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Ficha Técnica

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© Mário Avelar
e Imprensa Nacional-Casa da Moeda
 
TÍTULO
Poesia e Artes Visuais — Confessionalismo e Écfrase
AUTOR
Mário Avelar
 
DESIGN
www.whitestudio.pt
REVISÃO
Paula Mateus
 
A
1. EDIÇÃO
Março de 2018
ISBN 9789722730723
EDIÇÃO N.º 1021942
Índice
Capa
Ficha Técnica
Agradecimentos
Prólogo
1. As origens clássicas — Écfrase e mimese
1.1. Écfrase — O escudo de Aquiles
1.2. A construção de uma tradição
1.3. Reflexões primordiais de Platão a Horácio
1.4. Outros lugares, outros rumos da écfrase
2. Artes do espaço e do tempo?
2.1. O Laokoon de Lessing
2.2. A fotografia, novo impulso no diálogo entre a palavra e a imagem
2.3. Quando o cinema amplia uma presença
3. O Museu
3.1. Quando os românticos descobrem o Museu
3.2. Museus e galerias
3.3. O retrato
3.4. O detalhe
3.5. A paisagem — natureza, ruína(s) e… cidade também
3.6. O sagrado
4. Autorreflexividade e vanguardas
4.1. O tempo e o texto — anacronia e trans-memória
4.2. Incursões analíticas e vanguardas
4.3. Autorreflexividade, meditando em torno da linguagem
4.4. Do mistério à abstração
Epílogo
Bibliografia
38 Figuras
Agradecimentos

A Ana Gaiaz, pela autorização que nos concedeu para incluir


neste livro reproduções de obras suas.
A Paulo Macedo, pela autorização que nos concedeu para incluir
neste livro uma reprodução de Um quasi auto-retrato, de Moita
Macedo.
À Ana Paula, pela leitura atenta do manuscrito.
A vós, Mário, Raúl e Ana Paula,

«the one absolutely beautiful thing» [Sylvia Plath].


I console myself that I have the material for future excursions in
erudition.
Umberto Eco, Serendipities
Prólogo

Oh, não! Intermedialidade outra vez, não!


De tempos a tempos, quiçá ciclicamente, as universidades
acolhem determinadas idiossincrasias teóricas, com as suas
consequentes proles conceptuais. A partir das mais diferentes,
porventura aparentemente antagónicas, persuasões — da
semió(p)tica ao estruturalismo, do marxismo ao neo-historicismo,
dos estudos culturais ao feminismo e aos queer studies —,
emergem, então, signos como «ideologema», «intertextualidade»,
«tradição», «dialogismo», «discurso», «hipertextualidade»,
«género», «comunicação», «interculturalidade», et al. Mais
recentemente surgem os inevitáveis «multiculturalismo» e
«intermedialidade». Traço comum a todos eles, a reivindicação da
novidade, da revelação do derradeiro segredo, da derradeira
leitura, da chave que permita alcançar a verdade, a sua figure in
the carpet, como ironicamente antecipou Henry James.
Sempre que uma destas persuasões se impõe, o ímpeto
revolucionário que participa deste ser português, leva-nos a
rasurar o passado, e a passar certidões de óbito àquilo que nos
formou. E assim, enquanto do outro lado da fronteira persistem as
Faculdades e os cursos de Filologia, nós decretámos o fim da
filologia.
«O Mário é um filólogo, como eu», disse António M. Feijó
quando, nesse já distante ano de 1997, apresentou o meu livro
Sylvia Plath — O rosto oculto do poeta. Ora, esta constatação
conduz-me a William Desmond, um filósofo ao qual regressarei ao
longo destas páginas, e que, em Art, Origins, Otherness —
Between Philosophy and Art, escreve algo em que me revejo:
«Philology gives us an instructive lesson concerning the other in
logos itself. It too troubles any totalizing of the principle of sufficient
reason. Words are overdetermined; they mean more than they say
explicitly, carry around within themselves unacknowledged origins.
Words are excess: they express reserves of meaning but also
reserve recesses» (Desmond, 2003: 176). Não se confinando ao
dictum emersoniano, no ensaio «The Poet», «Language is fossil
poetry», talvez possamos encontrar naquela leitura do pensador
irlandês um diagnóstico relevante face às camadas de sentido que
persistem no mistério da comunicação quotidiana, algo que
retomarei mais à frente.
Para já, não devemos esquecer que, após a morte da filologia,
continuamente fomos vendo novidades que acolheram as
interpelações politicamente corretas que os tempos vêm trazendo
à Academia. Nasceram, por isso, os cursos de Línguas e
Literaturas, aos quais sucederam os de Línguas, Literaturas e
Culturas — um episódio de paragoge ideológica revelador da
hospitalidade ao radicalismo da escola do ressentimento — que,
por seu turno, em certos cenários, se estilhaçaram dando origem a
vários e jovens sucedâneos, dos estudos de tradução aos estudos
fílmicos, dos estudos interartes aos estudos de comunicação, dos
estudos editoriais aos cursos de turismo — não raro legitimados
por xiboletes como «tecnologia», «cultura», «sociedade», e pelo
argumento institucional — empregabilidade.
Deste modo se confirmou a elipse decisiva, a rasura final, a (do
estudo) da literatura. E, todavia, qual fantasma, esta vai-se
insinuando (assombrando) nos nossos quotidianos: recorde-se que
um dos cursos de doutoramento que mais se impôs entre nós nas
últimas décadas designa-se Teoria da… Literatura. Talvez nem
tudo esteja perdido, concluir-se-á. Significam estas minhas
palavras que pretendo denegar contributos analíticos daquelas
escolas, movimentos, sensibilidades, agendas…? De modo algum!
Com efeito, a proposta de olhar que coloco à consideração do
leitor nas páginas que se seguem, acolhe contributos dessas
persuasões que, como se verá, podem ser teoricamente relevantes
para a minha reflexão; pelo menos sempre que elas nos
permitirem esgravatar as superfícies — esses interfaces da
comunicação (Desmond, 2003: 36) — de discursos estéticos e,
como tal, desvendar os olhares que, na profundidade, persistem.
Ao longo desta reflexão pretendo revisitar dois conceitos sobre
os quais meditei algo extensivamente no passado, o de
confessionalismo, que problematizei no livro acima mencionado
Sylvia Plath — O rosto oculto do poeta (1997), e o de écfrase,
estruturante noutro livro meu, mais recente, mas já fora de
circulação, Ekphrasis — O poeta no atelier do artista (2006).
Aquilo que pretendo agora resgatar será a literatura, mais
concretamente, a poesia, no diálogo que esta estabelece com
artes visuais como a pintura, o cinema, a fotografia, a publicidade,
a arquitetura, a escultura. Tempos virão em que outras formas de
expressão artística como a banda desenhada ou o videoclipe
poderão ter suscitado meditações poéticas que justifiquem uma
ampliação desta reflexão e, eventualmente, do conceito de
écfrase.
Em 1913, em pleno Modernismo, portanto, Ezra Pound publicou
na revista Poetry o ensaio/manifesto intitulado «A Few Don’ts by
an Imagiste». Sem pretensões de emular a celebridade poundiana,
também eu considero dever prosseguir nesta catalogação,
eventualmente retórica (e assim tiro o chapéu a Whitman), para
esclarecer quais os meus «Don’ts».
«L’intermédialité, c’est in», afirma Joachim Paech (Rajewsky,
2016: 19). No entanto, como acabo de referir, ao convocar a
dimensão confessional, deixo claro que o que me interessa é o
espaço entre onde habita o sujeito; essa in-betweenness, nuclear
na reflexão de William Desmond, no âmbito daquilo que ele
considera ser uma filosofia metaxológica, «one attuned to our
intermediate condition, our ‘being between,’ […] with a memory
longer than the ‘thought-bites’ of immediate relevance, […] with a
thoughtfulness lucid about the elemental perplexities of our
condition of being, perplexities that recur as long as we are what
we are» (Desmond, 2003: x-xi). O ser, no espanto renovado do
encontro com a alteridade, constitui, portanto, o ponto de partida (e
talvez de chegada) para esta reflexão.
Devemos situá-lo no solo que irradia do encontro entre diferentes
formas de expressão artística. Nesse sentido, evocar a reflexão em
torno da intermedialidade será pertinente. Quando podemos
identificar a origem do conceito de «intermédia» no cenário da
reflexão estética? Esta palavra surge, em meados da década de
1960, num texto da autoria de Dick Higgins, cofundador do grupo
Fluxus. Com Marcel Duchamp em mente, Higgins identifica
experiências estéticas de encontro entre diferentes formas de
expressão artística: objetos entre media, entre escultura e outra
coisa qualquer (Fischer, 2016: 7).
Pretende-se reconhecer então a centralidade desse instante de
fluidez que será o lugar de encontro no solo da criação artística.
Enquanto o conceito de intertextualidade se confinará às relações
entre textos — apesar da latitude que este termo assume no
campo estruturalista1 —, o de intermedialidade evocará
configurações, procedimentos ou processos envolvendo diferentes
media (Rajewsky, 2016: 27). No sentido de tentar desvendar os
ecos de um meio noutro, ou mesmo a forma como um meio pode
embraiar a reconfiguração de outro, Jay David Bolter e Richard
Grusin avançam com o conceito de remediação em Remediation
— Understanding New Media. Através dele identificar-se-ão as
relações intermediais.
A intermedialidade afirma-se, assim, como processo de produção
quando diferentes media interagem de forma a criar uma nova
forma de expressão artística (idem: 39). Distingue-se, portanto, da
multimedialidade — a copresença de media que, todavia, não se
fundem entre si, algo que a ópera realiza —, das referências
intermediais — o tableau vivant —, e dos fenómenos nómadas da
transmedialidade — a tradução de um media noutro como sucede
com a chamada adaptação cinematográfica de um romance (idem:
35-36).
Deduz-se do exposto que a noção de media implica três
dimensões: o código (sistemas de signos ou símbolos), o canal
(cadeia ligando emissor e recetor) e o suporte (destinatário de
disciplinas empíricas como a papirologia, a bibliofilia, a epigrafia, a
museografia) (Vouilloux, 2016: 63). Sobre elas incidirão, na sua
singularidade e na interação que desenvolvem entre si, as
reflexões radicadas nesta jovem tradição analítica. Para a leitura
que pretendo desenvolver, elas poderão ser relevantes apenas
enquanto estratégias de construção de um olhar por parte do
sujeito.
Nesse sentido revelar-se-á mais pertinente a elaboração teórica
realizada por Gérard Genette, na sua obra de 1982, Palimpsestes,
la littérature au second degre, em particular o conceito de
transtextualidade que este ensaísta aí propõe. Segundo ele,
existem cinco tipos de relações transtextuais, ou cinco
(sub)categorias de transtextualidade: intertextualidade, na
sequência da reflexão de Julia Kristeva, consiste na copresença de
dois ou mais textos, cujos ecos, de acordo com Michel Riffaterre,
são detetados pelo leitor; paratextualidade denuncia a relação da
obra/texto com o paratexto — título, epígrafe, prólogo, prefácio,
notas, et al.; metatextualidade, quando a relação, ainda que
apenas alusiva, com outro texto surge sob a forma de interpelação
crítica; arquitextualidade, a menção taxonómica que filia o texto
num determinado solo; e hipertextualidade, que se situa no âmbito
da relação existente entre um texto B — hipertexto — e um texto
anterior A, o hipotexto, a partir do qual aquele é suscitado. Visto
considerar o signo «texto» restritivo, Claude Paul revê esta última
categoria ao sugerir a designação de hiperopus para a produção
artística que é devedora de outra, a hipo-opus (Paul, 2016: 144).
Como adiante veremos, estas categorias, ainda que não
designadas explicitamente, permitir-me-ão iluminar os diferentes
diálogos entre o texto e a imagem que convocarei.
Porque, como acabo de referir, de um diálogo entre texto e
imagem se trata, situamo-nos, portanto, no domínio de uma
relação heterossemiótica. Tal implica a existência daquilo que Yves
Landerouin considera serem os cinco instantes de transformação:
concentração — «la mise en valeur d’une unité ou d’un groupe
d’unités constitutives de l’oeuvre de départ» (Landerouin, 2016:
122); extensão — «ajouter des unités significatives à l’oeuvre de
départ» (idem); imitação — «L’oeuvre d’arrivée peut aussi
transposer une caractéristique formelle de l’oeuvre de départ»
(idem: 125), como sucede com as síncopes em Prélude à l’après-
midi d’un faune, de Debussy, que reproduzem os cortes do
enjambement dos versos de Mallarmé; atualização — «transposer
les référents de l’oeuvre de départ dans une époque plus proche
de celle des récepteurs» (idem: 128); e modelação — «modifier la
tonalité, le caractère de l’oeuvre de départ, c’est-à-dire la nature (et
non nécessairement le degré) de l’effet émotionnel qu’elle produit
sur le récepteur à travers sa transformation» (idem: 131). Yves
Landerouin exemplifica esta última com a evocação da 5.ª Sinfonia
de Beethoven em Howards End, o romance de E. M. Forster, que
faz sorrir no 4.º movimento, enquanto esta música tem um caráter
épico.
Tanto a transtextualidade, analisada por Genette, como a relação
heterossemiótica entre dois objetos estéticos, escalpelizada por
Yves Landerouin, denunciam uma dimensão nuclear, a da
autorreflexividade que perpassa os textos que, explícita ou
implicitamente, tomam outros signos como impulso para a
enunciação; mesmo quando esta parece confinar-se à mera
descrição desses signos, pois, como pertinentemente assinala
Stephen Cheeke, o ato da descrição é sempre um ato de
interpretação (Cheeke, 2008: 19); um ato de interpretação que
começa com a ilusão do movimento associada à escolha do
instante que é fixado, aquilo que E. H. Gombrich designa por
«memórias e antecipações do movimento» (idem: 23). Voltarei a
convocar este aspeto a propósito de Laokoon, o ensaio histórico
de Lessing.
Um derradeiro actante deve ainda ser sinalizado neste processo
de encontro entre texto e objeto, o leitor, seu derradeiro
destinatário. Na esteira de Savard-Corbeil, Célia Sousa Vieira e
Isabel Rio Novo assinalam algo a reter nesta, por elas designada,
poética da imersão, o facto de as formas de envolvimento do leitor
na escrita, como essa forma de descrição peculiar que é a écfrase,
desencadearem uma imersão espacial, temporal e emotiva (Vieira
e Novo, 2016: 181). Eis um tópico — a imersão — a desvendar
mais adiante.
Mencionada no subtítulo deste livro, a écfrase constitui um eixo
de meditação e leitura ao longo destas páginas. Como acima
referi, e como o subtítulo lembra, ela surge numa radical
ancoragem no sujeito, com a especificidade de enunciação em
cada poema revelada. Elizabeth Loizeaux, uma estudiosa desta
estratégia poética, autora de ensaios iluminantes sobre Melville e
Yeats, coloca a hipótese de a écfrase ser um subgénero do género
lírico (Loizeaux, 2008: 12). Recordando o sentido clássico da
écfrase como leitura — «Migratory passings» (idem: 2) — e
descrição de um processo (idem: 13), Loizeaux evoca o seu solo
de in-betweenness, esclarecendo: «Writing on a work of art differs
from writing on a natural object in that the work of art constitutes a
statement already made about/in the world. As the staging of the
relation between words and images, poet and artist, ekphrasis is
inherently dialogic» (idem: 5).
Mesmo quando desconhecemos a identidade de quem produziu
essa afirmação original, ou de quem a revisitou no texto — algo de
remoto quando a modernidade é o arco temporal em que nos
movemos, como será o caso nesta obra —, persiste sempre a
sensibilidade de um sujeito, a do criador e a de quem nele — «in a
sense of belatedness», como lembra Loizeaux — desvendou uma
virtude de enunciação.
Ora meditando por procuração sobre eventuais angústias
pessoais, ora refletindo teoricamente sobre a finalidade da arte e
da escrita, o encontro entre texto e objeto situa-se sempre num
fluido solo entre que me proponho abordar e desvendar nas suas
múltiplas configurações.
Veja-se, por exemplo, a recorrente pergunta sobre qual o
desígnio da arte. Esta é uma questão que se alterará consoante as
circunstâncias de espaço e de tempo, mas que não será alheia ao
diálogo do poema com o texto visual. Em Alrededores, Antonio
Moreno aborda este tópico no poema em prosa a que atribuiu o
título «Tejado con musgo»: «Si la razón de ser del arte es acendrar
un instante presente, cómo se daban algunos en llamar a ciertos
motivos ‘naturalezas muertas’? Incluso en lo elegíaco en la
celebración de lo pasado, hay un amor, si cabe, más alto por las
cosas» (Magalhães, 1997: 838). Algo reverbera, de imediato, em
«Tejado con musgo»: a sua dimensão reflexiva, com que o poeta
questiona o rigor teórico de uma classificação taxonómica que
rasura a humanidade.
Embora sem partilhar a discursividade declarativa do poema de
Moreno, Eugénio de Andrade reconhece essa mesma humanidade
em «Natureza-morta com frutos», uma écfrase que incide sobre o
mesmo subgénero pictórico; fá-lo através do recurso àquilo que
John Ruskin identificou, em Modern Painters, como falácia
patética, ou seja, o animismo sentimentalista. Aqui fica o convite à
leitura do poema (em itálico assinalo a falácia patética):

1.
O sangue matinal das framboesas
escolhe a brancura do linho para amar.

2.
A manhã cheia de brilhos e doçura
debruça o rosto puro na maçã.

3.
Na laranja o sol e a lua
dormem de mãos dadas.

4.
Cada bago de uva sabe de cor
o nome dos dias todos do verão.

5.
Nas romãs eu amo
o repouso no coração do lume.

[Andrade, 1981: 122-123]

Tendo em mente estas meditações poéticas que, explícita ou


inviamente, questionam um postulado teórico, lembro o diagnóstico
de Michel Foucault em Les Mots et les Choses:

[…] le rapport du langage à la peinture est un rapport infini. Non


pas que la parole soit imparfaite, et en face du visible dans un
déficit qu’elle s’efforcerait en vain de rattraper. Ils sont
irréductibles l’un à l’autre: on a beau dire ce qu’on voit, ce qu’on
voit ne loge jamais dans ce qu’on dit, et on a beau faire voir, par
des images, des métaphores, des comparaisons, ce qu’on est en
train de dire, le lieu où elles resplendissent n’est pas celui que
déploient les yeux, mais celui que définissent les successions de
la syntaxe. [Foucault, 1966: 25]

É sobre esta relação infinita que a minha análise propõe


identificar alguns dos seus patamares, um deles será aquele a
partir do qual a enunciação se desencadeia, o olhar, algo que uma
abordagem menos atenta pode associar à neutralidade. O poeta
suíço Philippe Jaccottet questiona essa sua eventual neutralidade
ao exibir a violência que a crítica feminista nele reconhecerá e
denunciará:
Qu’est-ce que le regard?

Un dard plus aigu que la langue


la course d’un excès à l’autre
du plus profond au plus lointain
du plus sombre au plus pur

un rapace
[Jaccottet, 2010: 54]

Ainda sobre este tópico recordo Francis Ponge a quem devemos


a noção de olhar enquanto instante de uma experiência de
humanidade que ocorre num espaço entre:

Il est une occupation à chaque instant en réserve à l’homme:


c’est le regard-de-telle-sorte-qu’on-le-parle, la remarque de ce qui
l’entoure et de son propre état au milieu de ce qui l’entoure.
Il reconnaîtra aussitôt l’importance de chaque chose, et la
muette supplication, les muettes instances qu’elles font qu’on les
parle, à leur valeur, et pour elles-mêmes, — en dehors de leur
valeur habituelle de signification, — sans choix et pourtant avec
mesure, mais quelle mesure: la leur propre. [Ponge, 1948: 120]

Olhar devedor do acaso? Olhar que centrifugamente se abre à


alteridade identificando os traços, signos, detalhes que o
conduzem à descoberta da essência desta, e que centripetamente
se reconhece, eis o que Ponge sinaliza nesse breve intervalo em
que se reconhece o processo de encontro com a alteridade. Crítico
de arte particularmente arguto, Walter Pater expandira e
reconfigurara essa noção de intervalo em meados do século XIX de
modo a entender a existência enquanto incessante busca e
identificação da alteridade.

O indivíduo revela-se assim como hermeneuta estético que ao


encontro com a arte deve um percurso ascendente — para alguns
o caminho da santidade:

[…] we have an interval, and then our place knows us no more.


Some spend this interval in listlessness, some in high passions,
the wisest, at least among “the children of this world,” in art and
song. For our own chance lies in expanding that interval, in
getting as many pulsations as possible into the given time. […] art
comes to you proposing frankly to give nothing but the highest
quality to your moments as they pass, and simply for those
moments’ sake. [Pater, 1986: 153]

Um poeta a quem Carlos de Oliveira dedicava uma estima


especial, Afonso Duarte, proclamou um dia: «A carta que escreves
/ a palavra que dizes / que seja uma obra de arte.» Se
associarmos a arte a uma ascensão — estética, ética, espiritual,
religiosa — então o poeta de Ossadas pode estar a indiciar esse
intervalo. Carlos de Oliveira enfatizou, n’O aprendiz de feiticeiro, o
labor artesanal do poeta como instante primeiro do encontro com
as estrelas. Talvez não estejamos longe daquilo que Li Bai (701-
762) — segundo Gil de Carvalho, «[u]m dos maiores poetas da
China» (Carvalho, 2010: 392) —, exibe em «No terraço de Yang,
palácio imperial». Também aqui, a arte (técnica, labor?) é evocada
como forma única de captar a essência do real: «Erguem-se os
montes, compridas águas / Nascem figuras — mil — de um tal
processo / Sem um pincel que seja antigo e sabedor / Como lançar
todo este límpido surgir?» (idem: 159).
Mencionei acima o facto de o acaso estar eventualmente
associado ao encontro entre a palavra e o objeto. No entanto, este
pode ser suscitado intencionalmente, enquanto colaboração
assumida pelos dois actantes, o artífice da palavra e o da imagem.
Que identidade resulta então deste encontro? O poeta inglês John
Fuller que colaborou com o fotógrafo David Hurn na elaboração de
Writing the Picture, um livro onde a palavra e a imagem vão
coabitando ao longo das páginas, define do seguinte modo aquela
que considera ser a identidade desse encontro:

[…] a successful collaboration creates a third creative


personality. In some ways a poem is a fulfilment of one aspect of
the photograph that the poet has chosen to explore. It becomes a
completion of one of the functions of that photograph. But of
course there could be an infinity of those functions, and an infinity
of poems. The one that gets written is the poet’s chosen feelings
about the picture. [Fuller e Hurn, 2010: 11]

Eis outro patamar a identificar e percorrer ao longo destas


páginas. Com toda a legitimidade, questionará o leitor, a que
patamares e a que percurso me refiro? Tendo evocado alguns
tópicos aos quais amiúde regressarei, é chegado o momento de os
identificar.
Antes de mais um esclarecimento. Sendo este livro produto de
uma reflexão de mais de três décadas, de lecionação, de
orientação de teses, de escrita ensaística, é natural que, embora
de formas diferentes, revisite e me reaproprie dessas memórias.
Entre estas constituirão uma presença óbvia a minha obra em
torno do conceito de écfrase e alguns ensaios mais extensos que
dediquei a este conceito e ao tópico do diálogo entre a poesia e as
artes visuais, em geral. Na devida altura identificá-los-ei.
O livro começa pelo princípio, como deve ser, aliás; isto é, pelas
primeiras formulações poéticas da écfrase e pelas interpelações
teóricas em torno da representação através da palavra e da
imagem. De Homero a Virgílio, de Platão e Aristóteles a Horácio, o
primeiro capítulo sinalizará, assim, os momentos fundadores deste
diálogo, momentos esses que, de algum modo, serão revisitados
ao longo do tempo por poetas e ensaístas como Jorge de Sena
que viram nesta última dimensão algo de indissociável da sua
criação artística.
O segundo capítulo inicia-se com um poema de Vasco Graça
Moura, intitulado «Laocoonte», o qual dá o mote para a reflexão
aqui exposta a partir de Laokoon, o ensaio do escritor setecentista
alemão Gotthold Ephraim Lessing que, através dos conceitos de
espaço e de tempo, introduz uma nova perceção do diálogo em
causa. Na sequência da revisão teórica suscitada por Lessing,
convocarei aquela que o cinema desencadeou e que Rudolf
Arnheim explicitou, já no século XX, em «A New Laocoön». A
escrita poética em torno do texto fílmico iluminará estas páginas.
O terceiro capítulo tem o Museu como tema central. De John
Keats a João Miguel Fernandes Jorge, passando por muitos
outros, evocarei poemas e poetas que nele desvendam
possibilidades de verbalização únicas. Devido à especificidade de
muitas destas realizações estéticas, e de modo a sistematizar a
reflexão, optei por subdividir o capítulo em tópicos mais restritos: o
retrato, o detalhe, a paisagem, a ruína, o sagrado. Um outro
esclarecimento se impõe neste instante. Com efeito, não me move
o impulso de tentar desvendar afinidades geracionais ou
identitárias tanto no plano geográfico como no do género. Importa-
me, sim, identificar singularidades estéticas, independentemente
das circunstâncias de espaço e de tempo em que se movem. Daí a
relevância que assume neste livro a abordagem tópica.
Prosseguindo, o quarto capítulo é dedicado às Vanguardas que
surgem com o Modernismo, no início do século XX. À semelhança
do capítulo anterior, e de acordo com as mesmas opções
analíticas, surgem subdivisões dedicadas às questões teóricas em
torno das vanguardas, da metalinguagem, do mistério e da
abstração.
O livro encerra com um epílogo onde, regressando a Sylvia Plath
e à problemática do confessionalismo, evoco a especificidade
estética do perfil criativo de Moita Macedo no diálogo entre a
palavra e a imagem, e culmino com Variações metálicas, de Vasco
Graça Moura, Ana Gaiaz e José Aurélio, graças ao qual o espaço
fluido de in-betweenness adquire um estatuto singular.
Feitas as devidas apresentações e explicitações, aqui fica o
convite ao leitor para uma viagem até às nossas origens.
1. Num momento inicial — um «momento pantextual» —, a intertextualidade não confinava
a noção de texto à produção escrita, acolhendo a dimensão pictórica, musical,
coreográfica, etc. (Vouilloux, 2016: 57).
1. As origens clássicas — Écfrase e mimese
Algo inesperadamente inicio este capítulo, não pelo universo
clássico que constitui o seu cerne, mas sim por uma sua
revisitação contemporânea, o célebre poema de W. H. Auden
intitulado «The Shield of Achilles». Publicado inicialmente em
1952, a ele se deve o título do seu livro vindo a lume em 1955; livro
esse que, no ano seguinte, receberia o National Book Award for
Poetry. Sugiro-lhe a leitura das estrofes iniciais:

She looked over his shoulder


For vines and olive trees,
Marble well-governed cities
And ships upon untamed seas,
But there on the shining metal
His hands had put instead
An artificial wilderness
And a sky like lead.
A plain without a feature, bare and brown,
No blade of grass, no sign of neighbourhood,
Nothing to eat and nowhere to sit down,
Yet, congregated on its blankness, stood
An unintelligible multitude,
A million eyes, a million boots in line,
Without expression, waiting for a sign.

Out of the air a voice without a face


Proved by statistics that some cause was just
In tones as dry and level as the place:
No one was cheered and nothing was discussed;
Column by column in a cloud of dust
They marched away enduring a belief
Whose logic brought them, somewhere else, to grief.

[Abrams, 1993: 2272]

Ao leitor familiarizado com a cultura clássica, o título do poema


permite uma filiação óbvia. Não me refiro à evocação de um herói
que, devido a incursões cinematográficas por aquele cenário,
pertence já a um imaginário da cultura popular. Refiro-me, sim, à
paratextualidade, ao fragmento para o qual o título envia, o
chamado episódio do escudo de Aquiles que surge entre os versos
478 e 608 do canto XVIII da Ilíada, de Homero. Só tendo presentes
estes versos, o leitor poderá reconhecer a ironia que por eles
perpassa; por exemplo, a mulher que, qual voyeur (ou, mais
prosaicamente, coscuvilheira), espreita por cima do ombro de um
qualquer artífice e que nos signos que ele vai inscrevendo no metal
não observa a dimensão épica que ali esperava reconhecer.
Mas que mulher é esta? Que artífice é este? O leitor próximo do
hipotexto sabe tratar-se de Tétis, a deusa que pede a Hefesto para
fazer um escudo que proteja o seu filho Aquiles no combate com
Heitor. Essa proximidade do solo clássico permitir-lhe-á reconhecer
ainda a ironia crítica que decorre da anacronia: em vez daquele
solo, aflora aqui um cenário evocador da então ainda próxima
segunda guerra mundial.
A adversativa, com que se inicia o quinto verso da primeira
estrofe, abre caminho a uma deceção, instalando um clima
disfórico devido à prevalência da anacronia. Observemos as
estrofes seguintes:

She looked over his shoulder


For ritual pieties,
White flower-garlanded heifers,
Libation and sacrifice,
But there on the shining metal
Where the altar should have been,
She saw by his flickering forge-light
Quite another scene.

Barbed wire enclosed an arbitrary spot


Where bored officials lounged (one cracked a joke)
And sentries sweated for the day was hot:
A crowd of ordinary decent folk
Watched from without and neither moved nor spoke
As three pale figures were led forth and bound
To three posts driven upright in the ground.
The mass and majesty of this world, all
That carries weight and always weighs the same
Lay in the hands of others; they were small
And could not hope for help and no help came:
What their foes liked to do was done, their shame
Was all the worst could wish; they lost their pride
And died as men before their bodies died.

[Idem: 2272-2273]

Neste novo instante do texto, Auden reitera uma figuração de


Tétis que lhe recusa a solenidade associada ao seu estatuto, a
nereida filha de Gaia e de Urano. Numa expectativa algo eufórica,
porque inocente, Tétis aguarda a inscrição no escudo de cenas
evocadoras de uma glória épica. Contudo, a figuração que se
desvenda ao seu olhar revela sofrimento, uma punição que irá
culminar na banalidade da morte, algo que a História (nos) ensina.
É neste clima de tensão disfórica que se transita para outro estádio
do texto, com a mnemónica que, a nível prosódico, reitera um certo
olhar e a consequente deceção:

She looked over his shoulder


For athletes at their games,
Men and women in a dance
Moving their sweet limbs
Quick, quick, to music,
But there on the shining shield
His hands had set no dancing-floor
But a weed-choked field.
A ragged urchin, aimless and alone,
Loitered about that vacancy; a bird
Flew up to safety from his well-aimed stone:
That girls are raped, that two boys knife a third,
Were axioms to him, who’d never heard
Of any world where promises were kept,
Or one could weep because another wept.

[Idem: 2273]

Apesar das sucessivas deceções, Tétis persiste em aguardar a


inscrição de uma cena marcada pelo equilíbrio, pela harmonia,
com laivos épicos. No entanto, a adversativa introduz, de novo, um
contraste entre a euforia do que seria expectável e uma desolação
algo devedora da waste land eliotiana e uma violência radical. Os
últimos versos citados acentuam essa desolação ao generalizá-la,
ao universalizá-la: «The thin-lipped armorer, / Hephaestos, hobbled
away, / Thetis of the shining breasts / Cried out in dismay / At what
the god had wrought / To please her son, the strong / Iron-hearted
man-slaying Achilles / Who would not live long» (idem).
A perspetiva de conjunto obtida quando Hefesto (o deus-artista,
artífice, aqui descrito em traços de fragilidade, num contraste nítido
com Aquiles) se afasta, motiva a consternação de Tétis (a
observadora, espectadora). A consternação deve-se às cenas ali
criadas, visto elas evocarem algo de radicalmente oposto àquilo
que ela desejava, e também à violência que elas encerram, as
quais correspondem ao desejo do seu protegido, do herói Aquiles.
A dimensão épica deste herói e as virtudes que a ele se associam,
são, assim, ironicamente desmontadas (atente-se ainda nas
expressões que o caracterizam no penúltimo verso). O facto de a
morte do herói se avizinhar, acentua essa ironia: afinal, o escudo
não o protegerá. Auden revê, deste modo, com ironia os
fundamentos do percurso textual ecfrástico, desmontando a sua
dimensão épica, e, por extensão, a dimensão épica do ethos
fundador da nossa tradição cultural ocidental.
Como referi no início deste capítulo, «The Shield of Achilles»
dialoga com o fragmento da epopeia homérica que, pela primeira
vez, nos dá a conhecer esse subgénero poético que ficaria
conhecido como écfrase. Para compreender o poema de Auden
devemos, portanto, recuar às origens e observar de que modo
esse subgénero vai emergindo e se vai consolidando na cultura
ocidental. Comecemos pela sua etimologia.

1.1. Écfrase — O escudo de Aquiles

Écfrase, como tem vindo a ser consolidada na língua


portuguesa2, ou ekphrasis — plural, ekphraseis —, significa
«descrição». Embora sem pretender ser exaustivo, importa
sinalizar alguns instantes da sua remota presença na nossa
tradição literária e cultural.
Encontramos, pela primeira vez, a referência a este termo nos
estudos sobre Retórica atribuídos a Dionísio de Halicarnasso
(Retórica, 10.17). Posteriormente, já no início da era cristã, com
Hélio Teão, ele surge no contexto específico da pedagogia.
Manifesta-se, então, um traço distintivo particularmente relevante
desta estratégia intersemiótica, o da capacidade de um
determinado discurso expor com vivacidade (enargeia) o quadro
ou artefacto aos olhos do leitor. Entre os tópicos selecionados por
Teão para o seu exercício destacam-se descrições de pessoas,
ações, lugares, estações, festivais. Por seu turno, o arquiteto grego
Hermógenes, a quem se devem os templos erigidos em honra de
Dioniso e Artemisa Leucófrina, em Teos e Magnésia,
respetivamente, ter-se-á dedicado, ainda jovem, à produção de
estudos sobre Retórica, tendo inclusivamente abandonado a arte
que, segundo Vitrúvio, o celebrizou. Em Progymnásmata, texto a
ele atribuído, cuja tradução latina foi levada a cabo pelo gramático
Prisciano, surgem instruções específicas relativamente à
elaboração da écfrase. A clareza (sapheneia) destaca-se a par da
vivacidade. O caráter eminentemente prático do trabalho de
Prisciano, e a sua profunda vocação pedagógica no âmbito do
ensino do latim e da hermenêutica textual, evidenciam o destaque
então a ela atribuído, e, consequentemente, à interação entre a
palavra escrita e um artefacto. A écfrase impõe-se, portanto, como
instância peculiar de diálogo intertextual que, pelo seu
confinamento ao signo visual, como terreno de interpelação pela
palavra, não deverá ser confundida com a hipotipose, tópico ao
qual regressarei mais adiante em vários instantes do capítulo 3.
Voltemos, porém, a Homero.
Porque de antecedentes se trata, comecemos por retomar o
contexto em que ocorre aquele episódio. Como referi, o passo em
causa situa-se no canto XVIII (478-608) da Ilíada. Aquiles prepara-
se para entrar em combate para vingar a morte do seu amigo
Pátroclo às mãos de Heitor. Mas esta entrada em combate
corresponde, de algum modo, a um gesto suicida. Impulsivo,
orgulhoso, feroz, até, Aquiles sabe que, ao enfrentar o herói
troiano, está também a antecipar a sua morte. Afinal, o oráculo
havia previsto que ela ocorreria após a morte de Heitor. Tendo-lhe
sido dado a escolher entre uma vida breve, intensa e gloriosa, e
uma vida longa e obscura, Aquiles opta pela primeira. Sabe, por
isso, que este confronto antecipa o seu próprio fim.
Tétis, sua mãe, tenta (adiar?) protegê-lo de um desfecho que
também ela conhece, sendo neste contexto que pede a Hefesto
que forje as armas para o herói. É num cenário de radical
interferência da esfera divina na humana que o episódio
prossegue. Independentemente da sua função narrativa, este
momento pode ainda ser entendido num âmbito algo arqueológico,
enquanto narrativa onde uma memória social, cultural e histórica
se insinua. Nos seus Estudos de História da Cultura Clássica,
Maria Helena da Rocha Pereira menciona «o modo de Hefesto
trabalhar o escudo de Aquiles, forjando-o como se fosse de ferro,
em tempos de protogeométrico ou geométrico, mas fazendo-lhe
incrustações de ouro, prata e bronze, à maneira micénica» (Rocha
Pereira, 1993: 66).
Independentemente do solo mitológico em que a narrativa épica
se move, a écfrase, e, consequentemente, a cena literária, podem
fornecer elementos para a compreensão da cena histórica na qual
se inserem, e da qual participam. Neste caso, para além da sua
intervenção no devir épico, a écfrase é relevante ao proporcionar a
síntese de toda uma cultura. Maria Helena da Rocha Pereira
destaca, a este nível, os seguintes vetores: perspetivas
geográficas e astronómicas coevas — a terra plana, rodeada pelo
rio Oceano; o Sol, a Lua, constelações principais; e detalhados
contextos antropológicos — a cidade em paz com sua dimensão
festiva e a descrição de um julgamento, a cidade em tempos de
guerra, o quotidiano rural (lavra, ceifa, vindimas, pastoreio) (cf.
figura 1). E enfatiza: «Note-se a presença da música, tanto no
trabalho diário, como nas ocasiões festivas, e a ausência de
navegação ou pesca, facto que se interpreta, […], como prova de
que as actividades marítimas ainda não podiam pôr-se a par das
agrícolas» (idem: 80-81).
Estamos, assim, perante um fresco que vai evoluindo perante o
olhar do destinatário (Tétis) e do leitor; um olhar, contudo, que só
existe no discurso, pois o escudo não preexiste ao texto, não
existe para além dele; aliás, só nele se realiza. A écfrase é,
portanto, obviamente imaginária; daí que a crítica anglo-saxónica a
ela se refira como «notional ekphrasis». A sua dimensão
imaginária não lhe retira, porém, a capacidade de funcionar como
sinopse cultural e social, num sentido muito lato, da vida de uma
época. Observemos, em seguida, como é que Homero a estrutura.
O episódio começa com a descrição dos trabalhos propedêuticos
do deus-artífice, a preparação da superfície (qual tela) onde os
diferentes ícones irão ganhar vida: «Fez primeiro um escudo
grande e robusto, / todo lavrado, e pôs-lhe à volta um rebordo
brilhante, / triplo e refulgente, e daí fez um talabarte de prata»
(Homero, 2005: 381). Aos olhos de Tétis — destinatário — e do
leitor desponta um processo em tudo análogo ao do artista/pintor
que apronta a tela onde irá inscrever a sua criação. Este
destinatário situa-se, desde logo, no seio da própria narrativa
épica: Tétis observa o aparecimento dos signos e das narrativas
das quais aqueles participam; ela representa — espelha, em certa
medida, o espectador que assiste ao desenrolar do processo
criativo desde a sua mais radical materialidade. No âmbito da
tradição oral coeva, no seio da qual o poema surgiu, desvenda-se
outro destinatário, o ouvinte da narrativa celebrada pelo aedo. Com
a fixação do texto pela escrita, este destinatário será, por fim,
substituído pelo leitor. Independentemente do destinatário que
pode estar em causa — homo ou heterodiegético —, salienta-se o
facto de ele ser confrontado com o desenrolar de um percurso em
todos os seus instantes criativos. Este é, afinal, um processo de
representação marcado pela existência de um fio temporal, de uma
estratégia diacrónica de um ato eminentemente criativo.
Em seguida, assistir-se-á à definição de uma composição
genérica, com uma componente intensamente visual, que poderá
corresponder, de acordo com uma linguagem cinematográfica, à
criação de planos de conjunto. Por seu turno, o verbo «forjar»
surge como metáfora óbvia de «criar» no plano artístico; uma
metáfora que envia para o trabalho do artífice e para o caráter
material desse seu trabalho.
Algo mais importa reter acerca deste criador/artista: o seu
estatuto privilegiado (porque divino), designando um saber
superior, insinuado, aliás, na expressão «seus sábios
pensamentos». Delineiam-se, portanto, dois aspetos: um estatuto
particular — destacado numa hierarquia cósmica — do artista; e a
importância pedagógica do objeto (artístico) criado. A conceção
cósmica, endógena aos diferentes microcosmos enunciados,
desvenda-se na própria delimitação espacial forjada no escudo:
«Cinco eram as camadas do próprio escudo; e nele / Cinzelou
muitas imagens com perícia excepcional. // Nele forjou a terra, o
céu e o mar, / o sol incansável e a lua cheia, / e todas as
constelações, grinaldas do céu: / as Plêiades, as Híades e a força
de Oríon; / e a Ursa, a que chamam Carro, / cujo curso revolve
sempre no mesmo sítio, fitando Oríon. / Dos astros só a Ursa não
mergulha nas correntes do Oceano» (idem: 381-382).
Porque de uma écfrase se trata, a nossa perceção dos signos é
visualmente condicionada (conduzida) pela do narrador: vemos
aquilo que ele vê, obedecendo à sequência que ele (nos) impõe.
Recorde-se que esta capacidade de condicionar (formar) o nosso
olhar deverá ser endógena a esta estratégia de enunciação.
Marília Futre Pinheiro refere que «[as] duas virtudes essenciais da
ekphrasis, a sapheneia (clareza) e a enargeia (vivacidade) tinham
[…] como objectivo primordial, transformar o ouvinte de palavras
num espectador de imagens, capacidade essa a que a moderna
teoria literária dá o nome de iconotextualidade» (Futre Pinheiro,
2005: xii). A ulterior simulação do movimento e do som, assim
como a cor, fazem com que, ao observar a construção do escudo,
o leitor se torne num «espectador de imagens».
Após uma descrição integradora e genérica, observa-se uma
aproximação (ainda de acordo com aquilo que hoje associaríamos
a um registo fílmico) a planos de pormenor. Através destes
transita-se da esfera cósmica (e também divina) para a humana;
do cosmos para o detalhe do(s vários) microcosmo(s); isto é, para
uma representação de um quotidiano, marcada por um detalhe
algo antropológico. Facilmente reconhecível pelo destinatário
coevo, ele revelar-se-á particularmente relevante para
destinatários ulteriores, como nós, que assim podemos tomar
contacto com aquele universo social e cultural num passado
distante. O momento melancolicamente suspenso no tempo pelo
olhar do artista, supera a transitoriedade, a efemeridade do
instante, persistindo no espaço e no tempo, através da escrita: «E
fez duas cidades de homens mortais, / cidades belas» (Homero,
2005: 382).
Concluída esta caracterização global, o olhar centra-se numa
das cidades referidas. Mais uma vez, a focalização começa por ser
genérica, de conjunto, dando, em seguida, lugar a sucessivos
zooms, a sucessivas aproximações a diferentes detalhes, a
diferentes micronarrativas, todas elas participando, por seu turno,
de uma lógica sequencial narrativa, de uma diacronia. O episódio
do julgamento é um dos primeiros a serem descritos, numa
contraposição disfórica face à euforia das celebrações nupciais
com que a narração se inicia. A enargeia que pontua a sua
descrição decorre, essencialmente, da aparente superação do
silêncio (óbvio na representação visual); semelhante, aliás, tanto a
segmentos anteriores como a micronarrativas ulteriores. Essa
aparente superação decorre da expressão «voz penetrante», com
a qual o quadro adquire uma sonoridade que, obviamente, não lhe
é endógena; algo de idêntico acontecera já noutros momentos
através de expressões como «muitos entoavam o canto nupcial»,
ou «flautas e liras emitiam o seu som»:

Numa havia bodas e celebrações:


As noivas saídas dos tálamos sob tochas lampejantes
eram levadas pela cidade; muitos entoavam o canto nupcial.
Mancebos rodopiavam a dançar; e no meio deles
flautas e liras emitiam o seu som. As mulheres
estavam em pé, cada uma à sua porta, maravilhadas.
Mas o povo estava reunido na ágora; pois surgira aí
um conflito e dois homens discutiam a indemnização
por outro, assassinado. Um deles afirmava ter pago tudo,
em declarações ao povo; o outro negava-se a aceitar o que fosse.
Ambos se dirigem a um juiz, para dirimir a contenda.
O povo grita a favor ora de um, ora de outro.
Ambos ansiavam por ganhar a causa junto do juiz.
O povo incitava ambas as partes, a ambas apoiando.
Os arautos continham o povo, mas os anciãos
estavam sentados em pedras polidas no círculo sagrado,
segurando nas mãos os ceptros dos arautos de voz penetrante.
Com eles se levantavam e julgavam um de cada vez.
Jaziam no meio dois talentos de ouro, para serem dados
àquele dentre eles que proferisse a sentença mais justa.

[Idem]

Após este primeiro quadro de um microcosmo marcado pela


rotina de um quotidiano, nos seus momentos eufóricos e disfóricos,
transita-se para a segunda cidade, isto é, para um segundo
quadro, e, consequentemente, para uma segunda narrativa. Com
esta transição introduz-se não só outro microcosmo, mas também
uma experiência de radical intensidade dramática (pathos?), a
guerra.
À semelhança do que sucedeu no quadro (vinheta?) anterior,
somos confrontados, em primeiro lugar, por um plano de conjunto.
Será neste que se reconhecem detalhes, micronarrativas, planos
de pormenor, dentro do quadro genérico da guerra.
De acordo com este imaginário cultural e religioso, os deuses
não são representados como entidades distantes e neutras;
embora se destaquem visualmente dos humanos («como deuses
que eram, / salientes no meio dos outros; os homens eram mais
pequenos», idem: 382), assim se distinguindo numa hierarquia
cósmica, os deuses participam da refrega, intervêm nos conflitos
ao lado dos homens (recorde-se que Hefesto tomara partido, na
guerra de Troia, ao aceder dar forma às armas de Aquiles). Uma
vez mais, as micronarrativas (os quadros) sucedem-se numa
lógica sequencial, diacrónica. Refira-se ainda que a enargeia é
devedora da cor, do movimento, da dimensão sonora e, aspeto
relevante, de um conhecimento dos pontos de vista dos
intervenientes, cujos argumentos e ansiedades ganham corpo
perante o leitor. Alguns exemplos: «dois exércitos / refulgentes de
armas», «Os sitiados […] armavam-se para uma emboscada»,
«Os outros saíam […]», «Quando chegaram […]», «ouviram a
grande confusão dos bois», «Posicionando-se, combateram junto
das correntes do rio, e arremeteram uns contra os outros»,
«revestidos de fulvo bronze», «lanças de bronze», «A veste […]
estava vermelha de sangue humano», «Duas alternativas lhes
aprouveram», «aonde lhes pareceu fácil» (idem: 382-383).
O quadro seguinte contrasta radicalmente com o que acabara de
ser descrito; a par desta transição de uma cena de guerra para
uma de paz, outra se evidencia, a de um espaço essencialmente
urbano para um espaço rural. O artista/artífice inscreve, então, no
escudo fragmentos do quotidiano do homem comum. É, todavia,
uma referência subtil ao génio do artista que abre este quadro — a
textura em «Pôs também uma leira amena, terra fecunda»3 (idem:
383), e que, já explícita, o encerra — «Deveras fabricou uma
maravilha» (idem). Uma vez mais prevalecem o dinamismo
narrativo de algo que, no entanto, persiste suspenso no espaço —
«lavradores / conduziam as juntas para aqui e para acolá» —, a
cor — «A terra negrejava para trás, semelhante a terra arada» —,
e a vivificação do objeto através da exposição da sensibilidade dos
intervenientes — «desejosos de atingir o termo do fundo lavradio»
(idem).
O quadro/cena seguinte situa-se ainda no universo rural, embora
amplie a representação anterior ao convocar um estatuto social
superior, «uma propriedade régia». Universaliza-se, assim, o
espetro antropológico evocado nesta écfrase. Dos «jornaleiros,
segurando nas mãos foices afiadas», dos «atadores» e dos
«rapazes [que] recolhiam as paveias e traziam-nas nos braços»,
ao «rei em silêncio» (idem) e aos seus «arautos» (idem: 384), é
um cenário de idílica coexistência de classes que neste passo se
afirma.
Este fresco sobre o universo rural amplia-se de modo a incluir
mais um detalhe de vida quotidiana, as vindimas. À semelhança do
que sucedeu nos quadros/micronarrativas anteriores, também
neste passo a enargeia decorre do dinamismo — «caminhavam os
vindimadores», «transportavam em cestos» ou «dança de pés
saltitantes»; da cor — «Negras eram as uvas»; da sugestão do
som — «um rapaz dedilhava […] / a lira de límpido som», «na sua
voz aguda e delicada entoava / o canto dedicado a Lino»,
«sintonizado estampido» e «uivos de alegria»; e do registo
omnisciente que introduz o pathos ao permitir ao leitor conhecer a
intimidade das personagens que participam daquele episódio —
«Virgens e mancebos com ingénuos pensamentos» ou «dedilhava
com amorosa saudade» (idem: 384).
Ainda situado neste microcosmo rural segue-se um episódio
particularmente curioso que, perdoai a impertinência face à
solenidade que percorre estas páginas, parece antecipar um
documentário da National Geographic. Refiro-me ao quadro onde
Hefesto inscreve um touro a ser atacado por «dois medonhos
leões». A intensidade que advém do reiterado uso da cor — «ouro
e estanho» ou «negro sangue» —, do movimento —
«apressavam», «acompanhavam», «seguiam-nos nove cães de
patas rápidas», «ao ser arrastado», «tinham já rasgado», «os
afugentavam», «incitando os cães velozes» ou «desviando-se aos
saltos» —, e do som — «mugidos», «rio cheio de murmúrios»,
«urros profundos», «mugia alto» ou «ladrando» (idem: 384, itálicos
meus) —, converge para dar uma vivacidade particular a esta
cena.
As cenas expostas constituem, afinal, quadros distintos dentro de
um quadro mais geral que será o da identidade da cena histórica, e
as micronarrativas coexistem autonomamente, numa óbvia
independência formal. A ligação entre elas será assegurada
através de uma identidade comum, «o famoso deus ambidestro»
(idem).
A derradeira micronarrativa evoca um ritual social, a festa. Uma
vez mais a materialidade da criação artística é assinalada através
do verbo: «fez» dá agora lugar a «cinzelou». Para além de uma
reprodução de um ritual coevo, esta descrição suscita ao
destinatário um encontro com a memória histórica: «semelhante
àquele que outrora na ampla Cnossos, / Dédalo concebeu para
Ariadne de belas tranças» (idem: 384-385). Uma vez mais a
enargeia predomina neste quadro profundamente dinâmico,
colorido e não isento de intensidade emocional — «dança
apaixonante» e «deslumbrada». No entanto, algo distingue
estruturalmente este quadro dos anteriores; refiro-me à existência
de um destinatário que participa do evento, um público/espectador
— a «multidão»; será este que, em certa medida, funciona como
espelho do leitor, um espelho nosso — voyeur de outro voyeur
(mise en abyme?). Através do público desvenda-se uma cena
dentro da cena: «Uma multidão numerosa observava a dança
apaixonante, / deslumbrada» (idem: 385). A descrição do
escudo/quadro encerra-se com aquela que funcionará como
«dupla moldura» dessa representação: «Colocou ainda a grande
força do rio Oceano, / à volta do último rebordo do escudo bem
forjado.»
A écfrase original do escudo de Aquiles assume, deste modo, um
significado histórico e antropológico que permite ao leitor de
séculos ulteriores identificar traços da cultura de uma época, para
além de assinalar alguns dos traços dominantes daquela estratégia
de enunciação: o dinamismo (a indiciação do movimento); a cor; (a
simulação d)o som; os diferentes planos; a sugestão do pathos; a
dimensão espetacular (o texto como palco, representação); enfim,
tudo aquilo que dá corpo à enargeia.
Recordo que entendo este capítulo apenas como um instante
sinalizador de exemplos da presença da écfrase na cultura
clássica, e como breve identificador de polémicas conceptuais que
serão todavia relevantes para a modernidade. Outros espaços
legítimos existem para levar mais longe a problematização que
estas questões suscitam. Porque, como referi no prólogo, me
interessa desvendar aqui as virtualidades da écfrase no âmbito do
confessionalismo poético, eventuais dimensões históricas,
culturais, antropológicas, filológicas, estéticas, serão apenas
convocadas mais adiante quando se revelarem relevantes para a
leitura que proponho. Esclarecimentos feitos com os meus colegas
classicistas em mente, prossigamos nesta incursão identificadora
por aqueles tempos remotos.

1.2. A construção de uma tradição


O episódio homérico do escudo de Aquiles ecoará na descrição
do escudo de Héracles existente no Scutum (139-230), texto
atribuído a Hesíodo. Mais tarde, refletir-se-á quer na descrição do
escudo de Eneias, na Eneida (8, 263-731), de Virgílio, quer no
escudo de Dioniso, nas Dionisíacas (25, 384-567), de Nono de
Panópolis. Ainda durante o período helenístico, a écfrase desponta
em géneros ou subgéneros distintos, como o género épico — a
representação do manto de Jasão, na Epopeia dos Argonautas (1,
721-767), de Apolónio de Rodes —, ou a poesia pastoral — o
passo referente à taça rústica nos Idílios (1, 27-56), de Teócrito, e
o cesto de Europa em Europa (43-62), de Mosco.
Radicalmente próxima da extensão descritiva, a écfrase
conhece, todavia, uma expressão sincrética com a chamada
tradição epigramática, a qual se encontra associada à indicação de
breves traços identificadores (descritores) tanto de quadros como
de estátuas. Embora não raro dependendo dos objetos existentes,
esta variante ganhará uma gradual autonomia, consagrando-se
enquanto subgénero literário menor que persistirá no
Renascimento — La Galeria, de Giovan Battista Marino, e The
Gallery, de Andrew Marvell. Estamos, portanto, perante uma
tradição apesar de tudo forte e com óbvios ecos ulteriores, como
serão, ainda no universo anglo-saxónico, os casos de Edmund
Spenser, com a sua imitação da tapeçaria de Aracne em The
Faerie Queene, ou de Shakespeare, que em The Rape of Lucrece
inclui uma extensa écfrase sobre o cerco de Troia.
Como observámos no episódio do escudo de Aquiles, a écfrase
participa de uma categoria narrativa específica, a descrição,
embora a ela não se reduzindo. Poderá, aliás, ser mais
abrangente, não se restringindo à reprodução verbal de um signo
visual, imaginário ou não, e abarcando o contexto do qual ele
participa, nomeadamente edifícios e espaços envolventes. O
primeiro exemplo desta vertente será a descrição do palácio e dos
jardins de Alcínoo que surge na Odisseia (7, 81-132), de Homero.
Na sua longa viagem de regresso a Ítaca, o astuto herói da
guerra de Troia acaba de chegar ao palácio de Alcínoo. A
perspetiva do narrador de algum modo se confunde com a do
protagonista na perplexidade com que encara o esplendor do
lugar. Eis, então, este passo, que reproduzo na versão de
Frederico Lourenço: «reluzia o brilho do sol e reluzia o brilho da lua
/ no alto palácio do magnânimo Alcínoo» (Homero, 2003: 118).
Segue-se a écfrase que nos permite ver a entrada do palácio: «De
bronze eram as paredes que se estendiam daqui para ali, / até ao
sítio mais afastado da soleira; e a cornija era de cor azul. / De ouro
eram as portas que se fechavam na casa robusta, / e na brônzea
soleira viam-se colunas de prata. / Prateada era a ombreira e de
ouro era a maçaneta da porta. / De cada lado estavam cães feitos
de ouro e de prata» (idem). A écfrase centra-se, assim, num signo
arquitetónico, algo a que muitos poetas posteriores regressarão.
À semelhança do que sucedera na Ilíada, pelo texto perpassa a
enargeia através da cor e da textura, e a presença de Hefesto, o
deus-artífice «com [sua] excepcional perícia». Uma vez mais
aquele que produz a arte é um deus, tendo, por isso, um estatuto
elevado; por extensão, o objeto criado ganha também esse
estatuto. Tempos virão em que, tendo os deuses sido confinados
às margens da ficção, o artista recuperará esse estatuto de uma
perceção e uma realização estéticas mais elevadas. Mas não nos
adiantemos, pois a esse tópico regressarei na devida altura.
Após ter concluído a descrição do palácio, o narrador transita
para o exterior; aí «[f]ora do pátio, começando junto às portas,
estendia-se / o enorme pomar, com uma sebe de cada um dos
lados» (idem: 119), onde, qual Shangri-La, o tempo se suspende
num eterno retorno a um idílico presente: «Destas árvores não
murcha o fruto, nem deixa crescer / no inverno nem no verão, mas
dura todo o ano. / Continuamente o Zéfiro faz crescer uns,
amadurecendo outros» (idem). E assim prossegue a écfrase
daquele espaço numa euforia que sinaliza, afinal, a consagração
que o anfitrião de Ulisses havia recebido dos deuses: «Tais eram
os belos dons dos deuses em casa de Alcínoo» (idem). Tal como
acentua Aristóteles na Poética, os homens superiores devem
funcionar como exemplo a emular pelo cidadão comum; o poeta
trágico ou épico imitará, portanto, «as acções nobres e dos mais
nobres personagens» (Aristóteles, 1986: 107). Ora, Alcínoo é um
homem nobre, justo, um «homem superior» cuja justificação divina
se projeta no espaço que é o seu.
Como adiante se verá, esta vertente descritiva persistirá no
universo romano quer na Eneida (1, 446-493; 6, 20-30), quando
Eneias descreve os murais do templo de Juno em Cartago e as
portas do templo de Apolo, quer nas Metamorfoses (2, 1-18),
quando Ovídio descreve o palácio do Sol. Mais tarde, no período
bizantino, as igrejas tornar-se-ão um destinatário recorrente de
écfrase, destacando-se a de Santa Sofia levada a cabo por Paulo
Silenciário no século VI da nossa era. Um exemplo do
Renascimento tardio será a descrição do Pandaemonium, feita por
Milton no livro I de Paradise Lost.
Embora o tema do locus amoenus seja posterior, é legítimo
considerar que as suas origens remotas, em associação com a
écfrase, podem ser reconhecidas quer na descrição do espaço
junto da gruta de Calipso, elaborada por Homero na Odisseia (5,
63-75), quer na descrição da «mais bela mansão da terra», feita
por Sófocles em Édipo em Colono (estásimo I, 668-693). Dever-se-
á acentuar o facto de a descrição que na Odisseia antecipa o locus
amoenus estar ligada a um espaço que é domínio de uma entidade
com um estatuto privilegiado: Calipso, «a ninfa de belas tranças»
(Homero, 2003: 92). A descrição do espaço circundante da
caverna de Calipso dá ênfase a uma natureza amena nos seus
diferentes elementos: o «bosque frondoso / de álamos, choupos e
ciprestes perfumados»; as aves que escolhem aquele lugar para
ali perpetuar a existência — «faziam os seus ninhos»; a «vinha: /
uma trepadeira no auge do seu viço, cheia de cachos» — signo de
vitalidade; as «nascentes de água límpida» — signos de pureza,
disseminando essa pureza em redor; as «suaves pradarias» (idem:
93). Através destes signos Homero reitera a dimensão algo utópica
do lugar.
O locus amoenus encontrar-se-á igualmente no universo clássico
no fragmento 2 da poesia de Safo. Observemos, contudo, a sua
presença em Édipo em Colono. No final da vida, Sófocles retoma o
mito que já tratara em Édipo rei. O filho de Laio é, então, um velho
debilitado e andrajoso conduzido pela filha, Antígona. Ao
aproximarem-se de Atenas, vão encontrar no bosque sagrado das
Euménides o santuário que Apolo havia prometido:

Neste país de esplêndidos corcéis, ó estrangeiro, à mais bela


mansão da terra tu chegaste: Colono alvinitente. Aqui, a doce
Filomela entoa seus lamentos, na verde espessura dos vales que
frequenta. A hera sombria lhe serve de morada, e do deus a
inviolável ramagem de mil frutos, que não conhece o sol, nem os
ventos de todas as tempestades.
Este é o lugar sempre frequentado pelo báquico Dioniso, em
companhia das deusas que o criaram.
*

E sob o orvalho do céu, dia após dia, sem cessar, em belos


cachos floresce o narciso, das grandes deusas coroa ancestral, e
o açafrão de brilho dourado. E não secam as fontes insones de
onde brotam as águas vagabundas do Cefiso. Mas sempre, nos
seus dias, se apressa a fecundar com a pura linfa os campos
deste país rico em planícies.
Nem das Musas os coros lhe nutrem aversão, nem Afrodite de
rédeas doiradas. [Sófocles, 1996: 88-89]

O locus amoenus não se restringe à descrição de um espaço


com características eufóricas sustentadas pela natureza e a ela
circunscritas, eventuais extensões terrenas do mundo divino. Este
tópico indicia aqui a polis justa e equilibrada, baseada na
responsabilidade do indivíduo. Como refere Maria do Céu Fialho,
através dela Sófocles envia uma mensagem de esperança face ao
futuro da Cidade, «convicto de que a verdadeira sobrevivência e
vigor de Atenas residem: não já numa inviável hegemonia político-
económica, mas no fortalecimento de uma identidade depurada
pelo esforço de harmonia político-espiritual» (Maria do Céu Fialho,
1996: 23-24). É esta harmonia e é esta noção de responsabilidade
face aos atos cometidos que permitirão uma nova integração de
Édipo na polis.
A écfrase participa, afinal, de uma estratégia de afirmação da
vitalidade (malgré tout) da polis. O debate, endógeno a esta
entidade, e radical — no sentido etimológico — para a
sobrevivência de uma lógica democrática, surge em torno de
vários eixos temáticos, entre os quais se destaca quer a função do
herói perante essa mesma polis (como recorda Aristóteles), quer o
conceito de mimese. Importa, por isso, sinalizar alguns traços
deste conceito para melhor compreender como se começa a
delinear toda uma teoria da representação que ainda hoje ecoa, e
que não é irrelevante face ao tópico nuclear nestas páginas.

1.3. Reflexões primordiais de Platão a Horácio

Quando Horácio celebra na sua Arte Poética a interação entre a


poesia e a dimensão visual através da célebre expressão «ut
pictura poesis», fá-lo na sequência de uma tradição de
formulações teóricas explícitas e implícitas previamente
elaboradas no universo grego. No plano das formulações teóricas
explícitas destaca-se a ideia veiculada na obra anónima Rhetorica
ad Herennium (séc. I a. C.) de que a poesia é um quadro com voz,
e a pintura é poesia silenciosa (4, 28). Plutarco, no seu De gloria
Atheniensium, atribuirá esta afirmação a Simónides (3, 347a). No
plano das formulações teóricas implícitas destaca-se o caráter
«algo visual» da poesia que, por seu turno, entronca na noção de
mimese, vulgarmente considerada como uma capacidade de imitar
o real.
Devido à importância deste conceito no âmbito dessas
elaborações teóricas, devo, ainda que brevemente, destacar
algumas das suas implicações nas obras maiores de Platão e
Aristóteles. Será, aliás, a partir da noção de mimese que se poderá
e deverá compreender a condenação dos poetas levada a cabo
por parte de Platão. Desde logo, devemos ter presente a conceção
profundamente hierarquizada do real que subjaz à perspetiva
platónica, e da qual decorre o seu conceito de mimese. Com efeito,
Platão abordara no Sofista (235d-235e) o aspeto específico da
representação a nível da pintura, tendo então considerado a
existência do que definiria como dois tipos de mimese: uma,
baseada na semelhança, tendo como objetivo reproduzir algo com
fidelidade, através de um respeito pelas proporções e pelas cores
originais, e outra, «fantástica», caracterizada pelo apelo à ilusão,
nomeadamente através da distorção ótica.
No livro X de A República este aspeto surge numa estreita
associação entre a poesia e a pintura. Ao analisar os «imitadores»
poéticos que se encontram «três pontos» afastados da verdade,
isto é, da essência (ideia) das coisas, Platão convoca a dimensão
visual e considera:

[…] a mesma grandeza, vista a nossos olhos de perto e de


longe, não parece igual. […] E os mesmos objectos parecem
tortos ou direitos, para quem os observa na água ou fora dela,
côncavos ou convexos, devido a uma ilusão de óptica
proveniente das cores, e é evidente que aqui há toda a espécie
de confusão na nossa alma. Aplicando-se a esta enfermidade da
nossa natureza é que a pintura com sombreados não deixa por
tentar espécie alguma de magia, e bem assim a prestidigitação e
todas as outras habilidades desse género. [Platão, 1987: 467]

Segundo ele, o pintor reproduz uma aparência (ótica) e não a


essência de uma realidade. A rejeição daquela que poderá ser
considerada uma prática específica de imitação, a pictórica,
radicará no caráter ilusório da pintura, na distorção inerente aos
pontos de vista adotados. Será, portanto, desse caráter ilusório
que aspetos como a perspetiva e a policromia participam, sendo
por Platão denunciados como «prestidigitação e […] outras
habilidades» afins, isto é, como estratégias de dissimulação do
real. À dissimulação associa-se a possibilidade de manipulação
por parte do artista. Afinal, aquilo que o objeto artístico representa
não será o referente em si mas uma entre outras possibilidades.
Isto não significa que Platão reduza a sua abordagem ao papel do
pintor a esta perspetiva. Como acima referi, no Sofista Platão
designara dois tipos de representação, aquela que se
fundamentava na semelhança e aquela que se caracterizava por
uma distorção fantasiosa do real. Ora, esta distinção ecoará na
sua forma de encarar a prática da pintura.
Ainda em A República, mais precisamente no livro VI, Platão
refere algo que evoca essa distinção. Ao aludir àquela que
considera ser a função do filósofo enquanto delineador de um
projeto de um Estado (uma sociedade) perfeito(a), recorre à
analogia com o pintor. Defende então que os filósofos serão
«esses pintores que utilizam esse modelo divino». Coloca-se aqui
a possibilidade de uma representação da essência do referente,
ou, poder-se-á dizer, da verdadeira realidade. Trata-se de um
passo extenso mas que será pertinente observar para podermos
compreender as suas implicações:

[…] qual será a maneira de traçar esse desenho que dizes?


— Pegarão no Estado e nos caracteres dos homens como se
fosse uma tábua de pintura; primeiro torná-la-iam limpa, coisa
que não é lá muito fácil. […] Seguidamente, […] aperfeiçoando o
seu trabalho, olharão frequentemente para um lado e para o
outro, para a essência da justiça, da beleza, da temperança e
virtudes congéneres, e para a representação que delas estão a
fazer nos seres humanos, compondo e misturando as cores,
segundo as profissões, para obter uma forma humana divina,
baseando-se naquilo que Homero, quando o encontrou nos
homens, apelidou de «divino e semelhante aos deuses». […] E
umas vezes, julgo eu, apagarão, outras pintarão de novo, até
que, até onde for possível, façam simples caracteres humanos
tão do agrado dos deuses quanto podem sê-lo. [Idem: 297-298]

Na sua metáfora sobre a edificação do Estado perfeito, Platão


recorre a uma gramática imagética próxima do processo de
construção pictórica: preparação da «tábua» (tela); perspetiva a
adotar — curiosamente, não uma apenas, o que seria redutor e
parcial, mas sim várias; composição da cor; rasura e reformulação.
Todo este processo teria como objetivo captar o que de «divino e
semelhante aos deuses» Homero encontrou nos homens.
Contrariamente ao passo acima citado do livro X de A República,
no qual a pintura surgia associada a uma distorção da realidade,
sendo por isso politicamente perigosa, no livro VI desta obra
considera-se que a pintura pode assumir uma função pedagógica
funcionando no sentido da elevação, da revelação da essência,
enfim, daquilo que Platão entende como o real. Será, todavia,
noutro diálogo platónico que se produz um contributo essencial
para a análise desta relação entre a palavra e a imagem. Refiro-
me a Crátilo.
Ao convocar a reflexão platónica em torno da relação entre o
objeto e a sua representação, especulando sobre as virtualidades
desta quer a nível do discurso quer a nível da arte, Murray Krieger,
autor do estudo seminal sobre a écfrase — Ekphrasis — The
Illusion of the Natural Sign —, destaca Crátilo visto ser aqui que se
formula a primeira distinção entre o «signo natural» e o «signo
arbitrário». Krieger assinala ainda algo de relevante para a reflexão
que tenho vindo a expor, o facto de esta distinção se estabelecer
no âmbito de uma teoria da mimese (Krieger, 1992: 13). Afinal,
quando um nome designa corretamente algo, qual será a fonte
dessa «correção»? Hermógenes, que juntamente com Crátilo
interpela Sócrates no diálogo, defende dever-se esta à convenção.
Por seu turno, Crátilo considera que a correção radica no nomear
de uma essência, de uma «natureza».
Embora tentasse reproduzir verbalmente algo, recorrendo a
características próprias das artes visuais, a écfrase ficaria, deste
modo, aquém da representação por estas realizada, em particular
quando se trata da escultura, a «arte mais natural», visto estar
sustentada pela tridimensionalidade. A écfrase expõe apenas a
ilusão do signo natural. A célebre afirmação de Simónides, acima
referida — a poesia é um quadro com voz, e a pintura é poesia
silenciosa — não se enquadra, assim, na conceção hierárquica
definida por Platão.
A reflexão sistemática desenvolvida por Platão não está presente
em Aristóteles. Tal não significa que não possamos encontrar
passos na sua obra onde a sua postura face à representação
pictórica se desvende. Observemos três exemplos apenas. No livro
VI da Metafísica, Aristóteles defende que a forma decorre da
essência (alma) do artista que assim surge como elemento
fundamental no processo de construção artística. Já na Política,
Aristóteles afirma que os jovens devem ser proibidos de observar
«toda a estatuária ou pintura que reproduza qualquer tipo de
indecência» (Aristóteles, 2016: 555). Finalmente, na Poética,
Aristóteles aborda de uma forma explícita a temática da
representação a este nível. Fá-lo a partir de uma analogia com
aquele que é então o seu campo de estudo, a tragédia. No capítulo
VI, destinado à definição da tragédia e à análise das suas partes ou
elementos essenciais, refere o estagirita: «[…] o mito é o princípio
e como que a alma da tragédia; só depois vêm os caracteres. Algo
semelhante se verifica na pintura: se alguém aplicasse
confusamente as mais belas cores, a sua obra não nos
comprazeria tanto, como se apenas nos houvesse esboçado uma
figura em branco. A tragédia é, por conseguinte, imitação de uma
acção e, através dela, principalmente [imitação] de agentes»
(Aristóteles, 1986: 112).
A conceção aqui expressa por parte de Aristóteles distingue-se
da de Platão, devido à divergência face àquilo que ambos
entendem ser a mimese. Uma vez mais a arte surge associada a
uma função pedagógica, algo que persistirá noutros espaços e
noutros tempos.
Ao transitarmos para o universo romano, uma presença de
imediato se impõe: Horácio. Igualmente conhecida por Liber de
Arte Poetica, a sua Ars Poetica, como viria a ser referida por
Quintiliano um século após a morte do seu autor, é uma epístola
em verso que havia sido inicialmente designada Epistula ad
Pisones. Nela encontra-se uma síntese de indicações
relativamente ao exercício da escrita, com particular destaque para
o texto dramático, tendo eventualmente como destinatário um
jovem aprendiz nas artes da escrita (provavelmente um filho de
Lúcio Pisão). Horácio inicia a sua epístola retomando uma noção
que já havia sido mencionada em Aristóteles, a de verosimilhança:
«Se um pintor quisesse juntar a uma cabeça humana um pescoço
de cavalo e a membros de animais de toda a ordem aplicar plumas
variegadas, de forma a que terminasse em torpe e negro peixe a
mulher de bela face, conteríeis vós o riso, ó meus amigos, se a ver
tal espectáculo vos levassem?» (Horácio, 1984: 51).
Com um evidente sentido de humor, Horácio joga na distorção,
evocando um referente marcado pelo excesso, pela desconexão
entre os seus diferentes componentes, para assim ilustrar algo de
fantasioso, de inverosímil. A partir desta imagem transita para
aquele que era o seu objetivo primeiro, demonstrar que um texto
deve denunciar um equilíbrio, seguindo um método, um percurso
lógico e racional: «[…] em tudo a este quadro se assemelharia o
livro, cujas ideias vãs se concebessem quais sonhos de doente, de
tal modo que nem pés nem cabeça pudessem constituir uma só
forma» (idem).
A existência de um método e de uma racionalidade lógica que,
para Horácio, seriam comuns à pintura e à poesia, aproximam-no
de Aristóteles. A distância face a Platão é, todavia, por demais
evidente, pois: «Direis vós que ‘a pintores e a poetas igualmente
se concedeu, desde sempre, a faculdade de tudo ousar’» (idem:
53). Como se depreende dos versos citados, a verosimilhança não
se situa para Horácio no domínio da reprodução do real.
Representação, verosimilhança e representação da realidade são
para ele entidades distintas. Trata-se, com efeito, de uma diferença
de grau relevante já que permite abordar uma especificidade, a
partir de regras próprias, e não apenas de uma eventual
adequação — com implicações pedagógicas e/ou políticas — à
realidade. Além disso, contrariamente a Platão, Horácio não
pretende que o artista revele a verdade. Ainda no plano
pedagógico — e/ou político — concede-lhe «a faculdade de tudo
ousar», não o expulsando, portanto, da cidade: «tal liberdade
procuramos e reciprocamente a concedemos» (idem).
A analogia estabelecida por Horácio entre pintura e poesia não é,
porém, algo de circunstancial, algo a que ele recorre nos
momentos iniciais apenas da sua epístola. Alguns versos depois,
na estrofe seguinte, ao elaborar ainda em torno da noção de
verosimilhança, prossegue na analogia entre artes («[…] para
assim o pintares», idem: 55). Horácio defende a necessidade de
conceber um microcosmo artístico como um todo no qual as
diferentes partes dialogam entre elas; será desse diálogo, e não de
aspetos isolados, que emerge quer o efeito de verosimilhança quer
a realização do objeto em si. Esta interação é por ele explicitada
através do recurso a outra forma de expressão artística, a
escultura: «[…] o mais ínfimo dos escultores moldará unhas no
bronze e até nele imitará cabelos sedosos, mas será infeliz no
acabamento da obra por não saber criar um todo» (idem: 57).
A analogia entre as duas formas de expressão artística será
então explicitamente formulada na máxima acima mencionada que
sintetiza a reflexão horaciana, «ut pictura poesis»: «Como a pintura
é a poesia: coisas há que de perto mais te agradam e outras, se a
distância estiveres. Esta quer ser vista na obscuridade e aquela à
viva luz, por não recear o olhar penetrante dos seus críticos […]»
(idem: 109 e 111). Através desta analogia Horácio designa, enfim,
uma indissociabilidade, uma relação de continuidade e extensão, e
também algo especular, entre as duas artes que irá persistir ao
longo dos tempos.

