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© Mário Avelar
e Imprensa Nacional-Casa da Moeda
TÍTULO
Poesia e Artes Visuais — Confessionalismo e Écfrase
AUTOR
Mário Avelar
DESIGN
www.whitestudio.pt
REVISÃO
Paula Mateus
A
1. EDIÇÃO
Março de 2018
ISBN 9789722730723
EDIÇÃO N.º 1021942
Índice
Capa
Ficha Técnica
Agradecimentos
Prólogo
1. As origens clássicas — Écfrase e mimese
1.1. Écfrase — O escudo de Aquiles
1.2. A construção de uma tradição
1.3. Reflexões primordiais de Platão a Horácio
1.4. Outros lugares, outros rumos da écfrase
2. Artes do espaço e do tempo?
2.1. O Laokoon de Lessing
2.2. A fotografia, novo impulso no diálogo entre a palavra e a imagem
2.3. Quando o cinema amplia uma presença
3. O Museu
3.1. Quando os românticos descobrem o Museu
3.2. Museus e galerias
3.3. O retrato
3.4. O detalhe
3.5. A paisagem — natureza, ruína(s) e… cidade também
3.6. O sagrado
4. Autorreflexividade e vanguardas
4.1. O tempo e o texto — anacronia e trans-memória
4.2. Incursões analíticas e vanguardas
4.3. Autorreflexividade, meditando em torno da linguagem
4.4. Do mistério à abstração
Epílogo
Bibliografia
38 Figuras
Agradecimentos
1.
O sangue matinal das framboesas
escolhe a brancura do linho para amar.
2.
A manhã cheia de brilhos e doçura
debruça o rosto puro na maçã.
3.
Na laranja o sol e a lua
dormem de mãos dadas.
4.
Cada bago de uva sabe de cor
o nome dos dias todos do verão.
5.
Nas romãs eu amo
o repouso no coração do lume.
un rapace
[Jaccottet, 2010: 54]
[Idem: 2272-2273]
[Idem: 2273]
[Idem]
[Idem: 91]
3. A tradução deste passo feita por Maria Helena da Rocha Pereira dá ênfase à enargeia:
«Forjou também uma leira macia» (Rocha Pereira, 1982: 36, itálico meu). No entanto,
também Frederico Lourenço, no final da sua tradução deste passo, opta por este verbo e,
consequentemente, por uma idêntica expressão da enargeia: «do escudo bem forjado»
(itálico meu).
2. Artes do espaço e do tempo?
Proponho-lhe que imaginemos esse encontro através do olhar de
um poeta contemporâneo, Vasco Graça Moura. Em Laocoonte,
rimas várias, andamentos graves, um livro seu publicado em 2005
e que integrará, como secção, a coletânea Poesia 2001/2005,
vinda a lume no ano seguinte, Graça Moura evoca a descoberta,
em Roma, no início do século XVI, de uma estátua que, devido ao
nome do sacerdote de Apolo que a protagoniza, será conhecida
como Laocoonte. É esta designação que empresta o título ao
poema.
Estruturado em três partes, «laocoonte» começa por exibir uma
ficção em torno do instante da descoberta; em seguida, detém-se
na especificidade da representação através da palavra e através
da imagem; e conclui com o eventual eco daquelas memórias
clássicas no poeta (de) hoje e na reflexão por ele formulada. Antes
de observarmos mais em pormenor a especificidade da meditação
poética decorrente do encontro entre palavra e a imagem, sugiro-
lhe a leitura integral da primeira parte de «laocoonte»:
The pain is revealed in all the muscles and sinews of his body,
and we ourselves can feel it as we observe the painful contraction
of the abdomen alone without regarding the face and other parts
of the body. This pain, however, expresses itself with no sign of
rage in his face or in his entire bearing. He emits no terrible
screams such as Virgil’s Laokoön, for the opening of his mouth
does not permit it; it is rather an anxious and troubled sighing as
described by Sadoleto. The physical pain and the nobility of soul
are distributed with equal strength over the entire body and are,
as it were, held in balance with one another. Laokoön suffers, but
he suffers like Sophocles’ Philoctetes; his pain touches our very
souls, but we wish that we could bear misery like this great man.
[Cheeke, 2008: 164]
[…] esta crítica viciosa, até certo ponto, tem induzido em erro
os próprios artistas. A ela se deve a origem, na poesia, do género
descritivo, e, na pintura, da alegoria: pretendeu-se fazer da
poesia pintura com voz, sem saber precisamente o que ela pode
e deve pintar, e da pintura um poema mudo, antes de se ter
examinado em que medida ela pode exprimir ideais gerais sem
se distanciar do seu destino natural e sem se tornar uma escrita
arbitrária. [Idem, itálico meu]
Down town
Shades
on the dark horizon —
Romantics
in Buddha’s palm
of no vision
[Idem: 328]
like gliders
falling
into the pool
at the Berlin Olympics
control; loss of control
the law
of gravity
8. Não é displicente o facto de Auden ter então escrito versos e comentários em prosa para
cinco documentários: Coal Face (1935), Night Mail (1936), The Way to the Sea (1937), The
Londoners (1939) e God’s Chillun (1939).
9. «El movimiento Dadá ha planteado un antiarte; Le Corbusier, una antiarquitectura; el
escritor francés Robbe-Grillet y la nouvelle vague, una antinovela» (Praz, 2007: 189).
3. O Museu
Num breve texto sobre Rembrandt, Marcel Proust declara que os
museus são casas que unicamente acolhem pensamentos, e que
as pessoas mais atentas que percorrem as suas salas sabem que
esses quadros que se sucedem uns aos outos são exatamente
isso, pensamentos (Proust, 2016: 29). Recorda Proust algo de
essencial, o instante onde o estético se insinua é também um
embraiador da meditação.
