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Logo no início do primeiro capitulo Lessa apresenta um conto titulado Um

resultado inesperado, cujo denota-se um pouco da história do personagem Ikursk,


um medroso guerreiro de uma tribo, que ao defrontar-se com a ideia de ter que
matar um grande tigre, que aterrorizava a região, e que por vez já havia ceifado a
vida de inúmeros outros guerreiros, busca estratégias para sabotar tal
responsabilidade, decidindo construir um descomunal e inadequado machado, na
tentativa de isentar-se do perigo que seria enfrentar a temida fera, que com êxito é
desobrigado de sua função mas ocasionalmente acaba por se deparar com o felino,
involuntariamente matando o animal.

O autor usa da referida narrativa para apresentar as três esferas ontológicas


de Lukács, a esfera inorgânica, equivalente as rochas, a água, os minerais, dentre
outros, a esfera orgânica que corresponde as plantas e aos animais e por último o
ser social, representado pelos seres humanos, dotados de inteligência. Ikursk é
utilizado como uma ferramenta para explicar as categorias do ser social,
atravessado por essas três esferas indissociáveis.

Para além disso, é necessário destacar os saltos ontológicos como parte


fundamental para compreender este ser social, entendendo esses saltos como
rupturas que emergem a continuidade para algo novo, exemplificando que a vida é
resultado da matéria inorgânica que em saltos ontológicos impulsionaram o
surgimento dos primeiros seres vivos e posteriormente a existência da vida humana,
que por vez é inerente a uma coletividade. Conforme destacado pelo autor (LESSA,
2016, pág. 23) em referência a obra de Lukács

“todo salto implica numa mudança qualitativa e estrutural do ser, na qual


a fase inicial contém certamente em si determinadas premissas e
possibilidades das fases sucessivas e superiores, mas estas não podem
se desenvolver daquelas a partir de uma simples e retilínea
continuidade. A essência do salto é constituída por essa ruptura com a
continuidade normal do desenvolvimento e não pelo nascimento
repentino ou gradual, ao longo do tempo, da nova forma de ser.” Em
outras palavras, o salto corresponde ao momento negativo de ruptura,
negação, da esfera ontológica anterior; é este momento negativo que
compõe a essência do salto. Todavia, a explicitação categorial do novo
ser não se esgota no salto.
Já no capítulo II apresenta-se a categoria do trabalho, sendo esta entendida
como a atividade primeira da vida humana, dado que tudo que temos hodiernamente
ao nosso redor é fruto da atividade humana, mediante sua relação com a natureza,
para a construção de novas coisas. Na categoria do trabalho é de suma importância
considerar a consciência, visto que suas ideações e pensamentos embasam a
execução de suas ações, ou seja, pensar sobre algo torna-se uma pré-condição
para criar determinada coisa, assim, ressalta a importância da teleologia (o estudo
dos fins) e da casualidade, que ressonam características do ser social.

Diferentemente dos animais que respondem exclusivamente a extintos, os


seres humanos são também impulsionados pela inteligência, ao passo que na
medida que transformam a natureza e objetificam suas ideias acabam por também
progredir um processo de exteriorização entre objetos e indivíduos, premissas que
denotam semelhanças com o conto já supracitado, tendo em vista que validando-se
do fato do personagem ser um guerreiro medroso, o mesmo encontra como
alternativa a construção do machado para contrariar uma expectativa coletiva
depositada sobre si, em relação a enfrentar o tigre.

Neste limiar, percebe-se que a exteriorização decorrente do trabalho tem em


sua gênese uma determinada finalidade, que de maneira análoga a tal premissa
torna-se plausível trazer a obra para os dias atuais. Logo, nessa perspectiva é
possível correlacionar de maneira explicita o apego e a grande valia por acessórios
e roupas de grife, produções humanas que espelham a necessidade aquisitiva de
parte da sociedade para cumprir uma determinada finalidade, neste caso cumprir o
propósito de transformar uma realidade idealizada ou assim como Ikursk fugir de um
determinado medo ou mera insegurança. Nas palavras de Lessa (2016, pág. 38) “As
finalidades são, sempre, socialmente construídas. A necessidade de um machado é
puramente social o que significa afirmar que nenhuma processualidade natural
poderia produzir a necessidade de um machado.” bem como nenhuma
processualidade natural poderia justificar a necessidade de uma bolsa ou um sapato
de grife.

Em conclusão, o capítulo V da obra analisada em questão concentra-se em


expor a conectividade ontológica pontuadas por Lukács, sobre a totalidade e
individualidade social, ao considerar o ciclo reprodutivo das formações sociais.
Ao considerarmos a indissociável interação entre o gênero humano (em sua
totalidade) e a individualidade humana, é imprescindível atentarmos as
problemáticas emergentes do assunto, dado que atualmente o capitalismo por vezes
acaba por impulsionar o interesse de algumas classes em detrimento dos interesses
de uma totalidade, dando renitência a inúmeros entraves sociais e tensões que
ressonam a delimitação entre grupos e polarização de interesses.

Os receios de Ikursk resultaram em um machado descomunal e inadequado,


e mesmo que sabotando seu machado inicial, o seu projeto final cumpria a
necessidade de proteger sua reputação perante os outros membros da aldeia tanto
quanto se proteger da possibilidade de ser demandado a enfrentar a grande fera. Do
mesmo modo percebe-se parte da sociedade atual, que utiliza da exibição de caros
supérfluos como seu próprio machado, muitas vezes na intenção de fortalecer o
vínculo dentro de um determinado grupo ou por simplesmente esconder seus medos
e inseguranças individuais. Nesse sentido Bauman analisa que o fortalecimento da
individualidade e a buscar por identidade é o que vai instigar o sentimento de
proteção e segurança, ao mesmo tempo que administrará o surgimento de
comunidades cabides, que em suas palavras pontua: “a vulnerabilidade das
identidades individuais e a precariedade da solitária construção da identidade levam
os construtores da identidade a procurar cabides em que possam, em conjunto,
pendurar seus medos e ansiedades individualmente experimentados” (BAUMAN,
2003, p. 21).

REFERÊNCIAS

LESSA, Sérgio. Para compreender a ontologia de Lukács. Maceió: Coletivo


Veredas, 2016.

BAUMAN, Z. Comunidade: A busca por segurança no mundo atual. Tradução


de Plínio Dentzien. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

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