1.4. Outros lugares, outros rumos da écfrase

Não só no plano teórico Roma ecoa debates centrais no universo


grego sobre a relação entre a palavra e a imagem, também no
plano literário se podem identificar projeções da écfrase no modo
como ela se foi formulando no universo helenístico. Entre os
exemplos maiores desta influência, destacar-se-ão: o escudo de
Eneias, na Eneida (8, 626-731), de Virgílio; a coberta, em Catulo
(47 e segs.); a representação de Marte e Vénus em De rerum
natura (1, 33-40), de Lucrécio; as tapeçarias de Minerva e Aracne
em Metamorfoses (6, 70-128), de Ovídio (que proporciona um
contraste curioso entre os estilos artísticos helenístico e clássico).
Comecemos por observar o primeiro texto mencionado, a Eneida
de Virgílio. Importa referir que este poema representa para a
cultura romana algo de idêntico ao que as épicas homéricas
representam para a grega. Existem divergências óbvias às quais
não cabe aqui responder. Um dos traços distintivos desta epopeia
deve, contudo, ser destacado, o do enaltecimento de Roma e da
sua missão histórica como agente civilizador. Acentuo esta
vertente já que ela implica uma relação particular com o tempo.
Com efeito, a ideia de missão confere à epopeia uma clara
intenção proléptica, não a restringindo nem ao presente, a um
canto dos feitos coevos de Augusto (algo que participava das
intenções de Virgílio ao escrever este texto e que se reflete, por
exemplo, no paralelo mítico entre Eneias e Augusto), nem a um
passado histórico. A viagem e as tribulações de Eneias assumem,
deste modo, uma dupla dimensão de consagração política do
presente e justificação histórica daquilo que o futuro reserva a todo
um povo. Será quer neste último sentido quer enquanto síntese
histórica e mítica que se impõe observar o episódio do escudo de
Eneias, presente no capítulo VIII da Eneida.
Comecemos por esta última, a síntese histórica e mítica. Numa
interação entre mito e factualidade histórica, destacam-se os
episódios seguintes: a narrativa fundadora (originalmente mítica)
de Rómulo e Remo; o rapto das sabinas enunciado em três
momentos: jogos, conflito entre romanos e sabinos, reconciliação
final; a punição de Meto, o qual traíra Roma na luta com os
fidenates; a invasão de Porsena; a defesa do Capitólio contra os
gauleses; as danças de sálios e lupercos; o lugar das punições e o
lugar dos justos.
Estas cenas funcionam como uma espécie de moldura, de
enquadramento de micronarrativas, envolvendo e justificando o
motivo central do quadro, a narrativa nuclear, a vitória de Augusto
em Áccio. Tal como sucedera no episódio do «escudo de Aquiles»,
também neste compete a um deus forjar o escudo do herói. Tal
tarefa cabe a Vulcano, o deus que na mitologia romana
desempenha uma função análoga à do Hefesto grego. Uma vez
mais, o objeto artístico sai de mãos privilegiadas a nível do saber.
No entanto, dever-se-á neste caso apontar uma diferença
relevante: em vez do artífice desenvolvendo uma atividade
solitária, Vulcano surge aqui como coordenador de um trabalho
coletivo:

Ponde tudo de lado — disse o deus — levai daqui os trabalhos


começados, ó Ciclopes do Etna, e voltai para mim a vossa
atenção. Temos de forjar armas para um bravo herói. Agora são
precisas todas as vossas forças, agora é preciso que nisso useis
as vossas ágeis mãos, é agora necessária toda a vossa perícia
de mestres. Evitai delongas. […] Nada mais acrescentou. E logo
todos eles se lançaram ao trabalho e dividiram a tarefa entre si.
Flui o bronze em torrentes, escorre o ouro, liquidifica-se o aço
vulnífico na vasta fornalha. Modelam um enorme escudo, um só
contra todas as flechas dos Latinos, sobrepondo sete camadas
cortadas em círculo. Manejando os foles inchados pelo vento,
uns fazem entrar e sair o ar; outros banham num lago o bronze
estridente. Geme o antro com as bigornas que aí se encontram.
Todos eles, ao mesmo tempo, com muita força erguem os braços
a compasso e voltam a pesada massa com fortes tenazes.
[Vergílio, 2003: 163]

Esta narrativa que antecede a descrição do escudo de Eneias


consagra, também, a passagem para um momento histórico no
qual se destaca uma divisão social do trabalho, com os diferentes
agentes desempenhando funções específicas, mas que interagem
entre si. Tal não significa que o produto da criação tenha perdido a
sua dimensão enquanto signo enunciador de um saber
privilegiado; recorde-se que é a um deus — uma entidade
detentora do saber passado, presente e futuro — que compete a
inscrição dos signos e das narrativas ali inscritas. O narrador
realça este aspeto ao anteceder a sua descrição: «Neste [no
escudo] gravara o Ignipotente a história de Itália e os triunfos dos
Romanos, pois não ignorava os vaticínios dos profetas nem
desconhecia a eternidade vindoura. Aí gravara toda a
descendência da futura estirpe de Ascânio e, por ordem, as
sucessivas guerras travadas. Aí gravara também uma loba que
pouco antes havia dado à luz, deitada no antro verdejante de
Mavorte […]» (idem: 167).
Passado, presente e futuro desfilam perante o olhar do
destinatário; ao futuro compete a consagração e justificação mítica
de Roma através da «descendência da futura estirpe de Ascânio»,
o filho do herói Eneias e de Creúsa. Os episódios iniciais —
Rómulo e Remo, as várias fases do «rapto das sabinas» —
sucedem-se num ritmo rápido, prevalecendo a narração em
detrimento da descrição. O narrador não se limita a revelar algo ao
destinatário, ele assume-se também como intérprete de episódios,
interpelando as personagens históricas, ou seja, a própria História,
e assim se consagrando como seu comentador. Observe-se a
digressão entre parênteses que interrompe a narração e na qual
ele perturba a sua anterior aparente neutralidade: «Não longe
dessa cena, velozes quadrigas tinham desfeito em pedaços Meto
— tivesses tu, Albano, sido fiel à palavra dada!» (idem: 167).
Já no episódio seguinte — a defesa do Capitólio contra os
gauleses — a dinâmica existente entre narração e descrição
permite conciliar o dinamismo da ação com a vertente visual.
Sinalizo um exemplo de cada uma destas categorias. A nível da
narração veja-se o seguinte passo: «E aí, volitando pelos pórticos
dourados, um ganso argênteo anunciava que os Gauleses por
entre os espinheiros avançavam e procuravam ocupar a cidade»
(idem: 168). Na sequência imediata da narração surge a descrição:
«[…] [os Gauleses] defendidos pelas trevas e pela dádiva da noite
opaca: de ouro são os seus cabelos e de ouro a sua veste;
reluzem com raiados saios e os seus colos de leite são rodeados
por cadeias de ouro: duas lanças dos Alpes lhes rebrilham nas
mãos e com longos escudos protegem os corpos» (idem). Como é
evidente, ao estabelecer esta distinção tenho consciência de que
ela tem apenas um mero significado operatório, já que não existem
categorias puras. Com efeito, mesmo nos momentos onde a
narração prevalece e, consequentemente, existe um maior
dinamismo onde se indicia a tensão e agitação decorrentes da
expectativa de um ataque eminente, a suspensão inerente à
descrição não deixa de se insinuar; veja-se, por exemplo, a
expressão «ganso argênteo», do passo acima citado, na qual
«argênteo» introduz a cor e, por extensão, acentua a vertente
visual. Em contrapartida, a descrição também não significa uma
suspensão absoluta da ação, como se depreende da expressão
«por entre os espinheiros avançavam». Por outro lado, a dimensão
visual deste segmento denuncia um certo dinamismo através de
verbos como «rebrilham» e «reluzem». Para além destes verbos, o
visualismo destacar-se-á ainda devido às referências constantes a
cores, nomeadamente através de palavras ou expressões como
«trevas», «noite opaca», «colos de leite» e da recorrência da
palavra «ouro».
Como acima referi, o centro do escudo (do quadro) é ocupado
pela narrativa da guerra de Áccio, ou seja, é ocupado pelos feitos
de Augusto: «No meio do mar, era possível divisar frotas de bronze
— os combates de Áccio» (idem: 169). A centralidade visual deste
episódio é antecipada e reiterada por um enquadramento especial,
o da «imagem de um mar túmido — feita de ouro, mas as ondas
do mar espumavam com uma vaga alva». Maria Helena da Rocha
Pereira recorda a diferença entre esta representação e aquela que
observáramos no episódio do escudo de Aquiles: «Na Ilíada, o
Oceano circundava todo o escudo de Aquiles, que representava
um modelo miniatural da Terra, a qual, segundo a concepção
primitiva dos Gregos, era banhada a toda a volta pelas águas
daquele rio. No escudo de Eneias, era no meio, a separar estas
cenas periféricas da grande cena central, que ‘corria a vasta
imagem do túmido pélago’» (Rocha Pereira, 1993: 304). A
representação do espaço denuncia, afinal, a mudança na
conceção do mundo e na forma de os sujeitos históricos se
compreenderem e posicionarem face a ele.
A nível da localização espacial dos diferentes intervenientes
neste episódio, observa-se uma clara definição de campos através
dos quais se indicia a suspensão expectante face ao inevitável
confronto:

De um lado, estava Augusto César conduzindo os povos


itálicos à guerra, juntamente com os senadores e o povo, com os
Penates e os grandes deuses; estava de pé, na elevada popa do
navio […]. Noutra parte, Agripa com deuses e ventos favoráveis,
conduzindo do alto o seu exército; as suas têmporas refulgem
cingidas com a coroa naval ornada de esporões. De outro lado,
António, com as hostes bárbaras e as suas armas confusas, que
regressava vitorioso dos povos da Aurora e do mar Vermelho […]
[Vergílio, 2003: 169]

Referi estarmos perante uma suspensão expectante; de facto, a


descrição destes diferentes segmentos é abruptamente
interrompida para se anunciar o início da batalha: «Ao mesmo
tempo, todos se precipitam e toda a planície do mar espuma,
revolta pelos remos e pelos esporões com três dentes dos navios»
(idem). A intensidade do conflito denuncia-se quer pela sucessão
de pequenos quadros (micronarrativas) dentro do quadro principal
(a narrativa central), quer pela presença do universo divino, o qual,
à semelhança do que sucedia no espaço cultural grego, participa
das discórdias humanas: «Monstruosas figuras divinas de todas as
espécies e o ladrador Anúbis empunham armas contra Neptuno e
Vénus, contra Minerva!» (idem).
Entre os pequenos quadros acima mencionados, um, o da
rainha, deverá ser destacado pela forma como a dimensão visual
surge associada a uma intensa sensualidade:

Até se via a própria rainha a entregar as velas aos ventos que


invocara em seu socorro, soltando os cordames uma vez mais.
No meio do morticínio, pálida por pressentir a morte próxima,
assim a esculpiu o Ignipotente, a ser levada pelas ondas e por
Jápix; à sua frente, entristecido, o Nilo de grande corpo, abrindo
a prega da túnica, estendendo as vestes e chamando os povos
vencidos para o seu cerúleo regaço e para os secretos
esconderijos dos seus afluentes. [Idem: 170]

Após a vitória, surge o quadro da celebração do herói em Roma:


«Estremeciam de alegria as ruas, ao som dos jogos e dos
aplausos. Em todos os templos, um coro de matronas; em todos
eles, altares; diante dos altares, bois imolados jazem por terra»
(idem). No final deste episódio, o herói observa as «maravilhas» ali
representadas, e «[s]em conhecer tais eventos, alegra-se contudo
com a sua imagem, colocando ao ombro a fama e os destinos dos
seus descendentes» (idem). Conclui Maria Helena da Rocha
Pereira, «encerra-se o arco cronológico aberto no canto VIII. Eneias
é Augusto, é o antepassado do povo romano, é o símbolo de toda
a história por desenrolar, que terá em Áccio o seu ponto
culminante. Uma história que faz sentido, porque sobre a barbárie
triunfa a civilização e a justiça» (Rocha Pereira, 1993: 306).
Além desta evocação do escudo de Eneias, a epopeia apresenta
dois momentos de descrição de objetos artísticos: os murais do
templo de Juno, em Cartago, e as portas do templo de Apolo.
Estes dois exemplos poderão inscrever-se em tradições acima
analisadas; a descrição dos murais aproxima-se da écfrase do
escudo de Aquiles, o que prefigurará, portanto, a do escudo de
Eneias; a descrição das portas do templo de Apolo participa da
tradição referente à evocação do palácio de Alcínoo. Comecemos
por observar o primeiro caso citado, os murais do templo de Juno.
A exposição dos murais surge no canto I da Eneida. Neste
instante da narrativa, a frota de Eneias que partira da Sicília vê-se
afastada do seu rumo devido à ação do seu oponente, Juno, junto
de Éolo, o deus dos ventos. Funcionando como adjuvante do herói,
Neptuno intervém impedindo o naufrágio. Eneias será recebido por
Dido que, no Norte de África, se entrega à construção de Cartago.
O narrador começa por afirmar que Eneias «se espanta com a
prosperidade da urbe e admira a perícia dos artífices, num trabalho
conjunto, o empenho que põem nas suas obras, vê pintados por
ordem os combates de Ílion, as guerras que a fama já divulgara
pelo mundo inteiro, os filhos de Atreu e Príamo, Aquiles cruel para
com uns e outros» (Vergílio, 2003: 25).
Neste diálogo com os heróis gregos, o protagonista vê-se
confrontado com a representação de um passado épico que,
inviamente, o prefigura e justifica; Aquiles, signo das virtudes
heroicas, destaca-se aqui. Observemos como ele é representado e
o efeito que as imagens das suas aventuras produz num
espectador especial, o prefigurado destinatário Eneias: «via como
os Gregos afugentavam por ali os combatentes, em volta de
Pérgamo, como a juventude troiana se lançava ao ataque, como
Aquiles, com um elmo de penachos acossava por acolá os Frígios
com o seu carro de guerra» (idem).
O olhar de Eneias continua a percorrer os quadros onde se
evoca toda uma tradição heroica. Esta exercia uma função
pedagógica (moral?) em todos aqueles que pretendiam emular os
exemplos do passado, e deste modo ascender, também eles, à
condição de heróis. Daí que o ato de observar aquelas narrativas
significasse uma profunda empatia, o despertar de uma emoção, o
pathos:

Não longe daqui, reconhece choroso as tendas de


panejamentos brancos de Reso, atraiçoadas pelo primeiro sono,
que o sanguinário filho de Tideu devastava com uma grande
carnificina, fazendo fugir os fogosos cavalos em direcção ao
acampamento grego, antes que provassem o pasto de Tróia e
bebessem do rio Xanto. Noutra parte estava Troilo, que fugia,
perdidas as armas, infeliz jovem, estava a luta desigual com
Aquiles: é arrastado pelos cavalos, preso ao carro de guerra
agora vazio, tombado de costas, segurando ainda as rédeas; o
seu cabelo e nuca são arrastados pelo chão, a sua lança, com a
ponta virada para baixo, risca o pó. [Idem; itálico meu]

A descrição não se restringe à celebração dos heróis, ela abarca


igualmente os rituais que designam todo um diálogo entre os
mortais e o universo dos deuses. Estes últimos nem sempre
respondem aos anseios dos humanos, como se depreende da
forma como o olhar da deusa ignora as suplicantes. Entretanto, as
mulheres de Ílion dirigiam-se ao templo da hostil Palas, com os
cabelos em desalinho e usando o peplo à maneira dos suplicantes,
tristes e batendo com as mãos no peito. A deusa afastava os
olhos, fixando-os no chão (idem: 5-26).
Segue-se um dos momentos mais intensos da guerra de Troia. O
destinatário é, uma vez mais, manipulado pelo pathos da cena
descrita; na empatia, o herói desvenda-se a si próprio, como se o
quadro de um espelho (de uma prefiguração) se tratasse:

Aquiles arrastara três vezes Heitor em volta das muralhas de


Ílion e vendia o seu corpo exânime a peso de ouro. Então é que
ele solta um profundo gemido, do fundo do peito, quando viu os
despojos, o carro e o próprio corpo do amigo, e Príamo que
estendia as mãos desarmadas. Reconheceu-se também a si
próprio, misturado com os chefes aqueus, as tropas da Aurora e
as armas do negro Mêmnon. Pentesileia conduz os esquadrões
das Amazonas, com os seus escudos em forma de lua, plena de
furor bélico, fulgurante no meio de milhares, atando o cinturão
dourado sob a mama desnudada, aguerrida, a donzela ousa
combater contra homens. [Idem: 23; itálico meu]

O passo referente às portas do templo de Apolo surge no início


do canto VI, antes da descida de Eneias ao reino dos mortos. Aí,
nos Campos das Lágrimas, reconhecerá aqueles que a seu lado
combateram. Nos Campos Elísios será iniciado no que o futuro
reserva de heroico para os seus descendentes; ainda ali saberá,
pela voz da Sibila de Cumas, quais as punições prescritas no
Tártaro. Segundo Maria Helena da Rocha Pereira: «Grandes
modelos convidavam, […], a incluir na epopeia uma visão do além;
o Canto XI e o […] Canto XXIV da Odisseia; os quatro mitos
escatológicos de Platão (o do Górgias; o do Fédon; o de Er, no
final de A República; e o do Fedro); entre os latinos, o Sonho de
Cipião de Cícero» (Rocha Pereira, 1993: 279).
A existência de uma ainda que breve descrição das cenas
representadas nas portas do templo não deixa de ser significativa
devido à viagem iniciática na qual o protagonista dá os primeiros
passos. O narrador começa por aludir às origens do templo,
inscrevendo-as nos antecedentes míticos das aventuras de
Dédalo: «Dédalo, ao que se conta, ao fugir dos reinos de Minos,
ousou confiar-se aos céus com asas velozes; navegou através da
insólita via em direcção ao Norte e finalmente pousou, ligeiro,
sobre a cidadela calcídica.» Na sequência da chegada àquele
lugar, «[…] consagrou-te, ó Febo, as asas que tinham sido os seus
remos e construiu enormes templos» (Vergílio, 2003: 107). Eis-nos,
de novo, perante um referente, criado por uma entidade destacada
na hierarquia cósmica, o que o eleva a uma dimensão privilegiada
a nível da transmissão de saberes e… de virtudes; aqueles signos
desvendam narrativas que deverão ser emuladas pelos
destinatários. Eis o segmento em causa:

Nas portas está representada a morte de Andrógeo, depois os


Cecrópidas, coisa digna de dó, constrangidos a sofrer o castigo,
sete corpos dos seus filhos todos os anos. Lá está a urna; as
sortes foram tiradas. Defronte, elevando-se do mar, responde a
terra de Cnossos. Aqui está Pasífaa, que por cruel amor se
submeteu furtivamente ao touro, e a raça híbrida, a progénie
biforme do Minotauro, testemunho da monstruosa paixão. Aqui o
edifício, aquele célebre trabalho, aquela armadilha inextricável;
contudo o próprio Dédalo, compadecido do grande amor da
rainha, deslindou as falácias e os meandros da edificação,
encaminhando com um fio os passos às cegas. [Idem: 107-108]

Neste passo são revelados diferentes quadros que, por seu


turno, evocam outros tantos episódios facilmente reconhecíveis da
memória cultural clássica. Verifica-se que este criador dos quadros
(referentes artísticos) é uma entidade privilegiada, e que esses
referentes são também eles veiculadores de uma mensagem a
reter por aqueles que com eles se cruzam, isto é, pelos
destinatários. Neste momento, à semelhança do que sucedera no
episódio do «escudo de Eneias», o narrador interfere com os seus
comentários no processo de transmissão do referente; ele não se
limita a descrever, criando ênfases nos segmentos que considera
serem suscetíveis de gerar maior pathos junto do destinatário.
Algo de radicalmente distinto se desvenda na écfrase criada por
Catulo. «Vivacidade, emoção, irreverência, é uma série de atitudes
características de Catulo, partilhadas, certamente, pelo seu círculo
de amigos. Não admira, por isso, que Cícero pensasse mal deste
grupo inovador, a quem chamava os modernos» (Rocha Pereira,
1993: 92). Esta síntese da postura do poeta de Verona indicia qual
o estatuto do criador e qual a dimensão do objeto por ele criado.
De facto, com Catulo não podemos situar nem o sujeito criador
nem a sua criação na mesma esfera que temos vindo a considerar,
já que o artista não detém um estatuto superior (divino ou heroico);
consequentemente, aquilo que criou — o referente artístico — não
será um produto desse saber privilegiado; em certa medida, somos
transportados da esfera divina para a humana. Digo «em certa
medida», visto a esfera divina não ser ignorada, desvendando o
referente narrativas que se situam nesse domínio.
Com efeito, a descrição da coberta do leito de Tétis, que surge
no fragmento 64 dos poemas de Catulo, funciona como leitmotiv
para a evocação do episódio mitológico de Ariadne abandonada
por Teseu na ilha de Naxos. A descrição funciona, assim, em
diálogo com uma memória mítica e literária, à qual Ovídio
regressará nas Metamorfoses. Os momentos maiores dessa
memória, sobre a qual Catulo funda a sua evocação poética, serão
a Ilíada, de Homero, a Teogonia, de Hesíodo, e as Vidas, de
Plutarco. Ariadne participa dessa memória quer enquanto
adjuvante da fuga, bem-sucedida, de Teseu do labirinto de Creta
após ter vencido o minotauro, quer pelo facto de ter sido por ele
abandonada na ilha de Naxos. Catulo recupera esta última
vertente, visto ser o pathos dela decorrente que melhor lhe permite
explorar uma determinada sensualidade.
A coberta com «figuras coloridas de homens de tempos idos,
desvenda com arte grandes feitos de heróis» (Catulo, 1932: 55). O
objeto ganha um valor especial através de «arte» («indicat arte» no
original); mas esta é uma arte criada pela ação humana, uma ação
que, apesar de elevada, como referi, não pertence à esfera divina.
Catulo toma a narrativa mitológica para evocar uma intensa
sensualidade. Fá-lo, desde logo, através daquilo que o referente se
insinua, «o leito nupcial da deusa», cenicamente instalado «no
centro do palácio» (idem: 55). Signo da sensualidade e do
erotismo, o leito verá reiterada esta dimensão através daquela
narrativa.
A sensualidade surge implícita e explicitamente: implicitamente,
na representação das ondas do mar que, ora distantes a indiciam,
ora mais próximas envolvem o corpo de Ariadne, tocando as
vestes a seus pés; explicitamente, na descrição do corpo da
jovem: «sem a fita delicada que sustinha os seus cabelos loiros,
sem o véu fino cobrindo o peito agora nu, sem a faixa cobrindo
seus seios brancos como leite; todos eles a seus pés, agitados
pelas ondas do mar» (idem: 56). Deverá ser ainda destacada a
forma como o sujeito de enunciação se expõe, assumindo-se
enquanto verbalizador do objeto através do poema. Acentua-se a
arbitrariedade de um ponto de vista que expõe um determinado
referente e que assume um estatuto, um poder, uma opção a nível
do olhar. Estamos, portanto, perante um intermediário que, de uma
forma explícita se assume como tal, e, consequentemente, perante
aquela que será apenas uma perceção, a do poeta, e não perante
a perceção. A noção de que a descrição, neste âmbito, pressupõe
uma metalinguagem é, assim, claramente assumida.
A derradeira extrapolação face aos signos que visualizam a
narrativa surge através do monólogo de Ariadne no qual ela
verbaliza a sua dor face à traição de que fora alvo. A reprodução
da voz é obviamente algo que está vedado ao objeto e que Catulo
desvenda para assim dar ênfase ao pathos; ela desenvolve-se,
porém, substituindo-se, ao longo de quase setenta versos, à
reprodução dos ícones: «Levaste-me da minha terra, para agora
me abandonares numa praia deserta, pérfido, pérfido Teseu?
Foges, ingrato, sem temeres o poder dos deuses, e regressas a
casa levando contigo o teu maldito perjúrio! Nada pôde mudar a
tua cruel resolução?» (idem: 58).
Detenhamo-nos, em seguida, sobre outro celebrado exemplo de
écfrase, igualmente distinto dos anteriores, aquela que Lucrécio
elabora em De rerum natura. Tito Lucrécio Caro viveu no último
século da era pagã, tendo-se suicidado entre 55 e 51 a. C. A ele se
deve o poema didático, composto em hexâmetros dactílicos, De
rerum natura, no qual desenvolve as teorias de Demócrito e
Epicuro sobre a origem do cosmos. Ao longo de seis livros,
Lucrécio aborda a teoria atomista, detendo-se sobre a
problemática do conhecimento e do ser, e culminando na questão
da origem e morte dos mundos.
Não será difícil nele reconhecer motivos e inquietações
recorrentes no início deste nosso novo milénio: melancolia;
incredulidade face ao transcendente, ateísmo até; compreensão do
cosmos por uma via científica; seleção natural dos seres; teorias
do átomo (a própria noção contratual da sociedade emergente do
Iluminismo). Interessa-me, contudo, outro aspeto passível de ir ao
encontro de outras tendências contemporâneas, isto é, as
tendências estéticas que podem ser reconhecidas na dimensão
visual existente num passo inicial do livro I de De rerum natura.
A influência de Epicuro, acima mencionada, será relevante no
seu pensamento, embora não o liberte de um profundo
pessimismo, não raro associado aos conturbados tempos políticos
que então se viviam, as lutas entre Marius e Sila. Também a
Epicuro se deve a conceção divina aqui exposta. À semelhança do
que convencionalmente sucede nos poemas épicos, também neste
caso o poeta inicia o seu texto com uma invocação à Musa, neste
caso, Vénus. No entanto, Vénus surge essencialmente com uma
dimensão simbólica. A sua invocação à deusa inclui, todavia, uma
descrição devedora da representação visual:

A estes cruéis trabalhos preside Marte, o poderoso deus das


armas, que amiúde vem lançar-se em teus braços, vencido pela
eterna ferida de amor. De olhos então erguidos para ti, com a
nuca redonda deitada para trás, ele dissimula perante ti o seu
olhar ávido e intenso, sustendo a respiração perante teus lábios.
Ah! Mal ele, ó Deusa, repousa perto do teu corpo sagrado,
envolve-o com teus braços, enquanto tua boca, exaltando com
doces palavras, lhe exige o repouso da paz, ó gloriosa, para os
romanos. [Lucrécio, 1964: 20]

A sensualidade deste encontro dos dois deuses é por demais


evidente; atente-se, porém, no facto de esta sensualidade decorrer
do intenso visualismo: a relação espacial entre as personagens; a
ligação dos dois corpos; a forma como elas interagem através do
olhar. Lucrécio parece recuperar aqui a noção de écfrase na sua
dimensão específica de enargeia, isto é, na capacidade de tornar
vivo ao nosso olhar algo que, entretanto, se perdeu e apenas a
linguagem pode evocar.
Concluo esta síntese com o exemplo da tapeçaria de Minerva e
Aracne em Metamorfoses, de Ovídio. Tem sido recorrente o
diálogo dos escritores maiores da literatura ocidental com este livro
de Ovídio; recordem-se, entre outros, os nomes de Dante,
Petrarca, Boccaccio, Chaucer, Ariosto, Tasso, Camões, Cervantes,
Lope de Vega, Shakespeare, Corneille, Milton, Racine,
Montesquieu, Voltaire, Goethe, Pushkin, Baudelaire, Verlaine, o
próprio Jorge de Sena, e, mais recentemente, Ted Hughes, cujas
versões de Ovídio, Tales from Ovid (1997), constituíram um notável
êxito junto do público. Ainda a propósito de Sena, importa referir
que ele escolhe quatro versos de Metamorfoses como a primeira
das epígrafes do seu livro (as restantes são, respetivamente, de
Manuel Soares de Albergaria, Goethe e Unamuno).
De igual modo, estes poemas têm funcionado como referente
para obras de artistas como Miguel Ângelo (A batalha dos
centauros), Rafael (O triunfo de Galateia), Tiziano (Vénus e
Adónis), Brueghel, o Velho (Paisagem com a queda de Ícaro),
Veronese (Vénus e Adónis), Caravaggio (Narciso), Velásquez (As
fiandeiras), Rembrandt (O rapto de Prosérpina), Corot (Biblis),
Rodin (Metamorfoses de Ovídio), Dalí (Metamorfose de Narciso)
ou Picasso (ilustração de Metamorfoses de Ovídio).
Finalmente, na música, o diálogo estender-se-ia a compositores
como Monteverdi (L’Orfeo), Händel (Ácis e Galateia), Bach (a
cantata BWV 201, Geschwinde, ihr wirbelnden Winde, baseada na
luta entre Febo e Pã sobre libreto de Picander, pseudónimo de
Christian Friedrich Henrici, na qual a narrativa mítica serve de
suporte a uma sátira a um crítico musical), Richard Strauss
(Dafne), Benjamin Britten (Seis metamorfoses de Ovídio), ou ainda
a comédia musical My Fair Lady, concebida a partir de Pigmalião,
de George Bernard Shaw, o qual, por seu turno, remonta a Ovídio.
As Metamorfoses oferecem dois momentos relevantes no âmbito
desta análise a nível da interação específica entre a poesia e as
artes: as tapeçarias de Minerva e de Aracne, e a descrição do
palácio do Sol — a primeira, devedora de Catulo, e a segunda, de
Homero e de Virgílio. Eventual inspirador do acima referido quadro
de Velásquez, As fiandeiras, este episódio acolhe a estratégia
narrativa elaborada por Catulo na coberta do leito de Tétis. Ovídio
exibe dois processos criativos respetivamente, o de Minerva e o de
Aracne, evocadores de um espaço e de atividades
convencionalmente femininos (bordar = criar). Estes processos
decorrem à medida que a descrição desses mesmos processos
progride: «Ali também se incrusta o ouro nos fios flexíveis / e na
tela desenrola-se uma história antiga» (Ovídio, 1995: 193).
A primeira tela é da responsabilidade de Minerva (Palas) e tem
como enfoque a criação da cidade Atenas, designada a partir de
Cécrope, o seu mítico fundador: «Palas borda […] / a antiga
disputa sobre o nome do país» (idem). Na figuração mítica das
doze divindades — Juno, Vesta, Minerva, Ceres, Diana, Vénus,
Marte, Mercúrio, Júpiter, Neptuno, Vulcano, Apolo — destaca-se
espacialmente a de Júpiter, ao centro — «Doze divindades, com
Júpiter no centro, estão sentadas / com augusta majestade em
altos assentos» (idem); através desta localização espacial designa-
se o poder primeiro do deus, algo que será reiterado através da
evocação da sua figuração: «a imagem de Júpiter é régia» (idem).
Para além de Júpiter, entre as divindades ali expostas, o poeta
destaca Palas/Minerva. A criadora da tapeçaria representa-se a si
própria com «um escudo, […] uma lança afiada, / um capacete»
(idem). Após a figuração do deus dos deuses, o poeta evoca a
imagem da deusa, composta por vários signos marciais e,
consequentemente, de poder, dando ênfase ao seu estatuto numa
hierarquia cósmica. A própria deusa acentua este estatuto; fá-lo,
todavia, de uma forma indireta, quer através da representação de
uma Vitória, quer recorrendo a episódios que indiciam a punição
reservada àqueles que, revoltando-se, ignoram essa mesma
hierarquia: «Porém, para que a rival da sua glória entenda com
exemplos / que prémio pode esperar de tão louco atrevimento»
(idem).
As quatro narrativas são metonimicamente lembradas através
das respetivas resoluções, todas elas designando punições várias;
entre estas destacar-se-á a de Antígona «que se atreveu a
competir / com a esposa do grande Júpiter, a qual, a régia Juno /
transformou numa ave» (idem: 193-194). Espacialmente, estas são
localizadas nos quatro cantos do quadro, enquadrando —
visualmente — a imagem central, a do poder. Tanto a
representação espacial, como os signos e os episódios escolhidos,
enviam uma mensagem a Aracne, a rival de Minerva, lembrando-
lhe que não pode competir com o universo dos deuses, e
recordando-lhe qual o castigo destinado aos que questionam a
hierarquia cósmica. Após a conclusão da tapeçaria de Minerva,
ironicamente rematada com ramos de oliveira simbolizando a paz,
segue-se a tapeçaria de Aracne, onde ela representa a narrativa
de Europa: «A meónide desenha Europa enganada pela figura de
um touro» (idem: 194). Esta narrativa, por um lado, insere-se num
diálogo intertextual mais remoto com o livro II (versos 833 a 875)
das Metamorfoses; por outro, ela constitui uma resposta,
igualmente indireta, à tapeçaria de Minerva. O primeiro aspeto
mencionado pelo poeta a que devo aludir é o do realismo
figurativo, já que esta representação simularia a própria realidade:
«dir-se-ia que o touro era real e real o mar» (idem). A simulação
não se restringe a uma técnica de representação, ela percorre todo
o espaço visual através das narrativas ali descritas ou evocadas.
Além do diálogo intertextual acima referido, existe ainda um
outro, extratextual, com segmentos míticos, o primeiro dos quais é
o do rapto de Europa por Zeus. Apaixonado por Europa, Zeus
decide seduzi-la. Dissimula-se tomando a figura de um touro para
evitar ser descoberto por Hera. Será assim que se acerca da
jovem e das suas amigas, seduzindo-a com a sua beleza e com o
seu aspeto dócil. Quando esta se encosta ao seu dorso, ele parte
repentinamente em direção à praia arrastando-a consigo. Ora, o
fragmento que Aracne reproduz descreve o que se passa após o
rapto: «Europa parecia olhar a terra que havia deixado para trás, /
parecia gritar para as suas companheiras, parecia temer o
contacto da água / que se erguia junto a ela» (idem). Há, portanto,
uma omissão das circunstâncias iniciais da narrativa (uma elipse),
já que essas informações relativamente à história inscreviam-se na
memória cultural coletiva, tornando facilmente reconhecível o
fragmento descrito e o contexto do qual participa.
Dever-se-á acentuar o facto de, contrariamente a situações
análogas como a de Io, Europa não ser punida por esta ligação.
Com efeito, entre os descendentes famosos desta união encontra-
se Minos, rei de Creta, e pai de Ariadne. Deste modo, Aracne
responde indiretamente a Minerva quanto aos receios de uma
punição por se elevar a um lugar e a um estatuto superiores na
hierarquia cósmica.
Esta é, como vimos, uma narrativa de simulação e de sedução.
De igual forma, os restantes quadros, entre os quais se destacam
os de Leda e Eólia, evocam fábulas de simulação e sedução entre
divinos e humanos. Ironicamente: «A todos estes [Aracne] deu a
sua própria figura e a das suas regiões» (idem). Ainda
ironicamente: «A última parte da tela, […], / tinha flores e heras
entrelaçadas» (idem). Refira-se que a hera era um dos signos de
Dioniso e simbolizava a persistência do desejo. As duas telas e a
representação inserem-se, portanto, num espaço conflitual. Ao
poder marcial de Minerva, responde assim, subtilmente, com o
poder da sedução.
Observemos, em seguida, a descrição do palácio do Sol que
abre o livro II das Metamorfoses:
O palácio do Sol elevava-se sobre altas colunas,
reluzente de oiro brunido e piropo semeando chamas;
cobria o seu tecto reluzente marfim, e as duas portas
de prata irradiavam luz prateada. Superava a matéria
o objeto artístico, pois Vulcano havia ali cinzelado
os mares, desenhando as terras no centro,
o globo terrestre e o céu pendendo sobre ele.
As águas têm os seus azulados deuses, o musical Tritão,
o mutável Proteu, Egeu que com seus braços oprime
os gigantescos dorsos das baleias, Dóris e suas filhas,
algumas das quais se vê a nadar, outras, sentadas
num penhasco, secam seus verdes cabelos, e algumas
navegam sobre peixes; não têm todas o mesmo rosto,
distintos apenas como é usual em irmãs.
A terra sustenta homens e cidades, selvas e feras e rios
e ninfas e outras divindades campestres. Por cima
surge a imagem de um céu resplandecente e seis signos
do Zodíaco na porta direita, outros tantos na esquerda.

[Idem: 91]

Após termos visto com algum pormenor outras descrições de


artefactos estéticos, não será difícil reconhecer certas influências.
Destaca-se, como é óbvio, a do escudo de Aquiles — a
conceção cósmica e a consequente localização espacial dos
signos a ela inerentes, embora não seja também de estranhar o
eco da descrição das portas do templo em Cumas que surge no
canto VI (14-41) da Eneida, de Virgílio, onde é narrada a história de
Dédalo. Também nos versos de Metamorfoses acima transcritos se
denota uma preocupação no sentido de, a par da colocação
espacial dos diferentes elementos, se explicitar a cor que ora
acentua o caráter maravilhoso do objeto, ora distingue as
personagens. A materialidade da produção é igualmente
denunciada no trabalho do deus-artífice; porque, à semelhança de
outros exemplos observados, o artífice é, ele próprio, um deus,
também assim, indiretamente, se dá ênfase ao objeto. Tal como os
exemplos que o precederam, este signo, pela écfrase elevado a
objeto artístico, revela-se, enquanto espaço de inscrição do
discurso transcendente, divino. Assim se insinua o seu relevo e se
desvenda uma origem.
Verbalizando algo que apenas no texto se realiza; na sua função
mnemónica de preservar uma memória, uma tradição que dê
sentido a uma identidade; concebendo cenários onde o idílico se
insinua; consagrando identidades históricas e míticas, designando
a paideia ou a mera sensualidade; da arbitrária convenção à ilusão
do signo natural; na descontextualizada expressão de Horácio («ut
pictura poesis») ou na morna redução de Simónides (a poesia é
um quadro com voz, e a pintura é poesia silenciosa), se
desvendam encontros nucleares para a descoberta de uma
vertente relevante da identidade poética moderna.
Convido-o, então, caro Leitor, para me acompanhar rumo a essa
modernidade. E porque Herman Melville tinha razão quando, numa
das suas derradeiras obras poéticas — John Marr and Other
Sailors —, afirmava que, em vez de divagar acerca do presente, ou
de especular relativamente ao futuro, tínhamos necessariamente
de recorrer ao passado, que melhor forma de abordar este
encontro entre a palavra e a imagem na modernidade do que
regressando, uma vez mais, ao passado, mais concretamente a
uma estátua descoberta numa escavação, no início do século XVI,
em Roma?
2. Quando dediquei o meu primeiro estudo extensivo a este tópico — Ekphrasis. O poeta
no atelier do artista, que recupero nestas páginas —, devido à escassez de referências
exógenas aos estudos clássicos, recorri à designação que mais facilmente era
reconhecida, «ekphrasis». Contudo, a sua convocação entretanto disseminada por outros
setores, leva-me agora a utilizar a sua versão em língua portuguesa, «écfrase».

3. A tradução deste passo feita por Maria Helena da Rocha Pereira dá ênfase à enargeia:
«Forjou também uma leira macia» (Rocha Pereira, 1982: 36, itálico meu). No entanto,
também Frederico Lourenço, no final da sua tradução deste passo, opta por este verbo e,
consequentemente, por uma idêntica expressão da enargeia: «do escudo bem forjado»
(itálico meu).
2. Artes do espaço e do tempo?
Proponho-lhe que imaginemos esse encontro através do olhar de
um poeta contemporâneo, Vasco Graça Moura. Em Laocoonte,
rimas várias, andamentos graves, um livro seu publicado em 2005
e que integrará, como secção, a coletânea Poesia 2001/2005,
vinda a lume no ano seguinte, Graça Moura evoca a descoberta,
em Roma, no início do século XVI, de uma estátua que, devido ao
nome do sacerdote de Apolo que a protagoniza, será conhecida
como Laocoonte. É esta designação que empresta o título ao
poema.
Estruturado em três partes, «laocoonte» começa por exibir uma
ficção em torno do instante da descoberta; em seguida, detém-se
na especificidade da representação através da palavra e através
da imagem; e conclui com o eventual eco daquelas memórias
clássicas no poeta (de) hoje e na reflexão por ele formulada. Antes
de observarmos mais em pormenor a especificidade da meditação
poética decorrente do encontro entre palavra e a imagem, sugiro-
lhe a leitura integral da primeira parte de «laocoonte»:

três meses antes de miguel ângelo fugir de roma,


zangado com júlio II e sentindo-se ameaçado
por bramante, uma estranha estátua foi desenterrada
perto dos banhos de tito, numa vinha do esquilino,

aos catorze de janeiro da era de mil quinhentos e seis.


e logo o papa, sabedor do achado,
e antes de a removerem, mandou lá
giuliano da sangallo e miguel ângelo

examiná-la. à luz do sol de inverno,


entre ciprestes e ruínas, avistavam-se as colinas
em tons de azul finamente acinzentado na distância
e a estátua, posta ao alto e suja ainda de terra, projectava

uma sombra retorcida entre detritos, pás, alavancas, rolos


de corda, sobre o chão revolvido e seus montículos.
«este é o laocoonte de que fala plínio», exclamaram, debruçando-se
entre as vides retorcidas e sem folhas, naquela manhã fria,

e um deles pôs-se também a recitar a eneida, gravemente,


começando em horresco referens, enquanto outro dava ordens
para o transporte até ao belvedere e os cavalos retoiçavam na erva rala
entre as condensações do seu resfolegar.

[Graça Moura, 2006: 193]

No capítulo seguinte apresentarei algumas hipóteses de reflexão


poética suscitadas pela emergência do museu, nomeadamente
através dessa figura pioneira, entre nós, do diálogo sistemático
entre a palavra e a imagem que é Jorge de Sena. Para já, limito-
me a identificar algumas potencialidades desse diálogo através
destes versos de Graça Moura.
A discursividade declarativa que Joaquim Manuel Magalhães
identifica nesta tradição dialógica profundamente radicada no solo
poético anglo-saxónico4, permite a «laocoonte» simular uma
crónica de um achado arqueológico, situando-o no espaço e no
tempo, identificando o cenário político e o modo como tanto este
como o achado se cruzam com percursos biográficos de artistas
maiores de então, como Miguel Ângelo, sinalizando o espanto da
descoberta e, por fim, a memória da palavra a partir da qual a
estátua é identificada — os versos de Eneida, de Virgílio. Será esta
memória, graças à qual a estátua fora até então conhecida, que
inicialmente possibilita a reconstituição do fragmento ausente, uma
ausência que fazia dele uma ruína, um quase resto, pois «ao
laocoonte retirado do cascalho / faltava o braço direito e / era um
verso de virgílio que permitia / as reconstituições» (idem: 194). A
correção da écfrase concebida por Virgílio surgiria, porém, «muito
mais tarde, [pois] o fragmento / do braço original, achado nos
terrenos de um pedreiro, // veio mostrar que o braço se flectia / em
direcção à cabeça e que, ou a citação da eneida / não fora bem
compreendida, ou as palavras / não cobriam exactamente o gesto
representado» (idem). Outros silêncios persistem, porém, como o
da origem: «que artista? para plínio eram três, hagesandros,
polidoro e atenodoro de rodes» (idem). Independentemente do
mistério aqui enunciado, ainda que sob o formalismo de uma
questão, o poeta veicula uma certeza, a de que esta estátua
enuncia «a humanidade dilacerada que os antigos tinham sabido
exprimir» (idem).
A terceira parte do poema, embora se distancie da narrativa
concebida em torno do objeto, prossegue no seio do legado de
meditação sobre a humanidade que a cultura clássica nos
concedeu; algo que o leitor familiarizado com a polifónica obra de
Vasco Graça Moura de imediato reconhece como nuclear na sua
compreensão do presente, nomeadamente do debate sobre a
identidade cultural europeia. Daí que, mesmo começando com
uma incursão na sua memória (poética) pessoal (na sua obra) —
«uma vez perguntei como meter o mundo / num poema» (idem:
196) —, o poeta convoque toda uma memória civilizacional — «só
no mundo de homero é que o mundo / cabia nalguns versos»
(idem) —, a sua dimensão fundadora — «numa cadência inaugural
do som e do sentido» (idem) —, e a sua contaminação profunda de
um quotidiano que é o nosso — «os mitos foram-se tornando
simples literatura» (idem).
Há, deste modo, uma melodia subjacente ao texto que o leitor
atento e conhecedor dos contextos clássicos e das alusões às
conjunturas biobibliográficas de Graça Moura poderá identificar.
Uma espécie de impulso arqueológico é-lhe assim solicitado; um
impulso que o leve a identificar esses vestígios que são, por
exemplo, fragmentos textuais como a brilhante tradução que Graça
Moura concebeu de «The Tyger», esse belo e misterioso poema
de William Blake, igualmente inserida na sequência poética de
«laocoonte».
Quais fantasmas perturbando a leitura, esses fragmentos
recordam a existência de um além-texto, de um contracampo que
o precede. Semelhante percurso arqueológico conduz, afinal, a
uma ontologia do autor; uma ontologia que, num primeiro instante,
pressupõe o reconhecimento da alteridade e que, num estádio
ulterior, a integra5. Será neste sentido pertinente convocar uma
tradição confessional que remonta a Santo Agostinho e que, em
Graça Moura, é indissociável de uma identidade que se foi
construindo ao longo do tempo, a do poeta que revisitou, também,
outros poetas e os convocou para o seu espaço linguístico. Não
será mera circunstância editorial que «laocoonte» surja na
sequência rimas várias, onde nasce um belo poema de amor,
«auto-retrato com a musa», cuja terceira secção se inicia com os
seguintes versos: «quem amo tem cabelos / castanhos e
castanhos / os olhos, o nariz / direito, a boca doce. / em mais
ninguém conheço // tal porte de pescoço / nem tão esguias mãos /
com aro de safira, / nem tanta luz tão húmida / que sai do seu
olhar, // nem riso tão contente, / contido e comovente / nem tão
discretos gestos […]» (idem: 175).
Aquilo que Vasco Graça Moura nos propõe é, afinal, que com ele
partilhemos um percurso pedagógico suscitado pelo
olhar/experiência do poeta. Esta é, porém, uma pedagogia que
recusa designar normativamente a descoberta, apelando, em
contrapartida, à sua construção por parte do leitor através de um
método indireto e alusivo; uma pedagogia também que lembra ao
leitor quão rica é a tradição, o legado cultural, em que ele se move,
mesmo quando disso não tem consciência. Assim, o leitor se pode
distinguir, enquanto ser social, daqueles que habitam tradições
distintas da sua.
Não cabendo neste espaço a imersão detalhada num poema em
que, como referi, cada palavra, cada fragmento convoca, através
da alusão (quão próximo do mecanismo de indiciação do
Modernismo anglo-saxónico se situa Graça Moura!), um vasto solo
de vestígios e de conflitos culturais, literários e políticos até,
importa, todavia, assinalar a relevância desses ecos verbais,
desses restos, para o entendimento do presente. É, afinal, na
riqueza destes restos que nos movemos hoje, «depois dos ventos
da destruição, das catástrofes da ignomínia» (idem: 197).
Ao conceito de resto regressarei mais adiante, no subcapítulo
dedicado ao diálogo com o sagrado; para já urge compreender
melhor o contexto em que Laocoonte emerge na nossa cultura
literária. E, para tal, impõe-se uma convocação da teoria… literária,
claro, pois, subliminar a toda esta reflexão poética de Vasco Graça
Moura, um ensaio persiste, Laokoon, do escritor setecentista
alemão Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781); um ensaio
fundamental para a evolução que o diálogo entre a Literatura e as
Artes Visuais irá conhecer na modernidade inaugurada pelo
Romantismo.

2.1. O Laokoon de Lessing

O caráter incontornável deste ensaio deve-se, desde logo, ao


facto de contrariar toda uma tradição da écfrase através da
desmontagem de um equívoco, aquele que resulta da acima
referida leitura descontextualizada do enunciado horaciano, «ut
pictura poesis».
Na melhor tradição anglo-saxónica optemos, então, pelo método
indireto, isto é, antes de vermos de que forma ele procede a essa
desmontagem, debrucemo-nos sobre o contexto que o motiva.
Nesse sentido não será displicente entender o discurso de Lessing
em confronto com Johann Joachim Winckelmann (1717-1768),
autor de Geschichte der Kunst des Altertums 6, obra datada de
1764. No prefácio Winckelmann declara o seguinte: «A História da
Arte […] que ofereço ao público não é uma simples narração
cronológica das revoluções vividas pelos antigos. Utilizo a palavra
na aceção mais lata que ela tem na língua grega, sendo objetivo
meu oferecer um resumo histórico de um sistema de arte»
(Lichtenstein, 1995: 226, tradução minha).
Com efeito, a sua História preenche um certo vazio a este nível;
refira-se que Plínio era, ainda, a fonte primeira do conhecimento da
arte clássica. Tal não significa que esse conhecimento se
restringisse às fontes tradicionais, como nos recorda a relevância
que teve, por exemplo, a descoberta arqueológica do Laocoonte —
até então conhecido apenas através da écfrase clássica — que
constitui o centro do poema de Vasco Graça Moura. Ora, como
assinala nos seus versos este poeta, a sua memória e o seu
conhecimento deviam-se exclusivamente ao texto, tinham passado
a constituir um novo elemento de estudo do passado.
A par da redescoberta de todo um universo artístico, cultural e
social, proporcionada pelo contacto direto com artefactos vindos à
luz do dia, surgia uma entidade com um estatuto particular, o
«antiquário», entidade possuidora de uma erudição específica,
centrada em objetos ou sistemas particulares. A esta profissão,
estritamente ligada a esse mundo emergente, está associado,
portanto, um conceito específico, o de especialização. Por fim, não
esqueçamos que a produção artística que, durante o
Renascimento, e salvo exceções como Dürer, se centrara
fundamentalmente em Itália, adquirira entretanto uma dimensão
europeia e cosmopolita.
Vivendo numa época de reformulação de conhecimentos e de
aparecimento de novas disciplinas, a obra de Winckelmann revela
uma intenção especulativa e sistemática que deverá, naturalmente,
ser entendida no âmbito da informação então disponível. A sua
perspetiva é diacrónica, dando ênfase a um processo de
afirmação, apogeu e decadência, ao qual, por seu turno, se
associa uma narrativa, a da afirmação de um ideal civilizacional
representado pela Grécia Antiga. O ideal estético que lhe subjaz é
o neoclássico, sustentando uma evidente estrutura piramidal, uma
hierarquia de valores e funções; desta hierarquia participam, com
funções determinadas e limites decorrentes dos meios a elas
inerentes, as diferentes formas de expressão artística.
Ainda no âmbito de uma conceção profundamente hierarquizada,
Winckelmann defende o primado da escultura sobre a pintura, ao
qual atribui razões históricas e estéticas: a perfeição da escultura
precede a da pintura; além disso, ainda de acordo com esta
perspetiva, devedora, recorde-se, do neoplatonismo, a escultura
encarnará o belo ideal:

A escultura e a pintura atingiram mais cedo um certo grau de


perfeição do que a arquitetura. A razão consiste em que, não
tendo podido imitar nada de real e encontrando-se fundada nas
regras gerais das proporções, esta é mais ideal do que aquelas.
A escultura e a pintura, tendo começado pela simples imitação,
encontraram as regras estabelecidas no homem; por seu turno, a
arquitetura, obrigada a procurar as suas por uma infinidade de
[…] combinações, só poderia fixá-las após aprovação. A
escultura precedeu a pintura […] Plínio considera que a pintura
não vai além da guerra de Troia. [Idem: 420]

Regressemos, então, a Lessing e observemos, em seguida, o


signo que empresta o título à obra do escritor alemão. Laokoon
evoca um episódio narrado no livro II, da Eneida, de Virgílio, e
remontando ao cerco de Troia (o que, naturalmente, nos conduz à
Ilíada), no qual se menciona o facto de aquele sacerdote de Apolo
ter advertido os troianos para o perigo que poderia significar
introduzir na cidade o cavalo de madeira que o inimigo simulara ter
deixado para trás. Como se sabe, nem as palavras de Cassandra,
nem as suas, conseguiram persuadir os troianos. Em
contrapartida, o sacerdote foi alvo da ira dos deuses que enviaram
à terra duas serpentes com o objetivo de o punir (cf. figura 2).
Divergem as lendas sobre quem terá sido o autor da vingança,
Atena, ou o próprio Apolo. Divergem, também, sobre quem terá
sido o primeiro alvo do ataque das serpentes: os filhos do
sacerdote, ou ele próprio. Esse aspeto é, todavia, irrelevante para
esta análise. Relevante, sim, é o facto de Laocoonte ser o
destinatário desse violento ataque. Como poderia, então, ser
representada a sua reação? Espelhando a intensidade do
sofrimento? Ou revelando uma capacidade (moral) de resistência a
esse mesmo sofrimento? Porque a estátua havia desaparecido,
restava confiar na descrição realizada pelos escritores; isto é,
confiar na écfrase, no seu sentido mais radical da recuperação de
um objeto pela escrita, pelo texto, para o seu conhecimento.
Winckelmann viu a escultura em Roma e fica impressionado pela
forma como a pedra assume uma intensa expressividade:

The pain is revealed in all the muscles and sinews of his body,
and we ourselves can feel it as we observe the painful contraction
of the abdomen alone without regarding the face and other parts
of the body. This pain, however, expresses itself with no sign of
rage in his face or in his entire bearing. He emits no terrible
screams such as Virgil’s Laokoön, for the opening of his mouth
does not permit it; it is rather an anxious and troubled sighing as
described by Sadoleto. The physical pain and the nobility of soul
are distributed with equal strength over the entire body and are,
as it were, held in balance with one another. Laokoön suffers, but
he suffers like Sophocles’ Philoctetes; his pain touches our very
souls, but we wish that we could bear misery like this great man.
[Cheeke, 2008: 164]

Seria esta a dimensão que suscitaria tanto a simpatia como a


empatia por parte de quem a observa.
Lessing retoma tanto estas como as questões acima
mencionadas em Laocoonte ou Sobre as fronteiras da pintura e da
poesia, publicado em 1766, dois anos depois, portanto, da obra de
Winckelmann, tomando-as como impulso para a sua reflexão sobre
o diálogo entre a literatura e as artes. O subtítulo — Sobre as
fronteiras da pintura e da poesia — convoca a tradição horaciana
— «ut pictura poesis» —, ao mesmo tempo que explicitamente
denuncia a sua diferença: este é um estudo sobre as
especificidades da pintura e da poesia, sobre aquilo que as
distingue, que as afasta; concebendo-as, portanto, enquanto
entidades com estruturas próprias. Ergue-se, assim, contra aquela
tradição, segundo a qual a pintura e a poesia eram entendidas
como artes afins, modos de representação comparáveis, fundados
nos mesmos princípios e partilhando das mesmas regras, num
constante retorno a Simónides.
Lessing vai propor algo de radicalmente diferente ao pretender
delimitar os domínios da pintura e da poesia. Para ele, a diferença
fundamental entre as duas formas de expressão artística prende-
se com a sua própria natureza, com os pressupostos que lhes
serão endógenos: a pintura será uma arte de imagem (isto é,
sustentada pelo conceito de espaço), enquanto que a poesia será
uma arte de linguagem (isto é, sustentada pelo conceito de tempo).
A pintura e a poesia encontram-se, deste modo, dependentes
destes pressupostos: aquilo que o poeta pode contar, o pintor
pode, apenas, eventualmente, mostrar.
A análise de Lessing organiza-se a partir de dois exemplos:
Laocoonte e Sacrifício de Ifigénia. O Laocoonte era considerado
um exemplo único da beleza expressiva, de pathos. Recorde-se
que, de acordo com a interpretação de Winckelmann, o escultor
teria representado o sacerdote com a boca entreaberta, desviando-
se da imagem narrada (exposta) por Virgílio que acentuava os
seus lancinantes gritos de dor. O escultor daria, portanto, ênfase à
dimensão heroica de uma personagem capaz de controlar a dor,
devido à sua grandeza de alma. Lessing opõe-se a esta
interpretação. Segundo ele, o artista teria optado por outra leitura
da situação, não se condicionando pela narração, como seria
inevitável (?) na descrição feita pelo poeta; afinal, o excesso de
expressão poderia destruir a harmonia do conjunto.
Por seu turno, o Sacrifício de Ifigénia expõe outro tipo de
contenção: o véu ocultando o rosto de Agamémnon. Lessing
justifica esta opção do pintor pela sua recusa de expor o horror, o
qual, pelo excesso e fealdade, contraria a beleza que, para os
clássicos, seria inerente às artes plásticas:

[N]o […] Sacrifício de Ifigénia […] [o pintor] deu a cada um dos


assistentes um grau conveniente de tristeza, no entanto, cobriu o
rosto do pai, o qual expressaria um grau supremo de desespero.
[…] Ele [o artista] sabia que o desespero adequado a
Agamémnon, como pai, deveria traduzir-se em expressões
horríveis. Levou a expressão o mais longe possível sem pôr em
causa nem o belo nem a dignidade. Poderia facilmente omitir a
fealdade, […] mas porque o tema não o permitia, que lhe restava
senão lançar um véu sobre ela? Aquilo que não ousou pintar,
deixou adivinhar. Concluindo, ao fazê-lo, o artista sacrificou-se
perante a beleza. Este é um exemplo que mostra, não como
podemos levar a expressão para além dos limites da arte, mas
sim como nos devemos submeter à lei primeira da arte, a lei da
beleza. [Lessing, 1997: 240]

Como evidencia este passo, o ideal representado baseia-se na


contenção, no decorum. A intensidade emocional não deveria ser
levada demasiado longe: nessa contenção, nesse decorum,
insinua-se uma certa dimensão ética. O «bathos» sobrepõe-se ao
«pathos». Segundo Lessing, este exemplo não se restringiria ao
Sacrifício de Ifigénia:

Se aplicarmos esta lei a Laocoonte, aperceber-nos-emos dos


meus objetivos. O artista queria representar a maior beleza
possível compatível com a dor física. Esta, em toda a sua
violência deformadora, não poderia aliar-se àquela. O artista foi,
por isso, obrigado a atenuá-la, a moderar o grito, transformando-
o num gemido, não porque o grito indicasse uma alma inferior,
mas porque ele transmitia ao rosto um aspeto repugnante.
Imaginem o Laocoonte de boca aberta e julguem. Façam-no
gritar e vejam. Esta é uma imagem que inspira compaixão porque
encarna, simultaneamente, o belo e a dor […] [Idem, itálico meu]

Como se constata neste passo, ao transitar para o Laocoonte,


Lessing associa a representação decorosa à representação do
belo, porque, segundo ele, o «[…] artista grego pintava apenas o
belo; mesmo o belo vulgar, o belo dos géneros inferiores era para
ele apenas um tema acidental, um exercício, um passatempo. O
que deveria encantar na sua obra era a perfeição do objeto em si
[…]» (idem: 238). Semelhante perfeição pressupunha a dimensão
ética, na qual as características heroicas das personagens se
revelavam. Por seu turno, no plano da expressividade, a forma
como essas características eram figuradas, dependia do meio, isto
é, da expressão artística, e, consequentemente, da representação
em causa: «Na poesia […] a fealdade da forma, através da
mudança que torna sucessivas as suas partes coexistentes, perde
quase inteiramente o seu efeito repulsivo; deste ponto de vista, ela
deixa, por assim dizer, de ser fealdade e pode unir-se mais
intimamente a outras aparências para produzir um efeito novo e
particular. Na pintura, pelo contrário, a fealdade conserva intactas
todas as suas forças […]» (idem: 242-243).
Lessing parte do decorum, da contenção, transita para a noção
de belo, e, por fim, para a especificidade de cada forma de
expressão artística («[…] os Antigos […] não se esqueceram de
precisar que […] as duas artes diferem quer pelo objeto quer pelo
modo de imitação», idem: 425); deste modo, o meio utilizado
implica um tipo particular de representação: cada arte está, afinal,
limitada pelo meio que lhe é endógeno:

[…] como se não existisse diferença alguma, os críticos


modernos retiraram desta conformidade de efeitos as conclusões
mais incongruentes, quer encerrando a poesia nos estritos limites
da pintura quer deixando a pintura abarcar toda a esfera da
poesia. Tudo o que é bom para uma deve sê-lo para a outra; tudo
o que agrada ou desagrada a uma deve necessariamente
agradar ou desagradar à outra; e, imbuídos desta ideia, cheios
de segurança, pronunciam opiniões superficiais: ao compararem
a obra de um poeta à de um pintor sobre o mesmo assunto,
consideram que as diferenças são erros, dos quais incriminam
um ou outro consoante as suas preferências recaiam sobre a
poesia ou sobre a pintura. [Idem]

Num eco de Simónides, este equívoco da crítica sua


contemporânea teria, além disso, repercussões a nível de um
desvirtuar dos próprios discursos artísticos:

[…] esta crítica viciosa, até certo ponto, tem induzido em erro
os próprios artistas. A ela se deve a origem, na poesia, do género
descritivo, e, na pintura, da alegoria: pretendeu-se fazer da
poesia pintura com voz, sem saber precisamente o que ela pode
e deve pintar, e da pintura um poema mudo, antes de se ter
examinado em que medida ela pode exprimir ideais gerais sem
se distanciar do seu destino natural e sem se tornar uma escrita
arbitrária. [Idem, itálico meu]

Será perante este cenário de equívocos, críticos e criativos,


nomeadamente na sua denegação de Simónides, como evidencia
o passo citado em itálico, que se poderá compreender o objetivo
de Lessing, por ele próprio explicitado no prefácio que tenho vindo
a citar: «Lutar contra este falso gosto e contra estas opiniões mal
fundamentadas, é o principal objetivo das páginas que se seguem»
(idem).
Lessing procede a uma desmontagem sistemática dos modos
miméticos, delineada através de exemplos significativos, por ele
colhidos na Antiguidade Clássica. Fá-lo, no capítulo XVI,
considerando, desde logo, a diferença radical que subjaz à
representação literária e à pictórica: a palavra e a cor. Vejamos
como: «[…] a pintura emprega, para as suas imitações, meios ou
signos diferentes dos da poesia, a saber, formas e cores dispostas
no espaço, enquanto que esta se serve de sons articulados que se
sucedem no tempo […]» (idem: 427). Uma vez mais, a distinção
entre uma arte suportada pelo tempo e outra suportada pelo
espaço surge na génese conceptual que delimita os campos das
duas formas de expressão estética.
A elaboração teórica do ensaísta alemão assenta no pressuposto
«incontestável [de] que os signos devem ter uma relação natural e
simples com o objeto significado» (idem). Esta «relação natural»
entre signo e referente não deve, todavia, ser entendida no âmbito
da reflexão platónica exibida no Crátilo. Para Lessing, a «relação
natural» decorre do facto de «os signos justapostos pode[re]m
exprimir apenas objetos justapostos ou compostos de elementos
justapostos, tal como os signos sucessivos apenas podem traduzir
objetos ou os seus elementos sucessivos» (idem). Conclui ele:
«Os objetos, ou os seus elementos, que se justapõem, chamam-se
corpos. Consequentemente, os corpos, com as suas
características aparentes, são o objeto da pintura. Os objetos, ou
os seus elementos, dispostos em ordem de sucessão, chamam-se,
em sentido lato, ações. As ações são o objeto da poesia» (idem).
Mais adiante, o autor de Laokoon explicita a distinção radical
entre ambas através da escolha do referente:

Para as suas composições, que pressupõem uma


simultaneidade, a pintura pode explorar apenas um instante da
ação, devendo, deste modo, escolher o mais fecundo, aquele
que fará compreender melhor o instante que o precede e aquele
que lhe sucede. De igual forma, para as suas imitações
sucessivas, a poesia pode explorar apenas uma das
características dos corpos, devendo, deste modo, escolher
aquela que desperta a imagem mais sugestiva num determinado
contexto […] [Idem: 427]

Conclui-se que a escolha do referente, a nível da pintura, deve


ser entendida no âmbito do seu caráter exemplar, o qual decorre
de uma escolha face a um fio diacrónico, a uma relação com o
passado e com o futuro: o referente funciona como um espaço (de
reserva textual) que foi determinado algures num tempo passado,
encerrando inevitáveis consequências e percursos ulteriores. Por
seu turno, a escolha do referente a nível da poesia deve ser
entendida no âmbito de uma capacidade de sugestão (visual —
enargeia?), de perspetiva funcional face à economia da narrativa.
A aparente dicotomia exposta por Lessing configura, afinal, uma
subtil interpenetração entre os dois conceitos — espaço e tempo,
nas estratégias de representação das duas formas de expressão
artística. Ao distinguir estratégias decorrentes de relações
específicas com os conceitos de espaço e de tempo; ao definir a
subtil interpenetração entre estes; ao entendê-las, afinal, como
microcosmos, Lessing prepara o solo da modernidade a partir do
qual irão emergir as sensibilidades românticas.
Com efeito, ao longo dos tempos, a écfrase havia dependido da
dimensão narrativa e de uma capacidade (a da palavra), a de
permitir ao leitor visualizar um signo ausente. Associava, deste
modo, o objeto à história do qual ele participa, inserindo-o num fluir
diacrónico, com a memória de um passado que justifica o presente
— o instante da representação — e antecipa um futuro; ela
significaria fase de um devir. A representação associar-se-ia,
portanto, à estase, ao momento de uma tensão (trágica) onde um
derradeiro conflito e um desenlace se insinuam. Recorde-se que,
não raro, a écfrase se caracterizava pelo facto de ser imaginária,
isto é, de não depender de um objeto com uma existência
reconhecível, palpável, comprovável (como vimos, o Laocoonte só
é descoberto no século XVI, sendo, até então, apenas conhecido
através das evocações literárias). Os próprios tratados de pintura,
como o de Leon Battista Alberti, podem chegar mesmo a ser
criados não a partir dos artefactos estéticos, mas das suas
descrições pelas narrativas, pelo texto, pela palavra.
Contrariamente a uma eventual suposição, a escultura e a pintura
podem, assim, ter sido concebidas, durante um largo espaço de
tempo, como artes efémeras. A recuperação da sua imagem
dependeria, então, apenas, do logos. No entanto, algo que
escaparia ao domínio do logos, ou seja, ao domínio absoluto do
sujeito, iria perturbar o solo teórico concebido por Lessing: a
interferência do instrumento — da máquina — na reprodução do
real que irá emergir com aquela que, em breve, seria a nova arte
da fotografia.

