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Epistemologia e Representações Sociais: Reflexões a partir de um paradigma


emergente na pesquisa psicossocial – complexidade e interconexão

Conference Paper · July 2003

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3 authors:

Antonio Roazzi Alexsandro Medeiros Nascimento


Federal University of Pernambuco Federal University of Pernambuco
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Carvalho Maria do Rosário


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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Roazzi, et al. (2003). Epistemologia e Representações Sociais 1

Roazzi, A., Nascimento, A. M., Carvalho, M. R. (2003). Epistemologia e representações sociais:


Reflexões a partir de um paradigma emergente na pesquisa psicossocial - complexidade
interconexão. In: Anais do V Encontro de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em
Representações Sociais: Teoria, Pesquisa e intervenção (pp. 332-339). Natal: Editora da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Epistemologia e Representações Sociais: Reflexões a partir de um


paradigma emergente na pesquisa psicossocial – complexidade e
interconexão

Antonio Roazzi - UFPE1


Alexsandro Medeiros do Nascimento - UFPE2
Maria do Rosário de Carvalho - UFRN3

A Teoria das Representações Sociais4, elaborada inicialmente por


Moscovici - o estudioso que tem mais contribuído para desenvolver este tema no
plano teórico (Moscovici, 1961, 1976, 1983, 1984a,b, 1988) - ocupa nos dias de
hoje um lugar todo particular na psicossociologia, especialmente a de marca
européia, pelas inovações introduzidas que tem transformado a ótica
epistemológica e enfoques metodológicos da Psicologia Social.
A multiplicação de estudos sobre o tema das RS é testemunho não
somente da sua vitalidade, como também da validade de seus construtos básicos,
que não podem ser confundidos com uma moda passageira. Como afirmado por
Doise (1986), "Depois de mais de um quarto de século não se correm mais riscos
de afirmar que a corrente de pesquisa em psicologia social iniciada com a obra de
Moscovici sobre a representação social da psicanálise, não tem produzido uma
mudança em profundidade nesta disciplina" (p.7).
Não há dúvidas de que existem razões suficientes para considerar as
representações sociais como um paradigma emergente, relativamente recente5,

1
Antonio Roazzi <roazzi@gmail.com>
2
Alexsandro Medeiros do Nascimento <alexmeden@hotmail.com>
3
Rosario Carvalho <rofacarvalho@gmail.com>
4
Doravante ‘RS’ até o final do texto.
5
O conceito de ‘representação social’ apesar de ser recente, está radicado em conceitos e fontes teóricas mais
antigas: o conceito de ‘Representações Coletivas’ de Durkheim (1898), (criticamente re-elaborado por
Moscovici), algumas formulações da Sociologia do Conhecimento, do Interacionismo Simbólico e da Teoria
da Atribuição.
Roazzi, et al. (2003). Epistemologia e Representações Sociais 2

da Psicologia Social contemporânea, com uma série de conceitos-chave definidos,


uma linguagem compartilhada e parâmetros referenciais específicos.
Antes de tudo, a produção teórica e empírica, que desde o início dos anos
'60' até hoje têm se inspirado, através de uma maior ou menor sistematicidade, no
conjunto de conceitos e perspectivas metodológicas inerentes à proposta cultural
de Moscovici, testemunham o interesse difundido entre os pesquisadores, sobre
aquilo que é muito mais, do ponto de vista teórico, do que uma investigação sobre
a imagem pública da Psicanálise e sua difusão na França durante os anos 606.
Este conjunto de estudos, que teve como local de partida a França (e.g., Gilly,
1980, 1981; Käes, 1968; Herzlich, 1969, 1972; Jodelet, 1983, 1984a,b, 1986; Plon,
1973), e em seguida difundiu-se por toda a Europa (e.g., Di Giacomo, 1980; Doise,
1972, 1978, 1985, 1986; Doise & Palmonari, 1988; Palmonari, 1980, 1989).
A teoria das RS surge a partir da necessidade teórica de elaborar um
instrumento conceitual, especificamente psicossocial, capaz não somente de
explicar de forma mais profunda uma série de objetos sociais e a elaboração
operada pelo sistema de percepções e atividades cognitivas do sujeito em relação
a estes objetos (Quais são os principais processos cognitivos que intervêm na
elaboração das representações?), como também, surge da necessidade de ser
um instrumento capaz de expressar o sentido das múltiplas mediações que
intervêm no nível do coletivo - mediações estas ligadas a uma série de fatores
como a ciência, os sistemas ideológicos, as atividades profissionais, as
modalidades de vidas, as crenças etc. - e compreender a especificidade dos
processos e dos conteúdos do intercâmbio e da articulação desta relação
indivíduo/objeto, mundo cognitivo/mundo social, nível individual/nível coletivo em
termos mais precisos e menos fragmentários do que o fazem elementos ou
construtos dos sistemas cognitivos usuais em Psicologia Social, tais como
"opinião", "imagens", "atitude", "conflito", "atribuição" etc. De fato, o que se indica

