Você está na página 1de 22

Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

A SI PÃO FOSSE MUIÉ


ou a experiência imagética de um simbolismo fabricado

Jean-Charles J. Zozzoli 1

Introdução
Propomo-nos, a seguir, a partir da leitura de um poema jocoso e dos textos que, na
diagramação de página, lhe são coligados, refletir sobre o processo dialético de determinação
causal do signo pelo ser e do ser pelas imagens que referem seu meio ambiente. Mais
precisamente, debruçamo-nos sobre a fabricação de instrumentos marcantes para o
reconhecimento de códigos culturais, num processo de comunicação complexo, onde
intervêm questões ligadas à dinâmica identidária e ao empenho antagônico do corpo e das
imagens sociais.
Numa exploração cultural das raízes nordestinas, desvela-se a essência dos detalhes que
revelam esses códigos culturais. Descrições vivas e oníricas formam imagens penetrantes e
provocadoras neste fim de milênio, na arena da cultura contemporânea, onde a mulher-esposa
não é mais considerada do lar, mas tornou se independente, questionadora, libertando-se de
sua submissão ao homem, muitas vezes ressentida não mais como obrigação, mas até como
escravidão.
Além de uma análise relacional homem-mulher, os assuntos temáticos em foco
concernem ao Cordel, ao machismo, à vida cotidiana e à preocupação de integração do Poeta
na comunidade literária.
Levando-se em conta as considerações apresentadas por Dietmar Kamper num ciclo de
palestras sobre Corpo e Imagem, nas universidades paulistas, em 1999, e as considerações de
Pierre Lantz sobre o simbolismo, ultrapassa-se a análise sociológica da linguagem, feita num
primeiro tempo apoiado em Bakhtin, ao resgatar, num segundo momento, o caráter

1
Insira aqui instituição e e-mail do primeiro autor.

1
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

experiencial do ser como sujeito singular, e a importância da imagem, principalmente da


imagem espelho e de um mundo sem espelho, refletindo sobre a noção de espelho construído.
O texto, objeto de estudo, foi descoberto sob forma de fotocópia. Encontra-se
reproduzido em anexo (I) em suas dimensões exatas, (II) digitado em sua grafia original e
(III) “traduzido”. Observa-se que o formato do livro ou folheto de onde foi extraído é maior e
diferente das dimensões e forma tradicionais da literatura de cordel. Apresenta também uma
distribuição anômala ao conter no cabeçalho uma introdução ao poema. Pela anotação
manuscrita, acrescida na folha fotocopiada, porém externa à cópia do texto em questão, seu
Autor é Antônio Aurélio de Morais.

Premissas sobre linguagem e cultura enquanto efeito das estruturas sociais


Levando em conta que tudo o que é ideológico possui um significado e remete a algo
situado fora de si mesmo, ou seja que tudo o que é ideológico é um signo e que sem signo
não existiria ideologia, Bakhtin demonstra que: o “verdadeiro” lugar do ideológico não pode
ser explicado em termos de raízes supra ou infra humanas. Seu lugar é o material social
particular de signos criados pelo homem;
a consciência "individual" é um fato sócio-ideológico que adquire existência nos signos
criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais.
Caracteriza a palavra como sendo o fenômeno ideológico por excelência, um signo
neutro, e valoriza a fala (enunciação) destacando sua natureza social e não individual.
Ressaltar-se-á que só pode entrar no domínio da ideologia aquilo que, índice de valor,
adquiriu um valor social.
A realidade fundamental da língua é constituída pelo fenômeno social da interação
verbal, realizado através da enunciação ou de enunciações, entendida(s) como uma réplica do
diálogo social. Trata-se de discurso interior (diálogo consigo mesmo) ou exterior (com um
interlocutor, mesmo em potencial), estabelecido tanto pelo fato que procede de alguém
(horizontes social e apreciativo) como pelo fato que se dirige a alguém (“auditório social”).
O “tema” é o sentido da enunciação completa. Ele se revela único e é definido pelas
formas lingüísticas que entram na composição, e pelos elementos não verbais de significação.
A entonação expressiva, a modalidade apreciativa sem a qual não haveria enunciação, o
conteúdo ideológico, o relacionamento com uma situação social precisa modelam a

2
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

significação. O tema constitui então o estágio superior real da capacidade lingüística de


significar.
É a expressão que organiza a atividade mental, a determina e define sua orientação. Em
todo caso, o interlocutor ideal não pode ultrapassar as fronteiras de uma classe e de uma
época bem definidas. Não é tanto a expressão que se adapta ao nosso mundo interior, mas o
nosso mundo interior que se adapta às possibilidades da nossa expressão, a seus caminhos e
orientação possíveis. O essencial da tarefa de descodificação não consiste em reconhecer a
forma utilizada, mas em compreendê-la num contexto concreto preciso, entender sua
significação numa enunciação particular.
Os sistemas semióticos servem para exprimir a ideologia e são, portanto, desenhados
por ela. No ato de fala, a atividade mental subjetiva se dissolve no fato objetivo da
enunciação realizada enquanto que a palavra enunciada se subjetiva no ato de descodificação
que vai provocar uma codificação em forma de réplica. O signo ideológico tem vida na
medida em que se realiza no psiquismo. Reciprocamente a realização psíquica vive do
suporte ideológico. O signo interior deve libertar-se do contexto psíquico para deixar de ser
experimentado subjetivamente e tornar-se signo ideológico. O signo ideológico deve integrar
o domínio do signo interior subjetivo para permanecer um signo vivo, mutável. Nesse plano,
podem ser distinguidos, na relação com um interlocutor potencial, dois pólos dentro dos quais
se realizam a tomada de consciência e a elaboração ideológica: a "atividade mental do eu”,
característica do indivíduo pouco socializado (próximo da reação fisiológica do animal), não
modelada ideologicamente, sem esboço de orientação social, perdendo portanto sua
representação verbal; a “atividade mental do nós”, atividade gregária que implica na
consciência de grupo, de classes. Quanto mais forte, bem organizada e diferenciada for a
coletividade dentro da qual o indivíduo se orienta, mais distinto e complexo será o seu mundo
interior.
Mencionar-se-á a “atividade mental para si”, forma particular da precedente, de caráter
individualista. Bakhtin sublinha que o pensamento não existe fora de uma orientação social.
Resumindo, a significação não está nem na palavra, nem na alma do falante ou do
interlocutor. Ela é o efeito da interação do emissor e do receptor produzido através do
material suporte da comunicação. Ela é, segundo o exemplo fornecido por Bakhtin, como
uma faísca elétrica que só se produz quando há contato entre dois pólos opostos. Só a
corrente da significação verbal fornece à palavra a luz de sua significação. A significação é

3
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

então um elemento abstrato, igual a si mesmo que é absorvido pelo tema, e “despedaçado”
por suas contradições vivas para, enfim, retornar, sob forma de uma nova significação, com
uma estabilidade e uma identidade igualmente provisórias.

