Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Sérgio Kodato
Doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP-São Paulo.
Docente nos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia da USP-FFCLRP.
E-mail: <skodato@ffclrp.usp.br>.
Resumo
O presente artigo discorre sobre a história recente da psicologia social, a partir do desenvolvimento
da Teoria das Representações Sociais. A complexidade desta teoria deriva da desconstrução de falsas
dicotomias e reducionismos. O texto expõe avanços e desafios que marcaram a história da abordagem
elaborada por Serge Moscovici, bem como a sua importância para a psicologia social. A pesquisa
consiste numa revisão crítica de literatura, envolve questionamentos de cunho epistemológicos e on-
tológicos direcionados à obra original de Moscovici. Tendo em vista tais indagações, nota-se que os
argumentos aqui defendidos enveredam para um alinhamento dessa teoria aos paradigmas complexos
e pós-modernos, tal como defendem a psicologia discursiva e o construcionismo social. Para tanto,
afirma-se que a representação social deve ser compreendida diante de sua inscrição na esfera pública,
superando os pressupostos mecanicistas e o cognitivismo individual. Essa proposta de discussão co-
loca em evidência a maturidade alcançada pelos estudos em representações sociais após anos de pes-
quisas sistemáticas, intenso debate teórico e metodológico, propiciando a consolidação de um projeto
político com as minorias ativas.
Palavras chaves: representações sociais, história da psicologia, epistemologia
1 Artigo baseado na Tese de Doutorado “Redes de Proteção e garantia de direitos: representações sociais por
conselheiros tutelares”, defendida em 2014 no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade
de São Paulo, FFCLRP, com Bolsa de Doutorado da CAPES.
social contemporânea e a Teoria das Representa- psicologia social definia o seu estatuto nas ciên-
ções Sociais a partir de considerações pontuais cias naturais, sendo fiel ao fisicalismo e ao prag-
sobre o trabalho proposto por Serge Moscovici. matismo.
Os manuais considerados clássicos em psi- No final da década de sessenta surgiu, na
cologia social foram organizados por precursores Europa, a Análise Institucional com Lourau,
como Solomon Asch, William McDougall, Carl Lapassade e Basaglia, os quais desenvolveram
Allanmore Murchison e Gardner Lindzey. Na uma proposta sociológica no estudo das institui-
produção teórica e epistemológica, destacava-se a ções, dando início a mudanças importantes nas
chamada Escola de Chicago com representantes práticas em saúde mental. Posteriormente, com
como William Thomas e George Mead. Sobretu- Felix Guatarri e Gilles Deleuze, o discurso da
do, até meados da década de sessenta prevaleceu a antipsiquiatria atinge contornos de extrema im-
individualização da psicologia social, a área tinha portância, repercutindo no conceito de loucura
como referência pesquisadores Gordon Willard para além da desrazão e da alienação do sujeito
Allport, James Mark Baldwin dentre outros. Se- no modelo asilar de reclusão. Por outro lado, em
gundo Farr (2002), o individualismo tornava-se oposição a individualização da psicologia social,
parte essencial de uma ideologia dominante, com o trabalho de Henri Tajfel e Colin Fraser posicio-
suas raízes no dualismo cartesiano, constitui a nou a área buscando o diálogo permanente com
base epistemológica da psicologia social norte-a- a sociologia, o que propiciou novas teorias sobre
mericana. O individualismo proponha uma visão a ação social no cotidiano (Spink & Spink, 2005).
do contexto social tendo, como referência, a abor- A teoria de Moscovici despontava, também,
dagem comportamental. como uma alternativa promissora em oposição
Eram comuns as dicotomias e dualidades ao individualismo na psicologia social. Contu-
entre o sujeito e objeto, o indivíduo e a socieda- do, os estudos com destaque no meio acadêmi-
de. As cisões e bipolaridades no objeto de estudo co, seguiam a tradição norte-americana. Ou seja,
tinham como consequência a noção de um psi- apesar do trabalho desenvolvido por psicólogos
quismo sem história e uma história sem sujeito. sociais renomados na França, Inglaterra, Alema-
O termo “social” da psicologia se restringia a um nha, Rússia, Argentina, El Salvador e no Brasil, a
conjunto de variáveis ambientais que deveriam prática científica encontrava respaldo nos labora-
ser passíveis de observação, registro e quantifica- tórios experimentais com o uso de recursos como
ção (González Rey, 2004). Discutindo esse mode- escalas e inventários na avaliação do comporta-
lo hegemônico que influenciou a área ao longo de mento individual. Segundo Palmonari e Cerrato
todo o século XX, Moscovici (2006) aponta que (2011), durante na década de sessenta instalava-
três formas distintas ganharam força: a psicolo- se uma crise de identidade na psicologia social, a
gia social taxonômica, a psicologia social diferen- qual estendeu-se para toda a psicologia e demais
cial e, por fim, a psicologia social sistemática. Es- ciências sociais devido ao ceticismo crescente nas
sas três formas mantinham estreita relação com ideologias liberais. E, em meio ao movimento de
a psicologia geral e experimental. Portanto, não crítica à abordagem hegemônica, Serge Mosco-
contemplavam a subjetividade numa dimensão vici em sua primeira obra, enfatizou o senso co-
processual e dialógica. mum como uma forma de conhecimento prático
O rigor da análise causal, na relação entre e um possível objeto de análise social.
