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Espelho, espelho meu: a dicotomia entre ethos social e discursivo

no conto “O espelho”, de Machado de Assis

Alzemir Menegidio da Silva


Mestrando em Letras – Universidade Presbiteriana Mackenzie

Introdução

Este artigo se propõe a analisar o conto “O espelho”, de Machado de Assis,


concomitante com as redes sociais, à luz da Análise do Discurso, apoiando-se no
conceito de ethos, proposto por Maingueneau. A presente investigação conferirá
destaque à construção do ethos tanto o pré-discursivo, que forma a identidade
social, quanto ao ethos discursivo, formador de uma identidade discursiva, entendida
sucintamente como a imagem do enunciador criada no momento da enunciação, na
instância do discurso, imagem essa que mobiliza implícitos de uma relação de
interação com os coenunciadores que detêm representações culturais
estereotipadas e imagens preestabelecidas. O ethos está, pois, em estreita
articulação com a cena enunciativa.
Este trabalho visa discutir de que forma o sujeito constrói uma imagem
subjetiva em sites de redes sociais. O princípio norteador da discussão é o conto –
O espelho, de Machado de Assis, no qual discute-se a noção do eu interior e o eu
exterior, a partir de uma dicotomia, ora disjuntiva, ora injuntiva. É nesse dialogismo
que se insere as redes socias como grandes produtoras de imagens, uma vez que
ethos social concebe um ethos discursivo usando as ferramentas disponibilizadas
pelos aplicativos para a construção do “eu idealizado” no ambiente digital.
1. Redes socias:

Com o intuito de facilitar a troca de informações durante a Guerra Fria (1945 -


1991) onde as duas super potências envolvidas, Estados Unidos e União Soviética,
estavam divididos nos blocos socialista e capitalista e disputavam poderes e
hegemonias, surge a internet. Temendo ataques soviéticos, o Departamento de
Defesa dos Estados Unidos criou um sistema de compartilhamento de informações
entre pessoas distantes geograficamente, a fim de facilitar as estratégias de guerra.
A partir de então, o mundo se dividiu em antes e depois da tecnologia.
Todavia, foi a década de 90 que ficou conhecida como o "boom da internet",
pois foi quando ela se popularizou pelo mundo, com o surgimento de novos
navegadores — Internet Explorer, Netscape, Mozilla Firefox, Google Chrome, Opera,
Lynx — e o aumento do número de usuários, navegadores da internet.
Com isso, irrompe uma grande proliferação de sites, chats, redes sociais —
Orkut, Facebook, MSN, Twitter, Instagram, dentre outros —, tornando a internet a
rede ou teia global de computadores conectados.
Atualmente, é inimaginável um mundo sem a existência da internet. Criada,
em princípio, para fins comunicativos, a internet é hoje ferramenta de interação
social, essencial e imprescindível do mundo business e grande produtora de ethos:
individual, coletivo, empresarial/corporativo e até do mundo político, nada, nem
ninguém escapa dos algoritmos.
´Vive-se um momento histórico, em que o mundo virtual tem peso cada vez
mais significativos no mundo real. Essa terra virtual influencia, molda, cria
reputações ou são colocadas em xeque da noite para o dia. E é nesse território
muitas vezes sem leis, sem regras predefinidas que o homem virou um bem de
consumo. Se antes, as empresas concorriam para vender seus produtos, hoje, as
empresas concorrem para comprar a adesão do consumidor. Por isso, o consumidor
é estimulado a todo instante pelos algoritmos a assumir uma atitude menos passiva,
é conclamado a participar do jogo, nem que para isso assuma uma identidade
“irreal”, criada apenas no mundo virtual ou na mente idealizadora de um estilo ou
filosofia de vida.
2. O conto