6
Como afirmado por Jodelet, Viet e Besnard (1970) "...interrogar-se sobre a penetração das teorias
cientificas em uma determinada sociedade significa de fato perguntar-se: por uma lado como uma concepção
elaborada no quadro de uma ciência particular intervém nos processos de compreensão do real, nas condutas
sociais e na linguagem; por outro lado quais são as modalidades de conversão de uma teoria cientifica em um
sistema de opiniões de um grupo específico e quais são os efeitos da estrutura, o conteúdo e a linguagem
desta teoria" (p.188).
Roazzi, et al. (2003). Epistemologia e Representações Sociais 3

com o termo representação não corresponde a estes elementos isolados, mas ao


que outros autores têm anteriormente indicado como “estrutura cognitiva” e
“organização cognitiva” (Codol, 1969; Zajonc, 1969), como apontando para uma
totalidade em que indivíduo e sociedade são indissociáveis, num movimento
contínuo de relações mutuamente constitutivas, sendo uma RS específica, uma
síntese sempre provisória e marcadamente pontual desta mesma totalidade em
seu atravessamento histórico (Carvalho, 2001).
A teoria das RS surge também da necessidade de um aprofundamento
conceitual da Psicologia Social em aberta oposição à tradição behaviorista,
distanciamento e tomada de posição claramente enfatizadas por Moscovici,
quando o mesmo assevera que "... quando estudamos as representações sociais
estudamos o homem que faz perguntas, procura respostas ou pensa, não o
homem que processa informações ou se comporta ... mais precisamente
estudamos o homem que tem como objetivo a compreensão e não o
comportamento” (Moscovici, 1984, p.15). Outra questão que dá surgimento à
teoria das representações sociais é a necessidade de livrar-se do reducionismo de
alguns mais recentes esquemas interpretativos dos planos e das estratégias de
codificação da realidade social de cunho cognitivista (toda a corrente de pesquisa
que utiliza o modelo do processamento da informação). Este resgate da Psicologia
Social, a favor de uma consideração da complexidade das formas, conteúdos,
modalidades, funções e processos de elaboração e de estruturação das
representações sociais, na dinâmica real das trocas interpessoais, e sobretudo,
intergrupos7, tem levantado um debate, até agora muito vivaz, entre os
pesquisadores. Este tem se expandido rapidamente, além do âmbito do
"Laboratoire de Psychologie Social et dell'Ecole des Hautes Etudes en Sciences
Sociales" de Paris.
Esta mesma tendência pode ser também observada nos países anglo-
saxões, onde podem ser constatadas uma série de escolas de pensamento de
cunho psicossocial, como o Construcionismo Social de Berger e Luckman (1967),

7
Considere-se o que diz Doise (1982) sobre o prevalecer dos níveis de análise intra-individual e interpessoal
da psicologia norte-americana.
Roazzi, et al. (2003). Epistemologia e Representações Sociais 4

o Interacionismo Simbólico de Mead (1934) e a Atribuição Causal de Jaspar


(Hewstone & Jaspars, 1984), todas surgidas da busca de uma perspectiva mais
rica e abrangente, que restituísse à Psicologia Social um mais amplo respiro
cultural, resgatando-a, principalmente, do reducionismo de certos micro-modelos
explicativos do comportamento social, próprios de uma certa dominância de
esquemas interpretativos de marca behaviorista. Todas estas perspectivas, em
clara oposição à tradição behaviorista dominante nos USA, visam a uma
redescoberta do estudo dos processos cognitivos complexos, a importância da
consciência do indivíduo no estudo dos fenômenos psicossociais e o papel dos
processos simbólicos em relação ao comportamento, compreendendo inclusive a
linguagem - a grande negada pelo behaviorismo - e todos os seus processos.
Esta área de investigação apresenta-se potencialmente enriquecida pela
amplitude e abrangência do seu campo de atuação, sinais da utilidade heurística
de um conceito estruturado em diferentes níveis e capaz de lidar com fenômenos
múltiplos e complexos no plano psicológico e social, individual e coletivo, cada um
configurando conteúdos e espaços de significados diversos8. Considere-se, por
exemplo, a multidimensionalidade dos fatores (cognitivos, emotivos,
comportamentais, motivacionais, prescritivos, etc.), das componentes (figurativas,
icônicas, simbólicas, ideológicas, etc.), e dos níveis (individual, intra-pessoal, inter-
individual, intra-situacional, social e coletivo) requeridos para compreender a
imprescindível ligação dos processos-produtos do conhecimento social da
realidade, e, conseqüentemente, o amplo horizonte explicativo ao interior do qual
se coloca este paradigma9. Esta multidimensionalidade explica as polarizações de
interesses de uma série de outras áreas de conhecimento como a Antropologia
Cultural, Sociologia, Psicologia do Desenvolvimento, Psicologia Comunitária,