variáveis, norteava as descobertas científicas. O livro “La Psychanalyse, son image, son
Com efeito, os pesquisadores sociais se ocupavam public” de Serge Moscovici, destacou-se nas ciên-
com o desenho de situações controladas e repli- cias sociais e causou grande impacto na psicolo-
cadas em laboratório, tendo em vista o status de gia, articulando uma referência para os pesquisa-
ciência nos estudos. Sobretudo, era evidente que dores do mundo inteiro. A opção metodológica
as investigações apreciavam, superficialmente, defendida pelo autor indicava que análise do ob-
os problemas sociais urgentes para grande parte jeto de estudo dependia da participação ativa do
dos cidadãos excluídos, principalmente, na Amé- pesquisador (Arruda, 2002). Nessa obra, Mosco-
rica Latina. Os temas investigados envolviam, vici indagou sobre os mecanismos cognitivos en-
por exemplo, a dinâmica de grupos, atitudes, volvidos na representação de um discurso cientí-
cognição, alteridade, aprendizagem, persuasão fico por uma comunidade específica. Assim, esse
e influência social. A vertente individualista em trabalho posicionou o saber do cotidiano como
ignorada ou rejeitada na tradição da psicologia so- Cabe destacar que representação é um conceito
cial experimental. Para situar a subjetividade nos utilizado como expressão vaga, o que torna a sua
estudos em psicologia social foi necessário supe- coexistência plausível de acordo com o contexto
rar a noção de indivíduo enquanto átomo artifi- histórico (Carvalho & Arruda, 2008).
cialmente separado de seu contexto histórico. Foi Sá (1998) contribui com o debate argumen-
necessário superar a individualização da psicolo- tando que a fórmula proposta por Moscovici e
gia social (Marková, 2006). endossada por Denise Jodelet – toda representa-
ção é uma representação de alguém (sujeito) e de
alguma coisa (o objeto) – enfatiza a ligação neces-
A representação e o social: sária do objeto de representação a um determina-
do sujeito. Porém, este autor aponta que é forçoso
a polêmica de um conceito reconhecer o caráter esquemático que pode con-
dinâmico duzir a noção de um sujeito ou objeto em termos
genéricos, de modo que as condições sociocultu-
A influência das representações sociais na rais da vinculação sejam desprezadas, incorrendo
psicologia social é constatada não apenas por sua na banalização cognitivista e dualista do concei-
história e difusão nos meios acadêmicos, mas to. Em termos da produção de conhecimentos na
também por variações e apropriações distintas da área, percebe-se a propagação de pesquisas com
obra original de Moscovici. Os enfoques incluem enfoque individualista e “uma forte tendência
a abordagem estrutural de Jean-Claude Abric, positivista que, em muitos casos, acabou trans-
a abordagem sociocultural de Denise Jodelet, a formando este conceito em uma entidade estática
abordagem genética de Willem Doise e a aborda- de correlação” (Gonzáles Rey, 2004, p. 95).
