Você está na página 1de 7

NASCIMENTO E MORTE DO SUJEITO MODERNO

A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE

outros e sob as qu.ais eles nasceram, utilizando os


Descentrando o suieito recursos materiais e de cultura que lhes foram
fornecidos por gerações anteriores.
Aquelas pessoas que sµstentam que as
Eles argumentavam que o marxismo,
identidades modernas estão sendo fragmentadas
argumentam que o que acon(eceu à concepção corretamente entendido, deslocara qualquer noção
do sujeito moderno, na modernidade tardia, não de agência individual. O estruturalista marxista
foi simplesmente sua desagregação, mas seu Louis Althusser (1918-1989) (ver Penguin
deslocamento. Elas descrevem esse deslocamento Dictionary ofSociology: verbete '"Althusser")
através de uma série de ruptiiras nos discursos afirmou que, ao colocar as relações sociais (modos
do conhecimento moderno. Nesta seção, farei um de produção,, exploração da força de trabalho, os
rápido esboço de cinco grand~s avanços na teoria circuitos do capital) e não tuna noção abstrata de
social e nas ciências humánas ocorridos no homem no centro de seu sistema teórico, Marx
pensamento, no período da n1odernidade tardia deslocou duas proposições-chave da filosofia
(a segunda metade elo século XX), ou que sobre moderna:
ele tiveram seu principal impacto, e cujo maior • que há uma essência universal de homem;
efeito, argumenta-se, foi o descentramento final • que essa essência é o atributo de "cada
do sujeito cartesiano. indivíduo singular", o qual é seu sujeito
real:
A primeira descentração importante refere-
Esses dois postulados são complementares e
s e às tradições do pensamento marxista. Os indissolúveis. Mas sua existência e sua unidade
escritos de Marx pertencem, naturalmente, ao pressupõem toda uma perspectiva de mundo
século XIX e não ao século XX. Mas um dos empirista-idealista. Ao rejeitar a essência do
modos pelos quais seu trabalho foi redescoberto homem como sua base teórica, Marx rejeitou todo
e reinterpretado na década de sessenta foi à luz esse sistema orgânico de postulados. Ele expulsou
as categoria:'! filosóficas do sujeito do empirismo,
da sua afirmação de que os '"homens (sic) fazem
da essência ideal, de todos os domínios em que
a história, mas apenas sob as condições que lhes elas tmham reinado de forma suprema. Não
são dadas". Seus novos intérpretes leram isso no apenas da economia política (rejeição do mito do
sentido de que os indivíduos não poderiam de homo economicus, isto é, do indivíduo, com
nenhuma forma ser os '"autores" ou os agentes faculdades e necessidades definidas, como sendo
o sujeito da economia clássica); não apenas da
da história, uma vez que eles podiam agir apenas
história; .. ~ llão apenas da ética (rejeição da idéia
com base em condições históricas criadas por

35
34
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE
NASCIMoNTO E MORTE DO SUJEITO MODERNO

ética kantiana); mas também da própria filosofia


A leitura que pe:nsadores psicanalíticos, como
(Althusser, 1966,p. 228).
Jacques Lacan, fazem de Freud é que a imagem
Essa ''revolução teórica total" foi, é óbvio, do eu como inteiro e unificado é algo que a criança
fortemente contestada por muitos teóricos aprende apenas gt·aduahnente, parcialmente, e com
humanistas que dão maior peso, na explicação grande dificuldade. Ela não se desenvolve
histórica, à agência humana. Não precisamos naturalmente a partir do interior do núcleo do
discutir aqui se Althusser estava total ou ser da criança, mas é formada em relação com os
parciahnente certo, ou inteiramente errado. O fato outros; especialmente nas complexas negociações
é que, embora seu trabalho tenha sido psíquicas inconscientes, na primeira infância,
amplamente criticado, seu "anti-humanismo entre a criança .e as poderosas fantasias que ela
teórico" (isto é, um modo de pensar oposto às tem de suas figuras paternas e maternas. Naquilo
teorias que derivam seu raciocínio de alguma que Lacan chama de "fase do espelho", a criança
noção de essência universal de Homem, alojada que não está ainda coordenada e não possui
em cada sujeito individual) teve um impacto qualquer auto-imagem como uma pessoa "inteira",
considerável sobre muitos nu.nos do pensamento se vê ou se ''imagina" a si própria refletida - seja
moderno. literalmente, no espelho, seja figurativamente, no
O segundo dos grandes ''descentramentos" "espelho" do olhar do outro-como uma "pessoa
no pensamento ocidental do século XX vem da inteira" (Lacan, 1977). (Aliás, Althusser tomou
descoberta do inconsciente por Freud. A teoria essa metáfora emprestada de Lacan, ao tentar
de Freud de que nossas identidades, nossa descrever a operação da ideologia). Isto está
sexualidade e a estrutura de nossos desejos são próximo, de certa forma, da concepção do
formadas com base em processo& psíquicos e "espelho", de Mead e Cooley, do eu interativo;
simbólicos do inconsciente, que funciona de exceto que para eles a socialização é uma questão
acordo com uma "lógica" muito diferente daquela de aprendizagem consciente, enquanto que para
da Razão, arrasa com o conceito do sujeito Freud, a subjetividade é o produto de processos
cognoscente e racional provido de uma identidade psíquicos inconscientes.
fixa e unificada - o "penso, logo existo", do sujeito A formação do eu no "olhar" do Outro, de
de Descartes. Este aspecto do trabalho de Freud acordo com Lacan, inicia a relação da criança
tem tido também um profundo impacto sobre o com os sistemas simbólicos fora dela mesma e é,
pensamento moderno nas três últimas décadas. assim, o momento da sua entrada nos vários
1 '

