purativo em que se constitui a evolução, em al-
gum momento teve uma determinação originá-
só funcionam no interior de um sistema '
ocorrência. Portanto, o nível último e próximo

explicativo evolucionista, nunca em separado.


ria que, como sabemos, sempre se pautou pelas Sendo essencialmente complementares, deman-
melhores condições de adaptabilidade em be- dam uma abordagem de tipo integrativo no sen-
nefício da transmissão de genes. A explicação tido de propiciarem uma adequada e produti-
evolucionista do comportamento se mostra va compreensão dos processos psicopatológicos.
como a decodificação do conceito de nível últi- Os aspectos essencialmente clínicos que serão
mo (Nesse, 1999). O nível último refere-se às con- aqui abordados pela ótica da psicologia
dições biológicas, sociais e do meio ambiente fí- evolucionista estarão fundamentados e comple-
sico que, em escala de tempo evolucionista (a mentados por essa perspectiva heurística.
rigor deveríamos considerar algo da ordem de
2 milhões de anos atrás, tendo em mente a evo- Isso posto, o que temos é o que podería-
lução do gênero Homo), resultaram em traços mos chamar de ferramentas conceituais que
adaptativos e não adaptativos. (Crawford & Krebs, redimensionam a apreensão do que muitas ve-
1998). Embora pareça evidente, é difícil trans- zes se toma como banal. Tomemos o sintoma da
por a circunstância de uma época tão remota febre como situação de referência. O raciocínio
para os dias atuais. Isso explica, em parte, o parece natural: prescreve-se o antitérmico e
desencontro entre o que se passa e as questões ponto. Há, sem dúvida, uma sabedoria nisso.
que colocamos sobre esse passado remoto. É o Mas sob outra ótica, pode-se perguntar: qual a
caso daqueles traços não adaptativos ainda per- função da febre? A pergunta pela função é a
sistirem. A contradição, nesse caso, está, prova- pista principal a desobstruir o caminho para
velmente, no tipo de pensamento condicionado uma reflexão ampla e que se pauta pelas condi-
pelo nosso tempo e não na persistência daquelas ções de sobrevivência. A partir disso, tomamos
a circunstância como tendo passado pelo nível

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Psicopatologia evolucionista

próximo sob a orientação da noção de aptidão. cos associados às inflamações – rubor, calor, tu-
Conforme raciocínio desenvolvido por Nesse e mor e dor – podem ser compreendidos como
Williams (1997) vamos imaginar dois grupos igualmente voltados para o combate dos ele-
(A e B), o primeiro formado por indivíduos fe- mentos causadores do problema. Doenças psí-
bris que passaram pela prescrição do antitérmi- quicas cuja expressão equivale a um sintoma
co; o segundo, composto por indivíduos igual- como fobias, erotomania, também podem ser
mente febris e, no entanto, livres da prescrição. mais facilmente compreendidas sob a ótica
Acompanhamos o quadro clínico durante um evolucionista, que esclarece as funções desses
período e notamos que o tempo de remissão sintomas e as condições causais típicas de seus
definitiva do sintoma do grupo A foi maior, ou mecanismos subjacentes.
seja, o grupo permaneceu doente por mais tem-
po. O grupo B, livre da interferência do Cumpre observar, no entanto, que tal ra-
fármaco, precisou contar com recursos naturais, ciocínio não se estende a uma proposição abso-
cujo núcleo deve conter a explicação que nos luta na qual todo distúrbio, síndrome ou sinto-
interessa, ou seja, a função da febre. Tendo sido ma tenha sempre uma espécie de valor adaptativo
observado que foi esse o grupo em que as pes- oculto. Há que se considerar também o mais evi-
soas ficaram menos tempo doentes, podemos dente, o caso em que as doenças revelam os li-
supor que, apesar de sintoma, a febre se com- mites de reação dos organismos e a ausência ou
portou como um anti-séptico natural, o que está insuficiência dos processos de defesa. Refletem,
longe de ser pouco. Ora, numa época em que nessas situações, os mecanismos evolutivos em
os antitérmicos e antibióticos eram impensáveis, ação eliminando variações menos adaptadas e
por exemplo, no caso de nossos ancestrais re- selecionando as variações mais resistentes ao con-
motos, a natureza os dotou de um eficiente sis- junto de circunstâncias provocadoras das doen-
tema de manutenção da vida, selecionando o ças em questão.
sintoma como satisfatoriamente adaptado.
“Mesmo que muitos estudos estabeleçam que a Mas temos de levar em conta que, nas
febre normalmente é importante para comba- patologias, muitas adaptações comportam-se
ter a infecção, isso não justificaria uma política como compromissos ou permutas de traços
inflexível de estimular a febre ou até deixá-la adaptativos não raro divergentes. Tomemos
rotineiramente subir até seu nível natural. Uma como ilustração a situação de pessoas que têm
perspectiva evolutiva chama a atenção para os alelo sanguíneo para a anemia falciforme; como
custos e benefícios de uma adaptação como a é sabido, tais pessoas são mais bem protegidas
febre. Se não houvesse desvantagem compensa- contra as infecções causadas pela malária. Essa
tória em ter o corpo humano funcionando a 40 espécie de permuta da natureza condiciona por
graus, ele deveria permanecer nessa temperatu- um lado um tipo de fluxo sanguíneo anormal
ra o tempo todo, a fim de prevenir o apareci- e, para o caráter homozigoto, a morte. Por ou-
mento de infecções”. (Nesse & Williams, 1997, p. tro, na hipótese de contaminação pela malária,
27). O percurso analítico de mão dupla, do nível estará garantida certa sobrevida; daí o caráter
próximo para o último e vice-versa, parece ga- dos compromissos e permutas acima referidos.
rantir a operacionalidade da busca da pergunta Numa primeira abordagem poderíamos chegar
original, com isso ampliando nossa compreen- a uma contradição insolúvel na manutenção
são sobre o fenômeno tanto na superficialidade desse traço não-adaptativo (anemia falciforme),
quanto na profundidade, ademais de modular porém a circunstância atenuante da defesa ‘ex-
nossa ação clínico-terapêutica. traordinária’ em relação às conseqüências da
malária funciona como o fundamento para a
Na esteira do exemplo da febre, é possível
compreensão da sua conservação no processo
salientar a função de diversos sintomas proteto-
da seleção natural (Nesse e Williams, 1997).
res, às vezes confundidos com a própria doen-
ça: a função adaptativa da tosse pode ser enten- Em âmbito psicológico, analogamente,
dida como sendo a de eliminar secreções ou distúrbios condicionados por determinados gru-
fatores irritativos das vias aéreas superiores; do pos genéticos como aqueles que predispõem,
mesmo modo, cada um dos quatro sinais clássi- por exemplo, à depressão, podem levar à ma-