Anos mais tarde, em 1947, André Malraux lembrou, em O museu
imaginário, uma outra evidência: «O papel do museu na nossa
relação com as obras de arte é tão considerável que temos
dificuldade em pensar que ele não existe, nunca existiu, onde a
civilização da Europa moderna é ou foi ignorada; e que existe entre
nós há menos de dois séculos» (Malraux, 1963 : 11). Ou seja, esta
instituição que é algo de recente — «O século XIX viveu dos
museus; ainda vivemos deles […]» (idem) — determinou uma
mudança de paradigma na nossa interpelação do objeto artístico.
A citação é extensa mas impõe-se pelo modo como clarifica essa
mudança:
I
Thou still unravish’d bride of quietness,
Thou foster-child of silence and slow time,
Sylvan historian, who canst thus express
A flowery tale more sweetly than our rhyme:
What leaf-fring’d legend haunts about thy shape
Of deities or mortals, or of both,
In Tempe or the dales of Arcady?
What men or gods are these? What maidens loth?
What mad pursuit? What struggle to escape?
What pipes and timbrels? What wild ecstasy?
II
Heard melodies are sweet, but those unheard
Are sweeter; therefore, ye soft pipes, play on;
Not to the sensual ear, but, more endear’d,
Pipe to the spirit ditties of no tone:
Fair youth, beneath the trees, thou canst not leave
Thy song, nor ever can those trees be bare;
Bold Lover, never, never canst thou kiss,
Though winning near the goal — yet, do not grieve;
She cannot fade, though thou hast not thy bliss,
For ever wilt thou love, and she be fair!
III
Ah, happy, happy boughs! that cannot shed
Your leaves, nor ever bid the Spring adieu;
And, happy melodist, unwearied,
For ever piping songs for ever new;
More happy love! more happy, happy love!
For ever warm and still to be enjoy’d,
For ever panting, and for ever young;
All breathing human passion far above,
That leaves a heart high-sorrowful and cloy’d,
A burning forehead, and a parching tongue.
IV
Who are these coming to the sacrifice?
To what green altar, O mysterious priest,
Lead’st thou that heifer lowing at the skies,
And all her silken flanks with garlands drest?
What little town by river or sea shore,
Or mountain-built with peaceful citadel,
Is emptied of this folk, this pious morn?
And, little town, thy streets for evermore
Will silent be; and not a soul to tell
Why thou art desolate, can e’er return.
V
O Attic shape! Fair attitude! with brede
Of marble men and maidens overwrought,
With forest branches and the trodden weed;
Thou, silent form, dost tease us out of thought,
As doth eternity: Cold Pastoral!
When old age shall this generation waste,
Thou shalt remain, in midst of other woe
Than ours, a friend to man, to whom thou say’st,
“Beauty is truth, truth beauty,” — that is all
Ye know on earth, and all ye need to know.
[Idem: 209-210]
[Idem: 320-321]
J’ai mes statues. Les siècles me les ont léguées: les siècles de
mon atente, les siècles de mes découragements, les siècles de
mon indéfinie, de mon inétouffable esperance les ont faites. Et
maintenant elles sont là. […] Leur origine m’est inconnue et se
perd dans la nuit de ma vie, […] Mais elles sont là, et durcit leur
marbre chaque année davantage, blanchissant sur le fond obscur
des masses oubliées. [Décaudin, 1983: 383]
The aim of this little volume is, as far as may be, to translate
into verse what the lines and colours of certain chosen pictures
are to the poet, but rather what poetry they objectively incarnate.
Such an attempt demands patient, continuous sight as pure as
the gazer can refine it of theory, fancies, or his mere subjective
enjoyment.
«Il faut, par un effort d’esprit, se transporter dans les
personnages et non les attirer à soi.» For personnages substitute
peintures, and this sentence from Gustave Flaubert’s
«Correspondence» resumes the method of art-study from which
these poems arose. [Field, 2015: v]
She is young and lies curved on the velvety floor of her fame
Like a prize-winning cat on a mirror of fire and oak,
And her dreams are as black as the Jew who uncovered her name;
And she speaks in her darkness alone and her emptiness cries
Till her voice is as shuddering tin in the wings of a stage,
And her beauty seems wrong as the wig of a perfect disguise;
[Idem: 180-181]
[Idem: 201]
[Idem: 184]
Por que razão David Meltzer opta por inscrever o poema num
modo melódico indiano, o raga? Essa é uma questão que deixo
para a sua reflexão, caro leitor. Para já destaco um aspeto, a
centralidade que, na captação do instante, assume o detalhe. É
nele que reside o mistério sinalizado pelo poeta. Para observarmos
a relevância que é concedida ao detalhe no processo ecfrástico,
convido-o à leitura da secção seguinte.
3.4. O detalhe
Citei acima a conceção de detalhe, segundo Daniel Arasse,
como algo que produz um acontecimento num quadro (Arasse,
1996: 12). Este historiador de arte francês assume a sua reflexão
em linha com uma tradição desencadeada por uma obra que terá
sido pioneira na ênfase atribuída ao detalhe no texto artístico, One
Hundred Details from the National Gallery, da autoria de Kenneth
Clark. Publicada pela primeira vez em 1938, esta obra transporta
para um primeiro plano fragmentos visuais que, à primeira vista,
podem passar despercebidos mesmo ao mais atento espectador,
como o fragmento de A purificação do templo, de Jacopo Bassano,
onde um autorretrato de Tiziano envelhecido é caricaturado devido
ao seu amor ao dinheiro (Clark, 2008: 7, 38 e 40), ou a luta entre
um leão e um urso que habitualmente passa despercebida a quem
observa A Virgem e o Menino com os Santos Jerónimo e
Domingos, de Filippino Lippi.