8
Existe uma grande diferença entre representações emergentes a partir de uma relação diádica - aquelas
emergentes da inter-relação entre um indivíduo e o grupo - e aquelas ativadas pela consciência comum. Para
Moscovici, estes fenômenos são diferenciados entre si, apesar de estarem inter-relacionados.
9
Considere-se as perspectivas mais tradicionais sobre as representações sociais, de cunho mais
psicológico (e.g., Abric & Kahan, 1971; Apfelbaum, 1967; Doise, 1982) e as perspectivas, de autores como
Boltanski (1971) sobre a difusão do saber médico e a difusão dos medicamentos, Bourdieu (1980) sobre a
noção de senso prático, Robert e Fogeron (1978) sobre a noção social de sistema penal etc., de cunho
claramente mais sociológico, que nos fazem pensar a RS como algo inserido no interior do sistema cultural e
ideológico dominante.
Roazzi, et al. (2003). Epistemologia e Representações Sociais 5

Historia, etc., fato este que tem tornado as RS mais um patrimônio das ciências
sociais do que único e exclusivo da Psicologia Social.
Esta riqueza que o paradigma das RS nos oferece e este processo de
diferenciação que facilmente pode ser observado na literatura nesta área, não se
refletem necessariamente na diversificação dos múltiplos objetos de investigação,
(em relação aos quais está centrada a produção de pesquisa), mas, ao contrário,
nas escolhas metodológicas, nos tipos de análises utilizadas e na
operacionalização dos construtos teóricos. Os objetos de investigação, por quanto
sejam inúmeros e diferentes entre si10 (como por exemplo, a popularização de
modelos e teorias científicas, o vandalismo, o público e o privado, a economia, as
emoções, o corpo, a saúde/doença, a criança, a mulher, o trabalho, o sistema
educacional, a mobilidade profissional, a teoria psicanalítica e sua prática social, a
cidade, etc.), não modifica, per se, a perspectiva de análise. Conseqüentemente,
tanto ao estudar as representações sociais da educação, como da doença mental,
por exemplo, dado que, em ambos os casos, o corte epistemológico das
representações sociais (sua estrutura, sua natureza, as funções que desempenha
e os processos que a regulam) não sofre modificações.
Todavia, a diferente operacionalização dos construtos teóricos, no caso de
se planejarem métodos de pesquisas que privilegiam a coleta de dados em um
contexto natural ou em uma situação de laboratório, como também as técnicas de
coleta de dados e suas diversas modalidades de análise, modificam
profundamente a ótica de investigação. Tratar a RS como uma variável
dependente ou como uma variável interveniente a ser colhida em situações sociais
reais, ou que, pelo contrário, seja tratada como uma variável independente em
planejamentos experimentais de laboratório; como também optar por técnicas de
coleta de dados mais abertas e menos estruturadas, como a entrevista ou o
questionário com resposta livre, ou técnicas de coleta mais estruturadas e
preocupadas com aspectos quantitativos e de controle das variáveis e,
conseqüentemente, com a escolha de diferentes modalidades de análise dos

10
Esta diversidade, apesar de tudo, continua sendo um fator a ser considerado para uma apropriada escolha
metodológica.
Roazzi, et al. (2003). Epistemologia e Representações Sociais 6

dados, não significa somente fazer uma simples escolha metodológica. Do ponto
de vista teórico, esta escolha possui implicações que não podem ser sub-
avaliadas. Uma investigação preocupada com a artificialidade de uma situação de
exame e que opta por procedimentos mais sensíveis às variáveis contextuais,
adota uma ótica de investigação cujo foco está centrado na relevância social do
objeto investigado e sobre suas dinâmicas de transformação - nas tramas das
relações sociais historicamente determinadas e dos processos de re-construção
simbólica que concorrem à criação e veiculação das formas de pensamento social.
Ao contrário, uma investigação preocupada com o controle das variáveis e os
efeitos de distúrbios que poderiam invalidar as inferências, a partir dos resultados
obtidos, centra-se mais nas determinantes cognitivas do comportamento e sobre a
intervenção dos processos de interação social, ativadas experimentalmente, na
elaboração das representações.
Isto posto, o presente trabalho insere-se numa ampla tentativa de reflexão
do mainstream da Psicologia Social sociológica contemporânea11 (ver Farr, 2001,
p. 151-165) sobre os impasses especificamente epistemológicos que a teoria das
RS vem tentando enfrentar em sua marcha na cultura acadêmica desde 1961 (ano
de publicação da obra seminal de Moscovici sobre a Psicanálise e sua difusão na
sociedade francesa), e que diz dos traços genéticos de seu conceito basilar, suas
filiações teóricas, a base sociológica que lhe subjaz, mas sobretudo, do corte
epistemológico12 que lhe traz à existência.

