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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

A ESTÉTICA VISUAL DO PALIMPSESTO NO DESIGN


Flávio Vinicius Cauduro 1

Introdução

O ensino do design gráfico nos Estados Unidos, desde a década de70, tem sido
influenciado pelas teorias pós-estruturalistas francesas, especialmente pela gramatologia (ou
desconstrucionismo) de Derrida. Informado, adicionalmente, pelas teorizações de Robert
Venturi e Denise Scott Brown sobre a arquitetura vernacular americana de origem comercial
e pelas propostas visuais do movimento Pop, o design americano mudou na década de 80
para o chamado estilo pós-moderno (Lupton & Miller 1996: 8).
Uma das características desse novo estilo, a nosso ver, teria sido a produção de
trabalhos de cunho mais “artístico”, isto é, mais ambíguos e paradoxais, menos “neutros” e
menos “funcionais”, além de serem mais complexos e menos apegados a fórmulas
racionalistas.
A comunicação visual praticada pelo design americano começava a ser encarada pelos
seus praticantes cada vez menos como uma prática tecnicista de “transmissão de sentido”
para ser cada vez mais vista como um jogo, como uma prática retórica, probabilística,
estimulante, de formulação de mensagens hipotéticamente eficazes (Cauduro 1990). Com
isso os projetos de design passaram a ser menos sérios e mais instintivos, muitas vezes
irônicos, quase sempre provocantes. Essa tendência foi gradualmente se espalhando pelo
mundo ocidental, principalmente por permitirem um maior ecletismo de estilo.
Segundo a ótica pós-estruturalista, a interpretação de mensagens é um jogo cujos
resultados poderão ser profetizados com sofrível grau de acerto. Cabe ao designer, portanto,
descobrir estratégias que permitam suas audiências participar desse jogo interpretativo,

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PUCRS.

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prazeiroso e criativo, sem que ele resulte numa anarquia semântica e sem tampouco
empobrecê-lo com apelos à obviedades e clichês.
A nosso ver, uma das estratégias que o design pós-moderno utiliza (conscientemente
ou não) para induzir o sujeito a participar desse jogo interpretativo, repetidamente, sem nunca
esgotar as possibilidades de geração de sentido, e assim manter-lhe prêsa a atenção, seria a da
utilização do que resolvemos designar de “estética visual do palimpsesto” na articulação dos
significantes das mensagens visuais.
Para poder compreender melhor a eficácia dessa estratégia, precisamos apresentar
inicialmente algumas considerações históricas e técnicas relativas a tipos de palimpsestos,
assim como a teoria desconstrucionista de Derrida, que utiliza implicitamente a noção da
sobreposição de escritas encontrada em palimpsestos para explicar a significação em termos
pós-estruturalistas (ou desconstrucionistas).

Tipos de palimpsestos

Segundo o historiador Wilson Martins (1996: 59-68), os primeiros suportes utilizados


pela escrita humana foram de origem mineral: a pedra (desenhos pré-históricos em cavernas,
as tábuas dos10 Mandamentos, as inscrições Maias), o mármore (inscrições tumulares e
cívicas Greco-Romanas), a argila (tabuinhas gravadas e cozidas das bibliotecas da
Mesopotâmia) e diversos metais (bronze e chumbo, em algumas ocasiões excepcionais ouro e
prata, gravados por estiletes ou fundidos). Esses suportes são utilizados ainda hoje, em
aplicações desde as mais banais até as mais nobres.
Lembremos aquí a prática tão atual dos graffitti, inscritos em muros, paredes de
edifícios, em vagões de metrô e veículos similares, através de pintura spray ou a pincel, e
que, pelo acúmulo gradual de mensagens, dão origem a palimpsestos vernaculares muito
interessantes, já documentados em livros e sites que enfatizam sua rica plasticidade e
originalidade. Temos também as pinturas murais do tipo tromp l’oeil, presentes notadamente
em Los Angeles e Londres, que geralmente se constituem em casos extremos de escrita
palimpsestica, pois visam a apresentação de mensagens deliberadamente ambíguas e
paradoxais aos espectadores, por confudirem habilmente figura e fundo em suas imagens.