2.2. A fotografia, novo impulso no diálogo entre a palavra e a


imagem

Neste âmbito uma referência crítica se impõe, a de Charles


Baudelaire. Ainda antes de a analisarmos, devemos transitar para
o Novo Mundo, de modo a sinalizar um poeta que desvenda as
potencialidades decorrentes da evolução do daguerreótipo para a
fotografia, a elas recorrendo para revolucionar a própria conceção
de livro e de escrita poética. Refiro-me, como é óbvio, a Walt
Whitman. Sobre a importância específica que assume o retrato na
inovação whitmaniana, refletirei na secção do capítulo seguinte
dedicada a este tópico; neste momento limito-me a acentuar o
facto de ele estar particularmente atento à emergência de novos
discursos artísticos, característica do seu tempo, algo que se
projetará numa reformulação teórica do próprio texto poético; uma
reformulação que passará por uma radical dimensão visual. Refere
Ed Folsom, autor de reflexões seminais sobre esta temática na
obra do bardo americano: «[…] he [Whitman] was always on the
lookout for new art forms, new political formulations, new cultural
diversions, anything that emerged fresh and first in America […]».
Acrescentando mais adiante: «[…] he was anxious to figure out just
what cultural attributes each new event, each new activity, each
new attitude, signified and to discover how the events could be
transformed into language — not just as subjects for his poetry, but
as generators of a new kind of language, a native diction and
pacing and rhythm and form that emerged out of cultural actions»
(Folsom, 1994: 3). Será esta interação referencial entre palavra e
imagem que o poeta explora através da assimilação de discursos
exógenos, e que atingirá uma dimensão radical em vários poemas
de Drum-Taps, o livro por ele dedicado à Guerra Civil, em particular
no poema «A March in the Ranks Hard-Prest, and the Road
Unknown» (Avelar, 2006: 75-81).
Nuclear para esta inovação e também para a reformulação
teórica do encontro entre a palavra e a imagem, será a evolução
da fotografia, já que a obra de Whitman se constrói a par da sua
emergência e consagração enquanto estética autónoma: «From
the 1840’s on, as first daguerreotypes and then photographs
entered human consciousness and redefined the way we see the
world, words began to alter their relationship with reality too»
(Folsom, 1994: 105). Ora, aquando da publicação de Leaves of
Grass, em 1855, pela primeira vez uma gravura de um
daguerreótipo terá sido usada como frontispício de um livro de
poemas. Whitman não pretende assim confinar a imagem a uma
estratégia de representação realista, mas sim evitar até o impulso
(realista) proporcionado por uma gravura que fosse uma mera
cópia de um daguerreótipo. De modo a denegar esse impulso
convida Samuel Hollyer, um jovem artífice inglês, em visita aos
Estados Unidos, a gravar o daguerreótipo feito por Gabriel
Harrison para assim acentuar o caráter artificial da imagem
(Folsom, 1995: 141).
Com efeito, o produto final exibe, na parte superior do corpo,
uma reprodução realista, mas, à medida que o nosso olhar desce,
o corpo dá lugar a linhas que se diluem. A imagem expõe-se assim
como construção, dando lugar a um ícone, aspeto ao qual,
recordo, prestarei atenção mais detalhada na secção do capítulo
seguinte.
Tendo sinalizado apenas a singularidade do encontro entre
imagem e palavra na estética de Whitman, sugiro um regresso a
Baudelaire. Escrevi acima que ao autor de Les Fleurs du Mal se
deve o facto de ter desvendado as potencialidades decorrentes da
evolução do daguerreótipo para a fotografia, e o consequente
impacto que esta teria noutra forma de expressão artística, a
pintura. O seu texto sobre o Salon de 1859, intitulado «Le public
moderne et la photographie», é a este nível fulcral. Baudelaire
problematiza aí, embora sem euforia, algumas das vertentes da
modernidade acima mencionadas: a industrialização e a
massificação que ela implica; a importância de um público cada
vez mais alargado e heterogéneo; e o consequente domínio que
este pode exercer sobre o criador mais suscetível de adaptar a sua
criação estética àquele que eventualmente funcionaria como ethos
cultural e estético, o gosto dominante (normativo) no seio desse
mesmo público.
Baudelaire vê na poesia, e nas artes em geral, uma capacidade
de perturbar esse ethos, as perceções (construções) estéticas
convencionais. Tomando como suas as palavras do poeta,
prosador e teorizador americano Edgar Allan Poe, Baudelaire
afirmará «c’est un bonheur d’être étonné, mais aussi […] c’est un
bonheur de rêver» (Lichtenstein, 1995: 437). Na sua opinião, esta
postura de disponibilidade para o deslumbramento estético opõe-
se à disponibilidade da maioria, do público, «[…] singulièrement
impuissant à sentir le bonheur de la rêverie ou de l’admiration»
(idem). Segundo ele, o público congratular-se-ia com uma estética
que se limitaria a reproduzir a realidade, pelo que: «l’industrie qui
nous donnerait un résultat identique à la nature serait l’art absolu».
Deste modo: «‘Puisque la photographie nous donne toutes les
garanties désirables d’exactitude (ils croient cela les insensés!),
l’art c’est la photographie.’ À partir de ce moment, la société
immonde se rua, comme un seul Narcisse, pour contempler sa
triviale image sur le métal» (idem: 437-438).
Baudelaire admite, porém, duas virtualidades para a fotografia:
uma direta, ao funcionar quer como repositório da memória
individual e coletiva («Qu’elle enrichisse rapidement l’album du
voyageur et rende à ses yeux la précision qui manquerait à sa
mémoire […]»), quer como adjuvante da ciência («[…] qu’elle orne
la bibliothèque du naturaliste, exagère les animaux
microscopiques, fortifie même de quelques renseignements les
hypothèses de l’astronome», idem: 438), e outra indireta, ao
libertar a pintura dos constrangimentos de uma estética realista
que seria agora preenchida pela fotografia. Embora neste olhar se
indicie uma postura disfórica face às profundas transformações
que se operam no seio da modernidade, nele pressente-se o solo
onde Deleuze iria formular o seu juízo crítico: «photography has
taken over the illustrative and documentary role, so that modern
painting no longer needs to fulfill this function, which still burdened
earlier painters» (Deleuze, 2003: 8).
A centralidade da reflexão promovida por Baudelaire sobre a
fotografia não pode rasurar o seu diálogo com a pintura, o qual,
ainda que brevemente, deverá ser sinalizado. Com efeito,
Baudelaire atribui uma função particular à pintura, que destaca
enquanto instrumento de perenidade. O poema «Les phares»
desvenda esta dimensão ao consagrar um conjunto de pintores
aos quais se deveriam perceções particulares da humanidade («de
notre dignité», Baudelaire, 1964: 42) que perdurariam para
sempre: Rubens, Leonardo da Vinci, Rembrandt, Miguel Ângelo,
Puget, Watteau, Goya e Delacroix. Tal não significa que o poeta
escreva um número significativo de écfrases. Com efeito, estas
restringir-se-ão, fundamentalmente, ao poema «Une martyre:
dessin d’un maître inconnu» e à série «Épigraphes», constituída
por três poemas «Vers pour le portrait de M. Honoré Daumier»,
«Lola de Valence» e «Sur Le Tasse en prison d’Eugène Delacroix».
No entanto, se considerarmos o impacto que a dimensão visual
tem na sua poesia, de imediato repararemos na radical
interiorização que Baudelaire realiza do discurso pictórico, numa
nítida aproximação às inovações realizadas por Turner e
prolongadas pelos impressionistas. Essa interiorização é, desde
logo, explicitada na designação que atribui a uma secção de Les
Fleurs du Mal — «Tableaux parisiens», a qual reflete a convocação
do discurso pictórico na representação da cidade, orientando
esteticamente a própria leitura dos poemas. Esta representação
consagra duas vertentes, a especificidade do movimento urbano e
a coloração deste espaço, na sua novidade marcada pela
industrialização.
Em «Les sept vieillards» a azáfama do movimento citadino é
evocada através da expressão «Fourmillante cité», à qual acresce
o investimento emocional daqueles que a habitam: «cité pleine de
rêves, / Où le spectre en plein jour raccroche le passant! […] // Un
brouillard sale et jaune inondait tout l’espace» (idem: 109). Como
referi, a cor d(est)a cidade é algo de novo, e Baudelaire capta essa
novidade em inúmeros poemas devedores do discurso pictórico.
Em «L’ Amour du mensonge» a recente luminosidade da cidade
invade e transforma a perceção que o sujeito expõe da
interlocutora que, devido à prosopopeia, funciona como agente de
criação artística — «Quand je contemple, aux feux du gaz qui le
colore, / Ton front pâle, embelli par un morbide attrait, / Où les
torches du soir allument une aurore» (idem: 119; itálico meu). A
euforia do objeto é explicitamente identificada com as suas
virtualidades ecfrásticas: «Et tes yeux attirants comme ceux d’un
portrait» (idem, itálico meu). Na sequência de uma certa tradição
neoplatónica, que percorrera já o Romantismo, insinua-se
igualmente aqui uma relevante noção teórica, a de
correspondência, à qual regressarei mais adiante.
Noutros poemas, a coloração da perceção que se oferece do
espaço é radicalmente marcada pela industrialização. Destaco os
exemplos retirados de «Paysage» — «Il est doux, à travers les
brumes, de voir naître / L’étoile dans l’azur, la lampe à la fenêtre, /
Les fleuves de charbon monter au firmament / Et la lune verser son
pâle enchantement» (idem: 104); e de «Le crépuscule du matin» —
«C’était l’heure […] / Où, comme un oeil sanglant qui palpite et qui
bouge, / La lampe sur le jour fait une tache rouge»; «L’aurore
grelottante en robe rose et verte / S’avançait lentement sur la Seine
déserte» (idem: 124). Já em «Les petites vieilles» a dimensão
visual, a que se associa, uma vez mais, o bulício específico da
cidade, insinua o enfoque disfórico do sujeito: «[…] un fantôme
débile / Traversant de Paris le fourmillant tableau» (idem: 111);
«[…] à l’heure où le soleil tombant / Ensanglante le ciel de
blessures vermeilles» (idem: 112). Será essa perspetiva que
domina «Le cygne» — «Paris change! mais rien dans ma
mélancolie / N’a bougé! palais neufs, échafaudages, blocs, / Vieux
faubourgs, tout pour moi devient allégorie» (idem: 108); e «Le jeu»
— «Voilà le noir tableau qu’en un rêve nocturne / Je vis se dérouler
sous mon oeil clairvoyant» (idem: 117). A perceção é
essencialmente concebida por um olhar que assimilou uma
estética pictórica, projetando-a na configuração que o discurso
poético realiza da modernidade através daquele que é um dos
seus signos por excelência, a cidade.
Atentemos seguidamente no plano da reflexão crítica. Os seus
textos neste âmbito desvendam a especificidade da modernidade e
das necessárias estratégias da sua apreensão pelas artes. Num
artigo publicado no Figaro, entre novembro e dezembro de 1863,
sob o título de «Le Beau, la Mode et le Bonheur», Baudelaire
defende a necessidade da captar o zeitgeist, o espírito de um
tempo presente, «sa qualité essentielle de présent» (Lichtenstein,
1995: 251), naquele que ele considera ser um paradigma marcado
pela transitoriedade e pela efemeridade: «La modernité, c’est le
transitoire, le fugitif, le contingent, la moitié de l’art, dont l’autre
moitié est l’éternel et l’immuable» (idem: 252). O leitor terá
percecionado quão próximo de nós está este diagnóstico hoje
repetido até à banal exaustão.
Por outro lado, num artigo inacabado intitulado «L’ Art
philosophique», e só publicado postumamente, Baudelaire aborda
uma vez mais a problemática dos tempos modernos colocando a
descodificação da sua singularidade na perceção: «Qu’est-ce que
l’art pur suivant la conception moderne? C’est créer une image
suggestive contenant à la fois l’objet et le sujet, le monde extérieur
à l’artiste et l’artiste lui-même. […] Toute bonne sculpture, toute
bonne peinture, toute bonne musique, suggère les sentiments et
les rêveries qu’elle veut suggérer» (idem: 436, itálico meu). A
escrita continuaria, porém, a ser o espaço por excelência do logos:
«Mais le raisonnement, la déduction, appartiennent au livre»
(idem). Segundo ele, «chaque époque [a] son port, son regard et
son geste» (idem: 253), cabendo à obra de arte desvendar «la
morale et l’esthétique du temps» (idem: 251). Tal significa o
recurso aos signos, à linguagem, do presente, e a recusa da mera
reprodução de estratégias de representação do passado; a pintura
é a forma de expressão artística por ele escolhida para
exemplificar este ponto de vista:

Si nous jetons un coup d’oeil sur nos expositions de tableaux


modernes, nous sommes frappés de la tendance générale des
artistes à habiller tous les sujets de costumes anciens. Presque
tous se servent des modes et des meubles de la Renaissance,
comme David se servait des modes et des meubles romains. Il y
a cependant cette différence, que David, ayant choisi des sujets
particulièrement grecs ou romains, ne pouvait pas faire autrement
que de les habiller à l’antique, tandis que les peintres actuels,
choisissant des sujets d’une nature générale applicable à toutes
les époques, s’obstinent à les affubler des costumes du Moyen
Âge, de la Renaissance ou de l’Orient. [Idem: 252]

Baudelaire prossegue o legado teórico de Lessing, defendendo,


nos seus escritos, a especificidade das diferentes formas de
expressão artística, da poesia às artes plásticas, passando por
uma, então, nova forma de expressão artística, a fotografia, esse
invento que, segundo Mario Praz, transtornou por completo a
estrutura tradicional da pintura, nomeadamente devido à
assimilação por parte da pintura da estrutura fotoscópica,
evidenciada na série de pinturas da catedral de Rouen concebida
por Monet (Praz, 2007: 177).
Apesar de não aceitar o estabelecimento de paralelos entre elas,
teoriza uma aproximação através da noção de correspondência.
Radicando numa certa tradição neoplatónica, esta noção evoca
uma unidade perdida com o corte epistemológico que consagraria
a visão moderna de ciência em inícios do século XVII. Considera a
este respeito M. S. Lourenço que a «contribuição de Baudelaire
para a formação de uma poética simbolista consiste precisamente
na introdução deste conceito de correspondência, que ele
encontrou na tradição hermética ocidental […]». Prossegue o
filósofo: «Na tradição hermética o conceito de correspondência
está associado à suposição da existência de um modo de
percepção, por meio do qual a um objecto concreto se faz
corresponder um significado espiritual, de tal modo que o objecto
físico e o significado espiritual se unem, como duas vozes em
uníssono» (Lourenço, 2002: 30).
«Correspondances», o soneto de Les Fleurs du Mal que
encontra nesta noção a sua própria designação, instituindo-se,
deste modo, como ilustração desse conceito, explicita na segunda
quadra semelhante união: «Comme de longs échos qui de loin se
confondent / Dans une ténébreuse et profonde unité, / Vaste
comme la nuit et comme la clarté, / Les parfums, les couleurs et les
sons se répondent» (Baudelaire, 1964: 40). Nestes versos
Baudelaire recupera a dimensão neopitagórica de cosmovisão, isto
é, de um espaço fechado cujo conhecimento é acessível através
da descodificação dos nexos, espacial e temporalmente, existentes
entre os signos que o compõem. Para a descodificação desses
nexos devemos considerar tanto a dimensão simbólica como a
metonímica desses signos. Estas dimensões refletem relações
baseadas na analogia, na contiguidade, no efeito de espelho
(aemulatio, como referirá Michel Foucault em Les Mots et les
Choses) que anula as distâncias entre esses signos, possibilitando
quer uma perspetiva unitária do cosmos quer uma relação de
complementaridade entre o sujeito e o cosmos.
Apesar de defender a singularidade das diferentes formas de
expressão artística («J’ai souvent entendu dire que la musique ne
pouvait pas se vanter de traduire quoi que ce soit avec certitude,
comme fait la parole ou la peinture. Cela est vrai dans une certaine
proportion, mais n’est pas tout à fait vrai. Elle traduit à sa manière,
et par les moyens qui lui sont propres […]», Lichtenstein, 1995:
433), e, consequentemente, a existência de taxonomias críticas
autónomas, Baudelaire encontra neste legado, e neste conceito
em particular, uma possibilidade de conexão entre as artes. A que
nível, perguntar-se-á? Como esclarece M. S. Lourenço tal conexão
tem lugar numa capacidade de sugerir uma perceção muito
particular, isto é, na capacidade de produzir um efeito de elevação
no destinatário seja este um leitor (no caso da poesia), um
observador (no caso da pintura), ou um espectador/ouvinte (no
caso da música). Considera Baudelaire: «Ce qui serait vraiment
surprenant, c’est que le son ne pût pas suggérer la couleur, que les
couleurs ne pussent pas donner l’idée d’une mélodie, et que le son
et la couleur fussent impropres à traduire des idées; les choses
s’étant toujours exprimées par une analogie réciproque, depuis le
jour où Dieu a proféré le monde comme une complexe et indivisible
totalité» (idem). Reconhece-se nesta declaração uma analogia
teórica e estética com os célebres versos iniciais de «Voyelles,» de
Rimbaud: «A NOIR, E blanc, I rouge, U vert, O bleu: voyelles, / Je
dirai quelque jour vos naissances latentes» (Rimbaud, 1972: 126).
Será a mudança de paradigma nos horizontes estéticos
convencionais, decorrente da imposição da fotografia no
quotidiano cultural oitocentista, que inviamente iria ecoar nas
inovações poéticas propostas por Walt Whitman. Quando abordar
a função do retrato na obra whitmaniana, formularei a hipótese de
ela participar (ampliar) de uma estratégia confessional; para já
devo recordar aquela que acima referi ser a interferência do
instrumento — da máquina na captação do real, do instante; a esta
interferência dedicará Walter Benjamin o seu ensaio seminal de
1936, Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen
Reproduzierbarkeit 7, no qual uma nova ampliação se delineia, a
que decorre do cinema. Registo ainda brevemente aquilo que em
Camera Lucida, o seu ensaio de 1980, Roland Barthes identifica
como punctum endógeno ao objeto, para nele identificar um
segmento confessional. Recorro para isso a um poema de Álvaro
García. Em «Supervivencias», de La noche junto al álbum (1989),
García lembra quão relevantes são a referencialidade da fotografia
e o investimento subjetivo do sujeito para a sua identidade, para a
existência de um sentido que só pode ser captado no âmbito de
uma narrativa pessoal que a memória captou: «Fotos que
recordaban un momento / amarillean, aunque sólo sea en mi
ánimo / ahora que las miro. / Eran el puente fácil, inconsciente, /
entre unas cartulinas y mi proprio pasado / pero desposeerlas de
ese fondo / y olvidar una historia / las deja en aspereza y en
silencio» (Magalhães, 1997: 840). Caso esse investimento, essa
memória (confessional), não se insinuem, restará apenas a
opacidade do silêncio. Mas essa é uma reflexão para outro lugar;
para já regresso a Benjamin.

2.3. Quando o cinema amplia uma presença

Lembrei acima que, em A obra de arte na era da sua


reprodutibilidade técnica, o filósofo alemão inscreve o cinema na
sua reflexão sobre as novas condições estéticas de representação
artística. Ainda nesse ano de 1936 o poeta inglês W. H. Auden8 fez
uma palestra sobre poesia e cinema na North London Film Society.
Este é, portanto, um tempo de meditações analíticas sobre os
novos compromissos estéticos e os diálogos singulares que estes
suscitam; meditações estas que iriam conhecer, em 1938, um
momento assaz relevante. Com efeito, não deixa de ser curiosa a
coincidência temporal entre a publicação da obra de Benjamin ou a
palestra de Auden, e o aparecimento de um ensaio que pretende
analisar a sétima arte na esteira de… Lessing. Refiro-me a «A New
Laocoön: Artistic Composites and the Talking Film», de Rudolf
Arnheim.
Embora a fotografia tenha introduzido a interferência
(determinante) da máquina no processo de construção artística, e
consequentemente acelerado esse mesmo processo, para além de
ter possibilitado o desvendar da presença sistemática, ainda que
silenciosa, do detalhe, ela não significou uma superação da
dicotomia entre artes do espaço e artes do tempo que Lessing
havia proclamado. Será na infância do cinema, quando este ensaia
os seus primeiros passos no sonoro, os talkies — veja-se a
referência no subtítulo do ensaio a «the Talking Film» —, que
Arnheim sente a necessidade de cogitar em torno da persistência
operatória da dicotomia lessinguiana.
Arnheim começa por enfatizar aquilo que considera ser a
perplexidade face ao novo objeto estético, «a feeling that
something is not right there» (Arnheim, 1957: 199), decorrente da
confluência/encontro — considera ele desconcertante — e
eventual conflito, entre dois media, discurso e imagem — «In their
attempts to attract the audience, two media are fighting each other
instead of capturing it by united effort» (idem). Será, portanto, a
possibilidade de confluência entre media distintos num solo único
que constitui a hipótese teórica que ele pretende investigar e
avaliar (idem: 200). Após convocar a tradição teatral, por ele
considerada híbrida, devido à tensão entre palavra e imagem, e as
condições necessárias para a combinação de media artísticos
(idem: 200-212), Arnheim apresenta a derradeira questão, de cuja
resposta pode significar a libertação do cinema da tradição
dramática: «Can image and word be combined in a manner
different from that of the theater?» (idem: 212). E mais adiante:
«Could not the visual action become an integral part of the play?»
(idem: 218). É neste contexto que situa a função da poesia, da
música, da pintura ou da fotografia; o que o reconduz a Lessing:

That the various media are different in character has been


shown in Lessing’s Laocoön by the example of the visual arts and
literature. In distinguishing, for example, between representational
and nonrepresentational media one understands easily that
painting or the dance — as contrasted with music — may convey
underlying themes in a more indirect and hidden manner. The
representation is tied to tangible objects but precisely for this
reason more in keeping with practical experience. Music transmits
such ideas more directly, more purely and forcefully, but its
interpretation, which can do without depicting objects, is also
more abstract and generic since it excludes the multitude of
concrete things and happenings. This is why music completes the
dance and the silent film so perfectly: it vigorously transmits the
feelings and moods and also the inherent rhythm of movements
that the visual performance would wish to describe but which are
accessible to it only through the inevitable diffraction and turbidity
from the use of concrete objects. [Idem: 216; itálico meu]

Numa brevíssima digressão, devo esclarecer que, apesar da


relevância pioneira deste ensaio, a perspetiva disfórica aqui
formulada face aos talkies não é unânime à época. Sensivelmente
na mesma altura, Alexander Bakshy, o primeiro crítico com
estatuto residente do semanário The Nation, revela uma perceção
profundamente diferente, assinalando, por exemplo, a
singularidade que assume a melodia específica da voz de cada
autor, citando os casos de Al Jolson e Fanny Brice num texto
intitulado «The Talkies» (Lopate, 2006: 46).
Regressemos à citação em análise. Embora Lessing constitua a
convocação teórica específica, uma outra se indicia neste passo,
aquela que, remontando a Crátilo, retoma a mimese e os seus
limites. Num tempo — o Modernismo — em que a hierarquia das
diferentes formas de expressão artística é radicalmente
questionada9, Arnheim denuncia uma evidente dificuldade em
desvendar a inevitabilidade das ruturas estéticas então
emergentes. Decorrente destas surge esse solo entre, a hibridez e
a consequente instabilidade formal que então invade os diferentes
espaços criativos, balcanizando no passado os absolutos que
durante séculos predominaram nestes domínios. Não deixa de ser
irónico que o derradeiro parágrafo deste ensaio, embora proferindo
um diagnóstico correto da realidade presente, falhe na conclusão
alcançada: «There is comfort, however, in the fact that hybrid forms
are quite unstable. They tend to change from their own reality to
purer forms, even though this may mean a return to the past.
Beyond our blundering there are inherent forces that, in the long
run, overcome error and incompleteness and direct human action
toward the purity of goodness and truth» (idem: 230).
Ora, desde a infância do cinema que a poesia revelou a sua
hospitalidade face à nova forma de expressão artística. Este não é,
todavia, um tópico que deva ser desenvolvido nestas páginas.
Interessa-me apenas o impacto que uma nova estética pode ter
tido no discurso poético, em particular quando a pintura interfere
no encontro entre estes dois tipos de registo.
Um esclarecimento teórico impõe-se: a descrição de um filme
não se justapõe à écfrase, a qual pode, contudo, participar da
própria gramática fílmica. Neste âmbito, ela pode assumir
presenças distintas, sobre as quais me detive em pormenor num
ensaio dedicado ao filme O moinho e a cruz, de Lech Majewski
(Avelar, 2016: 230-247). Tomei, então, como ponto de partida uma
taxonomia proposta por Laura Mareike Sager em Writing and
Filming the Painting: Ekphrasis in Literature and Film, no qual esta
ensaísta define quatro subcategorias da écfrase fílmica: atributiva,
descritiva, interpretativa e dramática. No final daquela minha
reflexão ampliei esta taxonomia propondo uma quinta categoria, a
écfrase metacrítica.
Sem me alongar demasiado sobre este tópico, devo identificar,
ainda que brevemente, cada uma destas subcategorias. Segundo
Sager, a écfrase atributiva implica, basicamente, alusões a obras
de arte ou exibições destas, sem que tal signifique uma descrição
detalhada, como ocorre em Goya (1996), de Alfonso Plou, onde
podemos reconhecer quadros do pintor espanhol que emergem no
tecido fílmico como tableaux vivants (Sager, 2006: 46). Por seu
turno, a descritiva tem lugar quando as imagens são discutidas,
descritas, ou objeto de reflexão mais extensa, como sucede na
cena de Rembrandt (1936), de Alexander Korda, que ficaria
conhecida como A ronda da noite, onde as personagens
espectadoras apontam para alguns detalhes da imagem, enquanto
a câmara os exibe através de planos de pormenor (idem: 51). Já a
interpretativa, embora próxima da anterior, distingue-se dela em
grau, visto introduzir uma clara dimensão de autorreflexividade
(idem: 52-59). A dramática amplia a autorreflexividade da anterior,
através da dramatização de cenas pictóricas. Exemplo desta
subcategoria será A Zed and Two Noughts (1985), de Peter
Greenaway, onde este realizador dá vida ao quadro A aula de
música (c. 1662-65), de Vermeer, através do movimento e do som
(idem: 64). Já no âmbito da minha contribuição para esta reflexão,
aponto uma quinta subcategoria, a écfrase metacrítica, a qual
ocorre sempre que a animização do signo visual é impulsionada
por um texto crítico, como sucede em O moinho e a cruz, de Lech
Majewski, que é concebido a partir do ensaio de Michael Francis
Gibson intitulado The Mill and the Cross, o qual teve como impulso
o quadro O caminho para o Calvário, de Brueghel, o Velho (Avelar,
2016: 230-247) (cf. figura 3).
Assim se pode sintetizar a presença desta estratégia no texto
fílmico, e as diferentes camadas e estratégias de recuperação
pictórica que nele podem emergir. Ora, quando a poesia interpela o
texto fílmico, através dela, é toda uma complexificação,
eventualmente opacidade, do diálogo intertextual que se impõe. De
modo a desvendar essa opacidade, distingamos com clareza,
através de exemplos poéticos, os solos onde, neste domínio,
operam a descrição e a écfrase.
Devido ao predomínio que nele assume a descrição, o poema
«Travel Film, in Technicolor», de Harry Brown, pode ajudar a
esclarecer estas duas estratégias. Nestes versos do poeta e
argumentista norte-americano, a descrição prevalece através de
um discurso em que o sujeito se assume como uma espécie de
cicerone, conduzindo o espectador numa viagem — «We take you
to Pendragonia» —, introduzindo cada segmento (plano) com um
registo técnico, simultaneamente pedagógico — «See in this close-
up how tightly he holds the girl to him». Em seguida, cada estrofe
coincide com um ponto de vista cinematograficamente distinto —
«This panorama / Reveals beyond the haycocks the guardian
mountains», «This long shot / Shows us an antique temple», «This
close shot / Presents a policeman in the busy metropolis» (French
e Wlaschin, 1993: 363-364). Com efeito, apenas nestes últimos
exemplos surge a écfrase, isto é, a descrição do signo visual que
pode coincidir com um plano — frame — tableau. Esta é, todavia,
uma presença breve, fugaz, marcada por um sincretismo evocador
da tradição epigramática que mencionei no capítulo anterior
quando delineei as diferentes formulações ecfrásticas na
Antiguidade Clássica.
Antes de sinalizar mais alguns aspetos associados a esta
tradição e que são suscetíveis de a ampliar, convoco um caso
singular deste diálogo com o plano, «Bresson’s Movies», do poeta
americano Robert Creeley. Este poema que se inicia com uma
écfrase de um plano de um filme de Bresson (Quatro noites de um
sonhador), parafraseando-o como se de um quadro se tratasse,
transita para outro (Lancelote do Lago), retoma aquela estratégia e
conclui com um axioma tão querido a Wilde: a vida imita a arte
(idem: 271). A sucessão ecfrástica acaba, assim, por produzir uma
sequência narrativa.
Retomando o poema de Harry Brown, importa referir que, devido
ao seu caráter radicalmente sincrético — uma mera identificação
do objeto/plano, esta écfrase evocará a acima mencionada
estratégia epigramática; algo de semelhante, dir-se-á, aos
intertítulos identificadores/separadores do cinema mudo. Por fim,
este espaço utopicamente ficcionado em «Travel Film, in
Technicolor» é denegado quando a realidade se interpõe e se
impõe: «The cameraman’s hands are tired, his feeling for angles /
Strained, his provisionary visa quite expired, / The producer’s
budget exhausted, the lenses blurred» (idem: 364). É, portanto, um
processo descritivo que acaba por predominar neste poema.
A tradição ecfrástica, na sua vertente epigramática, ecoa
igualmente em «Film Revival: The Tales of Hoffmann», do poeta e
historiador de dupla nacionalidade — britânica e norte-americana
— Robert Conquest. Cito este poema devido à singularidade da
estratégia de enunciação que ele exibe: um registo (montagem)
elíptico que evidencia fragmentos pelo poeta considerados
relevantes para a captação da atmosfera singular de The Tales of
Hoffmann, o filme de 1951 de Michael Powell e Emeric
Pressburger sobre a ópera de Jacques Offenbach. Regressarei
mais adiante aos ecos da montagem na prosódia através da
poesia de Tony Harrison, para já proponho-lhe a leitura de alguns
versos que evidenciam a montagem/prosódia sincopada de «Film
Revival: The Tales of Hoffmann»: «Occasionally obsession /
Comes to its flower, grip and shine / From the soundtrack and
screen. // Light sheer to the glazed dark limbs and the smooth pool.
// Integrities of the automatic voice. // Florid, impenetrable Venice. //
In superfluity of magic a single note / Shatters the glass jewels. A
dancer’s arm / Makes a gesture that is love: and art» (idem: 307).
Encontramos um exemplo da coabitação entre descrição e
écfrase em «Double Sonnet for Mickey», um texto de Gerald Burns
sobre Kiss Me Deadly, um filme de 1955, de Robert Aldrich,
hipertexto ou hiperopus do romance homónimo de Mickey Spillane.
O texto evolui de uma tonalidade de prosa poética inicial, onde a
descrição coexiste com uma leitura analítica, porventura crítica
(«The plot may be said to turn on a book of Christina Rossetti
poems but to me it is that pause, a careless sneer on Meeker’s
face as he not only does not answer but sees no reason to get
mad», idem: 310), para, através de uma espécie de dissolve
textual, dar lugar a um registo formalmente poético — verso livre,
mais precisamente; será aqui que a écfrase emerge num solo
entre, híbrido, devido à enunciação de um léxico cinematográfico
— «two-dollar / framed people», «snapshot», «castings», onde
ressoam outros discursos artísticos como a escultura — «a Rodin»
—, ou a cultura clássica — «the Sphynx» (idem: 311).
Outra circunstância de encontro entre dois media, hipotextual,
ocorre quando o filme é devedor do registo pictórico, como sucede
em Hard Times (1975), de Walter Hill. Neste caso, em que o
realizador convoca a pintura de Edward Hopper para a sua
composição, uma das soluções poéticas para a sua representação
passará pela enunciação elíptica e quase epigramática da
suspensão temporal que a eles se associa, na perspetiva
formulada por Lessing, claro. Exemplo dessa estratégia é o registo
sincopado, como referi, elíptico, denegando a pontuação, e
sustentado por vazios espaciais, de «Homage to Walter Hill’s Hard
Times», de William David Sherman. A sua transcrição integral
exige-se para que essa estratégia de diálogo seja percetível:

Lonely men in lonely rooms


City men         on the

Cutting edge                       of the fringe

Down town

Shades
on the dark horizon —
Romantics
in Buddha’s palm
of no vision

Alone         with the consciousness


of
how it smells
where men de-gut oysters
for a wage

foghorns in the Southern rivers of America night

Cajun caged bears


& neon cafés on the backroads

A woman’s haunted eyes look out upon the scene


But it does not take her in.

[Idem: 328]

«Homage to Walter Hill’s Hard Times» evidencia o facto de a


presença do texto na página, a sua mancha, as interrupções,
elipses, hiatos, e saltos também, ser algo que não se pode elidir na
sua leitura. Exige-se, aliás, ao leitor que esteja atento a essas
dimensões, pois a ele compete proceder à montagem interior que
é o processo de leitura.
Antes de prosseguir para outra vertente do diálogo entre a
palavra e a imagem (em movimento) suscitada pelo cinema, devo
lembrar um poema que revela pontos de contacto com o texto que
acabo de referir: a parte 4 de «Waking in the Dark», de Adrienne
Rich, sobre Olympia, o célebre e polémico filme de Leni
Riefenstahl. Uma vez mais sugiro-lhe a leitura integral do poema:
Clarity,
spray
blinding and purging

spears of sun striking the water

the bodies riding the air

like gliders

the bodies in slow motion

falling
into the pool
at the Berlin Olympics
control; loss of control

the bodies rising


arching back to the tower
time reeling backward

clarity of open air


before the dark chambers
with the shower-heads

the bodies falling again


freely

faster than light


the water opening
like air
like realization

A woman made this film


against

the law
of gravity

[Rich, 1984: 154]


Tal como no caso de William David Sherman, também aqui o
poema sugere, na sua organização espacial, a evidência das
imagens fílmicas. Algo de singular aqui se evidencia, porém; refiro-
me à suspensão prosódica — o fragmento exposto através da
elipse — que espelha (reproduz), no solo da palavra, o movimento
dos corpos no espaço fílmico.
Porque a leitura não é neutra, a suspensão dos corpos no
espaço pode não ser confinada a um solo estético, assumindo, em
contrapartida, uma dimensão ominosa, como sucede noutro
poema sobre este mesmo filme, «On Seeing the Leni Riefenstahl
Film of the 1936 Olympic Games», de Roy Fuller. Distingue-se este
olhar do poeta inglês por representar não ser um movimento no
espaço mas sim no tempo, prenúncio da guerra que está para vir:
«Art merely lets these tenants of a star / Run once again with
legendary ease / Across the screen and years towards the war /
Which lay in wait for them like a disease» (French e Wlaschin,
1993: 293).
Um dos traços singulares neste encontro entre a palavra e a
imagem em movimento é a importância que assume a dimensão
técnica, nomeadamente a câmara, no processo de criação do
objeto estético. De Baudelaire a Benjamin e Arnheim, é a
pertinência de toda uma elaboração teórica, inicialmente suscitada
pela fotografia, que aqui se reconhece. A ela se deve também a
construção de uma gramática cinematográfica. Será exatamente
esta que prevalece em «Documentary», um poema do californiano
Joseph Stroud.
O sujeito/poeta configura-se aqui como simulacro de um
realizador, dirigindo todos os movimentos da câmara e as
diferentes estratégias técnicas necessárias para obter um
determinado efeito — «Bring the camera closer in. Focus / On the
burning ghat. / […] / Zero in on the head — / I want you to catch the
skull when it bursts. / Pan down the torso / […] / The dolly back for
the scenic shot / […] / Filter the lens / […] / Now zoom down / […] /
Then back to the panorama, the vista» (idem: 310-311). O poema
invade um solo exógeno, vampiriza-o, assim se impondo como
simulacro. Algo de idêntico ocorre, em «La muerte en Beverly
Hills», do poeta catalão Pere Gimferrer, e em «The
Cinematographers, West Cedar Street», do poeta norte-americano
L. E. Sissman.
Dividido em oito secções, a última das quais designada «Elegía»,
La muerte en Beverly Hills» simula um cenário cinematográfico
(Persin, 1997: 187). Em determinado momento, o sujeito de
enunciação configura-se como doppelgänger, espectador e
protagonista que, por seu turno, imerge no cenário fílmico, cuja
atmosfera é devedora do film noir: «Los asesinos llevan zapatos de
charol. Fuman rubio, sonríen. Disparan» (idem: 191). Por seu
turno, «The Cinematographers, West Cedar Street» evoca o filme
em que Michael Roemer participa, qual expressão autobiográfica
em que o simulacro da realidade predomina; a câmara torna-se o
perseguidor: «There is a lion in the streets as I / Run from the
travelling camera framing me / In its long eye. Under a sulphur sky /
I lead my flight from men I cannot see: // The chase to be shot
latter» (French e Wlaschin, 1993: 306). Todo o poema convoca um
léxico fílmico que amplia a compreensão (interpretação) da
especificidade da circunstância em causa — «scurrying
perspectives», «vanishing points», «Cut», «Take two», «Take ten»,
«long lenses».
A justaposição de pontos de vista — sujeito/poeta e câmara —
ocorre também, embora de uma forma diferente, em «Dédée d’
Anvers», de Robert Conquest. «Dédée d’ Anvers» evidencia,
desde logo, uma radical anacronia, já que, através de um plano
formal — o soneto —, convoca uma forma que o Modernismo terá
rasurado, enquanto interpela não apenas uma forma de expressão
artística consagrada pela modernidade, como toma por objeto um
filme da Nouvelle Vague francesa.
Encapsulada na estrutura do soneto, a descrição assimila a
gramática cinematográfica ao reproduzir um plano-sequência do
filme homónimo de Yves Allégret, com Simone Signoret como
protagonista. Simultaneamente, oferece uma leitura algo intimista
da personagem protagonizada por esta então jovem atriz, sem,
todavia, a nomear. Refira-se que o ponto de vista é o mecânico, da
câmara: «Around the iron bed the camera moves / Or follows
where, across the fog-wet stone / She and her life, like one
automaton, / Run to exhaustion down the usual grooves. / […] /
And in the flicker of a lens or eye / Forms to one microcosm of all
love / A woman’s body and her fantasy» (idem: 305-306). É o
processo narrativo que, uma vez mais, predomina, embora o olhar
não se confine à reprodução do objeto pela palavra, penetrando no
mistério que nele se indicia: uma breve écfrase no derradeiro verso
que funciona como uma espécie de punctum. A distinção entre
artes do tempo e do espaço parece, assim, ser superada pela
poesia. Será na tensão entre estes dois polos que o poema
concebe o seu ponto de vista próprio.
Tal não significa, porém, que a ênfase não possa despontar a
partir de um deles apenas. Veja-se, por exemplo — qual eco do
Laocoonte —, a importância que pode assumir a focalização no
instante. Para ilustrar esta dimensão recorro a «Shapes of
Things», do poeta alemão Michael Hofmann, que, todavia, escreve
em língua inglesa. «Shapes of Things» evoca o filme apocalíptico
de Stanley Kramer, On the Beach (1959), recaindo o seu enfoque
num momento de estase, aquele em que o olhar — ponto de vista
— desliza — travelling? —, com decoro, para as ominosas
flutuações no espaço: «I saw the rare Ava Gardner, the last woman
alive, / modelling her check workshirts in On the Beach. / As the
wind drove the heavy clouds of fallout / towards them, there were
no ugly scenes of anarchy — // only revivalist preachers and the
Salvation Army band…» (idem: 317).
Reação diferente ao legado teórico de Lessing, será «Laberintos
de Luz», de Juan Carlos Mestre. Poeta e artista visual — gravador
—, Mestre subverte a dicotomia lessinguiana neste texto, ao con-
fundir dois media distintos: a alteridade — fotografia — assimila,
assume, então, a identidade poética, o que despoletará uma
singular redescoberta do real: «Escribes con la luz: fotografías. /
Es otro resplandro distinto del lenguaje: / la ciudad, el desnudo, las
frases detenidas, / el alma de la luz en un instante. / La luz se hace
escritura, doble luz, / aparencia» (Magalhães, 1997: 464). Já o
poeta britânico Douglas Dunn leva ao limite esta hospitalidade face
ao Outro, através da criação de um subgénero onde a hibridez,
desde logo, coabita na própria designação: «Poem-films». «Valerio
— A poem-film, starring Anthony Quinn» e «La Route — A poem-
film, starring Jean-Paul Belmondo» (idem: 207 e 223) são dois
poemas seus que exemplificam este subgénero.
Como traço formal distintivo destes textos — deste subgénero?
— surge a prevalência da descrição que, através do olhar do
sujeito poético, reproduz aquilo que este considera ser relevante
na sequência fílmica. Com efeito, o poeta inglês Tony Harrison, em
cuja obra o diálogo entre a palavra e a imagem é algo de nuclear,
canoniza esse subgénero ao inserir a expressão num dos seus
livros: The Shadow of Hiroshima and Other Film/Poems. Antes de
observarmos um exemplo deste subgénero em Tony Harrison,
devemos atentar em algo ainda não mencionado, o agon entre
palavra e imagem.
Na introdução a esta obra, o realizador Peter Symes centra-se
na dimensão conflitual que pode estar subjacente ao (des)encontro
entre os dois media. Recordo que esta reflexão tem como objeto o
processo colaborativo entre poeta e realizador. Escreve Symes:
«[…] we became aware of some of the problems the process
created. The powerful metre often fought with the picture cuts. The
verbal imagery sometimes cancelled out the visual, and vice versa.
Slowly, as editing progressed, both we on the film side, and Tony in
his room next door to the edit-suite, began to find solutions to
these. We developed an obsessive way of working, which involved
rewriting and recutting on a grand scale» (Harrison, 1995: xii-xiii).
«Mimmo Perrella non è piu» ilustra a singularidade do objeto —
subgénero poema-guião — que emerge deste processo e do
subgénero em que ele se inscreve:

Bay of Naples Vesuvius and Naples, and the shore,


and a sky that, unpolluted, would be blue.
Bay of Naples Mimmo Perrella non è piu.
Mimmo Perrella is no more.
Cemetery gates: Mimmo Perrella non è piu.
Tony Harrison Mimmo Perrella is no more.
reads from This gate his body will be carried through
Death notice he walked past into work not days before.
Mimmo Perrella non è piu.
Let us follow Mimmo Perrella’s fate,
or, rather, not one single fate but two,
that of the body brought in through this gate
and put under marble in a dark, dry hole
and put under marble in a dark, dry hole
where Vesuvius’s soil makes it like leather,
where Vesuvius’s soil makes it like leather,
and that other fate, meanwhile, of Mimmo’s soul
[Idem: 81]

Na sua interpelação-limite do texto fílmico, o poema de Tony


Harrison revela duas dimensões: no plano expressivo, o pathos
inerente à intensidade da imagem, reconhecível, aliás, nos versos
de Luís Filipe Sarmento — «Imagem: poder-devastação, / captura
o instante irrepetível / de uma história sinistra» (Sarmento, 2015:
69); no plano estrutural, a radical porosidade, devido à absorção
de estratégias de enunciação que, até então, se situavam sempre
num solo de alteridade. A hibridez que Arnheim identificava como
endógena ao universo do cinema surge assim como traço do texto
poético que o convoca.
Devo regressar ainda ao tópico da captação do instante para
sinalizar outro poema que, à semelhança de Hofmann, coloca no
seu cerne este traço. Faço-o porque ele permite desvendar uma
outra dimensão, a da, acima mencionada, hibridez. Refiro-me a
«Turkish Delight», do poeta britânico Charles Boyle, sobre El Cid
(1961), de Anthony Mann, com Charlton Heston. Tal como na
altura assinalei, também este texto não se confina à hipotipose,
desvendando os índices que a especificidade da gramática fílmica
possibilita; neste caso, o poder indiciador da banda sonora, como
se pode observar nos versos finais: «El Cid is strapped on his
horse / and sent galloping off. His enemies don’t know// he’s dead,
but we do, but the wistful, / almost playful tremolos of music / fading
and the final pan / across silky dunes suggest an afterlife» (French
e Wlaschin, 1993: 318; itálico meu). Se recordarmos as objeções
feitas por Rudolf Arnheim, em particular as que se prendem com a
hibridez que constituiria o solo do texto fílmico, constatamos que
será exatamente nessa hibridez, em particular no seu poder
indiciador, que a poesia identifica as virtualidades estéticas da
narrativa fílmica; neste caso, as virtualidades estéticas e
expressivas decorrentes da música — banda sonora. Cito, uma
vez mais, Arnheim, embora contra ele próprio: «Music transmits
[…] ideas […] more purely and forcefully, but its interpretation […]
is also more abstract […]» (Arnheim, 1957: 216). Eis o poder
sugestivo da música em ação.
A hibridez constitui, afinal, um impulso ampliador da enunciação
para o texto poético que, pelo facto de não estar obrigado à
sistematização do discurso crítico, pode confinar a sua perceção a
um só tópico, ou até a uma vertente desse tópico. E a voz, a sua
melodia, pode ser uma dessas vertentes. Menciono apenas dois
poemas — «Final Farewell» e «St. Agne’s Eve» — em que a voz
se torna objeto primeiro da enunciação. Em «Final Farewell», o
poeta norte-americano Tom Clark celebra um segmento climático
da narrativa fílmica, não pela descrição da cena mas pelas
palavras da personagem, por ele mencionada através do próprio
nome: «Great moment in Blade Runner where Roy / Batty is
expiring, and talks about how everything / he’s seen will die with
him — / ships on fire off the shoulder of Orion / sea-beams
glittering before the Tannhauser gates» (idem: 330).
É ainda a voz, desta feita como simuladora/substituta da
descrição através da linguagem vernacular, que emerge em «St.
Agne’s Eve», de Kenneth Fearing. No ensaio intitulado Jewish
Gangsters of Modern Literature, Rachel Rubin identifica o objeto do
poema — um gangster judeu chamado Louie Glatz — para, em
seguida, apontar a convergência por ele realizada entre som (a
voz) e narrativa: «[…] vernacular language and violence merge on
the page as they do on the stage in Bullets over Broadway […]»
(Rubin, 2000: 2). Segue-se a citação dos versos: «But dangerous,
handsome, cross-eyed Louie the rat // Spoke with his gat / Rat-a-
tat-tat / Rat-a-tat-tat / And Dolan was buried as quickly as possible»
(French e Wlaschin, 1993: 342). Este poema coloca assim uma
questão interessante: será ainda écfrase aquela estratégia de
representação em que, em vez da reprodução visual, se opta por
uma ênfase na simulação fónica, na qual radica a enargeia? E
decorrente desta questão uma outra pode ser deduzida: será que a
coabitação de media no cinema permite uma revisão, e
consequente ampliação, da écfrase como nos habituámos a
identificá-la ao longo do tempo?
Assinalo ainda outra modalidade de incorporação da música na
écfrase fílmica. Em «Stakeout on High Street», do poeta inglês
Adrian Henri, um dos chamados «Liverpool poets», sobre o filme
anticomunista de Samuel Fuller Pickup on South Street (1953), a
Guerra Fria evidencia-se num olhar que evoca a cultura
iconográfica pop: «his hard, cruel lips meet her full red ones / the
blond sneering hoodlum / the brunette in the lownecked dress //
streetlamps over the railwaybridge / tasting her lipstick all the way
home» (idem: 308). No entanto, a écfrase fílmica é, de alguma
forma, interrompida quando irrompem no texto alguns versos em
itálico que assim criam um efeito de fuga. Ora, estas frases
pertencem a uma canção de sucesso na década de 1940, Again,
de Dorcas Cochran e Lionel Newman, que, em Road House
(1948), de Jean Negulesco, foi cantada por Ida Lupino (idem: 376).
Deste modo, a écfrase é inviamente ampliada através da
convocação de outro media, ao mesmo tempo que o diálogo com o
filme exige uma presença da memória da História do Cinema e dos
próprios encontros que, neste âmbito, os filmes vão realizando
entre si; e assim se impõe a presença da memória e uma
configuração do poeta como crítico, ou, pelo menos, como detentor
de um saber neste domínio. Ainda que não se substituindo ao
discurso crítico, o texto poético passa, apesar de tudo, por uma
memória naquele solo.
Mesmo neste âmbito, quando, ainda que subliminarmente, evoca
a tradição pictórica, o encontro entre a palavra e a imagem em
movimento pode perturbar o conceito de écfrase. Desvendo um
exemplo desta perturbação naquilo que poderemos considerar
uma descrição indireta através das subtilezas da designação de
um género pictórico, «still life» ou «nature dead», tradução literal
de «natureza-morta», em «Harpo Marx», dessa figura radical do
confessionalismo norte-americano que é Robert Lowell: «Harpo,
your motion picture / is still life unchanging, not nature dead»
(idem: 190). Exibe-se aqui um jogo irónico entre o movimento,
inerente ao filme, e a suspensão, próprio do silêncio do ator
endógeno à célebre máscara que o seu rosto é. Mas a complexa e
polifónica especificidade do encontro entre a palavra e a imagem
não se pode reduzir à estratégia ecfrástica, nomeadamente
quando na memória persiste apenas um fantasma desse encontro,
e o filme é «um universo de passagens bruscas, mesmo
escarpadas, que vão de um estado de total adesão a um imediato
esquecimento» (Fernandes Jorge et al., 2007: 43), como assim o
entende João Miguel Fernandes Jorge. Não pretendendo desviar-
me do percurso analítico acima delineado, não posso deixar de
mencionar a fonte onde colhi esta declaração do autor de O
roubador de água; refiro-me a A Palavra, livro cujo título lembra o
filme homónimo de Carl Theodor Dreyer.
Naquela obra prefaciada por João Bénard da Costa, os textos —
poéticos, críticos, reflexivos — de João Miguel Fernandes Jorge
coabitam com desenhos de José Loureiro e fotografias de Rita
Azevedo Gomes, num jogo polifónico de encontros, mnemosine e
fuga, pontuado por fragmentos (frames) do filme de Dreyer que, de
uma forma aparentemente aleatória, despontam na(s) página(s).
Contrariamente aos exemplos que tenho vindo a evocar, nos quais
os referentes visuais são interpelados pelo texto poético na sua
globalidade ou através de vertentes suas — a música ou a voz, por
exemplo —, este livro exige ao leitor que, através das diferentes
fugas textuais ou visuais, vá tomando consciência da pluralidade
de sentidos indiciadas por essas fugas; todas elas, claro,
suscitadas pelo texto fílmico, A Palavra, de Dreyer.
Dos instantes biobibliográficos despontando nas memórias de
Fernandes Jorge — onde se regista também a polifonia, desta feita
ancorada na poesia, na evocação confessional e no discurso
crítico — à semântica visual de Rita Azevedo Gomes, e ao
sincretismo de José Loureiro, é uma meditação profunda sobre o
ser e o transcendente que se desvenda; João Bénard da Costa
regista com estas palavras o que o seu encontro com este
objeto/livro nele suscitou: «Sinto um grande silêncio e uma luz
cega-me. Não sei se é o silêncio da teorba (GERTRUD, UMA
ÚLTIMA IMAGEM) se é a luminosidade do lustre, ou da
‘circunstância quietante do lustre’» (idem: 8).
Seja através de uma estratégia sincrética, seja sequenciando
quadros (frames) fílmicos; seja pela interferência da montagem —
a elipse — ou de outras componentes da gramática fílmica — o
dissolve — na prosódia, seja levando ao limite a mestiçagem
estética através da reconfiguração de um género — o film-poem;
seja através da simulação fónica da voz ou do som, seja através
de uma reprodução visual marcada por outros solos estéticos — a
pintura ou a escultura; seja através da exibição do rosto como
máscara, é toda uma perturbação e consequente uma ampliação
do conceito de écfrase que se realiza neste encontro entre a
palavra e a imagem em movimento. E essa ampliação decorre da
hibridez que tanta disforia causara a Arnheim quando recorrera ao
legado teórico de Lessing para melhor compreender a novidade do
objeto que então emergia.
Num dos polos que o cinema parecia escolher para conceber a
sua identidade, residia essa arte do espaço que é a pintura. Talvez
por isso tenha razão Thomas Elsaesser quando interrogou
retoricamente: «What better place than the museum to confront the
cinema once more with itself and its history?» (Ernst, 2003: 41). Na
sequência desta interrogação, proponho-lhe que partamos ao
encontro do Museu para vermos de que forma ele abriu uma fenda
na tradição poética, assim lhe possibilitando o percurso por novos
solos estéticos.
4. Este aspeto será igualmente explicitado e desenvolvido no capítulo seguinte dedicado ao
tópico do Museu.

5. À relevância deste aspeto na obra de Vasco Graça Moura regressarei no Epílogo.

6. «História da Arte da Antiguidade».

7. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica.

8. Não é displicente o facto de Auden ter então escrito versos e comentários em prosa para
cinco documentários: Coal Face (1935), Night Mail (1936), The Way to the Sea (1937), The
Londoners (1939) e God’s Chillun (1939).
9. «El movimiento Dadá ha planteado un antiarte; Le Corbusier, una antiarquitectura; el
escritor francés Robbe-Grillet y la nouvelle vague, una antinovela» (Praz, 2007: 189).
3. O Museu
Num breve texto sobre Rembrandt, Marcel Proust declara que os
museus são casas que unicamente acolhem pensamentos, e que
as pessoas mais atentas que percorrem as suas salas sabem que
esses quadros que se sucedem uns aos outos são exatamente
isso, pensamentos (Proust, 2016: 29). Recorda Proust algo de
essencial, o instante onde o estético se insinua é também um
embraiador da meditação.
Anos mais tarde, em 1947, André Malraux lembrou, em O museu
imaginário, uma outra evidência: «O papel do museu na nossa
relação com as obras de arte é tão considerável que temos
dificuldade em pensar que ele não existe, nunca existiu, onde a
civilização da Europa moderna é ou foi ignorada; e que existe entre
nós há menos de dois séculos» (Malraux, 1963 : 11). Ou seja, esta
instituição que é algo de recente — «O século XIX viveu dos
museus; ainda vivemos deles […]» (idem) — determinou uma
mudança de paradigma na nossa interpelação do objeto artístico.
A citação é extensa mas impõe-se pelo modo como clarifica essa
mudança:

[…] esquecemos que [os Museus] impuseram ao espectador


uma relação totalmente nova com a obra de arte. Contribuíram
para libertar da sua função as obras de arte que reuniam, para
transformar em quadros até mesmo os retratos. Se o busto de
César, a estátua equestre de Carlos Quinto, ainda são César e
Carlos Quinto, o duque de Olivares é simplesmente Velásquez.
Que nos importa a identidade do Homem do Capacete, ou do
Homem da Luva? Chamam-se Rembrandt e Ticciano. O retrato
começa por deixar de ser o retrato de alguém. Até ao século XIX,
todas as obras de arte eram a imagem de algo que existia ou não
existia, antes de serem obras de arte. Só aos olhos do pintor a
pintura era pintura; e, muitas vezes, era também poesia. E o
museu suprime de quase todos os retratos (mesmo sendo eles
de um sonho), quase todos os modelos, ao mesmo tempo que
extirpa a função às obras de arte: não reconhece Paládio, nem
santo, nem Cristo, nem objecto de veneração, de semelhança, de
imaginação, de decoração, de posse; mas apenas imagens de
coisas, diferentes das próprias coisas, e retirando desta diferença
específica a sua razão de ser. O museu é um confronto de
metamorfoses. [Malraux, 1963: 11-12]

Diferentes dimensões, importantes para a reflexão desenvolvida


ao longo destas páginas, devem ser sinalizadas a propósito do
Museu: a sua relevância, ainda que subconsciente, para uma
conceção moderna da arte; a sua função didática na educação
estética do olhar daqueles que o visitam; o seu impacto nos
criadores (pintores, poetas, et al.) que por ali passam, algo que
Cézanne sintetizou na declaração: «o artista, no Louvre, acaba por
aprender a pensar» (Faure, 2012: 107); a forma como a própria
conceção daquilo que a arte é se tem alterado ao longo do tempo.
O poeta norte-americano Lawrence Ferlinghetti convoca esta
última dimensão em When I Look at Pictures: «Monet never knew /
he was painting his ‘Lilies’ for / a lady from the Chicago Art Institute
/ who went to France and filmed / today’s lilies / by the ‘Bridge at
Giverny’ / a leaf afloat among them» (Ferlinghetti, 1990: 20).
O impacto estético que ocorre neste espaço revela-se, deste
modo, indissociável de um impulso para a meditação; algo que não
se confina ao artista mencionado por Cézanne. Com efeito, não
podemos esquecer a banalidade democrática que constitui a
presença do Museu no quotidiano das sociedades abertas e
liberais como aquela em que vivemos. Refiro banalidade
democrática não num sentido pejorativo mas antes numa intenção
celebratória desse algo de grandioso que é a banalidade no
quotidiano das sociedades livres; algo que Tocqueville prenunciou.
Veremos mais adiante como estas palavras de Malraux se revelam
particularmente relevantes num poema de W. H. Auden, intitulado
«History». Para já proponho-lhe um recuo no tempo ao encontro
das origens desta tradição de diálogo entre a palavra e a imagem
suscitado pelo Museu. E para o observar, temos necessariamente
de lembrar três poetas da chamada segunda geração romântica
inglesa, Percy B. Shelley, Lord Byron e John Keats.

3.1. Quando os românticos descobrem o Museu

Em «On the Medusa of Leonardo da Vinci», um poema em que,


como o próprio título indica, Shelley dialoga com um quadro então
atribuído a Leonardo da Vinci, vemo-lo contestar a perenidade
comummente atribuída a artes como a escultura, a arquitetura, a
pintura, enfim, as artes visuais — temática que, como veremos
adiante, será central noutro poema seu, «Ozymandias». Contudo,
para compreendermos o contexto em que esta sua meditação se
configura, devemos evocar um poema coevo, «Ode on a Grecian
Urn», de John Keats, e uma entidade que então vivia os seus
primeiros anos, o Museu Britânico, que havia sido fundado em
meados do século XVIII.
Mencionei no início deste capítulo a importância social, cultural,
estética e didática que o Museu assume no século XIX. Ora, «Ode
on a Grecian Urn» é um devedor particular desta instituição. Em
1816, o Museu Britânico adquiriu a coleção de Lord Elgin, os
chamados Elgin Marbles (cf. figura 4), um conjunto de fragmentos
do Pártenon por ele trazidos da Grécia no início do século. Esta
exposição teria um profundo impacto no universo cultural britânico,
desencadeando reações antagónicas que oscilaram entre o mais
entusiástico deslumbramento e a mais radical deceção. Assumindo
este último partido, Byron chamar-lhes-ia «Phidian freaks». A
opinião de Byron não deixa de ser curiosa, já que, embora não
tivesse manifestado interesse pela écfrase (registam-se apenas
um passo no canto IV de Childe Harold’s Pilgrimage, e um poema
sobre um busto da autoria do seu contemporâneo Antonio
Canova), sempre expressara uma profunda admiração pela
escultura e considerava o ideal de beleza grego um autêntico
arquétipo a este nível.
Regressemos a Keats. Em 1817, um ano, portanto, após a
abertura da exposição, impressionado por esses artefactos
clássicos, Keats escreve «On Seeing the Elgin Marbles», um
soneto onde revela quanto esses objetos o impressionaram.
Apesar da fragmentária perenidade daqueles signos, o poeta não
deixa de se sentir confrontado com a sua própria efemeridade,
com a sua própria mortalidade: «[…] each imagin’d pinnacle and
steep / Of godlike hardship, tells me I must die / Like a sick Eagle
looking at the sky» (Garrod, 1956: 376). Essa impressão não
significa, porém, deslumbramento. Comecemos por atentar numa
palavra, «imagin’d». Porque de fragmentos se trata, a
recomposição do objeto, no seu conjunto, só será viável através da
imaginação do sujeito. Por fim, o efeito que a descoberta nele tem,
é paradoxal — «Such dim-conceived glories of the brain / Bring
round the heart an indescribable feud» (idem); com esta atmosfera
se conclui o poema: «So do these wonders a most dizzy pain, /
That mingles Grecian grandeur with the rude / Wasting of old Time
[…]» (idem). O passado é, deste modo, irrecuperável; dele, e da
sua glória, restam apenas vestígios (uma sombra) pelos artefactos
insinuados e, eventualmente, celebrados: «a shadow of a
magnitude» (idem).
À semelhança do que sucede com «On Seeing the Elgin
Marbles», que desvenda o encontro do poeta com um conjunto de
objetos, a mais celebrada écfrase romântica, «Ode on a Grecian
Urn» (cf. figura 5), deve-se ao impulso motivado por um conjunto
de signos, entre os quais se encontram os Elgin Marbles e alguns
quadros do pintor Claude Lorrain. Não estamos, portanto, perante
a reprodução de um objeto pela palavra, mas sim perante um
simulacro de um encontro com um signo visual10 que o sujeito
interpela, e cujo mistério tenta desvendar:

I
Thou still unravish’d bride of quietness,
Thou foster-child of silence and slow time,
Sylvan historian, who canst thus express
A flowery tale more sweetly than our rhyme:
What leaf-fring’d legend haunts about thy shape
Of deities or mortals, or of both,
In Tempe or the dales of Arcady?
What men or gods are these? What maidens loth?
What mad pursuit? What struggle to escape?
What pipes and timbrels? What wild ecstasy?

II
Heard melodies are sweet, but those unheard
Are sweeter; therefore, ye soft pipes, play on;
Not to the sensual ear, but, more endear’d,
Pipe to the spirit ditties of no tone:
Fair youth, beneath the trees, thou canst not leave
Thy song, nor ever can those trees be bare;
Bold Lover, never, never canst thou kiss,
Though winning near the goal — yet, do not grieve;
She cannot fade, though thou hast not thy bliss,
For ever wilt thou love, and she be fair!

III
Ah, happy, happy boughs! that cannot shed
Your leaves, nor ever bid the Spring adieu;
And, happy melodist, unwearied,
For ever piping songs for ever new;
More happy love! more happy, happy love!
For ever warm and still to be enjoy’d,
For ever panting, and for ever young;
All breathing human passion far above,
That leaves a heart high-sorrowful and cloy’d,
A burning forehead, and a parching tongue.

IV
Who are these coming to the sacrifice?
To what green altar, O mysterious priest,
Lead’st thou that heifer lowing at the skies,
And all her silken flanks with garlands drest?
What little town by river or sea shore,
Or mountain-built with peaceful citadel,
Is emptied of this folk, this pious morn?
And, little town, thy streets for evermore
Will silent be; and not a soul to tell
Why thou art desolate, can e’er return.

V
O Attic shape! Fair attitude! with brede
Of marble men and maidens overwrought,
With forest branches and the trodden weed;
Thou, silent form, dost tease us out of thought,
As doth eternity: Cold Pastoral!
When old age shall this generation waste,
Thou shalt remain, in midst of other woe
Than ours, a friend to man, to whom thou say’st,
“Beauty is truth, truth beauty,” — that is all
Ye know on earth, and all ye need to know.

[Idem: 209-210]

O sujeito de enunciação começa por interpelar o objeto,


dissimulando a sua presença num conjunto de questões a ele
dirigidas. O óbvio silêncio do objeto denuncia o caráter reflexivo
(melancólico) deste discurso: as perguntas sucedem-se,
participando de um processo de interpretação do signo («urn») e
das narrativas que o compõem (as diferentes figuras nele inscritas,
os seus gestos, os eventuais contextos dos quais emergem), em
busca de algo (a verdadeira narrativa?) que desvende o seu
mistério. O sujeito de enunciação parece recusar ao seu poder, o
da enunciação, transferindo-o para o objeto, para as histórias que
ele parece contar. O sujeito simula assim a sua diluição, operando
uma transferência de poder, um processo de transferência definido
por numa carta através da frase «poeta camaleão». Observemo-la.
Impõe-se assim uma breve elipse para convocar segmentos das
cartas onde Keats revela os seus conceitos-base, «negative
capability» e a dramatis persona «camelion poet». Menciono desde
logo a carta por ele escrita a George e Thomas Keats, datada de
21 de dezembro de 1817, onde o conceito de «negative capability»
é por ele inserido no âmbito de uma tradição dramática que tem
em Shakespeare uma expressão primeira: «[…] what quality went
to form a Man of Achievement especially in Literature & which
Shakespeare possessed so enormously — I mean Negative
Capability, that is when man is capable of being in uncertainties,
Mysteries, doubts, without any irritable reaching after fact &
reason» (Abrams, 1993: 831). A máscara participa aqui da
especulação ontológica. Este conceito será ampliado com o de
«camelion poet», exposto numa carta a Richard Woodhouse,
datada de 27 de outubro de 1818:

As to the poetical Character itself, (I mean that sort of which, If I


am any thing, I am a Member; that sort distinguished from the
wordsworthian or egotistical sublime; which is a thing per se and
stands alone) it is not itself — it has no self — it is every thing and
nothing — It has no character — it enjoys light and shade; it lives
in gusto, be it foul or fair, high or low, rich or poor, mean or
elevated — It has as much delight in conceiving an Iago as an
Imogen. What shocks the virtuous philosopher, delights the
camelion Poet. It does no harm from its relish of the dark side of
things any more than from its taste for the bright one; because
they both end in speculation. A Poet is the most unpoetical of any
thing in existence; because he has no Identity — he is continually
in for — and filling some other Body — The Sun, the Moon, the
Sea and Men and Women who are creatures of impulse are
poetical and have about them an unchangeable attribute — the
poet has none; no identity — he is certainly the most unpoetical of
all God’s Creatures. [Idem: 836]

Regressemos ao poema para observar como nele se projetam


estes conceitos. Numa estratégia decorosa, o sujeito prescinde de
revelar as suas «emoções», ou as suas histórias. O objeto surge
então como «historiador» de um passado idealizado, com um
poder de expressão superior ao do poeta («Sylvan historian, who
canst thus express / A flowery tale more sweetly than our rhyme»).
O sujeito inverte o seu estatuto tradicional e simula remeter-se ao
papel de mero leitor, como o ilustram as perguntas que
torrencialmente invadem os últimos seis versos da primeira estrofe.
Será que esta estratégia significa o seu desaparecimento? Quando
reparamos nas perífrases que designam o objeto nos primeiros
versos, de imediato deparamos com uma ênfase em signos que,
contrariamente ao que seria de esperar, enviam para, como diria
Lessing, uma arte do tempo e da (ausência da) verbalização (o
silêncio): o objeto é descrito como se tivesse sido captado pelo
sujeito num espaço temporal entre, esse instante de um (lento —
«slow») fluir do tempo, começando a destacar-se palavras que
enviam para a dimensão verbal que, ainda segundo Lessing, seria
característica do texto e não do objeto artístico. A suspensão
indicia uma tensão: a «noiva» está condenada a sê-lo
eternamente, sem nunca conhecer a consumação do amor. Veja-
se a ironia: na perenidade do objeto, que lhe permite persistir no
tempo, nesse entretanto, reside, simultaneamente, a sua punição.
Este diálogo inicial tem lugar com o objeto no seu conjunto, só
depois se transita para o diálogo com os signos — com as
pequenas narrativas — que ele encerra. À semelhança do que já
observámos no exemplo primeiro do escudo de Aquiles, o texto
assume uma dimensão espacial, apresentada através do «plano
de conjunto», transitando, em seguida, para diferentes zooms, isto
é, para as tais diferentes narrativas. Nestas são reiteradas, ao
longo da segunda e da terceira estrofes, tanto a «dimensão
sonora» (apelando à importância da imaginação, no confronto com
a música verdadeiramente executada) como o amor jamais
consumado. A própria primavera se revela, também ela, pela sua
eternidade, uma punição. O ritual social (estrofe IV), eventualmente
de celebração, é entendido na consequência que advém da sua
suspensão no tempo, a «cidade fantasma». Uma vez mais a ironia
nos interpela: enquanto o vaso grego tem histórias para contar, a
cidade (que todavia só existe na imaginação do poeta) ficará para
sempre em silêncio, sem alguém que conte a sua própria história.
A ironia insinua-se, de novo, no final do poema: «Cold Pastoral»
retoma a perífrase inicial, agora desmontando a euforia do género
(e das fábulas e das atmosferas a ele ligadas) através de «cold».
Até o sublime, expresso na afirmação do penúltimo verso11 — a
prosopopeia final, indiciada nas aspas que parecem conferir a
enunciação ao objeto —, é sabotado pela ironia deste objeto que,
surgindo na afirmação e transmissão de um saber, acaba por se
revelar na disforia inerente à sua própria natureza: a perenidade (a
superação do tempo e da morte) significa suspensão (ausência de
vida). Embora num contexto estético diferente, o do Modernismo,
este paradoxo irónico constitui o núcleo de «Statua», de Giuseppe
Ungaretti; neste caso, é a ironia de uma juventude para sempre
petrificada, de uns lábios que não conhecerão o calor do beijo:
«Gioventù impietrita, / O statua, o statua dell’abisso umano… // Il
grand tumulto dopo tanto viaggio / Corrode uno scoglio / A fiore di
labbra.» (Ungaretti, 1969: 139.)
«Ode on a Grecian Urn» evidencia a problematização da tradição
da écfrase e da produção teórica inaugurada pela modernidade: as
artes do espaço e as artes do tempo. O olhar do poeta é irónico e
distanciado; não se sente deslumbrado pelo Belo, propondo antes
uma reflexão sobre as virtualidades do objeto. Deste modo, Keats
utiliza esta estratégia de representação, não apenas para
recuperar o que se perdeu ou que é de conhecimento limitado
(recorde-se que este é um signo por ele inventado) e para o
transmitir a outrem; ele interroga a natureza da própria écfrase, os
seus limites, as suas virtualidades, nomeadamente no que significa
a capacidade de preservar algo no tempo.
Talvez por tudo isto, «Ode on a Grecian Urn» impôs-se como
ponto de chegada e, simultaneamente, de partida para a
interpelação que o texto poético realiza junto da imagem estética.
Não será por isso difícil reconhecer a sua presença, ainda que
silenciosa, noutros solos artísticos; veja-se, por exemplo, o soneto
intitulado «Vaso grego», do poeta brasileiro Alberto de Oliveira,
texto inserido em Poesias, um livro publicado em pleno
Modernismo (1912). No entanto, a suspensão reside aqui, não na
eventual narrativa que o objeto reproduz, mas no gesto,
ironicamente associado à própria palavra poética: «Era o poeta de
Teos que a suspendia» (Bandeira, 1963: 218). Mas, além disso, o
próprio poeta — Keats —, eventualmente pela denegação da
relevância da sua identidade, como as cartas evidenciam, e a
expressão que ele pediu ao seu amigo Joseph Severn para ser
inscrita na sua pedra tumular reitera — «Here lies one whose
name was writ in water» —, fez dele próprio objeto de interpelação
poética. No longo poema La tumba de Keats, Juan Carlos Mestre
procede exatamente a uma interpelação que lhe é suscitada pela
presença física da campa do poeta inglês.
Ainda antes de transitar para breves observações acerca deste
poema, devo recordar outro, «Scirocco», da autoria da norte-
americana, Jorie Graham, que tendo como impulso o romântico
inglês, se inscreve na interpelação de objetos que funcionam como
correlativos emocionais e/ou estéticos; desta feita, o quarto onde
Keats faleceu em Roma. Qual roteiro pelo espaço urbano, o
poema desvenda, desde logo, o lugar: «In Rome, at 26 / Piazza di
Spagna, / at the foot of a long / flight of / stairs are rooms / let to
Keats // in 1820, / where he died» (Graham, 1983: 8). Segue-se o
deambular pelo espaço acanhado do apartamento com a
parafernália onde se reconhece a assinatura estética, porventura
emocional, do poeta: «The scraps / of paper // on which he wrote /
lines / are kept behind glass, / some yellowing, / some xeroxed or /
mimeographed…» (idem). E quando a tonalidade descritiva — o tal
roteiro — parece prevalecer, Jorie Graham cria um efeito de fuga:
«Outside his window / you can hear the scirocco / working / the
invisible» (idem). Contrariamente ao que se poderia pensar, é
neste efeito de fuga que reside a força de um poema que, mais do
que uma reprodução visual de um espaço, enfatiza algo de
estranho que, todavia, permite conceber uma atmosfera; a
atmosfera de um tempo pretérito que ainda hoje persiste: «There is
Light playing / over the leaves, / over her face, / making her [the
memorial’s / custodian] // abstract, making / her quick / and
strange» (idem: 10). É neste correlativo que o encontro com Keats
se realiza.
Regressemos, então, a La tumba de Keats. Marcado por uma
tonalidade profundamente confessional, o poema explicita, logo no
início, as circunstâncias subjetivas/biográficas a partir das quais a
palavra nasce: «Esto sucede ante la hora izquierda en que mi vida,
/ […] / llama jauría a la verdade y beleza a los puentes
derrumbados» (Mestre, 2007: 9). O percurso textual decorre
assumindo como método a livre associação de ideias que vão
despontando nas deambulações do sujeito.
Embora a torrencialidade de escrita (mais de cem páginas de
verso livre), com os seus inúmeros desdobramentos textuais e
estratégias anafóricas, evoque a catalogação retórica do Whitman
de «Song of Myself», ou, mais perto de nós, as vinhetas históricas
de História do século vinte, de José Gardeazabal, será, todavia,
em horizontes estranhos ao discurso poético, ou seja, em Freud,
que devemos reconhecer o solo onde esta estratégia se move.
Por onde a razão como uma brisa nos levar, escrevia Platão em
A República. Com efeito, em Whitman esse percurso impulsionado
pela razão é identificável na sucessão de personae e mesmo no
confronto entre elas. De igual modo, em Gardeazabal, mesmo
reconhecendo que «um artista do século 20 não tem de ser claro»
(Gardeazabal, 2016: 71), é transparente uma diacronia pontuada
pela História e pelas mutações da perceção do real que nela se
inscrevem, como evidenciam os versos iniciais da secção 63:
«esta teoria foi inventada no parque de um país frio / a visão
clássica cega / diante de partículas tão microscópicas / não
reconhece onde ou a que velocidade avança […]» (idem: 75).
Ora, como acima referi, distinto é o olhar de Juan Carlos Mestre.
Ao designar o espaço que suscita a enunciação, o poeta pode
levar-nos a pensar que la tumba de Keats é um signo a partir do
qual o poeta cria uma écfrase, e, consequentemente, uma reflexão
em torno de uma estética ou de um autor. O poema participaria,
assim, de uma tradição de diálogo textual com a arte funerária que
se afirma como subgénero ecfrástico, como adiante veremos. No
entanto, mais do que essa filiação num subgénero, ele avizinha-se
do legado confessional autobiográfico de «Electra on Azalea
Path», onde Sylvia Plath elabora poeticamente sobre a visita que
fez à campa do pai; um episódio que ela registaria no seu Diário e
que retomaria no romance The Bell Jar.
Com efeito, o poema regista uma sucessão de eventos,
localizando-os num tempo que oscila entre o ontológico — os
versos acima citados —, o cronológico — «Ese día vas a dejar
flores a la tumba de Keats» (Mestre, 2007: 18) —, e o cósmico, a
partir do qual se designa o espaço — «otoño en este cementerio
protestante» (idem: 25) —, onde se encontra também «el cuerpo
amoratado de Percy Bysshe Shelley» (idem: 27). Como
evidenciam os números das páginas destes segmentos, o registo é
interrompido pelas fulgurações textuais que, num registo
confessional, são suscitadas por este percurso no espaço, numa
exposição que, sendo excessiva — as inumeráveis catalogações
—, converge para aquele instante que a experiência artística e
estética desvendou — «Todo el tiempo que viví […] / […] está aquí
en el atardecer de este pájaro pintado por la mano del Giotto»
(idem: 85) — e a escrita registou — «Toda palabra ha sido escrita
para recordar» (idem: 74). Embora Keats tenha desejado elidir do
tempo a sua presença, ao recusar a inscrição do seu nome na
pedra tumular, a palavra concede-lhe a perenidade e, mais
importante do que isso, um impacto na vida de outros,
nomeadamente daqueles que, muitos anos depois, a lembram no
silêncio do seu túmulo: «mi Vaticano es la tumba de John Keats»
(idem: 32), admite Juan Carlos Mestre.
Terminemos, porém, esta breve digressão, e regressemos aos
poetas românticos ingleses. Perguntar-se-á, então, de que modo é
que a écfrase se enquadra nas perspetivas românticas sobre o
diálogo entre as artes e sobre a relação do sujeito (e das artes)
com o tempo?
Como referi, a criação de Museus permitiu um contacto próximo
com muitos objetos que se julgavam perdidos. Embora isso
significasse a consagração de uma perenidade, os estragos
provocados pela ação do tempo (da Natureza, tantas vezes
celebrada numa inocente euforia pelos românticos) que, no limite,
tornaria o objeto num mero fragmento, constituiu motivo de
reflexão e de interrogação, de eventual nostalgia. Com efeito, a
nostalgia face a um passado onde uma ordem original se insinua
pode ser relevante, em particular, num país em que a inscrição de
um discurso cultural ocidental é recente; refiro-me, como é óbvio,
aos Estados Unidos. Observemos como esse discurso pode ali
ecoar através da poesia final de Herman Melville12; observemos a
centralidade do diálogo entre o poema e as artes visuais na sua
abordagem nostálgica dessa realidade perdida.
Durante trinta e quatro anos — entre 1857, data do aparecimento
de The Confidence-Man, e 1891, ano da sua morte —, Herman
Melville publicará apenas quatro livros, todos eles de poesia (a
novela Billy Budd só virá a lume postumamente, em 1924). Antes,
entre 1846 e 1857, escrevera dez livros, todos eles narrativas mais
ou menos influenciadas pelas suas experiências de juventude
vividas no mar. Em finais dos anos 50, amargurado pelo modo
como estas suas mais recentes obras de ficção foram acolhidas,
abandona o romance como atividade primeira e volta-se para a
poesia, um género que até essa altura apenas despontara nas
suas narrativas. No ano da sua morte, vem a lume Timoleon, um
livro de poemas onde evoca a sua viagem pelo Mediterrâneo e
pela Terra Santa em meados do século XIX. Nele, Melville não
busca uma representação literal de espaços ou objetos, mas antes
o registo de atmosferas por eles desencadeadas, e por si anotadas
em Journal up the Straits, o diário mantido durante esta viagem;
por exemplo: «There are glades, & thickets among the ruins —
high up. Thought of Shelley. Truly he got his inspiration here.
Corresponds with his drama & mind. Still majesty, & desolate
grandeur […] Read Keats’ epitaph» (Leyda, 1969: 556). Constata-
se através da leitura deste passo que, para Melville, mais do que
figurar (descrever, e, num limite, simular reproduzir), os espaços e
os objetos sugerem, evocam. Será assim que ele os encara e
projeta na sua poesia. Devido a essa capacidade de sugestão que
se indicia no espaço cultural do Ocidente, este surge como
privilegiado para um discurso que, segundo ele, a América
industrializada da Golden Age, sua contemporânea, não possui; no
berço da civilização ocidental, no arquivo sedimentado pela
História, em objetos, referentes vários, insinua-se um
conhecimento, insinua-se uma sabedoria sobre a qual o poeta
meditará nos seus versos.
O exemplo mais explícito de écfrase no conjunto da produção
poética de Melville é marcado por uma tonalidade subjetiva e
confessional; refiro-me a «The Bench of Boors». Este poema é
inspirado num quadro do pintor seiscentista flamengo David
Teniers, relativamente ao qual Melville nutria uma admiração
particular. Durante a viagem que realizou pela Europa entre
outubro de 1856 e maio do ano seguinte, mais precisamente na
entrada do seu Diário referente ao dia 10 de abril de 1857, o autor
refere ter visto: «[…] charming, Teniers tavern scenes. The
remarkable Teniers effect is produced by first dwarfing, then
deforming humanity» (Robillard, 2000: 342). No manuscrito o poeta
assinala apenas «Suggested by a Flemish Picture», sem explicitar,
portanto, qual o quadro de Teniers a que se refere. Embora não
nomeado, o quadro Boors Carousing participa da atmosfera
dominante no poema. À semelhança de muitos outros poemas de
Timoleon, este é um texto de reduzida extensão, composto por três
estrofes apenas; convido-o, por isso, à sua leitura integral:

In bed I muse on Teniers’ boors,


Embrowned and beery losels all:
A wakeful brain
Elaborates pain:
Within low doors the slugs of boors
Laze and yawn and doze again.