11
Autores externos ao campo da Psicologia como Holland (1979) já pontuaram a artificialidade e
esquematismo ideológico que funda a divisão de trabalho entre as disciplinas da Sociologia e Psicologia,
gerando uma incomunicabilidade prejudicial a ambas, em suas teorizações respectivas. Se em alguns
momentos, a ênfase no trabalho com conceitos de fronteira como o de ‘papel’ (ver Jackson, 1972) desponta
como uma tentativa de solução do impasse de trabalho gerado por uma circunscrição rígida demais das
disciplinas envolvidas, os magros resultados desse esforço de trabalho deixam em aberto o vazio teórico que
prevalece sobre as relações indivíduo-sociedade na contemporaneidade, gerando trabalhos de tendência
marcadamente unilateral como as versões da Psicologia Social americanas (com seu forte acento
individualista) ou as sociologias européias e mesmo americanas, com seu apagamento típico do sujeito
concreto. No bojo dessa discussão desponta o esforço intelectual de Moscovici, de uma recusa radical ao
fechamento intra-campos, de escolha pelo trabalho nos fenômenos de fronteira entre as disciplinas. Para uma
reflexão mais aprofundada das diferentes versões co-existentes da Psicologia Social atual – as formas
sociológica e psicológica – ver o trabalho indispensável de Robert M. Farr (Farr, 2001).
12
Usamos aqui a mesma noção de corte epistemológico cunhada por Althusser e Balibar (1970) em seu
estudo magistral sobre “O Capital” de Marx. Nesse trabalho em específico, os autores localizam um momento
do pensamento de Marx em que o mesmo se libera gradualmente dos conceitos e modos de pensar e de
construir conhecimento dos filósofos, ponto de virada em sua trajetória intelectual na direção de um estudo
Roazzi, et al. (2003). Epistemologia e Representações Sociais 7

Os problemas teóricos e metodológicos suscitados por tal corte


epistemológico são da mesma magnitude posta ao conceito de RS, o que nos
confronta com toda uma ordem de difíceis questões relacionadas especificamente
ao lugar da epistemologia subjacente à Teoria das RS na Teoria do
Conhecimento, e das exigências a que tal epistemologia tem de responder, o lugar
do paradigma “moscoviciano” no panorama mais geral da cultura contemporânea
e seu elo estreito de ligação com uma dinâmica social própria da
contemporaneidade ocidental. Esses pontos aqui levantados demandam um maior
aprofundamento, o que se tentará a seguir.

O LUGAR DAS RS NA TEORIA DO CONHECIMENTO: OS IMPASSES


EPISTEMOLÓGICOS
Num movimento crescente de aquisição de auto-consciência e auto-
referencialidade, a partir da complexificação do sistema nervoso e da emergência
das áreas mais recentes do córtex cerebral (com o aparecimento conseqüente de
atividade simbólica, linguagem e cultura material), o homem em sua marcha
evolutiva desenvolveu estratégias cognitivas diversas de apreensão do real e de
significação do mundo e de si mesmo, de que nos dão testemunho os achados
arqueológicos e paleo-antropológicos, desvelando aos nossos olhos modernos, a
riqueza e complexidade dos sistemas de pensamento bem como a expressividade
humana nos domínios artístico e mágico-religioso desde épocas bem remotas da
humanização.
Essas estratégias cognitivas em sua diferenciação progressiva cristalizaram-se
em diferentes domínios do conhecimento, cada qual com sua lógica particular de
funcionamento e necessidades internas específicas, bem como modos de

propriamente científico do ‘Continente da História’, segundo expressão de Holland (1979). Moscovici, tendo
atrás de si uma herança intelectual das mais robustas, das Humanidades européias, que remontam no mínimo
às Luzes, e uma história da disciplina da Psicologia Social já venerável e madura tanto no continente europeu
mas sobretudo na América do Norte (ver análises de Farr, 2001), por um processo de extração conceitual
operado sobre o conceito de representação coletiva de Durkheim (1898) gera, nos domínios científicos,uma
nova possibilidade de pensar, atravessada por questões intrínsecas aos modos de vida, pensamento e
sensibilidade emergentes a partir da Modernidade Tardia, com ênfase em problemas dantes impensáveis,
tendo-se as epistemologias tradicionais como quadros de referência. É dessa exigência em relação à Teoria do
Conhecimento ortodoxa - ou vice-versa desse modo canônico de se conceitualizar as relações entre sujeito e
objeto, que trata o presente trabalho.
Roazzi, et al. (2003). Epistemologia e Representações Sociais 8