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nifestação do sintoma como um fator adaptativo. (Trivers, 1971, 1972, 1974); à Teoria da Mente
Dito de outro modo, nas formas mais brandas, a (Tomasello, 2001) e ao Apego (Bowlby, 2002).
depressão acarretaria a adoção inconsciente de Poucos estudos foram desenvolvidos, até o mo-
uma “estratégia de perda de status” por parte do mento, no sentido de mapear toda a variedade
doente, caracterizada por uma identificação com e alcance dos sistemas comportamentais na ex-
o fracasso; o expediente reduz a carga da cha- plicação evolucionista dos fenômenos psico-
mada competição social, proporcionando patológicos detectados no nível próximo: dis-
profilaticamente um alívio das tensões e um túrbios de ansiedade, depressão, anorexia
redimensionamento das condições de vida no nervosa, o caso dos adictos, para citar alguns.
caso de perda do status social (Price, Soloman,
Gardner, Gilbert, & Rohde, 1994). No entanto, Nessa perspectiva, pode se revelar pro-
aumentada a proporção de gravidade do qua- dutivo estender as idéias acima a uma patologia
dro depressivo, o modelo explicativo parece psíquica específica em que o quadro clínico equi-
perder validade, uma vez que não há aqui pro- vale a um sintoma, como no caso da erotomania
priamente fatores identificáveis de promoção de – a convicção delirante de ser amado por de-
ajustamento individual. terminada pessoa. O campo de reflexão sobre o
fenômeno alarga-se ao limite da mesma busca
que aplicamos ao caso da febre, ou seja, qual a
função do sintoma - erotomania - detectado no
Correlações aplicadas nível próximo? A partir disso, e entre as vias
explicativas evolucionistas que surgem, apare-
Vamos explorar um pouco mais a utili- ce aquela talvez mais conveniente que seria a
dade dessa nova ferramenta para elucidar a de ser vista como uma variação patológica da
perspectiva evolucionista aplicada na compre- estratégia de seleção de parceiros e de repro-
ensão das patologias mentais, disciplina que tem dução. No nível próximo observamos que a pa-
sido designada, a partir da segunda metade do tologia é mais comum em mulheres solteiras que
século 20, como psicopatologia evolucionista. se encontram, com freqüência, em período tar-
Voltando à idéia de um percurso analítico de dio de sua fase reprodutiva e que elegem, como
mão dupla, entre a causa última e a causa pró- objeto de amor, homens socialmente bem
xima, a interrogação sobre a função do sintoma posicionados (freqüentemente médicos, padres,
conduz à busca dos sistemas comportamentais políticos, celebridades). Esses dados sugerem
que lhe possam dar ancoragem em uma expli- que estamos lidando com variantes nos meca-
cação de tipo evolucionista. A identificação do nismos subjacentes às causas últimas das estra-
sistema e a constatação de sua funcionalidade tégias de reprodução humana. Conforme aná-
conduzem, por sua vez, a pesquisas orientadas lise do delírio amoroso feita por Brüne (2002)
sobre os fatores determinantes no nível próxi- “... trata-se de um excesso numa determinada
mo, em termos de ontogêrnese e de causação estratégia da escolha de parceiro, que aponta
imediata, assim como orientam investigações a para uma preferência de parceiros potenciais
respeito do ambiente contemporâneo em con- com alto status social.” (...) “porque nessa estra-
traste com o ambiente de adaptabilidade tégia trata-se de assegurar recursos para si e para
evolutiva. Cria-se um roteiro organizador da potenciais descendentes; as mulheres que ado-
pesquisa; na imagem de Tooby e Cosmides eceram não têm, em geral, um relacionamento
(1992), é como oferecer um mapa aéreo a um fixo e muitas vezes tentam forçar o contato com
andarilho perdido em floresta densa. seus objetos de amor” (Brüne, 2002, p. 130). Isso
significa que no delírio existe um exagero na
É fácil notar que, a partir da variedade tentativa de assegurar o parceiro competente para
de sintomas, poderíamos chegar a uma propor- si própria e para a possível prole.
cional variedade de sistemas no nível último. A
psicologia evolucionista tem definido alguns Tal postulado está plenamente de acordo
desses sistemas funcionais, como os relaciona- com a chamada Teoria da Estratégia Sexual (Buss
dos ao Altruísmo recíproco, ao Investimento dos & Schmitt, 1993). Por meio do critério analítico
pais, à Seleção Sexual e ao Conflito pais-prole da causa última surgem hipóteses sobre sistemas