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Nesses casos, uma das escritas é gerada pelas formas e texturas originais do suporte utilizado
(muro, fachada, parede), a outra sendo uma pintura, geralmente hiper-realista, superposta.
Do reino vegetal, foram e ainda são utilizadas madeiras, sob a forma de tabletas
entalhadas, ou recobertas por fina camada de cêra para serem riscadas por estiletes; também
foram utilizadas folhas de palmeiras, folhas de oliveira, o papiro, assim como, até hoje,
também são empregados panos, sedas e o familiar papel. Um tipo de palimpsesto corriqueiro
gerado sobre papel diariamente nas gráficas são as chamadas maculaturas, provas de várias
impressões diferentes, sobrepostas, obtidas quando se efetuam ajustes de posição e
entintamento de chapas litográficas, utilizando várias vezes as mesmas folhas de papel.
Vários designers que já tiraram partido da riqueza plástica gerada ao acaso por esses
impressos. Outro tipo interessante de palimpsesto que se pode observar em papel é aquele
resultante da sobreposição de vários cartazes rasgados, ou de seus resíduos, em muros e
outdoors, efeito esse explorado nos anos 60 pelo artista pop italiano Mimmo Rotella.
Para substituir o papiro, raro e caro, inventou-se o pergaminho, o material mais
conhecido do reino animal e o mais caro empregado na escrita, tanto na Antiguidade como
na Idade Média. É uma membrana produzida a partir de peles de vitela, cabra, carneiro ou
ovelha. Essas peles eram amolecidas em cal, raspadas e polidas até apresentarem uma
superfície fina, lisa e sem falhas, resistente ao manuseio, que fosse adequada para ser
utilizada como suporte para manuscritos ou para encadernações. Mais tarde o pergaminho de
pele animal passou a ser substituído pelo pergaminho vegetal obtido com a celulose pura
(pergaminho-papel), bem mais barato.
O pergaminho, até a invenção do papel, era o suporte mais adequado para a escrita de
documentos filosóficos, legais ou religiosos, mas era um bem escasso. Essa circunstância deu
origem ao aparecimento dos palimpsestos propriamente ditos.
O palimpsesto, que significa “raspado de novo”, era aquele material de escrita que se
obtinha pela raspagem do texto original de antigos pergaminhos. Era um pergaminho
reciclado, onde o novo texto a ser inscrito se supunha de maior relevância que aquele
apagado. O processo de apagamento, por descoloramento e raspagem da escrita anterior,
geralmente não se dava perfeitamente e ela reaparecia, ainda que mais fraca, sob a nova
escrita, como uma escrita fantasma. Esclarece ainda Martins que:

Pensou-se durante muito tempo que esse hábito [de reciclar pergaminhos] resultava
das intenções piedosas dos monges copistas, que apagavam textos pagãos para

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inscrever em lugar deles orações e meditações religiosas. Mas, verificou-se


posteriormente que não só o palimpsesto existe desde a mais remota antiguidade,
como ainda inúmeras orações e trechos religiosos tinham sido raspados em
benefício da literatura profana... Em qualquer dos casos, é possível ler, com o
auxílio de recursos modernos, o texto primitivo [ou textos anteriores], que se
destaca[m] com maior ou menor clareza sob a ação de reagentes químicos. (Martins
1996: 67)

Alguns palimpsestos foram reciclados mais de uma vez, acumulando vestígios de


escritas de várias épocas, o que os tornam ainda mais valiosos. Muitos manuscritos
importantes, como os dos Evangelhos, da Ilíada, e mesmo científicos, tem sido recuperados
de palimpsestos mal apagados. Um palimpsesto que se tornou muito famoso foi aquele
achado em Constantinopla em 1906, e que continha sob uma coleção de orações o texto
completo em grego de diversos e importantes escritos matemáticos de Arquimedes (Quinion
1998).
O pergaminho era inicialmente escrito de um lado só, como o papiro, até que
descobriu-se ser perfeitamente possível utilizar ambas as faces, a frente e o verso, para tal
fim. O volumen era o pergaminho, enrolado como o papiro, escrito só em uma face, enquanto
que o codex, o antepassado do nosso conhecido livro, era o conjunto de pergaminhos escritos
dos dois lados e que eram juntados entre sí pelo dorso e encadernados.
O termo palimpsesto também é utilizado atualmente em sentido metafórico para
designar fragmentos ou ruínas que mostram traços de uma configuração ou estrutura
arquitetônica anterior e que ainda pode ser detectada, imersa em um contexto visual mais
recente e diverso.