explanação acordes com sua dinâmica cognitiva peculiar. Nascem assim as Artes,
o Senso Comum, o Pensamento Mágico-religioso, a Filosofia, a Teologia, e mais
recentemente, o discurso científico, com sua necessidade premente de
circunscrição de seus limites e contra-posição/negação dos modos históricos de
conhecer construídos pela espécie.
O Método Científico não nasce pronto nos domínios do conhecimento humano,
mas foi fruto de uma longa e penosa gestação na cultura ocidental, a partir do
trabalho intelectual de muitos mentores, que foram paulatinamente plasmando
suas formas de operação e modos de organização de material empírico e de
observação, até chegarmos à conformação atual do método, em larga escala, sob
os auspícios da síntese newtoniana operada em meados do século XVII.
Nessa lenta elaboração, conforme apontado por Nascimento (1997), alguns
pensadores tiveram uma participação capital na forja de uma nova inteligibilidade
do real, típica da Modernidade, e profundamente descrente nos modos de
conhecimento herdados da Idade Média e da Escolástica. Bacon em sua obra
“Novum Organum” afasta o discurso científico nascente, definitivamente, dos
dogmas especulativos da Teologia e Filosofia do Medievo, ao propor o ‘método
indutivo’ como a forma correta de trabalho na qual deveriam se basear as
Ciências, para o correto conhecimento dos fenômenos naturais, onde se parte dos
fatos concretos da experiência para formulações de caráter geral, na forma de leis
e causas; nesse sentido, o discurso científico seria inequivocamente dotado de um
traço pragmatista, ao não visar o conhecimento ‘em si’ e sim ao controle da
Natureza (Bacon, citado em Crema, 1989, p. 31). Galileu Galilei, contra toda a
doutrina aristotélica das causas finais, assume expressamente uma metáfora
mecânica para o Universo, sendo o último nada mais que um conjunto extenso e
heterogêneo de fenômenos mecânicos. Segundo sua visão, a Natureza sendo
perfeita demandaria uma linguagem também perfeita para expressá-la
cientificamente, sendo a Matemática a linguagem por excelência para tal
empreendimento; ao adotar tais premissas teórico-métodológicas, Galileu opera
pela primeira vez e de forma original, a síntese do raciocínio teórico, observação
Roazzi, et al. (2003). Epistemologia e Representações Sociais 9

experimental e rigorosa linguagem matemática que caracterizaria toda a ciência


subseqüente (ver Galilei, 1987, p. 7-8).
O racionalismo de Descartes contribui para a inclusão do método analítico
no paradigma nascente, ou de decomposição dos fenômenos em suas unidades
fundamentais, sendo o próprio homem alvo desse método, na decomposição da
pessoa humana operada por Descartes em duas substâncias distintas, a mente e
o corpo (‘res cogitans’ e ‘res extensa’, respectivamente em latim), o que faz do
homem um ‘Homem-Máquina’ habitando um ‘Universo-Máquina’, funcionante
segundo leis de precisão matemática e causal (Descartes, 1996, p. 370). Esses
princípios acima elencados, sofrem uma re-elaboração e uma metamorfose
dialética no pensamento de Newton, que os eleva a um nível de acabamento e
sofisticação magistral, conduzindo a uma identificação total entre a leitura de
Newton e a ciência tal como a mesma foi considerada por muito tempo após, um
verdadeiro modelo do ‘bem-fazer” científico, segundo considerações kantianas
(ver Japiassú, 1996, p. 195). Em sua obra “Os Princípios Matemáticos da Filosofia
Natural” de 1687, Newton expõem suas concepções mecanicistas do Universo e
da necessidade de unificação de aspectos empíricos e matemáticos no bojo do
método científico, o que se coloca de forma contundente nos dois aspectos
metodológicos principais expostos no texto dos Princípios, o primeiro dizendo
respeito à necessária postulação da teoria em seus termos matemáticos, e o
segundo, a adoção sistemática e irrestrita da análise indutiva na investigação dos
fenômenos naturais, pela qual, partindo-se da experimentação e observação
empíricas ascende-se a formulações gerais na forma de leis causalísticas
(Newton, 1687/1897; 1704/1987, p. 204).
Observa-se na síntese do paradigma cartesiano-newtoniano, o progressivo
afastamento das explicações de ordem metafísica, especulativa e religiosa, e uma
desconsideração deliberada de outros modos de conhecimento canônicos na
espécie, notadamente o senso comum, doravante considerado uma forma ingênua
e imprecisa de conhecer; quanto ao conhecimento religioso, visto agora à luz dos
assombrosos avanços e conquistas cognitivas da ciência, como pura ignorância,
mistificação e erro, devendo-se centrar todos os esforços para a sua progressiva
Roazzi, et al. (2003). Epistemologia e Representações Sociais 10