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Psicopatologia evolucionista

funcionais que foram selecionados e que, por- trato (Cosmides, 1989). Além disso, os primatas
tanto, passaram a fazer parte da estrutura bioló- humanos (e, talvez, até certo ponto os primatas
gica dos indivíduos de uma espécie. Neste caso - não-humanos) desenvolveram a capacidade
a erotomania - o sistema comportamental privi- única de inferir estados mentais de outros indi-
legiado para compreender sua função é o da víduos, que equivale ao sistema comportamental
Seleção Sexual (Brüne, 2001). chamado Teoria da Mente. Assim, nesta espécie
de área fundamental, a do “cérebro social”, ocor-
O resultado, para além dessa conclusão, é
rem soluções adaptativas em função de situa-
o de promover uma integração daquilo que po-
ções evolucionariamente determinantes e rela-
deria ser considerado como explicações estan-
cionadas a problemas do meio ambiente social,
ques (da psicofarmacologia, da genética, da psi-
tais como: questões de status social, sucesso no
canálise e da psiquiatria) das potências
acasalamento, demanda e concessão de cuida-
explicativas baseadas nos corpus de conhecimen-
dos (Gilbert, 1998).
to e tradição de cada uma dessas áreas. Assim, a
interpretação evolucionista pode ser vista como
integrativa, na medida em que “apresenta um Vamos ilustrar agora o alcance explicativo
instrumento heurístico que abrange dados in- do sistema funcional específico citado, a Teoria
dividuais, interpessoais e biológicos”. (Brüne, da Mente, que tem sido relacionada a algumas
2002, p. 55). Além disso, a dimensão cultural psicopatologias.
também pode ser aí incluída, uma vez que não
se contrapõe à vertente biológica, pois essa lei-
tura compreende que os mecanismos culturais Teoria da mente
são baseados em mecanismos psicologicamente
evoluídos. (Buss, 1995; Tooby & Cosmides, 1992). A expressão teoria da mente (ToM) refe-
O que se revela aqui é a tônica principal re-se à capacidade cognitiva de assumir a pers-
desse artigo, ou seja, para sermos pragmáticos, pectiva mental do outro, à capacidade de re-
a utilidade do âmbito destas causas últimas como presentar os estados mentais próprios e de outra
fator decisivo de explicação e reunificação do pessoa, em termos de pensamentos, crenças e
conhecimento dos mais variados sintomas liga- intenções. Considera-se que a Teoria da Mente
dos ao comportamento humano em relação di- emergiu na evolução hominida como adapta-
reta com os seus sistemas comportamentais. ção a um ambiente social de complexidade cres-
cente (Brothers, 1990), embora o conceito tenha
De um modo geral, podemos redimen- sido inspirado por estudos do comportamento
sionar a idéia dos distúrbios psiquiátricos social de chimpanzés (Premack & Woodruff,
reposicionando-os no campo dos chamados dis- 1978). Acumulam-se demonstrações da origem
túrbios do “cérebro social” (Brüne, 2003). Os primata dessa capacidade, ao mesmo tempo em
cérebros dos primatas, humanos inclusive, pos- que os dados comparativos corroboram a idéia
suem mecanismos adaptativos emocionais, de que no homem a ToM alcança patamares
cognitivos e de comportamento que evoluíram únicos de complexidade (Tomasello, 2003). Há
para interagir com o meio ambiente social. A evidências de que o sistema neural subjacente à
notável importância da questão social para a ToM tenha evoluído a partir da capacidade de
sobrevivência do indivíduo e para o sucesso monitorar movimentos de outro ser vivo – com
reprodutivo fez com que os pesquisadores su- sede no sulco temporal superior, no córtex pré-
gerissem que, a princípio, os humanos desen- frontal medial e no giro cingulado anterior
volveram “cérebros sociais” capazes de proces- (Siegal & Varley, 2002), e também a partir de
sar toda a informação que culmina na percepção estruturas neurais associadas ao comportamento
correta e na forma de ser dos seres da mesma imitativo, os chamados neurônios-espelho
espécie (Brothers, 1990). Há evidências (Gallese & Goldman, 1998). Tudo indica que o
empíricas comfirmando esse ponto de vista. Por monitoramento do comportamento de coespe-
exemplo, os humanos entendem mais facilmen- cíficos deve ter formado a base para a evolução
te as regras se estas estiverem em um contexto do monitoramento da mente dos outros.
social em vez de em contexto de raciocínio abs-