Escrita e différance

Segundo o filósofo Jacques Derrida, existe uma escrita mental (ou archi-écriture,
arque-escrita) que é a pré-condição de qualquer significação. Para ele, escrita designa não
apenas os gestos físicos implícitos em inscrições pictográficas ou ideográficas, mas também a
totalidade daquilo que a torna possível:

....chamamos de “escrita” tudo aquilo que dá origem à uma inscrição em geral, seja
ou não literal ou mesmo se aquilo que ela distribui no espaço é alheio à ordem da
voz: cinematografia, coreografia, naturalmente, mas também a “escrita” pictórica,
musical, escultural....É também nesse sentido que o biólogo contemporâneo fala de
escrita e pro-grama em relação aos mais elementares processos de informação na

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célula viva . E, finalmente....o campo total coberto pelo programa cibernético será o
campo da escrita. (Derrida 1967/1976: 9)

O que é comum à todas as práticas da significação, para Derrida, é a possibilidade do


traço instituído existir antes de ser corporificado em um significante (Derrida 1967/1976: 46).
O traço instituído, o grama que suporta aquela arque-escrita, sempre precederia qualquer ato
de comunicação, quaisquer marcas gráficas presentes em uma página: eles teriam sempre
sido já escritos em nossos cérebros, em nossa memória inconsciente – como argumenta
Derrida em seu texto sobre ‘Freud e a cena da escrita’ (Derrida 1967/1978: 196-231).
A arque-escrita de Derrida, baseada na noção do grama ou traço dinâmico,
subentenderia portanto todas as inscrições que estão sendo continuamente marcadas no
cérebro humano e constituiriam a escrita do pensamento, a “linguagem de máquina”, por
assim dizer, de nossa mente. Sendo tanto estrutura como movimento, essa escrita, essa
linguagem mental explicaria:
– a différence (diferença), ou o espaçamento, a não-identidade, a discernibilidade, a
alteridade entre e dos signos (Derrida 1972/1982: 8);
– e a simultânea différance (termo inventado por Derrida, equivalente a diferimento),
que é um adiamento, um retardamento, uma demora, um prazo, uma reserva, em suma, uma
temporização do signo em relação a outros, um desvio consciente ou inconsciente que
suspende a obtenção e o completar do desejo na significação (Derrida 1972/1982: 8),
fenômeno já postulado por Lacan, em seus seminários, ao falar sobre o escorregamento
metonímico contínuo do significado sob o significante (Lacan 1966/1977; Jefferson 1986:
112-116).
A linguagem, para Derrida e seus seguidores pós-estruturalistas, é portanto um jogo
sistemático de diferenças, uma ‘escrita’ de traços diferenciais e um espaçamento, pelo qual os
seus elementos palpáveis, os significantes, entram em constante relacionamento dinâmico uns
com os outros (Coward & Ellis 1977: 126).
Norris (1987: 15), ao comentar a gramatologia de Derrida, sugere que o sentido não
está pontualmente presente em lugar algum na linguagem, ele está sempre sujeito à uma
espécie de derrapagem (ou demora) semântica que impossibilita o signo de jamais (por assim
dizer) coincidir consigo mesmo em um momento de apreensão perfeita, sem resíduos’ (Norris
1987: 15).