eliminação da sociedade moderna, ranço epistêmico encontrado ainda em vários


autores da Modernidade Tardia como Freud (1953), Marx (1845/1984; Marx &
Engels, 1845-1846/1984) e Comte (1875), como também em autores
contemporâneos. À parte uma hostilidade pelo fenômeno religioso em geral,
observa-se a sedimentação de uma lógica particular de produção de
conhecimento, a qual tem no princípio de causalidade a sua pedra fundamental;
explicações causalísticas e mecanicistas ocuparão o espaço na cultura deixado
pela derrocada de lógicas de outra natureza, o que a longo prazo, mostrar-se-á
nefasto ao avanço das disciplinas científicas, desde a Física até as de cunho
social, como a Psicologia, em suas variadas sub-disciplinas.
Logo, logo, a adesão incondicional a esse modo unilateral de conhecer o
real mostrou seus inconvenientes, tendo proponentes da própria Física, como
Einstein, com sua ênfase na natureza relativa do Espaço e do Tempo e postulação
de seu continuum quadridimensional - o “espaço-tempo”; Planck, com sua
postulação de que a energia emitida por qualquer corpo só pode realizar-se de
forma descontínua, através de “pacotes de energia”, por ele denominados
“quantum”; Heisenberg, com sua introdução do Princípio da Incerteza, que postula
a total impossibilidade de se saber ao mesmo tempo, a posição e a velocidade das
partículas sub-atômicas; em seu conjunto, estas proposições fazem desmoronar
uma cosmovisão mecanicista, causalística e positivista da ciência herdadas da
Modernidade inicial. No campo dos fenômenos psíquicos, esse mesmo tipo de
explicação causalística começa a ser problematizada pela postulação jungueana
de um princípio a-causal governando todos os fenômenos do universo, do nível
macro-cósmico dos planetas e galáxias, ao mundo quântico das partículas,
passando pelo registro psíquico da consciência e do inconsciente (ver Jung, 1990,
p. 15-16). Na pesquisa psicanalítica, o conceito de ‘sobredeterminação’ faz eco ao
princípio heisenberguiano da incerteza, no âmbito dos fenômenos psicológicos, ao
postular uma multi-determinação das constelações psíquicas emergentes no
contexto da análise, o que aponta para a constatação da impossibilidade de
formalização total de um determinado sistema, nesse caso, o psíquico (ver
Nascimento, 2002).
Roazzi, et al. (2003). Epistemologia e Representações Sociais 11

Em inícios do século XX, já se podem se observar, claramente, uma


dinâmica de desconstrução de uma visão de mundo herdada do paradigma
cartesiano-newtoniano, e a emergência dos fenômenos ditos da pós-modernidade,
com sua forte focalização sobre pluralização de mundos de vida, de saberes, de
racionalidades, com a conseqüente perda de confiança no método científico e nas
verdades religiosas únicas e universais. Opera-se uma relativização geral da vida
humana e de seus pressupostos fundamentais, numa proporção nunca dantes
vista na história universal. Esse devir das forças econômicas e materiais, trará seu
impacto sobre a teorização científica, com a emergência de novas formas de
pensar os fenômenos, em enquadramentos inusitados, no que pode se chamar
com justeza de uma verdadeira revolução cognitiva e epistemológica, ainda em
curso na atualidade. Dessa estreita articulação entre teorização científica, visão de
mundo mais geral de uma época e a dinâmica das forças produtivas e materiais
da sociedade, resultou na proposição (ao longo de todo o século XX) de teorias
científicas com forte ênfase em continuidade, interconexão e abolição de fronteiras
rígidas entre os fenômenos, dentre as quais, o paradigma das RS se destaca no
campo da Psicologia Social e do pensamento social. Desse enodamento orgânico
entre os diversos níveis humanos, trataremos com algum detalhamento a seguir.

PÓS-MODERNIDADE, COMPLEXIDADE, INTERCONEXÃO: UM PARADIGMA


EMERGENTE NA PESQUISA PSICOSSOCIAL
A Globalização coloca-se como um excelente ponto de partida para o estudo
dos chamados ‘fenômenos da pós-modernidade’. Como um momento
teoricamente esperado da expansão do capitalismo, a mesma tem sido um
qualificativo de processos “atuantes numa escala global, que atravessam
fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em
novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo, em realidade e em
experiência, mais interconectado”13 (Hall, 2003, p. 67). A explosão das novas
tecnologias, de informação e de deslocamentos de bens e de pessoas, fazem ruir

Para uma reflexão mais aprofundada sobre o conceito de ‘globalização’ indicamos o excelente trabalho de
13

Anthony McGrew (McGrew, 1992).


Roazzi, et al. (2003). Epistemologia e Representações Sociais 12

as representações usuais de tempo e de espaço, num encurtamento perverso das


distâncias, quer espaciais quer simbólicas, de cujos efeitos deletérios sobre as
sociedades atuais já se começa a teorizar; fala-se então da violência simbólica
sobre as identidades étnicas e nacionais, as quais sofrem processos de
desintegração, como resultado do incremento de homogeneização cultural,
reforçamento de identidades ‘locais’ como forma de resistência à globalização14, e
hibridização de identidades, na forma de emergência de novas identidades,
mistas, em que elementos autóctones co-existem com elementos estrangeiros
(Hall, 2003, p. 69).
Autores como Santos (2000), através de análises acuradas a partir de suas
realidades de cidadãos de países em desenvolvimento, como o Brasil, apontam a
lógica de exclusão que rege a manipulação das tecnologias de informação e do
dinheiro por parte de minorias de atores sociais (organizações multinacionais ou
mesmo estados-nação), os quais abrem ainda mais o intervalo que já separa
historicamente os donos do capital dos grandes contingentes (cada vez mais)
pauperizados do Terceiro Mundo (op. cit., p. 38-39), o que lança tais populações
em estado de confusão anômica e descrença nas identidades individuais (ver
Giddens, 1991, p. 133; Lyon, 1998, p. 50-51), e faz emergir o que Balman (1998)
nomeia de ‘vontade de liberdade’, marca da pós-modernidade em resposta às
profundas e rápidas modificações econômicas, tecnológicas, culturais e do
cotidiano nesta época.
Na esfera do pensamento conceitual e acadêmico, vai se estabelecendo
paulatinamente a visão de um Universo contínuo, composto e expresso por
fenômenos interligados, numa expressão holística de funcionamento e
constituição de que nos dão testemunho amplas margens da pesquisas físicas,
biológicas e mesmo psicológicas. Uma nascente abordagem na Física Teórica, a
Abordagem Bootstrap, rejeita totalmente a noção de ‘equação fundamental’ e
propõe uma visão do Universo em que o mesmo é descrito como “uma teia
dinâmica de eventos inter-relacionados” (Crema, 1989, p. 44), cuja estrutura é