In dreams they doze, the drowsy boors,


Their hazy hovel warm and small:
Thought’s ampler bound
But chill is found:
Within low doors the basking boors
Snugly hug the ember-mound.

Sleepless, I see the slumberous boors,


Their blurred eyes blink, their eyelids fall:
Thought’s eager sight
Aches — overbright!
Within low doors the boozy boors
Cat-naps take in pipe-bowl light.

[Idem: 320-321]

Se tivermos presente o que, num sentido genérico e primordial,


se entende por écfrase — a descrição de um signo artístico —, tal
implica ou a presença física do sujeito (poeta) perante esse signo
— o que, devido a essa presença, implicaria a eventual fidelidade
ao que é observado —, ou a sua recuperação pela memória — o
que poderia significar uma recuperação, logo, um texto mais
difuso, porventura menos fiel ao que, por ele, é reproduzido. Um
poeta brasileiro contemporâneo, Eucanaã Ferraz, assume esse
caráter algo difuso da recuperação textual da memória em «L’Uno
e L’Altro», ao exibir como impulso criativo o derradeiro
constrangimento que é o esquecimento; um esquecimento
porventura devido ao excesso: «já não sei os nomes / tantas
capelas entre as colunatas / de pedras vivas sob muitos sóis /
bandos de anjos em tantos altares / que não me lembro eram
muitos santos / e me confundem os seus mantos púrpuras […]»
(Ferraz, 2016: 41). A memória exibe, por fim, apenas um resto de
amálgamas feito: «não me recordo mas havia a Virgem / com o
seu menino e tantas as visitas / ao seu menino confundi-as todas /
tantas Madonas […]» (idem; itálico meu).
Num regresso a «The Bench of Boors», constata-se que ele
exibe esse constrangimento que envolve o exercício de
recuperação pela memória, enfatizada, quer pelo verbo «muse»,
quer pelo espaço a partir do qual ela emerge. Contudo, a noite
indiciada e o eventual sono não funcionam como sinais de
ausência de lucidez ou de «entorpecimento» do espírito, do
intelecto, da razão.
Numa estratégia irónica de contraste entre o sujeito e a narrativa
presentes no quadro, constata-se que aquele afirma uma lucidez
particular, em confronto com o estado de sonolência das
personagens figuradas — «boors». A lucidez deste sujeito não
designa, porém, a euforia, pois «A wakeful brain / Elaborates
pain»; apesar de deitado, o sujeito está «Sleepless». Ou seja, a
lucidez pode ser dolorosa. Estes versos não participam assim de
uma certa tradição humanista que identifica o conhecimento com a
felicidade. Em contraponto, Melville afirma que o conhecimento e a
lucidez perturbam, deste modo questionando uma certa inocência
(algo que os americanos identificam com o chamado mito
adâmico) que inviabiliza o efetivo conhecimento da realidade.
Circunscritas, por seu turno, a um espaço claustrofobicamente
fechado, as personagens da narrativa captada no quadro, estão
sonolentas («In dreams they doze» ou ainda «their eyelids fall»),
absortas face à realidade, inconscientes; constituem um
contraponto face à lucidez do sujeito. Esta singular écfrase
proporciona uma reflexão sobre ser e parecer, essência e
aparência, lucidez e sua ausência, consciência e inconsciência,
solidão e comunidade.
Importa sinalizar ainda alguns poemas de Herman Melville que,
não participando do registo ecfrástico, denunciam o impacto da
dimensão visual. Destaco «The Night March» e «The Margrave’s
Birthnight», nos quais ele reflete sobre a sua relação com Deus.
Comecemos por «The Night March», onde Melville recupera uma
circunstância visual onde se reconhece, num plano referencial, a
cena histórica coeva, a guerra civil americana — «With banners
furled, and clarions mute, / An army passes in the night; / And
beaming spears and helms salute / The dark with bright»
(Robillard, 2000: 314); e, num diálogo intertextual, a analogia com
«Cavalry Crossing a Ford», um poema de Walt Whitman que tem
igualmente como solo aquele evento histórico: também aqui surge
uma designação espacial («stream»), a importância explícita
(«dark with bright» ou «gleam») ou implícita («night») da cor — «In
silence deep the legions stream, / With open ranks, in order true, /
Over boundless plains they stream and gleam — / No chief in
view!» (idem). No entanto, o último verso perturba aquela que, à
partida, poderia parecer apenas uma écfrase imaginária — «No
chief in view!» —, ao mesmo tempo que o distancia do registo de
reprodução visual que predomina no poema de Whitman.
A estrofe seguinte (a última) reitera a dimensão simbólica antes
meramente indiciada: «Afar, in twinkling distance lost, / (So legends
tell) he lonely wends / And back through all that shining host / His
mandate sends» (idem: 315). Esta última estrofe coloca o texto na
esfera da relação do Homem com o Transcendente, com Deus.
«Army» transforma-se em metáfora de humanidade, e «chief»
numa metáfora de Deus. Refere Laurence Perrine (Perrine, 1962)
que «The Night March» oculta, sob uma hipotética imagem da
guerra, um diálogo de profundidade com a reflexão em torno da
existência divina. Através de um processo de analogias bíblicas, a
estrutura retórica do texto indiciará o silêncio de Deus e o
consequente isolamento do Homem (Abel, 1960: 334-335).
O outro poema que acima mencionei, «The Margrave’s
Birthnight», participa de idêntica atmosfera, acentuando, contudo,
a tonalidade disfórica apenas insinuada em «The Night March».
Com efeito, se, por um lado, a ausência do chefe-anfitrião solicita
um diálogo com este poema, por outro, é dado relevo ao contraste
evento-euforia/natureza e indivíduo (os camponeses exaustos pelo
trabalho) — tristeza; regista-se ainda a inevitabilidade da ausência,
pois o chefe nem na distância se desvenda. Semelhante jogo entre
presenças e ausências constitui um discurso de permanência
neste livro, conhecendo múltiplas figurações.
À semelhança do que sucede com a segunda geração de poetas
românticos ingleses, com a qual, neste âmbito, se registam óbvias
afinidades por parte de Herman Melville, o diálogo entre a palavra
e a imagem suscita um registo confessional através da meditação
ontológica em torno da existência e um registo analítico em torno
de uma reflexão estética, através da qual se questiona a hierarquia
neoclássica entre as diferentes formas de expressão artística, e a
perenidade ou efemeridade como instrumento de valoração das
mesmas. O objeto, preservando o seu estatuto e a sua realidade
própria enquanto microcosmo, funciona, portanto, como impulso,
quer para a meditação poética quer para a meditação sobre o lugar
do eu no mundo; é neste interface, neste lugar entre, nesta in-
betweenness, que o poema radica. Semelhante diálogo não
significa que o poeta coloque a sua arte num plano
hierarquicamente superior ao do pintor ou ao do escultor. Não
estamos, portanto, face a uma tentativa de recuperação do
paragone renascentista, embora isso possa ocorrer noutros
horizontes criativos.
Transitando para outros solos, mas ainda no âmbito de uma
ampliação dos tópicos que acabo de sinalizar, devo assinalar «Ao
ator Joaquim Augusto», onde o poeta brasileiro Castro Alves
convoca o mito de Pigmalião — «Um dia Pigmalião — o estatuário
/ Da oficina no tosco santuário / Pôs-se a pedra a talhar… /
Surgem contornos lânguidos, amenos… / E dos flocos de mármore
outra Vénus / Surge d’est’outro mar» (Alves, 1921: 103) —, para
reclamar um novo estatuto para o poeta — «O poeta é — o
moderno estatuário / Que na vigília cria solitário / Visões de seio
nu! / O mármore da Grécia — é o novo drama!» (idem: 104). Com
efeito, esta dimensão agónica, de disputa de estatutos, poderá
constituir toda uma tradição a explorar, a qual, todavia, escapa à
reflexão que neste lugar pretendo desenvolver. Lembremos,
porém, a relevância que determinados espaços, como o Museu ou
o atelier, emprestam à criação poética.
Em «Préface au ‘Soulier de satin’» Paul Claudel sintetiza
exemplarmente o lugar dos Museus nas nossas vivências, com
tudo o que de simultaneamente universal e pessoal eles encerram.
Vejamos estes versos em que a écfrase, ainda que fugaz, um mero
fragmento textual apenas, não deixa de ter uma evidente
capacidade evocadora: «Tout le monde connaît dans les musées
ces tableaux de peintres flamands / Où l’on voit quelque saint
Évêque martyrisé à l’ombre d’un moulin à vent, / Ou ces histoires
grandioses de l’Ancien et du Nouveau Testament / Et dans le fond
une terre qu’on laboure, un austre avec son fagot, / Un fauconnier
à la chasse, une tour, un arbre, un bateau, / Un ange qui joue du
violon dans le ciel, un autre qui tient une coupe, / Et toutes sortes
de petites scènes drôlatiques qu’il faut regarder à la loupe»
(Claudel, 1970: 119). Experiência individual e memória coletiva
convergem neste encontro que significa a partilha, ainda que não
consciente, de um conjunto de representações que dão rosto a
uma cultura comum; podemos chamar-lhe, por exemplo, cultura
ocidental. Nesta radica o sentimento de partilha e de pertença,
decorrente da existência do heterogéneo solo comum a partir do
qual cada um concebe o seu Museu imaginário. Henri Michaux
verbaliza esta dimensão num poema significativamente intitulado
«Mes statues»:

J’ai mes statues. Les siècles me les ont léguées: les siècles de
mon atente, les siècles de mes découragements, les siècles de
mon indéfinie, de mon inétouffable esperance les ont faites. Et
maintenant elles sont là. […] Leur origine m’est inconnue et se
perd dans la nuit de ma vie, […] Mais elles sont là, et durcit leur
marbre chaque année davantage, blanchissant sur le fond obscur
des masses oubliées. [Décaudin, 1983: 383]

Como o leitor terá constatado, o sentido de posse evidenciado no


título — «Mes statues» — e prolongado no corpo do texto — «Les
siècles me les ont léguées» — não pode ser entendido num
sentido literal; nele ecoa, sim, a noção de Museu imaginário, com
tudo o que ela implica quer de escolha consciente quer de traços,
matizes, sons que no subconsciente de cada um de nós, de acordo
com a sua própria liberdade, reverberam.
Embora numa gramática algo freudiana, esta última dimensão, a
que envolve o subconsciente, será igualmente enfatizada por outro
poeta francês para quem a arte tem constituído um continuado
impulso criativo, Yves Bonnefoy. Em «La Dérision de Cérès» as
representações (revenants?) da infância de algum modo interferem
com o processo criativo introduzindo o inesperado, o excêntrico,
algo que perturba a perceção racionalista do espectador: «Ah,
peintre, qu’est-ce donc que cette main / Que tu prends dans la
tienne quando tu dors, / Pourquoi la retiens-tu, cette main d’enfant,
/ Comme si sa pression te délivrait // D’une peur qui ravage tes
images? / Moi, je rêve que tu en guides la confiance» (Bonnefoy,
2014: 112).
Talvez nenhum poeta do século XX tenha levado tão longe, como
Bonnefoy, o impacto das artes visuais na modelação de um olhar,
de uma sensibilidade estética, como o comprova esse fascinante
livro que é L’ Arrière-pays. Nesta sua narrativa autobiográfica
Bonnefoy evidencia o modo como o seu olhar foi educado
esteticamente ao longo da vida, fazendo da arte algo de endógeno
à perceção que o poeta (artista) tem do real, ajudando-o a
desvendar as perplexidades elementares de que fala William
Desmond (Desmond, 2003: xi). Convido-o, Leitor, a deter-se por
breves momentos neste passo de L’ Arrière-pays: «[…] je finis par
aller en Italie, […] et là je découvris, en une heure, inoubliable,
qu’un monde qui paraissait, chez Chirico, l’imaginaire, l’irréalité,
l’impossible, en fait existait bel et bien, sur cette terre, sauf qu’il
était renoué ici, recentré, rendu réel, habitable, par un acte d’esprit
aussi nouveau pour moi que d’emblée mon bien, ma mémoire, ma
destinée» (Bonnefoy, 2005: 63).
L’ Arrière-pays permite-nos reconhecer, afinal, quão relevante é a
noção de museu imaginário na nossa perceção do mundo e de nós
próprios, isto é, quão relevante é esse instante em que a arte se
torna algo de banal no nosso diálogo com o mundo. E essa
banalidade pode decorrer naturalmente do nosso encontro com os
objetos estéticos, desde a infância, tanto no espaço do lar — uma
Galeria concebida por tradições familiares — como no do Museu,
enquanto espaço público. Banalidade é, aqui, a palavra-chave,
visto ser aí que reside uma educação do olhar sobre o tempo e
sobre o eu; quando a arte deixa de ser um apêndice, algo de
exógeno, passando a ser um traço estruturante do sujeito, da
(auto)biografia, algo que, para além de uma perceção do mundo,
participa das suas rotinas quotidianas.
Um poeta já evocado ao longo destas páginas, W. H. Auden,
sinaliza esta última dimensão em «History». Suscitada por uma
situação algo prosaica — «I come here to mingle faïence dug /
from the tomb, turquoise-colored /necklaces and wind belched from
the / stomach; delicately veined basins / of agate, cracked and
discoloured and / the stink of stale urine! // Enter! Elbow in at the
door. / Men? Women?» (Williams, 1987: 81) —, a entrada no
Museu significará, todavia, um encontro com um objeto, um
sarcófago, que suscita uma meditação por parte do poeta sobre a
perenidade da arte: «This sarcophagus contained the body / of
Uresh-Nai, priest to the goddess Mut, / Mother of All — // Run your
finger against this edge! / — here went the chisel! — and think / of
an arrogance endured six thousand years / without a flaw!» (idem).
Em seguida, numa radical imersão na História, ou, se preferirmos,
numa especulação sobre uma hipotética vivência pretérita, o olhar
flutua no sentido do objeto, confundindo-se com este; revela-se,
então, uma persona, a de Uresh-Nai. A enunciação é assim
transferida para o objeto, vertido em sujeito, à semelhança do que
sucede na parte final de um célebre poema romântico,
«Ozymandias», de Percy B. Shelley.
A flutuação da enunciação significa, deste modo, a passagem de
um subgénero lírico para o do monólogo dramático. Contudo,
neste caso, a estratégia de enunciação não se restringe a uma
breve e elíptica elocução inscrita num pedestal fragmentado, como
no poema de Shelley. Aqui, o monólogo dramático introduz uma
outra perspetiva sequencial e coerente — a do sacerdote, um outro
tempo — o passado, e um outro espaço — o Egito. Num ensaio
sobre este poema, Barry Ahearn recorda que esta transferência no
foco da enunciação permite simular algo de universal, isto é, tanto
no passado como no presente, não devemos ser conduzidos por
agendas exógenas, pois é a nós, à liberdade que nos é concedida,
que devemos a construção de um olhar próprio, de um olhar que é
o nosso (Ahearn, 1994: 128).
Embora culminando numa tonalidade radicalmente distinta, devo
referir «Todo es un cuento roto en Nueva York», da poeta
espanhola Carmen Martín Gaite. O poema começa por revelar
afinidades com «History» nas circunstâncias que motivam o
encontro com a arte, isto é, um mero acaso no quotidiano. Depois
de se interrogar «Por qué no entrar un rato en el Museo Whitney?»
(Gaite, 1976: 90), a voz convertida em personagem foge do seu
meio e, num eco do Buster Keaton de Sherlock Jr., encontra
refúgio num quadro de Hopper, Hotel Room: «esa mujer perdida
por Manhattan / se ha escondido en un cuadro de Edward Hopper,
/ se ha sentado en la cama de una pensión anónima / y ya no
espera nada» (idem).
Desvenda-se assim um solo prismático, a partir do qual irradiam
e se suscitam múltiplos encontros estéticos entre a palavra e a
imagem. É neste âmbito que o Museu adquire uma função única.
Com efeito, a sua criação terá um impacto profundo na
reformulação do olhar sobre as obras de arte visuais. Desde logo,
o Museu permite a preservação do objeto, evitando a sua
danificação por causas várias, e eventual destruição. Além disso, a
sua exposição pública desempenha uma função social e
pedagógica, ao permitir ao leigo — ao público — tomar contacto
com elaborações estéticas particulares que, de alguma forma,
definem sensibilidades epocais. Numa perspetiva sincrónica, esses
objetos artísticos, expostos no Museu, podem ser significativos de
um epistema, denunciando ou insinuando segmentos do espírito
de um tempo; funcionam, portanto, como microcosmos, pequenos
universos textuais, formulando narrativas autónomas. A par desta
exposição face a um olhar inocente, não especializado, exigem-se
leituras especializadas, capazes de entender quer os signos, as
narrativas, os símbolos — a memória cultural a partir da qual esses
textos se sustentam —, quer a originalidade da articulação desses
elementos. Por óbvias razões históricas, tanto os episódios
bíblicos como os mitos clássicos se afirmam como solos
privilegiados de uma memória que se vai construindo ao longo do
tempo; dela emergem tradições e aquilo a que podemos chamar
«identidade».
Na verdade, se considerarmos esse enfoque diacrónico,
constatamos que esses objectos permitem observar a evolução de
discursos, isto é, a forma como determinados espaços artísticos se
transformam (progridem?) através da superação de estratégias
específicas de representação. Ao instituírem-se como memória de
uma evolução criativa, os Museus revelam uma dimensão
dinâmica e histórica do percurso artístico. Se, por um lado, os
objetos simulam a reatualização de um instante perdido no tempo
— a obra de arte parece ter o poder de perpetuar um determinado
momento —, por outro, eles denunciam a transitoriedade desse
instante — a obra de arte lembra o desaparecimento físico do seu
criador, daqueles que a poderão ter inspirado, das sucessivas
gerações que a observaram. Curiosamente, estas questões
objetivas, suscitadas pela exposição dos objetos artísticos,
entroncam nas idiossincrasias características das sensibilidades
românticas, como mais adiante veremos. Antes, porém,
recordemos um exemplo e sinalizemos outro, relevantes para esta
tradição de diálogo. Encontramo-los em Inglaterra, através de dois
poemas que se tornariam emblemáticos desta tradição na primeira
metade do século XX, o acima mencionado «The Shield of
Achilles» e «Musée des Beaux Arts», ambos escritos por W. H.
Auden.
Como observámos, «The Shield of Achilles» simula a écfrase
como a observámos em exemplos anteriores, ou seja, como
configuração verbal de um objeto artístico. No entanto, este poema
era marcado por uma evidente ironia já que o poeta não tentava
reproduzir ou recriar um referente visual; o que estava aqui em
causa era o diálogo com o texto de Homero — uma écfrase
imaginária, a notional ekphrasis de que falava Krieger — sobre o
qual, e contra o qual este se ergue. Importa por isso enfatizar este
pormenor, o poema de Auden não é propriamente uma écfrase,
mas sim um texto que toma outro texto — um hipotexto — como
leitmotiv e com ele dialoga; um texto que dialoga com aquela que,
como vimos, é considerada o exemplo fundador de toda uma
tradição poética ocidental.
Devemos, por isso, ter presente a sua dimensão enquanto
metatexto, enquanto espaço de reflexão e especulação intelectual,
enquanto paródia (de acordo com a designação que lhe atribuem
alguns discursos críticos da pós-modernidade) da convenção e da
tradição literárias. O leitor deverá, assim, estar atento à sua
eventual dimensão irónica. Esta surge logo no primeiro verso
quando Auden sabota a solenidade inerente à condição de deusa
(Tétis), a ela se referindo apenas como «she», e apresentando-a
num ato pouco digno, algo voyeur, espreitando por detrás de
Hefesto enquanto este trabalha no seu escudo. A ironia acentua-se
quando a representação não se revela eufórica, tal como ela
pretendia, tal como ela esperava.
Por seu turno, «Musée des Beaux Arts», impulsionado pelo
quadro Paisagem com a queda de Ícaro, de Pieter Brueghel, o
Velho (cf. figura 6), coloca outro tipo de questão. Porque as minhas
palavras só se tornam pertinentes com a leitura do poema, a isso o
convido:

About suffering they were never wrong,


The Old Masters: how well they understood
Its human position; how it takes place
While someone else is eating or opening a window or just walking dully along;
How, when the aged are reverently, passionately waiting
For the miraculous birth, there always must be
Children who did not specially want it to happen, skating
On a pond on the edge of the wood:
They never forgot
That even the dreadful martyrdom must run its course
Anyhow in a corner, some untidy spot
Where the dogs go on with their doggy life and the torturer’s horse
Scratches its innocent behind on a tree.
In Brueghel’s Icarus, for instance: how everything turns away
Quite leisurely from the disaster: the ploughman may
Have heard the splash, the forsaken cry,
But for him it was not an important failure; the sun shone
As it had to on the white legs disappearing into the green
Water; and the expensive delicate ship must have seen
Something amazing, a boy falling out of the sky,
Had somewhere to get to and sailed calmly on.

[Abrams, 1993: 2266]

Depois de ter lido o poema, proponho-lhe outro exercício:


recorde este passo do ensaio acima referido, O museu imaginário,
de André Malraux:

Há mais de um século que a nossa convivência com a arte não


cessa de se intelectualizar. O museu impõe uma discussão de
cada uma das representações do mundo nele reunidas, uma
interrogação sobre o que, precisamente, as reúne. Ao «prazer do
olhar», a sucessão e a aparente contradição das escolas vieram
acrescentar a consciência de uma busca apaixonada […]. Afinal,
o museu é um dos locais que nos proporcionam a mais elevada
ideia do homem. [Malraux, 1963: 12]

A leitura deste passo ajuda a entender os versos iniciais.


Vejamos como. Em primeiro lugar, ele lembra a evidência acima
reiterada, «a nossa convivência com a arte», possível devido à
existência da instituição Museu; esta convivência está, hoje em
dia, disponível a qualquer um, exigindo apenas disponibilidade
(«Todo es un cuento roto en Nueva York»), ou as circunstâncias
que o acaso determina («History»), para que se realize. Em
segundo lugar, para que se consubstancie plenamente, a interação
entre o sujeito e o objeto pressupõe uma reação intelectual,
pressupõe um exercício do logos. Em terceiro lugar, o Museu
desvenda contextos e diálogos entre obras de arte e criadores. Em
quarto lugar, o Museu revela perceções várias do Ser, marcadas
por circunstâncias históricas, idiossincrasias pessoais, buscas
estéticas e éticas.
Partindo dos pressupostos observados em «History»,
regressemos a «Musée des Beaux Arts». Como acima escrevi, o
poema é inspirado no quadro Paisagem com a queda de Ícaro, de
Pieter Brueghel, o Velho. No entanto, o próprio título sugere um
contexto mais geral, onde se insinua um estatuto privilegiado, ao
mesmo tempo que envia para uma instituição realmente existente,
o Museu de Belas-Artes, de Bruxelas. Os primeiros versos tornam
explícita uma reflexão, devedora do percurso que o sujeito vai
realizando ao deambular pelas salas do Museu, onde contacta
com «os Velhos Mestres». Ora, semelhante deambular que pode
significar também um regresso ao objeto, participa de uma
observação que oscila entre o acidental e o impulso analítico. O
poeta norte-americano John Hollander exibe esta última dimensão
em «Effet de Neige», onde dialoga com o quadro de Claude Monet
A estrada para a quinta de São Simeão. É da observação
recorrente que ressalta algo (um detalhe?) que o perturba. Escreve
o próprio Hollander: «The author of the poem […] had been
engaged, on several occasions while seeing the picture in the Fogg
Museum at Harvard, by the small white brush stroke […] at the very
end of the road. In this meditation, not merely upon the painting but
upon the possible rationale of poetic ecphrasis itself, the brush
stroke […] became rather important» (Hollander, 1995: 343).
Além da importância que pode assumir um olhar atento ao
detalhe, decorrente do constante regresso ao quadro, outra
dimensão será de assinalar, a de abertura cultural a perceções
estéticas que nos precederam, e com as quais somos
confrontados nesse espaço que o Museu é. Como a própria
designação explicita — Mestres —, a relação que estabelecemos
com estas obras de arte situa-se no plano da reverência, da
hierarquia, da aprendizagem; o facto de eles serem «velhos»,
atribui mais ênfase à sua experiência, ao seu conhecimento e à
sua sabedoria, o que remete para um estatuto óbvio de
aprendizagem. De acordo com uma tradição humanista, o poema
esclarece que, ao olharmos os quadros, não só vivemos uma
experiência estética, como aprendemos algo. Esta mesma tradição
será posta em causa por Randall Jarrell ao tomar os versos iniciais
do poema de Auden para exibir um ponto de vista oposto: «About
suffering, about adoration, the old masters / Disagree» (Hollander,
1995: 252).13
Em «The Old and the New Masters», Randall Jarrell entra em
diálogo/confronto com a célebre écfrase de Auden, para, através
da convocação do St. Sebastian Mourned by St. Irene, de Georges
de La Tour, questionar a leitura que Auden faz dos clássicos:
«When someone suffers, no one else eats / Or walks or opens the
window — no one breathes / As the sufferers watch the sufferer. /
In St. Sebastian Mourned by St. Irene / The flame of one torch is
the only light» (idem: 252).
Importa esclarecer o contexto narrativo do quadro de La Tour. O
pintor francês exibe o mártir São Sebastião rodeado por um grupo
de mulheres, nomeadamente Santa Irene, em posturas
indiciadoras da piedade cristã. De alguma forma aquela
representação desponta, visualmente, como uma memória da
Paixão de Cristo. Na dimensão de memória que subjaz ao quadro
reside, para Jarrell, uma evidência: esta é uma representação
entre outras possíveis; ou seja, «The new masters paint a subject
as they please […]» (idem: 253). À semelhança do que sucede
com Auden, como esclarecerei já de seguida, Jarrell não
circunscreve esta sua meditação poética a um só quadro, antes a
amplia através da alusão a Altar Portinari, o tríptico de Hugo van
der Goes. É, portanto, num contexto de representação mais global
que ele chega àquela conclusão. Stephen Cheeke sintetiza essa
meditação do seguinte modo:
Jarrell’s «The Old and New Masters» opposes the assumption
in Auden’s poem that human suffering is a constant and
unchanging phenomenon, best understood by the old masters,
and always pointing towards the Christian passion. «Suffering»
has a history, just as painting does, and is better understood as
something experienced historically: that is, in relation to the
changing meanings through which it is manifested. Art can only
anticipate, respond to and follow these changes. [Cheeke, 2008:
114]

Retomando o poema de Auden, devo esclarecer que estudos


críticos sobre este texto provam que os quadros evocados na
primeira estrofe são O censo de Belém e O massacre dos
inocentes, igualmente da autoria de Brueghel, o Velho. Para além
de nenhum deles ser reconhecível na descrição feita pelo poeta, O
massacre dos inocentes encontra-se depositado bem longe de
Bruxelas, em Viena de Áustria, no Kunsthistorisches Museum. Por
que razão terá Auden arquitetado estas fugas intencionais à
realidade? Com efeito, ao fazê-lo, ele concebeu uma experiência
própria, profundamente pessoal e possível apenas àquele que se
educou, entre outras coisas, no contacto com os Mestres que a
História da Arte generosamente nos legou; lembremos a citação,
acima feita, de André Malraux. Consequentemente, o poeta
assemelha-se a um «curador» que intelectualiza a sua experiência
(o seu olhar) em torno da representação do sofrimento na arte,
com a qual interage uma conceção de Homem; as evocações do
Martírio de Cristo e da Natividade participam dessa reflexão. A
descodificação da forma como esse sofrimento se realiza
aparecerá na segunda estrofe com o exemplo de Paisagem com a
queda de Ícaro.
O primeiro verso desta segunda estrofe parece surgir
naturalmente no decurso da reflexão acima enunciada; veja-se a
dimensão coloquial emprestada pela expressão «for instance»,
criadora de uma ilusão, a de que este é apenas um exemplo entre
outros possíveis; é este apenas porque o sujeito de enunciação
assim o quis. Trata-se, todavia, de um quadro que desencadeia
uma ampla meditação em torno do heroísmo, da hubris, e da
relação do indivíduo com a natureza. Para melhor
compreendermos estes aspetos importa recordar, ainda que
brevemente, o solo mitológico onde esta narrativa se ancora.
Ícaro era filho de Dédalo, o qual fabricou, para ambos, umas
asas com penas, cordas e cera, que lhes permitiriam realizar um
velho sonho humano, voar. Dédalo alertou o filho para não se
aproximar demasiado do sol, já que o calor derreteria a cera que
sustentava as asas. Ícaro não levou a sério os avisos do pai,
aproximou-se demasiado do sol, a cera derreteu, e ele despenhou-
se nas águas, morrendo. Esta narrativa exemplifica aquele que os
gregos consideravam o defeito trágico — hamartia — por
excelência, a hubris, o orgulho desmedido que leva o Homem a
conceber-se acima da esfera (social, política ou cósmica) que era
a sua: neste caso, a hubris de Ícaro terá sido a de se ter
identificado com os deuses, pensando que teria poderes a eles
idênticos. Este aspeto está presente na narrativa deste episódio
feita por Ovídio, através de três personagens: o pescador, o
camponês e o pastor. Ao verem Ícaro nos céus, estes confundem-
no com um deus, já que só os deuses se acercavam do éter.
Brueghel diverge da narrativa de Ovídio ao representar o
camponês e o pescador absortos nas suas atividades (trabalho), e
o pastor distraído, olhando os céus («how everything turns away /
Quite leisurely from the disaster»). O pintor introduziu ainda um
barco sulcando as águas, e representou Ícaro com alguma
comicidade: dele apenas se desvendam, no canto inferior direito,
duas pernas mergulhando nas águas. Subjacente a esta leitura da
narrativa mítica feita pelo pintor, estará uma sensibilidade estoica:
as personagens — pescador, camponês, pastor — identificam-se
com as leis cósmicas, ostensivamente ignorando quem as
pretende subverter («the ploughman may / Have heard the splash,
the forsaken cry, / But for him it was not an important failure»). O
barco, representando por sinédoque a humanidade, parece reiterar
essa indiferença ao prosseguir o seu caminho, ignorando uma das
leis básicas da vida no mar, a ajuda ao náufrago.
Auden subscreve a abordagem de Brueghel. A indiferença do
barco é acentuada através da prosopopeia: «the expensive
delicate ship must have seen / Something amazing». Se, para
alguns, Ícaro pode ser visto como um herói, para as personagens
envolvidas nos seus dramas quotidianos, ele é alguém que foi
justamente punido. Entretanto, a natureza (ostensivamente
dominante na tela) prosseguia, indiferente, nos seus ritmos e
ciclos, tal como sempre sucedera e voltaria a suceder («the sun
shone / As it had to on the white legs disappearing into the green /
Water»). É esta moral estoica que Auden associa ao sofrimento
ensinado pelos «Velhos Mestres»; tal como para o pintor, também
para ele, Ícaro é apenas, sem solenidade alguma, «a boy falling
out of the sky».
A interpelação hermenêutica assume aqui uma função central;
será nessa interpelação que tanto eventuais idiossincrasias,
angústias, fantasmas pessoais, como a atenção face ao Outro, se
projetam também. Considere-se, por exemplo, o modo como
aquele que deambula pelas salas do Museu, esse Outro, com o
qual partilhamos a afinidade de sermos observadores —
«espectadores» — das obras de arte, as olha; considere-se, por
exemplo, a eventual displicência com que eles se cruzam com os
objetos que, em silêncio, também eles, aguardam que os
interpelem.
«Pieza de Museo», do poeta espanhol José María Álvarez, de
algum modo gira em torno dessa displicência. O título de poema
alude à estátua de Auguste Clésinger, depositada no Museu
d’Orsay, e habitualmente designada, em tradução literal, Mulher
picada por uma serpente, mas que, no poema, é traduzida por
«mujer picada por un aspid», para acentuar a displicência com que
aqueles que deambulam por aquele espaço a olham. A própria voz
é algo displicente quando refere «que hoy conserva un museo»
(Magalhães, 1997: 58), sem sequer o identificar, e, sabendo nós,
que este é um dos Museus mais relevantes no âmbito da arte
moderna. Por seu turno, a displicência do público, aqui
ironicamente designado (confinado a?) «turistas», é, em seguida,
explicitada: «Los turistas / junto a ella pasan; si alguno se detiene /
lee la inscripción, y sigue / su visita. O con frecuencia / son grupos
de chiquillos, dirigidos / por un professor que les explica / los
efectos de la terrible picadura, / cómo el autor captó el dolor, / la
angustia, el miedo» (idem: 58).
O acaso evidenciado nesse deambular pelo espaço do Museu,
surge no cerne de «Encuentro», um poema de Intemperie (1995),
de Álvaro García. O encontro que dá título ao poema simula essa
acidentalidade, num percurso realizado pelo sujeito através de
obras de Édouard Vuillard, pintor francês próximo da estética
Nabis: «Este es Vuillard, que mira los cargueiros, / que pinta el
balanceo de los mástiles, / que mira tanto que se desentiende. /
[…] / Este es Vuillard, el que mira los barcos. / Vuillard el de la
barba vagabunda» (idem: 848). O olhar do poeta mergulha no
objeto desvendando, nos detalhes, uma singularidade; o poeta
assume-se, portanto, como um hermeneuta que cumpre a sua
derradeira função quando o texto interpela (elucida) o leitor. Ao
tópico do detalhe regressarei, todavia, mais adiante.
Ainda num âmbito hermenêutico, importa referir o diálogo entre
palavra e imagem em alguns poemas de Sylvia Plath, devido ao
facto de ela abordar o tópico daquilo que poderíamos considerar
uma incapacidade de compreensão do objeto por parte da crítica,
uma eventual leitura enviesada.
Entre 1956 e 1960, no espaço de tempo em que produziu os
textos que dariam corpo ao seu primeiro livro de poesia, The
Colossus, Sylvia Plath escreveu poemas que enviam para as obras
de pintores como Henri Rousseau, Paul Klee ou De Chirico14.
Interessa-nos «Yadwigha, on a Red Couch, Among Lilies: A
Sestina for the Douanier», baseado no quadro O sonho, de Henri
Rousseau (cf. figura 7). Através de uma antítese, Plath expõe um
confronto entre o crítico e o criador que, embora situado no
passado — no tempo de Rousseau —, funciona como eventual
parábola para o presente. Dominados pelas conceções
académicas e canónicas, e incapazes de entender a transfiguração
do real operada pelo artista, os «consistent critics» surgem como
um dos polos da antítese. No outro polo surge o artista que,
ironicamente, segue o seu percurso criador de subversão
canónica: «It seems the consistent critics wanted you / To choose
between your world of jungle green / And the fashionable monde of
the red couch / With its prim bric-à-brac, without a moon / To turn
you luminous, without the eye // Of tigers to be stilled by your dark
eye / And body whiter than its frill of lilies: / They’d have had yellow
silk screening the moon, / […] But the couch / Stood stubborn in its
jungle: red against green […]» (Plath, 1981: 85).
A diferença entre fancy e imagination é nuclear nestas estrofes.
A confusão entre elas — entre aquilo que, na esteira de Coleridge,
será ou um mero devaneio ou uma verdadeira transfiguração do
real — (de)forma a perspetiva destes «consistent critics». O
caráter central do ponto de vista e do olhar será, inclusivamente,
evocado; ele denuncia essa incapacidade de apreensão do objeto
artístico por parte desses críticos — «the prosaic eye». Por isso
mesmo, a sua primeira designação, irónica, no poema é a de
«literalists» — «the literalists once wondered how you / Came to be
lying on this baroque couch» (idem: 85). O texto não se limita,
portanto, a reter uma leitura do quadro; pelo contrário ele
acompanha esse olhar com o agon (conceito utilizado agora no
sentido etimológico) entre a crítica académica e o artista; veja-se,
por exemplo, a assimilação irónica de galicismos pelo discurso
poético. Deste modo, o poema, já por si leitura do objeto,
desenvolve-se expondo diferentes texturas, diferentes camadas de
sentido: a que Rousseau exibe perante os críticos, e aquela que
confidencia a um amigo. Nesta última reflete-se afinal a
contestação de uma certa ideia algo redutora de função e
finalidade pedagógica ou moral da arte.
Escrito a 27 de março de 1958, «Yadwigha, on a Red Couch,
Among Lilies» foi considerado pela autora como a sua melhor
sextina. Este aspeto permitir-nos-á entender este poema visual
enquanto ponto de viragem no conjunto da produção poética de
Plath. Se tivermos em conta a estrutura formal, verificamos que
Sylvia Plath recorre a uma perspetiva dialógica ao designar um
interlocutor que, também neste caso, funciona como actante do
objeto artístico, Yadwigha. Através deste, Plath invade o texto
poético com uma tonalidade discursiva e coloquial, decorrente da
oralidade típica do diálogo. A interiorização de um traço do real —
a linguagem quotidiana — pela poesia, a par do seu caráter
metalinguístico — o conflito entre o artista e os críticos —,
demonstra um certo ponto de viragem por parte deste texto face à
produção anterior. Ao percorrermos estes diferentes encontros
com a arte na poesia de Plath, reconhecemos, afinal, as várias
possibilidades de especulação emocional pela autora ali
desvendadas.
O poema como espaço fluido, algo difuso em termos de
enunciação, visto nele confluírem o olhar do poeta, o discurso
crítico e as vozes de eventuais personae15, define o registo de «A
partida de xadrez, de Paris Bourdonne», de Fernando Guerreiro.
Nesta interpelação do quadro do pintor maneirista italiano,
Fernando Guerreiro recusa uma eventual dimensão ecfrástica para
se centrar na composição, nas manchas cromáticas (num exercício
de fuga menciono um fragmento de uma écfrase de Karl Kirchwey,
intitulada «Gioia Tirrena: A painting by Plinio Nomellini, 1914», que
exibe uma idêntica função na estrutura do objeto — «She staggers
a little, / delivered from the suppurating nets of brine, / and archly
steps from the polychrome fragments / of her own movement»,
Kirchwey, 1990: 33; itálico meu) que designam uma estrutura
visual para o quadro — «Escuro o primeiro plano mais evidente se
torna / ao longe e por contraste / a profundidade do quadro»
(Guerreiro, 1987: 37). Será a partir desta estrutura que uma
descodificação da narrativa, aparentemente evidente — dois
homens jogando xadrez —, irá surgir: «Este é o ponto que ao
quadro serve de centro» (idem). No entanto, o poeta pretende que
o olhar do leitor se desloque desse centro que ele considera ser
«ilusório», para, descentrando-se, se (des)focar no detalhe (jogo)
que, num segundo plano, se insinua, pois será aí que a verdadeira
tensão narrativa emerge: «Outros jogadores, / ou mercadores, /
constituem o segundo plano do ladrilhado / do quadro. / Aí reside o
seu centro emotivo ou incómodo. / (Caótico ou Nada)» (idem).
Antes de prosseguir, deixo outro testemunho textual que, no
espaço físico do Museu, desvenda algo de singular neste diálogo
entre a palavra e a imagem. Refiro-me a «XXV (bodegón)», onde
outro poeta espanhol contemporâneo, Vicente Valero, procede a
um simulacro através do qual evita explicitar a presença física face
a um quadro, embora o indicie no título entre parênteses. Fá-lo,
não porque não proceda a uma écfrase, mas pela introdução de
uma subjetividade que simula tratar-se de uma descrição de uma
mera realidade quotidiana: «Sobre la mesa el peso del domingo,
los platos, / las horas más espesas de nuestra voluntad, / los
licores, el humo, la calma, los rumores. // Sobre la mesa el rastro
sereno de la tarde, / que abate y uniforma, con su luz digerida, / el
aire satisfecho, pesado, de la casa. // […] // Sobre la mesa el pan,
el vino, las palabras, / el domingo, los sueños, el humo, los
rumores… / Y si esta mesa fuera la mesa verdadera?» (idem: 764).
No final, no derradeiro verso, insinua-se, então, a possibilidade de
ali, naquele signo, desvendarmos a nossa realidade? Na
humanidade do signo pode, afinal, indiciar-se a nossa própria
humanidade. Prossigamos, então, ao encontro de interações mais
exaustivas e sistemáticas entre a palavra e a imagem, quando a
palavra transporta o Museu para o seu seio.

3.2. Museus e galerias

Ainda muito antes de o Museu se afirmar como instituição


pública, surgiram obras centradas no diálogo entre a palavra e a
imagem, entre as quais destaco Imagines (século III a. D.), de
Filostrato, e La Galeria (1620), de Marino. Distinto deste diálogo
será La casa dei doganieri e altri versi, um livro premiado em 1931
de Eugenio Montale, onde os desenhos de Libero Andreotti, Felice
Carena, Giovanni Colacicchi, Alberto Magnelli e Gianni Vagnetti
surgem interpolados com os poemas, funcionando,
simultaneamente, como pausa e como fuga, assim sugerindo uma
narrativa (simbólica?) outra. Algo de idêntico, por exemplo, ocorre
com 90 poemas de Günter Kunert com seis desenhos de Mário
Botas e um ensaio de João Barrento (Lisboa: Apáginastantas,
1983), onde o registo visual persiste autónomo, ainda que, num
plano subliminar, possam ser percetíveis vagos ecos da palavra
poética, eventualmente da instância biográfica. Não será, portanto,
este tipo de coabitação que nos interessa, mas antes o diálogo
que, mesmo ínvio, pode existir entre a palavra e a imagem; e que o
Museu será o espaço privilegiado para suscitar.
Sem ser exaustivo, sinalizo exemplos de obras em que o Museu
detém um estatuto central, pois a ele se devem os impulsos para a
realização poética. E entre estes começo por «The Municipal
Gallery Revisited», do poeta irlandês William Butler Yeats. Poderia
fazê-lo com outra obra, a secção «Sonnets for Pictures», de
Poems, de Dante Gabriel Rossetti. No entanto, Rossetti coloca
questões muito interessantes para reflexões específicas que
proporei mais adiante. Por isso, para já, o ponto de partida é
concedido a Yeats.
O poeta é aqui figurado através de uma deambulação pelo
espaço, o da Dublin Municipal Gallery, e pelo tempo, o da memória
desse mesmo espaço, a partir da qual se desvenda o seu Museu
Imaginário — «Around me images of thirty years» (Yeats, 1956:
316). O poema vai revelando o percurso pela Galeria, ao qual
corresponde a tal viagem pela memória pessoal e pela da História
da Irlanda; na memória integram-se comentários que os críticos
fizeram, como na parte IV: «Mancini’s portrait of Augusta Gregory, /
‘Greatest since Rembrandt’, according to John Synge» (idem: 317).
A integração de outros comentários na memória suscita-me uma
breve digressão apenas para sinalizar uma modulação no registo
ecfrástico. Encontro-a em All of Us Here, um livro de Irving
Feldmann vindo a lume em 1986, no qual a écfrase decorre dos
comentários que o poeta vai ouvindo e assimilando ao longo de um
percurso por uma Galeria. O estatuto de in-betweenness associa-
se neste caso a uma intensa fluidez, da qual o sujeito emerge no
contacto com o objeto e no modo como os outros o percecionam.
Regressando a «The Municipal Gallery Revisited», constata-se
que, num olhar que oscila em termos de perceção analítica ou
emocional, não raro se configura uma dimensão elegíaca, como
evidenciam os versos «And I am in despair that time may bring /
Approved patterns of women and men / But not that selfsame
excellence again» (idem). Insinua-se aqui, afinal, uma melancolia
que não será indissociável de uma ansiedade de influência que,
todavia, neste caso se situa num solo exógeno ao discurso
poético. Numa obra seminal sobre a elegia na poesia moderna de
expressão inglesa, Poetry of Mourning — The Modern Elegy from
Hardy to Heaney, Jahan Ramazani identifica, contudo, as
potencialidades deste subgénero para a superação, através da
palavra, das vozes fortes precedentes: «[…] only the elegiac poet,
in revolt against the contemporary democratic world, can restore
the ‘selfsame excellence’ possessed by the dead» (Ramazani,
1994: 13-14).
Se a modernidade deve a Yeats uma incursão sincrética pelo
espaço do Museu, confinada a um instante textual, será em
Manuel Machado que se consagra a sua centralidade enquanto
corpo do livro através de Alma. Museo. Los Cantares, publicado
em 1907, com um certeiro prefácio de Miguel de Unamuno. Refiro
certeiro, visto ser com rara erudição que Unamuno desvenda a
relevância poética de Machado, a partir do mote que lhe é dado
pelo Íon socrático sobre o qual ele refletira com os seus alunos. É
na esteira desta reflexão que, entre outras, aparecem as
convocações de Rodin a Balzac, de Ésquilo a Shakespeare, num
percurso analítico que permite entender melhor a singularidade do
poeta espanhol. Importa ainda mencionar que Museo é uma das
sete secções de Alma. Museo. Los Cantares. Por seu turno,
Museo está dividido em cinco secções, cada uma das quais
enviando para géneros ou períodos: «Oriente», «Primitivos»,
«Renacimiento», «Siglo de Oro» e «Figulinas», o que suscita a
ideia de uma viagem por um Museu imaginário.
Duas vertentes devem ser enfatizadas face a este criador. Em
primeiro lugar, a do diálogo que, neste âmbito, ele desenvolve com
outros poetas espanhóis ao mesmo tempo que estabelece uma
ponte de afinidade com poetas da América Latina (Persin, 1997:
33-34). Em segundo lugar, a sua singularidade no diálogo
modernista com as artes visuais16 que apresentaria apenas
semelhanças com Retratos Antigos (1902), de Antonio de Zayas,
poeta parnasiano, todavia, distante do Modernismo, e de alguns
poemas de Enrique Díez-Canedo. Em certa medida à semelhança
do exemplo ulterior de Jorge de Sena para o caso português,
Manuel Machado desempenha um papel pioneiro, em Espanha, no
diálogo entre a poesia e a pintura — assinala Gordon Brotherston
que ele foi o primeiro poeta espanhol a dedicar um poema a um
quadro. Ainda segundo este ensaísta, tal dever-se-ia à sua
formação enquanto estudante na Institución Libre de Enseñanza, e
pelo impacto que nele tiveram os parnasianos e os modernistas
hispano-americanos (Cortés, 1999: 107). Esse olhar educado nas
subtilezas do texto artístico emergirá, por exemplo, na
ambiguidade do poema provavelmente dedicado ao quadro de
Velásquez sobre Filipe IV:

Nadie más cortesano ni pulido


que nuestro rey Felipe, que Dios guarde,
siempre de negro hasta los pies vestido.

Es pálida su tez como la tarde,


cansado el oro de su pelo undoso,
y de sus ojos, el azul, cobarde.

[Cortés, 1999: 45]

Se estiver correta a leitura de Margaret H. Persin pode tratar-se,


porém, de algo idêntico ao Museu Imaginário de Auden quando ele
justapõe no mesmo espaço quadros que estão em Museus
distintos. Refere esta ensaísta:

Strangely enough, it does not coincide with any one known


portrait of Felipe IV by the painter Velásquez; rather, it seems to
be a composite of that of the king and that of his brother, “el infant
don Carlos” (“Prince Charles”). In the third stanza the speaker
points out the absence of any sort of jewelled embellishment,
which seems to repeat the details of the Velásquez portrait of
Felipe IV (number 1181, Prado). But in stanza 4, the famous
“guante de ante” […] described by the speaker belongs not to
Felipe IV but to Velásquez’s portrait of don Carlos (number 1188,
Prado). [Persin, 1997: 36]
Na sua obra sobre o diálogo entre poesia e pintura em Manuel
Machado, Carolina Corbacho Cortés enfatiza a relevância de Apolo
— Teatro pictórico, obra publicada em 1911, pois seria aí que o
apelo da pintura, preludiado em Tristes y Alegres, e testemunhado
em Museo, se confirmaria (Cortés, 1999: 103). Luis Felipe Vivanco
sinaliza, porém, aquela que seria uma diferença relevante entre
Museo e Apolo. Segundo ele, no primeiro caso, os quadros ou
evocações eram criados pela palavra do poeta, enquanto que no
segundo a palavra estaria ao serviço de uma realidade
previamente criada pelos pintores (idem: 107).
Ainda no solo de expressão poética castelhana, recordo Rafael
Alberti. Este poeta da Geração de 27 organiza A la pintura, um
livro seu de 1948, de acordo com um fio temporal que se inicia
com Giotto, para, em seguida, progredir no tempo através de
poemas sobre Leonardo da Vinci, Miguel Ângelo, Tiziano,
Velásquez, Goya, Renoir e culminando num artista coevo, Pablo
Picasso. Este não é, todavia, o derradeiro texto, já que o poeta
insere ainda três segmentos em prosa, como «Visitas a Picasso»,
onde lembra instantes de contacto com o autor de Guernica. Assim
se concebe uma estratégia polifónica através da qual se reitera a
dimensão autorreflexiva do diálogo entre a palavra e a imagem,
algo a que regressarei mais adiante no capítulo dedicado à
autorreflexividade da linguagem poética.
No universo anglo-saxónico avizinhava-se, entretanto, uma obra
que a posteridade viria a reconhecer como uma das mais
relevantes no encontro entre a palavra e a imagem, Pictures from
Brueghel, do poeta norte-americano William Carlos Williams. O
pintor flamengo seria revisitado por inúmeros poetas de língua
inglesa, como Walter de la Mare, Jeanne Robert Foster, W. H.
Auden, John Berryman, Sylvia Plath ou Joseph Langland, embora
nenhum deles o tenha feito de forma tão sistemática como
Williams. Curiosamente, o impulso suscitado pelos quadros deste
pintor passa também por uma certa afinidade intertextual, quer
entre alguns destes poetas quer entre estes e poetas que os
precederam nesta tradição ecfrástica. Limito-me e sinalizar os
seguintes exemplos. Começando pela última vertente enunciada, a
do diálogo com poetas precedentes, refiro «Winter Landscape», de
John Berryman, onde este retoma a suspensão de Keats em «Ode
on a Grecian Urn»: «The three men coming down the winter hill /
[…] / Returning cold and silent to their town, // […] to the older men,
/ The long companions they can never reach» (Cheeke, 2008: 117-
118). No que diz respeito à primeira vertente, o solo que ambos
partilham, recorro à síntese formulada por Stephen Cheeke:

Auden, Williams and Berryman all draw morals about


“unawareness”, non-feeling or passivity from Brueghel: for Auden,
a truth about human position of suffering in life; for Williams, an
existential truth to be felt and pondered; for Berryman the truth of
witness and a kind of tragedy of historical oblivion, but also an
image of contemporary horror. In each case the painting has been
read not within the terms and schema of art-history, iconography
or symbolism, not within semiotics of pictures and images, but
according to a poetics in which Brueghel tells us something about
non-feeling, something about the brute plenum of the world.
[Idem: 121]