Estes são apenas dois dos cem detalhes escolhidos por Kenneth
Clark neste livro. A par da exposição do signo na sua globalidade,
surge um destaque visual do pormenor e a sua explicitação,
nomeadamente através de eventuais diálogos intertextuais.
Estamos, portanto, no domínio da História e da Crítica de Arte,
algo que, apenas lateralmente, convoco ao longo destas páginas.
No entanto, a sua relevância pode e deve ser reconhecida sempre
que a poesia eleva o detalhe à centralidade do texto. E é
exatamente sobre exemplos desta estratégia que me deterei em
seguida.
Inicio esta incursão pela presença do detalhe no texto ecfrástico
com um poema de Derek Mahon, «Courtyards in Delft — Pieter de
Hooch, 1659», sobre o quadro deste pintor holandês intitulado
Pátio de uma casa em Delft. Este poeta irlandês revela aqui um
olhar atento a uma sucessão de detalhes que surgem logo no
início na expressão «Oblique light on the trite». Segundo Stephen
Cheeke, através desses detalhes é toda uma cultura protestante
que se insinua:
A line in long array where they wind betwixt green islands, They take a
serpentine course, their arms flash in the sun — hark to the musical clank,
Behold the silvery river, in it the splashing horses loitering stop to drink,
Behold the brown-faced men, each group, each person a picture, the negligent
rest on the saddles,
Some emerge on the opposite bank, others are just entering the ford — while,
Scarlet and blue and snowy white,
The guidon flags flutter gaily in the wind.
[Idem: 235]
(I)
(2)
[Idem: 30]
3.6. O sagrado
[Idem: 109]
Por mais estranho que pareça, ao ler este poema não consigo
deixar de recordar o poeta da Escola de Nova Iorque Frank
O’Hara. Tão distante que ele está desta estética, o que me leva a
evocá-lo? Com efeito, tal como para O’Hara, também para
Bonnefoy a arte não significa esse espaço de inevitável alteridade
face ao qual o artista mantém uma relação de reverencial
distância. Para ambos a arte é uma presença natural que ilumina o
quotidiano; alteridade, sim, mas que integra o sujeito, participando
da compreensão do mundo e, obviamente, do ser. Regressemos
ao poema.
O referente, a capela Brancacci, é parte integrante da igreja de
Santa Maria del Carmine, em Florença. Começou a ser pintada por
Masolino da Panicale em 1424, tendo nela posteriormente
intervindo Filippino Lippi e Masaccio. São ali expostas narrações
de episódios do Antigo Testamento, como a tentação de Adão e a
expulsão deste e de Eva do Paraíso, e do Novo Testamento, como
a crucificação de São Pedro. Apesar da abundância de narrativas
ali existentes, o poeta não procede a uma écfrase desse espaço
tão rico no plano imagético, nem sequer de um fragmento seu.
Para alguém que, como ele, a arte integra radicalmente o
quotidiano, distinto será o olhar que ele concebe. Curiosamente,
nele aparece como nuclear o caminho, quer o caminho que se
percorre fisicamente — «Ainsi avions-nous pris vers des fresques
obscures» —, quer o caminho que se constrói, desvenda,
interiormente, numa identificação da imagem — «Mais sache y
distinguer un visage éternel».
Com José Frazão Correia, s.j., podemos então dizer que, afinal,
esse caminho «corresponde bem ao espírito de trânsito, ao mesmo
tempo, ligeiro e dramático, que caracteriza o nosso tempo»
(Correia, 2014: 95). Com efeito, esta noção de viagem, de trânsito,
perpassa a obra do escritor francês, não apenas a sua poesia,
como referi, mas também os seus ensaios, ou os seus escritos de
intencionalidade mais autobiográfica como L’Arrière-pays. Ainda
com O’Hara em mente, interessante será sinalizar apenas —
porque o espaço não permite ir mais longe — a peculiaridade do
conceito de autobiografia, nomeadamente o facto de ela se situar
no tal solo instável do qual memória, reflexão teórica e episódio de
vida participam. Em ambos estes criadores a teoria não é uma
entidade de distante, um compartimento estanque no seu percurso
quotidiano, mas antes algo que emerge naturalmente do olhar
sobre esse mesmo quotidiano. Daí que o sujeito se conceba como
viajante — no espaço e no tempo, daí a centralidade da memória40;
um sujeito marcado, portanto, pelo tal «espírito de trânsito». E será
assim que esse encontro com o quadro, possui uma dimensão
epifânica.
Na sequência de uma reflexão em torno do Moisés de Poussin, o
poeta/ensaísta/autobiógrafo transita para um olhar sobre Father
Time, outro quadro, desvendado noutro local, e confessa: «Moi […]
rivé à cette vitrine, fasciné, je n’excluais pas une autre hypothèse.
Peut-être, me disais-je, […] ce mécanisme marque-t-il, par le
vouloir de son horloger, le temps vrai celui que nous n’osons
concevoir, le temps qui a des hésitations (ou des failles), suspens
qui sont notre chance toujours perdue, surcroît de la précision que
l’on dirait, seraient-ils vécus, des miracles. […] Le souvenir du
canal m’était alors revenu» (Bonnefoy, 2005: 89-90). A
circunstância biográfica é, deste modo, contaminada por um
registo algo subconsciente marcado pela experiência (e pela
revelação) estética, como implicações no próprio processo criativo,
como muito bem assinala Jean-Pierre Jossua: «[…] ces images
agissent de façon non consciente sur la création du poème» (idem:
134). Tanto num plano consciente, como num subconsciente,
aquilo que referi como experiência estética é algo que se inscreve
na produção do texto e que, como se pôde observar através de
«Chappelle Brancacci», não se confina à écfrase convencional,
antes amplia este conceito.