14
Ver Connor (2000, p. 181-187) para uma reflexão sobre os discursos dos oprimidos enquanto compondo
espaços de resistência ao controle hegemônico dos discursos totalitários e homogeneizadores dos detentores
do poder.
Roazzi, et al. (2003). Epistemologia e Representações Sociais 13

determinada pela ‘coerência total’ de suas inter-relações. Para Basarab Nicolescu,


conforme Weil (1987), expoente dessa abordagem, a noção central de
‘autoconsistência’ define as relações estreitas entre os diversos níveis da
realidade, do macro ao micro-cósmico, passando pela esfera humana, níveis
todos organizados e organizantes sob os auspícios de uma “única e mesma
autoconsistência”. No âmbito da Mecânica Quântica, David Bohm especula a
existência de um universo multidimensional, onde parcelas de seu registro são
passíveis de experienciação – e portanto, de tratamento pela ciência, registro que
ele nomeia de “ordem explícita”, que brota de um nível mais profundo e não
experienciável diretamente, fundo de toda a nossa experiência física, psicológica e
espiritual; esta ordem oculta, teria seu trabalho sob o aparente caos e
descontinuidade das partículas quânticas. Para além desse registro, estaria tudo o
que é matematicamente pensável num registro de infinita profundidade (n-
dimensões) – a “ordem superimplícita”, intrínseca e organicamente conectada com
os níveis mais superficiais, a partir do que o autor nomeia de “holomovimento”, isto
é, a própria esfera do que é manifesto, expressão tangível a partir dos movimentos
de recolhimento e desdobramento dos níveis mais abstratos do universo, de onde
tudo emerge, matéria, consciência e significação, não havendo assim nenhuma
distinção substancial entre esses registros, uma vez serem todos eles expressões
da mesma ordem implícita (Bohm, 1989, p. 46-47).
Nas ciências da vida, o mesmo vértice holístico tem começado a se
estabelecer, tendo trabalhos importantes como o de Karl Pribram e Rupert
Sheldrake, nos campos das neurociências e embriologia respectivamente,
evidenciado muito vivazmente a falência de uma explicação newtoniana-
cartesiana, com sua ênfase em polarizações do tipo sujeito-objeto, matéria-
energia, corpo-mente/consciência, etc., e noções como descontinuidade,
objetividade/neutralidade, separatividade, causalidade, entre muitas outras, no que
tange aos movimentos complexos da matéria viva.
Pribram (citado em Crema, 1989, p. 45), apoiando-se num referencial da teoria
holográfica, postula o cérebro como um holograma onde cada neurônio contém
informações sobre o todo cerebral, sendo o próprio cérebro um holograma do
Roazzi, et al. (2003). Epistemologia e Representações Sociais 14

universo. Assim, o cérebro seria parte de um grande holograma universal, tendo


acesso a todos os princípios de controle e informações, estando abolidas,
portanto, num sentido estrito, restrições de tempo e de espaço, abrindo-se assim,
a partir dessa visão, uma grande possibilidade de interferência direta sobre o real
por parte da consciência (Baunstein, 1987). Sheldrake (1989), numa reflexão
emergente de seus trabalhos com embriogênese, problematiza a causação
mecanicista em voga nas ciências, e argumenta na direção de uma causação
formativa dos fenômenos, especialmente os ligados à matéria viva, de natureza
claramente teleológica. Tal causação aponta para a existência do que ele nomeia
de “campos morfogenéticos”, estruturas espaciais invisíveis, os quais ao
envolverem o organismo em desenvolvimento, seriam os responsáveis pela forma
e direção desse desenvolvimento (op. cit., p.102-103). Sendo também uma
estrutura temporal, onde a partir de um modelo a ser alcançado no futuro o
desenvolvimento é a ele chamado paulatinamente, os campos morfogenéticos
recebem uma evidência empírica em trabalhos onde a partir de manipulação de
embriões e amputações de partes do mesmo, o que resta se desenvolve numa
totalidade plena, tendo o modelo do campo como ‘guia’ ou programa de
regeneração.
Tal compreensão sistêmica está se consolidando lentamente e encontrando
eco em praticamente todas as áreas da ciência, fato que é verdadeiro inclusive
para o campo psicológico, como veremos a seguir. Conceitos nuançados por
significações de totalidade, interconexão, holismo, não-separatividade, etc.,
começam a aparecer na literatura da área, numa clara mudança de paradigma
que ainda está em franca construção, o que exige burilamento conceitual,
aprimoramento das metodologias e das técnicas de tratamento de dados.
Do exposto acima, evidencia-se a interligação tangível entre os diversos níveis
da vida humana, de onde se observa que movimentos contemporâneos da base
econômica e material da sociedade - sua infra-estrutura, repercutem e
condicionam importantes transformações na super-estrutura - a existência e as
formas do Estado e da consciência social, inclusive sua produção teórico-
Roazzi, et al. (2003). Epistemologia e Representações Sociais 15