O conto machadiano “O Espelho" – publicado em 1882 no livro "papéis


Avulsos" - é um conto bastante conhecido, que serve como objeto de análise em
diversas áreas do conhecimento sendo considerado uma das obras-primas em
produções do autor.
A história decorre numa noite em que um grupo de quatro ou cinco amigos se
reuniu numa casa em santa Luzia e discutiu assuntos transcendentes. Um dos
participantes, um personagem chamado Jacobina, fica longe da discussão e apenas
no meio da noite ele participa quando o debate aflui para o tema: a natureza da alma
humana.
Nesse sentido, Jacobina apresenta sua teoria de que as pessoas têm duas
almas em vez de uma, depois que seus amigos insistem em participar do debate
almas internas e almas externas. A ideia causa espanto geral. Ele continua dizendo
que a alma exterior é mutável e pode ser um espírito um fluido, um homem vários
homens, um objeto, uma operação ou mesmo "um simples botão de camisa". Ele
ressalta que o ofício do espírito é vivificante e que ambos preenchem a pessoa.
Perder um é perder metade da vida. Para ilustrar e exemplificar sua conjectura da
dualidade da alma Jacobina se oferece para relatar um evento que viveu aos 25
anos, quando se assumiu um cargo de prestígio, o cargo de alferes, ofício que lhe
rendeu status.
Sua nova posição não apenas lhe concedeu apenas status, mas também um
lugar especial na família. As pessoas ao seu redor o tratam com reverência,
especialmente sua tia, Marcolina, a viúva do capitão, que a convida para passar
alguns dias em seu sítio.
Durante esse período, Jacobina, que então passara a ser tratado por Senhor
Alferes, ocupa o lugar mais privilegiado na casa, sendo o centro-das-atenções. Todo
esse tratamento provoca uma mudança em seu ser, de modo que quando sua tia
precisa deixar o sítio para ir ver a filha que está doente, Jacobina fica cuidando da
casa, sentindo já uma profunda tristeza e solidão que foi intensificada com a fuga
dos escravos da fazenda.
Sentindo-se completamente só e perdido, Jacobina entra em uma profunda
confusão de identidade. Quando se olha no grande espelho colocado em seu quarto
pela tia, não consegue enxergar com precisão sua própria imagem. Assustado, ele
decide ir embora. Quando, de repente, ocorre-lhe a ideia de vestir sua farda. Feito
isso, Jacobina percebe que agora só consegue enxergar-se bem no espelho quando
vestido de alferes. Assim, passa a fazê-lo todos os dias, para sobreviver àquele
período, até que pudesse deixar a casa.
Terminada a história, o envolvimento dos ouvintes era tanto que quando
voltam a si, aponta-nos o narrador, Jacobina já havia descido as escadas.

3. O ethos pré-discursivo: identidade social

Em um primeiro momento, cabe-se analisar o Jacobina, outrora Joãozinho,


como cidadão de uma cidade, que contém uma identidade.

- Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda
Nacional.

ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. v. II, p. 3

Jacobina ao relatar o caso, está na casa de seus quarenta anos de idade,


todavia relata um fato que lhe aconteceu aos vinte e cinco anos de idade. Percebe-
se, mesmo com pouca informação, que se trata de um jovem pobre do Rio de
Janeiro, mas que conseguiu ascensão social conquistando um cargo de alferes.
Aplicando a noção de ‘ethos pré-discursivo’ ao nosso corpus, O Espelho
(ASSIS, 1994), mais especificamente ao nosso personagem Jacobina, notamos que
o conhecimento de informações sobre o personagem pode condicionar a leitura e
induzir expectativas na construção dos ethé ‘pré-discursivos’ da personagem.
Essa dimensão pré-discursiva tem sua construção através das
representações sociodiscursivas, a partir do que se sabe ou se acredita saber sobre
o locutor, podendo ser integrada ao discurso. Isso implica que o destinatário vai
construindo previamente representações sociodiscursivas do locutor a partir do que
se sabe ou se acredita saber sobre esse locutor, assim como, das representações
que circulam na sociedade.
Dessa maneira, o ‘ethos pré-discursivo’ construído, primordialmente, pelo
destinatário, tanto ele quanto o locutor podem desmenti-lo, corroborá-lo, retificá-lo,
entre outras possibilidades.
Em primeiro momento, cabe ressaltar a teoria de Jacobina:

Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas... - Duas? - Nada menos de


duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de
dentro para fora, outra que olha de fora para entro...

ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. v. II, p. 3

Jacobina explica sua teoria em que “não há uma só alma, há duas”, uma
alma, o Joãozinho, outra, o Alferes. Percebe-se então que, essas duas almas são
dimensões vividas por diferentes identidades ou assumidas pelas pessoas, em
diferentes situações.
A primeira questão que guia a composição desse trabalho tem como base a
necessidade de compreender o contraste assumido pelos internautas, entre o ethos
social e o ethos discursivo. Ou seja, a dupla identidade a qual Jacobina expressa
aos amigos através de uma experiência vivida por ele.
O ethos social é aquele que está por detrás das telas. Um locutor que tem
uma identidade social, possui um endereço, possui uma cultura, uma classe social,
tem uma profissão (ou não), assim, através dessas informações constrói-se a
identidade pré-discursiva desse locutor. Jacobina diz que essa é a alma que se
constrói de dentro para fora e diz respeito: a quem eu sou?
4. O ethos discursivo nas redes sociais: a segunda alma de Jacobina, o
Alferes

Roland Barthes afirma:

São traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco


importando sua sinceridade) para causar boa impressão (...) O orador
enuncia uma informação e, ao mesmo tempo, diz: eu sou isso, não aquilo
(1970:212).
(Variações sobre o ethos; Maningueneau, 2020, p. 11)