Todas as dimensões acima mencionadas — écfrase,
circunstância biográfica, interiorização estética, formação do olhar
— podem ser reconhecidas logo na primeira vez que um quadro é
explicitamente designado num livro de Bonnefoy. Tal ocorre em
Pierre écrite, e o poema tem por título «Sur une pietà de Tintoret».
Já aqui se nota um traço central na forma como este poeta
convoca a sua experiência estética de encontro com o signo visual,
ou seja, a da recusa de ensaiar a reprodução pela palavra desse
signo, optando antes por uma verbalização do profundo significado
estético e ontológico que significa esse encontro. Para que o leitor
possa ter uma perceção nítida do que refiro, transcrevo este breve
poema:
Jamais douleur
Ne fut plus élégante dans ces grilles
Noires, que dévora le soleil. Et jamais
Élégance ne fut cause plus spirituelle,
Un feu double, debout sur les grilles du soir.
Ici, / Un grand espoir fut peintre. Oh, qui est plus réel
Du chagrin désirant ou de l’image peinte?
Le désir déchira le voile de l’image,
L’image donna vie à l’exsangue désir.
Spectral gigantified,
Protozoic, blood-eating.
The carapace
Of forclosure.
The cuticle
Of final arrest.
Sooner or later –
The grip.
[Idem: 420]
[…] it’s grown into a folk epic which will be the length of a novel
[…] God has a nightmare — a Voice attacks him. He cannot
understand what is wrong. Man comes to heaven and asks to be
permitted to exist since life is too awful. God is flabberghasted
hearing these words from his prime creation. The Voice scorns
man and God his creator. God finally challenges the Voice to do
better. The voice creates Crow. Crow goes into the world and God
tries everything to destroy him, pervert him, educate him out of
himself etc. — an epic of ordeals. [Hughes, 2007: 279-280]
11. Quando o poema foi inicialmente publicado no número de janeiro de 1820 dos Annals
of the Fine Arts, esta expressão não surgia entre aspas. Estas só seriam inseridas mais
tarde aquando da sua publicação no volume de poemas intitulado Lamia, vindo a lume
ainda nesse mesmo ano. Numa carta ao seu amigo Benjamin Bailey, escrita a 17 de
novembro de 1817, Keats refere o seguinte: «What the imagination seizes as Beauty must
be Truth». Nesta declaração pode residir a resposta para o mistério que, ao longo dos
anos, tem alimentado a sua interpretação por parte da crítica.
12. À semelhança da análise de Whitman, as palavras que se seguem decorrem da leitura
por mim realizada em Histórias(s) da Literatura Americana.
13. Para outros poetas que expõem pontos de vista distintos de Auden, cf. Loizeaux, 2008,
75-79.
14. A importância que a arte teve na sua poesia é declarada pela própria poeta numa
entrevista à rádio concedida em 1961 que se encontra disponível na Web em
https://www.youtube.com/watch?v=Vqhsnk6vY8E.
16. Para uma análise do impacto que a pintura, nomeadamente o impressionismo, teve na
obra poética de Manuel Machado, cf. Carolina Corbacho Cortés, Poesía y Pintura en
Manuel Machado (Cáceres: Universidad de Extremadura, 1999).
18. Designação compósita a partir de fragmentos dos nomes de quatro poetas da mesma
geração: Louis MacNeice (Mac), Stephen Spender (Sp), W. H. Auden (au-n), Cecil Day-
Lewis (day).
19. A versão em galês, intitulada Neb, surgira em 1985. Thomas requisitaria que a tradução
para inglês fosse feita por outrem.
23. Em «A Dutch Courtyard» Richard Wilbur questiona de uma forma subtil o próprio
estatuto político do Museu.
24. Embora menos relevantes, estes últimos não deixam de se impor como importantes
solos de meditação sobre a própria materialidade estética do objeto. Vejam-se os versos
finais de «Boião»: «O fundo tem cinza de prata, cinza de pedra. / Que resposta receberia
do azul-cobalto temperado no fogo?» (Fernandes Jorge, 2002: 95).
25. Regressarei a este aspeto na secção dedicada ao sagrado, através da análise de um
poema de Dante Gabriel Rossetti.
26. Particularmente curioso o facto de este mesmo quadro ter sido objeto de um poema
homónimo de Jorge de Sena em Metamorfoses.
27. Para citar poetas russos ao longo destas páginas, recorri em geral a versões em língua
inglesa das suas obras.
28. À semelhança do que sucedeu acima, convoco a abordagem por mim elaborada em
História(s) da Literatura Americana (Lisboa: Universidade Aberta, 2004).
29. Como observámos acima através de um jogo entre a imagem física do Autor e o Livro,
entre o referente e a sua representação, entre as diferentes versões icónicas do Autor,
entre a vida do Autor e a vida do Livro. Convoquei, então, o conceito de imagem
fascinante.
30. Pre-Raphaelite Brotherhood, que João Almeida Flor prefere traduzir por Confraria Pré-
Rafaelita.
31. Devo a leitura deste último aspeto ao comentário ao poema feito por John Hollander
(Hollander, 1995: 265).
32. Cf. respetivamente Ted Hughes, «Notes on Poems. 1956-1963» (Plath, 1981: 275), e,
sobre a frase interiorizada, «What ceremony of words…» (Rose, 1991: 89).
33. «The father is the keeper of the books and the conch; the poet holds only their echoes
in her hear. And her voice is threatened by both the literary past and nature» (Blasing, 1987:
58).
34. «Beholder», como o define Michael Fried em obras como Absorption and Theatricality
ou Realism, Writing and Disfiguration, é um conceito que aprecio pela dimensão de
apropriação que encerra, e para a qual, lamentavelmente, não encontro análogo em
português.