Códigos culturais e corpos societários


Considerando o material semiótico não só denotativamente mas também sociologica e
culturalmente, procuraremos apreender o processo de determinação causal do signo pelo ser,
a passagem genuína do ser ao signo. Para isso analisaremos o material referido como um
conjunto de enunciações, cujas formas são unidades reais do contexto verbal, encarando-as
como fenômeno sociológico. A cada forma de discurso corresponde um tema, afirma
Bakhtin. Assim, ao seguir o modelo proposto por ele, não separaremos a ideologia da
realidade material do signo, não dissociaremos o signo das formas concretas da comunicação
social, e não dissociaremos a comunicação e sua forma da infra-estrutura que lhe
corresponde.
Bakhtin evidencia que cada emissor se exprime para um auditório societário definido,
afirmando a natureza social da enunciação: a enunciação realizada é como uma ilha
emergindo de um oceano sem limites, o discurso interior. As dimensões e as formas dessa
ilha são determinadas pela situação da enunciação e por seu auditório. A situação e o
auditório obrigam o discurso interior a realizar-se em uma expressão exterior definida, que se
insere diretamente no contexto não verbalizado da vida corrente, e nele se amplia pela ação,
pelo gesto ou pela resposta verbal dos outros participantes na situação de enunciação.
Se examinarmos o texto, objeto de estudo, verificaremos que é constituído de três
partes: a primeira, situada na parte superior da página, e que poderíamos denominar de
“prefácio”; a segunda, composta do título e do corpo de um poema; e a terceira, reduzida ao
algarismo da paginação.
Podemos indagar se o caráter e as formas de cada uma dessas três partes são diferentes,
podendo cada uma dessas três formas de objetivação exterior do discurso interior demonstrar,
por ter características próprias diferentes entre si, situações de comunicação diferentes. Com
efeito, Bakhtin mostra que “o centro organizador de toda enunciação, de toda expressão, não
é interior, mas exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo”. Podemos, pois,
observar que, no que diz respeito à forma: a primeira parte é escrita numa língua de “boa

4
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

qualidade” em relação às normas do “bem falar” da elite sócio-cultural; a segunda parte


apresenta. À primeira vista, sintaxe, morfologia, e estilística específicas, que seriam próprias
da literatura de cordel; a terceira parte responde a normas de apresentação e classificação.
Quanto ao conteúdo, podemos considerar que: a primeira parte revela um caráter
introdutório, biográfico; a segunda parte corresponde a uma ideologia do cotidiano (moral
social, arte...) pertencendo a grupos sociais precisos (cf. infra); e a terceira parte é
distribucional, indicando que A si pão fosse muié é verossimilmente o primeiro poema
apresentado no livro (a página 1 seria a página de rosto, e a página 2 comportaria o sumário
ou uma dedicatória).
Essas duplas considerações nos levam a estudar em detalhes a orientação social dos
enunciados do Poeta e a destacá-las nos três momentos desse ato de comunicação, em relação
com o horizonte social do Poeta, i.e. com os diversos participantes do ato.

Enquadramento comunicacional no complexo cultural dos literatos


Na primeira parte do texto, ou seja, verossimilmente no primeiro momento do ato de
comunicação, o Autor (emissor) se dirige ao leitor (receptor evidente). Todavia, devido ao
conteúdo (biográfico) dessa parte e ao registro de língua usado (“bem-falar” da elite sócio-
cultural) em inter-relação com o conteúdo da segunda parte (ideologia do cotidiano
determinada, analisada infra) e à gramática peculiar ao cordel, parece o Autor estar agindo
como um escritor preocupado em deixar indicações sobre sua vida e sua obra para a
posteridade. Afigura-se como elemento do grupo dos escritores (parte do auditório
societário), para críticos e/ou estudiosos da literatura de cordel alagoana, nordestina, e, talvez
– quem sabe ? – brasileira. Escritores e críticos (esses últimos, outra parte do auditório
societário nesse trecho), sim, são receptores potencialmente mais interessados por esses
dados, uma vez que aparentemente se pode pressupor que o amador médio de literatura de
cordel, mesmo que dispusesse das condições necessárias à leitura do texto, não iria encontrar
nesse prefácio muito interesse em saber onde o Poeta nasceu e se criou, se ele conviveu ou
não com violeiros e repentistas num dos centros alagoanos dos mais conhecidos do cordel, e
qual foi a idade em que ele começou a escrever, pois isso não faz parte de sua ideologia do
cotidiano, mas sim daquela dos estudiosos de Literatura. Geralmente, os poemas do tipo
cordel, nas suas publicações originais, são lidos em voz alta ou em alto-falantes nas feiras –