científica, para retomarmos essa distinção conceitual no pensamento de Marx (ver


Marx & Engels, 1845/1984, p. 22).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Argumentamos portanto que a emergência, na pós-modernidade, de formas
holísticas de pensamento, sistêmicas em princípio e forma, nas Hard Sciences
como também na Psicologia Social em sua vertente das RS, ecoa a emergência
de novas e profundas formas de intercâmbio sócio-político e tecnológico, típicas
desse recorte histórico e de forma alguma pensáveis em outro momento no
tempo. A superação de formas desgastadas de socialidade herdadas da
Modernidade e das Luzes, põe à nu a aparição de importantes fenômenos de
disjunção de sujeito, tempo e espaço (ver Oliveira, Nascimento & Roazzi, 2003), e
transformação das identidades (Hall, 2003), que clamam por releituras de nossas
certezas quanto ao método científico e de nossas formas canônicas de construção
de conhecimento no campo psicológico, especialmente em sua vertente dedicada
à elucidação da relação indivíduo-sociedade, tarefa à que o novel paradigma das
RS tem tentado enfrentar corajosamente há algumas décadas, embora sobre o
mesmo recaiam críticas severas e que não devem ser desconsideradas muito
rapidamente, sem um exame acurado e uma crítica interna.
Conforme análises de historiadores do campo social, especialmente as de
Holland (1979) e de Farr (2001), nem sempre as disciplinas da Psicologia e da
Sociologia estiveram separadas, havendo mesmo um tempo em que
pesquisadores ocupavam-se de ambos os objetos, não os considerando
mutuamente excludentes. A implacável defesa da separatividade das disciplinas
efetuada por Durkheim (1898), impactou indelevelmente o pensamento social
posterior, gerando um ônus e uma tarefa ingrata a ser equacionada, qual seja, a
de elucidar os processos que estariam no âmago das relações entre individuo e
processos coletivos, agora radicalmente separados epistemicamente, o que
Roazzi, et al. (2003). Epistemologia e Representações Sociais 16

evidencia o ranço positivista na base da reflexão durkheimiana, em sua


preocupação de garantir o estatuto de cientificidade para a sociologia nascente.
Se tentativas sofisticadas do ponto de vista teórico, de ultrapassar a zona de
abismo que separava o individual do coletivo, como a efetuada por Mead (1934),
com sua noção intermediária de self a fazer a ponte entre a mente (instância
puramente individual) e a sociedade (as coletividades), fracassaram pela
implacável imposição do ponto de vista positivista e behaviorista ao quase
conjunto da produção psicológica da época, uma melhor apreciação dessa tarefa
pôde ser feita em nossos tempos, após mudanças drásticas no panorama geo-
político e no zeitgeist do mundo pós-guerras mundiais, na acolhida e fecunda
proliferação de estudos das humanidades, inspirados pelas novas concepções de
sujeito/objeto, causalidade e explanação científica, trazidas por Moscovivi desde
seu trabalho sobre a Psicanálise (ver Moscovici, 1961).
Se por um lado o autor em questão retoma um conceito de largo uso na
Psicologia desde seus primórdios, a saber, o de representação, por outro lado,
seu uso da noção em jogo se contrapõe em larga medida e frontalmente ao modo
como o mesmo é compreendido numa nuance racionalista ou idealista, pela
Psicologia dos começos e que o interpreta as mais das vezes como uma
reprodução mecânica e mais ou menos fiel – uma cópia – da realidade externa ao
sujeito, este considerado usualmente como sujeito da consciência e do controle,
radicalmente distinto do objeto e prévio ao mesmo.
Contra essa concepção de cópia mecânica e de sujeito passivo, Moscovici
(1961) contrasta seu sujeito ativo, construtivo, dinâmico, construtor de
representações, impensável fora do circuito que o liga aos objetos e suas
representações cognitivas, sendo seu universo interior pensado em profunda e
mútua articulação e constituição com o universo exterior, não havendo corte “entre
o universo exterior e o universo interior do indivíduo, que o sujeito e o objecto não
são essencialmente distintos” (Moscovici, 1969, citado em Vala, 1993, p. 355). O
estatuto do sujeito na teoria impõe uma severa reordenação da direção da
causalidade entre estímulos e respostas, tal como essa direção é
Roazzi, et al. (2003). Epistemologia e Representações Sociais 17

paradigmaticamente postulada nas psicologias (inclusive sociais) de cunho


empirista e positivista.

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