35. Escrevi uma sequência de poemas ecfrásticos estimulada por quadros de pintores pré-
rafaelitas — Dante Gabriel Rossetti, Charles Allston Collins, William Holman Hunt, John
Everett Millais e William Dyce — que se publicou no n.º 3 da revista Suroeste.
36. Em nota a esta sequência poética, Eugênio Gomes refere que: «o título e até certo
ponto a própria ideação teriam sido sugeridos pelo drama O anjo da meia-noite, de
Théodore Barrière e Édouard Plouvier […]» (Ramos Jr., 2005: 284).
37. A leitura metafísica de in-betweenness realizada por Desmond é transposta por Frazão
Correia, s.j., ao domínio da Teologia.
38. Para o leitor interessado em conhecer melhor uma outra sensibilidade estética cristã, a
protestante, recomendo Cuidado com o Alemão — Três dentadas que Martinho Lutero dá à
nossa época, da autoria do pastor Tiago Cavaco (Lisboa: Letras d’Ouro, 2016).
39. Anja Pearre dedica um fascinante estudo a esta dimensão em La Présence de l’image
— Yves Bonnefoy face à neuf artistes plastiques (Amesterdão: Editions Rodopi, 1995). Os
nove artistas mencionados são Piero della Francesca, Miguel Ângelo, Rubens, Constable,
Degas, Ubac, Balthus, Garache e Giacometti.
40. Veja-se este passo de L’Arrière-pays: «Le voyageur se demande: le lieu ne garde-t-il
rien de ce qui pourtant a eu lieu?» (Bonnefoy, 2005: 87).
41. Retomo sinteticamente a minha reflexão em «Geoffrey Hill and Ruy Belo: Poetry and
Art — a Dialogue in the Quest for an Aesthetic Sense of the Ordinary», na obra Religion
and Culture in the Process of Global Change: Portuguese Perspectives.
42. Ruy Belo aderiu ao Opus Dei no início da década de 1950, quando era estudante de
Direito na Universidade de Coimbra. Após ter obtido o seu doutoramento em Direito
Canónico da Universidade de São Tomás de Aquino, em Roma, regressou a Portugal,
tendo abandonado a Obra no início da década de 60.
43. Veja-se a afinidade com o sagrado que a circunstância biográfica exibe em «Like Jesus
crucified upon the cross» — «whose soul, so closely bound to mine, / Was bearer of that
blinding sorrow?» (Blair, 2014: 193), ou mesmo a porosidade face àquele espaço quando o
impulso criativo decorre da secular fotografia em «Photography»: «Once the angel of the
lens / Takes your world beneath his wing» (idem: 121).
4. Autorreflexividade e vanguardas
Ao longo destas páginas temos vindo a desvendar um solo
diversificado de encontros entre a palavra e a imagem, que
conhecem um momento singular no plano textual na figura da
écfrase. Como temos constatado, eles não se confinam a meras
reproduções do referente artístico — seja este um quadro, uma
fotografia, uma escultura, um monumento, um segmento
cinematográfico —, por muito virtuosas que essas reproduções
possam ser. Com efeito, esses encontros implicam, em
contrapartida, uma poética de meditação, por parte do criador, e de
imersão, exigida ao leitor.
Neste capítulo proponho-vos que penetremos mais fundo nas
veredas teóricas que neles se insinuam: a forma como o tempo
aflora no texto poético; as incursões analíticas produzidas pelos
poetas neste âmbito; as vanguardas estéticas; a meditação em
torno da linguagem no solo textual; o mistério envolvendo a
imagem; a perplexidade do confronto com o signo visual quando a
abstração neste prevalece.
Como age, então, o tempo nesse método que tem como objetivo
derradeiro a síntese?
A convocação do tempo deve aqui ser entendida quer no âmbito
de uma narrativa, da qual um determinado objeto participa, quer no
âmbito de uma experiência a nível da receção. Se, por um lado, a
dinâmica do tempo é algo de endógeno à imagem, ao convocar,
diacronicamente, a memória de um género ou, sincronicamente, a
realização de um artista, a qual, por seu turno, participa, também,
de uma diacronia — a referente ao percurso do próprio artista —,
por outro lado, ela exige uma determinada perceção, e aqui é, de
novo, a memória, desta feita do sujeito, que interfere. Deste modo,
a dinâmica do tempo, sendo endógena à imagem e à experiência
do seu encontro com o espectador, não tem tanto a ver com a fatia
de tempo que o referente representa e com aquilo que é
representado, como defendia Lessing, mas sim com a estratégia
da sua representação, com os índices do passado e do presente, e
com a tensão entre ambos, existentes num determinado
microcosmo.
Publicados com apenas sete anos de diferença, tanto Devant le
temps como A Trans-Memória das Imagens exploram quer o modo
como o tempo se inscreve no objeto, construindo-o numa dialética
de, por vezes, subtis contradições, quer a ulterior perceção por
parte de um destinatário não raro alheio às tensões que a ele
deram corpo.
Defende Vítor Serrão que «a obra de arte […] [é] um laboratório
de memórias acumuladas, que sobrevivem e perduram, seja nas
franjas do subconsciente, seja na prática da criação e da re-
criação dos artistas» (Serrão, 2007: 11). Na sequência de Martine
Joly, em Introduction à l’analyse de l’image, de Louis Marin, em
Des pouvoirs de l’image, e do «[…] conceito iconológico a que Aby
Warburg […] chamou nachleben (memória oculta/migratória dos
códigos de representação) […]» (idem: 37), este historiador
defende a «[…] circularidade dinâmica das imagens artísticas, esta
dialéctica de relação constante entre o que foi e o que é, que
atesta a sua força memorial e valoriza o seu poder de
comunicação face a tempos e públicos distintos» (idem: 19). O
subconsciente, tanto o do artista como o de recetor (seja este o
banal espectador, o crítico, o historiador de arte, ou mesmo o
artista que em tempos ulteriores com ele dialoga — vejam-se as
apropriações do retrato de Inocêncio X, de Velásquez, por Francis
Bacon, nas quais este revisita, lê, inventa, o próprio subconsciente
do referente), enquanto enunciador de traços, signos, vestígios
que se situam para além da evidência, revela-se como elemento
estruturante da identidade do próprio objeto.