5
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

aparentemente sem apresentação biográfica – e muitos dos que ouvem ali só podem tomar
conhecimento deles dessa maneira.
A colocação desse trecho já se encontra justificada se a considerarmos do ponto de
vista da “tomada de consciência” e da “ elaboração ideológica” apresentadas por Bakhtin.
Com efeito, esse trecho revela uma atividade mental do nós (consciência de participar do
grupo dos escritores) e, além disso, uma atividade mental do para si (atividade mental do tipo
individualista; consciência do próprio valor). Não se trata, nesse caso, de uma atividade
mental do eu, pois essa passagem autobiográfica não é isenta de algum grau de consciência.
O Autor não fornece esses dados gratuitamente, e, como acabamos de ver, ele o faz com uma
certa consciência de classe e do seu próprio valor, com uma certa orientação social.
É interessante, neste nível de reflexão, examinar as considerações de Vogt: de cada
texto seria, então, possível, a partir de enunciados que o integram, reconstituir a figura do
leitor que o Autor se representa, e no mesmo movimento, mas em sentido inverso, a
representação que o Autor se faz de si mesmo.
Robert Ezra Park, citado por Vogt, afirma: “todo homem está, sempre e em todo lugar,
mais ou menos conscientemente, representando um papel... É nesses papéis que nos
conhecemos”. Ele acrescenta: “essa máscara é nosso mais verdadeiro eu, aquilo que
gostaríamos de ser”. Podemos então, à luz dessas afirmações, defender a hipótese de que o
Autor, investido do seu papel de escritor, procura nesse trecho introdutório esses receptores
particulares que são os críticos literários e os estudiosos da literatura alagoana, dando-lhes
uma importância muito mais relevante do que ao comum e habitual consumidor de literatura
de cordel. Entretanto, esses últimos são muito mais importante quantitativamente, e em termo
de legitimação de seu estilo, a ponto de o Autor variar de registro de língua, demonstrando
um certo domínio nos dois registros adotados e revelando um horizonte social que se estende
sobre pelo menos os dois grupos sociais referidos. Aliás, como veremos mais tarde, não
podemos nem afirmar que o Autor se dirige ao público comum, pois não temos informação
precisa sobre as características (econômicas) de distribuição do livro(ou folheto) que contém
o poema e sobre as características extralingüísticas de distribuição do próprio poema fora
desse livro.
Na mesma linha, não sabemos tampouco (pelo menos a vista dos documentos de que
dispomos) se a segunda parte constitui os primeiros versos ou alguns dos primeiros versos do
Poeta aos quinze anos, ou até versos compostos depois. Da mesma maneira, não sabemos

6
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

qual foi, dos dois referidos registros de língua, o registro com o qual o Autor se familiarizou
em primeiro lugar na sua vida. Portanto, não sabemos se o poema é um exercício de estilo do
Poeta ou se ele é a própria objetivação autêntica (por ser o destinador do mesmo grupo sócio-
cultural do destinatário no momento de sua redação). Na eventualidade de ser a segunda
alternativa exata, não sabemos se, na apresentação de que dispomos, o poema foi reescrito
ou gramaticalmente modificado (depois dessa primeira objetivação exterior autêntica). De
qualquer forma, através do exame de um outro poema do mesmo livro , podemos duvidar da
autenticidade do Autor como membro desse grupo sócio-cultural: ou porque ele nunca
pertenceu realmente a esse grupo (condições extralingüísticas diferentes), ou porque ele,
através da aquisição de uma outra sub“cultura” – anterior, paralela ou ulteriormente (no caso
de modificações) a A si pão fosse muié - não pertence mais totalmente a esse grupo, como
pode mostrar a diferença de grafia entre cassação, no título do segundo poema (verbo
“cassar”) e caçando, no sexto verso (verbo “ caçar”) ou, mais simplesmente, o perfeito
domínio do registro do “bem-falar” da elite sócio-cultural e o da grafia das palavras na
gramaticalidade do cordel, que parece exagerada. Como bem exprime Merleau-Ponty:
podemos falar várias línguas, mas uma delas permanece sempre aquela na qual vivemos. Para
assimilar completamente uma língua, seria necessário assumir o mundo que ela exprime, e
não se pertence nunca a dois mundos ao mesmo tempo. Estendemos aqui essas considerações
aos registros de língua.
Por outro lado, se confrontarmos esse trecho introdutório com a terceira parte,
verificaremos que ele não só fornece dados quanto a momentos da formação sociológica,
artística, e da evolução do Autor no que concerne ao poema, mas também quanto ao livro em
geral, deixando pensar na forte possibilidade que poderia o mesmo trecho ser ulterior ao
referido poema, o que corroboraria nossas precedentes colocações. Pode também esse trecho
até ter sido escrito por outra pessoa.
A partir desse primeiro trecho, não podemos concluir com certeza, no caso do poema,
que o emissor não compartilha(ava) a ideologia do cotidiano dos destinatários usuais desse
tipo de literatura (ouvintes nas feiras..., e não a comunidade literária); mas, apoiando-nos no
pensamento de Ducrot para quem “descrever um enunciado seria antes de qualquer outra
coisa descrever aonde ele conduz” , podemos afirmar que quem fala nesse primeiro trecho é
o indivíduo consciente de participar da comunidade literária alagoana (conteúdo interior) e

7
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

que ele fala para essa mesma comunidade, pois “a palavra é o território comum do locutor e
do interlocutor”.

Floreio estilístico no complexo cultural do romanceiro e valores nordestinos


No que concerne à segunda parte do texto (poema), ou seja, verossimilmente, ao
segundo momento do ato de comunicação, reconhecemos não poder determinar com certeza
se A si pão fosse muié é um exercício de estilo (objetivação exterior derivada) ou uma
objetivação exterior genuína do discurso interior do Autor. Utilizando uma expressão de
Bakhtin, lembramos que toda palavra tem “duas faces”: ela é determinada tanto pelo fato de
que procede de alguém, como pelo fato que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o
produto da interação do locutor e do ouvinte.
No caso do poema, a palavra (enunciado produzido em função de determinada
orientação social) procede do Autor, emissor que se inscreve em grupos maiores: o dos
poetas de cordel, e, mais genericamente, o dos escritores. Dirigir-se-ia virtualmente (à luz do
lingüístico), e talvez efetivamente, ao consumidor de literatura de cordel (não o sabemos,
pois, como vimos, não dispomos de informações extralingüísticas sobre a produção, a
distribuição, o consumo e o valor do livro e do poema). Ao mesmo tempo, dirigir-se-ia
também para a comunidade literária (escritores, críticos, leitores).
O mundo interior e a reflexão de cada indivíduo têm um auditório social próprio bem
estabelecido, em cuja atmosfera se constroem suas deduções interiores, suas motivações,
apreciações etc. Quanto mais aculturado for o indivíduo, mais o auditório em questão se
aproximará do auditório médio de criação ideológica.
O auditório societário do poeta se compõe de mais de uma classe social. Vimos no
texto introdutório que consta do auditório societário a comunidade literária –
verrossimilmente pelo fato de querer o Artista ser reconhecido sócio-culturalmente como tal
pela classe dominante. Também estão presentes nesse auditório societário violeiros e
repentistas e os grupos sociais correspondentes que constituem o povo do interior, quer esse
povo esteja morando lá, quer tenha emigrado para a capital. Encontramos os valores
tradicionais próprios e comuns à ideologia do cotidiano dessas classes sociais, no final do
século XX, no nordeste: mulher-objeto, homem-machão, existência de prostitutas,
individualismo etc. (cf. infra). Seria, portanto, interessante conhecer a data em que foi escrito