Regressemos, então, a Williams. Publicado em 1962, Pictures


from Brueghel é constituído por dez poemas ecfrásticos, todos
eles, como o próprio título indica, inspirados por Brueghel, o Velho:
«Self-Portrait», «Landscape with the Fall of Icarus», «The Hunters
in the Snow», «The Adoration of the Kings», «Peasant Wedding»,
«Haymaking», «The Corn Harvest», «The Wedding Dance in the
Open Air», «The Parable of the Blind» e «Children’s Games».
Williams viu na Europa alguns dos quadros com os quais os seus
poemas dialogam: Self-Portrait, The Hunters in the Snow, Peasant
Wedding e Children Games encontram-se no Kunsthistorisches
Museum, em Viena; The Adoration of the Kings, em The National
Gallery, em Londres; Haymaking, na Galeria Nacional, de Praga;
The Parable of the Blind, no Museo Nazionale, de Nápoles; e
Landscape with Fall of Icarus, como acima mencionei, no Museu
de Belas-Artes, de Bruxelas. Os restantes encontravam-se
inseridos em coleções de Museus americanos: The Corn Harvest,
no Metropolitan Museum of Art, de Nova Iorque, e The Wedding
Dance in the Open Air, no Institute of Arts, de Detroit. O poeta
adquiriu algumas informações acerca do pintor, e destes quadros
em particular, no âmbito da crítica de arte, em estudos como Peter
Brueghel The Elder, de Gustave Glück, publicado em 1952, e A
Treasury of Art Masterpieces — From the Renaissance to the
Present Day, de Thomas Craven, inicialmente publicado em 1939,
mas revisto e reeditado, igualmente, em 1952.
A escrita dos poemas de Pictures from Brueghel emerge a partir
de duas dimensões eventualmente distintas; em primeiro lugar, o
encontro pessoal, subjetivo, porventura idiossincrático, do poeta
com os quadros em questão, no espaço do Museu; em segundo
lugar, a leitura de ensaios sobre aquele pintor. A sua perceção
poética das obras de Brueghel decorre, assim, destas duas
vertentes. A par delas surge uma terceira dimensão, a do diálogo
intertextual. Não me refiro apenas à recorrente evocação do
discurso artístico ao longo da obra de Williams; refiro-me à
convocação explícita de outro poema do autor, a qual apela à
memória (conhecimento) do próprio leitor. Escreve o poeta nos
primeiros versos de «The Adoration of the Kings»: «From the
Nativity / which I have already celebrated» (Williams, 1987: 387). «I
have celebrated» envia para a parte III da secção V, «Adoration of
the Magi», do seu poema épico Paterson (1958), toda ela um
extenso diálogo com o quadro homónimo de Brueghel. A écfrase
significa, aqui, não tanto uma intenção de reproduzir verbalmente,
com maior ou menor fidelidade, maior ou menor rigor, maior ou
menor vivacidade, um determinado signo visual, mas antes uma
reflexão do autor, na qual se projetam idiossincrasias e
articulações teóricas, e da qual esse signo visual funciona como
leitmotiv.
Explícita ou implícita, a recorrente presença da ideia de
«composição», à semelhança do que sucede noutros poemas de
Pictures from Brueghel, denuncia a ênfase dada ao processo de
construção do objeto, que, na esteira de Kant, e da reformulação
do próprio conceito de mimese iniciado pela modernidade, é
entendido como microcosmo, espaço autónomo, regido por regras
e por uma lógica próprias, e não como instrumento de reprodução
de uma qualquer realidade que, enquanto tal, lhe é alheia (o
recurso à fábula acentua essa dimensão). Por exemplo, em «The
Hunters in the Snow», poema sobre o quadro homónimo (cf. figura
8), os patinadores não são identificados como imagem, reprodução
de uns quaisquer patinadores que Brueghel possa ter querido
representar, mas sim como signos (elemento) de uma composição
(estrutura). Localizados espacialmente na estrutura que o quadro é
(«to the right beyond // the hill»), eles são transformados em
(concebidos como) inscrição geométrica, padrão, «a pattern of
skaters» (idem). Os versos finais esclarecem que de uma
composição se trata: «Brueghel the painter / concerned with it all
has chosen // a winter-struck bush for his / foreground to / complete
the picture (idem).
Na leitura de Williams, este «winter-struck bush» é representado
no quadro, não porque constasse de um eventual cenário natural
reproduzido pelo pintor; não porque fosse exigido por uma estética
naturalista, mas sim porque desempenha uma função estrutural de
equilíbrio na composição que o quadro é. Algo de idêntico está
presente no segundo poema da sequência, «Landscape with the
fall of Icarus»: «According to Brueghel / when Icarus fell / it was
spring» (idem: 385). «According to» acentua a dimensão do quadro
como leitura… de uma narrativa mítica, recorde-se. Williams
retoma o diálogo com Paisagem com a queda de Ícaro, realizado
por W. H. Auden em «Musée des Beaux Arts». No entanto,
enquanto Auden concede toda a primeira estrofe a uma reflexão
sobre o sofrimento, algo que a crítica associa ao tempo histórico
coevo — a II Guerra Mundial —, Williams opta por elipticamente
indiciar a indiferença da Natureza em «the edge of the sea /
concerned / with itself» (idem: 386), deste modo inviamente
sinalizando a solidão do ser humano. Este fechamento da
Natureza em si, nos seus próprios ritmos e ciclos, surge na
sequência da postura do lavrador que, numa conceção estoica
(nuclear para um determinado ethos americano, por Williams
subscrito), se encontra em harmonia com esses ritmos, com esses
ciclos: «it was spring // a farmer was ploughing / his field / the
whole pageantry // of the year / awake twingling / near // the edge
of the sea» (idem).
Embora o poema simule uma reprodução (descritiva, realista) do
objeto, Williams introduz várias perspetivas através do
enjambement, à semelhança do que sucedera em poemas de Al
Que Quiere!: veja-se a dupla função sintática de «sea» que,
claramente, perturba a leitura. Por seu turno, a ironia do desfecho
trágico da narrativa, que se pretendia heroica, é evocada, nos
versos finais, através de uma palavra («splash») capaz de
reproduzir a insignificância visual relevante no quadro de Brueghel:
«unsignificantly / off the coast / there was // a splash quite
unnoticed / this was / Icarus drowning» (idem).
Outro aspeto deverá ainda ser mencionado, a leitura do
autorretrato realizada por Williams em «Self-Portrait», o poema
que abre esta sequência; vejamos os versos finais: «unshaved his
// blond beard half trimmed / no time for any- / thing but his
painting» (idem: 385). Com efeito, a autoria deste quadro,
descoberto em 1882, havia sido inicialmente atribuída a Brueghel.
Quando, em 1924, Williams visitou o Kunsthistorisches Museum,
em Viena, esta era ainda a autoria que prevalecia. No entanto,
investigação ulterior revelaria não haver relação alguma com o
pintor, pois nem a autoria era a sua, nem o indivíduo retratado era
ele. Depois de ter sido atribuído tanto a Jan van Eyck, como a um
discípulo seu, é hoje identificado como sendo de Jean Fouquet,
tendo como modelo um bobo da corte de Niccolò III d’Este (século
XIV). Esta écfrase revela, assim, ironicamente, a forma
condicionada como Williams aborda o objeto, apontando razões
pré-existentes para uma leitura que não decorria do objeto, mas
sim de um a priori que o levava a nele inscrever um sentido; uma
leitura que ele impunha a esse mesmo objeto. No fundo, este
equívoco expõe a falácia das abordagens biografistas, algo que
Williams recusou nos restantes poemas ao colocar a ênfase na
composição, no entendimento do quadro como microcosmo.
Como acima referi, Brueghel foi objeto de inúmeras interpelações
textuais por parte de poetas americanos. Não sendo minha
intenção proceder à sua descrição, também aqui evocarei apenas
os momentos em que o diálogo entre o texto e o quadro desvenda
algo de diferente para a compreensão do modo como o próprio
conceito de écfrase se vai reformulando à medida que a
modernidade cede lugar à pós-modernidade. Condicionado por
esta opção, convoquei os poemas de Auden e de Williams (poetas
que tão bem sinalizam esta passagem, dela participando).
Poucos anos após a publicação de Pictures from Brueghel vem a
lume uma obra fundadora desta tradição entre nós, Metamorfoses,
de Jorge de Sena. Neste livro de 1963, Sena desenvolve um
intenso diálogo entre o poema e objetos artísticos (quadros,
edifícios, estátuas, fotografias) por ele selecionados, devido à
impressão particular que lhe causaram. Nele, o escritor toma
referentes explícitos das artes visuais como impulso para a criação
dos seus poemas. Descrições, interpelações irónicas ao leitor,
confissões de raiz biográfica mais ou menos explícitas, leituras de
sentidos eventualmente difusos, são algumas das estratégias de
enunciação por ele utilizadas, e que funcionarão como ponto de
partida para uma reflexão sobre vertentes do referido diálogo.
Sena fá-lo consciente da tradição em que se insere e sobre a qual
refletiu em inúmeros ensaios, aspeto a que regressarei mais
adiante no capítulo 4.
Na sequência de Metamorfoses, e prolongando o eco no poema
de outras formas de expressão artística, Sena publica Arte da
Música, um conjunto de poemas suscitados por peças musicais.
Porque, tal como acima escrevi, esta análise se restringe à
interação entre a poesia e as artes visuais, não abordei este último
livro.
Regressando a Metamorfoses. A primeira questão que se coloca
será a de saber se os poemas deste livro são meras descrições,
reproduções verbais de imagens. De facto, ao lermos esses textos
desvendamos estratégias de enunciação específicas, meditações,
apelos, procedimentos de aproximação ao objeto, por vezes,
radicalmente distintos. Importa referir que Sena terá pensado
inicialmente intitular esta obra Museu. No entanto, este título
poderia restringir a perceção que o leitor teria de cada texto,
entendê-lo como mera reprodução verbal de um objeto, quando
aquilo que o poeta pretendia era tomar este como impulso para a
sua meditação; daí a escolha de Metamorfoses, pois esta palavra
evidenciaria o poema como solo de mutação, como algo em que o
sujeito se projeta; como algo que é indissociável da sua
especulação. Retomarei este aspeto no capítulo 4, quando
observar a reflexão crítica e teórica de Sena.
Vejamos, então, quais os traços essenciais dessa diferença.
Porque a convocação em causa é, em Sena, diversificada,
abrangendo as diferentes modalidades (seria legítimo considerá-
las subgéneros?) da écfrase clássica, confinar-me-ei à referência a
poemas que as evidenciem. Começo por aquela que,
aparentemente, se confina a uma estratégia meramente descritiva,
«Gazela da Ibéria». Sena reproduz nestes versos as
características de um objeto que, apesar da ação do tempo,
conseguiu persistir até aos nossos dias, a gazela de bronze da
Ibéria, exposta no Museu Britânico, em Londres — «Suspensa nas
três patas, porque se perdeu / uma das quatro, eis que repousa
brônzea / no pedestal discreto do museu. // Ergue as orelhas,
como à escuta […]» (Sena, 1978: 63). Só após a descrição que,
devido à enargeia, permite ao leitor recriar visualmente o objeto,
Sena procede a uma rutura com a tonalidade até então dominante,
e parte para uma poética da imersão através da especulação a
propósito do contexto em que ele terá eventualmente surgido; uma
especulação que imerge no tempo, tentando desvendar uma
atmosfera, uma sensibilidade, uma humanidade daqueles que o
conceberam: «Há / perdidos tempos sem memória que / morreram
as aldeias nas montanhas / […] / Há muito tempo que esse povo
— qual? — / violado foi por invasões […] / Há muito, mas esta
gazela resta, / […] / Acaso foi / a qualquer deus oferta? Ou ela
mesma / a deusa foi que oferenda recebia? / Ou foi apenas a
gazela, a ideia, / a pura ideia de gazela ibérica?» (idem).
Com efeito, o poema começa por uma descrição do objeto; uma
descrição que, como referi, permite ao leitor recriá-lo visualmente.
No entanto, logo exercita uma fuga; transita para a especulação
intelectual, para a exposição de inúmeras hipóteses de leitura que
possibilitam entender algo que no tempo se diluiu, a sua identidade
enquanto signo de um tempo específico. No primeiro momento
persiste um processo descritivo, um processo que terá os seus
antecedentes remotos no acima mencionado episódio do escudo
de Aquiles. No entanto, a tonalidade do segundo momento do texto
é devedora do caráter especulativo de «Ode on a Grecian Urn»,
nomeadamente no que ao mistério envolvendo o objeto diz
respeito.
O segundo exemplo que selecionei é o poema intitulado «Carta a
meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya», suscitado pelo
quadro Os fuzilamentos de três de maio (cf. figura 9); um poema
que a voz de Mário Viegas fez preservar na memória de gerações
pretéritas, nas quais me incluo.
A tonalidade é neste poema radicalmente distinta da anterior,
desde logo, devido à convocação de outro género literário — mais
correto seria dizer «subgénero» —, a epístola, a qual lhe permite
meditar emocionalmente sobre tópicos que persistem no subtexto
do quadro: a tirania, a resistência, o quotidiano, o sentido da vida.
Ficaram na memória das tais gerações os versos iniciais: «Não sei,
meus filhos, que futuro será o vosso. / É possível, tudo é possível,
que ele seja / aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, /
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém / de nada haver
que não seja simples e natural. / Um mundo em que tudo seja
permitido, / conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso
prazer, / o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por
vós» (idem: 127). Mencionei acima a banalidade democrática que
emerge no poema de Auden sobre o Museu; ora, importa recordar
algo de óbvio, que essa banalidade não predominava neste nosso
país quando Sena escreveu «Carta a meus filhos sobre os
fuzilamentos de Goya».
Sena não se circunscreve, assim, a uma reprodução verbal de
uma narrativa, como ocorre nos exemplos do já mencionado
episódio do escudo de Aquiles, ou noutros momentos singulares
desta tradição descritiva na Antiguidade Clássica que observámos
no capítulo anterior, como a descrição da coberta de Catulo, ou a
representação de Marte e de Vénus em Lucrécio. Aquilo que, à
partida, poderia ser a descrição de um quadro da autoria de Goya,
revela ser, afinal, uma meditação centrifugamente sustentada na
epístola pela simulação de um diálogo com um interlocutor
privilegiado, os filhos. O recurso à designação epistolar e a um
destinatário com semelhante carga afetiva acentua uma relação
intersubjetiva e a intimidade de uma confissão. Acresce a estes
aspetos o facto de esta ser uma mensagem emocionalmente
intensa devido às circunstâncias políticas que enquadram o mundo
em que Sena se movimenta: a Guerra Fria, a ditadura em Portugal,
o seu exílio. Esta é, portanto, uma óbvia expressão política de
sentimento. impulsionado pelo quadro de Goya, e por um episódio
histórico nele retratado. O poema indicia conflitos históricos e
sofrimentos do presente, algo que o leitor de imediato reconhecia,
e com os quais porventura se identificava. Por seu turno, o título do
poema menciona aquela que foi a sua referência primeira, o motivo
que o desencadeou: o quadro. Este lembra que o poema é
também uma metalinguagem que racionalmente se assume como
tal. Através desta dimensão metalinguística, conclui-se que o texto
pode ser expressão de sentimento sem o ser de sentimentalismo;
Sena evita assim o pathos.
Numa (não muito) breve digressão, importa referir que o pathos
inerente a este quadro de Goya é ainda exposto sem
sentimentalismo em «Summer 1969», de Seamus Heaney, um
poema que lembra a banalidade de um quotidiano de convivência
com a arte como encontrámos em Auden. Veja-se como, também
aqui, o Museu começa por ser apenas um espaço acolhedor: «I
retreated to the cool of the Prado» (itálico meu). O encontro com o
quadro decorre de uma forma algo acidental num percurso de
deambulação pelas salas do Museu: «Goya’s ‘Shootings of the
Third of May’ / Covered a wall — the thrown-up arms / And spasm
of the rebel, the helmeted / And knapsacked military, the efficient /
Rake of the fusillade. In the next room / His nightmares, grafted to
the palace wall — / Dark cyclones, hosting, breaking; Saturn /
Jewelled in the blood of his own children, / Gigantic Chaos turning
his brute hips / Over the world» (Loizeaux, 2008: 29). O poeta está
em trânsito pelas salas do Museu, confrontando-se com os
quadros de Goya. É toda uma estética, a do pintor espanhol, que
ele vai assimilando e reproduzindo, através da sua perceção
peculiar, no texto poético.
No contexto criativo que deu corpo a Os fuzilamentos de três de
maio, entre 1810 e 1815, Goya produziu uma sequência de 82
gravuras habitualmente conhecidas como Desastres de la guerra,
partilhando com aquele quadro o mesmo cenário político. Será a
estas que o poeta americano contemporâneo Irving Feldman
dedica um breve texto intitulado «Se aprovechan». Nele a crueza
do pathos dominante em Goya é, de alguma forma, traduzida para
o solo banal da sobrevivência; refiro traduzida, pois esta é a
estratégia inicial e literal do poema que, em seguida, desvenda a
inevitabilidade do gesto dos soldados que deixam nus os
cadáveres apenas porque necessitam de se agasalhar, ou seja, de
sobreviver: «’They take advantage’ — the soldiers need clothes, /
while corpses don’t, who have their repose / And nakedness like a
second birth, / And nose-down sniff new science from the earth. /
So what if nakedness admits the crows!» (Hollander, 1995: 289).
Ainda numa breve cesura face a este percurso por
Metamorfoses, suscitado por Goya, não posso deixar de
mencionar outro poema que, tendo Os fuzilamentos de três de
maio como referente tangencial, toma o diálogo poético de Sena
como impulso. Refiro-me a «Um pouco só de Goya: carta a minha
filha», da autoria de Ana Luísa Amaral. Com a sensibilidade e a
inteligência analíticas que caracterizam o seu discurso poético,
Ana Luísa Amaral exibe a especificidade de um olhar, o da mãe
que se dirige à sua filha através de uma tradição poética que a
poeta reclama como sua, Emily Dickinson, cujo verso «my life a
loaded gun» aqui ecoa: «Num estilo que gostava, esse de um
homem / que um dia lembrou Goya numa carta a seus / filhos,
queria dizer-te que a vida é também / isto: uma espingarda às
vezes carregada / (como dizia uma mulher sozinha, mas grande /
de jardim). Mostrar-te leite-creme, deixar-te / testamentos, falar-te
de tigelas — é sempre / olhar-te amor. Mas é também desordenar-
te à / vida, entricheirar-te, e a mim, em fila descontínua / de
mentiras, em carinho de verso» (Amaral, 2005: 349). Embora sem
o literalismo de uma agenda política feminista, este é um poema
onde brilhantemente se evidencia uma diferença face à
sensibilidade do olhar.
Regressemos a Sena. Em radical contraste com a intensidade
dramática do poema de Metamorfoses, surge a atmosfera
devedora do locus amoenus, dominante nos versos iniciais de «O
balouço, de Fragonard»: «Como balouça pelos ares no espaço /
entre arvoredo que tremula e saias / que lânguidas esvoaçam
indiscretas!» (Sena, 1978: 111). De algum modo sabotando a
atmosfera inicial, evidenciam-se representações e insinuações
eróticas («[…] o sexo e os seios que avolumam presos, / e
adivinhados na malícia tensa»), às quais se associa uma narrativa
de sedução («Como ele a despe e como ela resiste / no olhar que
pousa envie[s]ado e arguto / sabendo quantas rendas a rasgar!») e
traição («tão córnea a graça de um feliz marido»). Segundo o olhar
deste poeta/intérprete, o quadro assenta numa narrativa subliminar
por ele desvendada; o poema revela-se, portanto, como leitura,
processo de desocultação dessa narrativa. Mas a ironia não se
restringe àquela narrativa de sedução e traição; a ironia é também
a do poeta que retoma, para a sabotar, uma tradição eufórica, a do
locus amoenus que, como vimos no capítulo anterior, terá as suas
raízes remotas na Antiguidade Clássica, na descrição do cenário
envolvente da gruta de Calipso, na Odisseia, de Homero.
Uma terceira estratégia ecfrástica surge em «A nave de
Alcobaça», onde, em radical oposição à discursividade declarativa
dos dois poemas acima mencionados — «Carta a meus filhos
sobre os fuzilamentos de Goya» e «O balouço, de Fragonard» —,
se ergue uma tonalidade epigramática. Sena concebe aqui um
discurso sincopado, um ritmo, uma respiração, marcados pela
elipse, numa sucessão de metáforas, comparações e perífrases; é
nelas que se reconhece a sua reflexão sobre a estética subjacente
ao objeto, à sua identidade — o estilo e a sensibilidade góticos.
Através dessas convocações retóricas designam-se instantes de
uma possibilidade de acesso ao objeto: «Vazia, vertical, de pedra
branca e fria, / longa de luz e linhas, do silêncio / a arcada
sucessiva, madrugada / mortal da eternidade, vácuo puro / do
espaço preenchido […] / geometria / do espírito provável,
proporção / da essência tripartida, ideograma / da muda imensidão
que se contrai / na perspectiva humana. / Gesto / de pedra branca
e fria, sem limites / por dentro dos limites. Esperança / vazia e
vertical. Humanidade» (idem: 83).
Sena não se restringe, portanto, à descrição (designação) de um
objeto, tal como na tradição epigramática que, no classicismo
grego, surgira ligada à estatuária antes de se autonomizar como
género menor. Com efeito, «A nave de Alcobaça» exibe uma vasta
erudição que passa pelo conhecimento do universo mental e
cultural da época que constitui o cenário primeiro do monumento.
Além disso, designa um diálogo entre signo e contexto, numa
profunda interação entre os princípios arquitetónicos que lhe
deram forma e a sua essência espiritual. Será a nível da estrutura
do poema que esta tradição nele ecoa. A enunciação das vertentes
filosóficas, culturais, espirituais e arquitetónicas surge numa
sucessão elíptica dela devedora. Recorde-se que este caráter
elíptico se ergue contra a dimensão predominantemente discursiva
de Metamorfoses, e que decorre de semelhante estratégia de
enunciação. Ainda numa mais intensa radicalidade elíptica deve
ser mencionado o dístico intitulado «A pequena estátua», de
Sophia de Mello Breyner Andresen: «Presença ritual e tutelar /
Companheira da sombra desenho do silêncio» (Andresen, 1991:
135). Repare-se como, numa estratégia metonímica, cada um
destes fragmentos verbais enviam, respetivamente, para a função
do objeto, para a sua relevância num contexto comunitário, para a
coabitação entre estética e meditação em torno do sagrado, e para
a sua capacidade expressiva. Compete, portanto, ao leitor
desvendar o sentido que se insinua na aparente transparência
destas palavras.
Num espaço entre a catalogação mais extensa de Sena e a
depuração elíptica de Sophia, pode configurar-se uma estratégia
de compromisso, isto é, que concilia uma vizinhança do registo
elíptico com uma sequência sintática mais analítica. Encontro um
exemplo desta estratégia em «O esquiador», a écfrase que
António Ramos Rosa concebe numa homenagem a Vespeira.
Neste poema Ramos Rosa começa por exibir breves exclamações,
sequências assertivas que, de algum modo, identificam a estrutura
profunda do referente — «Facilidade e neve. / E uns traços leves,
duros» (Ramos Rosa, 1997: 124) —, para, ainda que tenuemente,
com a introdução do verbo convocar uma explicação analítica: «a
precisão de quem desliza e marca, / a claridade do acto solar e
frio» (idem). Será nesta tensão, neste espaço sintático entre a
elipse radical e o impulso analítico que a écfrase se estrutura.
Tendo ainda em mente «A nave de Alcobaça», devo recordar
outro poema, aquele que Miguel de Unamuno dedicou à catedral
de Barcelona. Faço-o pelo facto de este exibir uma tonalidade
diametralmente oposta: à sobriedade elíptica de «A nave de
Alcobaça» contrapõe-se a prosopopeia de «La catedral de
Barcelona». No seu registo radicalmente subjetivo, qual falácia
patética, o poema culmina numa tonalidade claramente erótica:
«La catedral de Barcelona dice: // Se levantan, palmeras de
granito, / desnudas mis colunas. / […] / Al milagro de fe de mis
entrañas / la pesadumbre de la roca cede, / de su grosera masa se
despoja / mi fábrica ideal […] // Ven, mortal afligido, entra en mi
pecho, / entra en mi pecho y bajaré hasta el tuyo; […]» (Unamuno,
1980: 26).
Outro exemplo desta representação de edifícios em
Metamorfoses, alargando-se aos espaços circundantes, surge em
«Mesquita de Córdova». Nos versos iniciais, esta inserção espacial
chega a indiciar o acima referido tópico do locus amoenus —
«Haviam sido os fustes de pequenos bosques / a recortarem-se no
azul do céu, / ao cimo das colinas, ou à beira de água /
espelhando-se nelas como a cristalina / de ninfas ondulância»
(Sena, 1978: 79). No entanto, opera-se uma subtil e gradual
mudança na tonalidade do poema à medida que a reflexão
progride, indo ao encontro da memória histórica; uma memória
feita da sucessão dos tempos e também de conflitos («O dardejar
do tempo / e da cristandade os fulminou», idem), do
reconhecimento de lugares e tradições vários («de toda a parte
vieram, ruínas fulminadas, / suportes dispersos dos deuses e dos
homens […]», idem). Assim se foi concebendo um espaço de
equilíbrio entre a natureza, o homem e a arte, onde o
transcendente, mesmo na sua aparente ausência, se convoca;
embora uma presença política muçulmana tenha há muito deixado
de existir, o legado da sua perceção particular do transcendente
persiste: «Alá partiu, deixando a branca / cidade às moscas, à
poeira, às torres de onde / dura de sinos se tornou a voz / do
muezzin cantando à tarde. / Mas / alguém pode partir de uma tão
rígida / viril floresta: deuses traduzidos / e congregados para Sua
glória?» (idem: 80). Indicia-se nestes derradeiros versos uma
sensibilidade de reconhecimento da alteridade, pois esta é uma
memória feita de diferentes estratos e camadas que, apesar de se
sucederem e sobreporem, não deixam de se contaminar, de
incorporar no novo discurso a sensibilidade do que o precedeu.
Mais uma vez, o objeto funciona como leitmotiv para um discurso
que se pretende transitivo, isto é, para um olhar que não se limita à
perplexidade, ao provinciano pasmo face ao caráter
impressionante do referente. Este é, enfim, um olhar que, com
inteligência, procura os seus nexos originais. Curiosamente, esta
estratégia de representação de edifícios e dos espaços que os
circundam, conhece, uma vez mais, os seus antecedentes remotos
na Antiguidade Clássica, neste caso na descrição dos jardins e do
palácio de Alcínoo, na Odisseia, sendo, ainda na Antiguidade,
prolongada em outros dois momentos: as reproduções verbais dos
murais do templo de Juno em Cartago e dos portais do templo de
Apolo, feitas por Eneias na Eneida; e a descrição do palácio do
Sol, feita por Ovídio nas Metamorfoses.
Tanto «A nave de Alcobaça» como «Mesquita de Córdova» são
exemplos de signos que, na sua imponência, resistiram à ação do
tempo. Em contrapartida, «Cabecinha romana de Milreu» introduz
a temática da fragilidade do objeto. Este, Cabecinha romana das
ruínas de Ossónoba, exposto no Museu de Faro, surge aqui na
sua fragilidade de fragmento em confronto com a solenidade e o
poder característicos da cena histórica da qual emergiu: «Esta
cabeça evanescente e aguda, / tão doce no seu ar decapitado, / do
Império portentoso nada tem» (idem: 71). No entanto, será nessa
mesma fragilidade que se denuncia a ironia do poema. Com efeito,
«Esta / cabeça evanescente resistiu: / nem deusa nem mulher,
apenas ciência, / de que nada nos livra de nós mesmos» (idem).
Na perenidade do objeto reconhece-se uma capacidade do
referente artístico de proporcionar àquele que o enfrenta um novo
olhar sobre si próprio. Ou seja, Sena realiza uma releitura da
perenidade da ruína romântica que, como adiante veremos, se
configura em Shelley. Esta é, com efeito, uma vertente devedora
de uma tradição romântica figurada em «Ozymandias». Como
adiante se verá, o poeta realiza aqui aquilo que, num sentido
rigoroso, se poderá designar écfrase, uma descrição de um objeto
perdido no tempo que apenas o poema recupera. O referente
assinalado nesse poema resiste à ação do tempo e da natureza,
designando uma perenidade que falta ao efémero poder temporal;
uma antecipação, afinal, dos versos de «Gazetilha»: «Dos Lloyd
Georges da Babilónia / Não reza a história nada».
O sujeito de enunciação constitui aqui uma inevitável presença,
enquanto leitor, intérprete do objeto; nele, uma vez mais, se
reconhece a forte identidade do autor. Nem todos os poemas
denunciam, porém, essa presença explícita. Por vezes, como
sucede em «Céfalo e Prócris», a instância autoral simula a diluição
perante o referente, numa aparente neutralidade referencial com
que as genealogias e atributos divinos são enumerados: «Do deus
da lira e dos ladrões, do psicopompos, / senhor do caduceu, e da
do orvalho deusa, / és, Céfalo, o filho. E neto de / Zeus e de
Cécrops; e Cronos é com Rea, / a mãe dos Deuses, teu avô
também. / De Erecteus de Atenas, Prócris és / uma das filhas, neta
pois de Gea / que mãe de Cronos fez Urano, o céu, / o sobranceiro
Céu ao Caos originário, / de que emergiu o Amor […]» (idem: 91).
Neste poema inspirado no quadro A morte de Prócris, de Piero di
Cosimo, o poeta não subscreve a «negative capability»,
sustentada pelo Keats de «Ode on a Grecian Urn» — a aparente
diluição da identidade autoral no referente —, porque à
representação do objeto não é estranha a glosa do tema por parte
de Camões, algo que o próprio Sena elucida nas suas Notas. Será,
portanto, necessário recorrer a elas para podermos percecionar a
subtileza da construção deste texto, pois Camões configura um
olhar que subliminarmente percorre o poema. Ironicamente, esta é
uma interação entre a poesia e a arte que se sabota a si própria
pela aproximação intertextual realizada a Camões. Esclarece Sena
nas referidas Notas por ele elaboradas acerca destes poemas:

O trecho entre aspas foi citação, feita de memória, de De


Hominis Dignitate, de Pico della Mirandola, obra que li primeiro,
em 1956 […]. O assunto do mito grego, mas não o quadro de
Piero di Cosimo, foi glosado por Camões, se é dele a sequência
de dois sonetos, incluída na Segunda Parte das Rimas (1616).
São os que começam «Por sua ninfa Céfalo deixava» e
«Sentindo-se tomada a bela esposa». […] Cumpre acrescentar
que há dúvidas acerca da correcta identificação iconográfica
deste quadro de Piero di Cosimo. [Idem: 230]

Contrariamente ao que sucede em Keats, a identidade autoral


não se dilui, antes constituindo uma evidência pela sua própria
formulação crítica denunciada nos segmentos representados entre
aspas: «se de enganos, / de mutações, de incestos, e de crimes, /
é feita a liberdade de nascer-se humano, / ‘nem do céu, nem da
terra, nem mortal / nem imortal, mas livre e altivo artista / que o
próprio ser esculpe e que o modela / na forma preferida’» (idem:
91-92).
Antes de progredir neste Museu de Sena, de metamorfoses feito,
importa proceder a uma digressão ao encontro de uma outra
estratégia de enunciação por ele praticada. Tomo como ponto de
partida para este excurso «Solilóquio de Greco no enterro do
conde de Orgaz», de António Osório. Como o título explicita, o
poeta coloca a entidade criadora, o artista, no centro da
enunciação, o que significa estarmos no domínio do monólogo
dramático. Ao conferir ao artista esse poder, o poema invade o
espaço da subjetividade absoluta, visto simular uma perceção do
objeto que lhe (nos) está irremediavelmente vedada: quais terão
sido as cogitações do autor, eis algo que desconhecemos —
«Quatrocentos anos depois, importa-me / digam ser a minha arte /
do desmembramento e ascensão nucleares, / levítica, alienada?
Ou alguém hesite / pelos séculos entre este finado e as Meninas /
de Velásquez?» (Osório, 1985: 97). No entanto, esta estratégia de
enunciação, apesar de radicalmente especulativa, tem a virtude de
lembrar um aspeto nuclear para o processo criativo: a humanidade
que lhe subjaz. Algo de idêntico surge em «Sainte-Victoire depois
da morte de Cézanne», de Al Berto, onde, fantasmaticamente, o
artista desponta do reino dos mortos para verbalizar o que terá
ficado por conceber: «[…] a morte não consentiu que eu
executasse / as vislumbradas geométricas paisagens e / comigo se
perdeu o segredo dessa pirâmide / que é sainte-victoire vibrando /
na cegante luminosidade do meio-dia» (Al Berto, 1987: 489).
Qual «poeta camaleão», projetando-se, insinuando-se e
redescobrindo outras intuições estéticas através da imersão na
alteridade, Al Berto dá voz a dois outros pintores, verbalizando os
seus próprios agons criativos, em «Esboço de natureza-morta por
Juan Gris» e em «Paul Klee e o peixe de lume» (idem: 490-491).
Embora estes poemas não se identifiquem com a écfrase
convencional, não deixam de revisitar este subgénero. Com efeito,
eles permitem que o leitor possa visualizar esse objeto, embora
suscitado por um olhar «a partir do interior», ou seja, do combate
que o artista tem com o processo criativo.
Contrariamente ao episódio do escudo de Aquiles, em que o
leitor «é espectador» desse processo, tanto em «Esboço de
natureza-morta por Juan Gris» como em «Paul Klee e o peixe de
lume», aquilo que ao leitor é deixado ver são os supostos limites
com que o criador se terá confrontado. Estamos, portanto, no
pleno domínio do simulacro. Com efeito, Al Berto não confina a
presença das artes visuais na sua poesia à pintura. Presença
particularmente relevante será a do fotógrafo Paulo Nozolino a
quem dedica «Paulo Nozolino / 4 visões» e «Retrato de fugitivo por
Paulo Nozolino». Enquanto na série de poemas de «Paulo
Nozolino / 4 visões» o olhar do artista chega a assumir a
enunciação, convocando um vasto campo semântico ligado à sua
arte, o qual culmina na designação da própria câmara em
«4./Leica», já «Retrato de fugitivo por Paulo Nozolino» constitui um
reconhecimento, por parte do poeta, do eventual significado do
percurso criativo do fotógrafo que se pretende de síntese artística,
a Poesia de que falava Wallace Stevens em The Necessary Angel:
«e de fotografia em fotografia chega exausto / ao minucioso poema
a preto e branco» (idem: 483).
Como variante desta última vertente de verbalização textual, a da
diluição da figura autoral face ao referente, devo apontar a, acima
mencionada, influência do monólogo dramático que terá conhecido
o seu apogeu com Robert Browning. João Almeida Flor defende
que o «monólogo de cada persona é apenas uma das cores do
espectro solar que o prisma do poeta decompõe no processo de
contínua fragmentação e análise, que decorre no espaço plural da
consciência» (Flor, 1980: 14). O célebre poema de Browning
intitulado «My Last Duchess» ilustra esta leitura de Almeida Flor.
Com efeito, este texto é peculiar pelo facto de conciliar duas
estratégias, à partida, distintas: a écfrase imaginária (à
semelhança do escudo de Aquiles) e o monólogo dramático.
Refere Murray Roston (Roston, 1996: 141) que a persona a quem
compete a enunciação lembra um diretor de Museu.
A eventual conexão com factos comprovados historicamente,
ligados ao duque de Ferrara (idem: 145), não é particularmente
relevante para a análise deste poema. Para uma leitura que faça
participar este texto do diálogo que tenho vindo a analisar,
ressaltará a estrutura dialógica que lhe dá forma. Observemo-la.
Este diretor conduz o interlocutor-visitante (o destinatário), numa
visita guiada, pelas salas de uma Galeria que é posse sua. Numa
atmosfera coloquial, apresenta as obras de arte, descreve-as,
identificando autores, ou eventuais mecenas a quem elas se
destinavam. Como qualquer diretor de uma Galeria/Museu, domina
o espaço: aquelas salas são-lhe familiares; reconhece os lugares
destinados aos objetos; os próprios objetos, as suas identidades
(origens, escolas, autores, inovações, redundâncias, episódios
laterais a eles relacionados, paixões que motivaram) participam da
sua intimidade; os contornos de luz e sombra que sobre eles
incidem são-lhe percetíveis nas mais variadas subtilezas. No
entanto, contrariamente ao diretor, o seu poder é absoluto, já que
aquele espaço é literalmente seu, participa do seu quotidiano no
mais banal dos gestos: esta Galeria/Museu é afinal o seu palácio,
e aquelas obras de arte, efetivamente, lhe pertencem.
O visitante-destinatário permanecerá em silêncio ao longo do
percurso, da viagem em que é iniciado nos segredos daquelas
peças. Por seu turno, o leitor, no silêncio do ato solitário da leitura,
identificar-se-á com ele; tal como ele, entrará em cena. O poema
inicia-se com a dramatis persona do dono do palácio, do duque,
apresentando um quadro ao destinatário: «That’s my last Duchess
painted on the wall, / Looking as if she were alive. I call / That piece
a wonder, now: Frà Pandolf’s hands / Worked busily a day, and
there she stands» (Flor, 1980: 24). Esta é, portanto, a imagem da
já desaparecida esposa do duque: «as if she were alive» não
significa apenas uma capacidade de reprodução da sua imagem,
como se comprovará alguns versos depois.
Após ter sido feita a apresentação do quadro, e terem sido
identificados o referente e o respetivo autor, Frà Pandolf, a persona
do duque convida o destinatário a suspender, por alguns instantes,
o percurso ao longo do palácio: «Will’t please you sit and look at
her?» (idem). Tal como um qualquer visitante, num qualquer
Museu, o interlocutor senta-se para observar os detalhes da obra,
para a descodificar. Prossegue a persona do duque: «I said / ‘Frà
Pandolf’ by design, for never read / Strangers like you that pictured
countenance, / The depth and passion of its earnest glance, / But
to myself they turned […]» (idem). O leitor sabe, então, que o
interlocutor (e consequentemente o leitor) é privilegiado, visto
ter(em) acesso a um objeto que nenhuns outros olhos, além dos
do duque e do pintor, tiveram. O quadro está oculto por uma
cortina que o duque, e apenas ele, pode manipular: «(since none
puts by / The curtain I have drawn for you, but I)» (idem).
Atente-se nas potencialidades do monólogo dramático aqui
exploradas por Browning. Para além de designar o ato literal da
exposição do quadro, o convite e o gesto da persona estabelecem
uma analogia óbvia com a representação dramática: o espectador
entra na sala, senta-se, o pano abre, revelando o espaço cénico e
o(s) ator(es); inicia-se a representação; esta termina, «cai» o pano,
o espectador levanta-se e abandona o espaço. Retomemos o
momento em que a observação do objeto dá lugar a uma leitura
das suas subtilezas (numa metáfora da análise de um quadro). A
representação do rosto é indissociável da capacidade para captar
a expressão, o olhar do sujeito, «that pictured countenance»,
acima citada. Será aqui que reside o génio do artista e o mistério
que liga o retrato da duquesa à clausura que lhe foi imposta pelo
duque: «[…] And seemed as they would ask me, if they durst, /
How such a glance came there» (idem). Afirma Murray Roston que,
tal como a Filomela, também à duquesa foi negado o direito à
enunciação (Roston, 1996: 145), à palavra, ao logos. A
prosopopeia, inerente a «Ode on a Grecian Urn» ou a
«Ozymandias», é, neste caso, silenciada pelo poder da persona a
quem cabe a enunciação. Poesia, discurso e poder (patriarcal)
revelam-se, deste modo, indissociáveis.
Ao afirmar «Sir, ’t was not / Her husband’s presence only, called
that spot / Of joy into the Duchess’s cheek» (Flor, 1980: 24), o
duque indicia algo que não conseguira dominar na relação com a
esposa; algo que o retrato reiteradamente lhe lembra (daí o facto
de ele estar escondido): o olhar da duquesa não o instituíra como
destinatário único. A sedução, o engano, a traição, são por ele
insinuados, de uma forma decorosa, ao evocar o temperamento da
duquesa: «She had / A heart — how shall I say? — too soon made
glad, / Too easily impressed; she liked whate’er / She looked on,
and her looks went everywhere» (idem). Como sugere este último
verso, esse olhar é flutuante, não se concentra num destinatário
único (o marido). Ele figura, portanto, o engano; daí que funcione
como centro da composição (e da interpretação) e esteja
escondido (para evitar interpretações mais jocosas que lembrem
ao duque os enganos de que terá sido alvo). Afinal, foi o artista,
Frà Pandolf, quem soube captar a essência do referente.
Ironicamente, considerando que o duque tem o poder da
enunciação, ele revela, como vimos nos versos acima citados,
dificuldade na expressão (manipulação?) «how shall I say?». Mais
adiante, ao tentar descrever o caráter da duquesa, isto é, ao tentar
reorientá-la de uma forma socialmente aceite, que não faça dele
objeto de comentários jocosos, o duque reitera (simula) esta sua
dificuldade de expressão: «Even had you skill / In speech — (which
I have not) — to make your will / Quite clear to such an one, and
say, Just this / Or that in you disgusts me; here you miss / ‘Or that
exceed the mark’» (idem: 26). Insinua-se que, estivesse ele na
posse das artes da elocução, o desenlace teria sido outro, e
aquele olhar não constituiria uma reatualização do passado, uma
lembrança que ele pretendeu esconder sob uma cortina. A razão
desse gesto é explicitada mais adiante: «Oh sir, she smiled, no
doubt, / Whene’er I passed her; but who passed without / Much the
same smile? This grew; I gave commands; / Then all smiles
stopped together. There she stands / As if alive» (idem). O duque
conclui a leitura do quadro e convida o interlocutor a prosseguir:
«Will’t please you rise? We’ll meet / The company below, then»
(idem). Termina uma representação enquanto outra se inicia, a que
envolve as circunstâncias sociais daquele encontro: «I repeat, /
The Count your master’s known munificence / Is ample warrant that
no just pretence / Of mine for dowry will be disallowed; / Though his
fair daughter’s self, as I avowed / At starting, is my object» (idem).
Só neste momento é revelado ao leitor o contexto em que a
enunciação se desenrola: o de um contrato de casamento ao qual
não é obviamente alheia a discussão acerca do dote. Aquele
retrato era o da «my last Duchess»; uma «next Duchess» se
avizinha. A ambiguidade dos versos finais envia simultaneamente
para o poder material e para o poder sobre a futura esposa:
«Notice Neptune, though, / Taming a sea-horse, thought a rarity, /
Which Claus of Innsbruck cast in bronze for me!» (idem). O ato de
domar o cavalo-marinho, representado na estatueta, simbolizará
um exercício de controlo e de poder que, no passado, o duque não
teria conseguido realizar.
Além destes aspetos relacionados com a enunciação e com o
diálogo entre sujeito e objeto artístico, Murray Roston chama a
atenção para o facto de Browning se centrar num universo artístico
renascentista. Contrariamente ao fascínio da Antiguidade Clássica
que observámos com os poetas românticos, e que se refletia
igualmente no próprio espaço museológico, em meados do século
XIX ressurge um interesse pelo Renascimento italiano. Este
interesse, que não era alheio à ação do crítico de arte John Ruskin
e do próprio príncipe Alberto, espelharia afinal um ethos
oitocentista que pretendia exaltar uma cultura centrada no
indivíduo e no seu caráter empreendedor.
Ainda antes de regressar à poesia de Sena, devo sinalizar
«Escultor de Tiana», do poeta de Alexandria Konstandinos Kavafis;
um poeta que, sob a designação de Constantino Cavafy, Jorge de
Sena deu a conhecer entre nós no «Suplemento Literário» de O
Comércio do Porto, nesse já distante dia 9 de junho de 1953.
Kavafis, como nos habituámos a designá-lo a partir da tradução de
Joaquim Manuel Magalhães e de Nikos Pratsinis, recorre em
«Escultor de Tiana» ao monólogo dramático para dar precisamente
voz àquele que foi um dos silenciados no poema de Browning, o
artista. Será este que, com altivez, hubris até, num simulado
diálogo com o leitor, afirma a sua celebridade: «Como devem ter
ouvido, não sou um principiante. / Pelas minhas mãos não pouca
pedra passa. / E sou em Tiana, na minha pátria, / bastante
conhecido; e aqui muita estátua / me encomendaram senadores»
(Kavafis, 2005: 97). Porque, como apontam Magalhães e Pratsinis,
estamos perante um «poema aparentemente histórico» (idem:
423), é a ironia da efemeridade e do esquecimento que prevalece.
Regressando a Sena e à sua prática do monólogo dramático. A
tensão explícita ou latente que Sena mantém com o espetro
político, literário e cultural do seu tempo será uma das tonalidades
que ecoa no poderoso monólogo dramático de Metamorfoses,
intitulado «Camões dirige-se aos seus contemporâneos». A
imagem de Camões escolhida para acompanhar este poema, é a
de um busto em mármore realizado por Bruno Giorgi que se
encontra depositado no Ministério da Educação do Brasil. Nela
Camões é figurado com as pálpebras cerradas, numa postura de
meditação, de recusa daqueles que o rodeiam, que o olham. A sua
persona a que Sena dá voz revela-se, pelo contrário,
particularmente enfática e declarativa, como evidenciam os versos
iniciais: «Podereis roubar-me tudo: / as ideias, as palavras, as
imagens, / e também as metáforas, os temas, os motivos, / os
símbolos, e a primazia / nas dores sofridas de uma língua nova, /
no entendimento de outros, na coragem / de combater, julgar, de
penetrar / em recessos de amor para que sois castrados. / E
podereis depois não me citar, / suprimir-me, ignorar-me, aclamar
até / outros ladrões mais felizes. / Não importa nada: que o castigo
/ será terrível» (Sena, 1978: 99).
Neste simulacro de enunciação, Sena transfere para a voz de
Camões a amarga consciência da incompreensão de que ele
próprio sente ser alvo por parte dos seus contemporâneos. O
pathos inerente à intencionalidade da denúncia é atenuado por
uma tonalidade de oratória retórica simuladora de um discurso que
tinha por destinatário uma audiência específica, a sociedade do
seu tempo, a qual era interpelada na sua ignorância. Esta dever-
se-ia ao diálogo em atraso que o público coevo realizaria com o
poeta, nomeadamente pelo facto de ser incapaz de entender que,
num tempo histórico em que uma mudança de paradigma ocorre (a
passagem da época medieval para a moderna), o poeta configure
essa mudança numa reinvenção da linguagem, uma linguagem
que interioriza a mudança e a reflete (recorde-se William
Shakespeare).
Reconhecer-se-ão, assim, nesta «voz de Camões» algumas das
inquietações do próprio Sena; tratar-se-á, portanto, como referi, de
um processo de transferência que, em certa medida, pode
designar uma situação universal, algo que transcende
circunstâncias temporais e históricas concretas: os poetas (os
artistas) não seriam compreendidos pelas sociedades dos seus
tempos. O tempo funciona aqui como juiz supremo da validade
artística. Entre outros aspetos, Sena ironiza ainda, nos versos
subsequentes, a consagração tardia, marcada por rituais sociais e
políticos (a evocação do poeta feita pela ditadura espreita nestes
versos) e pela necessidade de exibir uns restos mortais que
simulem a sua presença; a ironia suprema será a do esquecimento
ao qual os contemporâneos estariam votados, em contraste com a
memória preservada do artista. Ao optar por uma persona, Sena
pode, afinal, construir uma sátira sobre quão difícil é uma obra ser
assimilada no seu tempo, e sobre a forma como ela pode ser
recuperada politicamente. A estratégia dramática evita o pathos
que seria inevitável se o sujeito de enunciação de imediato se
confundisse com a identidade do poeta.
Constata-se que, na sua especificidade, as estratégias de
enunciação observadas em Metamorfoses denunciam uma radical
filiação nas grandes vertentes dessa interação entre o texto e as
artes visuais na tradição literária ocidental, observadas no capítulo
anterior. Aliás, só um leitor familiarizado com esse cenário clássico
poderá reconhecer a amplitude e profundidade das potencialidades
enunciativas levadas a cabo por Sena. Vejamo-las. Serão
essencialmente seis essas vertentes, que correspondem a outras
tantas tradições. Sintetizo-as: descritiva; epigramática; locus
amoenus; representação de edifícios e dos espaços circundantes;
a ruína; a diluição da figura autoral face ao referente.
Não foi objetivo meu proceder a uma análise exaustiva dos
poemas de Metamorfoses, nem das subtilezas dos textos, e dos
diálogos que eles desenvolvem entre si (por exemplo, a interação
subliminar entre a «temática da traição», nuclear em «O balouço,
de Fragonard», e transversalmente irónica em «Cabecinha romana
de Milreu»), mas sim tentar exibir em que medida eles denunciam
quer uma profunda consciência e manipulação das tradições da
interação entre a poesia e as artes e da écfrase, em particular,
radicadas na Antiguidade Clássica, quer um vasto saber de
contextos históricos, de formulações estéticas, de tensões
individuais e coletivas. Como vimos, Sena não reproduz os
objetos, ele toma-os como impulso para reflexões várias onde a
sua perceção do real se insinua. Refere Joaquim Manuel
Magalhães a este respeito:

Todos estes poemas partem de obras anteriores, partem da


evidência de outras formações de sentido não para um encontro
reprodutor, que conduzisse a uma sua leitura interpretativa, mas
para um desvio que as toma como impulso, como solo de
significações para outras obras escapando ao sentido dessas
obras anteriores. Por aí se desdobrarem nos seus sentidos
próprios que, muitas das vezes, são um eco longínquo do que
essas obras anteriores intencionavam ser. [Magalhães, 1981a:
27]

Esta breve viagem pelas grandes vertentes do diálogo entre a


poesia e a arte, e também da concretização específica da écfrase,
e pela sua presença em Metamorfoses, exemplifica, como referi, a
amplitude do processo de reformulação levado a cabo por Sena.
Nela se projeta ainda obviamente todo o esforço intelectual e de
elaboração crítica e teórica perseguido ao longo de inúmeros
projetos através dos quais um poeta maior se construiu. Para
melhor o entendermos, deveremos ter presente a pluralidade de
registos e estratégias acima delineada no capítulo consagrado ao
solo onde essa tradição se fundou: a Antiguidade Clássica, Grécia
e Roma. Com efeito, uma leitura de Metamorfoses permite ao leitor
obter um cenário onde converge essa pluralidade de estratégias.
Para o conceber o poeta assumiu-se como interpelador crítico dos
signos com os quais se cruzava no espaço físico e/ou memorial do
Museu, no seu Museu imaginário, afinal.
Prosseguindo nesta convocação de obras que ganham corpo em
torno do conceito de espaço museológico, devo assinalar um livro
vindo a lume em 1975, Mausoléu, do poeta alemão Hans Magnus
Enzensberger. Numa síntese descritiva, refere João Barrento,
autor da sua tradução para português, que «Enzensberger assesta
a lupa sobre trinta e sete figuras, cientistas e revolucionários,
engenheiros e inventores, políticos e artistas, para, com argúcia,
lhes devassar vidas e obras e elaborar um catálogo
impressionante das grandezas e misérias do género e do génio
humanos» (Barrento, 2004: 17). Emergem aí «as fragilidades
humanas […] dos agentes do progresso na cena da história»
(idem). Contrariamente ao que tenho vindo a exibir — textos
poéticos que evocam outros textos —, Mausoléu situa-se num fio
diacrónico exógeno, isto é, no de uma linhagem suscitada por
obras onde conflui a idiossincrasia de uma sensibilidade pessoal
com a História; refiro-me a Representative Men, do ensaísta e
poeta norte-americano Ralph Waldo Emerson, e On Heroes, Hero-
Worship, and the Heroic in History, do ensaísta escocês Thomas
Carlyle, com as suas galerias de homens que seriam emblemas
dos tempos em cujas existências decorreram. Semelhante
inscrição neste legado do pensamento confere a Mausoléu uma
óbvia ressonância política, da qual tanto a dimensão poética como
o ponto de vista autoral participam. Para melhor ilustrar estas
vertentes, destaquei um conjunto de poemas que se me afiguram
significativos da tese que acabo de propor, nomeadamente a que
se prende com a centralidade da meditação sobre o tempo, a partir
da qual se insinua(m) a(s) alteridade(s).
Alertando para o facto de os títulos dos poemas se restringirem
laconicamente, ao longo do livro, às iniciais dos indivíduos que
constituem os seus referentes, começo pelo poema intitulado «G.
de’ D. (1318-1389)», sobre Giovanni de’ Dondi. À semelhança do
que sucederá ao longo do livro, devemos recorrer ao espaço
paratextual, mais precisamente ao Glossário para identificar o
objeto. Neste caso surge a figura de um pioneiro da relojoaria, o
que permite ao poeta peregrinar pelo tempo, abordando as
circunstâncias peculiares que envolveram o labor de Dondi, para
concluir melancolicamente num certo eco do Eclesiastes: «Outros
predadores. Outras / palavras e rodas. Mas / o mesmo céu. / Nós
continuamos a viver / nessa Idade Média» (Enzensberger, 2004:
31). Algo obviamente, é uma meditação sobre o tempo que neste
texto persiste.
Tendo igualmente o tempo como leitmotiv, «J.G.G. (1395-1468)»,
sobre Gutenberg, restringe o seu enfoque à passagem do tempo
que se evidencia na alteração do processo de fixação do texto —
«Um livro igual, mas não o mesmo. A arte / da escrita artificial:
uma coisa metálica» (idem: 33; itálico na fonte), que decorre de
uma ausência do corpo, do gesto, de uma desumanização —
«sem a ajuda da cana, do buril ou da pena, / mas pela junção das
formas» (idem: 35), com a consequente imposição da máquina, e
do processo que ela define: «a arte da escrita artificial» (idem).
Ironicamente, a nova realidade existe enquanto resto — «foi o que
ficou» (idem). Com efeito, este pode ser um exercício museológico
que Eucanaã Ferraz associa a uma reconfiguração do passado;
mais precisamente a uma sua recomposição, eventualmente
política: «Emendaremos uns restos / que se quebraram no tempo /
mas pouco importam as partes / que se perderam nos saques. /
Nós trataremos o saldo / com o mais sumo desvelo» (Ferraz, 2016:
43). Parecem ecoar nestes versos as polémicas envolvendo a
transmigração de artefactos de outras paragens para os Museus
do Ocidente, como a que ainda envolve os chamados Elgin
Marbles.
Num retorno a «J.G.G. (1395-1468)», esclareço que, mais
adiante, sinalizarei instantes textuais em que o dispositivo técnico
de captação do real — na fotografia ou no cinema — são
convocados. Com efeito, o dispositivo assume neste texto de
Enzensberger uma dimensão endógena, visto ser a própria
essência (identidade) do texto que se altera.
«G.B.P. (1720-1778)», poema em prosa dedicado ao gravador
italiano Giovanni Battista Piranesi, é provavelmente o poema de
Mausoléu onde de forma mais intensa surge a convocação da arte
como signo capaz de capturar a atmosfera de um tempo,
nomeadamente os fantasmas que no seu subconsciente se
agitam. Dividido em seis secções — «As marionetas», «A
arqueologia», «Carceri d’Invenzione», «Tortura e indústria», «O
cérebro» e «A alucinação» —, o texto exibe diferentes pontos de
vista a partir dos quais se configuram tonalidades distintas. No
início — «As marionetas» — a écfrase prevalece, embora o
referente permaneça em mistério:

Todas estas gravuras em cobre representam, visto de diversas


perspectivas, um único palco gigantesco, tão complexo e tão
grande que os actores, quais liliputianos, se perdem nas suas
profundezas. Decide tu, leitor, se serão cavaleiros, cortesãs,
vadios e aventureiros, figuras do teatro de Goldoni que nos
saúdam destas galerias que causam vertigens, ou figuras
artificiais, autómatos, brinquedos mecânicos. A luz a que sobem
as escadas cambaleando é imprecisa, e parece que elas, quais
funâmbulos, caminham sem o saber à beira de um abismo. Não
conhecemos a peça que é representada diante destas gravuras
sem limites. [Enzensberger, 2004: 89]

Porque só com a sua presença o processo criativo se encerra,


convoca-se o leitor para que este descodifique um sentido que,
devido à sua ambiguidade, parece iludi-lo. Em seguida, embora
ainda nesta primeira parte, o poema assume a tonalidade de uma
narrativa biográfica, desvelando o percurso de vida de Piranesi, da
partida de Veneza à chegada a Roma, ao impacto que esta cidade
nele terá tido, e à sua postura enquanto artista: «ele fica aí e grava
aquilo que vê» (uma atitude que levaria ao assassinato do
desenhador de The Draughtman’s Contract, de Peter Greenaway,
acrescento eu). Com a segunda parte — «A arqueologia» — é um
novo ponto de vista — um alter ego do poeta? — que emerge,
desencadeando um diálogo, algo pedagógico, com o interlocutor
— com o leitor: «Aquilo que vês nestas gravuras não são cenários
[…]. São mesmo de pedra […] desprendem-se deles recordações
ou presságios» (idem: 91). Uma cena biográfica em constante
mutação, em descoberta de uma voz, de uma assinatura, entronca
aqui com a cena histórica, com a singularidade de um tempo onde
novas relações com o objeto artístico vão surgindo:

Arquitectura: um conceito novo na Europa […] O passado é


salvo, saqueado. A Antiguidade é uma utopia. É escavada e
reproduzida. Os turistas compram cópias. O classicismo constrói
as ruínas do futuro. O nosso artista transacciona antiguidades.
Publica um catálogo: Vasos, troncos de colunas, sarcófagos,
tripeças, lamparinas e ornamentos antigos. [Idem: 91]

Neste passo é toda uma catalogação da novidade dos tempos


que se revela: nova entidade artística — arquitetura —, novo
registo, olhar sobre o passado (a utopia e a consequente nostalgia)
—, novo estatuto do sujeito face ao objeto — o turista, nova
configuração do objeto — a superação da singularidade e a
reprodução que o século seguinte consagrará através da fotografia
— as cópias —, novas estratégias de mediação — o catálogo.
Com a passagem para a terceira parte — «Carceri d’Invenzione»
— ocorre uma nova mutação do olhar; desta feita, é a perspetiva
crítica face ao racionalismo iluminista que se afirma: «Um século
que pensa em libertação e imagina prisões» (idem: 93). Tanto em
Histoire de la folie à l’âge classique como em Surveiller et punir,
Michel Foucault observou em detalhe as alteridades emergentes e
a forma como as sociedades tentarão superá-las. Por seu turno,
Enzensberger opta por catalogá-las no final desta parte através do
filtro das nobres intenções: «O filantropo, uma nova aparição,
anota que estas prisões, espalhadas por toda a Europa, albergam
vagabundos, madraços, mendigos, também prostitutas, a
escumalha recalcitrante, crianças degeneradas, criminosos,
alienados e doentes» (idem: 93). Prostitutas e alienados, ou seja,
essas figurações da alteridade, desse Outro que, como recorda
Foucault, a sociedade tenta afastar do seu centro, tenta remeter
para as margens mais nebulosas.
A quarta parte — «Tortura e indústria» — mergulha mais fundo
nas trevas que o racionalismo iluminista concebeu ao fazer da
técnica um elemento indissociável da conquista da verdade —
nomeadamente a confissão/admissão da culpa, do crime. Daí que
a fronteira entre tortura e ofício (artístico, até) se dilua: «Não, isto
não é uma prisão. Deve ser uma oficina. Aqui trabalha-se. […]
Parece que estamos numa forja. […] e aquelas construções de
madeira — não sabemos se são andaimes, se patíbulos. As
semelhanças entre os instrumentos de tortura de uma época e os
seus instrumentos técnicos» (idem: 93).
Com a parte seguinte — «O cérebro» — é a vertente exógena —
o referente — que dá lugar à endógena; opera-se aqui uma
transição para o interior, para o olhar sobre o objeto, para um
enfoque rigoroso (correto?) sobre o objeto que se exige ao
leitor/observador. Uma vez mais é uma espécie de pedagogia que
predomina ao enfatizar-se quão relevante será a educação
estética, a compreensão das regras próprias do microcosmo, da
sua especificidade: «Estás a ver mal estas gravuras. Tens de dar
atenção aos raios de luz e às sombras, que anunciam qualquer
coisa de diferente. Não estás a ver que este espaço é fechado,
mas infinito? O labirinto que ele representa é a tua consciência.
Por isso tens vertigens» (idem: 95). Mais adiante, em «E.J.M.
(1830-1904)», sobre o cronofotógrafo Étienne-Jules Marey,
Enzensberger retoma a rutura no modo de captar o real operada
quando o dispositivo interfere entre o sujeito e o objeto: «Ele
ensaia, projecta, constrói a primeira câmara de filmar / do mundo.
Não porque queira filmar: quer ver» (idem: 211).
O signo como redescoberta do sujeito, portanto; a consagração
de uma pedagogia do olhar, uma pedagogia que nos leva a visitar
os lugares onde habitam os nossos mais profundos fantasmas.
Uma algo eufórica antecipação de Freud? Talvez. Mas a esta
euforia associa-se a disforia dos estatutos que se equivalem:
«Investigadores do cérebro, filantropos, carrascos, arqueólogos e
autómatos.» Curiosamente é a desumanização que a hubris
iluminista de Frankenstein desvendou, que neste último signo —
autómato — se indicia. Será seguindo esta linha disfórica que a
quinta e última parte — «A alucinação» — consagra: «Perdes-te
neste trompe-l’oeil, nestes sombreados. Sonhas. Isto não é um
cérebro. É uma alucinação, um delírio» (idem: 95). Embora a
técnica e o domínio da razão nos façam chegar mais longe, não é
a euforia (civilizacional) que nos aguarda.
Em nenhum outro texto de Mausoléu Enzensberger chega tão
longe na desmontagem da hubris que percorre o ethos — «Um
século iluminado. Mas pululando de moscas varejeiras» (idem: 99)
— que ainda hoje tantas vezes se assume como derradeira
verdade. Afinal, como ele escrevera em «J. de V. (1709-1782)»17,
«quem traz / aos homens a luz do esclarecimento / tem de estar
preparado para as ciladas» (idem: 83), algo que tanto o Doutor
Frankenstein como o Doutor Jekyll ignoraram, pois «[o] sonho da
razão gera monstros: / máquinas para construir máquinas» (idem:
81) — autómato, portanto. Assim se persiste na esteira de
desmontagem crítica das utopias racionalistas que perpassaram o
Iluminismo, em particular do conceito de método e da eficiência a
elas inerente. Decorrente deste diagnóstico surgem fragmentos
textuais onde se indicia a distopia; veja-se, por exemplo, «age
metodicamente para encontrar respostas», em «L.S. (1729-1799)»,
sobre o biólogo italiano Lazzaro Spallanzani, ou o fragmento de
monólogo dramático — «Com a minha máquina, meus senhores,
garanto-vos que deixareis este mundo num abrir e fechar de olhos,
sem sentir dores» (idem: 111) — em «J.I.G. (1738-1814)», sobre
Joseph Ignace Guillotin.
Conclui-se ser, afinal, toda uma atmosfera melancólica que, sob
o signo da morte, percorre Mausoléu no deambular pela História
por ele exibido. Este não é, contudo, um deambular suscitado pelo
acaso, mas sim pelo reconhecimento daqueles que Enzensberger
considera os homens representativos, os heróis que, na História
emergiram, ajudando a delinear o perfil de uma fatia de tempo, a
da modernidade em que nos movemos. Não é tanto a empatia face
a eles, como sucedeu com Emerson ou com Carlyle, que presidiu
à sua escolha, mas sim o reconhecimento das suas contribuições
para a configuração de uma sensibilidade, eventualmente de um
zeitgeist. Por essa razão neste livro predomina uma atmosfera
melancólica que, embora não participando da elegia, identifica os
sinais de disforia de uma certa tradição racionalista moderna que
ainda hoje habitamos.
Prosseguindo numa sequência diacrónica de obras que,
genericamente, tomam o Museu como seu núcleo, convoco
Between Here and Now, do poeta galês R. S. Thomas. Thomas
pertence ao conjunto de poetas como Stevie Smith ou Roy Fuller
que sucede à geração «MacSpaunday»18, antecedendo, portanto,
a recuperação das estratégias prosódicas denegadas pelos
modernistas, levada a cabo por aqueles que, a partir de Blake
Morrison, seriam conhecidos por «The Movement»: Robert
Conquest, Kingsley Amis, Elizabeth Jennings, Philip Larkin, John
Wain, Thom Gunn, Donald Davie, D. J. Enright. A este último deve-
se, aliás, uma leitura que identifica os traços eventualmente
dominantes da poesia de Thomas: a localidade e a conceção cristã
do ser e do mundo.
Desde a sua primeira coletânea de poemas, The Stones of the
Field, publicada em 1946, que a consequência do lugar, da
paisagem às gentes, identificou Thomas como uma voz em que
uma determinada identidade se enuncia. A sua vida de reclusão
como vigário em pequenas comunidades rurais até 1978, data em
que se reforma na isolada aldeia costeira de Aberdaron, projetar-
se-ia numa escrita em que a demanda interior é determinada pela
atmosfera que o envolve e o abre para um mundo próprio; um
mundo em que a aridez exógena se projeta, nas palavras de
Anthony Thwaite, numa qualidade (identidade?) do sujeito
(Thwaite, 1985: 31). Donald Davie amplia esta questão no seu livro
de ensaios Under Briggflats — A History of Poetry in Great Britain,
1960-1988, ao abordar a enunciação de uma identidade nacional
através da linguagem poética. Distingue, então, o caso galês do
escocês e do irlandês. Segundo ele, tal distinção deve-se ao
impacto específico que a linguagem quotidiana tem na real
identificação dessa mesma identidade, algo que, paradoxalmente,
restringe a enunciação poética:

[…] Welsh is far nearer to being an alternative national tongue


than Gaelic is for the Irish or the Scots; yet on the other hand, the
English spoken and written by Welshmen diverges from
metropolitan English, lexically and syntactically, much less than
the English of Ireland or Scotland does. Thus the Welsh writer
who writes in English feels especially guilty at doing so, at the
same time as he cannot concoct a third option, such as Hugh
MacDiarmad created for the Scots with Lallans. Anglo-Welsh,
Anglo-Irish, Anglo-Scottish are three hyphenated compounds that
ought to as it were lie parallel one with another; but this is not so
— the three conditions, though similarly painful in a way that few
English recognize, are in important ways unalike. [Davie, 1989:
158]

Este constrangimento suscitado por uma in-betweenness


identitária, surge pela voz do próprio poeta numa palestra feita em
1978, onde afirma o seguinte: «Let nobody imagine that because
there is so much English everywhere in Wales it is not a foreign
language […]. An Anglo-Welsh writer is neither one thing nor the
other. He keeps on going in a no man’s land between two cultures»
(idem: 159). Quase vinte anos depois, num capítulo de
Autobiographies (1996)19, intitulado «The Creative Writer’s
Suicide», e escrito em galês, Thomas retoma ainda esta questão,
denunciando a sua centralidade no seu percurso criativo.
A conceção cristã é abordada por Davie numa leitura que se
opõe à de John Wain. Para este, a fuga à convenção, à forma, por
ele operada em H’m (1972), acentuaria um olhar disfórico antes
amenizado pelo efeito rítmico e sonoro; o poema «Via negativa»
exemplificaria esta perspetiva. Davie contesta a asserção de
disforia defendida por Wain, contrapondo que um Deus «[Who]
keeps the interstices / In our knowledge, the darkness / Between
stars», seria um conceito consolatório. E prossegue: «The religious
mind finds its consolations in regions where the secular mind
discerns only forbidding bleakness, and just that paradox or
seeming paradox is what R. S. Thomas’s later poems resolutely
explore» (Davie, 1989: 148). O poema inscreve-se, assim, numa
peregrinação ontológica. Talvez por isso, há quem coloque
Thomas a par de poetas como George Herbert, Henry Vaughn,
Geoffrey Hill ou T. S. Eliot, para quem a perceção cristã se ergue
no centro do discurso poético.
No seio de um percurso coerente marcado pelas circunstâncias
do lugar e do diálogo que o sujeito com elas realiza, destaca-se,
por dele divergir, Between Here and Now, no qual prevalece a
écfrase, nomeadamente de quadros de pintores impressionistas
com os quais Thomas tomou contacto no Louvre. Os poemas que
compõem a secção dominante desta obra, intitulada
«Impressions» (a outra surge sob a designação genérica de
«Other Poems»), tomam como impulso quadros de Monet («Lady
with a Parasol», «The Bas-Bréau Road», «Portrait of Madame
Gaudibert», «The Gare Saint-Lazare» e «Rouen Cathedral, Full
Sunshine»), Jongkind («The Beach at Sainte-Adresse»), Bazille
(«Family Reunion»), Degas («Portrait of a Young Woman»,
«Mademoiselle Dihau at the Piano», «The Musicians in the
Orchestra», «The Dancing Class», «Absinthe» e «Women
Ironing»), Cézanne («The Repentant Magdalen», «Dr. Gachet’s
House», «The Bridge at Maincy» e «The Card Players»), Manet
(«The Balcony»), Pissarro («The Louveciennes Road», «Kitchen
Garden» e «Trees in Blossom»), Renoir («Muslim Festival at
Algiers» e «The Bathers»), Cassatt («Young Woman Sewing»),
Gauguin («Breton Landscape, the Mill», «The Alyscamps at Arles»,
«La Belle Angèle» e «Breton Village in the Snow»), Van Gogh
(«Portrait of Dr Gachet» e «The Church at Auvers»), Toulouse-
Lautrec («Jane Avril Dancing» e «Justine Dieuhl») e Rousseau
(«The Snake Charmer»).
Referi que estes poemas tomam os quadros como impulso. Com
efeito, se recordarmos a designação genérica da secção,
«Impressions», constatamos que Thomas não denuncia como
objetivo a reprodução verbal de signos naturais;
consequentemente, nem a sapheneia nem a enargeia surgem no
centro do discurso poético. Por outro lado, esta designação cria
uma zona de ambiguidade, visto poder ser entendida quer como
evocação da sensibilidade estética dominante naqueles pintores,
quer como identificação do olhar do próprio sujeito poético, como
identidade da écfrase, portanto.
Com efeito, a sinédoque do título, ao convocar Laokoon,
concebe uma enunciação poética algures entre aquelas que
Lessing referenciava como artes do espaço — «here» — e artes
do tempo — «now». Deste modo, Thomas denega a dicotomia
defendida no ensaio de Lessing, indiciando ser apenas objeto seu
a leitura subjetiva, a impressão, de um determinado referente.
Curiosamente, será uma instituição moderna, o Museu, que lhe
permite realizar um processo de descentração que o afasta dos
seus lugares idiossincráticos por excelência, o local onde
reiteradamente é identificado. Tal não significa, porém, que a
dimensão confessional seja rasurada; pelo contrário, ela irá
desvendar zonas habitualmente menos explícitas na sua poesia.
Para melhor as desmontar enquadro a leitura destes poemas em
dois vetores fundamentais: o da interpretação do signo natural, e o
da convocação nostálgica de um tempo perdido. O primeiro vetor
— interpretação do signo natural — domina «Breton Landscape,
the Mill». Impulsionado por A Breton Landscape, David’s Mill, de
Gauguin (cf. figura 10), o poema assume uma dimensão algo
didática, indicando ao leitor, vertido em observador, como deve
realizar a sua leitura do objeto: «The eye is to concentrate / on the
tree gushing / over the bent-backed woman / with her companion
and / dog» (Thomas, 1981: 57). Após estas indicações, surge a
ainda pedagógica chamada de atenção para o resto: «But there is
so much / besides: the wheel too heavy / to be turned by such still /
water; the hill-side; the house / asleep in its counterpane / of colour;
and beyond / them all the whey-faced cloud / agog as at a far still»
(idem). É, portanto, uma pedagogia do olhar que prevalece no
poema; uma pedagogia que persiste em Lady with a Parasol, de
Monet (cf. figura 11).
Embora subliminarmente, o sujeito desvenda também aqui a
centralidade da composição na estrutura do quadro; é esta que
determina a perceção que o sujeito dele realiza, mesmo quando a
subjetividade o domina (veja-se a prosopopeia). Em Lady with a
Parasol perpassa toda uma sensualidade que o sujeito desvenda
na coloração do solo que, por extensão, invade a figura feminina
(«Why keep the sun / from the head, when the grass / is a fire
about / the feet?», idem: 13); uma sensualidade que, não fosse a
ausência de ironia, lembraria «Portrait of a Lady», de William
Carlos Williams.
Se neste poema o sujeito se insinua apenas na leitura que
realiza do objeto, já em The Beach at Sainte-Adresse, de Jongkind,
ele afirma-se explicitamente como seu descodificador; a leitura da
composição destaca-se então: «An agreement between / land and
sea, with both using / the same tone?» (idem: 15). Apesar de esse
olhar incidir sobre a composição, com destaque para a função da
cor (o que, de novo, lembraria Williams, embora, neste caso, o de
Pictures from Brueghel), a prosopopeia estruturante destes versos
introduz uma dimensão alegórica, antecipando a disforia da última
estrofe — «to the boat it is / the glass lid of a coffin / within which
by cold lips / the wooden carcases are mumbled» (idem) —, uma
disforia isotópica em Thomas, refira-se.
Quando, ainda numa postura hermenêutica, o sujeito descodifica
a composição através da postura introspetiva dos jogadores, no
quadro homónimo de Cézanne, a absorção surge ligada à
suspensão do tempo. Como adiante se verá, nesta suspensão
insinua-se uma perceção ideológica do real. De facto, a arte, qual
como solo nostálgico, afirma-se enquanto instrumento de
recuperação de sensibilidades, de tempos perdidos («Art is
recuperation / from time», escreve em Kitchen Garden, Trees in
Blossom, idem: 41). Assim se impõe a impressão do sujeito, e a
interpretação cede lugar à especulação; insinuam-se, então,
isotopias pela crítica consideradas nucleares na Poética de
Thomas.
O mistério do efeito que o objeto provoca no observador («So
beautiful it hurts; / yet nothing for tears / to exploit. April
afternoon?», idem: 33) funciona como leitmotiv em «The
Louveciennes Road». Estamos, portanto, perante uma leitura
marcada pela subjetividade, pelo impressionismo crítico, que
persistirá nas estrofes subsequentes, em particular, na derradeira.
A progressão do olhar que gradualmente se detém sobre os
diferentes signos desse objeto, desvenda duas presenças; será na
leitura que delas realiza, que o sujeito subliminarmente convoca
um outro tempo onde os ritmos modernos não imperavam ainda:
«Going home? // Yes, but not bothering / to arrive» (idem). Esta
isotopia impõe-se em «The Bas-Bréau Road». À semelhança de
«Landscape at Chaponval» («It would be good to live / in this
village with time / stationary and the clouds / going by», idem: 45),
este poema é dominado pela suspensão de um tempo, evocadora
de uma «aurea mediocritas» pré-revolução industrial.
A sinédoque funciona como estratégia retórica estruturante,
desde logo através do signo estrada, que desencadeia a
meditação que este poema é. Em seguida, ela é indiciada na
alteração dos ritmos de vida que afastaria o indivíduo de um ciclo
natural: «It is not for getting people / anywhere, at least / not at
speed» (idem: 17). A velocidade é aqui uma sinédoque dos ritmos
contemporâneos, associados a falaciosos objetivos de vida
(«worrying it / with such ideas as / that there are destinations»,
idem), e o automóvel o símbolo destes tempos que o sujeito
denega.
A sinédoque e a prosopopeia destacam-se como estratégias
retóricas na representação disfórica do presente, o qual amiúde
surge por antítese face a um tempo perdido, a um passado olhado
com nostalgia. Em The Gare Saint-Lazare, de Monet (cf. figura 12),
sinédoque e prosopopeia participam desse olhar disfórico; ambos
concebem uma atmosfera claustrofóbica na qual o passado
persiste apenas como distante memória: «the old sounds from the
fields / that have accumulated there / over the centuries like wax»
(idem: 39).
A mimese realizada pelo quadro decorre de uma especificidade
própria do meio; é aí que a composição se impõe determinando a
receção por parte de quem o observa, a eventual especulação
subjetiva, impressionista, que este realiza. Ao poema compete
desvendar a especificidade dessa mimese (daí a reiterada ênfase
na composição), e o seu impacto no sujeito; a esse impacto dever-
se-á o modelar de determinadas perceções e a convocação de
idiossincrasias como a nostalgia face a um tempo perdido (veja-se
a ironia que o enjambement empresta à leitura, simultaneamente
acentuando a subjetividade deste olhar). Ao afastar-se de
referentes e topoi nele convencionais, Thomas realiza uma
descentração que lhe permite, afinal, ampliar a reflexão neles
recorrente. Será, deste modo, entre Horácio e Lessing que se
ergue a enunciação em Between Here and Now.
Retomo o encontro da poesia com a História, mediada pela arte,
através de Museum, um livro de 1983 da poeta norte-americana
Rita Dove. Se, à semelhança do autor de Mausoléu, a História
amiúde se inscreve aqui no texto poético, algo de distinto se
evidencia, o olhar que se con-funde com o do curador. Será este, a
sua racionalidade — a que preside à escolha do objeto artístico —
que oscila face ao outro polo, o da subjetividade, eventualmente
subconsciente, de um Museu imaginário. Declara a propósito
Elizabeth Loizeaux:
Mixing kinds of artefacts drawing on high and low culture,
Dove’s is an eclectic museum: part art museum, part
ethnographic museum, part natural history museum, part history
museum. Its eclectic nature decenters her museum, keeps it from
settling into established categories, and opens the possibility of
admitting artefacts and narratives excluded from the mainstream
modern museum. Dove consciously structured her museum to
unsettle […] [Loizeaux, 2008: 168]