Na esteira da arqueologia psíquica benjaminiana, Georges Didi-
Huberman considera, como posteriormente subscreverá Serrão,
que é o inconsciente do tempo que até nós chega através de
traços materiais, vestígios, sintomas ou mal-estares. Cito-o:
«L’inconscient du temps vient à nous dans ses traces et dans son
travail. Les traces sont matérielles: vestiges […] symptômes ou
malaises, syncopes ou anachronismes dans la continuité des ‘faits
du passé’. […] Benjamin exige l’audace d’une archéologie
psychique: car c’est au rythme des rêves, des symptômes ou des
fantasmes […] que le travail de la mémoire s’accorde avant tout»
(Didi-Huberman, 2000: 104). Consequentemente, «l’histoire des
images est une histoire d’objets temporellement impurs,
complexes, surdéterminés» (idem: 22). Objetos temporalmente
impuros, complexos, sobredeterminados. Será partindo deste
pressuposto teórico que Didi-Huberman irá defender uma
reformulação do discurso sobre a História da Arte, algo que Serrão
igualmente ensaia no seu livro através dos exemplos escolhidos
num arco temporal de três séculos, do XVI ao XVIII.
Não é, todavia, esse o aspeto que, apesar de fascinante, nos
interessa para a leitura de «Musée des Beaux Arts». Interessa-nos,
sim, constatar a relevância da intercessão de diferentes texturas
no diálogo entre o texto e o referente visual, isto é, a perceção do
sujeito num tempo presente (o da enunciação que encerra também
memórias de anteriores perceções, a memória pessoal desse outro
criador que é o poeta ou o crítico), a inevitável presença do mito
(na sua ancestralidade radical), e a sua leitura pelo artista, isto é, o
registo antropológico, através da qual se comprova a centralidade
da impureza e da anacronia no registo estético que surge com o
Modernismo novecentista (idem: 16 e 107). Assume, assim,
particular relevo a relação intelectual que o destinatário mantém
com o referente. Considera Vítor Serrão que a perceção exige a
consciência de que «as formas de arte contêm traços de memória
que lhes conferem uma carga cumulativa de informação histórica,
ideológica e simbólica que, aliada à sua qualidade plástica e
inventiva, lhes confere um arco de interesses e de expectativas por
parte de gerações renovadas de público […] Nesta perspectiva da
trans-memória das imagens, todas as obras de arte produzidas
pela humanidade podem ser consideradas contemporâneas, ou,
pelo menos, dotadas de um olhar contemporâneo» (Serrão, 2007:
21).
Importa ainda esclarecer que o argumento construído por Didi-
Huberman em Devant le temps foi desencadeado pela observação
da forma como um detalhe de algo foi diferentemente
percecionado pelo sujeito ao longo de um tempo concreto, o do
tempo do próprio sujeito. Deste modo, a perceção, chamemos-lhe
leitura, exige sempre uma pausa; uma pausa durante a qual a
coerência desse mesmo microcosmo estético é perscrutada e
entendida na mais ínfima das suas componentes ou intercessões,
algo a que o artista/criador não é obviamente alheio. Recorde-se,
por exemplo, a identificação feita por Sylvia Plath, em «Two Views
of a Cadaver Room», do ínfimo pormenor no canto inferior direito
do quadro de Brueghel, O triunfo da morte — «Yet desolation,
stalled in paint, spares the little country / Foolish, delicate, in the
lower right hand corner» (Plath, 1981: 114).
Tanto a identificação do detalhe — resida este no referente ou no
texto que com ele dialoga —, como a das dissonâncias que ele
pode introduzir, exige um repensar da própria estratégia de leitura.
Em O triunfo da morte, por exemplo, a anacronia evidencia-se,
desde logo, na génese da própria criação estética. Recorde-se que
Brueghel terá conciliado aqui um certo imaginário medieval e o
espírito renascentista — a conceção italiana do «Triunfo da morte»
e o tema nórdico da «Dança macabra» (Delevoy, 1990: 102). Por
seu turno, o poeta que dialoga com o quadro parece ignorar a
presença sufocante dos signos evocadores da morte, para se
concentrar no detalhe, através do qual, indiretamente, indicia um
olhar sobre o seu tempo. Ao lermos o poema, constatamos que, à
semelhança do que sucedera com Auden, a estratégia de
enunciação evoca uma estratégia de representação
cinematográfica. Coincidindo com a finalidade da écfrase, também
o poema começa por identificar o panorama. No entanto, num
movimento rápido, o olhar faz um zoom centrando-se no pormenor,
os amantes. Identifico-me, por isso, com a exigência formulada por
Vítor Serrão, e que a secção 3.4., «O detalhe», em particular,
confirmou: «Ousemos, pois, defender o retorno a um salutar
formalismo da análise das obras, a par de uma renovada
perspectiva sociológica no estudo dos seus enquadramentos trans-
contextuais» (Serrão, 2007: 47-48).
O regresso a «Musée des Beaux Arts» evidencia, aliás, a
centralidade da anacronia no quadro de Brueghel.