8
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

o poema e a idade do poeta quando de sua redação, bem como saber a que classe social ele
pertence(pertenceu) para melhor situá-lo em relação com a(s) referida(s) ideologia(s) do
cotidiano (informação que não conseguimos obter). O interlocutor imediato, virtual (alvo
aparente) seria no caso do poema o consumidor de cordel, como demonstra lingüísticamente
a orientação social escolhida pelo Poeta. Com efeito, a orientação social que corresponde ao
enunciado do Poeta nessa parte determinou a escolha da forma e do conteúdo da objetivação
exterior de seu conteúdo interior. Bakhtin esclarece que a “psicologia do corpo social se
manifesta essencialmente nos mais diversos aspectos da ‘enunciação’ sob a forma de
diferentes modos de discurso, sejam eles interiores ou exteriores” . Podemos constatar que a
forma de discurso escolhida é característica do poema de cordel:
Constatamos a presença de rimas pobres obtidas muitas vezes pela pronúncia de um
falar regional, rimas que não existiriam no “bem-falar” da elite sócio-cultural: fié – ponta-pé;
café – muié.
Algumas palavras parecem ter sido colocadas no texto apenas com a finalidade de
rimar, como é o caso da palavra grandez(a), no segundo verso da última estrofe, e talvez da
palavra coração, no quinto verso da quinta estrofe.
A grafia é calcada numa pronúncia utilizada nesse tipo de registro. Comporta pois
características do código oral usado. Entre muitas, citaremos:

- ausência do r final das palavras: no infinitivo dos verbos (oiá, cazá, comprá); nos
substantivos (muié, prazê);
- transformação do l medial em r: quarquer, carçado;
- desaparecimento do s final dos substantivos: as muié; nói zôme;
- ausência de concordância do verbo com o sujeito da oração: Dô tudo quanto elas qué;
si aquêles pão di grandez/ fôce muié di verdade.

Os versos de sete sílabas métricas, que parecem ser comuns a esse tipo de produção
literária, dão ao poema o ritmo particular da poesia popular do campo.
Com base em folhetos e livros vendidos em feira e em observações de “nativos” que
leram o poema, podemos levantar a hipótese de que há uma concentração demasiadamente
grande de casos que marcam o tipo de registro (e é provável que isto seja proposital).

9
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

Essa forma é importantíssima para concretizar a ideologia do cotidiano do grupo social


ao qual corresponde esse discurso, pois “ cada época e cada grupo social têm seu repertório
de formas de discurso na comunicação sócio-ideológica”.
Demonstrada a orientação social aparente do Autor (vimos que podemos pensar na
asserção de que o Poeta escreveu também para a comunidade literária), uma vez que “a
elaboração estilística da enunciação é de natureza sociológica, e a própria cadeia verbal, à
qual se reduz em última análise a realidade da língua, é social” , verificamos que o Autor
submeteu-se na modalidade escrita às normas da modalidade oral própria às características
identidárias desse grupo sócio-cultural (o Autor adaptou dessa maneira sua enunciação à
organização hierarquizada da sociedade na qual o poema de cordel é criado para ser ouvido –
ou seja, lido em voz alta –, não para ser lido unicamente como representação silenciosa). A
enunciação do Poeta (conteúdo interior mais objetivação exterior) se apóia sobre essa forma
de comunicação verbal própria do indivíduo do interior, no Nordeste e nesse último quarto de
século.
Encontramos também, no poema, temas constituindo a ideologia do cotidiano desse
grupo sócio-cultural, correspondentes a seu discurso social, corroborando a afirmação de
Bakhtin: “[as formas de comunicação verbal] são inteiramente determinadas pelas relações de
produção e pela estrutura sócio-política”. É importante sublinhar que não se trata aqui de
línguas diferentes entre as diferentes classes sociais, pois “classes sociais e comunidade
semiótica não se confundem. [...] Assim, classes sociais diferentes servem-se de uma só e
mesma língua”. Conseqüentemente, a plurivalência social do signo ideológico o torna vivo,
móvel e capaz de evoluir, dando a possibilidade ao Autor de escrever “foneticamente”,
quando se conhece perfeitamente a grafia correta das palavras. Podemos aproximar a idéia de
pertencer ou não a uma comunidade semiótica da idéia contida na citação que fizemos de
Merleau-Ponty, uma vez que “a comunicação verbal não poderá jamais ser compreendida e
explicitada fora desse vínculo com a situação concreta”. Como foi observado, o signo
ideológico, e portanto lingüístico, é marcado pelo horizonte social de uma época e de um
grupo social determinados, e, conseqüentemente, afetado por um índice de valor que definirá
seu conteúdo ou valor social em função da situação concreta e dos participantes do ato de
comunicação quando dessa mesma situação. Pensando no que Bakhtin denomina tema do
signo, ou seja, na realidade que deu lugar a sua formação, podemos legitimamente, à luz do
raciocínio anterior, nos perguntar se um homem do povo, vamos dizer, semi-analfabeto, iria