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Distúrbios da capacidade de leitura da A análise de tipo top-down se mostra con-


mente têm sido descritos em várias desordens veniente nos casos de estudo dos fenômenos
neuropsiquiátricas, como nas síndromes ditos normais. Para a bottom-up pensamos nos
autísticas (Baron-Cohen, 1995). Há evidências casos patológicos, o que também é evidente, visto
de prejuízos da ToM na esquizofrenia. Alguns que, a princípio, nenhuma patologia poderia ter
sintomas como delírios persecutórios, desorga- justificativas em termos evolutivos (Brüne,
nização do pensamento e da linguagem ficam 2002). Entretanto, importa ressaltar que aquilo
mais bem entendidos à luz das dificuldades des- que nosso vocabulário clínico circunscreve na
ses pacientes em relacionar as próprias inten- idéia de patologia pode bem equivaler a adap-
ções aos comportamentos correspondentes tações nas condições ancestrais, mecanismos de
(Spence et al., 1997). A maioria dos estudos su- defesa contra riscos evolutivamente significati-
gere que a capacidade de ToM sofre deteriora- vos (Gilbert, 1998). Ressaltamos também que,
ção na esquizofrenia em decorrência de um pro- para os fins a que se dedica este estudo o que
cesso neuropatológico desconhecido que se chamamos de patológico refere-se à conceitua-
manifesta depois da puberdade. Ao que tudo ção clássica, ou seja, patologia é a disfunção de
indica, a degeneração se instala na ordem inver- uma ou mais capacidades que leva a um qua-
sa da aquisição ontogenética de complexidade: a dro de insuficiência do organismo na manuten-
compreensão da ironia, por exemplo, pode ser ção da vida, é distorção do andamento tido como
afetada antes da compreensão de metáforas normal ou fisiológico. Em determinadas circuns-
(Brüne, 2003), por exemplo. tâncias pode trazer sofrimento e a partir de um
grau crítico peculiar a cada organismo pode
Descreveremos agora os passos e conside- acarretar a morte.
rações feitos na trajetória que percorremos no
estudo de uma patologia ainda pouco pesquisada Retomando agora os limites dos sistemas
sob a ótica evolucionista - o caso dos adictos - comportamentais disponíveis (Altruísmo recí-
com a finalidade de explorar uma possível proco, Investimento de pais-seleção sexual,
instrumentalização dessa teoria. Conflito pais-prole, Teoria da Mente, Apego),
buscamos explicação para a problemática dos
adictos. Que tipo de sistema funcional daria
conta disso? Como ele se organiza? Quais ou-
Perspectivas para o caso dos adictos tros traços comportariam os fundamentos? Por
outra via, que sistema funcional vinculado às pa-
Buss (1999) retoma e explica o esquema
tologias psíquicas não estaria, por assim dizer,
que denominamos de mão dupla, isto é, quan-
operando convenientemente? E qual seria a fun-
do uma análise pode ocorrer tanto num senti-
ção comprometida no caso do comportamento
do (top-down) quanto no oposto (bottom-up). Es-
adicto?
ses termos são a expressão acabada dos níveis
último e próximo, sendo que no primeiro caso
Refazendo o caminho analítico, ao nos
o tipo de análise se pauta pela necessidade de
dirigirmos ao nível próximo, aproveitamos as
responder o porquê determinado traço evoluiu
categorias propostas por Buss (1999) como fon-
daquele modo. Aplicado ao exemplo acima tra-
tes de dados para testar hipóteses evolucionistas:
tado - o da febre -, a indagação seria: por que o
registros arqueológicos; dados das sociedades
sistema imune manteve esse mecanismo para
de caçadores-coletores; observações; auto-rela-
defesa do organismo? Por outro lado, o segun-
tos; dados de história de vida e registros públi-
do tipo de análise coloca a indagação a respeito
cos; produtos humanos.
de como o traço (tomado aqui, por exemplo, o
patológico) confere sentido e fundamento ao Dentre esses itens, o do auto-relato é tão
conjunto de fundo dos alicerces da evolução. decisivo quanto delicado para a pesquisa psi-
Para o caso da febre, a indagação se mostra evi- quiátrica. Decisivo porque dá acesso privilegia-
dente: sendo algo que a princípio se mostra con- do à patologia, delicado porque dependente de
trário à orientação da aptidão darwiniana, como uma série de variáveis de difícil controle, como
sobreviveu ao refinamento evolutivo? a falsificação, a dissimulação, o disfarce, a omis-