Parenteticamente, refira-se que, em vez de abordar diretamente
um tópico que marcava o seu tempo, Auden fê-lo indiretamente,
através daquilo que Eliot no seu ensaio sobre Hamlet designaria
um correlativo objetivo. Esta é, obviamente, uma das
potencialidades, simultaneamente especulativas e estéticas, que
semelhante diálogo entre Imagem e Palavra nos oferece; a
relevância do detalhe no poema de Plath confirma esta estratégia.
Não será por acaso que Auden foi um dos poetas fortes que, numa
fase inicial, ela tentou emular.
Não se pense, porém, que a Galeria peculiar e imaginária de
Auden, o seu Museu imaginário, é algo que devemos ao
Modernismo. Se recuarmos à já mencionada «Ode on a Grecian
Urn», desvendamos um referente compósito, concebido pela
imaginação de Keats a partir dos inúmeros vasos gregos que ele
terá observado no Museu Britânico. A écfrase imaginária e aquela
que emerge do encontro com um objeto realmente real,
coexistindo, inscrevem-se, ao longo dos tempos, no cerne do
diálogo entre a Imagem e a Palavra, denunciando uma pedagogia,
uma capacidade de verbalização e uma dimensão especulativa.
Se, por um lado, o texto se configura na dependência do signo que
o precede, por outro, ele pode ser apenas um exercício da
imaginação do autor, uma entidade autónoma que cria a ilusão da
dependência face a um eventual signo preexistente; uma espécie
de episódio do escudo de Aquiles que, todavia, vive no simulacro
de uma existência física. Falamos, portanto, de um trompe l’oeil
textual. É este trompe l’oeil textual que persiste em écfrases
imaginárias de Baudelaire como «À une moderne» e «Un martyr,
dessin d’un maître inconnu», ou, por exemplo, no romance A
segunda morte de Ramón Mercader, de Jorge Semprun. Neste
caso a descrição de um espaço, do qual emerge uma personagem
que o leitor julga tratar-se de um interveniente na narrativa,
corresponde a uma écfrase de Vista de Delft, de Vermeer. Com o
trompe l’oeil não é apenas uma estratégia estética que se
desvenda, mas também a intercessão de tempos distintos, ambos
decorrentes da presença de espaços referenciais (ficcionais)
exógenos.
Simulacro, palimpsesto que denega a sua natureza, esta
estratégia decorre de uma radical interiorização de um Museu
imaginário e das virtualidades que este confere àquele que cria
através da palavra, seja este poeta ou prosador. No entanto, para
além desta dimensão que participa daquilo que poderemos
designar imaginário textual, uma outra deve ser apontada, a
hermenêutica. Esta pode ser subliminar ou explícita. Subliminar,
quando o referente introduz o seu próprio tempo, sem que o sujeito
(o poeta, ou o prosador) interfira expondo os seus argumentos,
como sucede com o exemplo de Semprun. Explícita, quando essa
interferência é evidente. Um bom exemplo desta última
interferência poderá ser o poema «Naufrágio», de João Miguel
Fernandes Jorge, acima mencionado.
Como na altura sinalizei, este poema impõe-se como argumento,
o qual, por seu turno, pode enunciar um agon — termo que utilizo
aqui na sua significação radical e não na perspetiva bloomiana —
com argumentos precedentes, eventualmente dominantes. Neste
exemplo esse argumento abre, de forma inesperada, o poema.
Refiro inesperada, visto surgir entre parênteses, forma algo
displicente de indiciar a irrelevância dos tais argumentos
precedentes, isto é, aqueles que pretendem interpretá-lo através
de eventuais afinidades tópicas com Turner. Fernandes Jorge
afirma a irrelevância dessas leituras, justificando a sua na própria
tradição cultural da qual Sequeira participa. Depreende-se que,
mais do que a tal eventual afinidade com o pintor inglês, será
relevante ter presente, não uma tradição pictórica, mas sim
tradições endógenas como, por exemplo, a História Trágico-
Marítima.
Idêntica metatextualidade e consequente impulso hermenêutico,
pode ser reconhecido em instantes da obra de autores como
Marcel Proust ou Paul Claudel, onde, uma vez mais, Vermeer se
destaca. Em Proust é a pedagogia, a lição sobre aquele que deve
ser a derradeira finalidade da arte, através de um peculiar
(interdisciplinar, assim nos impele a dizer o cânone nos tempos
que correm) processo de anagnorisis. Vejamo-lo no passo seguinte
de La Prisonnière, de Proust:
[…] Bergotte […] entra à l’exposition. Dès les premières
marches qu’il eut à gravir, il fut pris d’étourdissements. Il passa
devant plusieurs tableaux et eut l’impression de la sécheresse et
de l’inutilité d’un art si factice, et qui ne se valait pas les courants
d’air et de soleil d’un palazzo de Venise, ou d’une simple maison
au bord de la mer. Enfin il fut devant le Ver Meer qu’il se rappelait
plus éclatant, plus différent de tout ce qu’il connaissait, mais où,
grâce à l’article du critique, il remarqua pour la première fois des
petits personnages en bleu, que le sable était rose, et enfin la
précieuse matière du tout petit pan de mur jaune. Ses
étourdissements augmentaient; il attachait son regard, comme un
enfant à un papillon jaune qu’il veut saisir, au précieux petit pan
de mur: «C’est ainsi que j’aurais dû écrire, disait-il. Mês derniers
livres sont trop secs, il aurait fallu passer plusieurs couches de
couleur, rendre ma phrase en elle-même précieuse, comme ce
petit pan de mur jaune.» [Maurrisson, 2006: 220-221]
What had been begun was carried out in all directions. I wanted
to be able to see anything as a composition and found that it was
possible to do this. [McClatchy, 1990: 112-113]
The visions that Yeats courted during the 1890s had “none of
the confusion of dreams” […] They possessed, rather, the
qualities he admired in the paintings of Blake and Pre-
Raphaelites: color and the separation of form by the wiry,
bounding line. The better the vision, the “more clear in color, more
precise in articulation” it would be […] For Yeats, the Pre-
Raphaelites represented in their pictures the same world of
imagination that was tapped by vision. Although the Pre-
Raphaelites depicted what is often called “dream,” their paintings,
especially in the early days of the Brotherhood, possessed the
clarity Yeats associated with vision. [Idem: 44]
— what a blessing it is
to see you in the street again,
powerful woman,
coming with swinging haunches,
breasts straight forward,
supple shoulders, full arms
and strong, soft hands (I’ve felt them)
carrying the heavy basket
We walked
in your father’s grove
and saw the great oaks
lying with roots
ripped from the ground.