36 37
NASCIMENTO E MORTE DO SUJEITO MODERNO
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE

formas não reconhecidas, na vida adulta. Assim,


sistemas de representação simb!'):lica _.,.incluindo a
em vez de falar dn identidade como uma coisa
língua, a cultura e a diferença sexual. Os
acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la
sentimentos contraditórios e não'-resolvidos que
como um process? em andamento. A identidade
acompanham essa difícil entrada (o sentimento
surge não tanto ~plenitude da identidade que
dividido entre amor e ódio pelo pai, o conflito
já está dentro de nós como indivíduos, mas de
entre o desejo de agradar e o impulso para rejeitar
a mãe, a divisão do eu entre suas partes ''boa" e
umafalta deinte:i:J!eza que é "preenchida" a partir
de nosso exteriot, pelas formas através das quais
"má", a negação de sua parte masculina ou
nós imaginamc;.s ser vistos por outros.
feminina, e assim por diante), que são aspectos-
chave da "formação inconsciente do sujeito" e Psicanalitic'1Uel).fle, nós continuamos buscando a
que deixam o sujeito "dividido", permanecem com "identidade'' e construindo biografias que tecem
as diferentes parles de nossos eus divididos numa
a pessoa por toda a viela. Entretanto, embora o
unidade porqué procuramos recapturar esse
sujeito esteja sempre partido ou dividido, ele
prazer fantasiadO&da plenitude.
vivencia sua própria identidade como se ela
estivesse reunida e "resolvida", ou unificada, como De novo,, o trabalho de Freud e o de
resultado da fantasia de si niesmo como uma pensadores psic~alíticos como Lacan, que o lêem
"pessoa" unificada que ele formou na fase do dessaforma, têm~dobastantequestionados. Por
espelho. Essa, de acordo com esse tipo de definição, os processos inconscientes não podem
pensamento psicanalítico, é a origem contraditória ser facilmente vi.Stos ou examinados. Eles têm que
da "identidade". ser inferidos pelas elaboradas técnicas
psicanalíticas dal:teconstrução e da interpretação
Assim, a identidade é realmente algo
formado, ao longo do tempo., através de processos e não são fa~ilmente suscetíveis à "prova". Não
inconscientes, e não algo inato, existente na obstante, seu impacto geral sobre as formas
consciência no momento do nascimento. Existe modernas de pensamento tem sido muito
sempre algo ''imaginário" ou fantasiado sobre sua considerável. ~;rande parte do pensamento
unidade. Ela permanece sempre incompleta, está moderno sobre~ Tida subjetiva e psíquica é "pós-
sempre "em processo", sempre "sendo formada". freudiana" ,no s~ptido de que toma o trabalho de
As partes "femininas" do eu masculino, por Freud sobre o 4i~onsciente como certo e dado,
exemplo, que são negadas, permanecem com ele mesmo que rej~te algumas de suas hipóteses
e encontram expressão inconsciente em muitas específicas.j01tTr vez, podemos avaliar o dano