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Psicopatologia evolucionista

são das respostas, a verdadeira inconsciência da A compra compulsiva se define como um


real resposta. Para evitar isso seria o caso, tal- distúrbio no ato de comprar e apresenta pecu-
vez, de construir questionários que pudessem liaridades: preocupação freqüente em adquirir
contornar e evitar tais inconvenientes, como a objetos; o impulso costuma se tornar irresistível,
aplicação de mais de um questionário em cada intrusivo e sem sentido; a compra costuma ul-
pesquisa, buscando a ratificação ou não dos da- trapassar a capacidade financeira do doente;
dos coletados, por exemplo. ítens desnecessários são adquiridos e despende-
se mais tempo nessa atividade do que o preten-
Mesmo assim e tendo em vista essas cate- dido. (Lejoyeux et al., 1996). Alguns estudos
gorias, usamos informações provenientes de defendem a hipótese de que a compra compulsi-
auto-relato para uma exploração inicial de ques- va pode ser considerada um tipo de dependên-
tões na investigação com adictos. Foram con- cia não-química. (Lejoyeux, 1997). A manifes-
sultados 19 adictos em tratamento medicamen- tação do transtorno costuma apresentar a
toso e psicoterápico, dos quais 2 se enquadram seqüência: ansiedade ou depressão seguidos
na categoria jogo patológico, 3 em compra compul- pela compulsão da compra; efetivação do ato
siva, 4 em sexo compulsivo e 10 em dependência de seguida por euforia ou excitação; por fim apa-
drogas. rece a culpa que leva à depressão - e o ciclo se
Recordemos de que maneira a psiquia- reinicia. (McElroy et al., 1995).
tria distingue cada uma dessas patologias. O jogo O sexo compulsivo é, a rigor, subdividido
patológico se caracteriza por um comportamen- em três tipos: obsessões sexuais; impulsões se-
to de jogo inadequado, persistente e recorren- xuais, ou as chamadas sexual addiction – o assun-
te, indicado por, no mínimo, cinco dos seguin- to estudado aqui - e as parafilias). “As impulsões
tes quesitos: preocupação com o jogo (por sexuais constituem atos impulsivos geradores de
exemplo, o paciente revive experiências de jogo prazer, embora muitas vezes associados a senti-
passadas, avalia possibilidades, planeja a próxi- mentos de vergonha e culpa, de caráter
ma parada ou pensa em modos de obter dinhei- repetitivo. Tais condições incluem a masturbação
ro para jogar); necessidade de apostar quantias compulsiva e comportamentos sexuais promís-
de dinheiro cada vez maiores, a fim de obter a cuos repetitivos, que podem ser considerados
excitação desejada; presença de esforços repe- uma forma de dependência não-química”. (Del
tidos e fracassados no sentido de parar de jo- Porto, 1996).
gar, controlar ou reduzir a freqüência do jogo;
inquietude ou irritabilidade ao tentar parar de A dependência de drogas, por sua vez, defi-
jogar, ou reduzir a freqüência do jogo; uso do ne-se como um padrão inadequado do uso de
jogo como forma de fugir de problemas ou de substâncias, levando a comprometimento ou
aliviar um humor disfórico (por exemplo, sen- sofrimento clinicamente significativo, manifes-
timentos de impotência, culpa, ansiedade, de- tado por três (ou mais) dos seguintes critérios:
pressão); retorno ao local do jogo após perda tolerância (definida pela necessidade de quan-
de dinheiro para ficar quite (“recuperar o pre- tidades progressivamente maiores da substân-
juízo”); uso de mentiras para familiares, o cia, para obter a intoxicação ou o efeito deseja-
terapeuta ou outras pessoas no sentido de en- dos, ou pela acentuada redução do efeito com o
cobrir a extensão do envolvimento com o jogo; uso continuado da mesma quantidade de subs-
uso de atos ilícitos, tais como falsificação, frau- tância); abstinência (manifestada por síndrome
de, furto ou estelionato, para financiar o jogo; de abstinência característica da substância; ou a
submeter a risco, ou mesmo a perda, um relaci- mesma substância é consumida para aliviar ou
onamento significativo, o emprego ou uma evitar sintomas de abstinência); consumo fre-
oportunidade educacional ou profissional em qüente da substãncia em maiores quantidades
razão do jogo; busca de terceiros com o fim de ou por um período mais longo do que o pre-
obter dinheiro para aliviar uma situação finan- tendido; existência de um desejo persistente ou
ceira desesperadora causada pelo jogo (DSM- de esforços mal-sucedidos no sentido de redu-
IV-TR, 2003). zir ou controlar o uso da substância; gasto de
tempo alto em atividades necessárias para a