10
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

escrever dessa maneira e se essa grafia, que respeita as normas do falar popular do interior de
Alagoas, não é uma sofisticação que só poderia ser denotada por uma comunidade semiótica
capaz de estabelecer diferenças entre as duas grafias, e, dessa maneira, dar um valor correto e
adequado ao signo empregado pelo Poeta (o que corroboraria a hipótese da orientação social
do poema também – ou exclusivamente – para a comunidade literária). Sublinharemos a
discrepância entre as duas formas do verbo ser no imperfeito do subjuntivo: fosse, no título;
foce (fossem) no terceiro verso da última estrofe, bem como lembraremos as grafias corretas
de cassar e caçar (evocadas supra). Nas palavras de Bakhtin, a respeito do consenso entre
indivíduos socialmente organizados: “as formas do signo são condicionadas pela organização
social de tais indivíduos como pelas condições em que a interação acontece”.
Prosseguindo no nosso estudo da ideologia do cotidiano, vamos examinar os índices
de valor das palavras utilizadas no poema. À luz dos princípios aqui trabalhados, em todos os
casos, a situação social determina que modelo, que metáfora, que forma de enunciação
servirá para exprimir a coisa a partir de direções inflexivas da experiência. Podemos mostrar
que a experiência do contexto regional (i.e. vivência nesse contexto) é determinante no que
diz respeito à objetivação exterior do Poeta no nível dos instrumentos de produção e de sua
utilização: grafia seguindo a pronúncia do interior do Nordeste, estilo de cordel, regionalismo
(ver o termo mode). Do mesmo modo, mas no nível dos índices de valor do signo em função
dos grupos sociais, ainda o contexto social, bem como a Educação, num sentido largo,
organizaram a atividade mental do Poeta. Podemos listar traços da ideologia do cotidiano,
característicos do modo geral de vida que conhecemos, que fazem parte da experiência do
todo brasileiro do Nordeste que vive segundo os costumes ocidentais: pão (tipo de comida);
mesa (móvel de casa); balcão (móvel de loja); roupas, calçados (vestuário); cruzeiro (unidade
monetária de uma época num país: dinheiro); compra de mercadorias (relação comercial);
casar (no caso, viver em concubinagem, ou até casar realmente); comer com café (hábito
regional); existência de prostitutas. Fidelidade/infidelidade da mulher (valores sociais) etc.
Podemos também citar as seguintes expressões de uso popular e rural: inté, que nem. É
necessário salientar que o emissor é um homem, e que, portanto, foi educado e viveu (está
vivendo) como um homem, com todas as prerrogativas, direitos e mordomias que isso
implica no Nordeste do Brasil, principalmente no interior. Podemos observar também traços
da ideologia do cotidiano peculiares às relações entre os sexos na sociedade rural nordestina:

11
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

machismo e mulher-objeto, bem como traços comuns ao modo de produção no qual vivemos:
individualismo, propriedade privada e roubo.
Caracterizando a mulher como objeto, destacaremos os seguintes palavras e
sentenças:
- Muié (sem artigo) 1º verso – 1ª estrofe coiza Id. muié é qui nem brôa / Dôce 5º e 6º
versos – 1ª estrofe as muié eu comprace 5º verso – 4ª estrofe Mi cruzêro di muié 6º verso – 5ª
estrofe e a comparação entre pão e mulher, principalmente no título e na última estrofe.
A respeito das prostitutas (muié atôa), elas são mulheres-objeto por excelência, que se
pode olhar, comprar, usar e descartar, apesar de desprezá-las (Quinté).
Salientaremos, no que concerne à expressão do machismo, através de suas principais
características, a seguir:

Expressões de virilidade:
Quinté as muié atôa / Mi dá prazê eu oiá 2º e 3º versos da 1ª estrofe Eu digo a carquê
pessôa / Qui muié é... / Dôce bom de mastigá 4º, 5º e 6º versos da 1ª estrofe Gosto munto das
muié1° verso da 2ª estrofe

Homem colecionador de mulheres:


Muié (com sentido coletivo) 1º verso da 1ª estrofe “as muié” 2º verso da 1ª estrofe “das
muié” 1º verso da 2ª estrofe “elas” 2º verso da 2ª estrofe “Cum tôdas muié du mundo” 6º
verso da 3ª estrofe “as muié”2º verso da 4ª estrofe “as muié” 5º verso da 4ª estrofe “Mi
cruzêro di muié” 6º verso da 5ª estrofe “A metade” ultimo verso. O fato de o vocábulo
mulher e tudo o que se refere a ele aparecerem no plural contribui para a reificação da
mulher, exceto no caso dos 4º e 5º versos da 2ª estrofe, em que aparece mulher no singular,
podendo isso significar que o Poeta se refere à mulher com que ele vive (ou pretende viver)
em relação de “marido e mulher”.

Possessividade / Poder:
- intendência “Dô tudo.../ Rôpa carçado i carinho” 2º e 3º versos da 2ª estrofe
“fidelidade “obrigatória” “Mais si ela num fô fié...” 4º verso da 2ª estrofe “- direito de bater”
Ganha tombém ponta-pé / I mãozada
nu fucinho”

12
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

5º e 6º versos da 2ª estrofe “No que diz respeito à propriedade, podemos salientar as


expressões que se referem à fidelidade “obrigatória” e ao ato de compra. Quanto ao
individualismo e ao “roubo”, o último verso: Mai eu iscondia a metade.

É útil ressaltar que, no poema, o Autor revela uma atividade mental do nós: Prá nói
zôme, e também do para si: eu iscondia a metade. É claro que os homens constituem uma
parte de muito relevante importância no auditório societário, mas não só os homens, as
mulheres também. Presentes no texto, elas o são também na vida cotidiana, transmitindo a
seus filhos – a Educação no Nordeste é quase que essencialmente matriarcal – essa ideologia
do cotidiano que também as condicionou, por introjeção.
Salientaremos mais uma vez o fato de que as palavras empregadas pelo Autor estão
convertidas em signo ideológico marcado pela realidade do contexto social no qual ele está
vivendo. No machismo nordestino, que está presente no poema, a mulher é colocada
diretamente e sem rodeios no plano de objeto que se desfruta, que se pode vender, enfim, de
que se pode dispor de todas as maneiras. Constatamos que a mulher é relegada não só ao
nível do animal (fucinho), mas também ao de coisa (pão), o que, na hierarquia social, é bem
pior. Numa outra realidade histórico-concreta, pressupomos que o valor do signo seria
diferente por ter um tema diferente. No machismo francês do campo, por exemplo, parece-
nos que haveria uma certa dose de complacência com um ser julgado “inferior”. A mulher,
nesse caso, corresponderia à mistificação da mulher-criança, irresponsável, incapaz de se
conduzir por si própria em situação que não pertença ao trivial doméstico. A libertação
feminina, muito mais urbana, principalmente no que diz respeito aos usos e costumes, tende a
ser vista como o afastamento “indomável” de uma linha de conduta “segura e respeitável”.
Esclarece Bakhtin: os sistemas ideológicos constituídos da moral social, da ciência, da arte,
da educação e da religião cristalizam-se a partir da ideologia do cotidiano, exercem por sua
vez sobre esta, em retorno, uma forte influência e dão assim normalmente o tom a essa
ideologia.
A realidade que deu lugar ao poema não pertence só a um grupo sócio-cultural, mas
também á totalidade da comunidade rural considerada e pode até ser estendida a outros
grupos sociais. Ela pretende salvaguardar o consenso social, pelo menos entre homens e
mulheres. “O ser refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se refrata” .
Com efeito, recebemos através do poema imagens da mulher e do homem que são próprias da