39
38
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE

1
; 1
que essa forma de pensamentQ ~usaa noções que posso ser. Como diria Lacan, a identidade, como
vêem o sujeito racional e aiden1i.üade: como fixos e oinconscienfe, "tb$táestruturada como a língua".
estáveis. O que mode:rno~.filósofos da linguagem - como
O terceiro descentramentto qu~ examinarei Jacques Dertida,iQrlluenciados por Saussure e pela
está associado com o trab~ho do lingüista "virada Jingfüsti$à" - argumentam é que, apesar
estrutural, Ferdinand de Sap.13sure. Saussure de seus melhore~ esforços, o/a falante individual
argumentava que nós não sohll.os, em nenhum não pode, nunca~har o significado de uma forma
sentido, os "autores" das a.:fir.rnações'quefazemos final, incluiado ~<Significado de sua identidade.
ou dos significados que expre~$amos na língua. As palavras são 'tmulti.moduladas". Elas sempre
Nós podemos utilizar a língd* para produzir carregam eeos de outros significados que elas
significados apenas nos posicid4ando no interior colocam em movimento, apesar de nossos
das regras da língua e dos sistemas de significado melhores esforç~para cerrar o significado. Nossas
de nossa cultura. A língua é $ sistema social e afirmações sãol baseadas em proposições e
não um sistema individual. Elfl. preexiste a nós. premissas dlll.s qd11is nós não temos consciência,
Não podemos, em qualquer sellitido simples, ser mas que sãà, pd,n assim dizer, conduzidas na
seusautores.Falarumalínguanii.osigp:ifi.caapenas corrente sattgü~ea de nossa língua. Tudo que
expressar nossos pensamentos mai.$ interiores e dizemos tem UIDj' ". . antes " e um "dep01s
. " - uma
originais; significa também ativar a imensa gama "margem" na qualloutras pessoas podem escrever.
de significados que já estão e~utidos em nossa O significado,é ind:rentemente instável: ele procura
língua e em nossos sistemas cul11Urais. o fechamento :(a identidade), mas ele é
constantemente perturbado (pela diferença). Ele
Além disso, os significados, das palavras não está constantemeitte escapulindo de nós. Existem
são fixos, numa relação um-a-$ com os objetos sempre s~cadP:s suplementares sobre os quais
ou eventos no mundo existent~forada língua. O não temos qual#er controle, que surgirão e
significado surge nas relaçõesl .J.e similaridade e subverterão poss~ tentativas para criar mundos
diferença que as palavras têm céÍmi outras palavras fixos e estávéis (vepaDerrida, 1981).
no interior do código da língu4. Nós sabemos o
que é a "noite" porque ela niio to "dia". Observe- O quanto ~~scentramento principal da
se a analogia que existe aqui entre língua e identidade ~ do ~µjeito ocorre no trabalho do
identidade. Eu sei quem "eu" wue:ntrelação com 017r
filósofo J~is?:. 1~. o.r fran. cês Michel Fo~cault.
Numa sene ele e~ Jll.dos, Feucault produzm uma
"o outro" (por exemplo,~ mãe) que eu não 1 ·t ;

40 41
NASCIMENTO E MORTE DO SUJEITO MODERNO
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE

o produto das riovas instituições coletivas e de


espécie de "genealogia do sujeito moderno".
grande esc~la ~ modernidade tardia, suas
F oucault destaca mn novo tipo de poder, que ele
técnicas envolv~ti uma aplicação do poder e do
chama de "poder disciplinar", que se desdobra ao
saber que "inditldualiza" ainda mais o sujeito e
longo do século XIX, chegando ao seu
envolvemaisint~nsamente seu corpo:
desenvolvimento máximo no início do presente
século. O poder disciplinar está preocupado, em Num re~e disciplinar, a individualização é
primeiro lugar, com a regulação, a vigilância é o descM!denttí· Através da vigilância, da observação
constantei,,todas aquelas pessoas sujeitas ao
governo da espéciehmnana ou de populações inteiras controle ~ijo individualizadas ... O poder não
e, em segundo lugar, do indivíduo e do corpo. Seus apeniis tr~ a individualidade para o campo da
locais são aquelas novas institui1;ões que se observaÇifo, mas também fixa aquela
desenvolveram ao longo do século XIX e que individuaJldade objetiva no campo da escrita. Um
"policiam" e disciplinam as populações modernas - imenjm e :n:ielticuloso aparato documentário torna-
oficinas, quartéis, escolas, prisões, hospitais, clinicas se UIÍl co:n:iponente essencial do crescimento do
podér [~as sociedades modernas]. Essa
e assim por diante (veja, por exemplo, História da acwnulaç~o de documentação individual num
lnucura, O nascimento da clinica e Vigiar epunir). orde:nam~tlto sistemático torna "possível a
medi,çãoqe fenômenos globais, a descrição de
O objetivo do "poder disciplinar" consiste
grupDs, ajoaracterização de fatos coletivos, o
em manter "as vidas, as atividades, o trabalho, as cálculo de di,stâncias entre os indivíduos, sua
infelicidade e os prazeres do índivíduo", assim distdhui,ç~ numa dada população" (Dreyfus e
como sua saúde física e moral, suas práticas Rahinow,\1982, p.159, citandoFoucault).
sexuais e sua vida familiar, soh estrito controle e Não énec~$sário aceitar cada detalhe da
disciplina, com base no poder dos regimes descrição queFd,ucaultfaz do caráter abrangente
administrativos, do conhecimento especializado dos "regimes di~çiplinares" do moderno poder
dos profissionais e no conhecimento fornecido administrativo para compreender o paradoxo de
pelas "disciplinas" das Ciências Sociais. Seu que, quantom~ Çoletiva e organizada a natureza
objetivo básico consiste em produzir "um ser das instituigões .jl~ modernidade tardia, maior o
humano que possa ser tratado como um corpo isolamento,ia vij;fiância e a individualização do
dócil" (Dreyfus e Rahinow, 1982, p. 135). sujeito indivjduap
O que é particularmente interessante, do
ponto de vista da histôria do sujeito moderno, é
que, embora o poder disciplinar deFoucault seja
proponente!s 4t
O q'dintbi descentramento que os
posição citam é o impacto do