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Para fundamentar melhor sua tese, Derrida – endossando a conhecida proposição de


Lacan que ‘o inconsciente é estruturado como uma linguagem’ (Lacan 1973/1979: 20), ou
seja, seria como uma linguagem de significantes puros, sem significados (Lacan 1972: 316) –
afirma que processos inconscientes participam da significação e que o inconsciente existe na
forma de sua ‘arque-escrita’, como um texto ou escrita hieroglífica gravada na matéria
cerebral, que não só precede a fala e a escrita gráfica, como também é o que informa nossas
percepções sensoriais e fundamenta todo nosso pensar e agir. Harland (1987) observa que:

Para Derrida, mesmo a nossa mais aparentemente imediata experiência não é uma
reflexão direta do mundo exterior mas um contato feito com aquilo que já está
inscrito, inconscientemente, na memória....E, assim como [ocorre] com a
presença, assim também [ocorre] com o presente temporal. Nós jamais poderemos
emparelhar com o momento exato de nosso contato sensorial com o mundo exterior,
estaremos chegando atrasados sempre para o ‘agora’ de nossa própria
experiência....O conceito fenomenológico do momento presente absoluto,
juntamente com o conceito fenomenológico ‘das coisas em sí mesmo’, é
desconstruído como uma ilusão pela teoria geral da Escrita de Derrida. (Harland
1987: 144, ênfase minha)

Isso se fundamentaria na hipótese da psicanálise de que o inconsciente do sujeito


mantém um arquivo de absolutamente tudo que ele viveu, nos seus mínimos pormenores,
hipótese que parece estar amparada por experimentos médicos realizados com pessoas
hipnotizadas (Harland 1987: 145).
O traço na mente, no inconsciente, também se manifesta nos sonhos, onde as imagens
são investidas com fortes sentimentos que não derivam diretamente de seus atributos
racionais ou ‘objetivos’, como notou Freud ao escrever sobre os deslocamentos e
condensações que ocorrem no trabalho do sonho. Esses seriam os processos primários de
significação do inconsciente, que explicariam as metáforas e as metonímias geradas no
estágio do pré-consciente, e que finalmente, no estágio consciente, ordenariam e articulariam
ainda mais diferenciadamente as relações entre os signos da linguagem através dos eixos dos
paradigmas e dos sintagmas (Silverman 1983).
Harland (1987) nos oferece a seguinte versão para a gramatologia de Derrida, e que
poderá ser bastante útil para entender a metáfora do palimpsesto implícita na sua teoria:
Derrida deriva sua teoria da ‘arque-escrita’ a partir de Freud, especialmente do
ensaio de Freud entitulado ‘Nota sobre o Tablete de Escrita Mágico’ [“A note upon
the ‘Mystic Writing Pad’”, em Freud 1925/1984: 429-434]. Neste ensaio, Freud
compara o aparato psíquico ao Tablete de Escrita Místico (ou Mágico), que ainda
hoje é vendido como uma brinquedo novidade para crianças. O tablete é feito de
uma folha transparente de celulóide que recobre uma folha de papel não-absorvente

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que por sua vez recobre uma base encerada. Um estilete, ao pressionar o celulóide,
pressiona o papel contra a base encerada, e esse último contato faz com que a cor
escura da base transpareça como uma escrita no papel levemente colorido de cima.
Tal escrita não está realmente depositada no papel, e pode ser feita desaparecer
simplesmente levantando e separando o papel da base. Contudo, como observou
Freud, a base encerada ainda retém a marca inscrita pelo estilete, mesmo quando o
escrito já não seja mais visível. Nesse aspecto, a base pode ser comparada ao
inconsciente da mente, que retém o que ele não percebe, e o papel (e o celulóide)
pode ser comparado ao sistema de consciência-percepção, que por sua vez transmite
[e conscientiza] aquilo que não retém.

Derrida tira o máximo possível dessa analogia quando ele interpreta o papel do
Bahnung (‘facilitação’) e do Spur (‘o traço’) no modelo genérico de Freud para a
percepção e a memória. Naquele modelo de Freud, uma força qualquer excitada nos
circuitos perceptuais do indivíduo, passa através do sistema neurológico do cérebro,
abrindo ou facilitando um caminho ou traço de baixa resistência eletroquímica. Este
caminho ou traço então permanece como a forma física de uma memória
inconsciente, o canal entalhado ao longo do qual forças futuras poderão mais
facilmente fluir e seguir. Derrida aceita essa teoria do traço, e a combina com a
escrita inscrita sobre a base encerada do Tablete de Escrita Místico (ou Mágico).
Pois tal escrita também tem a forma de um canal entalhado, escavado pela pressão
do estilete. Pela interpretação de Derrida, o traço é portanto um signo [material,
mental], da mesma maneira que a escrita é um signo [material, ambiental]. (Harland
1987: 142-43)