13
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

classe dominante (no caso, os homens) que tende a conferir à mulher um caráter estático –
acima das diferenças sociais – de mulher-objeto, submissa à vontade do homem, a fim de
tentar abafar seus sentimentos e movimentos de emancipação. E isso não é próprio do meio
rural, de classe sócio-culturais menos “intelectualizadas”, das décadas já passadas. Encontra-
se presente em nosso dia a dia midiático atual, em várias produções culturais e publicitárias
que, paralela e até conjuntamente à imagem de mulher liberada, veículam ou a imagem
assexuada de mãe-dona de casa meritória, ou a imagem lucrativa de mulher-objeto que cultua
seu corpo, não só para sua própria satisfação, mas principalmente pela retribuição psíquica e
material que receberá ao notar as reações de contentamento do sexo oposto. O homem se
afirma como um ser livre, que domina a mulher, tanto para aprisionar uma outra consciência,
que reflete a sua, como para que a mulher produza para ele filhos seus (temor secular da
ilegitimidade). É sensato estabelecer um paralelo entre a herança para os filhos legítimos no
sistema de propriedade privada e a posse da mulher pelo homem que parece ser conseqüente.
O casamento se apresenta incontestavelmente, tal como é encarado no contexto social
referente ao poema, como uma forma de propriedade privada exclusiva. A poligamia, sem ter
sua contrapartida, a poliandria, é apenas um índice de dominação masculina, não de liberdade
sexual (como mostra o poema: mulher = pão = objeto avulso).

Enquadramento comunicacional no complexo cultural dos alfabetizados


Na terceira parte do texto, universo da paginação, verossimilmente o terceiro momento
do ato de comunicação, o Autor (organizador do livro) indica ao leitor (receptor do livro ou
da página fotocopiada) que os dois primeiros textos, prefácio e poema, não se encontram
nesse lugar como textos isolados, mas só constituem o início de um discurso mais longo.
“Qualquer enunciação [...] constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação
verbal ininterrupta”. Mesmo se nós nos encontrássemos em contato unicamente com o
poema, não poderiámos esquecer essa consideração: o poema é apenas um momento na
produção verbal do Autor.

A imagem ou objetificação reversa do corpo


No decorrer dessa análise, tivemos a oportunidade de verificar a justeza das afirmações
de Bakhtin, demonstrando as relações existentes entre o lingüístico e o extralingüístico : a
enunciação (ato de fala determinado pela situação imediata ou pelo conjunto de condições de

14
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

vida de uma determinada comunidade lingüística) é um produto da interação social, ou seja,


uma fração de uma corrente de comunicação verbal de um grupo social determinado num
momento preciso, não sendo a língua um sistema abstrato de formas lingüísticas que não dá
conta de sua realidade concreta, mas um “processo de evolução ininterrupto que se realiza
através da interação verbal social dos locutores”. A evolução lingüística obedece a leis
sociológicas; a toda situação, que faz parte duravelmente dos costumes de um grupo social,
corresponde um auditório societário organizado, e, conseqüentemente, fórmulas próprias,
estereotipadas, que se adaptam ao canal de interação social que lhe é reservado, refletindo
ideologicamente o grupo (tipo, estrutura, objetivos, composição social).
Ademais, vale resgatar aqui as considerações de Lane sobre o conhecimento
psicológico da aprendizagem da linguagem e de Lantz sobre as instâncias subjetivas e
objetivas do conhecimento. “Significados produzidos historicamente pelo grupo social
adquirem, no âmbito do indivíduo um ‘sentido pessoal’”. Em outros termos o significante “se
relaciona com a realidade, com a própria vida e com os motivos de cada indivíduo”.
Outrossim, pertencem ao simbolismo coletivo o conjunto das figuras, objetos, expressões
corporais que cristalizam idéias ou sentimentos comuns, cujo o sentido no entanto só pode ser
apreendido subjetivamente e então interpretado por cada um a sua maneira mas fundado num
desejo que é universal ao tempo em que é apenas apreendido individualmente.

Presentemente, parece-nos então oportuno observar a transformação do espaço


tridimensional da vida cotidiana no espaço bidimensional do poema.
O Autor, em sua tentativa de reconhecimento literário, passa do caráter primário do
poema de cordel (por ser antes de qualquer outra forma de divulgação , lido em feiras e
mercados nordestinos), ao caráter secundário do documento impresso, que satisfaz a suas
necessidades de multiplicação de destinatários em número e gênero e de duração mais
extensa da transmissão de sua produção. Porém, ao se dar conta da ausência, quando da
recepção, do aparato disponível quando da emissão, tenta perpetuar as características do
cordel, independentemente da instância de recepção. Apela para um código escrito diferente
que reproduz no tempo e no espaço a prosódia do interior alagoano e a musicalidade do
poema de cordel, ao tempo em que investe na imagem do semi-analfabetismo e outras
características regionais. Num movimento estético hiper-real, ao recorrer ao simulacro