43
42
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE NAsCIMENTO E MORTE 00 SUJEITO MODERNO

femillismo, tanto como uma crítl~a teórica quanto • Cadamo~ento apelava para aUlentidade
como um movimento social O feminismo faz parte soei~ de'!leus sustentadores. Assim, o
daquele grupo de "novos movimentos sociais", que feminismo apelava às mulheres, a política
emergiram durante os anos sessenta (o grande sexuàl aos gays e lésbicas, as lutas raciais
marco da modernidade tardia), juntamente com aos negro~, o movimento antibelicista aos
as revoltas estudantis, os movimentos juvenis pac:i:&tas~ e assim por diante. Isso constitui
contraculturais e antibelicistas, as lutas pelos direitos o nascimttaitto histórico do que veio a ser
civis, os movimentos revolucionários do "Terceiro c1;mhecido como a política de idenridade-
Mundo", os movimentos pela paz e tudo aquilo uma identidade para cada movimento.
que está associado com '"1968". O .que é importante Mas o feminismo teve também uma relação
reter sobre esse momento histórico é que: o
mais direta com descentramento conceitua! do
• Esses movimentos se opunham tanto à sujeito cartesianct>e sociológico:
política liberal capitalista do Ocidente • Ele questiOOou a clássica distinção entre o
quanto à política "estalinista" do Oriente. "dentro'' ;e 'O "fora", o "privado" e
• Eles afirmavam tanto as dimensões "público'~. O slogan do feminismo era: "o
"subjetivas" quanto as dimensões pessoal é político".
"objetivas" da política. • Ele abriu!, portanto, para a contestação
• Eles suspeitavam de todas as formas política, attnas inteiramente novas de vida
burocráticas de organização e favoreciam social: a f~a, a sexualidade, o trabalho
a espontaneidade e os atos de vontade domisti<10, a divisão doméstica do
política. trabalho,;o cuidado com as crianças, etc.
• Como argmnentado anterionnente, todos • Ele tamb&a enfatizou, como uma questão
esses movimentos tinham uma ênfase e política ei~ocial, o tema da forma como
uma forma cultural fortes. Eles abraçaram somos f0;rmados e produzidos como
o "teatro" da revolução. sujeitos gdnerificados. Isto é, ele politizou
" Eles refletiam o enfraquecimento ou o fim a subjetivf<Jade, a identidade e o processo
da classe política e das organizações de iden~ção (como homens/mulheres,
políticas de massa com ela associadas, bem mãesApais~ filhos/filhas).
como sua fragmentação em vários e • A~ ~!começou como um movimento
separados movimentos sociais. dirigi{lo à nntestaçiio daposi,;00 social das

44 45
A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE

:
mulheres expandiu-se para incluir a
formação das identidades sexuais e de
gênero.
• O feminismo questionou a noção de que
os homens e as mulheres eram parte da
mesma identidade, a '"Humanidade",
substituindo-a pela questão da diferença
sexual.
Neste capítulo, tentei, pois, mapear as
mudanças conceituais através das quais, de acordo
com alguns teóricos, o "'sujeito" do Iluminismo,
visto como tendo uma identidade fixa e estável,
foi descentrado, resultando nas identidades
abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas,
do sujeito pós-moderno. Descrevi isso através de
cinco descentramentos. Deixem-me lembrar outra
vez que muitas pessoas não aceitam as implicações
conceituais e intelectuais desses desenvolvimentos
do pensamento moderno. Entretanto, poucas
negariam agora seus efeitos profundamente
desestabilizadores sobre as idéias da modernidade
tardia e, particularmente, sobre a forma como o
sujeito e a questão da identidade são
conceptualizados.

46

Você também pode gostar