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obtenção da substância, na utilização da subs- associações de estímulo no quadro dos reflexos


tância ou na recuperação de seus efeitos; aban- condicionados clássicos, é igualmente verdade
dono ou redução de importantes atividades so- que um estímulo só adquire valor ativador se
ciais, ocupacionais ou recreativas em virtude do estiver associado a uma situação perceptiva
uso da substância; manutenção do uso da subs- indutora de prazer. Pode-se dizer que o prazer
tância apesar da consciência da existência de um é uma essência dinâmica que permite exprimir
problema físico ou psicológico persistente ou a plasticidade do sistema nervoso. (Vincent,
recorrente que tende a ser causado ou exacer- 1986).
bado pela substância.(DSM-IV-TR, 2003).
Mas o que parece evidente é que apenas
Diante das perguntas (aqui estamos no o prazer ou a busca dele não garantiria a cons-
nível próximo): “Por quê você usa drogas?”, tituição do que chamamos a cultura humana,
“Por que você faz compras ou joga compulsiva- ainda que evidentes e vigorosos elementos de
mente?”, “Por que você faz sexo de maneira prazer sejam constitutivos da idéia geral de cul-
obstinada?”, as respostas foram unânimes - tura. No compartilhamento do conhecimento
busca-se o prazer. Talvez possamos supor que o das múltiplas sociedades, nas inúmeras trocas
sistema funcional procurado relaciona-se, de grupais, cujo eixo se caracteriza pela transmis-
algum modo, com essa busca. Continuamos no são de informações de geração a geração, pelo
nível próximo e procuramos, na neurociência, o uso da linguagem e de outras representações
mapa do prazer no cérebro. Ali encontramos simbólicas (Bussab & Ribeiro, 1997), é conveni-
as vias do prazer e da recompensa no sistema ente que se esclareça, há também prazer em
límbico, descritas por Olds (1969). O ponto re- vários aspectos. Porém, igualmente tem se re-
cortado deste nível sugere que tipo de ligação, velado como um dos traços fundamentais da
de vínculo, de enraizamento poderia haver no cultura o autocontrole, o equilíbrio - numa pa-
nível último. lavra, contenção. Para que a construção aconte-
ça é necessária, muitas vezes, a supressão do
A busca do prazer, de modo amplo, pode prazer ou o retardamento dele.
ser vista como um traço que, revelando-se útil, A partir dos trabalhos que sustentam e
acabou moldado pela seleção natural. Alexander indicam que o núcleo do freio do prazer está
Bain e Herbert Spencer, contemporâneos de no giro cingulado anterior (Allman et al., 2001),
Darwin, atribuem ao prazer um papel chave na estabelecemos o outro polo disto que podería-
adaptação, em face da seleção natural. (Vincent, mos chamar de via de prazer/recompensa – re-
1986). Descargas espontâneas de energia ner- tardamento do prazer. Vislumbramos então, um
vosa provocam atividades musculares difusas: possível caminho neurológico que dará supor-
os movimentos acompanhados de prazer são te a importantes processos de manutenção da
seletivamente reforçados, e os que provocam vida, da reprodução e da construção da cultura
desprazer enfraquecem e desaparecem. Essa humana. Uma via arquitetada no nível próxi-
escolha favorece a adaptação da espécie: um mo, a sugerir funções, no nível último, que jus-
estímulo agradável descarrega uma forte quan- tificariam a sua permanência, para as quais foi
tidade de energia nos músculos que se encon- selecionada na espécie. Buscaremos delinear tais
tram em ação tornando as vias motoras mais funções, agora, no comportamento dos adictos.
permeáveis, ao passo que os estímulos desagra-
dáveis fecham as vias motoras corresponden- Tomemos de início o caso do jogador
tes. (Vincent, 1986). Mesmo a escola behaviorista patológico. O quadro clínico que comumente o
mais preocupada com a aprendizagem do que caracteriza indica uma patologia mais comum
com a evolução, vai na mesma direção quando, em homens que se engajam numa estratégia de
pela lei do efeito, estabelece que uma resposta alto risco. A compulsão pelo jogo começa, mui-
comportamental só é conservada se for seguida tas vezes, em um momento aparentemente pa-
de uma recompensa que, por sua vez, implica o cífico na vida do jogador. Ele pode relatar que a
prazer que daí resulta. Se, em vez da resposta vida em família estabelecida se mostra monóto-
comportamental, considerarmos unicamente as na demais, algo o leva a procurar outros desafi-