Derrida, adicionalmente, assume que a operação de levantar e descolar o papel de sua


base é contínua, o que mantém toda aquela escrita mental sob constante apagamento
(Derrida 1967/1978: 226). A legibilidade da escrita que aparece na superfície do tablete, nota
ele, é produzida indiretamente e é um efeito posterior da pressão do estilete. De maneira
similar, nossas experiências só vem à tona em nossa consciência após um certo tempo, depois
da ocorrência do evento que as originaram: ‘Para Derrida, mesmo nossa mais aparentemente
imediata experiência não é uma reflexão direta do mundo exterior mas um contato feito com
aquilo que já tinha sido lá inscrito, inconscientemente, na memória’, interpreta Harland
(1987: 144). Em outras palavras, toda significação depende do estabelecimento de relações,
dos sinais sensórios que chegam com traços mnemônicos (históricos) de sinais previamente
processados, assim como com traços de associações anteriores entre eles, para fins de
comparação e correlação. Pelo mesmo raciocínio, então, se nossa memória inconsciente não
participasse prioritariamente de todos nossos atos e percepções, não seria possível existir
nenhuma escrita legível (consciente) posterior.
Mais ainda, como também observa Harland:

A linguagem no modo de disseminação [isto é, entendida como um modo de


produção de sentidos incessante, como um processo de semiose ou interpretação

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contínuo] está em um desbalanceamento infindável e fora de equilíbrio.... Ou, para


cunhar uma metáfora elétrica: enquanto a ‘língua’ de Saussure existe meramente em
termos de diferenciais estáticos de voltagem entre polos positivos e negativos, a
linguagem como disseminação existe em termos de correntes que fluem de polo a
polo (a polo a polo), criando e anulando diferenças de voltagem....[Portanto]
Derrida reabre a dimensão do tempo que os estruturalistas haviam excluído de
seus modelos espaciais... (Harland 1987: 137, ênfase minha)

Então, a teoria da différance, da gramatologia, ou ainda, da desconstrução, postulada


por Derrida, desafia a noção metafísica tradicional do signo binário, monosêmico, fechado,
imutável, assim como os modelos estruturalistas que postulam linguagem e comunicação
funcionando como códigos estáveis, por (re)introduzir nesses modelos os efeitos das
variáveis tempo e subjetividade, para dar conta de diferenças interpretativas no ler/escrever
textos por sujeitos diferentes, ou mesmo por um só sujeito em instantes distintos.
O sentido, a significação, portanto, são vistos como efeitos dos significantes que se
obtém de um texto, num certo instante e contexto, e através das correlações que eles
estabelecem com outros textos e significantes previamente gravados na memória inconsciente
dos sujeitos.
Sendo o resultado de interpretações subjetivas, condicionadas cultural (espacial) e
históricamente (temporalmente), o sentido está sempre mudando. Com isso, é impossível que
alguém possa ter a pretensão de estabelecer o ‘verdadeiro’ significado de qualquer texto ou as
‘verdadeiras’ intenções do seu autor – nem mesmo o próprio autor teria condições para tanto.
Assim como também fica impossibilitada a medida da ‘eficiência’ de qualquer comunicação.
Tudo o que a significação nos permite fazer, parece sugerir Derrida, é jogar com
probabilidades e hipóteses, arriscando suposições fundamentadas e correndo riscos
calculados.
Segundo Keep & McLaughlin (1995), Derrida, ao referir sua teorização à metáfora do
Tablete de Escrita Místico (ou Mágico) de Freud, quer enfatizar que aquela não é uma
metáfora, mas uma realidade, que a percepção realmente funciona como o mecanismo do
tablete mágico. Isto é, não apreendemos o mundo diretamente, mas apenas
retrospectivamente; os significados, as interpretações, o sentido das coisas é sempre o
produto de prévias memórias, prévias escritas despertadas e interconectadas de modos
sempre diferentes por estímulos sensoriais gerados por percepções.
Ou seja, o tablete mágico da mente, ao relacionar traços gerados por percepções
presentes com os demais já escritos na memória inconsciente, promoveria a intertextualidade