gem dialógica de Ivana Marková. Essas perspec- Assim, apesar dos esforços por teóricos re-
tivas teóricas e metodológicas sobre as represen- nomados da abordagem, como Jodelet (2005),
tações sociais não são radicalmente distintas, eles o termo representação permanece influenciado
se interpenetram e se enriquecem mutuamente pelo cognitivismo individual, evidenciando ten-
(Jovchelovitch, 2007). Contudo, a proposta pa- dências mecanicistas e computacionais, seguindo
radigmática de Moscovici enfrentou resistências, o princípio determinista na relação mente, cére-
principalmente nos EUA. Já na Europa, encon- bro e comportamento (Marková, 2006). Nesta di-
trou território propício para seu desenvolvimen- reção cabe o alerta: as representações, não podem
to, o que ocorreu ao longo da década de setenta, ser tomadas exclusivamente como produto de
onde passou a ocupar papel de protagonista na formalizações e imagens processadas na mente
pesquisa social. dos indivíduos. Porém, observa-se, atualmente,
Mas, é notório que o trabalho de Moscovi- que a preocupação com aspecto metodológico
ci recebeu críticas contundentes, uma vez que o não implica, também, na preocupação com fun-
autor empregou um termo como vasta discussão damentos epistemológicos e ontológicos subja-
teórica na psicologia, sociologia e filosofia: o ter- centes a prática científica. Muitas vezes nos depa-
mo representação. Carvalho e Arruda (2008) reco- ramos com a descrição de estratégias e técnicas
nhecem que o conceito representação é polissêmi- no tratamento de dados, mas pouco com avanços
co e possui uma longa tradição de uso nas ciências significativos nos aspectos filosóficos e epistemo-
sociais. Este conceito possui diversos significados, lógicos que envolvem a abordagem das represen-
às vezes muito distintos, ou seja, trata-se de uma tações sociais. Soma a isso que, para Jovchelovit-
designação que passa por um território interdisci- ch (1998), o papel decisivo das representações na
plinar. Segundo Jodelet (2005), seja no que tange formação do sujeito psicológico, nem sempre foi
aos processos intrapsíquicos, as produções men- algo consensual entre autores de grande influên-
tais, a cognição, a ideologia ou a ação pública, cia na psicologia, como Piaget, Freud, Vigotski,
ocorrem muitas formulações e concepções sobre dentre outros. O diferencial da abordagem de
o conceito representação, as quais influenciam na Moscovici, o qual deve nortear as discussões, é
opção metodológica dos pesquisadores. Represen- que a representação surge como um dispositivo
tação geralmente indica algo inserido na relação da ação comunicativa. Portanto, é no espaço da
entre um sujeito e um objeto, sendo comum sua intersubjetividade que ocorre a condição de exis-
apropriação como atividade mental individual. tência das representações e sua matéria advém da
dessa sociedade flexível, mas cabe o alerta de a psicologia social moderna se caracteriza como
Gonzáles Rey (2006, p. 70) em direção às críticas: uma disciplina “dominada em nosso século, pri-
meiro pelo comportamentalismo e, mais recente,
a realidade social em que nos situamos, como por um cognitivismo não menos reducionista e,
realidade produzida, não levou Moscovici à ar- durante todo este tempo, por um individualismo”
madilha em que o construcionismo social caiu, (Duveen, 2003, p. 11). E, apesar das divergências
ao representar essa realidade construída apenas e embates, é consenso que a psicologia social to-
como uma produção simbólica, sem nenhum
mou uma forma crítica e política, comprometida,
nexo com outros registros que definem proces-
sos e fenômenos que, tendo um caráter diferente cada vez mais, com as transformações de uma
das nossas práticas simbólicas, as constituem. realidade desigual e excludente. É notório que a
Esses elementos que, mesmo entrando na or- psicologia social atingiu o objetivo de superar a
dem do simbólico nas práticas humanas, não oposição entre a análise individual e a análise so-
são processos simbólicos em si mesmos, e que cial, voltando-se, essencialmente, para os estudos
são inseparáveis do conjunto de nossas práticas dos vínculos sociais nas relações cotidianas (Pal-
é o que pode ser chamado de realidade. Preci- monari & Cerrato, 2011). Nesta direção, seguindo
samente, a realidade social é construída porque os preceitos da abordagem sociocultural afirma-
existem processos subjetivos que expressam se “uma nova dimensão espaço-temporal para
outros registros da realidade e que são os res-
se apreender o indivíduo como um ser concreto,
ponsáveis pela produção da realidade social. A
subjetividade não é uma cópia, nem um reflexo manifestação de uma totalidade histórico-social
do mundo real, é uma produção humana de ca- (Lane, 1984, p. 15).