A admissão e consequente incorporação da alteridade inscreve


esta obra numa genealogia de poetas afro-americanas, iniciada,
em 1969, por June Jordan, com Who Look at Me, e prosseguida
por Maya Angelou que, quatro anos após a pubicação do livro de
Dove, traria a lume Now Sheba Sings the Song, e por Notozake
Shange que na mesma altura publicaria Ridin’ the Moon in Texas.
Todas elas, na sua recusa de uma estética desligada das
circunstâncias de espaço e de tempo, fazem da arte um solo que
pode e deve ser politicamente interpretado.
Observemos, então, brevemente, Museum, de Rita Dove. O livro
encontra-se dividido em quatro partes — «The hill has something
to say», «In the bulrush», «My father telescope» e «Primer for the
nuclear age», todas elas marcadas por uma tonalidade própria.
A primeira parte — «The hill has something to say» — procede a
uma imersão na História na qual podem ser reconhecidos ecos
textuais, poéticos, de outras vozes. É isso que sucede, por
exemplo, com «The Copper Beach» que de algum modo evoca
poemas de Melville onde a paisagem se afigura como
protagonista; vejam-se, por exemplo, os versos seguintes onde a
idealização do passado que perpassa a atmosfera crepuscular dos
derradeiros versos do melvilleano «The Age of Antonines» de
imediato vem à mente: «The aesthetic principles / of the period:
branches // pruned late to heal / into knots, proud flesh ascending /
the trunk: // living architecture» (Dove, 1983: 20).
O diálogo com outros textos ou obras, ou os seus ecos apenas,
permitem ir criando uma atmosfera onde se impõe a identidade de
um olhar, um olhar que se vai construindo no encontro com o Outro
e consigo próprio. Afiguram-se-me particularmente fascinantes a
este nível «Boccaccio: The Plague Years» e «Fiammetta Breaks
Her Peace», dois poemas que dialogam entre si, ora ficcionando
um contexto a partir do qual o artista concebe afetivamente, ora
imergindo na ficção — a narrativa de Boccaccio — para dar voz à
alteridade, a personagem feminina. Impensável será lê-los sem ter
em mente A Vision of Fiammetta, o quadro que Dante Gabriel
Rossetti àquela personagem consagrou. Neste desvendar de
diferentes níveis de ressonâncias intertextuais, insinua-se, afinal,
uma estratégia confessional de autorreflexividade. Com efeito,
mesmo quando se simula a écfrase, como em «Receiving the
Stigmata», com a sua evocação de uma iconografia reconhecível
na História de Arte, é o tópico da identidade que, subtilmente, se
vai impondo (idem: 25).
Antes de progredir para a secção seguinte devo mencionar um
poema onde estas diferentes dimensões convergem; refiro-me a
«Tou Wan Speaks to Her Husband, Liu Sheng», um texto sobre um
túmulo de um príncipe do século II antes de Cristo, exposto em
1968. Sustentado por um monólogo dramático, cria-se aqui um
simulacro daqueles que teriam sido os procedimentos referentes
ao luto decorrente da morte de Liu Sheng, procedimentos esses
que corresponderiam ao seu estatuto. Neste poema, a persona a
quem se deve a verbalização parece diluir-se face ao poder do
objeto, embora a ela corresponda o derradeiro poder, o de
preservar uma memória através da palavra. No ensaio que a ele
dedicou, Pat Righelato evidencia o facto de o estatuto submisso de
Tou Wan contrastar com o individualismo mais forte das duas
santas em «Catherine of Alexandria» e em «Catherine of Siena»,
poemas onde se evidenciará um ponto de vista feminista20 mais
consciente das dificuldades e denegações sensuais que moldam
um caminho para a santidade (Righelato, 2006: 39).
Na segunda parte, «In the Bulrush», Dove dá voz a criadores
negros, como, em «Shakespeare Say», em torno de Champion
Jack Dupree, cantor de blues que então vivia na Europa, ou em
«Banneker», sobre o autor homónimo Benjamin Banneker, o
primeiro negro a conceber um almanaque. A convocação da
linguagem, enquanto espaço de tradução, funciona aqui como
índice, como instante subliminar de assimilação do real. Crucial
nesta dimensão é o poema «Reading Hölderlin on the Patio with
the Aid of a Dictionary», onde a leitura se constrói lentamente num
processo agonístico de gradual descodificação e consequente
composição da(s) palavra(s): «One by one, the words / give
themselves / up, white flags dispatched / from a silent camp»
(Dove, 1983: 32). Por seu turno, «Agosta the Winged Man and
Rasha the Black Dove» é um diálogo com o quadro homónimo de
Christian Schad, um pintor modernista alemão habitualmente
associado ao grupo pós-expressionista de Viena que ficou
conhecido por Neue Sachlichkeit 21. A sua opção estética pela
figuração da alteridade é por demais evidente neste quadro
através da representação de Rasha — a alteridade rácica, e da de
Agosta — um alemão que sofria de uma profunda alteração do
torso, alteração essa que é ostensivamente exposta pela nudez.
Se, por um lado, o poema subscreve características da écfrase,
por outro, não se confina a este género, ao incluir quer o olhar do
artista — «Schad paced the length of his studio / and stopped at
the Wall, / staring / at a blank space» (idem: 41), quer o espanto do
público perante a singularidade destas representações, tão
distantes das convenções estéticas associadas à tradição
retratística — «How / the spectators gawked, exhaling / beer and
sour herring sighs» (idem).
Por seu turno, a terceira parte, «My Father’s Telescope», revisita
a atmosfera de um imaginário edipiano de Life Studies, do poeta
norte-americano Robert Lowell, com a presença central da figura
paterna, neste caso centrada no ponto de vista («telescope»),
enquanto a quarta parte, «Primer for the Nuclear Age», tem como
leitmotiv um longo poema, «The Sailor in Africa», cujo tópico visual
é explicitado em epígrafe «a Vienese card game, circa 1910».
Traço comum a estes poemas de Dove será o facto de este Museu
expor aqueles signos que, pela alteridade que exibem, terão sido
denegados do olhar. Parecem ecoar nesta estratégia de Dove
textos como Histoire de la folie à l’âge classique e Surveiller et
punir, de Michel Foucault; isto é, textos que dão visibilidade a
personagens e gestos que persistiram nas margens da História.
Tanto a escolha do objeto (o poeta enquanto curador) como o (seu)
olhar analítico, a sua subjetividade, são, deste modo, nucleares.
Embora com uma tonalidade diferente, antes de progredir ao
encontro de outras experiências que se inscrevem num idêntico
processo de relação entre a palavra e a imagem, recordo um
poema em que a perceção, o diálogo entre o olhar e o quadro, com
tudo o que implica de subjetividade, é algo de central; refiro-me a
«Lente (Una pintura de Constant Permeke)», do poeta catalão
Narcís Comadira.
A ele regressarei mais adiante neste capítulo; para já lembro que
a poesia de Comadira desenvolve uma interpelação constante das
artes visuais, e da pintura em particular, uma espécie de
«correlativo objetivo como virtude visual e narrativa», como a
designa Dolors Oller no ensaio/epílogo que encerra El arte de la
fuga — Antología del autor, intitulado «La poética de Narcís
Comadira: un itinerario» (Oller, 2015: 377-391). No entanto,
embora, noutros poemas, os pintores sejam nomeados, a obra ou
as obras que terão servido de impulso ao texto não o são. Ora,
neste caso, não só o quadro é nomeado, como, no subtítulo, o seu
autor é explicitado entre parênteses. Tal não significa, porém, que
o poeta proceda a uma descrição do objeto. Algo
inesperadamente, o poema inicia-se com uma questão, à qual se
segue uma resposta: «Qué recuerdas? Una mancha verde» (idem:
309). Entre quem se estabelece este diálogo? Que interlocutor é
este? Fica assim claro que o foco deste poema é a subjetividade; a
subjetividade que perpassa em qualquer encontro com um objeto
artístico.
O quadro, a sua materialidade, a realidade dos signos que lhe
dão corpo, não serão aqui o objeto de uma écfrase. Pelo contrário,
é o resto, a memória que, na sua arbitrariedade e singularidade
individual, prevalece. Ao exibir uma estrutura dialógica, é toda uma
espécie de espeleologia que se impõe, um encontro com a
visibilidade imediata que logo transita para a especificidade do
gesto ao aplicar a tinta na tela, e que culmina na eventual intenção
que terá estado na génese do processo criativo; vejamo-lo: «Solo
verde? Un verde de hoja tierna, / de espessa hierba reciente, de
hierba mojada, / hierba que ya no lo es» (idem).
Afinal, este tu pode ser, não apenas qualquer um de nós,
qualquer espectador que, um dia, se tenha cruzado com este
quadro, mas também o próprio poeta. E, se este for o caso, então
o poema assume-se como um registo confessional, memorialístico,
de um instante do seu percurso biográfico. Eis como prossegue o
diálogo, atente na forma como a resposta corresponde a um
percurso no espaço em direção ao detalhe, e no tempo, ao
precedente, ao que terá estado na origem do impulso criativo —
«Solo verde? Un verde de hoja tierna, / de espessa hierba
reciente, de hierba mojada», para logo explicitar a metamorfose
criativa que teve lugar no espaço da tela, «hierba que ya no lo es,
que es pasta de óleo / y pigmento, y toques de espátula, /
pequenas superfícies finíssimas, mosaico / nervioso, inquietude de
abedul, / de corazones en la primavera, / un dolor; / y, bajo la
hierba, carne, bajo el dolor, / bajo la pasta de óleo y de pigmento, /
en cada toque de espátula, carne, / carne fugaz, promessa no
cobrada, / […] / y en cada punto amarillo, alegria […]» (idem).
Com efeito, o que, de imediato, me tocou foi a mancha ocre que
parece invadir a superfície da tela; a sua intensidade era tal que
me impediu de ir em busca de outros espaços, lugares, signos,
cores. No entanto, o olhar do interlocutor deslocou-se para a parte
inferior onde a mancha verde concebe uma narrativa. Qual a
função hermenêutica da mancha, nomeadamente enquanto
inscrição de um tempo, da anacronia, é algo a que regressarei
mais adiante no capítulo IV quando abordar a presença da
anacronia e da trans-memória neste diálogo entre a palavra e a
imagem. Para já devo recordar que a interpelação do objeto que se
observa, pode ser formada pela convocação de outros instantes da
História da Arte; estamos, afinal, perante a importância que
assume a erudição de um Museu imaginário próprio. Veja-se, por
exemplo, «Habitación de hotel (Edward Hopper)», de Martín
López-Vega, poema incluído no seu volume de 1996, intitulado
Travesías.
O texto inicia-se com a tonalidade descritiva habitual da écfrase
— «Llegó al hotel hace unas horas. / Dejó las maletas en una
esquina / y dio un paseo por la ciudad. / Ahora está sentada en la
cama, / casi desnuda, / y sostiene en sus manos / una carta que no
se atreve a releer» (Magalhães, 1997: 984). Esta tonalidade é,
todavia, sabotada pelas disjunções existentes no terceiro e no
sétimo versos, onde se exibem comentários especulativos que
transcendem aquilo que o quadro exibe. Será neste processo de
fuga face à écfrase, nesta interferência especulativa face à
interioridade da personagem, que se exibe a densidade daquela
emoção culta de que falava Jorge de Sena — «pensando / […], en
que es una pena / no haber sido Giovanna Tornabuoni, / y tener
ese mismo rostro, / que enamora con tan solo verlo, / que tenía em
1488, / cuando la pinto Ghirlandaio» (idem), e que culminará na
digressão final com a referência a Toulouse-Lautrec.
Estes últimos exemplos indiciam a relevância de algo que, pela
sua complexidade, poderia constituir objeto de reflexão única ao
longo deste livro; refiro-me ao detalhe, tópico sobre o qual Daniel
Arasse concebeu essa obra profundamente reveladora no plano
analítico que é Le Détail — Pour une histoire rapprochée de la
peinture. Mas a reflexão sobre este tópico não se circunscreveu ao
plano teórico, tendo-lhe concedido uma poeta italiana, Antonella
Anedda, uma intensa meditação poética em La vita dei dettagli —
Scomporre quadri, immaginare mondi. Afigura-se a este nível
particularmente relevante a segunda parte do livro, intitulada «Un
museo interior» e subintitulada «Galleria», a qual é esclarecida
através de uma nota de rodapé onde se esclarecem ser estes
«Tredici poeti di un museo interiore» (Anedda, 2009: 73). É na
esteira de Arasse, quando este considera que o detalhe é algo que
produz um acontecimento num quadro (Arasse, 1996: 12), que
Antonella Anedda se interroga: «Cosa ci colpisce di un dettaglio,
cosa ci commuove. […] E cosa diventa il dettaglio in chi scrive
poesia, in cosa si traduce? Io credo in uno spazio nuovo, in una
terra ulteriore, avvistata da uno sguardo sgombro da qualsiasi
abitudine» (Anedda, 2009: 73).
Ao detalhe e a Antonella Anedda regressarei na secção dedicada
a este tópico. Neste momento devo centrar-me no percurso
deambulatório concebido por Anedda ao longo de «cinco salas».
Cada uma destas designa três poetas, à exceção da quarta, com
apenas dois, deste modo confrontando o leitor com perceções de
instantes visuais que os sensibilizaram em particular. A poeta,
Antonella Anedda, desvenda assim, através do seu olhar crítico,
solos de afinidade estética, de Baudelaire a Williams, de Auden a
Bonnefoy, de Skácel a Bishop, de Ashbery a Zbigniew Herbert,
entre outros (idem: 73-91). Significativamente, esta parte termina
com a palavra: «Uscita». Com efeito, o que se encerra nesse
momento é o percurso pela Galeria, já que o termo desta parte só
surge com a indicação de referências bibliográficas, sob a
designação de «Rotte». Que esta noção de percurso pode
denunciar uma inquietação recorrente na poesia contemporânea, é
algo que se torna evidente com a publicação de De Chirico’s
Threads, da poeta inglesa Carol Rumens, um ano depois do
aparecimento da obra de Antonella Anedda. Na sua estrutura, De
Chirico’s Threads parece devedor de outros horizontes estéticos: a
pintura, a fotografia, o drama e a música.
O livro está concebido como se de um tríptico se tratasse, com
cada um dos painéis exibindo um solo distinto. No primeiro painel,
intitulado «Ice and Fire», Rumens reúne um conjunto de textos
que, sem aparente conexão tópica entre si, contribuem, todavia,
para a criação de uma atmosfera de mistério que irá prevalecer ao
longo do livro. Adquire particular relevância neste âmbito «De
Chirico Paints Ariadne on Naxos», um poema onde Rumens cria
um simulacro em torno do processo criativo do artista italiano. Para
esse efeito de simulacro contribui a colagem de fragmentos de
poemas escritos pelo pintor, cuja voz assim emerge, qual
fantasma, no seio da descrição do seu espaço de trabalho. O
segundo painel, intitulado «Itinerary Through a Photograph
Album», embora assuma uma óbvia familiaridade ecfrástica, está,
afinal, a criar um simulacro. Esta dimensão é percetível apenas
quando tomamos contacto com o poema «Imaginary Painting by
De Chirico — the Birth of a Poet», em cujo título a palavra
«Imaginary» indica ser ele uma notional ekphrasis, de acordo com
o conceito avançado por Murray Krieger. O terceiro painel — «De
Chirico’s Threads: A verse-drama with soundscape», dramatiza um
encontro (imaginário) entre várias personagens: De Chirico;
Alberto Savinio — pseudónimo do seu irmão mais novo, Andrea,
também ele pintor e ainda músico; Adele — irmã do pintor; Ariadne
— personagem mitológica, portanto; Mama — Gemma de Chirico,
mãe do pintor; Papa — Evaristo de Chirico, seu pai; Le poète
assassiné — designação de Apollinaire a partir de uma
personagem sua; Change-It — editor de um jornal; Chance-It —
autor de uma coluna num jornal; Anonymous Poet; Breton; Carrà;
Expert — um negociante de arte; Forgers; e Minotaur.
Através desta con-fusão num espaço (cénico) único de
personagens históricas, míticas, fictícias, e radicadas no solo
biográfico do artista, é toda uma celebração da polifonia que
subjaz ao encontro das artes com o quotidiano, com a História,
com a memória onde prevalece. É nesse espaço entre innerscape
e soundscpae, nesse espaço em trânsito que o poeta se situa e
que De Chirico’s Threads adquire uma singularidade entre as
obras que emergem neste vasto e diversificado campo de
encontro(s) entre a palavra e a imagem.
Todos estes encontros com signos visuais, a sua eventual
acidentalidade, e a subjetividade que os perpassa, evidenciam a
fluidez desse solo a partir do qual o texto emerge, essa in-
betweenness que William Desmond sinaliza e que Elizabeth
Loizeaux, uma ensaísta que, como acima esclareci, tem dedicado
a este tema uma profunda reflexão, convoca através de Paul
Valéry: «It is this uneasy mixedness of experience, this in-
betweenness, that makes the stroll through the modern art
museum the ‘peculiar exercise’ Valéry described» (Loizeaux, 2008,
34; itálico meu). O escultor americano George Segal cria, afinal, os
seus simulacros escultóricos neste solo fluido, o que leva o poeta
Irving Feldman a colocar um conjunto de questões básicas, como
as considera o crítico Willard Spiegelman: «Whom do these
statues represent? How did the artist manage to make them? How
do they make us feel? Are they any good?» Consequentemente,
«his speaker […] looks at the sculptures mimetically, formally,
sociologically, evaluatevily, and emotionally. He also examines
them historically […]» (Spiegelman, 2005: 124).
Mesmo quando a coloquialidade perpassa no (aparentemente)
banal encontro no espaço do Museu (espaço este que não raro é
sacralizado), tal não significa um instante de inocência, não rasura
uma postura hermenêutica. Esta pode, aliás, ecoar outros
encontros poéticos com o objeto artístico; veja-se, por exemplo, a
representação da morte de Ofélia elaborada pelo pintor pré-
rafaelita John Everett Millais (cf. figura 13), na qual a jovem parece
flutuar etérea, numa pose que insinua um acolhimento algo erótico
do outro. No entanto, quando o poeta expressionista alemão Georg
Heym revisita este episódio (este quadro?) é uma crueza radical
que marca o seu olhar; eis os versos iniciais na versão de João
Barrento: «Os seus cabelos abrigam ratazanas, / E, sobre as
águas, os dedos anelados / Vogam pelas sombras, como
barbatanas, / Nos grandes matagais em rios espelhados…»
(Barrento, s.d.: 131).
O próprio ponto de vista pode evidenciar esse estatuto de in-
betweenness, como sucede em «Mars and Venus», de Rachel
Hadas, sobre o quadro homónimo de Sandro Botticelli. Nestes
tercetos marcados por uma evidente mestria prosódica, Hadas,
cujo nome surge habitualmente associado ao chamado novo
formalismo poético americano do pós-II Guerra, evidencia uma
sofisticada capacidade de observação e uma análise arguta do
objeto (Hollander, 1995: 337). Recordando a nossa incursão pelos
antecedentes clássicos, podemos concluir que nestes versos são
determinantes a enargeia e a sapheneia, a partir das quais se
concebe uma pedagogia do olhar: «Wait: This painting is an
enormous V-ness. / Look how unemphatically, almost absent- / ly
her left hand seems to be plucking one more labial gilded // entry
between her waist and her knee» (idem: 335). Este olhar
sofisticado emerge noutros solos poéticos como será o caso de
«Tintoretto», de Narcís Comadira.
Num registo elíptico que não lhe é estranho, como poderemos
constatar em «Balthus» e, mais adiante, na secção dedicada ao
sagrado, Comadira elabora uma écfrase que denega uma eventual
dimensão narrativa: «Llamas, grumos, indicios del deseo: /
hoguera que crepita y no se apaga. / Este agua podrida en los
canals / es bencina bendita del incendio. // Seda, escorzo, nubes,
terciopelo, / carnes potentes, músculos en tension. / Remolino de
luz y de tinieblas / que agita la materia y el espíritu. // Campanas
lejos, surca una góndola. / La voluntad, la audacia en la Mirada, /
temblor, brillos de azufre, rasgaduras» (Comadira, 2015: 305). No
entanto, o derradeiro verso, ao funcionar como a transformação no
soneto, designa uma síntese que, simultaneamente, constitui uma
fuga ao espaço artístico em causa, ao considerar que a resolução
hermenêutica reside algures noutro lugar, na teatralidade que ali se
exibirá: «Artificio, la esencia del teatro.» Como acima referi,
«Balthus», embora subscrevendo os pressupostos convencionais
da écfrase, segue idêntico registo elíptico: «La Cortina, pesada, /
cela el paisaje: / campos extensos de Francia, / trigal y robles, /
Olivares, ruinas de los cerros de Italia» (idem: 307).
Embora elípticos, estes são exemplos de sofisticação intelectual,
estética e também ética — porque signo de uma pedagogia que
não determina uma leitura única, antes deixa ao leitor espaço para
realizar a sua própria indução — que evidenciam quão longe da
neutralidade, quão intenso e ambíguo pode ser o olhar. Rita Dove
escolhera a evidência de uma perceção à qual não estão ausentes
as questões políticas envolvendo o género. Partindo do
pressuposto de que se desconhece o que é o olhar das mulheres,
Viviane Forrester sintetiza-as através de um conjunto de
interrogações, nomeadamente: o que vê o olhar da mulher? Como
é que ele esculpe, inventa, decifra o mundo? Segundo ela, o único
conhecimento que possui é o decorrente do olhar dos homens, o
que a leva a concluir: «E o que vê o olhar dos homens? Um mundo
distorcido, mutilado, privado do olhar da mulher» (Eagleton, 1996:
57). Embora de uma forma mais subtil, Fátima Maldonado convoca
estas questões na viagem pelo Museu por ela concebida em
Cidades indefesas.
As perceções da mulher acima citadas denunciam uma
construção na qual um silêncio se insinua. E dessa construção
participa necessariamente a linguagem. Consideraremos ainda
com Crátilo que um poder mais do que humano atribuiu às coisas
os seus nomes primeiros, à semelhança de Adão nomeando os
animais no Éden? Se subscrevermos esta perspetiva então
concluiremos que, ao descobrirmos o nome, desvendamos a
essência da coisa, a verdade. Poderemos, todavia, considerar que
a linguagem é convencional, produto de circunstâncias espaciais e
temporais, e, como tal, sujeita a determinantes sociais, culturais,
eventualmente políticas. A especificidade de uma perceção
significará, neste caso, a discriminação resultante de
idiossincrasias, fantasmas, histórias particulares e peculiares,
através das quais se esculpe uma experiência: desta será o texto
um reflexo privilegiado. Afinal, a linguagem denuncia a forma como
experienciamos o mundo, como construímos o mundo; aí se
projeta, não a verdade, mas a nossa verdade. E esta confrontará,
necessariamente, outras; eventualmente, tradições, aquilo que nos
transmitiram como derradeira factualidade, ou como modo de
enunciação único, algo a que a écfrase não será alheia.
De facto, a História da Literatura não é estranha ao exercício do
poder. Daí que a crítica feminista com legitimidade evoque um
domínio patriarcal na elaboração daquilo que, afinal, é apenas uma
convenção, mas que nos habituámos a ver como a verdade; a
História como fóssil, como espaço imóvel, final, acabado. Ao
assumirmos a sua dimensão convencional somos levados a
considerar a importância da sua reformulação a vários níveis. No
âmbito da crítica feminista, e de acordo com Sharon Spencer
(Spencer, 1982: 158-159), a reformulação de uma História da
Literatura deveria implicar os seguintes momentos: pesquisa e
inventariação de textos escritos por mulheres que não tenham sido
alvo de reedições, ou que tenham sido objeto de apreciações
incorretas e que, por isso, não ocupem o devido lugar naquela
História; análise das representações da imagem feminina na
Literatura; reavaliação dos textos críticos produzidos sobre obras
de escritoras; conceção de uma nova esfera criativa na qual a
perspetiva da humanidade seja reformulada sob um plano de
igualdade.
Contudo, outros olhares mais radicais podem ser formulados. No
seu ataque ao domínio patriarcal, àquilo que ela considera ser a
«crítica fálica», Cheri Register (Eagleton, 1996: 236) entende a
literatura como forma de promoção de um ou mais dos objetivos
seguintes: servir de fórum para as mulheres; ajudar a atingir a
androginia cultural; providenciar modelos de comportamento;
promover a «sisterhood»; desenvolver a tomada de consciência.
Deste modo, a literatura, a crítica e a própria História da Literatura
dependerão de estratégias políticas. Defende, apologética, Cheri
Register que, em vez de se verem arrastadas para um colapso
psicológico, as protagonistas de uma ficção feminista conseguirão
resistir à destruição, numa postura que indicia um tecido social que
integra traços eufóricos da cultura feminina com alguns valores
masculinos (idem: 241).
Não subscrevo a estratégia (política) de Register. Considero
todavia que a metodologia proposta por Spencer pode conduzir,
em primeira instância, a uma representação mais englobante a
nível da História da Literatura e, por fim, a um repensar da (nossa)
identidade; um repensar da identidade que não se restrinja a um
mero reencontro a nível de grupos. Coloca-se aqui o problema da
filiação em termos de tradições, algo a que Virginia Woolf há muito
aludiu em A Room of One’s Own. Confrontada com um excesso de
referências masculinas, onde poderá a escritora reconhecer vozes
que evoquem experiências afins? No âmbito dos estudos pós-
coloniais idêntica questão coloca-se, nomeadamente no que
respeita as primeiras gerações. Tanto num caso como noutro são
as vozes do «opressor» que condicionam, abafam a identidade
que se pretende construir.
No limite, as primeiras gerações poderão ter reconhecido em
espaços exógenos as vozes que artisticamente anteciparam o seu
discurso. Duas questões se colocam então, uma positiva, outra
negativa; no plano positivo destaca-se a superação de uma certa
perspetiva «regional» que leva a escritora a reconhecer afinidades
noutros lugares; no plano negativo destaca-se a constante
reprodução de uma clausura em grupos, dependente de género,
classe, raça ou orientação sexual. Semelhante clausura pode
significar, afinal, uma incapacidade de superar visões
estereotipadas; por exemplo, a antítese masculino vs feminino
desencadeia uma expansão de oposições, como patriarcado vs
matriarcado, opressor vs oprimido, razão vs instinto, convenção vs
espontaneidade, História-passado vs presente; e, no plano
literário, dramático vs lírico.
Consoante o ponto de vista adotado, e a respetiva ênfase, poder-
se-ão assim designar zonas de euforia e de disforia, de
superioridade e de marginalidade. Por exemplo, se se tratar de um
ponto de vista convencional, poder-se-á destacar a importância do
exercício da razão, e das tradições literárias a ela associadas; se o
ponto de vista for feminista, poder-se-á destacar a importância do
exercício de uma determinada espontaneidade, à qual se
associará o reconhecimento da verdade. No caso português tal
poderia significar, por exemplo, eleger Florbela Espanca como
inevitável figura central do percurso literário no feminino, o que
tornaria por demais curiosa a paródia que Adília Lopes, em
«Florbela Espanca espanca», consagrou a um dos seus poemas
mais reconhecíveis, eventualmente canónico.
Para o crítico e para o historiador, uma terceira via é todavia
viável e por certo funcional em termos operativos: a do repensar do
objeto através de um reconhecimento da sua interação quer com
as circunstâncias históricas coevas quer com os seus
antecedentes. Esta via pressupõe um método transdisciplinar e
uma atitude ética que recusem o enclausuramento em grupos, a
tribalização literária.
São estes pressupostos que nos conduzem a uma leitura do
texto em prosa e dos três poemas que dão corpo à secção
intitulada «Cidades indefesas», a partir da qual Fátima Maldonado
nomeou o seu primeiro livro de poemas publicado em 1980. Os
poemas desta secção são apenas designados numericamente, 1,
2 e 3. Contudo, no início do primeiro poema surge a seguinte
indicação: «Alexandre morrera em 323 a. C.» Esta frase referencia
historicamente o poema, criando enquadramentos factuais para a
leitura, e evocando até idiossincrasias várias ligadas a esta
personagem histórica (pense-se na trilogia que Mary Renault lhe
consagrou), impondo, enfim, um objeto. Será perante o objeto que
a enunciação se desencadeia: «No fundo do sarcófago / a tua face
ouvia-me lembrar.» Ora, este posicionamento a nível da
enunciação da voz face a um objeto envia para a tradição
problematizada ao longo destas páginas e que remonta, na
modernidade, a «Ode on a Grecian Urn», de John Keats.
Como temos vindo a observar, esta tradição assume-se, nas
suas diferentes vertentes, como um espaço de reflexão, de
representação, de exercício do logos. A voz possível do sujeito
insinua-se nos objetos por ele escolhidos e que dizem (enunciam)
aquilo que, por razões várias, ele não pode verbalizar; nelas
inviamente se insinua o sujeito. Estes traços poderiam levar a
considera esta tradição como essencialmente masculina, pois, de
acordo com um certo senso comum, a espontaneidade da
enunciação seria atributo do feminino. No entanto, se lembrarmos,
por exemplo, Sylvia Plath, de imediato reconheceremos a forma
peculiar como ela assimilou essa tradição dramática.
Ora, também Fátima Maldonado toma em «Cidades indefesas»
esta tradição de diálogo com um objeto, subvertendo-a. Com
efeito, nos versos citados, o objeto não se revela como enunciador
possível mas sim como interlocutor da memória da voz: «a tua face
ouvia-me lembrar». Logo nas primeiras linhas do texto em prosa
que inicia esta secção se referira a centralidade do objeto, neste
caso uma aparentemente banal mesa, e a subversão desse
diálogo: «Quando alguém se senta numa mesa riscada por golpes,
mossas deixadas por terrinas de esmalte, o azul desvincado como
a tinta de certos túmulos se torna com os séculos indivisa, deve ter
a certeza que a memória o espreita disposta a sacrificá-lo no
cadinho onde tudo se desvenda. […] quem se decide a ficar
sentado frente a tantos riscos, às marcas sobradas doutros gestos,
quem se decide a isso, vai com certeza tentar a memória»
(Maldonado, 1980: 55).
O eixo para o percurso das viagens evocadas em «Cidades
indefesas» será a memória, a memória desencadeada por objetos
ou espaços, signos vários por seu turno repositórios de memórias
próprias. Embora centrado na História de Arte, o diagnóstico de
Antonio Russi, convocado por Mario Praz sobre a função estética
da memória, ajuda-nos a desvendar o seu lugar peculiar na poética
de Maldonado: «[…] la memoria ‘no desempeña en el arte una
función subsidiaria o ancilar, como en la vida normal, sino que es
en sí misma Arte y en ella se funden completamente las diferentes
artes. En cierto sentido, la mitología antigua percibió esto con
claridad al imaginar a Mnemosyne como la madre de las Musas’»
(Praz, 2007: 61). Com efeito, será nesse solo fluido entre, onde
diferentes discursos convergem, que a memória do sujeito é
concebida e que se projeta no acima referido poema 1 em «ouvia-
me lembrar», quer explicitamente, no poema 2, em «reclama / que
as patas da memória / se encolham junto à casca» (Maldonado,
1980: 63), quer, no poema 3, na evocação contrapontística do
passado em «Nesse tempo pensávamos ainda que o amor podia
resolver-se / que o amor não era Atlântida» (idem: 66).
No poema 1, o segmento «ouvia-me lembrar» subtilmente
subverte a tradição referida ao colocar a memória do sujeito no
centro do diálogo; à partida, pensávamos ser o objeto o enunciador
da sua memória histórica, no entanto, esse segmento desvia a
enunciação para o sujeito que, por seu turno, apreende as «curtas
radiações» pelo objeto emitidas. Contrariamente ao vaso grego de
Keats, às ruínas de Melville, ou às fábulas de Kavafis, o signo não
começa por ser portador de uma enunciação latente, de um
murmúrio que, através da mnemosyne, se pode identificar,
limitando-se a sugerir, a deixar apenas possibilidades de encontro
com a História, possibilidades de reconhecimento da História. Aqui
a História não é «facto» ou «verdade» mas hipótese de uma
narrativa: «Talvez na tua idade / houvesse ainda estátuas /
carmesins às escamas / ou diluídas / por anos ou por saques»
(idem: 58). Será esta noção de possibilidade que condiciona a
leitura dos versos seguintes. Nestes pareceria reconhecer-se, à
partida, as ruínas evocadas por Shelley em «Ozymandias», isto é,
as que sobranceiramente olham as circunstâncias do presente
como em «Dos Lloyd George da Babilónia não reza a história
nada»: «Na boca distinguida / pelo aquático tempo da sepultura /
noto um leve sorriso / um traço que critica / o logro permanente /
em que caímos todos / no branco imoderado» (idem: 58).
De facto, aquilo que esta interação com o signo visual denuncia
não é a anulação do sujeito mas sim a centralidade da sua
presença, da sua leitura («noto»). Igualmente no poema 3 o signo
impõe de imediato a sua presença: «Em Florença numa rua tapada
pelo sol / há um sítio onde estão intactas as efígies» (idem: 65). O
encontro entre o sujeito, aqui dissimulado no grupo, e o objeto
parece acidental: «Íamos distraídos, falávamos de água / que o
café misturado enche de reflexos, […] / Mas de repente vimos que
a senhora ali estava / a meio da sala, roxa como um pé mutilado a
que faltassem veias, / amputado de fresco, ainda não ciente do
sangue interrompido. / Cobria-a o vidro protegendo-lhe a cara /
como um véu de malha muito fina / e estava recostada, / a perna
flectida numa posição incomum» (idem: 65-66). Esse encontro
súbito, acidental, leva o sujeito a um exercício de especulação em
torno da sua essência.
Contudo, como acima referi, este é um encontro recuperado pela
memória; o olhar do sujeito era na altura marcado pela inocência:
«Nesse tempo pensávamos ainda que o amor podia resolver-se /
que o amor não era Atlântida» (idem: 66). No tempo do encontro
aqui enunciado, a perceção fora a seguinte: «A sua juventude
estava com certeza no limite da vida, / casara muito cedo e o
marido quisera antes de se esquecer / rodear-lhe a lembrança
duma roda de fogo. / Os antigos etruscos respondem-nos por
ácidos / com que revelam as sendas resguardadas no estuque /
paralelas suturas entre vidas diferentes. / Ali estava à vontade, /
deitada por acaso / depois de dar as ordens / os pratos com os
figos, os vinhos de romã» (idem: 66). No primeiro verso citado, a
voz interpreta definitivamente o objeto como denuncia a expressão
«com certeza». A revelação que em seguida é feita da sua
essência, do quotidiano que terá sido o seu, dos gestos que terá
delineado, das paixões que terá vivido (quão próximo se afigura
Kavafis destes versos!), parece, também ela, definitiva. No
entanto, o dístico com que o poema se encerra — «Vi-a depois e já
não me pareceu / tão limpa de suspeita» (idem: 67) — explicita a
transitoriedade da leitura da História, ou das leituras da História.
A memória do sujeito é a do tempo para o qual a enunciação do
encontro remete, memória esta que julga desvendar a encerrada
no objeto; contudo, a ironia da síntese final mostra que o poema é
um exercício sobre si próprio: o poema enquanto memória de si.
Nele se desvendam as diferentes perceções levadas a cabo pelo
sujeito relativamente ao mesmo objeto; e neste processo o objeto
transforma-se, revelando afinal a consciência da sua opacidade.
Para quem considere que a «escrita feminina» se encerra num dos
polos da antítese acima referida, significando espontaneidade,
pathos e emoção, este poema, como os outros de «Cidades
indefesas», será certamente perturbador no seu jogo em torno da
linguagem, das diferentes perceções dos signos interpelados, do
exercício a propósito da identidade que ali se desvenda.
Assume, neste contexto de interpelações e de meditações sobre
o signo visual, particular relevância no cenário poético
contemporâneo em língua portuguesa Nós/Nudos. 25 poemas
sobre 25 quadros de Paula Rego, o livro que Ana Marques Gastão
consagra ao diálogo com a pintura desta artista. Neste percurso
poético, a poeta visita diferentes instantes da obra de Paula Rego.
Sabendo nós como esta tem sido concebida em torno de
diferentes ciclos dialógicos, como aquele que tem lugar em torno
de textos literários, entre os quais se encontram as sequências
dedicadas a Eça ou a Charlotte Brontë, necessitamos de identificar
o solo onde se sedimenta a seleção da poeta. Não creio estar
longe do impulso que terá presidido à escolha dos quadros de
Paula Rego, se apontar o corpo como tópico unificador da
estratégia prismática onde radica Nós/Nudos.
Embora neste livro prevaleça o monólogo dramático, através do
qual se concebe uma poética de imersão no objeto que intensifica
um certo pathos, como em «Nylon e bâton» — «Não desejo / o que
possuo» (Marques Gastão, 2007: 74) —, instantes surgem em que
a poeta simula um distanciamento algo analítico (bathos), como
em «Duas mulheres a serem apedrejadas» — «elas são conjura
melancólica / dizem o corpo em vagido calado» (idem: 78).
Acentuo, porém, que o pathos expressionista tão recorrente em
Paula Rego, não dilui uma ausência de ecos artísticos outros, de
ressonâncias de hipo-opus pictóricos, ainda que não explícitos —
Wyndham Lewis em Girl Reading at a Window, Velásquez em
Getting Ready for the Ball, ou Caspar David Friedrich em Jane
Eyre —, ou de hiperopus literários — Wide Sargasso Sea, de Jean
Rhys, em Jane Eyre (T. G. Rosenthal, 2005).
O bathos, decorrente destas ressonâncias, constitui, assim, uma
espécie de murmúrio subtextual, particularmente visível no tríptico
que surge como cenário em «Jane and Helen», num regresso ao
literário que não se confina a Jane Eyre, pois a ele não serão
estranhas as narrativas orais do imaginário popular com as quais a
pintora terá tomado contacto na infância. É a partir destes
subtextos, destas ressonâncias, destas camadas de sentido que,
em «Jane and Helen», Ana Marques Gastão concebe a voz das
personagens que, pela sua mediação poética, adquirem o estatuto
de personae: «É cheirar / as mãos macias / quando os animais /
obscuros / ferem / para lá do rio» (idem: 94).
Neste diálogo poético com Paula Rego, o objeto (persona)
reconfigura-se como sujeito, distinguindo-se da sua convocação,
instituído como destinatário num diálogo simulado, presente em
Fátima Maldonado. Será esta última estratégia que predomina em
«Museo», do poeta catalão Narcís Comadira. Neste caso
prevalece a ironia, pois é o observador que assume um estatuto de
superioridade: «Tal vez no sabe el dios, abstraído en su mármol, /
que otro dios de carne le mira altivamente. / Mucho más poderoso:
está vivo y se mueve, / y, aunque precedeo, es mucho más
perfecto. / Si son casi las mismas las formas de sus cuerpos, / por
qué preferiríamos el de aquel dios antiguo?» (Comadira, 2015:
103). Por seu turno, Konstandinos Kavafis, em «Túmulo de
Euríon», concebe aquele que será um túmulo imaginário, a partir
do qual edifica a sua reflexão. Baseio-me nas notas de Joaquim
Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis para fazer esta afirmação.
Escrevem eles ser este um «[p]oema aparentemente histórico.
Todas as personagens são imaginárias» (Magalhães e Pratsinis,
2005: 424). Existem, todavia, referências que permitem uma
ancoragem no real. Magalhães e Pratsinis esclarecem que
«Sienite é uma pedra rosácea valiosa de Siene, no Egipto (a atual
Assuão)» e que «Tebas e Perfeitura Arsinoita (de Arsinoé) são
topónimos egípcios» (idem). Além disso, existe um alicerce
antropológico através de Alabarcas que «é uma corruptela de
Arabarcas, os chefes da comunidade hebraica da Alexandria
helenística» (idem).
Semelhantes envios quer para lugares identificáveis quer para
circunstâncias históricas precisas — não raro a momentos de
mudança, declínio e dissolução de um tempo, introduzem um
enquadramento de verosimilhança que torna mais intensa a
meditação desencadeada pelo encontro com o objeto (imaginário).
Porque este é um poema breve, cito-o na íntegra:
Neste monumento tão artisticamente lavrado,
todo ele em pedra sienite pura,
que de tantas violetas, tantas açucenas está coberto,
o belo Euríon está enterrado.
Rapaz alexandrino, de vinte e cinco anos.
Pelo seu pai, dos macedónios a estirpe dos seus arcanos;
dos alabarcas a casta de sua mãe.
Andou como aluno de Aristóclito em filosofia,
de Paros nas coisas retóricas. Em Tebas também
as letras sacras estudou.
Da prefeitura
Arsinoita escreveu uma história. Isto ficará por certo.
Mas perdemos o mais valioso — a sua figura,
que tal uma visão apolínea exigia.

[Kavafis, 2005: 101.]

Importa recordar as diferenças, ainda que subtis, decorrentes do


lugar em causa — Museu ou Galeria como evidencia Browning em
«My Last Duchess», isto é, quando este se confina a um espaço
privado, sendo signo de um estatuto social. Existe, porém, uma
outra modalidade em que esse espaço, apesar de privado, não
funciona necessariamente como emblema de reconhecimento
social. Refiro-me àquele exemplo em que o Museu dá lugar a uma
Galeria construída e concebida num contexto doméstico. Então,
uma coleção de artefactos onde se convocam diferentes discursos
culturais, diferentes tradições, sob o signo de uma memória
individual, evidencia uma espécie de autobiografia de imagens. A
poeta mexicana Carmen Villoro exibe este tipo de convocação em
«Los búhos de papá». Com efeito, este poema evidencia uma
recuperação peculiar da Galeria que outrora fora um símbolo de
riqueza, estatuto e poder. Agora, a Galeria pode construir-se a
partir dos signos da cultura popular: Vejamos como: «Mi padre
coleciona búhos / desde que yo era niña. / De metal, de peluche,
vidrio y barro; / de tela, de cartón, de conchitas de mar, / de
pequeños mosaicos, de chaquira. / Los hay nobles y
emblemáticos, / singulares y artísticos, / comunes y corrientes, /
sólidos y mui frágiles» (Arellano, 2014: 87).
Tomando como elemento unificador a coruja, a Galeria
doméstica, construída pelo pai da voz que nos confia esta sua
memória, amplia-se para inúmeros horizontes culturais, étnicos,
revelando as alteridades com que ele se confrontou ao longo da
vida: «Representan una cultura, un viaje / o un episodio íntimo en
su vida.» Galeria, memória, autobiografia convergem, portanto,
neste diálogo com a cultura popular, algo que a poesia do século
XX materializou de diferentes formas. Uma outra dimensão emerge
ainda, com algum humor, a do artefacto como elemento de
catalogação (mais correto seria dizer, sinalização) da biblioteca:
«Un hermoso búho prehispánico / se posa donde inicia la história
del México. / Un clássico búho griego / anuncia con un cierto
ademán / a Pláton y sus diálogos con otros. / Un búho abstracto, /
sólo identificable por sus dos grandes ojos, / custodia los libros de
Miró y de Picasso» (idem). Porque de uma dimensão familiar se
trata, esta Galeria não se confina a uma narrativa autobiográfica
que, entretanto, perde a sua lucidez e a coerência — «Ahora que
papá tiene noventa años» (idem: 91) —, prolongando-se num fio
temporal que, através da memória, une o imaginário de sucessivas
gerações: «Yo los oigo ulular en mi cocina / y sé que mis hijos y
aun mis nietos que todavia no han nacido, / algún día, en una calle
que no caminaré, / o en la intimidad de una probable casa, /
escucharán con familiaridad y asombro / su vital aleteo» (idem:
93).
O contexto doméstico, como solo para uma interpelação do
objeto pelo poema, emerge também noutros espaços culturais. Por
exemplo, o acima mencionado poeta brasileiro Alberto de Oliveira
aborda este contexto algo acidental — «Vi-o, / Casualmente, uma
vez, de um perfumado / Contador sobre o mármore luzidio, / Entre
um leque e o comêço de um bordado» (Bandeira, 1963: 219) —
em «Vaso chinês», de Poesias. Será ele que lhe permite refletir
sobre o génio do artífice anónimo — «Fino artista chinês» — que
concebeu o objeto; um génio que não fica indiferente a quem olha
aquele signo: «[…] de um velho mandarim / Também lá estava a
figura. // Que arte em pintá-la! A gente acaso vendo-a / Sentia um
não sei quê com aquêle chim / De olhos cortados à feição de
amêndoa» (idem: 219).
Atentas aos solos estéticos que podem ser suscitados nestes
encontros entre a palavra e a imagem, as próprias instituições
suscitaram obras onde se evidenciam olhares peculiares sobre os
objetos que elas albergam. Uma das pioneiras contemporânea
desse gesto terá sido a Tate Gallery que, em 1986, deu a lume
duas antologias, Voices in the Gallery, editada por Dannie Abse e
Joan Abse, e With a Poet’s Eye: A Tate Gallery Anthology, editada
por Pat Adams. Escrevi «contemporânea» porque, à semelhança
do que sucede noutros instantes, e como pudemos observar em
Sena, existem antecedentes clássicos que fazem destes livros ou
poemas capítulos de uma tradição com profundas raízes no solo
cultural ocidental; neste caso, os acima mencionados, Imagines,
de Filostrato, e La Galeria, de Marino. A estes exemplos deverá
ainda ser associado uma obra vinda a lume no final do século XIX,
mais precisamente em 1892: Sight and Song, de Michael Field,
que seria alvo de uma recensão de William Butler Yeats (Loizeaux,
2008: 50). Michael Field, devo esclarecer, é uma personalidade
autoral algo ambígua, visto ser o pseudónimo de uma dupla de
autoras, Katharine Harris Bradley e sua sobrinha Edith Emma
Cooper. A elas se deve esta obra pioneira na modernidade, já que
todo o livro é constituído por textos ecfrásticos. Recordo que, ainda
no espaço anglo-saxónico, Dante Gabriel Rossetti publicara, em
meados do século, «Sonnets for Pictures». Sendo esta, todavia,
uma sequência, ou secção de Poems, está reservado a Michael
Field e a Sight and Sound um estatuto especial, quiçá único, neste
âmbito.
A consciência metatextual da obra é, desde logo, indiciada no
título onde, através de cada uma das palavras que o compõem, se
convoca a tradição da ut pictura poesis: Sight envia para pictura,
enquanto Sound suscita a melodia poética — a poesis. Um breve
prefácio enfatiza aquela consciência ao definir uma pedagogia do
olhar e ao suscitar uma poética de imersão por parte do leitor:

The aim of this little volume is, as far as may be, to translate
into verse what the lines and colours of certain chosen pictures
are to the poet, but rather what poetry they objectively incarnate.
Such an attempt demands patient, continuous sight as pure as
the gazer can refine it of theory, fancies, or his mere subjective
enjoyment.
«Il faut, par un effort d’esprit, se transporter dans les
personnages et non les attirer à soi.» For personnages substitute
peintures, and this sentence from Gustave Flaubert’s
«Correspondence» resumes the method of art-study from which
these poems arose. [Field, 2015: v]

A partir deste pressuposto Field exibe interpelações de quadros


de Watteau, Correggio, Leonardo da Vinci, Botticelli, Benozzo
Gozzoli, Bartolomeo Veneto, Fiorenzo di Lorenzo, Tintoretto, Piero
di Cosimo, Cosimo Tura, Giorgione, Antonello da Messina, Timoteo
Viti, Il Sodoma (designação pela qual ficou conhecido o pintor
italiano Giovanni Antonio Bazzi) e Perugino, num total de vinte e
seis poemas.
No plano formal é curioso o facto de, embora recorrendo a
estruturas convencionais, Field não raro as combinar no mesmo
texto, exibindo assim um espaço entre algo inesperado com o qual
o leitor se confronta; será neste solo fluido que o poema afirma a
sua identidade e singularidade.
A relevância das antologias promovidas por instituições
museológicas, no âmbito da poesia ecfrástica do século XX, obriga-
me a uma, ainda que breve, descrição, pois cada uma delas revela
um perfil singular. Em Voices in the Gallery, Dannie Abse e Joan
Abse compilam oitenta poemas, na sua generalidade escritos por
autores de língua inglesa; excetuam-se Jacques Prévert, George
Seferis e Rainer Maria Rilke. Trata-se de uma obra particularmente
interessante pela coabitação que exibe de textos ecfrásticos
célebres, como «Musée des Beaux Arts», de W. H. Auden, «Leda
and the Swan» ou «The Municipal Gallery Revisited», de W. B.
Yeats, ou «The Man with the Blue Guitar», de Wallace Stevens —
para ser mais rigoroso, das duas primeiras secções deste longo
poema —, com outros poemas que apenas serão identificados por
quem esteja mais familiarizado com esta sensibilidade estética. A
antologia do casal Abse22 tem a grande virtude de apresentar não
só um vasto leque de poemas ecfrásticos como de revelar as
potencialidades estéticas ligadas a esta tradição. Surgem, assim,
textos que meditam sobre a identidade do objeto que estética e
pedagogicamente interpelam, como «Poor Boy: Portrait of a
Painting», de John Ash, sobre o famoso Chatterton, de Henry
Wallis, ou como «Seurat’s Sunday Afternoon Along the Seine», de
Delmore Schwartz, sobre Tarde de domingo na ilha de Grande
Jatte, de Seurat; ou textos que especulam sobre o mistério do
referente, como «Who is Dora? What is she?», de Irving Feldman,
sobre Dora Maar sentada, de Picasso, ou daquilo que deste
persiste fora do quadro, como «Home and Colonial», de J. D.
Enright, sobre Tigre numa tempestade tropical, de Rousseau; ou
textos em que o monólogo dramático prevalece numa especulação
— simulacro — em torno do processo de criação artística, como
«Rubens to Hélène Fourment», de Edward Lucie-Smith; ou de
textos em que a meditação sobre o sagrado predomina, como
«The Raising of Lazarus», de Rilke, sobre A ressurreição de
Lázaro, de Van Gogh.
With a Poet’s Eye: A Tate Gallery Anthology nasce de um projeto
distinto e original: a encomenda feita pela Tate a cerca de
cinquenta poetas. Partindo do princípio de que um visitante de
museus se detém cerca de um minuto frente a cada, este projeto
afirma-se como uma pedagogia da suspensão através de
meditações estéticas feitas pelo texto poético. Iniciada com um
texto que se detém sobre o próprio edifício desta Galeria — «The
Tate Gallery», de Elizabeth Jennings —, e encerrando com outro
sobre a saída daquele espaço — «Leaving the Tate», de Fleur
Adcock —, esta antologia exibe assim formalmente uma viagem —
estética — que opera uma transformação em quem a realiza.
Duas dimensões fazem desta antologia uma obra que me suscita
particular interesse: a densidade das interpelações realizadas por
estes poetas, o que revela estarem eles na posse de um
conhecimento no âmbito da crítica e da História da Arte, e ainda de
circunstâncias biográficas envolvendo os pintores em causa; e a
sistemática presença de uma estrutura formal que revisita e
participa da tradição prosódica anglo-saxónica. Aponto apenas um
exemplo desta dimensão, algo estranha para quem se move num
solo cultural de influência francófona, o monólogo dramático
«Millbank», de Elizabeth Bartlett.
Enquanto a generalidade dos textos se centra no interior do
espaço museológico, na observação dos quadros, «Millbank»
opera uma viragem para o exterior, para uma memória histórica, a
penitenciária que outrora ocupou o lugar onde foi edificada a Tate
Gallery. É sobre essa memória que, num simulacro do monólogo
interior, o poeta constrói a sua meditação: «I think of the prisoners
banged up / here, looking out over the Thames / from the dark side
of the street. / As we climb the white steps together / and try to
insert ourselves inside / one glass segment of three swing doors, /
instead of two, I tread on the dead faces / with my unsuitable
clacking heels, / murdering the air with words» (Adams, 1986: 79).
Talvez resida neste recurso a um espartilho prosódico a solução
para a tonalidade meditativa que desponta numa tensão entre
pathos e bathos; uma tensão que não se confina a um tempo
passado, já que a própria poeta afirma uma ética de
responsabilidade, a de preservar a memória de uma alteridade
através do seu texto.
A intensidade deste diálogo entre palavra e imagem foi
igualmente explorada, em 1996, pela Municipal Gallery de Dublin
que levou a cabo uma exposição com os quadros que Yeats
convocara em «The Municipal Gallery Revisited», expondo junto a
estes os respetivos poemas. A palavra emerge, assim, ela própria,
como imagem em exposição. Embora não significando uma
interpelação direta da imagem pelo texto, não deveremos esquecer
o conjunto de serigrafias publicado no início da década de 1980
pela Galeria Altamira, em duetos de três poemas e três imagens,
da autoria de Pedro Tamen, Vasco Graça Moura, David Mourão-
Ferreira, João Miguel Fernandes Jorge, Emília Nadal, José de
Guimarães, António Botelho e António Palolo. Assim se prossegue
em Portugal uma tradição de diálogo que se intensificara nos
Estados Unidos do pós-II Guerra Mundial com a chamada Escola
de Nova Iorque, com poetas como Frank O’Hara, John Ashbery,
Kenneth Koch e Kenneth Rexroth, cuja hospitalidade às inovações
estéticas no plano pictórico ecoaria nas suas experiências
prosódicas; algo que, a partir de 1957, passaria pelos convites da
revista Art News a poetas para contribuírem com textos seus
suscitados por obras de arte, e que culminaria, em 1962, com as
edições do MoMA (Museum of Modern Art) com poetas e artistas
plásticos. Embora neste caso as tiragens não fossem significativas,
algo de insólito aconteceria em 1991 quando Crazy About Women,
um livro do poeta irlandês Paul Durcan, sobre quadros depositados
na National Gallery da Irlanda venderia vinte mil exemplares logo
nos primeiros dois meses após a sua publicação, tornando-o não
só um best-seller, como desencadeando um fluxo de visitantes
àquele espaço.
Mencionei acima instantes em que a interpelação poética do
objeto assumia uma dimensão obviamente política23, como sucede
em Museum de Rita Dove, num movimento centrípeto em que as
margens, a alteridade, são transpostas para o centro. Com Crazy
About Women regista-se um movimento político inverso através do
qual se procede a uma dessacralização tanto da arte como da
poesia. Com Durcan afirma-se um polo oposto do discurso
modernista emblematizado pelo poeta britânico Robert Bridges
que, numa écfrase a propósito de Amor Sagrado e Amor Profano,
de Tiziano, se proclama o Absoluto: «Art is the true and happy
science of the soul, / exploring nature for spiritual influences»
(Hollander, 1995: 239). Ora, em Durcan o Absoluto é denegado
através da sua sabotagem do centro — da norma cultural —, que
ocorre no instante em que ele retira a solenidade habitualmente
associada ao Museu, enquanto signo da chamada Alta Cultura.
Sinalizo apenas exemplos desta sabotagem vinda, literalmente, do
interior do texto.
Em «Bathers Surprised», Durcan recorre ao monólogo dramático
para criar um simulacro, o de uma personagem que pretende
emergir do silêncio, substituir-se ao comentário do espectador ou
do crítico, e revelar uma verdade, a sua verdade, ou seja, a sua
história: «Having been a bather in the foreground for many years / I
would welcome leeway to tell my side of the story» (Durcan, 1991:
87). Outro exemplo desta sabotagem ocorre em «Demosthenes on
the Seashore», através da subversão da forma como o
protagonista é figurado: contrariamente ao quadro de Delacroix,
em que Demóstenes surge com vestes que simulam uma certa
verosimilhança histórica, Durcan enfatiza a anacronia — «attired /
In scarlet pajamas and buff dressing gown» (idem: 103). Afinal, o
wit desta releitura não será estranho àquele que amiúde perpassa
na comicidade dos Monty Python.
Concluo com uma outra estratégia de sabotagem, aquela em que
é o próprio sujeito de enunciação que animiza a personagem, com
esta envolvendo-se («fancying her») afetivamente, como sucede
em «Kitchen Maid with the Supper at Emmaus». Com efeito, Paul
Durcan recorre sistematicamente ao monólogo dramático para,
através de um efeito de anacronia, converter um tempo pretérito
num simulacro do presente, uma espécie de Monty Python and the
Holy Grail poético. À anacronia regressarei no capítulo seguinte;
para já devo registar que Durcan parece ignorar as circunstâncias
de espaço e de tempo que impulsionaram a criação do objeto
artístico, e opta por se confinar a uma versão quase anedótica
deste. Algo de muito diferente do que observámos em Sena,
portanto; e dos poetas com que encerro esta secção: Joaquim
Manuel Magalhães e João Miguel Fernandes Jorge.
As obras destes poetas que escolhi são Uma exposição,
publicado em 1980, com fotografias de Jorge Molder e poemas de
Fernandes Jorge e de Magalhães, tendo como impulso a obra de
Edward Hopper, e a trilogia de João Miguel Fernandes Jorge
constituída por Museu das Janelas Verdes (2002), Jardim das
Amoreiras — vinte e cinco poemas para vinte e cinco estudos
anatómicos de Vieira da Silva (2003) e Mirleos (2015).
Ao mencionar o nome de Joaquim Manuel Magalhães faço-o
pela reiterada convocação de estéticas visuais na sua poesia, as
quais podem, aliás, persistir num crescente e intenso silêncio na
sua recente revisão da sua obra. Com efeito, apenas em dois
instantes podemos detetar aquilo que parecem ser reiteradas
estratégias ecfrásticas. Por que razão refiro parecem ser? Começo
pelo primeiro caso que tenho em mente, o livro de 1985, intitulado
Alguns antecedentes mitológicos, onde os seus poemas surgem
intercalando desenhos de Ilda David — ou será o inverso? Faço
esta pergunta devido a um comentário do poeta no texto
introdutório a Consequência do lugar, onde em 2001 ele reunia
aquele que, à data, considerava ser o seu corpus poético.
Escrevia, então, Magalhães: «Aqui publicados, os poemas
reafirmam a sua autonomia em relação a qualquer aspecto das
gravuras que então os acompanhavam e que nenhuma relação
entre si pretenderam estabelecer: foi uma mera justaposição de
material escrito e material gravado que mutuamente se
desconhecia e se juntou para formar um volume» (Magalhães,
2001: 8). Assim se denega qualquer impulso de diálogo entre os
dois objetos e, consequentemente, uma intenção ecfrástica.
Algo de distinto, ainda nas palavras do poeta, ocorrerá em Uma
exposição, como os próprios títulos evidenciam ao convocarem
explicitamente quadros de Hopper. Uma leitura atenta dos poemas
leva-nos, todavia, a constatar quão distante estão estes versos
daquilo que acima indiquei ser a écfrase numa configuração sua
original, etimológica, isto é, aquela que remetia para a descrição
do signo visual. À semelhança do que temos vindo a observar, este
signo funciona como impulso para uma meditação estética,
emocional, política, até. Mais do que a tal écfrase convencional,
assiste-se em Magalhães a um revisitar do objetivo-correlativo
eliotiano, já que o texto concebe uma atmosfera equivalente
àquela que predominaria em Hopper. Daí que um poeta como
Joaquim Manuel Magalhães, que muito tem contribuído para uma
revisão da estética realista, não receie evocar, por exemplo, a
falácia patética em Railroad Train — «o sopro da noite» (idem:
196), e, no plano da enunciação, em vez de criar um
distanciamento analítico face ao objeto, praticar uma poética de
imersão, assumindo como sua a voz que nos revela os lugares, as
atmosferas, as tensões existenciais. Encontro nestes versos de
«Compartment C, Car 293» a resposta do poeta face àquilo que os
quadros de Hopper lhe suscitaram, tendo elevado os seus poemas
a um solo singular: «O eu dos pronomes pessoais / não sou eu»
(idem: 209).
Referi a forma como Magalhães revisita Eliot — algo que
perpassa na sua leitura da poesia de Ruy Belo, nomeadamente no
ensaio que elaborou para a versão que compilou da obra de Belo.
A ancoragem da sua poesia no quotidiano, do qual participa
radicalmente a arte, evoca aquilo que o pensador canadiano
Charles Taylor, na sua obra de 1989, Sources of the Self — The
Making of the Modern Identity, considera serem vetores
estruturantes da modernidade. Na sua introdução a este livro
Taylor delineia duas dessas vertentes que nos ajudam a situar
Magalhães no perfil dos tempos que vivemos: a intimidade
moderna, um caminho que desponta com Santo Agostinho e que
adquire novas dimensões com Descartes e com Montaigne, e a
afirmação da vida comum, uma atitude intelectual que emerge com
a Reforma, que ganha uma dimensão secular mais profunda no
Iluminismo, e que, ainda segundo ele, culmina na «expressivist
notion of nature as an inner moral source» (Taylor, 1989: x).
George McLean, professor emérito na Escola de Filosofia da
Universidade Católica da América, recentemente falecido, situa
estas facetas no quadro mais geral daquilo que ele considera ser
um movimento de secularização intelectual:

The general phenomenon of progressive secularization over the


last 400 years must be seen in the light of: first, the broad human
processes of the Reformation reacting against hierarchy and the
corresponding progressive affirmation of individual authenticity
and equality; second, the Enlightenment’s parallel emphasis upon
the disjunction of human reason from the unitive influences of
wisdom and faith; and third, democracy and human freedom over
the evaluation and guidance of human action. [McLean, 2006: 5]

A análise de Taylor permite-nos, deste modo, identificar a


essência polifónica do sujeito, as suas próprias contradições, no
contexto de um processo mais global de mudança de paradigma
intelectual. Não raro se recorre às frases feitas pós-moderno ou
pós-modernidade para designar uma morna tela uniforme na qual
nos moveríamos, e onde predominariam xiboletes como morte de
Deus, relativismo cultural, fim da História, melancolia. Aquilo que
Charles Taylor evidencia, e que McLean nele sinaliza, é a
pluralidade de percursos intelectuais que no presente se cruzam,
que chocam entre si e que, não raro, se contaminam. Assim
emerge uma polifonia, uma diversidade que as perspetivas
redutoras não conseguem identificar. Creio ser neste solo fluido
que esta poesia de Magalhães se move.
Quando transitamos para o outrora livro, tornado instante em
Consequência do lugar, «António Palolo», torna-se ainda mais
evidente quanto mais a pintura persiste como rumor a partir do
qual emergiu a meditação do poeta, o fragmento inicial em prosa
poética e os versos subsequentes. Se um olhar recuado pode
entender a écfrase como um apêndice, um elemento decorativo,
algo destinado a persistir num plano exógeno face ao sujeito
(como em Sculpting in Time Andrei Tarkovsky entende este tipo de
revisitar da pintura por algum cinema), aquilo que estes diferentes
exemplos da poesia de Joaquim Manuel Magalhães evidenciam é
quão endógeno, quão inerente ao ser e ao seu olhar sobre o
mundo, a arte pode ser para o poeta que nela vê algo de
essencial. Semelhantes encontros com alteridades estéticas
acabam por funcionar como um espelho que revela afinidades e
zonas mais recônditas do ser.
Escrevi acima que, além do impulso gerado por Edward Hopper,
e da fotografia de Jorge Molder, Uma exposição é uma experiência
partilhada com outro poeta, João Miguel Fernandes Jorge. A ele
reservo as derradeiras linhas desta secção.
Perante a pergunta de Hugo Pinto Santos numa entrevista a ele
concedida, «Será o caminho do autor tão exclusivamente feito em
convívio com as artes plásticas?», responde Fernandes Jorge:
«Não é tanto assim. Os meus poemas também referem muitos
poetas. Mas às vezes uma obra de que muito gostamos —
gostamos dela porquê? — porque a recebemos como um campo
de ruínas. Nela pesquisamos à maneira de um arqueólogo»
(Santos, 2015: 102). Esta sensibilidade construída numa
disponibilidade para o encontro com diferentes alteridades
estéticas permite ao poeta desvendar no Outro redes de afinidade;
graças a elas não só é uma certa solidão quotidiana que se vence,
como uma vitalidade que se afirma.
Caso raro na poesia portuguesa, e não só, a trilogia de João
Miguel Fernandes Jorge — Museu das Janelas Verdes, Jardim das
Amoreiras — vinte e cinco poemas para vinte e cinco estudos
anatómicos de Vieira da Silva e Mirleos — focalizando obras do
Museu Nacional de Arte Antiga, da Fundação Árpád Szenes-Vieira
da Silva e do Museu Nacional de Machado de Castro —, participa
desse banal encontro com as alteridades que, desde a geração
romântica inglesa de Keats, tem caracterizado muito do quotidiano
e do impulso criativo poético em diferentes horizontes artísticos.
Ora, uma vez mais, o diálogo entre a palavra e a imagem não se
confina à estratégia ecfrástica. Seria, aliás, redutor confinar à
écfrase esse encontro em Fernandes Jorge. Com efeito, poucos
poetas portugueses têm mantido um diálogo tão constante com a
arte, como ele. Não me refiro apenas à sua poesia, e a exemplos
tão significativos como a sequência «Rothko Chapel» de O
roubador de água (1981), ou a Um nome distante, em colaboração
com o escultor Manuel Rosa (1984), mas também à sua escrita
ensaística sobre artistas visuais que, desde 1984, com Paisagem
com muitas figuras, tem persistido até hoje num ritmo constante.
Também por tudo isto este conjunto de livros, aos quais me refiro
como trilogia, devido à unidade referencial que evidenciam — cada
um deles dedicado a um espaço museológico — assume uma
relevância particular no conjunto da sua obra e no da produção
poética contemporânea.
Com o seu encontro sistemático com quadros e artefactos24,
Museu das Janelas Verdes de imediato suscita a memória de
Metamorfoses, de Jorge de Sena. Defendo esta perspetiva, devido
ao facto de o livro de Fernandes Jorge evidenciar as «alusões
históricas ou cultas», como Sena descreveu num ensaio ao qual
regressarei, as meditações que perpassam nestes poemas.
Enfatizando o facto de que, apesar da abundância de objetos
artísticos interpelados, eles significam uma escolha, uma seleção,
feita pelo poeta, identifico apenas algumas das vertentes
meditativas que percorrem estes textos. Aviso o leitor de que serei
muito sintético.
Eis então as vertentes: a contribuição das reescritas visuais do
objeto para a sua identidade presente — «Baptismo de Cristo»; o
eco de Kavafis na atmosfera política que envolve o olhar
(biográfico) sobre a personagem — «Retrato de D. João I»,
«Retrato de Alexandre de Medicis», «Retrato de João de
Luxemburgo», «Santo Agostinho», ou ainda «Efebos», entre
outros; quão relevante é uma sensibilidade protestante ainda que
não dita, apenas insinuada — para a compreensão da narrativa
que o quadro exibe — «Paisagem»; a imersão radical no objeto
através de um monólogo dramático que mais parece ser uma
oração25 — «S. Jerónimo em oração»; a reverberação sensual que
o objeto pode ter no espectador, consoante o género ou uma
insinuada orientação sexual — «Retrato de jovem cavaleiro»26; o
agon subliminar e displicente com certa crítica de arte — «(Falam
em Turner, que se terá cruzado com Sequeira / em Roma e em
Paris. Como se, entre nós, não houvesse / persistente eco de
naufrágios e deuses marítimos.)» (Fernandes Jorge, 2002: 26) em
«Naufrágio»; a importância do olhar para a criação de uma
atmosfera — «somente o reflexo do manto lança o azul / no grave
castanho olhar» (idem: 32) em «Virgem das Dores»; a precedência
de olhares argutos sobre a obra de arte — «Salomé»; a libertação
da personagem de que falava Malraux em O museu imaginário —
«Entre dois retratos»; a écfrase — «Mártires de Marrocos»,
«Natureza-morta», «Paisagem» ou «Passagem de um vau»; uma
pedagogia do olhar — «Retrato de homem / Retrato de senhora»;
a memória pessoal na perceção — «Batalha naval» ou «Arcanjo S.
Miguel»; a relevância da memória da História da Arte para a
conceção de um signo — «Retrato de D. Mariana de Áustria»; a
identificação da citação visual, ou o texto dentro do texto — «Cristo
em casa de Marta». Após esta síntese provisória e breve, onde se
evidencia o solo fluido entre feito de diferentes perceções poéticas
da obra de arte, transitemos para o livro seguinte.
Jardim das Amoreiras — vinte e cinco poemas para vinte e cinco
estudos anatómicos de Vieira da Silva exibe uma tensão entre a
materialidade do referente — o corpo, num registo próximo da
écfrase, e a meditação (especulação) sobre a Humanidade que
outrora esse referente encerrou. Os estudos anatómicos de Vieira
da Silva exibem o corpo humano na sua materialidade mais
radical; são carne, osso, nervo, tendão, fragmento. E, todavia,
neles há uma Humanidade que se insinua. Mencionei acima a
memória da História da Arte como uma vertente de Museu das
Janelas Verdes. Ora, a memória da História da Arte é algo que
habita a conceção destas figuras por parte de Vieira da Silva;
desde logo, na representação inicial, sincrética, do corpo de um
homem. Aí, sob aquele corpo onde uma transparência material se
afirma, é o David clássico que se insinua (cf. figura 14); sob a
crueza da matéria indicia-se, afinal, um ideal de beleza estética,
uma Humanidade. Será em torno desta que, evocando uma banal
sensualidade, o poema de Fernandes Jorge se estrutura.
E que melhor forma de revelar essa Humanidade do que o
monólogo dramático, a partir do qual a personagem pode interpelar
o leitor: «a beleza do meu corpo desejaram mestres e alunos; /
alguns possuíram essa impressão lasciva — / lápis, tinta-da-china
e uma outra cor / prenderam à folha de papel» (Fernandes Jorge,
2003: 11). Nesta vida que assim vai ganhando corpo, é ainda um
silêncio que se perturba, o de «The love that dare not speak its
name», na expressão poética de Lord Alfred Douglas, citada por
Oscar Wilde em De Profundis? Talvez. Creio, porém, ser o Eliot de
«Prufrock» — «one-night cheap hotels» — que mais ecoa
naqueles versos.
O monólogo dramático ficcionalmente colocado na boca da
personagem, do tal modelo humano onde a moldura estética do
David se insinua, transita, a partir do poema VII, para a artista,
numa sucessão de simulacros em torno do processo criativo.
Antes, entre os poemas II e VI, criara-se uma espécie de fade-out
que, partindo de um olhar neutro, exterior, analítico — vejam-se,
por exemplo, estes versos do poema IV, «Aproximou-o de um
corpo de / mármore da antiguidade» (idem: 18) —, se preparara o
solo para a exibição da subjetividade da artista. De um simulacro
ainda, refira-se; mesmo quando se expõe uma factualidade quase
diarística — «A 30 de dezembro desenhei as duas
circunferências» (idem: 24), «Nesse dia de setembro desenhei a
árvore que / sustém o torso humano» (idem: 30), ou «Tive muito
frio na manhã do meio fevereiro» (idem: 49). Entre a factualidade
— simulada — e a perceção — também ela simulada — do sujeito,
sob este excesso de real, persiste um mistério, «todo o braço, a
fuga // um azul tão misterioso que lembrava o mar» (idem: 50).
É este impulso de Humanidade, este impulso para a
compreensão de uma Humanidade, amiúde envolta em mistério,
que persiste em Mirleos. Talvez em nenhum outro instante da
poesia de Fernandes Jorge a écfrase tenha atingido uma
complexidade e depuração como neste livro. E tal deve-se, desde
logo, à perspetiva arqueológica que emerge da materialidade do
espaço — a hospitalidade do antigo fórum romano para a
reconstrução, na primeira década do século XIX, da Igreja de S.
João, onde emerge o Museu Nacional Machado de Castro. Entre
as ruínas impõe-se uma memória que tem tanto de ampla como de
fragmentada; a ela se deve o olhar sobre o objeto.
3.3. O retrato

