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Introdução
O ensino do design gráfico nos Estados Unidos, desde a década de70, tem sido
influenciado pelas teorias pós-estruturalistas francesas, especialmente pela gramatologia (ou
desconstrucionismo) de Derrida. Informado, adicionalmente, pelas teorizações de Robert
Venturi e Denise Scott Brown sobre a arquitetura vernacular americana de origem comercial
e pelas propostas visuais do movimento Pop, o design americano mudou na década de 80
para o chamado estilo pós-moderno (Lupton & Miller 1996: 8).
Uma das características desse novo estilo, a nosso ver, teria sido a produção de
trabalhos de cunho mais “artístico”, isto é, mais ambíguos e paradoxais, menos “neutros” e
menos “funcionais”, além de serem mais complexos e menos apegados a fórmulas
racionalistas.
A comunicação visual praticada pelo design americano começava a ser encarada pelos
seus praticantes cada vez menos como uma prática tecnicista de “transmissão de sentido”
para ser cada vez mais vista como um jogo, como uma prática retórica, probabilística,
estimulante, de formulação de mensagens hipotéticamente eficazes (Cauduro 1990). Com
isso os projetos de design passaram a ser menos sérios e mais instintivos, muitas vezes
irônicos, quase sempre provocantes. Essa tendência foi gradualmente se espalhando pelo
mundo ocidental, principalmente por permitirem um maior ecletismo de estilo.
Segundo a ótica pós-estruturalista, a interpretação de mensagens é um jogo cujos
resultados poderão ser profetizados com sofrível grau de acerto. Cabe ao designer, portanto,
descobrir estratégias que permitam suas audiências participar desse jogo interpretativo,
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prazeiroso e criativo, sem que ele resulte numa anarquia semântica e sem tampouco
empobrecê-lo com apelos à obviedades e clichês.
A nosso ver, uma das estratégias que o design pós-moderno utiliza (conscientemente
ou não) para induzir o sujeito a participar desse jogo interpretativo, repetidamente, sem nunca
esgotar as possibilidades de geração de sentido, e assim manter-lhe prêsa a atenção, seria a da
utilização do que resolvemos designar de “estética visual do palimpsesto” na articulação dos
significantes das mensagens visuais.
Para poder compreender melhor a eficácia dessa estratégia, precisamos apresentar
inicialmente algumas considerações históricas e técnicas relativas a tipos de palimpsestos,
assim como a teoria desconstrucionista de Derrida, que utiliza implicitamente a noção da
sobreposição de escritas encontrada em palimpsestos para explicar a significação em termos
pós-estruturalistas (ou desconstrucionistas).
Tipos de palimpsestos
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Nesses casos, uma das escritas é gerada pelas formas e texturas originais do suporte utilizado
(muro, fachada, parede), a outra sendo uma pintura, geralmente hiper-realista, superposta.
Do reino vegetal, foram e ainda são utilizadas madeiras, sob a forma de tabletas
entalhadas, ou recobertas por fina camada de cêra para serem riscadas por estiletes; também
foram utilizadas folhas de palmeiras, folhas de oliveira, o papiro, assim como, até hoje,
também são empregados panos, sedas e o familiar papel. Um tipo de palimpsesto corriqueiro
gerado sobre papel diariamente nas gráficas são as chamadas maculaturas, provas de várias
impressões diferentes, sobrepostas, obtidas quando se efetuam ajustes de posição e
entintamento de chapas litográficas, utilizando várias vezes as mesmas folhas de papel.
Vários designers que já tiraram partido da riqueza plástica gerada ao acaso por esses
impressos. Outro tipo interessante de palimpsesto que se pode observar em papel é aquele
resultante da sobreposição de vários cartazes rasgados, ou de seus resíduos, em muros e
outdoors, efeito esse explorado nos anos 60 pelo artista pop italiano Mimmo Rotella.