A afirmação de Barthes aplica-se às redes sociais, o orador se mostra ao seu


auditório, seus seguidores, pouco importando ser verdadeiro, o mais importante é a
construção de uma imagem que faz de si mesmo, para causar “boa impressão”.
Para Mangueneau, “o ethos discursivo põe em interação o ethos mostrado,
decorrente da maneira de falar, e um ethos dito, aquilo que o locutor diz de si
mesmo enquanto enuncia”.
O ethos mostrado refere-se ao uso das redes socias para representar, através
das postagens, determinados comportamentos valorizados socialmente e que afirma
o ethos positivamente. Desse modo, as imagens produzidas, geralmente, são
atreladas a bens de consumo, viagens, festas, etc. e mesmo atividades
insignificantes são intensificadas, a fim de parecerem pessoas bem resolvidas,
pessoas felizes, imunes aos problemas, (problemas esses que parecem afetar
somente outros).
Nesse contexto, para a construção desse ethos mostrado, vale todo tipo de
artifícios disponíveis pelos aplicativos. O filtro é um desses recursos. Essa
possibilidade esconde as possíveis imperfeições da pele, busca-se o melhor ângulo,
o melhor lugar, coloca o sorriso e espera os likes.
Neste sentido, a imagem de si que os atores buscam fazer os interlocutores
acreditarem existir é o ethos dito a partir da postagem de imagens, vídeos ou textos
em sites de redes sociais,
Jacobina, o personagem de O espelho, vivenciou na vida real o que muitos
vivem no mundo virtual.
E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora.
Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a
cabeça, bradando que não, que era o "senhor Alferes”. [...] Na mesa tinha eu
o melhor lugar, e era o primeiro servido [...] O certo é que todas essas coisas,
carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação [...]

ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. v. II, p. 3

Os likes e as curtidas eram as frases de aprovação que Jacobina recebia. O


alferes passou a receber tratamento diferenciado por causa de um ethos construído
ou adquirido pela posição social que alcançou. Esse status social fez com o jovem
simples e pobre do rio de Janeiro assumisse uma nova identidade.

- O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas


equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me
uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que
era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e
passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto,
nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo
foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no
ar e no passado.

ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. v. II, p. 3

O alferes recebe todo tipo de mimos. Quando sua tia precisa se ausentar do
sítio, para cuidar da filha doente, há uma debandada geral dos empregados da casa.

- Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por


outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e
assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante
do terreiro deserto e da roça abandonada.

ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. v. II, p. 4

Ao ver-se só no sítio, Jacobina entra em uma crise existencial, já que agora


não havia mais o reconhecimento da tia e dos empregados. Crise essa que só será
resolvida, quando diante do espelho de vê novamente com sua farda, nesse
momento se reconhece não como o Joãozinho, mas como o Alferes.
Essa crise também é sentida nas redes sociais. Pessoas ao fazerem
postagem, ansiosamente esperam pelas curtidas, pelos likes. Todavia quando não
há esse retorno esperado, ocorre o sentimento de insignificância, geradora de uma
angústia existencial que pode desembocar em sentimentos negativos a respeito de
si mesmo.
Considerações finais

É notório que há atualmente um narcisismo endêmico nas redes sociais. Tudo


o que se deseja é visibilidade e reconhecimento que podem ser obtidos
instantaneamente através de "curtidas" e comentários positivos de outros usuários
das redes sociais. Mas nem todos conseguem construir um ethos discursivo capaz
de atrair seguidores e obter os aplausos no grande palco virtual.
Para Charaudeau:

No domínio político, a construção das imagens só tem razão de ser se for


voltada para o público, pois elas devem funcionar como suporte de
identificação, via valores comuns desejados.
(CHARAUDEAU, 2006, p. 79)

Para Charaudeau, é preciso movimentar estratégias discursivas que façam


“com que o maior número de pessoas adira ao seu programa, às suas ideias, à sua
política e à sua pessoa.”
Machado ao construir o personagem Jacobina, que vive o dilema e a
dicotomia das duas identidades que habitam um mesmo ser, mostra que o ethos
pode ser construído por objetos representativos de valores sociais, como também
por cargos tidos como: socialmente reconhecidos, valorizados.

A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens,


um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão
de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o
voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor,
etc.

ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. v. II, p. 3
Referências Bibliográficas

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso Político. São Paulo: Contexto, 2006.

DE ASSIS, Machado. Papéis avulsos: O Espelho. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova


Aguilar, 1994.

HUNT, Tara. O poder das redes sociais. São Paulo: Gente, 2010.

LAJOLO, Marisa. O espelho: Esboço de uma nova teoria da alma humana. 2. ed.
São Paulo: Unicamp, 2020.

MAINGUENEAU, Dominique. Variações sobre o ethos. 1. ed. São Paulo: Parábola,


2020.

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