Ainda antes de o Romantismo se afirmar nas letras brasileiras


através de «Ensaio sobre a História da Literatura do Brasil» (1821),
de Gonçalves de Magalhães, que Manuel Bandeira considerou ser
«um verdadeiro manifesto romântico, embora não aparecesse nele
a palavra ‘romântico’» (Bandeira, 1963: 91), Francisco Vilela
Barbosa escreve um poema onde simula superar a dicotomia
lessinguiana. Fá-lo através da criação de um solo ambíguo onde
artes do espaço e artes do tempo disputam a primazia da
enunciação. A ancoragem surge exatamente num género
celebrado pela pintura, o retrato.
No poema que toma como título este género, Barbosa traz para
o núcleo do texto os elementos que participam do universo
pictórico, do espaço onde a representação vai acontecer — «Em
fina tela / Vou retratar» (idem: 85) — à cor — «Ide da amora / A cor
buscar» —, passando pelo traço — «Os pés pequenos / Delinear»
(idem: 90). No entanto, à medida que progredimos na leitura,
constatamos que não é o quadro que emerge mas sim a sua
impossibilidade registada pela palavra poética. Ora, com a entrada
em cena da fotografia no universo estético, não é apenas uma
nova possibilidade de representação que se torna evidente, e o
aparecimento de outros solos de hospitalidade — a Galeria
comercial, o jornal, o álbum pessoal —, é também um horizonte de
intervenção poética que se amplia. E neste âmbito é a Walt
Whitman que devemos regressar. Devido à amplitude e à
diversidade da sua exploração desta nova forma de expressão
artística, deter-me-ei sobre ele um pouco mais detalhadamente,
mas, como adiante vereis, as páginas que se seguem estão longe
de ser um mero excurso.
Dois aspetos da inovação associada a Whitman devem ser
analisados em particular: o modo como ele torna indissociável a
sua imagem, reproduzida (composta) pela fotografia, da publicação
e das sucessivas reedições de Leaves of Grass; e a convocação
da écfrase e de um léxico ligado às artes visuais, nomeadamente à
fotografia, nos seus poemas. Comecemos por observar o primeiro
aspeto.
Quando em 1855 publica a coletânea de poemas a que deu o
título de Leaves of Grass, Whitman contraria a representação
gráfica tradicional: a capa indica apenas o título do livro, não
revelando o nome do autor. Em contrapartida, surge uma pouco
convencional fotografia deste (cf. figura 15). Na receção crítica a
esta primeira edição (num constante processo de reescrita, revisão
e inclusão, outras se lhe seguirão até ao final da vida do poeta), o
ícone funciona enquanto imagem fascinante, isto é, o «[…]
fenómeno pelo qual o objeto da nossa consciência, seja qual for,
se vê subitamente posto em dúvida na sua realidade e na sua
presença» (Lefebve, 1975: 136). Porque de imagem fascinante se
trata, temos de observar alguns exemplos de perturbações por ela
suscitadas, alguns exemplos de reações críticas eufóricas e
disfóricas, que não deixam de espelhar um confronto profundo,
possivelmente político, numa sociedade em mutação onde a
modernidade se constrói.
Ora, um dos aspetos em que o ícone exibe este estatuto de
imagem fascinante prende-se com o questionar da dignidade da
convenção literária. Esta dignidade passaria por uma imagem
evocadora de um estrato social superior, com formação
académica. Nos Estados Unidos o autor/escritor era comummente
identificado através de três nomes, os quais simbolicamente
designariam a civilidade e a solenidade devida à arte da poesia.
Por seu turno, a fotografia destacava habitualmente a cabeça
estabelecendo uma analogia entre poesia e intelecto. Esta
convenção ecoa na publicação londrina Critic, onde, no dia 1 de
abril de 1856, se afirma o seguinte acerca de Leaves of Grass: «
[…] we have a portrait engraved on steel of the notorious individual
who is the poet presumptive. This portrait expresses all the
features of the hard democrat, and none of the civilised poet. The
damaged hat, the rough beard, the naked throat, the shirt exposed
to the waist, are each and all presented to show that the man to
whom those articles belong scorns the delicate arts of civilisation.
The man is the true impersonation of his book — rough, uncouth,
vulgar» (Price, 1996: 43; itálico meu). Curiosamente, a
necessidade de evidenciar a singularidade da obra de arte leva o
crítico a incluir no seu discurso uma écfrase do signo; algo que,
devo enfatizar, será uma constante nas recensões a Leaves of
Grass.
A recensão destaca, portanto, a ligação ícone-livro. Esta ligação
será denunciada tanto em leituras particularmente negativas como
noutras mais disponíveis para desvendar a novidade, e que
saúdam euforicamente Leaves of Grass. Por exemplo, numa
recensão publicada em julho de 1855, o poeta é descrito da
seguinte forma: «He stands in a careless attitude, without coat or
vest, with a rough felt hat on his head, one hand thurst [sic] lazily
on his pocket and the other resting on his hip. He is the picture of a
perfect loafer; yet a thoughtful loafer, an amiable loafer, an able
loafer» (idem: 8). Recordemos a perplexidade que causou o facto
de, como acima referi, talvez pela primeira vez, uma gravura de um
daguerreótipo ter sido usada como frontispício de um livro de
poemas. Nesta observa-se um contraste com a tradição
iconográfica dominante, devido ao relevo dado a braços, mãos,
tronco, pernas, e não à cabeça, convencionalmente central, e que,
como referi, associa a poesia ao intelecto (Folsom, 1995: 141), ao
logos, à razão, à civilização (numa perspetiva cultural ocidental e
judaico-cristã). Além disso, Whitman pretende evitar o realismo,
pelo que a intervenção de Samuel Hollyer terá contribuído para
acentuar o caráter artificial da imagem, e para que esta surja como
construção, como ícone.
A crítica sua contemporânea não deixa igualmente de reagir à
contaminação do discurso poético pela estratégia visual acima
analisada. De imediato se evidencia a perplexidade e a
necessidade de conceber um discurso conceptual capaz quer de
responder às exigências desta poesia, quer de rever o cânone de
molde a acolher a novidade que ali se revela. Um dos derradeiros
aspetos apontados por esta crítica, que devo assinalar neste
momento, prende-se com a diferença proposta pelo Livro de
Whitman, em particular no que isso significa de interação com a
cena da História.
A estratégia visual é de tal forma poderosa que, como assinalei,
não só obriga o discurso crítico a incorporar a écfrase no seu seio,
como lhe exige um novo aparato conceptual. Duas recensões
serão particularmente reveladoras neste âmbito. A primeira surge
em 1865, numa leitura de Drum-Taps, onde se refere: «[…] the
author’s great power of word-picture-making […]» (Price, 1996:
112). A segunda aparece três anos mais tarde em Londres. Dela
destaco estas duas expressões: «These word paintings of
Whitman’s […]» e «His word-painting power goes with him
everywhere» (idem: 153; itálicos meus).
Se procedermos a uma breve síntese de ênfases, explícitas ou
implícitas, nas abordagens de Leaves of Grass, constata-se o
destaque na ação que dele emerge, e, consequentemente, na
energia/força que dele emana, na sua afirmação da
espontaneidade, no seu caráter «nativo», exemplar, como signo da
modernidade, e, por fim, na sua potencialidade profética. Por seu
turno, a interação/indissociabilidade entre Livro e Autor conhece
uma diferente dimensão ao atentarmos na forma como a crítica
feminina o recebeu, e como lidou com o eventual processo de con-
fusão gerado por aquelas duas identidades.
Whitman foi um leitor atento dos movimentos reformistas, tendo
assimilado nos seus textos alguns dos grandes debates políticos e
culturais, em particular daqueles que se centram na figura da
mulher, nomeadamente no movimento feminista que então se
afirmava através de destacadas figuras como Margaret Fuller.
Também neste aspeto, a sua obra e os signos que ela confronta
surgem como instâncias em constante reformulação e construção,
não como dados adquiridos e imutáveis. Algumas mulheres
reconheceram na sua poesia ecos das suas exigências face à
sociedade contemporânea. Embora deva destacar algumas das
críticas feitas por essas mesmas mulheres, à poesia de Whitman,
para não me afastar da reflexão que urge prosseguir, confino-as às
que têm como enfoque a representação do ícone, isto é, do corpo.
Em 1856, Fanny Fern refere: «Walt Whitman, the effeminate
world needed thee. […] enamored of women not ladies, men not
gentlemen […] (Price, 1996: 46). Já a edição de 1860 será objeto
da atenção de Mary Chilton e de Adah Menken, as quais
defenderão o caráter revolucionário com que o corpo e as relações
entre os sexos são expostos, referindo, entre outros aspetos, que a
atração física é algo de natural (idem: 190-191, 203 e 216). A
representação do corpo revela-se afinal nuclear; considerem-se os
seguintes exemplos: em «O Hymen! O Hymenee!», de Children of
Adam, Whitman subscreve a definição de hímen dada no
dicionário Webster (idem: 127-128); em «Spontaneous Me» a
mulher controla o seu próprio prazer.
Após a breve evocação da receção crítica feminina, devo
transitar para uma das dimensões centrais do livro, tendo ainda
obviamente em conta o plano visual, e o retrato, em particular;
aquilo que acima designei como con-fusão Livro-Autor. A ausência
do nome na capa cria um silêncio que envia para a centralidade do
ícone, gerando aquilo que Ed Folsom considera não só a
metonímia organizadora de Leaves of Grass (Folsom, 1994: 147),
mas também «[…] the most successful metonymic trick in poetic
history — his insistence on the book as man […] by conflating two
bodies, his own and that of his book» (Folsom, 1995: 137). Esta
metonímia decorre da afirmação, convocação, (simulação da)
exposição, do próprio poeta: «The portrait […] in fact is involved as
part of the poem» (idem: 139). Construindo e participando desta
con-fusão dever-se-á registar quer a voz do autor quer a da crítica
do seu tempo que vê nesta interação uma rutura face às
construções estéticas dominantes, com um impacto, obviamente,
cultural e, eventualmente, político. Aliás, sobre a edição de 1889,
Whitman diria: «Doubtless, anyhow, the volume is more A
PERSON than a book» (idem: 159).
Ora, recordemo-lo, a crítica assinala, desde o início, a
perplexidade face à ausência do nome do autor na capa do livro,
assim contribuindo para esta con-fusão. Veja-se, por exemplo, a
ironia desta recensão publicada em 1855: «As seems very proper
in a book of transcendental poetry, the author withholds his name
from the title page, and presents his portrait, neatly engraved on
steel, instead» (Price, 1996: 17; itálico meu). Através do itálico
pretendi destacar a referência ao Transcendentalismo, um
movimento devedor, em particular, do idealismo alemão e da
primeira geração do romantismo inglês. Este movimento que, no
plano filosófico, tem como figura mais relevante Ralph Waldo
Emerson, era identificado com um grupo defensor de ideias
radicais, com especial ênfase no plano religioso. A Emerson se
deverá, entre outras coisas, a criação de uma cosmovisão
centrada no indivíduo e que será particularmente influente em
gerações posteriores. Ao ligar Whitman a este grupo, o crítico
pretende remetê-lo para estas, então, margens do espetro cultural
e literário.
Outras críticas, agora com uma tonalidade não disfórica, irão
destacar essa interação. Por exemplo, numa recensão publicada
em janeiro de 1856 na revista North American Review afirma-se:
«Everything about the external arrangement of this book was odd
and out of the way. […] It bears no publisher’s name, and, if the
reader goes to a bookstore for it, he may expect to be told at first,
as we were, that there is no such book, and has not been.
Nevertheless, there is such a book, and it is well worth going twice
to the bookstore to buy it» (idem: 34). Sobre esta con-fusão veja-
se, ainda, a edição de 1855 do Daily Eagle: «[…] the book is a
reproduction of the author. His name is not on the frontispiece, but
his portrait, half-length, is. The contents of the book form a
daguerreotype of his inner being, and the title page bears a
representation of its physical tabernacle» (idem, 18; itálico meu).
Na tríade Livro-Autor, Livro-Leitor e Linguagem, suportada pela
dimensão visual, radica muito da modernidade de Whitman. Ao
longo das sucessivas revisões do seu Livro, o poeta edifica uma
materialidade decorrente da interação entre estes vetores. Para
além de diálogos intratextuais e intertextuais, Whitman joga com a
presença do próprio ícone (a fotografia), enquanto signo de uma
peculiar identidade em processo de constante transformação:
Livro-Autor. Se observarmos essas várias edições de Leaves of
Grass, constata-se que, com a primeira edição (a de 1855), o
poeta inaugura a sua própria tradição, convocando o ícone da
figuração autoral. Na terceira edição, de 1860, surge uma gravura
de um retrato feito por Charles Hine que constituirá o ponto de
viragem da exploração do eu para o poeta mítico (Allen, 1997: 64).
Com efeito, Whitman reformula a conceção tradicional de poema
épico, dando corpo àquilo a que o poeta americano do século XX
Wallace Stevens chamou «ficção suprema». Este é um aspeto que
escapa ao âmbito desta leitura. Dever-se-á, contudo, referir que a
nova perspetiva acerca daquilo que o poema épico deverá ser,
implica a noção de «percurso poético»: o poema (o Livro) é
entendido como algo que será (re)escrito no decurso da vida; algo
a que poetas ulteriores regressarão, prosseguindo, no seu tempo,
a construção de epopeia, da ficção suprema. A epopeia torna-se
um projeto simultaneamente individual e coletivo. Ora, a noção de
percurso poético explorada pela epopeia whitmaniana, radica na
acima referida interação Livro-Autor; algo que a fotografia regista
no processo de transformação do corpo.
Ao longo das sucessivas revisões do seu Livro, Whitman exibe a
materialidade deste sob inúmeras perspetivas. Em «In Cabin’d
Ships at Sea», o sujeito desenvolve uma estratégia intimista com o
Livro, instituindo-o como prosopopeia, destinatário ao qual uma
missão está destinada (curiosamente, ao Livro e não ao poeta); ao
Livro se exige dinamismo, ação: «Then falter not O book, fulfil your
destiny, / […] / Speed on my book!» (Loving, 1990: 10). Por outro
lado, em «Spontaneous Me» verifica-se uma relação especular
poema/sujeito, sendo este material e metonimicamente designado
através do corpo: «our lusty lurking masculine poems» (idem: 90);
curiosamente, esta imagem assemelha-se a um negativo do passo
seguinte do prefácio que o autor escreveu para Leaves of Grass,
onde a sua recusa do puritanismo significa a redescoberta do
corpo: «[…] dismiss whatever insults your own soul, and your very
flesh shall be a great poem and have the richest fluency not only in
its words but in the silent lines of its lips and faces and between the
lashes of your eyes and in every motion and joint of your body»
(idem: 446).
Já no final do percurso, isto é, da vida, no poema,
significativamente, intitulado «So Long», surge uma síntese que
superou o par «My Book and I», antes existente (idem: 428). Neste
poema, a materialidade do Livro institui-se para além da vida do
seu criador; assim se transforma a identidade do texto:
«Camerado, this is no book, / who touches this touches a man, /
[…] / How your fingers drowse me, / your breath falls around me
like dew, / your pulse lulls the tympans of my years […]» (idem:
382).
As representações do autor através da fotografia acentuam ainda
duas dimensões: a materialidade subjacente ao corpo e ao seu
processo de transformação, e o jogo entre o próprio autor e o
texto. Na primeira edição a vitalidade do corpo impõe-se num
retrato que exibe o «mais democrático dos cenários», a página em
branco (Folsom, 1994: 145). Na edição de 1888 o autor inclui uma
fotografia sua de perfil, olhando em frente: o processo indicia agora
uma dimensão prospetiva, o futuro, denunciando, porventura, o
diálogo que os poetas americanos ulteriores com ele necessitaram
de manter na busca da tal ficção suprema. No frontispício de
November Boughs (1888) recorre a um retrato seu já velho,
sentado, apoiado numa bengala, num cenário ostensivamente
artificial, assim explicitando o jogo subjacente a toda a sua
figuração do corpo ao longo das sucessivas edições de Leaves of
Grass. Na última edição, Whitman reúne as fotografias de 1855 e
esta última, expondo o envelhecimento do corpo.
Complementando esta representação visual, escreve no poema «A
Carol Closing at Sixty-Nine»: «The body wreck’d, old, poor and
paralyzed» (Loving, 1990: 386). O envelhecimento da voz é
mencionado em «Queries to my Seventieth Year»: «[…] now, / Dull,
parrot-like and old, with crack’d voice harping, screeching?» (idem:
387). Corpo e voz (a poesia?) denunciam a passagem do tempo.
Recorde-se quão relevante e inovadora é esta estratégia face a
uma geração, a de Whitman, a primeira a poder registar pela
imagem a degradação do seu próprio corpo. Ora, Whitman utiliza-a
profundamente, elaborando ainda um jogo com o leitor. Exemplo
desse jogo será o desenho de um dedo com uma borboleta que
surge no início, meio e fim da edição de 1860 (cf. figura 16).
O mistério deste signo, metonímia final, será desvendado com a
exposição do conjunto vinte anos depois. Neste conjunto é a
imagem do poeta, com uma borboleta pousada no dedo que se
revela (cf. figura 17).
Whitman exibe, além disso, jogos, processos de transformação e
de construção, aos quais não é alheia a inclusão de ícones
decorrentes de diferentes formas de representação: «[…]
combining steel engravings with woodcuts with photoengravings
with actual photographs» (Folsom, 1994: 159). A par de um
processo de reformulação da poesia, por ele empreendido, surge a
sua busca de um novo léxico. Esta reformulação passa pela
assimilação da linguagem nativa e pelo debate em torno da língua
(o «American English»), que se liga à elaboração de um dicionário
passível de representar a nova realidade. O poeta incluirá quase
14 000 palavras nas três primeiras edições, incluindo «street talk»,
«colloquial speech rhythms» e palavras de outros idiomas (Erkkila,
1989: 82 e 86). Um ano antes de morrer, percorrerá a mais recente
edição do Dicionário Webster em busca de palavras que ele
próprio inventara.
Tendo observado as imensas potencialidades que o retrato
oferece à poesia através da representação fotográfica, é tempo de
nos determos sobre exemplos mais convencionais através do
registo pictórico. Comecemos pela perenidade que o retrato é
suposto conceder ao seu objeto. Referi acima que Jorge de Sena
convoca a tradição descritiva em «Retrato de um desconhecido»,
um poema sobre Retrato de jovem cavaleiro, um quadro
depositado no Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa.
Retrato de jovem cavaleiro é marcado pelo anonimato tanto do
modelo como do autor. Neste anonimato reconhece-se uma
suprema ironia: o retrato, cuja função primeira seria a de preservar
uma memória, reproduz, afinal, alguém cuja identidade, cujo nome,
se perdeu no tempo. O anonimato estende-se a um autor que tão
bem soube captar essa outra identidade, aquela que se espelha no
olhar do seu modelo, e na forma específica como este nos
interpela a nós que o observamos na sala do Museu: «Fita-nos,
como o pintor pensou, / não como jamais fitou alguém. / Ele
próprio se não conheceu nunca / nesse retrato que a família, que
os amigos, / sempre acharam todos parecido. / […] // Mas tudo
conjectura apenas. // Quem era? Qual o nome? Não sabemos /
nada, inteiramente nada. / […] E, / dele, como do Mestre, não
sabemos nada. / E quanto à data… a data é muito incerta» (Sena,
1978: 95).
A meditação desencadeada pelo quadro é toda ela marcada pela
especulação: pela especulação suscitada sobre aquele que terá
sido o rosto que o impulsionou; pela especulação em torno das
reações coevas de quem o terá conhecido. Mas a consciência
dessa dimensão especulativa é evidenciada pelo próprio texto que,
num processo autorreflexivo, admite ser «tudo conjectura apenas».
O quadro determina, afinal, a leitura que dele é feita: a maestria
com que o olhar é representado e a forma como ele nos interpela,
impressionam e seduzem, ao que acresce o anonimato do jovem.
A descrição é neste texto interpolada pela reflexão, pela
especulação imposta pelo objeto ao seu observador atento. Os
mistérios, da identidade e da arte, persistem.
A este mistério — «Tão português e ignorado que bem podem
ser dele as cinzas / que estão por detrás da pedra tumular do
soldado desconhecido» (Fernandes Jorge, 2002: 21), — regressa,
como acima referi, João Miguel Fernandes Jorge em «Retrato de
jovem cavaleiro». No entanto, Fernandes Jorge coloca o mistério
num plano diferente, na singularidade da perceção. A perceção era
relevante em Sena, oscilando entre o espírito analítico e o efeito
emocional conseguido pelo objeto. Mas no autor de Museu das
Janelas Verdes a ênfase recai no observador. Podereis pensar que
esta ênfase surge na esteira de Gombrich. Talvez o seja apenas
lateralmente, pois aqui ela envia para a sedução e para a posse.
Desvendamos a sua singularidade em duas perspetivas, em
duas formas de conhecer a sedução, expostas ao longo do poema,
a da rapariga e a do homem: «A rapariga ao passar reparou
primeiro na renda / branca sobressainte da gorjeira metálica
forrada a vermelho veludo. / Logo se prendeu ao oval do rosto, aos
lábios que / querem romper em frase da vida nunca separada. E /
disse a rapariga ‘hás-de extraviar-te nos céus / sem que vez
alguma eu possa estar ao teu lado.’ / Quando terminou a visita
comprou-o em postal» (Fernandes Jorge, 2002: 21). O objeto
inanimado (?), pelo «oval do rosto» e pelos «lábios», seduziu a
jovem. A posse possível («comprou-o em postal») encerra uma
intensa ironia, pois passa pela «compra», pelo facto de esta não
significar uma posse real (a do corpo), e por um efetivo encontro
jamais se realizar — num eco de «Ode on a Grecian Urn»?
Sucede a esta perceção o olhar algo neutro do sujeito, após o
qual se expõe a perceção do homem: «O homem / procurou-o no
seu exacto lugar / na parede que lhe coube em sorte. / Conhece-o
desde sempre / e sempre no seu íntimo admitiu / vir a cruzar-se
com ele no extravio / dos caminhos do inferno» (idem). Para quem
possa ter inicialmente reconhecido neste poema uma dicotomia a
nível do género, estes versos denunciam a estratégia de sugestão
e o decoro da contensão eliotiana que perpassa por «The Love
Song of J. Alfred Prufrock», acima mencionados. Com efeito, neste
olhar con-funde-se um arquétipo decorosamente indiciado («the
love which dares not speak its name»?), e pela moral identificado
com o «extravio / dos caminhos do inferno» (a incursão de
Prufrock «through certain half-deserted streets, / The muttering
retreats / Of restless nights in one-night cheap hotels», Eliot, 2015:
5), e uma identidade que no rosto se insinua, a de se ser
português («ele é português — / os de cabelo castanho — / por
todos os lados», Fernandes Jorge, 2002: 21). Nestas duas
perceções desvenda-se um destino, um percurso, o dos
«extravios» nos «céus», sonhado pela rapariga, ao «extravio» nos
«infernos» (signo de censura social?), no imaginário do homem.
Tal como a rapariga, «quando sai do museu [o homem] nunca se
esquece de comprar / uma reprodução do retrato do jovem
cavaleiro / muito mais jovem do que qualquer dos seus
contemporâneos, ele / entristeceu sobre os seus ombros / a
sombra do belo» (idem). Nesta reincidência («nunca se esquece»
pressupõe reencontros vários) insinua-se a posse possível, o
alcançar de uma margem (sombra) mais próxima, afinal, do Fedro,
de Platão.
Este olhar sobre uma outra anónima expressão, sobre outro
anónimo olhar, reenvia, assim, a Malraux, e à peculiar função do
Museu e da Arte, como espaços de cultura, descoberta e projeção
para cada um de nós: «Que nos importa a identidade do Homem
do Capacete, ou do Homem da Luva? Chamam-se Rembrandt e
Tiziano. O retrato começa por deixar de ser o retrato de alguém.
Até ao século XIX, todas as obras de arte eram a imagem de algo
que existia ou não existia, antes de serem obras de arte. Só aos
olhos do pintor a pintura era pintura; e, muitas, vezes, era também
poesia» (Malraux, 1963: 11-12).
Para além da solenidade que emerge da tradição pictórica na
sua preservação de identidades cujo poder é assim assinalado,
outras formas de representação algo laterais persistem nos
espaços museológicos com os seus contextos específicos, como a
numismática. Ainda que, eventualmente, sem o detalhe formal e
sem o contributo da cor para a composição de um conjunto que a
pintura possibilita, também aqui a exibição de um rosto pode, não
só consagrar historicamente alguém que as circunstâncias do
presente estacaram dos demais, como indiciar uma narrativa. É
esta dimensão que Konstandinos Kavafis explora em «Orofernes».
Nas suas notas ao poema, Joaquim Manuel Magalhães e Nikos
Pratsinis expõem as dúvidas relativas à possível identidade do
rosto gravado na moeda: «duvidava-se se seria filho do rei
Ariárthòs IV da Capadócia. Sua mãe era filha de Antíoco III (um
dos maiores monarcas do império selêucida da Síria) e a sua avó
Estratónica (filha de Antíoco II também da Síria)». Acrescentando:
«Estes contextos biográficos explicam o apoio que lhe dá o sírio
Demétrio Sóter […] em 157 a. C., para conseguir o trono da
Capadócia. E explica o seu acolhimento após o derrube e a
tentativa para usurpar o trono de Demétrio, seu protector»
(Magalhães e Pratsinis, 2005: 422). Com efeito, a identidade do
referente — daquele cujo percurso de vida, cujo estatuto lhe terá
conferido um privilegiado reconhecimento social — é algo que
subjaz à especulação que o poema em torno dele enuncia a partir
da imagem. É nesse sentido, algo pedagógico, da identificação
existente nos versos iniciais — «Este que na tetradracma / parece
ter o rosto a sorrir, / o seu formoso e delicado rosto, / este é
Orofernes de Ariárthòs» (Kavafis, 2005: 83) — que sucede uma
evocação, da qual não está ausente uma dimensão especulativa,
em torno dos tempos de crescimento — «Em miúdo expulsaram-
nos da Capadócia, / do grande palácio paterno, / e mandaram-no
crescer / na Jónia para ficar esquecido entre estrangeiros» (idem).
Quando se transita para a terceira estrofe, a especulação e a
subjetividade imperam: «Ah excelsas noites da Jónia / onde sem
medo, e de maneira totalmente helénica / conheceu o prazer
inteiro» (idem). Estamos, como é evidente, no domínio puro da
fábula; pouco de «histórico», de «verdade factual» persistirá
nestes versos. Contudo, não competirá essa dimensão didática ao
discurso poético. Afinal, será nesse afastamento do factual, nessa
enunciação especulativa de uma vida interior, que algo de
profundamente relevante emerge, a humanidade; a humanidade
não reconhecível no rosto gravado na moeda, mas que se terá
projetado no seu exercício do poder — «atirou-se sobre o reinado /
para gozar de modo novo cada dia, / para acumular com rapina
ouro e prata» (idem). Quando refiro humanidade, não o faço no
sentido laudatório, mas sim no reconhecimento da afinidade que
existe entre o ser representado naquela imagem e qualquer um de
nós. Por fim, talvez devido a essa mesma humanidade, às suas
falhas, «fracassou desastrosamente e foi aniquilado» (idem: 85). À
semelhança de Ozymandias, estava-lhe destinado o esquecimento
dos seus feitos, «O seu fim deve estar escrito e perdido algures; /
ou talvez a história a história lhe tenha passado ao lado» (idem),
restando apenas «uma estética memória de um rapaz da Jónia /
[…] Orofernes de Ariárthòs» (idem). No polo oposto situa-se «The
Bronze Horseman: A Petersburg Tale», de Aleksandr Pushkin27.
Neste poema sobre esse emblema icónico de São Petersburgo
que é a estátua equestre de Pedro, o Grande, concebida por
Étienne Falconet por encomenda de Catarina, a Grande, o poeta
russo dá voz à personagem histórica ali celebrada. Se em
«Ozymandias» existe um efeito irónico na declaração final de um
protagonista confinado à dimensão de ruína, já em «The Bronze
Horseman: A Petersburg Tale» o efeito será de óbvia celebração,
celebração de uma figura heroica, de um lugar e de uma nação.
Uma tonalidade eufórica atravessa, assim, o texto, tanto na
descrição realizada pelo poeta, como na persona, na voz do
protagonista: «And he thought: / the Swedes will threaten with our
labour. / We’ll build a city, here, a port, / to challenge our disdainful
neighbour» (Chandler, 2015: 88). A écfrase e o simulacro da voz
do monarca funcionam, todavia, como impulso para uma outra
meditação, aquela que o poeta elabora em torno da (sua) cidade
que ali inviamente se celebra: «I love you, miracle of Peter’s, / your
stern and graceful countenance, / the broad Nevá’s imperious
waters, / the granite blocks that line your banques, / the railings in
cast-iron muster, / the melancholy of your nights, / transparent
twilight, moonless lustre, / when, in my room, I use no lights / to
write and read […]» (idem: 89).
«Ozymandias», com o seu enunciador primeiro, o alter ego do
poeta, diluindo-se na máscara da voz do viajante de terras
distantes, e «The Bronze Horseman: A Petersburg Tale», com esse
registo confessional que se desvanece num registo decoroso —
«There’s nothing, firends, for me to add» (idem: 90) —, evidenciam
um certo impulso para a não exposição do rosto. Adquirem, deste
modo, relevância aqueles instantes poéticos em que a entidade e a
identidade do poeta são celebradas a partir do encontro com um
signo artístico, como sucede em «Bronze Poet», de Innokenty
Annensky. Neste soneto sobre a estátua de Pushkin, exposta no
Lycée Garden em Tsarskoye Selo, o poeta simbolista começa por
proceder a uma descrição da atmosfera que envolve a estátua. É
nesta atmosfera que se insinuam traços que participam da
dimensão algo mítica que Pushkin adquiriu junto dos seus
contemporâneos e que gerações ulteriores sedimentaram. A
ênfase na atmosfera prevalece ao longo das quadras, e só nos
tercetos, em particular, nos derradeiros versos, a écfrase emerge
numa espécie de fade-out que, prolongando a melancolia indiciada
na descrição do espaço, abre a presença do poeta para a
posteridade: «the poet shakes away his uniform / of tired bronze
and springs onto the lawn» (Chandler, 2015: 157).
Esta oscilação entre o olhar do crítico — uma perceção exógena
— e o do sujeito/referente — uma perceção endógena —, faz com
que o poema não se confine nem a um mero olhar sistemático
sobre eventuais qualidades ou características do objeto, o que o
filiaria num solo exclusivamente hermenêutico, nem a uma mera
especulação subjetiva com pretensões a desvendar a intimidade
do artista. É neste solo ambíguo, neste espaço entre, neste espaço
de fronteira que o poema emerge, convocando registos de
diferentes horizontes de escrita. Um outro excelente exemplo deste
registo de fronteira será «Mr Warrener», do poeta inglês Anthony
Thwaite.
A ambiguidade que perpassa este texto insinua-se, desde logo,
no título. Embora tal não seja explícito, o título convoca, não um
qualquer cavalheiro que dá pelo nome de Warrener, mas sim o
quadro homónimo pintado em 1892 por Toulouse-Lautrec, o qual é,
esse sim, um retrato de William Tom Warrener, um pintor inglês
com quem o artista desenvolveu uma relação de amizade durante
a estadia daquele em Paris. Apesar de ser autor de uma
considerável obra, essencialmente dedicada ao universo
paisagístico e ao retrato, Warrener seria celebrizado pelas pinturas
que Lautrec fez dele (cf. figura 18). Refiro-me, não só a Mr
Warrener, mas também a outras duas obras igualmente pintadas
em 1892 — a L’ Anglais au Moulin Rouge e a Jane Avril dansant,
na qual ele é apenas um minúsculo observador numa zona remota
da cena ostensivamente dominada pela personagem que dá título
ao quadro. Além disso, aos 45 anos Warrener abandonaria a
carreira artística para se dedicar aos negócios familiares. Como
adiante veremos, esta referência não será displicente.
A epígrafe do poema de Anthony Thwaite designa esse espaço
de fronteira e a ambiguidade que referi. Com efeito, a epígrafe
reproduz um excerto daquele que provavelmente será um catálogo
proveniente da Usher Gallery, em Lincoln, em Inglaterra. No
entanto, o seu caráter algo didático — os dados biográficos sobre
William Warrener — é, de alguma forma, sabotado pela
organização na página que parece simular um texto em verso:
«[…] born in Lincoln and studied / at Lincoln School of Art, and / in
London. For a time he worked / in Paris where he became a friend /
of Toulouse-Lautrec, but in 1904 / he returned to Lincoln to take /
over the family coal merchant business» (Thwaite, 1989: 137). É
com este registo em que o biográfico omite o facto de o referente
ser, em última análise, o retrato de Toulouse-Lautrec (sobre o seu
amigo), que o leitor é confrontado, sendo consequentemente
abandonado nessa zona fluida e ambígua. Será legítimo dizer que
só então surge o poema, ou abarcará este o fragmento textual que
o antecede?
Uma voz emerge, em seguida, naquele que será um registo
perpassado pela nostalgia de um artista face à sua juventude —
«Attics and absinthe, girls in shadows / Along the Seine under the
gaslight, / And canvas after canvas covered / With botched-up
images that hovered / In air for me to get them right» (idem), cujas
memórias interferem com intensidade num quotidiano marcado
pela ordem e pelo método de uma rotina burguesa outrora
denegada: «Here at the roll-top desk where orders / Are neatly
stacked for coke and cob, / Deliveries to Brigg or Bailgate, / The
lamps all lit, and working late, / I feel my pulses leap and throb /
Remembering art’s old disorders» (idem).
Embora aparentemente participando do subgénero retrato, «Mr
Warrener» coloca uma questão mais fascinante, a da fronteira
entre hipotipose e écfrase. Como referi, o primeiro aspeto a
considerar é o próprio título que, ao remeter para a obra de
Toulouse-Lautrec, sugere a convocação da écfrase. No entanto,
em vez de uma descrição do objeto artístico, aquilo que emerge é
(a especulação em torno de) «um retrato interior», uma ficção
sobre aquele que será o ponto de vista do retratado; ou seja, em
vez da écfrase, surge um monólogo dramático que evoca
(descreve) fragmentos do passado e a realidade (o
espaço/escritório) do presente. Prevalece, portanto, a hipotipose.
Significa isto que a écfrase está ausente deste poema?
Curiosamente não, pois ela desponta num breve instante dessa
reminiscência da juventude que estes versos revelam: «canvas
after canvas covered / With botched-up images that hovered / In
air». Na sua aparente simplicidade, «Mr Warrener» exibe, deste
modo, um solo de in-betweenness, um solo radicalmente fluido,
oscilando entre várias fronteiras das quais participam a presença
subliminar pictórica, o(s) subgénero(s) poético(s) — écfrase e
monólogo dramático, o passado e o presente, o olhar do sujeito
suscitado pela figuração do artista.
Semelhante fluidez não significa, porém, a opacidade radical que
pode culminar numa não visibilidade, num não reconhecimento.
Anna Akhmatova verbaliza esse instante limite num excerto de
«Epic Motifs» que, em certa medida, evoca as metamorfoses do
retrato em The Picture of Dorian Gray. Eis como ela verbaliza o
modo como a passagem do tempo altera a perceção de si própria,
através da representação que o quadro, qual espelho, lhe devolve:
«I would gaze anxiously, as if into a mirror, / at the grey canvas,
and with every week / my likeness to my new depiction grew / more
strange and bitter…» (Chandler, 2015: 253).
Não raro a écfrase sobre o retrato é concebida em torno de um
destes polos, o da perspetiva do artista face ao seu referente, ao
modelo; neste caso é, obviamente, o monólogo dramático que
predomina. Um exemplo desta estratégia será «A Portrait of the
Artist’s Wife / A Self-Portrait», de Paul Durcan. Regresso, portanto,
ao best-seller Crazy About Women.
A minha referência a este poema não se deve apenas ao facto
de ele se inscrever naquela estratégia. Como a barra do título
sinaliza, «A Portrait of the Artist’s Wife / A Self-Portrait» convoca
não um mas dois quadros, ambos da autoria do pintor irlandês
William Leech. Recordar-se-á que a minha opinião acerca do livro
de Paul Durcan não é particularmente celebratória. No entanto,
contrariamente à generalidade dos poemas deste livro, este é
marcado por uma decorosa tensão entre pathos e bathos, entre o
investimento emocional do artista no seu objeto/modelo, e um
impulso analítico que se projeta na estética pictórica que preside à
representação nos dois quadros; os versos seguintes evidenciam
esta dimensão: «You and I in our green world / Of green pain; /
Potted plants among the potted plants; / You in your brown haute
couture frock, / I in my brown shop coat; / Knees of clay» (Durcan,
1991: 121). Neste simulacro da escolha de cor, perspetiva,
envolvimento especial mais distante, reside a singularidade de «A
Portrait of the Artist’s Wife / A Self-Portrait» que justifica a sua
inclusão neste percurso analítico.
Sinalizo, em seguida, um poema que apresenta pontos de
contacto com o anterior, embora tendo como impulso um retrato
que emerge de um solo instável e o ponto de vista, não do criador
— um simulacro —, mas sim daquele que o observa. O poema em
causa intitula-se «The Blue Angel», é da autoria do poeta norte-
americano Allen Ginsberg.
Afirmei que este retrato desponta de um solo instável. Com
efeito, esse será aquele que sustenta os poemas que se seguem
até ao final desta secção; refiro-me ao cinema. Quando o retrato
se insinua na narrativa fílmica, tal ocorre sob o signo da fugacidade
(as técnicas de paralisação da imagem atuais, possíveis apenas
em projeções privadas, não contrariam esta perspetiva). Daí que a
narrativa fílmica não possibilite uma observação dilatada no tempo
e, consequentemente, detalhada, do signo. A observação ocorre,
afinal, sob o signo do instante e da subjetividade de cada
espectador que ora capta um traço ora outro, dificilmente
concebendo uma reprodução verbal rigorosa do rosto, do corpo, no
seu conjunto e em cada pormenor seu.
«The Blue Angel», título homónimo do filme de 1930 realizado
por Josef von Sternberg, e protagonizado por Marlene Dietrich (cf.
figura 19), é situado por Ginsberg no solo ecfrástico convencional,
o que não se afigura fácil devido à tal fugacidade que preside a
este registo artístico. Observem-se os versos iniciais: «Marlene
Dietrich is singing a lament / for mechanical love. / She leans
against a mortarboard tree / on a plateau by the seashore. // She’s
a life-sized toy, / […] / her hair is shaped like an abstract hat / made
out of white steel» (French e Wlaschin, 1993: 183). No entanto,
será quando o registo ecfrástico convencional é sabotado pela
analogia, pela capacidade de sugestão do poeta, que mais
intensamente a obra de arte se revela: «She opens her eyes, and
they’re blank / Like a statue’s in a museum» (idem). A idealização,
o próprio mito associado a este universo, é de algum modo
sabotado nestes derradeiros versos. Não esqueçamos a
centralidade mítica que o cinema ocupa na cultura americana do
século XX e que justifica a sua revisitação pelo discurso poético
ecfrástico. É neste âmbito que lembro um poema particularmente
subtil pela forma como investe no olhar sobre o objeto alusões a
outros solos culturais, assim o concebendo. Refiro-me a «Movie
Actress», do poeta norte-americano Karl Shapiro.
Neste retrato de uma atriz, a imagem participa do sonho, da
ficção, do mito. Contudo, ainda na epígrafe, com as suas
ressonâncias disfóricas, indicia-se uma sabotagem dessa mesma
essência. «I sit a queen, and am no widow, and shall see no
sorrow», envia para Apocalipse 18:1-24, isto é, para o contexto
bíblico da queda da Babilónia, a grande meretriz. Não será
estranho este olhar a uma perceção de Hollywood e dos rituais
sociais ligados àquele lugar e à indústria cinematográfica. É nesta
tensão entre a euforia da aparência — do mito — e a sua eventual
essência que o poema se constrói:

She is young and lies curved on the velvety floor of her fame
Like a prize-winning cat on a mirror of fire and oak,
And her dreams are as black as the Jew who uncovered her name;

She is folded in magic and hushed in the pride of her cloak


Which is woven of worship like silk for the hollows of eyes
That are raised in the dark to her image that shimmered and spoke;

And she speaks in her darkness alone and her emptiness cries
Till her voice is as shuddering tin in the wings of a stage,
And her beauty seems wrong as the wig of a perfect disguise;

[Idem: 180-181]

O verso inicial de cada terceto exibe uma imagem eufórica, que é


contrariada nos versos seguintes.
Diferentemente do retrato pictórico, a voz participa de uma
representação que, à semelhança do poema de Vachel Lindsay
sobre Mae Marsh, é marcada pela imagética pré-rafaelita. Por seu
turno, o plano prosódico, com o recurso à terza rima (ressonância
formal de A Divina Comédia, de Dante), indicia uma atmosfera
disfórica através da qual se enfatiza a analogia entre o Inferno
bíblico e aquele que a indústria cinematográfica encerra
(Goldstein, 1994: 132).
Ainda no domínio da alusão, de um certo não-dito, lembro «The
Sidney Greenstreet Blues», de outro poeta norte-americano,
Richard Brautigan. Esse não-dito surge sob a designação explícita
de um nome, Sydney Greenstreet. O título designa uma atmosfera,
«Blues», elemento determinante para a leitura de um poema que
exibe um desses instantes, por muito banais que o sejam, que
qualquer espectador guardou na memória:

I think something beautiful


and amusing is gained
by remembering Sidney Greenstreet,
but it is a fragile thing.

The hand picks up a glass.


The eye looks at the glass
and then hand, glass and eye fall away.

[Idem: 201]

Esta será, afinal, uma imagem cristal, a captação da


singularidade do instante de um retrato em movimento.
Porque não devemos regressar a «A New Laocoön», transito
para a écfrase centrada no rosto concebida por Michael McFee em
«Buster Keaton». O retrato desponta apenas em alguns versos
deste poema, embora essa focalização no rosto seja antecipada
por uma alusão a outro filme deste ator, Sherlock Jr. — «he came,
just as decades later / he would calmly step into a frame / and
never leave» (idem: 47). McFee centra-se na singularidade de um
rosto que, num contexto de comicidade, exibe a anacronia da
máscara trágica; uma máscara que é também «the curious / oracle
of his face, distant and mute / and abstracted perfect as statuary, /
the lesson of his life could be seen: // Patience. Be humble. Believe
in grace / and miracles of our own foolish making. / Words are
mostly waste» (idem). A voz do oráculo parece, afinal, indiciar a
denegação do ofício do poeta.
Encerro esta secção sobre o retrato com um poema que emerge
a partir do detalhe, «15th Raga: For Bela Lugosi», de outro poeta
norte-americano contemporâneo, David Meltzer. O sujeito interpela
aqui a imagem, o referente, entrando em diálogo com ele; é nesse
instante que o detalhe emerge. À semelhança do que sucede no
poema de Karl Shapiro, também neste exemplo a voz (o som) é
determinante na representação do ator:

Sir, when you say


Transylvania or wolfbane
or
I am Count Dracula,
your eyes become wide
&, for the moment, pure
white marble.

It is no wonder that (&


not as a putdown either) that
you were so long a junkie.
It’s in the smile. The way
you drifted into Victorian bedrooms
holding up your cape like skirts,

then covering her face


as you bent over her to kiss
into her neck & sup.

It is no wonder & it was


in good taste too.

[Idem: 184]

Por que razão David Meltzer opta por inscrever o poema num
modo melódico indiano, o raga? Essa é uma questão que deixo
para a sua reflexão, caro leitor. Para já destaco um aspeto, a
centralidade que, na captação do instante, assume o detalhe. É
nele que reside o mistério sinalizado pelo poeta. Para observarmos
a relevância que é concedida ao detalhe no processo ecfrástico,
convido-o à leitura da secção seguinte.

3.4. O detalhe
Citei acima a conceção de detalhe, segundo Daniel Arasse,
como algo que produz um acontecimento num quadro (Arasse,
1996: 12). Este historiador de arte francês assume a sua reflexão
em linha com uma tradição desencadeada por uma obra que terá
sido pioneira na ênfase atribuída ao detalhe no texto artístico, One
Hundred Details from the National Gallery, da autoria de Kenneth
Clark. Publicada pela primeira vez em 1938, esta obra transporta
para um primeiro plano fragmentos visuais que, à primeira vista,
podem passar despercebidos mesmo ao mais atento espectador,
como o fragmento de A purificação do templo, de Jacopo Bassano,
onde um autorretrato de Tiziano envelhecido é caricaturado devido
ao seu amor ao dinheiro (Clark, 2008: 7, 38 e 40), ou a luta entre
um leão e um urso que habitualmente passa despercebida a quem
observa A Virgem e o Menino com os Santos Jerónimo e
Domingos, de Filippino Lippi.
Estes são apenas dois dos cem detalhes escolhidos por Kenneth
Clark neste livro. A par da exposição do signo na sua globalidade,
surge um destaque visual do pormenor e a sua explicitação,
nomeadamente através de eventuais diálogos intertextuais.
Estamos, portanto, no domínio da História e da Crítica de Arte,
algo que, apenas lateralmente, convoco ao longo destas páginas.
No entanto, a sua relevância pode e deve ser reconhecida sempre
que a poesia eleva o detalhe à centralidade do texto. E é
exatamente sobre exemplos desta estratégia que me deterei em
seguida.
Inicio esta incursão pela presença do detalhe no texto ecfrástico
com um poema de Derek Mahon, «Courtyards in Delft — Pieter de
Hooch, 1659», sobre o quadro deste pintor holandês intitulado
Pátio de uma casa em Delft. Este poeta irlandês revela aqui um
olhar atento a uma sucessão de detalhes que surgem logo no
início na expressão «Oblique light on the trite». Segundo Stephen
Cheeke, através desses detalhes é toda uma cultura protestante
que se insinua:

[…] with its “oblique light”, the cleanliness, the fastidiousness of


detail, its clarity, its modesty and pride, its order and care, derive
from, record, and sanctify the Protestant culture of Delft in the
seventeenth century: the solidity, the thrift, the “modest but
adequate” lives of those who live there. At the same time the
poem describes what is not there in the picture, invoking both a
different genre or tradition of painting (the Renaissance tradition
of the Catholic South) and quite another set of cultural codes,
values and assumptions. [Cheeke, 2008: 32]

Para além de uma ideologia que pode ser insinuada nos


detalhes, considera ainda Stephen Cheeke que eles assumem
uma função mnemónica face à cultura que o poeta conheceu na
sua juventude em Belfast (idem: 33); isto é, os detalhes que dão
corpo ao quadro fazem com que ele se institua como correlativo
que permite a meditação do poeta.
O detalhe pode emergir no plano semântico, no plano imediato
do significado, culminando até naquilo que William Wimsatt, na sua
obra de 1954, The Verbal Icon, considera ser uma ampla teia de
encontros e contaminações: «A literary work of art is a complex of
detail […], a composition so complicated of human values that its
interpretation is dictated by the understanding of it, and so
complicated as to seem in the highest degree individual — a
concrete universal» (idem: 50). No entanto, ele pode ser
igualmente um actante de um jogo de interações cromáticas, como
se observa em dois brevíssimos poemas, «Tappeto», de Giuseppe
Ungaretti — «Ogni colore si espande e si adagia / negli altri colori //
Per essere più solo se lo guardi» (Ungaretti, 1969: 8) —, e «Um
pormenor de Piero della Francesca», de José Tolentino Mendonça
— «Pela neve sem rasto / caminhou / aquele que busca um amor»
(Mendonça, 2006: 160).
Será exatamente esta viragem nos convencionais horizontes
estéticos que inviamente irá ecoar nas inovações poéticas
propostas por Walt Whitman, como observámos no subcapítulo
anterior. Como vimos, a fotografia (o jogo com o signo no simular
da representação) significará, na sua obra poética, a mais radical
reformulação oitocentista dos conceitos de texto, autor e obra28.
Mas a fotografia pode também significar para ele um diálogo
específico com o detalhe. Para compreendermos o modo como o
detalhe opera na sua poesia, deveremos começar por observar a
presença da écfrase no seu percurso poético. Com efeito, esta
passa por diferentes estádios de evolução ao longo deste
percurso. Em «Out from behind a mask», a écfrase é explícita; a
noção de composição está aqui associada ao uso específico de
estratégias visuais (o chiaroscuro, por exemplo), à representação
(«curtain») e ao duplo movimento centrípeto e centrífugo, isto é, a
visibilidade, ao exibir-se, exibe, simultaneamente, os limites do
conhecimento: «Out from behind this bending rough-cut mask, /
These lights and shades, this drama of the whole, / This common
curtain face contain’d in me for me, in you for you / […] / The
passionate teeming plays this curtain hid!» (Loving, 1990: 296).
Neste exemplo, esta estratégia de representação entende-se a si
própria como interpretação de algo: cria uma metalinguagem. Uma
outra écfrase deve ser registada, a do poema intitulado «Cavalry
Crossing a Ford» inspirado no desenho Infantry Column on the
March, da autoria de Winslow Homer.
Devido à sua brevidade, proponho-lhe a sua leitura:

A line in long array where they wind betwixt green islands, They take a
serpentine course, their arms flash in the sun — hark to the musical clank,
Behold the silvery river, in it the splashing horses loitering stop to drink,
Behold the brown-faced men, each group, each person a picture, the negligent
rest on the saddles,
Some emerge on the opposite bank, others are just entering the ford — while,
Scarlet and blue and snowy white,
The guidon flags flutter gaily in the wind.

[Idem: 235]

Como se pode constatar, o poema estrutura-se a partir de três


vertentes visuais: as linhas que reproduzem espacialmente o
percurso dos signos no primeiro verso e no primeiro hemistíquio do
segundo; a cor, implícita (no segundo hemistíquio do segundo
verso) e explícita (nos terceiro, quarto e sexto versos); e o
movimento, com repercussões nítidas numa representação
pictórica em «splashing horses». Ainda a nível da homologia entre
o poema e o desenho, Betsy Erkkila assinala aquilo que considera
ser a dimensão ideológica desta estratégia de representação:

In the river the en masse breaks into individual “pictures”, […],


from panorama to close-up. The images of “splashing horses”
loitering and the “brown-faced men” resting “negligently” on their
saddles contradict traditional notions of military order, discipline,
and hierarchy, thereby projecting the figure of a democratic army.
And yet like the pattern of alliteration, repetition, and internal
rhyme that links the poem’s separate images, the cavalry’s
apparently random motion is part of a single pattern. The
separate brown-faced men are part of the line of cavalry that
stretches along both sides of the river and part, too, of the
democratic masses advancing under the guidon flags of the
Union. [Erkkila, 1989: 215]

Erkkila afirma ainda ser esta uma «[…] harmonious image of a


democratic army, in which individual and national will are merged
under the banner of the Union cause […]» (idem). No plano
específico da interação texto-objeto artístico, a écfrase realiza a
descrição (simula uma reprodução) deste último.
Após esta necessária digressão, alcançámos o tópico
estruturante deste subcapítulo, o detalhe. Com efeito, um dos
aspetos importantes decorrentes do impacto da fotografia no
discurso poético, será o da inclusão de todos os detalhes na
representação do espaço, algo que o próprio Whitman destacará:
«[…] every detail of a scene insisted on equal emphasis, and
nothing was ignored. Nothing was left out because it was
considered irrelevant or unaesthetic or inessential» (idem). Em
1862, designa «City Photographs» uma série de artigos sobre a
miséria da cidade que escreve para o jornal Leader, de Nova
Iorque. Tal como a sua poesia em Drum-Taps, também a fotografia
expõe o lado anti-heroico da guerra. Na década de 70 referirá: «In
these Leaves of Grass everything is literally photographed» (idem:
104). Por fim, num plano estritamente pessoal, a fotografia
possibilita observar, reconhecer, o processo de envelhecimento,
transformação, do corpo (idem: 113), constituindo uma presença
nuclear no percurso criativo do autor, e participando de uma
expansão da presença do ícone na sua obra.
Constata-se que a intencionalidade literária passa em Whitman
por uma complexa interação entre discursos vários,
nomeadamente decorrentes das artes visuais, alguns dos quais
habitualmente estranhos ao texto poético, que ele manipula de
forma a conceber uma identidade peculiar. No processo da sua
conceção, Whitman não deixa de encarar a convenção estética
como obstáculo epistemológico que, superado, significará um
regresso à linguagem quotidiana. Recorde-se a, acima referida,
filiação do transcendentalismo numa tradição idealista romântica, e
a ênfase que este coloca na subjetividade do eu, e numa
consequente dimensão confessional. Refere, a propósito, João
Almeida Flor:

Porventura reflexo, no domínio da estética, da mundividência


económico-política do capitalismo liberal onde o valor das
iniciativas individuais é preponderante, o surto de subjectivismo
que caracteriza muito do Romantismo europeu é responsável por
uma sensibilidade egocêntrica que preferencialmente se exprime
e manifesta através do lirismo confessional. Em poemas ou em
formas literárias autobiográficas ou diarísticas, o artista romântico
faz questão de iluminar os recantos da sua personalidade
expondo e exibindo o Eu como espectáculo que a sinceridade
autentifica. [Flor, 1980: 12]

Ora, Whitman supera esta tradição confessional romântica,


naquilo que ela significa de exibição de uma eventual sinceridade,
quer ao colocar o jogo no centro da criação poética29 quer ao
recuperar uma certa tradição realista através da sua ênfase
naquilo que poderia persistir despercebido, ignorado, na sombra,
nas margens do olhar; esse instante de alteridade que é o detalhe.
Essa sua superação de um confessionalismo romântico não
significa a denegação do confessionalismo, mas sim a
incorporação neste de um olhar clínico sobre o espaço; e aqui é
uma ética que se insinua, a de uma radical integração da
alteridade no texto, pois, como ele proclamara na secção 3 de
«Song of Myself», «Not an inch nor a particle of an inch is vile»
(Loving, 1990: 31). Assim se afirma o reconhecimento estético e
ético do detalhe.
A observação do signo visual, do quadro, da obra de arte, pode e
deve, deste modo, estimular a atenção face ao detalhe e,
consequentemente, ecoar numa estética de escrita. Numa
entrevista, a poeta espanhola Ana Rossetti declara a importância
da pintura na sua escrita poética, o que, segundo Persin, pode
exatamente ser percetível na sua atenção ao detalhe visual, no
enquadramento, na manipulação da perspetiva (Persin, 1997:
167). Com efeito, se atentarmos em momentos significativos do
encontro estético entre a palavra e a imagem, como aquele que
ocorre em meados do século XIX, em Inglaterra com a chamada
Irmandade Pré-Rafaelita30, detetamos instantes poéticos em que o
detalhe é elevado para o centro do texto. «For a Venetial Pastoral
by Giorgione (In the Louvre)», de Dante Gabriel Rossetti, exibe um
excelente exemplo desta educação estética do olhar nos versos
«Water, for anguish of the solstice: — nay, / But dip the vessel
slowly» (Rossetti, 1870: 260), que evocam um pormenor no lado
esquerdo do quadro de Giorgione mencionado no título.
Sensivelmente na mesma altura, e ainda em Inglaterra, Elizabeth
Barrett Browning, em «Hiram Power’s Greek Slave», identifica no
detalhe uma tradição de representação e um gesto político —
«posture taken from the Venus Pudica tradition of the Cnidian
Aphrodite» (Hollander, 1995: 62). Tanto em Rossetti como em
Browning o olhar desvia-se do centro, da narrativa dominante. E se
Edith Wharton leva ao limite esta denegação do núcleo em «Mona
Lisa», onde ignora a célebre e enigmática personagem, e opta por
se deter nos detalhes da paisagem, Sophia fá-lo-á ao culminar
«L’âge d’Airain», sobre uma peça escultórica de Rodin, na sua
perceção daquilo que o gesto da personagem pode sugerir: «No
extremo dos seus dedos nasce um voo / No vértice do vento e da
manhã / Uma asa vai — perdida dos seus dedos» (Andresen,
1990: 183).
Tendo mencionado o desvio de enfoque no signo nuclear do
quadro, realizado por Wharton, devo assinalar um poema em que
o olhar se flui sobre os diferentes detalhes que dão corpo a esse
signo para assim desvendar o mistério que ele encerra. Regresso,
por isso, ao famoso quadro de Leonardo através de «La
Gioconda», de Michael Field. O rosto da personagem é aqui
decomposto numa sucessão de detalhes que, quais fragmentos
imagéticos, se vão sucedendo ao longo do poema: «Historic, side-
long, implicating eyes; / A smile of velvet’s lustre on the cheek; /
Calm lips the smile leads upward; hand that lies / Glowing and soft,
[…] / a dusky forehead and a breast / Where twilight touches
ripeness amorously» (Field, 2015: 8). Só nos derradeiros versos o
olhar se amplia para ir ao encontro do resto que o cenário é:
«Behind her, crystal rocks, a sea and skies / Of evanescent blue on
cloud and creek; / Landscape that shines suppressive of its rest /
For those vicissitudes by which men die» (idem).
Muitos outros poemas exercem essa função algo pedagógica na
perceção do detalhe e no reconhecimento da sua relevância
estética e mesmo de um eventual subtexto político. Como exemplo
deste último aspeto, recordo o poema de Manuel Machado sobre
Felipe IV que, tal como no quadro de Velásquez, se detém sobre a
mão que segura a «guante de ante», isto é, que indicia um signo
do poder (Persin, 1997: 39). Ainda no âmbito de uma relevância
estética, cito vários exemplos. Começo por «Ride the High
Country», um poema de David Slavitt, sobre o filme homónimo
(1962), de Sam Peckinpah, no qual os detalhes — «the long red
underwear» e «the gold-rimmed spectacles» (French e Wlaschin,
1993: 321) — sugerem a dimensão crepuscular do referente: este
é o último filme de Randolph Scott e o último papel relevante de
Joel McCrea.
Outro exemplo será o acima mencionado «Winter Landscape»,
de John Berryman, onde o detalhe contribui para a reminiscência
de uma atmosfera de suspensão prevalecente em «Ode on a
Grecian Urn». Cito ainda «The Rokeby Venus», de Robert
Conquest, sobre o quadro homónimo de Velásquez. Faço-o devido
ao facto de os detalhes surgirem aqui com uma função distinta das
anteriores, a de se centrar na técnica do artista, algo que
facilmente passará despercebido ao espectador — «But
underneath the pigments’ changeless weather / The artist only
wanted to devise / A posture […]» (Hollander, 1995: 263) —, e a de
evocar subliminarmente uma tradição de representação — «Thus
on this painted mirror is projected / The shield that rendered safe
the Gorgon’s head» (idem)31.
Sinalizo ainda um poema em que o registo ecfrástico assenta
numa catalogação dos detalhes que emergem no texto artístico e
numa consequente compreensão dos mesmos nesse tecido
textual. Identifico como particularmente significativo desta
estratégia «A Baroque Wall-Fountain in the Villa Sciarra», de
Richard Wilbur (idem: 267-269), onde o poeta realiza um plano-
sequência, de modo a explicitar o sentido daquele que será esse
seu excesso barroco. Esta obsessão pela exibição dos fragmentos
visuais pode, aliás, ser reconhecida pelo próprio poeta, num
registo algo confessional, como sucede em «At a Private Showing
in 1982», de Maxine Kumin: «This loving attention to the details: /
faces by Bosch and Bruegel, / the mélange of torture tools, / the
carpentry of the stake, / the Catherine wheel, / the bars, spires,
gibbets, pikes — / I confess my heart sank / when they brought the
second reel…» (French e Wlaschin, 1993: 49). Curiosamente este
é um poema que evoca a imagem em movimento, o cinema, isto é,
algo que, devido à sua fluidez, tende a fazer-nos esquecer o
detalhe.
Em «Pieza de Museo», José María Álvarez ironiza com uma
outra falta de atenção, a daqueles que, no Museu, passam frente
aos artefactos e que não atentam nos detalhes onde, segundo ele,
um discurso subliminar se insinua; neste caso, seria a
representação indiciada do erotismo que um ethos pretérito não
teria permitido ao escultor figurar: «Y sin embargo / bastárales
contemplar el vuelo de esos ojos, / ese rostro, escuchar los
suspiros / que salen de su boca, de ese pecho / que infla el amor,
esa espalda que se arquea, / esos muslos que aprieta / el gozo, /
para entender / que no es la Muerte la que toma / a esa mujer, sino
el placer, / el éxtasis, la absoluta / anonadación del orgasmo. / Si el
buen Auguste Clésinger / se vio forzado por la censura de su
tiempo / a inventar una anécdota trivial / que permitiera a sus
ensueños / ser expuestos en el Salón del 47» (Magalhães, 1997:
58, 60). Ora, o artista utilizou um processo de moldagem através
de um corpo real, o do modelo Apollonie Sabatier, o que fez com
que fosse alvo de muitas críticas, nomeadamente de Delacroix,
que considerou ser este «um daguerreótipo em escultura».
A atenção face ao detalhe será radical em «Two Views of a
Cadaver Room», um poema de Sylvia Plath, contemporâneo de
Pictures from Brueghel, de Williams. Fascina-me aqui a
manipulação de pontos de vista realizada por Plath num díptico
onde narrativa autobiográfica e écfrase surgem à partida
dissociadas. Com efeito, o título simula dois exercícios de
representação sobre um mesmo referente. O poema divide-se em
duas partes: na primeira, a autora retoma um episódio do seu
romance The Bell Jar, quando a protagonista, Esther Greenwood,
visita uma sala de um hospital onde, num cenário devedor (e
reformulador) do gótico (veja-se, por exemplo, os fetos
conservados nas campânulas), o namorado, estudante de
medicina, exerce o seu poder de sedução através da dissecação
de um cadáver; na segunda parte, a voz detém-se sobre um
pormenor de O triunfo da morte, um quadro de Brueghel que terá
sido pintado por volta de 1568 (cf. figura 20), e que se encontra
atualmente no Museu do Prado. Nele, segundo alguns críticos,
Brueghel terá conciliado um certo imaginário medieval e o espírito
renascentista, recorrendo para tal a duas tradições de
representação, a conceção italiana do «Triunfo da morte» e o tema
nórdico da «Dança macabra» (Delevoy, 1990: 102). Observemos,
então, o poema:

(I)

The day she visited the dissecting room


They had four men laid out, burnt as burnt turkey,
Already half unstrung. A vinegary fume
Of the death vats clung to them;
The white-smocked boys started working.
The head of his cadaver had caved in,
And she could scarcely make out anything
In that rubble of skull plates and old leather.
A sallow piece of string held it together.

In their jars the snail-nosed babies moon and glow.


He hands her the cut-out heart like a cracked heirloom.

(2)

In Brueghel’s panorama of smoke and slaughter


Two people only are blind to the carrion army:
He, afloat in the sea of her blue satin
Skirts, sings in the direction
Of her bare shoulder, while she bends,
Fingering a leaflet of music, over him,
Both of them deaf to the fiddle in the hands
Of the death’s-head shadowing their song.
These Flemish lovers flourish; not for long.

Yet desolation, stalled in paint, spares the little country


Foolish, delicate, in the lower right hand corner.

[Plath, 1981: 114]

Num processo de aparente refração, as duas partes (quadros)


identificam-se (espelham-se, aproximam-se), porém, através de
temas unificadores, sedução e morte. Tanto na primeira parte
como na segunda, há uma certa ironia prosódica emprestada pela
manipulação do pentâmetro jâmbico, com as suas ressonâncias de
um género («Spenserian stanza») tantas vezes visitado pelas
tradições neoplatónicas, onde o Belo se desvenda no encontro (no
rosto) com uma figura feminina idealizada. Na primeira parte, o par
amoroso é despojado de uma identidade (em contraste com a
descrição dos cadáveres e dos fetos) e reduzido à dimensão de
quase signos vazios. O seu estatuto eufórico é esmagado por essa
descrição; veja-se a intensidade visual e a forma como o odor
contribui para uma atmosfera claustrofóbica («A vinegary fume / Of
the death vats clung to them»; itálico meu). A ironia, antes
prosódica, acentua-se no derradeiro verso da primeira parte: o
coração que o amante entrega à amada é o do cadáver dissecado,
qual prenúncio ominoso do desenlace desta relação. Ao
transitarmos para o segundo quadro (parte), persiste a ironia
(prosódica e temática).
Numa representação marcada pelo excesso de micronarrativas
convergentes num sentido único, a convocação da morte, há um
pequeno fragmento contrastante com a quase claustrofobia que
aquele excesso impõe, o fragmento onde dois amantes se
entregam um ao outro ignorando a destruição que os rodeia e, em
breve, aniquilará. Todo o percurso delineado do poema tem como
derradeiro objetivo culminar neste detalhe. Plath expõe um
contraste espacial através de signos que designam a antítese de
planos: macro vs micro, plano de conjunto vs plano de pormenor,
«panorama» vs «lower right hand corner». Mas Plath ensaia aqui a
superação de uma outra antítese, a formulada por Lessing («arte
do espaço» vs «arte do tempo»): o tempo é simulado através da
ação inerente a «flourish», enquanto, simultaneamente, «not for
long» explicita a catástrofe; daí a suspensão e a estase que
caracterizam este fragmento. Este detalhe é, afinal, aquilo que
produz acontecimento; daí o caminho por ela delineado até ao seu
encontro.
A generalidade dos poemas convocados até ao momento
emergem como instantes, mais ou menos significativos, de
determinados percursos autorais. Um exemplo, porém, contrasta
com todos os anteriores, o de La vita dei dettagli — Scomporre
quadri, immaginare mondi, de Antonella Anedda. Como o título
denuncia, esta obra vinda a lume em 2009 é dedicada a este
tópico. Devido a essa sua singularidade escolhi-a para encerrar
esta secção.
Dividida em cinco partes — «a ritagliare», «Un museo interiore»,
«Ritratti», «Camminare» e «Collezionare perdite» —, La vita dei
dettagli — Scomporre quadri, immaginare mondi apresenta a
estrutura habitual das obras que radicam no diálogo entre a
palavra e a imagem, uma página com a reprodução do signo
visual, oposta à qual surge a página com o texto. Por seu turno, as
designações das diferentes partes enviam para outros instantes da
reflexão que tenho vindo a realizar. No entanto, a eventual
dissociação dos seus diferentes instantes confronta-se com duas
objeções: por um lado, a perceção da coerência interna seria
perturbada se o livro não fosse observado enquanto corpo; por
outro, a dimensão confessional do projeto, que ele é, não seria
identificável.
Com efeito, logo na primeira parte — «a ritagliare» — Antonella
Anedda inscreve este livro no âmbito dos espaços denegados da
memória. A segunda parte — «Un museo interiore» — confirma-o:
ainda o Museu Imaginário? Ou um impulso confessional? Ou uma
intercessão de ambos? «Questo libro è una storia di fantasmi»
(Anedda, 2009: xii), esclarece a poeta. Revenant, eis o estatuto do
objeto que nesta obra é revisitado pelo texto. Não será, aliás,
displicente o título que a poeta atribui à primeira parte, pois existe
nele uma violência que sinaliza quão subjetivo e idiossincrático
mesmo — parcial — será o olhar — o texto — por ela concebido.
Gradualmente, a subjetividade diluir-se-á para, nas três últimas
partes, prevalecer um discurso mais analítico (crítico?).
Na verdade, a própria identidade do texto deverá ser
questionada, já que este emerge num espaço de radical in-
betweenness, recusando uma identificação e catalogação
imediatas. Que espaço é este? O da coabitação entre prosa
poética, registo confessional autobiográfico, e leitura analítica.
Através desta estratégia associada a uma disponibilidade e a uma
abertura, condicionadas apenas pela relação que o objeto impõe
ao sujeito, este interpela-o e tenta desvendá-lo: «Sono solo
imagini. […] C’è silenzio. […] L’intero quadro diventa resto. Il
dettaglio è l’isola del quadro» (idem: 2; itálico meu).
Tal como Arasse, Anedda considera que o detalhe «produz um
acontecimento»; emergindo da margem, a alteridade ocupa o
espaço do Mesmo, o qual se transforma em resto. José Tolentino
Mendonça elabora uma reflexão teológica particularmente
fascinante em torno deste conceito em «What Are We Talking
About When We Are Talking About the Remnant?» (Mendonça,
2015: 7-26). O resto é entendido pelo teólogo como algo que uma
pesquisa arqueológica desvenda nas margens da sociedade —
«‘remnant’ denoted generically whatever was left over from
something» (idem: 20) —, de um ethos. Ironicamente, aquilo que
Anedda propõe é uma inversão (política) de estatuto: as margens,
a alteridade, o insignificante destronam o centro, tornando-o
dispensável.
A leitura decorre, assim, de uma memória da qual participa
também a intertextualidade: «Non solo stelle ma triangoli bruni,
losanghe nere su stoffa ocra, nodi e rotelle: il mantello tartaro di
Gerione nel XVII canto dell’Inferno» (idem: 9). O sujeito inscreve-se
na História, o que torna o seu conhecimento e a sua compreensão
fundamentais para que um efetivo encontro se realize. Mas esta
História não é apenas algo de remoto, arcaico, distante no tempo;
aquilo que Anedda exige ao longo das páginas de La vita dei
dettagli — Scomporre quadri, immaginare mondi é uma erudição
atenta aos sinais da contemporaneidade, aos seus marcos. Já o
próprio Eliot, em The Waste Land, convocara ícones culturais do
seu tempo como correlativos que permitiam identificar linhas de
continuidade histórica. Assim se justifica a forma como a poeta
italiana aborda um fragmento visual de Grassland Drifters, de
Justine Kurland: «El titolo potrebbe essere Cime tempestose come
il romanzo e come la poesia di Silvia Plath. Non è il dettaglio di un
quadro, ma di una foto. L’autrice popola le sue immagini di
ragazze, ama la pittura inglese e forse è stata alla Walker Gallery»
(idem: 11).
Os encontros subsequentes são caracterizados por uma, ainda
que não explícita, intenção pedagógica, a qual pode passar pela
simulação de uma intimidade face ao leitor, identificável no registo
coloquial — «Questo è il dettaglio di un video che potrebbe essere
raccontato nuotando. […] Immagina i morti come creature ormai
marine che cerchino di oltrepassare la parete dell’acqua e poi
ritornino di nuovo […]» (idem: 19; itálico meu). Semelhante impulso
pedagógico, didático até, é reiterado em diferentes instantes
destas revisitações textuais, na forma como se propõe uma
interpretação, a descoberta de um mistério estético. Aponto alguns
exemplos: o comentário a um quadro sobre a Paixão de Jacopo da
Pontormo, com a chamada de atenção para a importância da luz
na configuração do corpo — «Non si può parlare di pelle ma di
luce» (idem: 27); a forma como o efeito de suspensão decorre da
organização espacial no célebre Batismo de Cristo, de Piero della
Francesca — «La colomba dello spirito soffia dove vuole. Tutto è
nudo. La geometria scortica lo spazio. La prospettiva lo tiene
immobile» (idem: 31); a exposição de analogias estéticas e da
estrutura do signo a propósito de Gli addii, de Umberto Boccioni —
«Potrebbe essere un’immagine di Bill Viola, ma il suo autore è
italiano e la data è il 1911. In realtà i quadri sono tre» (idem: 39); a
identificação da dimensão crepuscular — a memória de uma
identidade estética, a de Hopper — na forma como ele é
estruturado, e a convocação da memória analítica — o ponto de
vista do poeta e ensaísta norte-americano Mark Strand, sobre Sun
in an Empty Room, de Edward Hopper — «Questo non è un
dettaglio di un quadro, ma il quadro di un dettaglio. È l’ultima opera
del pittore prima di morire nel 1963. Lo spazio è usuale, lo spazio è
eterno. Il sole sul muro non svanirà, la finestra si affaccerà per
sempre sullo scorcio di verde illuminato di foglie. Non ci sono
figure. Tutto è reticenza e come scrive Mark Strand ‘triste rifugio del
desiderio’» (idem: 43); Anedda repete esta convocação da
memória analítica, desta feita através do discurso poético em
Setting for a Fairy Tale, de Joseph Cornell (1942) — «La foto
appiattisce il dettaglio di uno di questi oggetti. Vive nell’enigma.
Non ha titolo. ‘È inconoscibile — scrive Charles Simic di questo
artista — come le poesie di Emily Dickinson’» (idem: 49); e fá-lo de
novo sobre um quadro de Turner mas, desta feita, através do
discurso poético — «Guarda questo naufragio con le parole che nel
1875 avrebbe scritto Hopkins: ‘… Spazza dentro le nevi oltre il
porto / il mare scaglie-di silice, dorso-nero…’» (idem: 65); a
importância do zoom através do qual se desvenda a estase que
persiste algo subliminarmente na representação, a propósito de um
detalhe de Portrait of a Man of the Delves Family, de um autor
anónimo do século XVI — «Avvicinandoci-avvicinandomi
vedovediamo che la sua mano sinistra è intrecciata a una mano di
donna, che il viso della donna è coperto da un mirto fitto come uno
sciame, che lei è solo mano, corpo, vestito» (idem: 47); a
interferência que a reprodução, através da fotografia, neste caso,
tem a nível da alteração da sua essência a propósito de Rooms by
the Sea (1951), de Edward Hopper — «La foto che ho scattato non
restituisce la luce marina, l’alla di calce, la stanza senza vento.
‘Non ci ne andremo là dove è silenzio e pace’. Prendi questo verso
di Sergej Esenin come didascalia del quadro. Esenin — il marito di
Isadora Duncan — è contemporaneo del pittore. Nel quadro è
mattino, nella foto l’acqua si fa buia, la pietra s’incupisce. La
minaccia vibra, si addensa nei mobili che si vedono a metà: un
resto di quadro, un pezzo didivano» (idem: 51); o reconhecimento
do contributo de um artista, por outro, após a sua morte, a partir da
figuração da lua em Fuga do Egito (1609), de Adam Elsheimer —
«Quanto morì, a Roma nel 1610, Rubens scrisse di lui: ‘Tutta la
nostra professione deve vestirsi a lutto… ci avrebbe dato cose
come non se se sono mai viste e non si vedranno mai, non aveva
rivali nei bozzetti e nei paesaggi.’ Visitato da spettri, sempre sul
ciglio dell’incubo. Devoto alle luci di notti, albe, fuochi, tramonti.
Immerso nel silenzio: ‘non parlava mai per primo’, disse di lui un
altro pittore, lo spagnolo Jusepe Martínez. Ha influenzato
Rembrandt e Lorrain. In questo dettaglio la luna sorge (o tramonta)
e si sdoppia. Il cielo è uguale a uno stagno, le nuvole scorrono
sull’acqua come anatre. […] Questo dettaglio è una tregua, l’intero
quadro una fuga» (idem: 55); uma hipótese de interpretação
daquilo que subjaz à expressão de um olhar, a propósito de
Retrato de Mulher Sofrendo de Inveja Obsessiva (1822-1823), de
Théodore Géricault: «Di chi sono questi occhi? Di une vecchia
demente. Dove appare? Nella luce calva di ombre di un Museo di
Lione. Il pittore le sparge la fronte di macchie grigie come ciottoli.
Cosa l’ha resa pazza? La didascalia dice: l’invidia» (idem: 61); algo
que Anedda retoma a propósito de Cabeças cortadas (1818) do
mesmo pintor — «(È lo stesso autore* [Géricault]) Di chi sono
questo occhi, di chi queste teste mozzate? Un terrore dattagliato»
(idem: 63). Este texto exibe, contudo, uma singularidade, a
existência de um asterisco como chamada para uma nota de
rodapé onde Anedda esclarece: «Amava tanto i dettagli che
dipinse un quadro fatto di soli particolari, un grumo di pugni, un
miente» (idem).
E com um detalhe formal, uma significativa nota de rodapé,
encerro esta secção.