15
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

fonológico dos “sons escritos”, acrescenta à figuratividade lexical das palavras uma
figuratividade plástica.
Lançando mão de uma metafora formulada por Kamper, é possível perceber que
agora se “vive” também no mapa do mundo e não no mundo. O corpo é transformado em
imagem. Assim nessa passagem da tridimensionalidade à bidimensionalidade,
metamorfoseam-se o corpo do cordel em imagem do cordel e a realidade do nordeste em
virtualidade literária. Nem sonho, nem realidade. Utopia ? Não, um novo elemento real,
numa nova realidade, que deixa sonhador - por bem ou por mal - qualquer adolescente de
quinze anos (destinador ou destinatário) e outros leitores, numa comutação com a vida e,
dentro dela, com a histórica masculinidade social judeu-cristã.
Sobre fenômenos desse tipo, Kamper pergunta se é ficção real ou realidade ficcional,
e argumenta que o retorno do corpo acontece não corporalmente, mas nas imagens. Adverte –
ao se referir ao psicanalista sloveno Slavoy Zizek - que temos de aprender que a imagem
permanece embuste, simulacro, ilusão e auto-ilusão. “Toda imagem ilude”.
No poema, é pouca a exploração da sensibilidade do corpo. O olhar não repousa sobre
o corpo feminino, apenas o referencia. A estereotipada doçura feminina é evocada em seu
nível mais primário, o da oralidade (experiência gustativa real e imaginária) A de um sabor
ligado ao saber, o da comida; “comida” portanto mental e sexual, evidenciada na ligação
entre as primeira e segunda estrofes. A “força” masculina manifesta-se na desfeita com a
honra perdida, vingada com violência, e no desejo carnal (segunda e terceira estrofes). Em
suma presencia-se um silencio do corpo. As formas de receber sensações limitam-se às
associações:
- visão=olho=olhar- gosto=boca=mastigar - sabor- tato=mãozada=violência, força-
audição=ausência do ouvir na relação homem–mulher, (não na relação Poeta-leitor)- ausência
do olfato

Retomando a própria imagem que nos fornece Kamper apoiado em Virilio, até na
literatura de cordel, notamos o caminhar para uma sociedade que nega o corpo como negou a
alma, apesar de o corpo aparecer como a última âncora concreta no oceano da abstração.
Talvez por isso, nesse poema, a sensibilidade do poeta insensibiliza o corpo da mulher,
relegando-a à condição de pão. Assim a concretitude revela-se maior, pois o pão, alimento

16
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

básico e representativo, é essência judeu-cristã. Na comunhão, o pão é corpo. Corpo de Deus.


No poema, a mulher é deusa. Apesar de bela, uma deusa fria e distante.
Nesse sentido, com as respectivas alegações - de Baudrillard - de que o virtual elimina
o referencial, e - de Lacan - de que no imaginário não existe o outro, Kamper afirma que a
imagem que se faz do outro exclui o outro. As imagens que nos fazemos do outro têm
tendência a ser apenas nossas. Em seu poema, o Autor exclui a mulher, ser com existência e
vontade, quer seja independente ou submissa. Transforma-a em objeto. A multireferen-
cialidade da mulher é tão grande que não há pessoas. Não existe uma referenciação real,
apenas encontra-se uma imagem. O mesmo ocorre em relação à cultura e vivência
nordestinas mumificadas em imagem d´Epinal (i.e. de apresentação ingênua e simplista),
como no que diz respeito à entonação calorosa e pitoresca do falar alagoano do inteiror, agora
asséptico numa folha de papel.
Aliás Kamper, referindo-se a Baudrillard comenta que as imagens não são ponte para
o outro, mas abismo de nosso próprio espelho como ser, de nossa própria imagem espelhada
de nós próprios. Ao tornarem-se absolutas no imaginário, as imagens conduzem à
indiferença, à frieza e à crueldade, tal como se presencia na grande mídia imagética. Enredam
numa “inverídica deshumanidade” em vez de implicar numa “verdade humana”.
Talvez pressentindo a construção desse espelho, e querendo assiná-la para afirmar-se,
o poeta nos oferece como pista as duas grafias de um mesmo verbo: Fosse/foce. Rastro
(in)voluntário para deixar, além de sua imagem, o rastro de seu corpo, i.e. do seu ser, não
como ser-imagem, mas ser-homem, na imagem que, por meio desse texto, ele nos oferece
dele mesmo.

Conclusão
Ao considerar essas últimas asserções, verifica-se que as impressões singulares do
indivíduo acontecem no que ele tem de mais profundo. É nelas que o simbolismo coletivo
(que explicitamos com o método bakhtiniano) encontra seu sentido, pois (excedendo os
limites dessa abordagem) necessita da intensidade relativa das emoções individuais para
penetrar no sujeito e surtir de seu corpo, possibilitando diversos estilos e seus efeitos. Assim,
é pela convergência das forças individuais de simbolismos singulares que se instaura o
simbolismo social. É na capacidade de deslocamento do corpo individual para o corpo

17
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

coletivo que reside a resistência estética capaz de desmontar o imaginário e questionar o