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Psicopatologia evolucionista

os – quem sabe conquistar vantagens em relação muitas vezes, coloca em risco a vida dos envolvi-
a outros homens –, ainda que somente na fanta- dos. As afecções sexualmente transmissíveis, em
sia: muitas vezes o jogo é solitário. Cabe a ressal- particular a Aids, constituem o risco maior a que
va de que, a rigor, cada jogador é, obviamente, se expoem esses indivíduos, nos dias de hoje.
um ser único, do mesmo modo como concebe- Assim, o sexo compulsivo pode ser compreendi-
mos por extensão, cada esquizofrênico, cada do, em termos de causa última, como um exage-
fóbico, cada farmacodependente, e assim por ro na estratégia reprodutiva de busca de parcei-
diante; a classificação se fundamenta apenas em ros. Evidentemente, todas as considerações sobre
questões estatísticas que apontam traços comuns valor adaptativo, ajustamento, normalidade e pa-
aos chamados jogadores patológicos aqui estu- tologia devem ser colocadas em contexto, em
dados. O jogador, permanecendo na experiên- função dos aspectos limitantes trazidos pelo dis-
cia de risco sente-se mais poderoso, mais capaz túrbio que compromete o bem estar e as necessi-
para futuros hipotéticos desafios, inclusive ou- dades essenciais do indivíduo, a integração soci-
tros acasalamentos que nem chegam a se concre- al no grupo de referência e assim por diante.
tizar, mas impõem-lhe o risco de perder o con- Desse modo, apesar de encontrarmos as chances
quistado. de reprodução aumentadas em função do gran-
A compradora-compulsiva, em geral mu- de número de intercursos sexuais tidos por es-
lher (Christenson et al., 1994), não costuma ter ses doentes, recordemos que o quadro muito se
a vida em ordem no momento em que se iniciam distancia dos românticos dom-juans encontra-
os sintomas. A situação familiar não apresenta dos na literatura (Luz, 2005), pois, nos casos aqui
tipicidade, a baixa auto-estima é notória e, ao estudados, a experiência sexual é buscada sem
adquirir objetos, ela relata uma sensação de pra- liberdade - por se tratar de uma compulsão -, e
zer, um aumento de autovalorização que se esvai concluída, na maioria das vezes, com sentimen-
na seqüência do ato. O alvo das compras são, tos de culpa e vergonha, conforme relatamos
principalmente, itens de beleza (Christenson et anteriormente na descrição do quadro clínico.
al., 1994), sugerindo uma função de acréscimo
do poder de acasalamento; some-se a isso a fre- A análise da dependência de drogas, por
qüente aquisição de outros objetos ou provisões outro lado, apresenta outras peculiaridades. A
para que a identifiquemos como uma coletora ela parece-nos mais difícil, por enquanto, atri-
em shoppings modernos a evocar nosso passado buir um vínculo determinante no nível último.
ancestral de caçadores-coletores. No entanto, ao Sabemos, no entanto, que o paciente fragilizado
invés de angariar recursos, que estariam aumen- em seu poder de ação busca o prazer para ten-
tando seu prestígio, está ela, de fato, tar um aumento imediato da auto-estima, o que
despendendo-os, uma vez que os objetos adqui- estabelece a ilusão de possuir condições para
ridos não contribuem efetivamente para uma qualquer desempenho posterior, seja reprodu-
satisfação duradoura. ção, competição ou alguma atividade social. Em
termos estritos isso significa um aumento da
Sabe-se que, em última análise, a natureza aptidão a partir da dinamização do funciona-
privilegia, em termos de processo de evolução mento neuroquímico, trazida pela droga, com
natural, a reprodução em detrimento da sobre- a conseqüente potencialização das emoções po-
vivência, nos casos em que a primeira independe sitivas e bloqueio das negativas (Nesse &
da segunda. Não é difícil atinar com a impor- Berridge, 1997). Assim descrito, o comporta-
tância funcional do sistema reprodutivo e nem mento passa a ser problemático na ocorrência
com a força da pressão seletiva exercida sobre de uma oferta da droga em níveis excessivos. O
esse sistema na evolução das espécies em geral aspecto cultural relevante que aqui se apresen-
(Alcock, 2001). O mesmo ocorre no comporta- ta é o de que o problema do abuso de substânci-
mento humano normal e a psicopatologia pode as e dependência tem se tornado pronunciado
se beneficiar das considerações sobre as caracte- desde o começo da produção industrial de ál-
rísticas da evolução e do desenvolvimento de cool e outras drogas (Nesse & Berridge, 1997).
nosso padrão reprodutivo. O quadro do sexo É de se supor que essa oferta excessiva leve à
compulsivo ilustra esse fenômeno, na medida farmacodependência aqueles indivíduos porta-
em que a busca indiscriminada do parceiro, dores de poucos receptores cerebrais para a dada