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entre os signos, de maneira bastante semelhante à intertextualidade que os palimpsestos mal


apagados podem originar (ainda que essa intertextualidade seja produzida acidentalmente e
não seja a razão de ser, mas apenas um “defeito” de reciclagem inerente a qualquer
palimpsesto, em maior ou menor gráu).
Em nossa pesquisa sobre identificação de possíveis características típicas das imagens
pós-modernas, seja no design gráfico, seja em outras práticas significantes visuais, partimos
da hipótese que poderia haver um modelo estilístico visual inspirado no palimpsesto,
inspirado no modelo arqueológico de escrita da mente humana, conforme postulada pelos
pós-modernos e pós-estruturalistas. O design gráfico atual, por exemplo, parece buscar maior
imprevisibilidade sintática, e consequentemente maior originalidade e riqueza semântica, no
jogo de deciframento proposto por suas mensagens visuais, inspirando-se na visualidade
complexa que palimpsestos muito mal apagados e muitas vezes reutilizados poderiam gerar.
Esse excesso de sinais gráficos, característico desse estilo, como que abriria possibilidades
ilimitadas de geração de polifonias visuais, o que atrairía ainda mais a atenção da audiência
para esse tipo de mensagens e nelas manteria desperta, por um longo tempo, a curiosidade e o
desejo por esgotar-lhes suas possibilidades de deciframento.
A existência do estilo palimpsesto, articulado em muitas mensagens ditas pós-
modernas, parece ser uma hipótese bastante razoável – haja visto que uma das características
visuais mais recorrentes nas imagens contemporâneas, principalmente naquelas produzidas
digitalmente, é a sobreposição, fusão e interpenetração de formas, cores e texturas,
transparentes ou não, mas geralmente heterogêneas, que resulta num processo de hibridação
de sinais algo caótico, muitas vezes também “impuro” e “ruidoso”, que transgride
audaciosamente, mas confiantemente, o paradigma tradicional da legibilidade e da separação
das formas visuais entre figura e fundo nas práticas de comunicação visual modernistas.
Na era pós-moderna, as práticas de comunicação visual, utilizando a estética do
palimpsesto, estariam tentando reintroduzir o jogo, o acaso, a descontração, a acumulação, a
diversificação e, principalmente, reintroduzir o sujeito na prática de significação das
mensagens visuais, que estava ficando cada vez mais esterilizada e burocratizada pelas
formulas visuais propagadas por modernistas de diversas escolas.

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A estética visual do palimpsesto e os modernistas


Os cubistas parecem ter sido os primeiros artistas a tentarem explorar
propositadamente a estética do palimpsesto, visando a fusão visual de imagens, pela
apresentação simultânea de vários pontos de vista de um mesmo objeto na tela, assim como
pela superposição sucessiva e entrelaçamento de formas distintas no quadro pictórico. Como
observava, por exemplo, Moholy-Nagy, ao analisar uma natureza morta com colagem de
Picasso, de 1913:

As análises de Picasso do espaço pictórico foram a conseqüência de seus esforços


para obter uma tradução precisa de sua experiência dos objetos. As partes
desmembradas se colocam uma atrás da outra, infinitamente, entrelaçadas uma e
outra vez, penetrando-se mutuamente, mas sempre na múltipla variedade de uma
inquietante composição visual, que cria um espaço ricamente articulado. (Moholy-
Nagy 1929/1972: 62)