ráter simbólico e de sentido que, dentro da rea- Nesse percurso, surgiram vários trabalhos
lidade social em que o homem vive, lhe permite importantes a partir de referências como Vigo-
as diferentes opções de vida cotidiana e de seu tski, Foucault, Arent, Heller, Castoriades dentre
desenvolvimento. outras. No final da década de noventa os pesqui-
sadores da área aderiram às mudanças, investindo
Além disso, o autor afirma que as vertentes ainda mais nos escritos de Marx, Adorno, Guatar-
construcionistas e discursivas têm dado pouca ri, Foucault, Sartre, Pichon-Rivière e Martín-Bo-
atenção à dialética complexa do social e indivi- ró. De fato, foi necessário um longo percurso para
dual na atividade humana e isso pode compro- que a epistemologia centrada num sujeito dialéti-
meter o entendimento da subjetividade, enquan- co e processual tivesse espaço no debate teórico e
to categoria do psiquismo. O discurso, nessas metodológico. Atualmente no Brasil, a psicologia
vertentes, seria utilizado como fim em si mesmo social tem se colocado como área capaz de romper
e único cenário para produção científica, o que com a noção naturalizada e individualizada de
conduz a uma nova forma de reducionismo. A homem, estas dentre outras conquistas decorrem
psicologia social deixaria de encontrar formas do trabalho árduo de muitos pesquisadores que
diversas de subjetivação construídas na história adotaram a Teoria das Representações Sociais. A
concreta de seus protagonistas, as minorias ati- visão de um homem concreto, pensando enquan-
vas. É um fato que a teoria das representações so- to sujeito ativo e histórico, tem contribuído para
ciais, ao longo de sua história, carrega a tensão, uma atuação profissional eminentemente ética e
a diversidade metodológica e o diálogo com as intensamente norteada para o empoderamento
oposições. Com efeito, os teóricos da abordagem das minorias que vivem em situação de sofrimen-
não recusam o papel da linguagem no desenvol- to, humilhação e injustiça.
vimento humano e na expressão da subjetividade,
pois, a linguagem introduz o homem no universo
simbólico. Não há representação social sem dis- Considerações Finais
curso. Porém, “as palavras não são tradução di-
reta das ideias, do mesmo modo que os discursos
O presente artigo discorre sobre a história
não são nunca as reflexões imediatas das posições
recente da psicologia social e aponta uma série de
sociais” (Moscovici, 2006, p. 219).
elementos que fazem parte do desenvolvimento
A proximidade de Moscovici com uma for-
dessa área, sem perder de vista os discursos que
ma de pensamento social, visto como marginal
permanecem em conflito. A história da psicolo-
e minoritário, implicou em dificuldades na con-
gia social pode, efetivamente, ser narrada e com-
solidação de sua psicossociologia. É um fato que
Lane, S. T. M. (1980). Uma redefinição da Psicologia Palmonari, A. & Cerrato, J. (2011). Representações
Social. Educação & Sociedade, 2(6), 96-103. sociais e psicologia social. In Almeida, A. M., Santos,
Lane, S. T. M. (1984). A Psicologia social e uma nova M. F. & Trindade, Z. A. (Eds.), Teoria das represen-
concepção de homem para a Psicologia. In Lane, S. T. tações sociais: 50 anos (pp. 305-332). R.J.: Techno
M. & Codo, W. (Eds.), Psicologia social: o homem em Politik.
movimento (pp. 10-19). S.P.: Brasiliense. Sá, C. P. (1998). A construção do objeto de pesquisa
Marková, I. (2006). Dialogicidade e representações em representações sociais. R.J.: EDUERJ.
sociais: as dinâmicas da mente. Petrópolis: Vozes. Spink, P. K., & Spink, M. J. A. (2005). Psicologia So-
Moscovici, S. (1978). A representação social da psica- cial na Atualidade. In Jacó-Vilela, A. M., Ferreiro, A.
nálise: resultados da pesquisa de opinião e análise teó- A. L. & Portugal, F. T. (Eds.), História da Psicologia:
rica (A. Cabral, Trad.). R.J.: Zahar. (Trabalho original Rumos e Percursos (pp. 595-622). R.J.: Nau Editora.
publicado em 1961).
Moscovici, S. (2006). Representações sociais: investi-
gações em Psicologia Social (P. A. Guareschi, Trad.).
R.J.: Vozes. (Trabalho original publicado em 2000).
Abstract
In this article, the recent history of social psychology is discussed, based on the development of Social
Representations Theory. The complexity of this theory derives from the deconstruction of false dicho-
tomies and reductionisms. The text presents advances and challenges that marked the history of the
approach elaborated by Serge Moscovici, as well as its importance for social psychology. The research
is a critical literature review, involving epistemological and ontological inquiries on Moscovici’s ori-
ginal work. In view of these inquiries, it is observed that the arguments defended here lead towards
the alignment of this theory with the complex and post-modern paradigms, as defended in discursive
psychology and social constructionism. Therefore, it is affirmed that the social representation should
be understood in view of its inscription in the public sphere, overcoming the mechanistic premises
and individual cognitivism. The proposed discussion evidences the maturity of social representations
studies after years of systematic research, intense theoretical and methodological debate, favoring the
consolidation of a political project with the active minorities.
Keywords: social representations, history of psychology, epistemology