Para substituir o papiro, raro e caro, inventou-se o pergaminho, o material mais
conhecido do reino animal e o mais caro empregado na escrita, tanto na Antiguidade como
na Idade Média. É uma membrana produzida a partir de peles de vitela, cabra, carneiro ou
ovelha. Essas peles eram amolecidas em cal, raspadas e polidas até apresentarem uma
superfície fina, lisa e sem falhas, resistente ao manuseio, que fosse adequada para ser
utilizada como suporte para manuscritos ou para encadernações. Mais tarde o pergaminho de
pele animal passou a ser substituído pelo pergaminho vegetal obtido com a celulose pura
(pergaminho-papel), bem mais barato.
O pergaminho, até a invenção do papel, era o suporte mais adequado para a escrita de
documentos filosóficos, legais ou religiosos, mas era um bem escasso. Essa circunstância deu
origem ao aparecimento dos palimpsestos propriamente ditos.
O palimpsesto, que significa “raspado de novo”, era aquele material de escrita que se
obtinha pela raspagem do texto original de antigos pergaminhos. Era um pergaminho
reciclado, onde o novo texto a ser inscrito se supunha de maior relevância que aquele
apagado. O processo de apagamento, por descoloramento e raspagem da escrita anterior,
geralmente não se dava perfeitamente e ela reaparecia, ainda que mais fraca, sob a nova
escrita, como uma escrita fantasma. Esclarece ainda Martins que:
Pensou-se durante muito tempo que esse hábito [de reciclar pergaminhos] resultava
das intenções piedosas dos monges copistas, que apagavam textos pagãos para
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Escrita e différance
Segundo o filósofo Jacques Derrida, existe uma escrita mental (ou archi-écriture,
arque-escrita) que é a pré-condição de qualquer significação. Para ele, escrita designa não
apenas os gestos físicos implícitos em inscrições pictográficas ou ideográficas, mas também a
totalidade daquilo que a torna possível:
....chamamos de “escrita” tudo aquilo que dá origem à uma inscrição em geral, seja
ou não literal ou mesmo se aquilo que ela distribui no espaço é alheio à ordem da
voz: cinematografia, coreografia, naturalmente, mas também a “escrita” pictórica,
musical, escultural....É também nesse sentido que o biólogo contemporâneo fala de
escrita e pro-grama em relação aos mais elementares processos de informação na
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célula viva . E, finalmente....o campo total coberto pelo programa cibernético será o
campo da escrita. (Derrida 1967/1976: 9)
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Para Derrida, mesmo a nossa mais aparentemente imediata experiência não é uma
reflexão direta do mundo exterior mas um contato feito com aquilo que já está
inscrito, inconscientemente, na memória....E, assim como [ocorre] com a
presença, assim também [ocorre] com o presente temporal. Nós jamais poderemos
emparelhar com o momento exato de nosso contato sensorial com o mundo exterior,
estaremos chegando atrasados sempre para o ‘agora’ de nossa própria
experiência....O conceito fenomenológico do momento presente absoluto,
juntamente com o conceito fenomenológico ‘das coisas em sí mesmo’, é
desconstruído como uma ilusão pela teoria geral da Escrita de Derrida. (Harland
1987: 144, ênfase minha)
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que por sua vez recobre uma base encerada. Um estilete, ao pressionar o celulóide,
pressiona o papel contra a base encerada, e esse último contato faz com que a cor
escura da base transpareça como uma escrita no papel levemente colorido de cima.
Tal escrita não está realmente depositada no papel, e pode ser feita desaparecer
simplesmente levantando e separando o papel da base. Contudo, como observou
Freud, a base encerada ainda retém a marca inscrita pelo estilete, mesmo quando o
escrito já não seja mais visível. Nesse aspecto, a base pode ser comparada ao
inconsciente da mente, que retém o que ele não percebe, e o papel (e o celulóide)
pode ser comparado ao sistema de consciência-percepção, que por sua vez transmite
[e conscientiza] aquilo que não retém.
Derrida tira o máximo possível dessa analogia quando ele interpreta o papel do
Bahnung (‘facilitação’) e do Spur (‘o traço’) no modelo genérico de Freud para a
percepção e a memória. Naquele modelo de Freud, uma força qualquer excitada nos
circuitos perceptuais do indivíduo, passa através do sistema neurológico do cérebro,
abrindo ou facilitando um caminho ou traço de baixa resistência eletroquímica. Este
caminho ou traço então permanece como a forma física de uma memória
inconsciente, o canal entalhado ao longo do qual forças futuras poderão mais
facilmente fluir e seguir. Derrida aceita essa teoria do traço, e a combina com a
escrita inscrita sobre a base encerada do Tablete de Escrita Místico (ou Mágico).