[Idem: 22]
La pittura
da cavalletto costa sacrifizi
a chi la fa ed è sempre un sovrappiù
per chi la compra e non sa dove appenderla.
Per qualche anno ho dipinto solo ròccoli
con uccelli insaccati,
su carta blu da zucchero o cannelé da imballo.
Vino e caffè, tracce di dentifricio
se in fondo c’era un mare infiocchettabile,
queste le tinte.
Composi anche con cenere e con fondi
di cappuccino a Sainte-Adresse là dove
Jongkind trovò le sue gelide lucci
e il pacco fu protetto da cellophane e canfora
(con scarso esito).
È la parte di me che riesce a sopravvivere
del nulla ch’era in me, del tutto ch’eri
tu, inconsapevole.
[Montale, 1984: 424]
Que estes não são versos que iluminam o leitor face a dados
biográficos ou estéticos sobre o artista que lhe confere o título,
parece ser algo de evidente. Mas será? Recordemos os
contributos hermenêuticos de Taylor; convoquemo-los para a
leitura deste texto. Intimidade e quotidiano, numa breve síntese.
Atentemos na forma como ele, através de um léxico intensamente
visual — a reiterada designação do espaço através da anáfora, e a
intensidade da presença da luz —, parece libertar-se do sentido,
palavra esta que intencionalmente reduzo aqui a uma dimensão
denotativa. O imaginário surrealista simula prevalecer neste
espaço onde a prosopopeia impera, o que implicaria uma
sustentação do sentido nesse mesmo imaginário.
É, deste modo, num solo difuso que este quadro se delineia; um
quadro pintado pelo olhar do poeta, por uma subjetividade
profundamente radicada na sua intimidade, e, consequentemente,
por uma tensão emocional — «inceste», «angoisse». Todos eles
se projetam na conceção das imagens que lhe dão corpo. Será aí,
na expressão ínvia de uma inquietude quotidiana marcada pelas
tensões de uma narrativa (de traição?) amorosa — a relação do
pintor com Gala, a mulher do poeta — que os versos iniciais —
«l’inceste agile / Tourne autor de la virginité d’une petite robe» —
podem ser entendidos. Assim, intimidade e quotidiano definem os
seus contornos neste solo que a perspetiva estética do poeta
concebeu estranho; ou, como declarou André Pieyre de
Mandiargues, «la vie commune […] est rendue poétique, c’est-à-
dire illuminée».
A contaminação do texto poético por parte de registos visuais ou
de estéticas de determinados artistas, pode ser algo de banal num
quotidiano onde criadores de várias proveniências se encontram,
como sucede com a chamada Escola de Nova Iorque. Tão óbvio e
estruturante do quotidiano é essa banalidade, que poderíamos
considerar serem os textos poéticos então produzidos, solos de
uma autorreflexividade natural. Veja-se, por exemplo, «Alla
maniera di Filippo de Pisis nell’inviargli questo libro», de Eugenio
Montale, onde este poeta italiano assume conscientemente o
impacto que teve nestes seus versos a estética daquele pintor
modernista, deles fazendo mais um banal instante do quotidiano, à
semelhança do que amiúde sucede com Frank O’Hara:
47. Abordarei em seguida este tópico no âmbito das respostas proporcionadas pela poesia
escrita após o Modernismo.
48. Convocado, aliás, em brotherhood. Como acima referi, João Almeida Flor traduz a sua
designação por Confraria Pré-Rafaelita, na entrada destinada ao grupo, na Enciclopédia
Luso-Brasileira de Cultura.
49. Refere Gil de Carvalho nas suas «Notas a poemas e poetas», inseridas em Antologia
de poesia chinesa: «O Shijing (o ‘Cânone’ de Poesia) é a mais antiga antologia de poesia
chinesa. Crê-se tradicionalmente ter sido compilado por Confúcio […] que o inclui entre os
Clássicos, livros ‘canónicos’ da civilização chinesa» (Carvalho, 2010: 398).
50. «Duchamp himself wrote that The Nude was ‘the convergence in my mind of various
influences, of which the cinema, then still in its infancy, and the separation of static positions
in the photocronographs of Marey, are examples […] the anatomical nude does not exist, or
at least cannot be seen, since I discarded the naturalistic image in favour of some twenty
abstract pictures of the nude in the successive act of descending`» (Zeki, 1999: 146).
51. Olson desempenhou as funções de reitor entre 1951 e 1956 (ano de encerramento da
instituição), sucedendo ao seu mentor Edward Dahlberg.
55. A sua existência coincide com a das gerações românticas inglesas, vindo a terminar em
1851, já em pleno apogeu da geração pré-rafaelita.
Epílogo
Figura 35: Mariana in the Moated Grange (Mariana), de John Everett Millais
Figura 36: Um quasi auto-retrato, de Moita Macedo
Figura 37: A caneta de Fernando Pessoa, de Ana Gaiaz
Figura 38: Oitavas, de Ana Gaiaz