corpo inorgânico das imagens.
Com efeito, apesar de perspectivas teóricas divergentes, quando confinadas nos
sistemas fechados e distantes de paradigmas diferentes, as duas abordagens trabalhadas neste
ensaio revelam-se dialeticamente complementares e inter-relacionadas, num movimento de
respectivo retorno. Na concepção bakhtiniana, tudo procede do social, é social, e remete ao
social. O pensamento não existe fora da orientação social de sua expressão. Já nas
concepções de Lantz e Kamper, o investimento simbólico ocorre e renova-se no reforço ou
ruptura das relações habituais oriundas do social, pela presença de pulsões não somente
sociais mas também biológicas. Como demonstra Lantz, os indivíduos não produzem, nem
decifram códigos. Segundo motivações subjetivas e objetivas, interpretam um sistema social
que não produziram, mas contribuem para moldar. Investem em redes de convenções, e/ou
deixam-se levar pela sua sensibilidade, focalizando sua emotividade em figuras expressivas,
abertas a transferências de sentido, a sentidos figurados e a sentidos virtuais, que, na busca de
uma nova linguagem, procuram adquirir uma existência social.
Sob esse ângulo, procede a visão bakhtiniana que remete tudo ao social, pois o sujeito
é fruto de um meio social permanente presente em seu ser, quando das apreensões,
concepções e (con)vivências diárias. Tal estudo permite-nos obter uma descrição proveitosa
no que se refere ao coletivo. Porém revela-se insuficiente, pois, num movimento antitético,
deve se reconhecer que o simbolismo não é unicamente coletivo. Com efeito, o corpo foge à
disciplina coletiva voluntária, podendo exprimir (em menos, em mais, com desvio ou ao
contrário) o que a palavra não diz. Ademais, desde Freud, sabe-se que cada indivíduo tem sua
maneira singular de simbolizar seus desejos em seus sonhos.
Para Bakhtin, o sujeito consciente de si é o indivíduo que interiorizou uma regra, um
quadro de referências. Numa visualização estendida ao extremo, diríamos que é um corpo
sincronizado, que só conserva o rastro de sua materialidade orgânica, e pela sua multiplicação
engendra numa relação dialógica os corpos societários que formam o corpo social. A
identidade coletiva constitui–se a partir da negação das identidades individuais. Subordina a
existência individual à posição de uma questão formulada de maneira idêntica para todos: o
sujeito só é suporte de uma lógica universal. Nesse quadro coletivo, a diferença entre os seres
é aniquilada pela ordem social ou melhor pelas ordens societárias

18
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

Porém, em moldes individuais, a personalidade e a experiência de cada um proíbem


reações idênticas. Nesse caso, o simbolismo manifesta-se a partir de impressões íntimas
ressentidas pelo ser singular, confrontadas com os elementos materiais e as forças do meio
ambiente. Nessa interpenetração, a força simbólica nasce das forças e elementos do mundo,
i.e. o social, com as potências físicas e imaginativas do eu, i.e. (a(s) experiência(s)
corporal(ais).
Assim, e à guisa de conclusão, nos é possível afirmar que a coletividade capta a força
do movimento do corpo, como sujeito individual e social, para orientá-la segundo suas
normas. Exprime numa linguagem compartilhada o que o corpo experiência na sua
singularidade.
Mesmo se não conhece a singularidade, a linguagem, ao conhecer os indivíduos,
expressa a particularidade.

Referências

BAKHTIN, Mikail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1981.


BAUDRILLARD, Jean. América. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
BETH, Hanno & PROSS, H. Introducción a la Ciencia de la Comunicación. Anthropos:
Barcelona, 1990.
KAMPER, Dietmar. Corpo e imagem ; O presente impossível ; Imagem e violência:
interseção entre corpo e Imagem ; Os rastros e o rastrear. Palestras proferidas
respectivamente na PUC,SP em 17, 24, 24 / 08 / 1999 e na USP,SP em 18 / 08 / 1999, no
Programa de palestras das COMFIL-PUC-SP & ECA-USP.
LANE, Silvia T. M. Linguagem, pensamento e representação sociais. In: __________. &
CODO, Wanderley, (Orgs.). Psicologia Social: o homem em movimento. 5ª ed. São
Paulo: Brasiliense, 1987. p.32-9.
LANTZ, Pierre. Sujet de la Connaissance et Subjetivité. L´homme et la société– Théorie
du sujet et théorie sociale, Paris, L´Harmattan, n. 101, p. 49-55, 1991.
__________. L´investissement symbolique. Paris: PUF, 1996.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1971.

19
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

VOGT, Carlos. Linguagem, Pragmática e Ideologia. São Paulo: Hucitec, Funcamp, 1980.

ANEXOS
Sanexa

Anexo II
Nasci em Atalaia, Estado de Alagoas e me criei em Viçosa
do mesmo Estado. Talvez pelo fato de residir perto de violeiros
repentistas já aos 15 anos de idade fazia meus primeiros versos.

A SI PÃO FOSSE MUIÉ


Muié é coiza tão bôa
Quinté as muié atôa
Mi dá prazê eu oiá
Eu digo a carquê pessôa
Qui muié é qui nem brôa
Dôce bom di mastigá
A si eu nunca macabace
I as muié eu axace
Tôda ora todo dia
O mermo um tempo xegace
Qui as muié eu comprace
Qui nem pão nas padaria.
Gosto munto das muié
Dô tudo quanto elas qué
Rôpa carçado i carinho
Mais si ela num fô fié
Ganha tombém ponta-pé
I mãozada nu fucinho.
Eu butava um cesto na mão

20
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

Dizia vô comprá pão


Mode cumê cum café
Eu xegava nu baicão
Dizia di coração
Mi cruzêro di muié.
A minha vida é pençá
Sô capai di indoidá
Num durá mai um sigundo
Já num posso trabaiá
Só pençando in mi cazá
Cum tôdas muié du mundo.
Prá nói zôme qui beleza
Si aquêles pão di grandez
Fôce muié di verdade
Eu vô dizê cum franqueza
Pudia i pão prá mêza
Mai eu iscondia a metade.
(Antônio Aurélio de Morais)

Anexo III
AH SE PÃO FOSSE MULHER
Mulher é coisa tão boa
Que até as mulheres à-toa
Me dão prazer de eu olhar
Eu digo a qualquer pessoa
Que mulher é que nem broa
Doce bom de mastigar.
Ah se eu nunca me acabasse
E as mulheres eu achasse
Toda hora todo dia
Ou mesmo um tempo chegasse
Que as mulheres eu comprasse

21
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

Que nem pão nas padarias.


Gosto muito das mulheres
Dou tudo o quanto elas querem
Roupa, calçado e carinho
Mas se ela não for fiel
Ganha também ponta-pé
E mãozada no focinho.
Eu botava um cesto na mão
Dizia vou comprar pão
Para comer com café
Eu chegava no balcão
Dizia de coração
Mil cruzeiros de mulher.
A minha vida é pensar
Sou capaz de endoidar
Não durar mais um segundo
Jà não posso trabalhar
Só pensando em me casar
Com todas as mulheres do mundo.
Para nós homens que beleza
Se aqueles pães de grandeza
Fossem mulheres de verdade
Eu vou dizer com franqueza
Podia ir pão para a mesa
Mas eu escondia a metade.
(Antônio Aurélio de Morais)

22

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)

Você também pode gostar