Pois tal escrita também tem a forma de um canal entalhado, escavado pela pressão
do estilete. Pela interpretação de Derrida, o traço é portanto um signo [material,
mental], da mesma maneira que a escrita é um signo [material, ambiental]. (Harland
1987: 142-43)
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Mais adiante, Moholy-Nagy (1929/1972: 64) apresenta uma “dicionário” dos recursos
visuais utilizados pelos cubistas em suas representações, onde se destacam, como técnicas
produtoras do estranhamento e superposição de formas:
– distorção;
– o giro do objeto, que é apresentado simultaneamente de frente e de perfil;
– cortes, ou seja, o emprego de partes no lugar do todo;
– deslocamento das partes;
– superposição de distintas vistas dos objetos;
– reversões positivo-negativas de linhas e planos;
– multiplas formas numa só; pluralismo; um contorno se referindo a várias formas;
– colagem de fragmentos de materiais diversos sobre a superfície do quadro (papelão
corrugado, madeira, areia, arames, etc.), inclusive rasgos de papel com elementos
tipográficos.
Moholy-Nagy também observava que “os cubistas introduziram uma nova estrutura
[na pintura ocidental] mediante a organização de planos paralelos” (p. 57), uma vez que além
da “fusão intuitiva de ... distintos pontos visuais (p. 58)”, muitas vezes “os objetos aparecem
achatados, como se tivessem sido apertados entre duas lâminas”
(p. 58), isto é, como se fosse um palimpsesto arqueológico, se é que podemos utilizar
tal expressão.
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retirada, acumulação e repetição de imagens já existentes”, o que faz com que “a aura
modernista do artista como produtor é dispensada” (Harvey 1998: 58). Ou seja, ele inaugura
a era das assemblages visuais, utilizando elementos figurativos pré-existentes (ready-mades).
Significativamente, Rauschenberg continua utilizando ainda hoje a mesma estética do
palimpsesto em seus trabalhos, agora aliando fotografia com processamento digital de
imagens, como na série de trabalhos de 1996 entitulada Anagram.
A estética visual do palimpsesto também é encontrada na arquitetura pós-moderna.
Harvey, mais adiante em seu livro, diz que “o desconstrutivismo ... concebe o prédio não
como um todo unificado, mas como ‘textos’ e partes disparatados que permanecem distintos
e não alinhados, sem adquirir sentido de unidade, e que são, portanto, suscetíveis de várias
leituras ‘assimétricas e irreconciliáveis’” (p.95), o que percebemos de imediato ser mais uma
forma possível de caracterizar a estética visual do palimpsesto.
Margot Lovejoy, por sua vez, afirma que o pós-modernismo levou os artistas a
começarem a ver o mundo como “uma experiência de seqüências continuamente cambiantes,
juxtaposições e deposições em camadas, como parte de uma estrutura decentrada [sem
lógica] de associações”(Lovejoy 1997: 69), o que também é uma outra maneira,
perfeitamente adequada, de caracterizar a presença da estética visual do palimpsesto nas artes
visuais.
No design gráfico, propriamente dito, também podemos encontrar a estética visual do
palimpsesto sendo empregada, desde há algum tempo, nos trabalhos de Wolfgang Weingart,
April Greiman, Neville Brody, Studio Dumbar, David Carson, e outros.
Já na era da World Wide Web vamos encontrar essa estética muito presente em sites
de designers, de artistas e de empresas de comunicação visual, como podemos constatar
através de exemplos de páginas desses tipos de sites mostrados no livro Web Design: The
Next Generation (1998).
Pretendemos desenvolver ainda mais o presente estudo investigando, em breve, a
existência dessa mesma estética visual pós-moderna do palimpsesto em outras práticas
visuais, tais como fotografia, história em quadrinhos, videoclips e filmes, para ver quais são
as características visuais específicas dessa estética em cada uma delas.
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