Mais adiante, Moholy-Nagy (1929/1972: 64) apresenta uma “dicionário” dos recursos
visuais utilizados pelos cubistas em suas representações, onde se destacam, como técnicas
produtoras do estranhamento e superposição de formas:
– distorção;
– o giro do objeto, que é apresentado simultaneamente de frente e de perfil;
– cortes, ou seja, o emprego de partes no lugar do todo;
– deslocamento das partes;
– superposição de distintas vistas dos objetos;
– reversões positivo-negativas de linhas e planos;
– multiplas formas numa só; pluralismo; um contorno se referindo a várias formas;
– colagem de fragmentos de materiais diversos sobre a superfície do quadro (papelão
corrugado, madeira, areia, arames, etc.), inclusive rasgos de papel com elementos
tipográficos.
Moholy-Nagy também observava que “os cubistas introduziram uma nova estrutura
[na pintura ocidental] mediante a organização de planos paralelos” (p. 57), uma vez que além
da “fusão intuitiva de ... distintos pontos visuais (p. 58)”, muitas vezes “os objetos aparecem
achatados, como se tivessem sido apertados entre duas lâminas”
(p. 58), isto é, como se fosse um palimpsesto arqueológico, se é que podemos utilizar
tal expressão.

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A apresentação simultânea de múltiplas formas de um mesmo objeto também era uma


das estratégias visuais do futurismo, outro movimento plástico da mesma época. Mas havia
uma importante diferença, segundo Moholy-Nagy: o futurismo utilizava “a superposição do
objeto em uma seqüência de movimento linear, enquanto que o cubismo é a apresentação dos
objetos como se girassem no espaço” (p. 70). Ou seja, o futurismo tentava representar a
passagem linear do tempo, analisando os deslocamentos relativos das partes de um mesmo
objeto (significação ao longo do tempo), enquanto o cubismo se preocupava em mostrar um
objeto de diferentes posições, tentando capturar as diversas possibilidades de representação
de sua estrutura (significação a partir de diversos pontos de vista espaciais).
Em ambos os casos, contudo, o efeito dessa estética visual do palimpsesto, como
utilizada pelos cubistas e futuristas, é atenuado, pois as formas superpostas dizem respeito a
mesmos objetos em tempos ou posições diferentes, ao contrário do que vai ocorrer mais tarde
nos trabalhos de artistas e designers pós-modernos, que procuram sobrepor formas o mais
possível heterogêneas e incongruentes, como que a desafiar ao limite o processo metonímico
de interpretação.
Moholy-Nagy, por sua vez, foi um pouco mais audacioso, tentando combinar e
sobrepor intencionalmente signos realmente heterogêneos, como caracteres tipográficos e
fotos de objetos. Mas ainda assim havia uma lógica bem racional subjacente à essa estética
visual palimpsestica: os significados da escrita tipográfica e da fotografia eram congruentes e
se complementavam. Por exemplo, para capa do livro A Nova Arquitetura e a Bauhaus, de
Walter Gropius, Moholy-Nagy concebeu uma foto de página inteira, onde o título em questão
é composto em tipos Futura e aparece como que flutuando sobre uma mesa, sobre um livro
de arquitetura aberto, sobre cujas páginas repousam um esquadro de plástico, uma régua e um
tiralinhas (p. 133).
A descoberta dessa nova possibilidade de representação (utilizando figuras
sobrepostas em camadas transparentes) ele diz ter descoberto na mesma época dos cubistas, e
derivou, diz ele, de sua constatação de que os significados ou mensagens mais completos da
chamada nova visão artística, aquela que se proclamava moderna, provinham em verdade da
riqueza das relações visuais estabelecidas entre as linhas, curvas e formas mais do que dos
próprios objetos representados (p.128). E a sobreposição desses elementos era a forma que
ele encontrara para aumentar ainda mais a riqueza dessas relações.