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Fabíola Luz, Martin Brüne e Vera Silvia Raad Bussab

substância, que são, efetivamente, os candidatos


Referências
mais prováveis ao vício, conforme hipóteses
neuroquímicas recentes (Stahl, 2000). Essas hi- Alcock, J. (2001). Animal behavior, an evolutionary
póteses, embora não pretendam explicar a com- approach. Massachusetts: Sinauer Associates.
plexidade da patologia, oferecem mais uma con- Allman J. M. et al (2001). The anterior cingulate
tribuição para elucidação do problema. E, além cortex. The evolution of an interface between
disso, podemos imaginar que humanos moder- emotion and cognition. Annals of the New York
nos não tiveram ainda a chance de desenvolver Academy of Sciences, 935, 107-117.
adaptações à oferta em larga escala de substânci- Baron-Cohen, S. (1995). Mindblindness: An essay on
as psicoativas. autism and theory of mind. Cambridge, MA:
Bradfort/MIT Press.
Ora, tanto o caso da compradora compul- Bowlby, J. (2002). Apego – a natureza do vínculo. São
siva quanto o do compulsivo sexual ligam-se, pelo Paulo: Martins Fontes.
visto, a suas causas últimas da Seleção Sexual pelas Brothers, L. (1990). The social brain: A project for
vias do prazer, função que também se pode atri- integrating primate behavior and
buir aos jogadores patológicos, embora com neurophysiology in a new domain. Concepts in
menor ênfase. No entanto, o dependente de dro- Neuroscience, 1, 27-51.
gas, apesar de percorrer a mesma via, parece Brüne, M. (2001). De Clérambult’s syndrome
não exibir, em seu quadro clínico, os sistemas (erotomania) in na evolutionary perspective.
comportamentais aqui descritos como função Evolution and Human Behavior, 22, 409-415.
última, a partir desse trilhar comum. O prazer Brüne, M. (2002). Evolutionary psychopathology as
é um mecanismo que, de modo geral, movimen- exemplified at delusional disorders (2001).
ta o indivíduo para aumentar a aptidão no nível Nevenheilkunde, 21 (3), 127-131. Evolutionäre
Psychopathologie am Beispiel wahnhafter
último – essa é provavelmente a função para a
Störungen.
qual esse mecanismo foi selecionado. Mas na es-
Brüne, M. (2002). Toward an integration of
sência desse recurso pode haver um perigo la-
interpersonal and biological processes:
tente, o da estação intermediária acabar por se
Evolutionary psychiatry as an empirically testable
tornar um fim, quando deveria ser um meio. framework for psychiatric research. Psychiatry, 65,
A rigor, podemos imaginar que os pro- 48-57.
cessos que conduzem ao aumento da aptidão Brüne, M. (2003). Theory of mind and the role of
sejam formados por partes mais ou menos in- IQ in chronic disorganized schizophrenia.
dependentes, que interagem para resolver pro- Schizophrenia Research, 60, 57-64.
blemas significativos do ponto de vista adapta- Brüne, M., Ribbert, H., & Schiefenhövel, W. (2003).
tivo, à semelhança dos modelos que explicam a The social brain – Evolution and Pathology. England:
organização modular da mente (Fodor, 1983). John Wiley & Sons.
Nas patologias psíquicas, de modo geral, pode- Buss, D. M. (1995). Evolutionary psychology: A new
mos supor que o caminho é interrompido ou paradigma for psychological sciences.
uma das etapas não se cumpriu, o que é facil- Psychological Inquiry, 6, 1-30.
mente compreensível no caso dos adictos, ain- Buss, D. M. (1999). Evolutionary psychology – The new
da mais evidente no dependente de drogas, ten- Science of the Mind. USA: Allyn & Bacon.
do em vista que a estação intermediária é o Buss, D. M., & Schmitt, D. P. (1993). Sexual strategies
prazer, ou a busca dele. Se essa distorção ocor- theory: An evolutionary perspective on human
re porque o passo em questão é prazeroso, se se mating. Psychological Review, 100, 204-232.
deve à falha no freio do prazer, ao excesso de Bussab, V. S. R., & Ribeiro, F. L. (1997). Biologica-
oferta de drogas na sociedade moderna, ao pe- mente cultural. Em L. Souza, M. F. Q. Freitas &
M. M. P. Rodrigues (Orgs.), Psicologia: Reflexões
queno número de receptores para determina-
(im)pertinentes (175-193). São Paulo: Casa do
da substância, não sabemos com certeza. Prova-
Psicólogo.
velmente, o fenômeno se deve a todos esses fatores
Cosmides, L. (1989). The logic of social exchange:
conjuntamente, e mais outros tantos, ainda des-
Has natural selection shaped how humans
conhecidos, e que provavelmente serão revela- reason? Studies with the Wason selection task.
dos em investigações futuras. Cognition, 31, 187-276.

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Psicopatologia evolucionista

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