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Posteriormente, sob a influência de colagens cubistas e animado pela ousadia visual


dos dadaístas, como ele proprio revela (p.135), Moholy-Nagy passou a trabalhar com
fotomontagens, o que lhe possibilitou redescobrir a antiga técnica do fotograma. Isso, por sua
vez, inspirou-o a explorar a transparência das formas, não mais no plano mas no espaço
tridimensional, pela utilização de materiais translúcidos, na sua pintura, escultura, arquitetura
e fotografia (p. 135). Com isso, obteve resultados inéditos e ainda hoje surpreendentes pela
sua atualidade.
Não consideramos que a estética visual do palimpsesto possa ser identificada nas
propostas do movimento surrealista e em suas colagens, uma vez que o que aí se verifica são
juxtaposições e montagens de significantes que não estão superpostos. Com isso, o sentido
geralmente resultante dessas colagens e condensações surrealistas é enigmático, non-sensico,
absurdo, por serem simbólicamente incongruentes, contraditórias, fantásticas. Diferentemente
do efeito de complexidade sintática produzido pela estética visual do palimpsesto (gerada
pela sobreposição de múltiplas camadas transparentes de escritas heterogêneas), que gera
uma indecidibilidade de sentido, pois a sobreposição não-hierarquizada de significantes
heterogêneos num mesmo espaço de escrita possibilita e estimula ilimitadas combinações
sintagmáticas entre os sinais presentes.

A estética visual do palimpsesto na pós-modernidade


Podemos identificar a estética visual do palimpsesto, mais recentemente, nos
trabalhos serigráficos de Robert Rauschenberg realizados a partir de 1962, após sua fase
tridimensional de combine painting (Lippard 1966:24). Ele é considerado pelos críticos de
arte um dos principais expoentes da pop art e um dos precursores mais notáveis do pós-
modernismo. Entre os primeiros trabalhos que utilizam a estética visual do palimpsesto
destacamos o seu Overdrive, de 1963, em óleo e serigrafia fotográfica sobre tela, e os
notórios Persimon e Tracer, na mesma técnica, ambos de 1964, e com muitos elementos
figurativos em comum.
Para David Harvey, Rauschenberg, “um dos pioneiros do movimento pós-moderno”,
se destaca por reproduzir, em vez de produzir suas imagens através do “confisco, citação,

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retirada, acumulação e repetição de imagens já existentes”, o que faz com que “a aura
modernista do artista como produtor é dispensada” (Harvey 1998: 58). Ou seja, ele inaugura
a era das assemblages visuais, utilizando elementos figurativos pré-existentes (ready-mades).
Significativamente, Rauschenberg continua utilizando ainda hoje a mesma estética do
palimpsesto em seus trabalhos, agora aliando fotografia com processamento digital de
imagens, como na série de trabalhos de 1996 entitulada Anagram.
A estética visual do palimpsesto também é encontrada na arquitetura pós-moderna.
Harvey, mais adiante em seu livro, diz que “o desconstrutivismo ... concebe o prédio não
como um todo unificado, mas como ‘textos’ e partes disparatados que permanecem distintos
e não alinhados, sem adquirir sentido de unidade, e que são, portanto, suscetíveis de várias
leituras ‘assimétricas e irreconciliáveis’” (p.95), o que percebemos de imediato ser mais uma
forma possível de caracterizar a estética visual do palimpsesto.
Margot Lovejoy, por sua vez, afirma que o pós-modernismo levou os artistas a
começarem a ver o mundo como “uma experiência de seqüências continuamente cambiantes,
juxtaposições e deposições em camadas, como parte de uma estrutura decentrada [sem
lógica] de associações”(Lovejoy 1997: 69), o que também é uma outra maneira,
perfeitamente adequada, de caracterizar a presença da estética visual do palimpsesto nas artes
visuais.
No design gráfico, propriamente dito, também podemos encontrar a estética visual do
palimpsesto sendo empregada, desde há algum tempo, nos trabalhos de Wolfgang Weingart,
April Greiman, Neville Brody, Studio Dumbar, David Carson, e outros.
Já na era da World Wide Web vamos encontrar essa estética muito presente em sites
de designers, de artistas e de empresas de comunicação visual, como podemos constatar
através de exemplos de páginas desses tipos de sites mostrados no livro Web Design: The
Next Generation (1998).
Pretendemos desenvolver ainda mais o presente estudo investigando, em breve, a
existência dessa mesma estética visual pós-moderna do palimpsesto em outras práticas
visuais, tais como fotografia, história em quadrinhos, videoclips e filmes, para ver quais são
as características visuais específicas dessa estética em cada uma delas.

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

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