3.5. A paisagem — natureza, ruína(s) e… cidade também

Qual a fronteira que separa a écfrase da hipotipose? Eis uma


questão pertinente acima abordada e que pode igualmente ser
suscitada quando ocorre, por exemplo, uma descrição tão intensa
de uma paisagem natural que esta parece emergir perante o nosso
olhar. Sendo assim a enargeia um traço comum a ambas estas
estratégias retóricas, o que, afinal, as separa? Sugiro que
iniciemos este capítulo com um poema que nos permite esclarecer
semelhante equívoco; da autoria de Narcís Comadira, o poema
intitula-se «Paisaje con ruinas». Observemos alguns versos,
nomeadamente os iniciais: «Se ve, al fondo, un caserón con torre, /
encaramado sobre el río, / bajo une nube perezosa. / Seguramente
vigila el gran meandro / que no se ve, que lo envuelve, y también, /
desde lejos, la corriente que fluye / hacia unos bloques de piedra y
unos fustes partidos / de columnas antiguas» (Comadira, 2015:
313). Com efeito, esta primeira estrofe pode corresponder à
descrição de uma qualquer paisagem natural. No entanto, o início
da segunda estrofe explicita o contexto em que decorre a
enunciação: «Hacen de marco a la imagen, / a la derecha, la del
espectador…» (idem: 313).
Tanto «imagen» como «espectador», ao indiciarem uma
representação, introduzem entropia no processo descritivo. No
entanto, excetuando estas fugas, o poema prossegue na
tonalidade descritiva inicial. Será apenas quando chegamos à
quinta e penúltima estrofe que o contexto se esclarece: «En esta
pintura, paródica de otra, / obra del viejo Poussin, hay menos
ruinas. / Poussin pinto muchas más, emboscadas / entre los
árboles y al fondo. En el celaje, sus nubes / son más
tempestuosas. No hay caserón alguno. / Pero la placidez del
instante detenido / es la misma» (idem: 315). Algo
inesperadamente, a imagem descrita emerge, não enquanto
reprodução do real, mas enquanto sua representação;
representação esta que, ainda mais inesperadamente, não é
despoletada pela mimese, mas sim por um agon intertextual —
«esta pintura, paródica de otra» —, em que se enuncia uma figura
nuclear no âmbito da pintura paisagística; uma figura a emular,
portanto.
A aparente inocência inicial da evocação de um espaço explicita-
se enquanto simulacro, dando lugar a uma reflexão em que o
conhecimento da História da Arte predomina. É já nesta tonalidade
metatextual, com a ênfase na importância que um olhar estético
pode ter para a compreensão do real, da própria vida, que a última
estrofe se impõe: «Nacer y morir, / eslabones de la Historia. / Pero
la Forma, espinaxo del Arte, / salva los instantes fugaces, hace
que duren, / y su carga de vida, / fijada para sempre, hecha
imortal, / atraviesa los siglos, / acompanha a los hombres y a las
mujeres» (idem: 315).
No entanto, a hipotipose pode, também ela, ser devedora da
estética pictórica, como veremos em Cesário Verde. Antes de para
ele transitar, observemos um exemplo desse eco estético num
poema em cujo título a semântica pictórica é enunciada,
«Chiaroscuro», de Giuseppe Ungaretti: «Anche le tombe sono
scomparse // Spazio nero infinito calato / da questo balcone / al
cimitero // Mi è venuto a rinovare / il mio compagno arabo / che s’è
ucciso l’altra sera // Rifà giorno // Tornando le tombe / appiattate nel
verde tetro / dele ultime oscurità / nel verde torbido / del primo
chiaro» (Ungaretti, 1969: 15). Afinal, em que medida o nosso olhar
sobre o espaço, a cidade, por exemplo, decorre de impactos
estéticos precedentes? Em que medida um olhar culto, educado
pelo encontro com figurações relevantes, sejam estas pictóricas
ou, mais recentemente, aquelas que a arte da imagem em
movimento nos legou, transfigura a realidade com que nos
confrontamos quotidianamente? Antecipando a interpelação do
legado pictórico através da poesia de Cesário — o eventual
impacto e assimilação do impressionismo nos seus versos, e a
antecipação de estratégias de representação modernistas, sugiro-
lhe um recuo no tempo para irmos ao encontro de um dos vultos
maiores do Romantismo onde o encontro entre a palavra e a
imagem mediado pela Natureza se afigura particularmente
relevante; refiro-me ao poeta William Wordsworth.
Expoente da chamada primeira geração romântica inglesa, a ele
se deve «Elegiac Stanzas, Suggested by a Picture of Peele Castle,
in a Storm, Painted by Sir George Beaumont». Escrito entre o final
da primavera e o princípio de verão de 1806, este poema surge
logo após aquele que é considerado o momento mais significativo
da sua carreira: entre 1789, data da primeira edição de Lyrical
Ballads, e 1806, quando termina a primeira versão de The Prelude.
Conhecido pela sua faceta de pintor paisagista, Sir George
Beaumont foi patrono do poeta, tendo com ele mantido uma
relação de amizade ao longo de toda a vida. O quadro de
Beaumont, cuja reprodução Wordsworth utilizou como frontispício
para o segundo volume dos seus poemas editados em 1815, tem
como referente o castelo de Peele, situado numa ilha, junto a
Rampside, no Lancashire. Wordsworth passou aí um mês de
férias, em 1794, pouco depois de ter visitado a França
revolucionária e de ter escrito os poemas de Descriptive Sketches
(veja-se como este título denuncia a dimensão visual, avizinhando-
se da écfrase, que virá a marcar muita da sua poesia).
A primeira questão que se apresenta é a de saber se
Wordsworth elabora uma écfrase do quadro de Beaumont. Ao
lermos os primeiros versos, constatamos que o poeta opta por
recuperar a imagem que retém na memória desse verão; é ela, e
não o signo, a representação visual (criada por Beaumont) que
inicia o poema: «I was thy neighbour once, thou rugged Pile! / Four
summer weeks I dwelt on sight of thee: / I saw thee every day»
(Hayden, 1994: 209). Num poema escrito alguns anos antes, com
o título algo extenso de «Lines Composed a Few Miles above
Tintern Abbey, on Revisiting the Banks of the Wye during a Tour,
July 13, 1798», e talvez por isso mesmo conhecido apenas por
«Tintern Abbey», Wordsworth acentuara a importância da
recuperação écfrásica operada pela memória: «The picture of the
mind revives again: / While here I stand […]» (idem, 67).
Independentemente de leituras fascinantes que associam este
processo a uma valorização neoplatónica do signo, como a de
Murray Krieger, interessa constatar aqui que, à semelhança de
«Tintern Abbey», «Peele Castle» não é desencadeado pela
descrição do referente. Não é, aliás, a descrição do quadro que
funciona como finalidade do poema em si.
Mais do que uma descrição, Wordsworth sustenta a perceção
poética em representações subjetivas, construídas pela sua
memória (análoga à dimensão mnemónica da écfrase). O exercício
da memória questiona os limites de um discurso específico, o
discurso poético, nomeadamente naquilo que se prende com a sua
eventual capacidade de reproduzir uma experiência suscitada por
um referente; neste caso, o próprio castelo. A enunciação é
dominada pela prosopopeia («Thy form was sleeping on a glassy
sea», idem: 209), como não é raro na écfrase. Já o contexto
natural em que esse referente se insere parece reproduzir a
serenidade eufórica da «aurea mediocritas»: «So pure the sky, so
quiet was the air! / So like, so very like, was day to day! / Whene’er
I looked, thy Image still was there; / It trembled, but it never passed
away. // How perfect was the calm! It seemed no sleep; / No mood,
which season takes away, or brings» (idem). Nestes versos é um
registo confessional que prevalece, como, em seguida, se
evidencia: «I could have fancied that the mighty Deep / Was even
the gentlest of all the gentle Things» (idem).
Com efeito, é aqui evocada uma imagem («thy Image»), isto é,
uma representação (subjetiva do referente), construída por uma
entidade, o poeta; uma representação, como tal, sujeita às suas
idiossincrasias, ao pathos que define instantes da sua vida; é esta
representação, e não a reprodução do próprio referente, que aqui
está em causa. O poeta coloca, assim, a ênfase numa perceção
subjetiva, numa leitura (confessional, se evocarmos o pathos que a
envolve, como adiante veremos). Em seguida, transita para uma
outra representação possível do referente através de um meio que
não é o seu, a pintura: «Ah! THEN, if mine had been the Painter’s
hand, / To express what then I saw; and add the gleam, / The light
that never was, on sea or land, / The consecration, and the Poet’s
dream» (idem). Como referi, esta não é a reprodução visual do
referente, mas sim a representação de uma experiência subjetiva,
a do poeta, sustentada pela linguagem.
Ao reposicionar-se no hipotético estatuto do pintor, recorrendo
aos seus instrumentos específicos de perceção e representação
do real (a função da cor, por exemplo), Wordsworth uma vez mais
dá ênfase à subjetividade, simultaneamente denunciando, na
esteira de Lessing, a especificidade dos meios. Prossegue, da
seguinte forma, a designação dessa subjetividade: «I would have
planted thee, thou hoary Pile / Amid a world how different from this!
/ Beside a sea that could not cease to smile; / On tranquil land,
beneath a sky of bliss. // Thou shouldst have seemed a treasure-
house divine / Of peaceful years […]» (idem). A serenidade com
que o animismo reproduz a Natureza — a falácia patética,
corresponde à visão do passado, à visão algo inocente do sujeito
(poeta). No presente, o olhar, e, consequentemente, a
representação, seriam, de facto, outros: «So once it would have
been, — ’tis so no more; / […] / A power is gone, which nothing can
restore; / A deep distress hath humanised my Soul» (idem, 209-
210).
Nestas estrofes tem lugar uma alteração qualitativa por parte do
sujeito, a qual é motivada por uma ausência («A power is gone,
which nothing can restore»), e por uma intensa dor («A deep
distress» e «A feeling of loss»). Apesar desta dor (à qual o sujeito
considera dever-se a sua «humanização») do pathos, o discurso
caracteriza-se pela serenidade. Regista-se ainda a ironia: agora
estamos perante «a mind serene», enquanto antes a
representação da Natureza surgia marcada pela serenidade; no
entanto, esta representação não corresponderia à realidade, ou,
pelo menos, à sua perceção lúcida. Conclui-se que o poema
enuncia a progressão para um estádio de lucidez.
Para melhor entender o movimento que leva a uma alteração da
tonalidade do discurso, recordo as primeiras palavras do título
deste poema, «Elegiac Stanzas». Repare-se que estas palavras
não designam apenas um subgénero poético, a elegia; elas
definem uma tonalidade, uma atmosfera, que envolverá o poema.
A que se deve esta tonalidade? À morte de John, o irmão do
poeta, num naufrágio que teve lugar a 6 de fevereiro de 1805.
Numa carta a James Losh, escrita a 16 de março desse ano,
Wordsworth lembra esta morte: «I feel that there is something cut
out of my life which cannot be restored» (idem: 555). Esta é a frase
que o poeta transfigura no verso acima citado onde denuncia a
perda («A power is gone, which nothing can restore»). Quando, na
estrofe seguinte, numa segunda apóstrofe (a primeira teve como
destinatário o Castelo) evoca o pintor («Then, Beaumont, Friend!
Who would have been the Friend, / If he had lived, of Him whom I
deplore», idem: 210), o contexto não é já o do diálogo entre as
artes (ou os seus limites), nem o da representação específica
realizada pela pintura, mas sim o da morte de um amigo: tanto o
poeta como Beaumont haviam perdido um amigo, John. Será no
verso seguinte que o poema assume explicitamente a sua vertente
ecfrástica, contrastando a perceção inicial do poeta com a do
pintor («This work of thine I blame not, but commend; / This sea in
anger, and that dismal shore», idem), e celebrando a lucidez por
este revelada («O ’tis a passionate Work!» — yet wise and well, /
Well chosen is the spirit that is here», idem).
Para Wordsworth, a questão central não será, portanto, a da
diferença de meios de representação (uma arte de espaço e uma
arte do tempo, de que falava Lessing), mas sim a de uma lucidez
passível de representar a perceção: o olhar do pintor é inicialmente
mais lúcido do que o do poeta; este só se torna lúcido após
conhecer a dor motivada pela morte do irmão. A representação da
Natureza realizada por Beaumont corresponde à sua essência, e
não à perspetiva idealizada pelo poeta. Após concluir a descrição,
o poema termina com a assunção de um olhar desencantado: «Not
without hope we suffer and we mourn» (idem).
Estamos perante um caso óbvio de hibridez textual: um registo
essencialmente confessional, oscilando entre uma tonalidade
decorrente da elegia e a descrição onde a écfrase se insinua.
Wordsworth vê o quadro como um meio para, e não um fim em si;
ele funciona como leitmotiv para uma reflexão sobre o seu olhar
sobre a Natureza e sobre a vida. Se atentarmos na terceira palavra
do título do poema, «Suggested», constatamos que, desde o início,
aquele signo constitui um estímulo, um impulso para a sua
reflexão. No âmbito desta reflexão surge, algo dissimuladamente, o
conflito entre as duas formas de expressão artística, poesia e
pintura. Com efeito, o (pre)domínio do discurso, do logos, é
questionado na quarta estrofe («[…] if mine had been the Painter’s
hand»), num confronto entre o «quadro verbal», preservado na
memória, e o «quadro real», o de Beaumont. Este constitui uma
presença subliminar ao longo do texto, impondo, por fim, a
presença dos signos que, embora confinados à representação de
um instante, denunciam aquela que seria a verdadeira essência da
Natureza, e, consequentemente, a condição humana designada no
verso final.
Algumas décadas depois, em 1846, Wordsworth escreverá um
soneto intitulado «Illustrated Books and Newspapers», onde irá
expor uma diferente conceção ao hierarquizar as diferentes formas
de expressão artística. Nesta conceção, o discurso, o logos,
destaca-se das restantes artes, «Discourse was deemed Man’s
noblest attribute / And written words the glory of his hand […]». Já
uns anos antes, em 1820, escrevera um soneto sobre um quadro
de Leonardo da Vinci, no qual refere a deterioração de que ele foi
alvo devido à ação do tempo. Esta postura indicia a valorização da
écfrase, do discurso poético, do logos: a palavra escrita pode,
afinal, preservar aquilo que a pintura, a estatuária, ou a arquitetura,
apesar da sua materialidade, não conseguem fazer.
Tendo esclarecido os ecos do discurso pictórico na
representação da natureza, da paisagem, observemos a
singularidade desses ecos na poesia de Cesário Verde.
Comecemos pela presença do impressionismo na sua poesia
esclarecida, a qual é identificada por José Régio quando defende
que ele: «cria essa poesia que parece flutuar sobre estes dois
mundos [‘mundo interior’ e ‘mundo exterior’] sem chegar a
relacioná-los, e deles transmitindo principalmente os pormenores,
os momentos fugidios, as nuances destacadas. É uma poesia
essencialmente impressionista» (Rodrigues, 1998: 11; itálico meu).
Esta perspetiva parece ser corroborada na afirmação de Fernando
Cabral Martins acerca das «[p]ersonagens que aparecem e se
esfumam» (Martins, 1988: 86; itálico meu). No entanto, a analogia
entre a poesia de Cesário e o impressionismo é contrariada por
Jorge de Sena, o qual «defende que os poemas de Cesário não se
organizam segundo ‘uma típica dispersão impressionista’, mas
que, pelo contrário, a ‘tradicional sujeição a um tema, uma ideia,
um centro afetivo’ existe em Cesário e ‘é mesmo a motivação
estrutural de alguns dos seus mais belos poemas’» (idem: 13).
Como traço comum às leituras divergentes de Régio e Sena surge
a dimensão visual devedora do discurso pictórico. Este aspeto é
escalpelizado por Cabral Martins que, a propósito do poema
«Esplêndida», escreve ser este «[…] como um quadro animado, de
uma nitidez que é efeito novo da figuração, no seu interior, do
próprio olhar que o vê» (idem: 55; itálico meu). A proximidade da
écfrase é, de novo, convocada na sua leitura de «De tarde»:

A sucessão dos movimentos integra numa mesma pintura o


cenário, a personagem feminina que com ele entre em fusão, e o
«eu» poético cujo ver produz a imagem […]. A nota de cor viva
(«ramalhete rubro») com que termina já transcende o «pic-nic de
burguesas», mistura a personagem de mulher e a terra que as
flores metonimizam: a mulher é a soma da natureza, «papoulas»,
«rolas», «seios.» Há ainda a considerar a repetição do verso final
da segunda estrofe no verso final do poema: «Um / O Ramalhete
rubro de / das papoulas». A simetria de construção que implica
serve para fazer coincidir, em sobreimpressão, a imagem ao
longe da mulher inclinada sobre o «grande azul» com a imagem
ao perto das «papoulas», tão perto que esse pormenor ocupa
todo o quadro. A repetição é aqui o instrumento da metamorfose
da imagem em símbolo. [Martins, 1988: 112]
Para além dos aspetos mencionados por Cabral Martins, devo
referir que este poema ecoa a estética impressionista que será
particularmente reconhecível quando estabelecemos uma relação
com a pintura de Monet. Considerem-se os seguintes aspetos da
analogia e da sua representação através do discurso: centralidade
cromática das «papoulas» — mancha vermelha; contraste das
cores (estética impressionista) a nível da palavra; ênfase na
sensação visual; harmonia: retrato domina o restante; importância
da perceção, designada através dos verbos «ver» e «olhar»; a cor
em constante mutação, transfiguração, através do contraste entre
tonalidades esbatidas e as fortes e vivas; e o brilho (luz intensifica
e/ou dilui os cromatismos); por fim, o contraste luz/penumbra,
evocador do chiarosccuro.
O intenso visualismo poderá ser igualmente detetado através da
evocação de pintores como Courbet ou Arcimboldo (cf. figura 21),
a qual foi alvo de estudo por parte de Andrée Crabbé Rocha
(Rodrigues, 1998). Revela-se particularmente curiosa a analogia
com Arcimboldo presente em «Num bairro moderno»: «Se eu
transformasse os simples vegetais / À luz do Sol, o intenso
colorista, / Num ser humano que se mova e exista / Cheio de belas
proporções carnais?! // E eu recompunha, por anatomia, / Um novo
corpo orgânico, aos bocados, / Achava os tons e as formas.
Descobria / Uma cabeça numa melancia, / E nuns repolhos seios
injectados. // As azeitonas, que nos dão o azeite, / Negras e
unidas, entre verdes folhos, / São tranças de um cabelo que se
ajeite; / E os nabos — ossos nus, da cor do leite, / E os cachos de
uvas — os rosários de olhos. // Há colos, ombros, bocas, um
semblante / Nas posições de certos frutos. E entre / As hortaliças,
túmido, fragrante, / Como dalguém que tudo aquilo jante, / Surge
um melão, que me lembrou um ventre» (Verde, s.d.: 42-43).
O sujeito de enunciação assume-se como criador que, através
da palavra, transfigura o referente. A sua transfiguração não deixa
de ser mediatizada pela interferência de uma outra entidade, o sol,
na prosopopeia, designado «intenso colorista»; a ele se deve a
transfiguração primeira desencadeada pela luz (natural), pela
criação de ênfases (intensidades) de cor e brilho, pelo contraste
implícito com zonas de sombra. É a partir desta recomposição
(pintura) operada pela luz solar, e por ela condicionado, que o
sujeito de enunciação inicia a sua mais radical transfiguração ao
transformar todos os referentes em fragmentos que integram uma
prosopopeia global de onde emerge o corpo humano, e onde a
estética de Arcimboldo se reconhece.
Nesses fragmentos, e a partir deles, Cesário projeta uma intensa
sensualidade. Fernando Cabral Martins considera que «[…] o
corpo feminino que cresce, ou a Terra, a natureza metonimizada
nos seus frutos, é dada na última estrofe […] na mistura semântica
(que em termos de poética poderíamos chamar, talvez, naturalismo
e simbolismo simultâneos) de uma pintura realista e de uma
metáfora realizada (‘como as grossas pernas dum gigante’)»
(Martins, 1988: 75). Ainda segundo este ensaísta, «Num bairro
moderno» antecipa «O sentimento de um ocidental»: «‘Pinto
quadros por letras, por sinais’ verso mil vezes citado que
sintetizará em Nós a poética de Cesário, surge-nos desde logo
muito mais próximo do simbolismo […] do que do realismo. A
leitura realista que é feita habitualmente desse verso parece
esquecer, em suma, que os modos do ‘pintar’ a natureza do
‘quadro’ e o campo de referência de ‘letras’ e ‘sinais’ são da ordem
da sugestão, e não da mimese. Aquilo que Cesário pinta não são
coisas, mas sensações e sentimentos» (idem: 81).
«O sentimento de um ocidental» revela-se particularmente
significativo no âmbito da leitura que tenho vindo a expor devido ao
facto de permitir observar a terceira vertente acima referida: a
antecipação de estratégias de representação modernistas. Antes
de desvendarmos essa antecipação, e ainda na esteira do impacto
visual que quase simula a écfrase, dever-se-á acentuar a forma
como a cidade surge aos olhos do sujeito. Na sua representação,
eventualmente devedora de Baudelaire, é nuclear a transfiguração
operada por aquilo que poderemos chamar luminosidade (artificial)
moderna: «Nas nossas ruas, ao anoitecer, / Há tal soturnidade, há
tal melancolia, / Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia, /
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. // O céu parece baixo
e de neblina, / O gás extravasado enjoa-me, perturba; / E os
edifícios, com as chaminés, e a turba / Toldam-se duma cor
monótona e londrina» (Verde, s.d.: 63).
Regressemos, então, à antecipação de estratégias de
representação ulteriores. Como adiante veremos, uma das
dimensões mais revolucionárias da estética modernista prende-se
com a subversão radical operada a nível dos conceitos de espaço
e de tempo. Ora, segundo Óscar Lopes, este poema «[…]
ultrapassa com maior fôlego estrutural o seu ‘naturalismo
positivista’, ao articular os ‘dados da percepção sensível […] de um
modo inteiramente novo, precursor do Cubismo ou
Interseccionismo’, e, sobretudo na última parte do poema, ao
‘espacializar o tempo’, apresentando vários ‘momentos
irreversivelmente seriados como se pertencessem ao mesmo
painel simultâneo’ […]» (Lopes, 1987: 467). A centralidade deste
diálogo entre discurso poético e pintura revela a modernidade da
sua poesia, enquanto solo de urbanidade e de confluência entre
pathos e bathos. Quando o Modernismo se avizinha, Cesário
parece anunciar a superação da dicotomia apresentada por
Lessing.
Ainda antes de prosseguir para o diálogo entre a Poesia e a
História, mediado pela Arte, devo mencionar um outro olhar sobre
Lisboa, mas desta feita um olhar que poderemos considerar
exógeno, o do poeta catalão Narcís Comadira. No poema intitulado
«Lisboa», Comadira desvenda uma identidade numa atmosfera
onde se cruzam os sentidos (olfato, vista) e uma perceção estética:
«esta grandeza implícita en las piedras, / fachadas descantilladas,
decorado exquisito / para una obra de estátuas pletóricas, / de piel
adormecida, negros llegados de lejos, / el mestizaje augusto. / Y
este olor de pescado que envuelve el barroco / y el manto de
vainilla / que se desliza sobre el azul de las mayólicas. / Lisboa,
Lisboa, aceras de punto de cruz […]» (Comadira, 2015: 103).
Noutro poema intitulado «Sabbioneta», este poeta reitera um olhar
deambulante pela cidade, ao longo do qual a identifica como
verdadeiro espaço cénico, substituindo-se ao que formalmente o é
— a vida imita a arte? Ou a vida emerge como ilusão.
A cidade constrói-se a partir de uma encenação, e o sujeito
configura-se como entidade endógena, que dela participa
enquanto intérprete: «Por el largo pasillo con pésimas pinturas, / la
sombra de un Gonzaga medio loco, Vespasiano, / todavia persigue
sus sueños. / Cien cadáveres de niños embalsamados / esperan a
que alguien en el Teatro componha la escena: / la calle en trompe-
l’oeil que les haga fácil / algo de vida falsa, es decir, adulta. / […] /
Paseo por el Pueblo medio desierto, / desde el Palacio Ducal a la
Gran Galerría, / desde la Assunta ahasta la Incoronata: / eso es mi
teatro, no el que erigió Scamozzi» (idem: 117).
Após este percurso por olhares poéticos/pictóricos suscitados
pela paisagem urbana, retomo o tópico da paisagem como signo
de relevância cultural. Recorro para tal a Herman Melville e às
suas viagens pelo velho continente.
A Europa, onde a cultura e a memória clássicas se desvendam,
revelava para Melville uma ordem primeira; ela emergia como solo
de harmonia e equilíbrio, do qual Homem e sociedade (polis)
outrora haviam participado. Timoleon, Etc., é o seu derradeiro livro
de poemas, publicado no ano da sua morte, em 1891, numa
edição limitada de… 25 exemplares, onde verbaliza as
experiências estéticas decorrentes das suas deambulações pela
Europa e pela Terra Santa. Timoleon, Etc. — devo enfatizá-lo — é
igualmente um livro pioneiro pelo seu estatuto radical e
estruturante no diálogo entre a palavra e a imagem, em particular,
da écfrase, no solo literário norte-americano.
Eis alguns exemplos dessas lições éticas e estéticas aí expostas:
«Greek Masonry» («Joints were none that mortar sealed»,
Robillard, 2000: 334), «Greek Architecture» («Not innovating
wilfulness, / But reverence for the Archetype», idem), «The
Apparition» («Abrupt the Supernatural Cross, / Vivid in startled air, /
Smote the Emperor Constantine / And turned his soul’s allegiance
there», idem: 338), «The Great Pyramid» («Your masonry — and is
it man’s? / More like some Cosmic artisan’s», idem: 339), «The
Attic Landscape» («Tourist, spare the avid glance / That greedy
roves the sight to see: / Little here of ‘Old Romance,’ / Or
Picturesque of Tivoli. / […] / ‘Tis art and Nature lodged together, /
Sister by sister, cheek to cheek; / Such Art, such Nature, and such
weather / The All-in-All seems here a Greek», idem: 332), e «The
Age of the Antonines» («A halcyon Age, far it shines, / Solstice of
Man and the Antonines», idem: 324).
Quer «Greek Masonry» quer «Greek Architecture», ao
focalizarem um referente artístico, sugerem a existência de uma
Ideia (Arquétipo?) que terá presidido à sua elaboração; por isso, ao
deter-se nos pormenores, o olhar do sujeito tenta desvendar um
discurso de permanência, no qual um sentido original se pode
insinuar. Algo de idêntico ocorre em «The Apparition», onde o
referente, o Pártenon, é de alguma forma transcendentalizado
através do próprio título. Por seu turno, «The Great Pyramid»
permite colocar a questão da origem da obra de arte: gerada por
humanos ou por um «artífice cósmico»? Os seus labirintos
interiores simbolizariam essa (nossa) dificuldade de encontrar uma
resposta para o mistério que o objeto encerra. Essa dificuldade em
desvendar uma eventual dimensão emblemática do referente, tem
origem na viagem de Melville ao Egito e na impressão que as
pirâmides nele produziram. Nessa obra fundamental para
desvendar o impacto que aqueles espaços tiveram em Melville que
é Journal up the Straits, o autor enuncia uma atmosfera que
posteriormente ecoará no poema:

Pyramids still loom before me — something vast, indefinite,


incomprehensible, and awful. Line of desert & verdure, plain as
line between good & evil. An instant collision of alien elements. A
long billow of desert forever hovers as in act of breaking upon the
verdure of Egypt. Grass near the pyramids, but will not touch
them, — as if in fear or awe of them. Desert more fearful to look
at than ocean. Theory of design of pyramids. Defense against
desert. A line of them. Absurd. Might have been created with
creation. [Leyda, 1969: 550]

Este fragmento representa como, em janeiro de 1857, o signo


pirâmide é para Melville um emblema do enigma. Se o «referente
de um discurso não é […] a realidade mas sim a sua realidade, isto
é, o que o discurso escolhe ou institui como realidade» (Ducrot,
1984: 419), «The Great Pyramid», ao prolongar as inquietações do
Journal up the Straits, insere esse referente no percurso
confessional — onde ontológico e epistemológico se encontram —
que esta poesia é.
Colocando o homem numa situação de defeito face ao mistério
insinuado no discurso da Arte, a poesia explora a representação
desse defeito sob vários prismas. «The Great Pyramid», por
exemplo, designa a loucura como resultado da impossibilidade de
atingir o conhecimento. Mais ou menos remoto, o passado
funciona como resíduo do saber, onde se insinuam exemplos a
emular, como sucede em «The Age of the Antonines». Mais do que
um ideal com eventuais ressonâncias aristocráticas (Donahue,
1969: 69), este texto observa o apogeu da pax romana como
espaço de encontro entre uma ordem temporal e uma ordem
natural (algo que o poema «Timoleon» evoca). Aqui se recusa a
legitimação do poder através da arbitrariedade do nascimento
(metonimicamente, recusa-se a aristocracia tradicional e a ordem
imposta por Timophanes no já referido «Timoleon»), sustentando-
se a legitimidade de uma aristocracia natural (à semelhança da
personagem Timoleon, num eco deste conceito formulado por
Thomas Jefferson); recusa-se a demagogia e o exercício do poder
pelo medo através do discurso religioso; defende-se uma
religiosidade fundada na razão, assim como o contacto civilizado e
baseado no respeito mútuo entre as nações: «Hymns to the
nation’s friendly gods / Went up from the fellowly shrines, / No
demagogue beat the pulpit-drum / In the Age of the Antonines! /
[…] / they reasoned of fate at the flowing feast […]» (Robillard,
2000: 324).
A unidade (cósmica) Homem — Polis — Natureza — Arte, que
Melville identifica com a época dos Antoninos, enuncia, segundo
ele, um contraponto com a realidade americana do presente: «Ah,
might we read in America’s signs / The Age restored of the
Antonines» (idem: 325). Embora raramente enunciado nos
poemas, o espaço histórico americano constitui uma presença
subliminar, fantasmática, latente ao longo da viagem vivida ao
encontro dos referentes clássicos. À América falta uma unidade,
«The All-in-All» que ali se indicia. Reveja-se o Journal up the
Straits, numa entrada de dezembro de 1856; a descrição eufórica
do espaço: «Entering Syra harbor, I was again struck by the
appearance of the town on the hill. The houses seem clinging
round its top, as if desperate for security […]»; à que se segue a
não menos eufórica identificação dos habitantes: «The Greek, of
any class, seems a natural dandy. His dress, though a laborer, is
that of a gentleman of leisure. This flowing, & graceful costume,
with so much of pure ornament about it & so little fitted for labor,
must needs have been devised in some Golden Age» (Vincent,
1947: 478-479). Convido-o a observar, em seguida, o modo como
a experiência (impressão) descrita neste passo ecoa nos versos de
«Off Cape Colonna»: «Aloof they crown the foreland lone, / From
aloft they loftier rise — / Fair columns, in the aureola rolled / From
sunned Greek seas and skies. / […] / They wax, sublimed to
fancy’s view, / A god-like group against the blue» (Robillard, 2000:
334).
Através do contacto com a(s) História(s) da Antiguidade
Clássica, com seus monumentos, heróis e lugares, com outros
instantes dos discursos cultural, artístico (para além dos
monumentos referidos, o quadro de Tenier) e histórico, Timoleon
regista um intenso peregrinar ontológico. Através dele, o poeta
medita sobre os limites do Homem e a efemeridade da vida,
tentando descortinar um sentido para a existência. No entanto, o
envolvimento do autor com o texto simula a sua interrupção numa
zona limite devido ao jogo com referentes e máscaras (personae) a
quem a enunciação é atribuída, ou a partir das quais ela se realiza;
é neste espaço subtil e polifónico que o confessionalismo nele se
configura. Lembro os exemplos revelados através de Keats e de
Shelley. A eventual identificação imediata entre autor e sujeito de
enunciação é assim evitada através de uma estratégia de ínvia
dissimulação.
Deduz-se que Melville não se limita a desvendar na Europa os
signos culturais que não encontra no seu país, no mítico Novo
Mundo; também na Europa ele encontra as estratégias de
enunciação que, no final da vida, assume como suas para insinuar
aquelas que foram as suas idiossincrasias. O Velho Mundo, o seu
solo, as suas ruínas, os seus vestígios do passado, as suas
narrativas, os seus ícones artísticos e culturais designam uma
memória, transformando-se no destino da própria écfrase. Tal não
significa, porém, que o poema se institua como solo de
problematização taxonómica. Ora, é exatamente essa dimensão
que surge em «Armenia», de Osip Mandelstam, num registo
poético que expõe o próprio processo reflexivo. Veja-se como o
poeta russo problematiza o conceito de ruína, para logo o superar:
«No, not ruins but what remains of a round and mighty forest, /
anchor-stumps of felled oaks from a Christianity of beats and
fables, / capitals bearing rolls of stone cloth, like loot from a
heathen marketplace, / grapes each the size of a pigeon’s egg,
scrolls of eddying ram’s horns, / and ruffled eagles with the wings of
owls, still undefiled by Byzantium» (Chandler, 2015: 291). É assim
enquanto resto, topos que Tolentino Mendonça evidencia ser
carregado de uma alteridade eventualmente denegada, que o
signo deve ser reconhecido.
Teatro, simulacro, reminiscência, tudo emerge a partir do ponto
de vista, do olhar concreto de um sujeito, de um percurso que cada
experiência individual é. Antonella Anedda transporta essa
experiência mutante para o centro do seu texto sobre Arles, na
quarta parte da sua obra acima convocada La vita dei dettagli —
Scomporre quadri, immaginare mondi, justamente intitulada
«Camminare». A fluidez do olhar é consagrada na tonalidade
subjectiva predominante no parágrafo inicial:

Una città è un grumo di paura, un gregge sotto i fulmini. Sotto il


tempo si contrae o dilaga. Un uragano la disfa, un terremoto la
inghiotte. Una città senza mare resta una rocca anche quando
non è assediata, i suoi spettri continuano a salire, la sua pece a
colare. Dalle città sull’acqua la fuga è orizzontale. La loro luce è
una nave che sfiora la facciate. Scivola fatta solo di spazio. Una
città arroccata è un crampo di fame. Una città sul’acqua è il ritmo
della nostra sete. [Anedda, 2009: 143]

Com a fluidez emergem as diferentes perceções estéticas; são


estas que conferem à alteridade a sua legitimidade enquanto ponto
de vista. Eis alguns exemplos: «Arles della stanza di Van Gogh»
(idem: 154-155), «Arles di Ansel Adams» (idem: 155-156), «Arles
di Roger Ackling» (idem: 158-159). A par destas perceções puras,
surgem aquelas que resultam da contaminação — chamemos-lhe
interdisciplinaridade: «Arles del Van Gogh di René Char. Ut pictura
poesis» (idem: 156-157). Curiosamente, Anedda introduz aqui uma
outra presença passível de interferir com um sentido original, o
tradutor — «L’italiano di Cosimo Ortesta, che dopo Vittorio Sereni
ha tradotto René Char, restituisce le r di quel rotolare corrusco di
acqua che vibra come corna di cervi in lotta» (idem: 156). E assim
se reitera a entropia, a ambiguidade do olhar e da escrita.
Afinal, a representação da landscape pode projetar uma
innerscape, como sucede, aliás, em «The Last of England», de
Ford Madox Brown (Hollander, 1995: 167). Escrito a propósito do
quadro homónimo da autoria do próprio Madox Brown, este soneto
é parcialmente enunciado pelo protagonista, um homem que, na
companhia da mulher e do filho, abandona a Inglaterra devido à
crise económica em meados do século XIX; é ele que revela a
paisagem circundante, nela projetando o pathos inerente à
circunstância que então vive. Que a landscape pode não raro ser
innerscape é algo a que regressarei mais adiante através da
poesia de Sylvia Plath que emerge do seu encontro com a pintura
de De Chirico, quando a memória (os fantasmas) determina(m) o
olhar sobre o objeto.
A par de uma memória individual surge a memória histórica que
prevalece em «Godric», de Martín López-Vega, no acima
mencionado Travesías, de 1996. Neste poema López-Vega
descreve o encontro com uma lápide — «Una lápida del Norte de
Inglaterra / representa un grupo de guerreros nortumbrios» —, a
partir do qual desponta a écfrase — «Uno blande una espada rota;
/ todos han arrojado sus escudos; / su señor ha muerto en la
batalla / y ellos avanzan para hacerse matar» —, que é, em
seguida, lida através da memória textual — «Cuanta menor sea
nuestra fuerza, / más animoso debe ser nuestro corazón. / Aquí
yace nuestro senõr […] / Así dice uno de los sajones / en un pasaje
de la Balada de Maldon» (Magalhães, 1997: 982). Assim se
enfatiza a importância de uma memória cultural que permite
interpelar a especificidade antropológica da peça em causa.
Embora algo paradoxalmente, é em obras envolvendo a morte, na
arte funerária, na materialidade do labor com a pedra, que Rui
Chafes, artista refletindo sobre o seu processo criativo em Entre o
céu e a terra, descobre a importância do instante — «o momento
em que o sono se transforma num caminho sem regresso»
(Chafes, 2012: 22) — e a capacidade de nelas projetar o etéreo —
«como capturar a passagem do sopro (a Voz de Deus) na leveza
dos cabelos e nas folhas das árvores […]» (idem: 21). Assim se
confirma a presença do sagrado neste percurso criativo que é,
também ele, um instante no espaço e no tempo, pois «estamos
todos entre o céu e a terra» (idem: 34).
Porque ao tópico do sagrado regressarei na secção seguinte,
devo restringir-me neste momento aos poemas que, tendo a
interpelação estética da natureza como fim, exploram percursos
reflexivos em torno do mito. Neste âmbito assume particular
relevância Remains of Elmet, de Ted Hughes, publicado em 1979,
com fotografias de Fay Godwin, e River, de 1983, tendo como
impulso fotografias de Peter Keene. Restringindo-me a Remains of
Elmet, por uma questão de espaço, e pelo seu caráter exemplar,
devo referir a prevalência de uma atmosfera crepuscular; será
nesta que o mito pode ser reconhecido; será nesta que o mito
emerge.
Com esta atmosfera o livro inicia-se em «The Dark River»: «Six
years into her posthumous life. / My uncle raises my mother’s face.
He says / Yes, he would love a cup of tea. // Her memory stil intact,
still good / Under his baldness» (Hughes, 2003: 455). Sob este
signo crepuscular emerge o olhar mítico de Hughes sobre a
paisagem, sobre a natureza; um olhar suscitado, mediado, por
outro olhar, o da fotógrafa Fay Godwin. Leiam-se estes versos de
«Shackleton Hill»: «Dead farms, dead leaves / Cling to the long /
Branch of world. // Stars sway the tree / Whose roots / Tighten on
an atom» (idem: 469). As próprias personagens que nestes versos
despontam parecem partilhar desta dimensão arcaica, fundir-se na
ancestralidade da paisagem: «— old man / Of the hills, propped out
for air / On his wet bench — / Lets his memories leak» (idem: 484).
Noutros horizontes poéticos são visíveis idênticas perceções do
lugar, impulsionadas pela arte. Refiro apenas o caso de Miguel de
Unamuno que, confrontado com a arte rupestre de Altamira,
desvenda em «En la cueva de Altamira» um solo mítico para a
identidade espanhola: «Mistagógico bisonte / del cielo de la
caverna, / protoibérica taberna, / tinieblas por horizonte […]»
(Unamuno, 1980: 111).
Transitando para aquele que pode ser considerado um registo
antropológico, cito o livro recente Writing the Picture onde os
poemas de John Fuller dialogam com as fotografias de David Hurn.
Este fotógrafo inglês vive há cerca de quarenta anos em Gales,
sendo as paisagens deste país que dão corpo a este livro. Tendo
subjacente o propósito antropológico e epistemológico de «tornar
visível o invisível» (Fuller e Hurn, 2010: 8), «to discover through
photography what ‘Welsh Culture’ means» (idem: 9), Hurn
deambula através de cenários que não participam habitualmente
de um certo imaginário visual daquele espaço. A propósito do
processo adotado, esclarece David Hurn: «The layout had already
been finished and amazingly you [Roy Fuller] were able to write
poems to fill the blank spaces left for words» (idem).
E assim emergem um instantâneo à beira-mar — «The sea
taught us our lonely pleasures» (idem: 16); rostos de mineiros
cobertos de carvão — «Taste the riches of the mine» (idem: 18);
um grupo de jovens deitados na relva num dia de sol — «Tell us
about the dance last night» (idem: 22); uma manifestação sindical
— «I saw my valley taken / For a bondman’s wage. / When will we
awaken?» (idem: 34); operários absortos nas suas atividades —
«No wonder this wok is done in darkness» (idem: 38); uma mulher
a dormir na praia — «Lulled by these sounds in a world of sand
and cotton, / I feel asleep in the middle of my life» (idem: 46);
cenários fabris — «[…] here and there you [the sun] are mirrored in
glowing orbs / Of tomatoes in glazed huts» (idem: 48); crianças
num recanto de um concerto — «Ma whispered don’t go up there
but no one’s seen us» (idem: 54); cerimónias religiosas ao ar livre
— «Brethren, we are gathered here / In memory of our lost valleys»
(idem: 62); uma jovem injetando-se numa casa de banho pública
— «Don’t look at me. Don’t look, This is a dirty place» (idem: 66);
uma idosa transeunte (anónima) na rua de uma cidade —
«Through evening traffic / On life’s boulevard» (idem: 76); um sem-
abrigo sentado no chão acompanhado de dois cães — «Until our
sadness is relieved / By Jesus and my mutton, / It’s a pavement
and a blanket, / Two pennies and a button» (idem: 96); simulacros
de encontros com o passado, com a História — «These were the
ghosts of Romans there, Agricola’s men, with shining graves, /
Who fell into the phalanx in the arena, half-pretending not to see
us» (idem: 104). Estes efémeros fragmentos, entre muitos outros,
da memória, de um banal quotidiano, não raro são também signos
de alteridade; imagens que precedem aqui o texto poético, e cuja
voz, num derradeiro simulacro, este mesmo texto para nós
concebeu como se a realidade, e não a sua representação, nos
interpelasse.
Visualmente dissonante face à generalidade das representações
de espaços abertos, amiúde amplos, «Laugharne. Café, 1974»
exibe um espaço algo claustrofóbico, enfatizado quer pela sua
perspetiva fragmentária — as mesas e as cadeiras do café surgem
apenas parcialmente, quer pelas figuras geométricas da parede de
fundo que de algum modo denega a ilusão de profundidade. É
sobre este cenário visual que, displicente, uma fotografia nos
interpela. Trata-se, com efeito, de uma foto famosa do poeta galês
Dylan Thomas. Este era, aliás, um café por ele amiúde
frequentado. Um subtexto indicia-se assim. Em «resposta» a este
contexto visual, Fuller escreve um breve poema composto por dois
tercetos:

Missing: one poet in an ill-fiting suit and a smile


Who walked out one morning into his damaged life
And never returned for tea.

Reward: the assertive alliteration of birds


Calling for confort, an ikon above the gas fire
And all the chips you can eat.

[Idem: 30]

Embora Fuller assuma, por vezes, nestes poemas a


subjetividade radical e simulada do monólogo dramático, prevalece
neles uma crueza, uma insistência do presente, um quase
literalismo em tudo homólogo aos instantes captados pela objetiva
de Hurn. Esta não será, todavia, uma postura estética dominante
quando o poeta interpela a paisagem sob o signo da arte; vimo-lo
em exemplos acima citados. Convoco apenas outros três: o do
poeta inglês Siegfried Sassoon que, num excesso realista da
representação da guerra, concebe uma paisagem transfigurada,
fantasmagorizada em «Picture-Show» (French e Wlaschin, 1993:
38); o do poeta espanhol José María Álvarez que, em «Muchachos
jugando a la pelota», reconfigura as pessoas observadas na
paisagem através de um olhar estético devedor da memória visual
clássica: «Hacia Levante, / formas de luz, se alzan / las columnas
del templo / de Poseidón, Señor de la mar sagrada. / Las figuras
de los jóvenes se recortan / en la incandescencia del poniente /
como estatuas de atletas» (Magalhães, 1997: 64); e o do poeta
francês Yves Bonnefoy que em «Le peintre dont le nom est la
neige» recorre à prosopopeia para identificar uma dimensão
pictórica na natureza, num agente seu — a neve —, a partir do
qual emerge uma espécie de hipotipose à rebours: «Ce peintre qui
est penché sur la toile, je le touche à l’épaule, il sursaute, il se
retourne, c’est la neige . […] Son pinceau: une fumée de la cime
des arbres, qui se dissipent, qui le dissipent» (Bonnefoy, 2014: 82).
A estes exemplos citados não é estranha a imersão individual do
poeta, embora a paisagem persista ainda assim como algo
exógeno. No entanto, como acima referi, a paisagem exterior —
landscape — pode ser um emblema de uma paisagem interior —
innerscape. Os poemas de Sylvia Plath suscitados por quadros de
Giorgio De Chirico evidenciam um processo de transferência a
partir do qual emergem circunstâncias biográficas, nomeadamente
a figura parental. Com efeito, De Chirico permitir-lhe-ia refletir
sobre diferentes latitudes da representação desta figura.
Comecemos por observar «Conversation Among the Ruins», o
poema que abre os Collected Poems de Sylvia Plath.
Nos primeiros meses de 1956, quando se encontrava em
Inglaterra como bolseira Fulbright, Plath afixou uma reprodução de
Conversa entre ruínas na porta do quarto, tendo posteriormente
incorporado no poema uma expressão retirada do seu Diário32.
Esta interação entre arte e quotidiano será nuclear nesta fase da
sua escrita, estando na origem de um subtil processo criativo. Mas,
o interesse de Plath pela obra do pintor italiano tornar-se-á ainda
mais significativo devido à forma como ela assimilará quadros seus
nos poemas incluídos em The Colossus: «The Disquieting Muses»
e «On the Decline of Oracles». Regressemos para já a
«Conversation Among the Ruins».
Ao refletir sobre as possibilidades de verbalização oferecidas por
De Chirico, urge identificar duas linhas de sentido cruciais neste
poema: o tempo e a sexualidade. A sexualidade, por vezes ligada
a visões agressivas e destruidoras da sedução, é uma presença
significativa na poesia de Plath escrita neste período. Ora,
«Conversation Among the Ruins» inaugura essa presença
associando a iniciativa da sedução ao elemento masculino. Toda a
imagética do poema se constituirá em torno de dois polos, o
masculino e o feminino, os quais, por seu turno, consubstanciam
um esquema antitético: dinâmico vs estático, activo vs passivo,
instinto vs decoro, sedutor vs seduzido; enfim masculino vs
feminino, mas também agressor vs vítima. Ao elemento masculino
associa-se a subversão da ordem no lugar e a dinamização do
tempo, já que o elemento feminino enunciador se encontra num
espaço de proteção matricial — a casa — no qual o tempo parece
suspenso. Observemos os primeiros versos do poema onde essas
antíteses se desenham: «Through the portico of my elegant house
you stalk / With your wild furies, disturbing garlands of fruit / And
the fabulous lutes and peacocks, rending the net / Of all decorum
which holds the whirlwind back. / Now, rich order of walls is fallen;
rooks croak / Above the appalling ruin; in bleak light / Of your
stormy eye, magic takes flight / Like a daunted witch, quitting castle
when real days break (Plath, 1981: 21). Num primeiro instante, a
emergência do agente masculino desperta o feminino para o
tempo, torna-o histórico, ou seja, retira-o da letargia, animiza-o.
Descobrir a sexualidade significa renascer, redescobrir a vida; o
que não invalida a existência de perigo. À semelhança de muita da
sua poesia ulterior, sedução, sexualidade e ameaça andarão a par.
«Conversation Among the Ruins» apresenta também uma subtil
interação entre o lugar e o tempo, vertentes essenciais não só dos
poemas de Plath mas ainda dos quadros de De Chirico. Gino
Baratta lê da seguinte forma essa interação: «O universal funda-se
sobre o equilíbrio dos opostos, equilíbrio dinâmico do qual se
poderá inferir o ritmo que o rege. De Chirico […] projectava atribuir
às coisas, com a pintura, uma nova psicologia metafísica,
registando com consciência absoluta o espaço que separa os
objetos entre si. Declarada ou não, a metáfora do ritmo é
constante» (Baratta, 1987: 112). Esse espaço entre que separa os
objetos, funciona, em Plath, no plano do tempo, como estase,
instante trágico, tensão que antecede o confronto dos dois signos,
masculino e feminino.
No final do poema a linguagem (o texto ?) revela-se incapaz de
ajudar a superar a (irremediável) distância existente entre esses
signos. Plath explicita uma dimensão deste seu encontro com De
Chirico, a propósito de «The Disquieting Muses», aquando de uma
leitura do poema num programa da BBC. A autora desvenda a
expansão de diálogos e a dimensão evocativa, o quadro como solo
onde se sedimentam e se fundem diferentes camadas de sentido:

It [the poem] borrows its title from the painting by Giorgio de


Chirico — The Disquieting Muses. All through the poem I have in
mind the enigmatic figures in this painting — three terrible
faceless dressmaker’s dummies in classical gowns, seated and
standing in a weird, clear light that casts the long strong shadows
characteristic of de Chirico’s early work. The dummies suggest a
twentieth-century version of other sinister trios of women — the
Three Fates, the witches in Macbeth, De Quincey’s sisters of
madness. [Hughes, 1981: 276]

O passo citado desvenda um certo diálogo intertextual, e, dele


decorrente, uma dimensão trágica, à qual se associa uma
atmosfera dominada pelo mistério. De Chirico permite, assim,
reatualizar uma tradição literária, simultaneamente permitindo uma
expansão semântica; «On the Decline of Oracles» participa deste
processo. A circunstância factual, biográfica, funciona aqui como
impulso para a representação de um ethos marcado pela perda de
influência do transcendente, da sua proteção, do sentido que ele
confere à existência: «My father kept a vaulted conch / By two
bronze bookends of ships in sail, / And as I listened its cold teeth
seethed / With voices of that ambiguous sea / Old Böcklin missed,
who held a shell / To hear the sea he could not hear» (Plath, 1981:
78).
As convocações pictóricas dentro do pictórico (Böcklin em De
Chirico) permitem acentuar uma atmosfera feérica da qual o
conflito edipiano participa. Num âmbito intertextual algo de
recorrente em Plath se desvenda, a obsessão face à
representação parental, estruturadora de poemas como «The
Colossus», «Electra on Azalea Path», «Ouija», ou ainda «Daddy»,
aquele que, segundo George Steiner, tomando como impulso
circunstâncias biográficas, as supera para figurar um horror final;
«Daddy», a Guernica da poesia moderna: «[…] one of the very few
poems I know of any language to come near the last horror. It
achieves the classic act of generalization, translating a private,
obviously intolerable hurt into a code of plain statement, of
instantaneously public images which concern us all. Is is the
‘Guernica’ of modern poetry. And it is both histrionic, in some ways,
‘arty’ as is Picasso’s outcry» (Steiner, 1967: 330).
Nos versos de «On the Decline of Oracles», Plath não se limita a
associar a voz parental à tradição, ao logos, ao poder, já que a
morte do pai implica um vazio de sentido: repositório de saber, esta
é afinal uma figura constrangedora33. Consequentemente, o agon
será nuclear: o poema parece evocar um conflito natural que se
alarga, de uma forma radical, à identificação do pai com a natureza
que, por seu turno, originará um isolamento absoluto do sujeito. No
limite, tal significará o silêncio, isto é, a incapacidade de exibir uma
autonomia. Assim nasce a ansiedade (a bloomiana ansiedade da
influência?).
Além deste aspeto, outro temos de recordar, o do subtil diálogo
extratextual com a pintura, realizado através da menção a Arnold
Böcklin. Tal como a escolha referencial, este diálogo deverá ser
entendido não apenas como evocação cultural, ou eventual pose
de afirmação de um saber, mas antes num horizonte mais vasto de
subtis implicações no sistema de referências que a autora para si
própria constrói; recorde-se que Böcklin é recuperado por uma
certa tradição surrealista, associada a uma dimensão metafísica,
que entronca em De Chirico. Estamos assim perante uma escolha
consciente que decorre não só de uma eventual empatia afetiva
mas também da possibilidade de anagnorisis ontológica que uma
obra artística proporciona. O reconhecimento passa naturalmente
por um plano subconsciente. Quando escreveu «On the Decline of
Oracles», Plath registou no seu Diário as palavras do artista acerca
de O enigma do oráculo, o quadro que estava na origem do
poema:

1) Inside a ruined temple the broken statue of a god spoke a


mysterious language.
2) Ferrara: The old ghetto where one could find candy and
cookies in exceedingly strange and metaphysical shapes.
3) Day is breaking. This is the hour of the enigma. This is also
the hour of prehistory. The fancied song, the revelatory song of
the last morning dream of the prophet asleep at the foot of the
sacred column, near the cold, white simulacrum of god.
4) What shall I love unless it be The Enigma? [McCullough,
1982: 124]
Este passo denuncia três vertentes estruturantes — espaço,
tempo, mistério: o espaço é evocador de uma síntese entre o
sagrado e o profano, indiciando uma realidade onírica; o tempo
envia para uma atmosfera de suspensão; e o mistério decorre da
interação entre o espaço e o tempo — com ele acentua-se o
caráter metafísico do episódio. O mistério é, aliás, mencionado por
Plath no seu Diário: «[…] long shadows cast by unseen figures —
human or stone it is impossible to tell» (idem: 211). A ambiguidade
detetada pela autora não deixa de enviar para a problemática da
busca da identidade. Isto será ainda mais curioso pelo facto de, em
De Chirico, o sujeito não possuir sombra própria, uma identidade
criativa (Axelrod, 1990: 214). Além disso, a natureza enigmática,
sem expressão, da esfinge, situa-a para além do tempo (Billi, 1983:
119). Deste modo se conclui que aquelas vertentes não são
meramente transpostas para a poesia de Plath impulsionada por
quadros de De Chirico: esta é, de facto, uma interiorização radical
que se refletirá numa reequilibração do olhar da autora, decorrente
de uma peculiar aquisição e assimilação do real. A interação
existente entre o espaço, o tempo e o mistério é ainda mais
evidente em «The Disquieting Muses».
Enquanto a figura parental constitui uma recorrência na poesia
de Plath, a figura materna surgirá aqui pela primeira vez. O poema
desenvolve-se como se de uma conversa com a mãe se tratasse,
evocando na memória comum lugares, fantasias, episódios que o
sujeito designou como relevantes na construção da sua identidade;
veja-se, por exemplo, o furacão revisitado na terceira estrofe: «In
the hurricane, when father’s twelve / Study windows bellied in / Like
bubbles about to break, you fed / My brother and me cookies and
Ovaltine / And helped the two of us to choir: / ‘Thor is angry: we
don’t care!’» (Plath, 1981: 75).
Com efeito, este furacão terá ocorrido em setembro de 1938,
quando Sylvia Plath tinha apenas 5 anos, embora, Aurelia, sua
mãe, refira que o poema distorce certos factos das suas vidas
(Rose, 1991: 75). Estamos, afinal, perante um dos equívocos
centrais na leitura da sua poesia e na forma como ela tem sido
tantas vezes divulgada, a da sistemática redução do texto ao papel
de registo de episódios biográficos, algo que ocorrerá igualmente
face a outros poetas como Anne Sexton e Robert Lowell. Todavia,
quando optamos pela saudosa close reading, e nos detemos sobre
os poemas com mais atenção, frase a frase, verso a verso, algo de
diferente desponta. Vejamos, por exemplo, as lições de piano
citadas na quinta estrofe: «Mother, you sent me to piano lessons /
And praised my arabesques and trills / Although each teacher
found my touch / Oddly wooden in spite of scales / And the hours of
practicing, my ear / Tone-deaf and yes, unteachable. / I learned, I
learned, elsewhere, / From muses unhired by you, dear mother»
(Plath, 1981: 75).
À partida, esta estrofe parece uma mera transcrição de
determinados factos. Contudo, perto do final, surge uma palavra
onde se insinua um registo específico do poema, «muses». Nela
se desencadeiam outras ressonâncias intertextuais: a presença de
De Chirico; a revisão do imaginário da infância levado a cabo pela
adulta; o índice metafísico da escrita. O poema não se
circunscreve a um registo factual, embora em momentos, como os
citados, assim pareça. De facto, o registo híbrido, do qual
quotidiano, mito e imaginário participam, surge logo na primeira
estrofe onde os contos da infância são lembrados, nomeadamente
A Bela Adormecida.
Aquilo que noutros momentos da poesia de Plath surge ligado a
um certo determinismo trágico, conhece, em «The Disquieting
Muses», uma faceta pagã, o destino traçado pelas Fates; destaca-
se ainda a subversão do registo biográfico, já que será algo difícil
entender literalmente os eventos evocados. Aquele registo,
entroncando por vezes em episódios familiares, serve afinal de
impulso para uma dimensão alegórica.
A função de De Chirico na poesia de Plath não poderá assim ser
medida pelo número de poemas que têm quadros como referentes.
Em De Chirico, Plath reconheceu uma extensão de inquietações
metafísicas relativamente à reflexão sobre a identidade que nela
adquiriria uma dimensão estética e literária: conflito, no plano
psicológico, face a vozes autoritárias, e agon (na aceção
bloomiana) no plano literário, face a discursos atentos aos sinais
de uma pós-modernidade que então apenas se insinuava. As suas
obsessões psicológicas projetar-se-iam naturalmente nos
encontros com a pintura. Deste modo, a ansiedade da influência
demonstra de que forma o situar-se face a uma tradição entronca
tanto no plano metafísico como no psicológico. Daí que a própria
figuração parental, mediatizada pela obra de De Chirico, obtenha
um grau de expansão raramente existente na sua poesia: eco da
ambiência trágica, e releitura de vozes fortes da tradição literária
anglo-saxónica. Por fim, a voz do pai diluir-se-á no processo de
procura de novas filiações que permitam a emergência da
identidade.
De Chirico possibilitar-lhe-ia ainda iniciar um diálogo com uma
vertente artística tantas vezes lateralizada na América, o
surrealismo. Neste, Plath reconheceria um universo simbólico que,
mesmo sem fornecer respostas, viabilizaria a identificação com
ambiências de um imaginário que se debatia então com as
orientações normativas impostas pelo rígido ethos macartista; o
ethos ao qual regressaria no romance autobiográfico The Bell Jar.
Quando Plath escreve estes poemas, ela não pretende produzir
écfrases, comentar quadros, ou conceber versões deles; a arte de
De Chirico abre-lhe, sim, novos horizontes de verbalização,
permite-lhe repensar a tradição literária, reinventar a memória,
assimilar um universo simbólico que dialoga com as suas
inquietações metafísicas, ontológicas e, também, obviamente,
poéticas. Será assim num amplo espaço de interações que o seu
encontro com o pintor italiano poderá e deverá ser entendido. De
Chirico permitiu-lhe reformular universos endógenos, zonas do
subconsciente denegadas pelo sujeito, e inquietações existenciais
que serão uma constante no seu percurso criativo. E tudo isto
devido às misteriosamente silenciosas e melancólicas paisagens
dos microcosmos urbanos concebidos pelo pintor italiano.
Jean Clair enquadra a representação dessa melancolia pelo
pintor italiano no âmbito mais amplo daquela que seria uma
consciência do homem moderno: «La méthode des ombres
portées qui, dans la perspective classique, permettait de confirmer
la réalité du corps matériel qui en était la source, il la détourne de
telle sorte que c’est l’ombre, désormais, en tant qu’elle devient
apparition, entité spectrale, fantasme, qui devient le signe de
l’absence de réalité […]» (Clair, 2006: 443). Daí que Plath nele, nas
suas paisagens silenciosas, tenha reconhecido o melancólico
sentido da ausência que a perseguiria até à morte.
Uma outra sensibilidade face à representação da paisagem
urbana, eventualmente mais factual, decorrente da sua captação
pela objetiva do fotógrafo, deve igualmente ser recordada, aquela
que o poeta inglês Thom Gunn leva a cabo num livro vindo a lume
em 1966 sob o título significativo de Positives. A propósito do título,
esclarece o poeta, recordando a colaboração com o seu irmão, o
fotógrafo Ander Gunn:

Looking through some of Ander’s photographs I found


interesting possibilities in collaboration. I had always wanted to
work with pictures, and he was taking just the kind that made a
good starting point for my imagination. That was the beginning of
the book called Positives (the title being Tony White’s suggestion,
as was much else in it). I was never very sure whether what I was
writing opposite the photographs were poems or captions — they
were somewhere between the two, I suspect — but that didn’t
matter, because what I was looking for was a form of fragmentary
inclusiveness that could embody the detail and history of that
good year [1964]. […] I enjoyed working on the book, the only
collaboration I have yet tried […] [Gunn, 1982: 181]

Impõe-se neste diálogo um estatuto que afirmei como nuclear


para a interação entre palavra e imagem logo no início da minha
reflexão neste livro, o de in-betweenness, ou, nas palavras de
Gunn, «somewhere between the two». É neste solo ambíguo e
fluido que poeta e poema se reconhecem — imersão confessional
do poeta em fragmentos de um tempo pretérito, ou registo de
circunstâncias antropológicas, ou um encontro de ambos? Por seu
turno, os fragmentos — detalhes? restos? — que o poeta exibe
num diálogo com o olhar — fotográfico — de um tempo da cidade
que agora apenas persiste naquelas representações, não deixam
de indiciar uma nostálgica melancolia. O próprio fio narrativo
escolhido — da infância (a fotografia inicial de um bebé), à velhice
(o rosto da sem-abrigo «Poking around the rubbish, / she can’t find
what she wants», Gunn, 1966: 76) — de algum modo identifica a
inevitabilidade da passagem do tempo e a consequente
nostalgia… e melancolia.
O tópico da paisagem como espaço de projeção e
reconhecimento da melancolia pela écfrase, obviamente
prevalecente em Plath, e indiciado apenas em Gunn, pode suscitar
ainda a convocação de um signo, a ruína. E para o abordar impõe-
se um novo regresso ao romantismo… inglês, claro, e a um texto
em particular, «Ozymandias», um soneto publicado em 1818, da
autoria de Percy B. Shelley, por várias vezes por mim evocado ao
longo destas páginas.
A onomástica do título envia para a versão grega de User-maat-
re, ou seja, Ramsés II, aquele que no Êxodo é referido como «O
Faraó». Shelley poderá ter tido em mente um ícone com um
significado político imediato para os ingleses, a estátua de
Wellington, o herói de Waterloo. Se considerarmos esta eventual
ressonância, constata-se que Shelley utiliza com ironia o signo
heroico para denunciar aquilo que considera ser a efemeridade do
poder político. Trata-se de um topos algo recorrente na poesia
romântica, ao qual um dos nossos poetas maiores de formação
anglo-saxónica, Álvaro de Campos, regressará em «Gazetilha»
quando proclama: «Dos Lloyd Georges da Babilónia / Não reza a
história nada. / Dos Briands da Assíria ou do Egipto, / Dos Trotskys
de qualquer colónia / Grega ou romana já passada / O nome é
morto, inda que escrito» (Campos, 2002: 328).
Outro tema romântico surge, por vezes, ligado à recente
elevação da arqueologia ao estatuto de ciência, e os signos
tangíveis que começam a vir à luz do dia. Com efeito, estas
vertentes entroncam na estética romântica que vê na ruína um
topos privilegiado para reflexão; daí a celebração do artefacto
como testemunho narrativo de um passado remoto.
Shelley inicia este soneto através de um contexto de elocução
coloquial: o encontro entre duas entidades, o sujeito de enunciação
e uma personagem com quem se cruza, o viajante — «I met a
traveller from an antique land / Who said:» (Holloway, 1969: 36).
Atente-se, desde logo, na forma como o sujeito se apaga,
transferindo a enunciação (o seu poder a nível do domínio do
discurso) para essa outra entidade, como se de uma entrada em
cena se tratasse. Este novo enunciador, ou, porque esta é uma
estratégia dramática, esta dramatis persona, inicia a sua narrativa.
Atente-se, ainda, noutra dimensão: esta voz possui um estatuto
particular, é «a traveller from an antique land». Porque esta é uma
terra antiga, o saber que ele transmite é privilegiado — radica nas
tradições de um lugar com História, logo, com muitas histórias. A
sua dimensão narrativa significa, portanto, saber e sabedoria. É
este enunciador privilegiado que vai transmitir algo ao primeiro
sujeito, entretanto remetido ao estatuto de destinatário da
narrativa.
A enunciação prossegue com a descrição da ruína: «Two vast
and trunkless legs of stone / Stand in the desert… Near them, on
the sand, / Half sunk, a shattered visage lies» (idem). Do caráter
colossal, ereto e imponente que terá designado o poder do signo
histórico, o Faraó, apenas persistem («stand») fragmentos, as
pernas. A dimensão do corpo como ruína («trunkless») é
acentuada pelo rosto, também ele fragmentado. Será neste que
outro poder, ironicamente, se enuncia: «whose frown, / And
wrinkled lip, and sneer of cold command, / Tell that its sculptor well
those passions read […]» (idem). Ironicamente, porque a
expressão sarcástica e intimidatória que designava o poder é hoje
um mero despojo. Ironicamente, porque outro poder maior se
insinua, o do artista, o escultor que soube captar e fixar na pedra a
teatralidade do poder que a expressão exibe. Ironicamente, porque
o poder político é hoje mera ruína, e a sua memória é preservada
apenas devido à arte: «Which yet survive, stamped on these
lifeless things, / The hand that mocked them, and the heart that
fed…» (idem).
A ironia acentuar-se-á com a entrada em cena de mais uma
dramatis persona, o próprio Ozymandias. Em seguida, a sua voz,
que outrora expressara o seu poder e a sua vontade, é evocada
(visualizada) através do epigrama, da (auto)caracterização
transcrita pelo escultor: «And on the pedestal these words appear:
/ ‘My name is Ozymandias, king of kings: / Look on my works, ye
Mighty, and despair!’» (idem). Numa das estátuas encontradas no
Ramesseum, o templo mortuário em Tebas, encontra-se a
inscrição que transcrevo em inglês para podermos observar a
analogia com o poema de Shelley: «I am Ozymandias, King of
Kings. If anyone would know how great I am and where I lie, let him
surpass any of my works.» Como se vê, o poeta incorpora esta
frase no poema através de uma paráfrase irónica que lhe permite
satirizar os exercícios, ou expressões, de poder, nomeadamente
político, que ele considera serem efémeros. Resta o silêncio da
natureza na sua forma mais simples, despojada: «Nothing beside
remains. Round the decay / Of that colossal wreck, boundless and
bare / The lone and level sands stretch far away» (idem). O
processo de destruição designa uma hierarquia: na base da
pirâmide está o mais efémero (o político); em segundo lugar está
aquilo que, apesar de fragmentário, persiste (o poder do artista que
trabalhou a pedra); em terceiro lugar, o de quem enuncia todo este
processo (o do poeta). Por fim, no topo, para além da atividade
humana, e a ela indiferente, persiste a Natureza. Por seu turno, o
artista persiste, apesar de tudo, anónimo. E assim, como refere
Elizabeth Loizeaux, a experiência do encontro com os Elgin
Marbles, suscitada pelo Museu Britânico, revela uma lição: «[…]
after all, fragments, evidence that ‘all things fall’» (Loizeaux, 2008:
20).
Através desta exposição aquele Museu apresenta um contributo
relevante para aquilo que poderíamos considerar a estética do
fragmento. Embora retirado do seu contexto natural, a sua exibição
permite não só a sua inserção conceptual num contexto histórico e
cultural, mas também uma observação dilatada no tempo, a qual,
por seu turno, pode suscitar meditações estéticas, como sucedeu
com Shelley ou Keats, ou, mais tarde, com Browning. Com efeito,
no catálogo da exposição promovida em 1864 pela Royal Academy
of Arts, surge um poema de Robert Browning, intitulado «A
Fragment», a par de uma reprodução do quadro Orfeu e Eurídice,
de Frederic Leighton. O quadro exibe o momento de estase que
precede a troca de olhares e a consequente separação dos
amantes para sempre. Por seu turno, o poema retira as
personagens do silêncio, dando voz a Eurídice, e ao desejo do
encontro. O imperativo «look at me!» final surge como expressão
máxima desse desejo. Com efeito, tanto o fragmento como a ruína
— na realidade, um fragmento também — são indissociáveis do
mistério, nomeadamente face ao contexto que, no caso do
fragmento, pode estar radicalmente ausente, e, no caso da ruína,
amputado. Será, portanto, esse hiato ou essa zona de penumbra
que o poeta pode sentir-se impelido a preencher na sua meditação
textual.
Sinalizo apenas dois exemplos em torno destes dois tópicos,
fragmento e ruína, respetivamente, «To the Fragment of a Statue of
Hercules, Commonly Called the Torso», de Samuel Rogers, um
poeta inglês contemporâneo da primeira geração romântica de
Coleridge e Wordsworth, e «A Capriccio of Roman Ruins and
Sculpture with Figures», do poeta e ensaísta norte-americano
contemporâneo J. D. McClatchy. Em ambos se evidencia uma
especulação em torno do mistério que subjaz ao signo: as
circunstâncias históricas que terão levado à sua fragmentação, no
caso de Rogers, envolto numa atmosfera que, em certa medida,
parece antecipar Kavafis — «the Spirits of the North, that swept /
Rome from the earth when in her pomp she slept, / Smote thee
with fury […]» (Hollander, 1995: 127); no caso de McClatchy, é a
especulação em torno do trabalho do pintor no seu estúdio que
leva a uma sua ficcionalização — «ever the artist / In his studio,
has hung this landscape / As a gallery of copies» (idem: 317).
Os contextos históricos e culturais são, deste modo,
determinantes para a meditação poética, visto ser neles que
residem: as tensões que envolvem o artefacto artístico. E nesse
sentido se compreende que a Europa, com a sua tradição artística
ancestral, surja como solo privilegiado para um exercício ecfrástico
que tenha o fragmento e a ruína como impulso primeiro. Esta é a
razão pela qual existe todo um movimento constante de
expatriados norte-americanos rumo ao Velho Mundo, visto ser aí
que podem desvendar uma memória que o seu país não possui.
Entre estes expatriados destaco, pela sua singularidade neste solo
poético, Herman Melville.
Sinalizei no subponto anterior a relevância que assume para
Herman Melville o encontro com os cenários naturais que a Europa
lhe oferecia, e nos quais ele desvendaria uma memória. Colocou-
se, assim, a questão de saber onde será possível identificar
espaços ou sinais de uma perenidade; daí a convocação, neste
momento, do tópico romântico da ruína. Atentemos nos seguintes
exemplos: em «The Ravaged Villa», os fragmentos («In shards the
sylvan vases lie», Robillard, 2000: 315) denunciam uma
degradação civilizacional da qual o capitalismo participa («The
weed exiles the flower: / And, flung to kiln, Apollo’s bust / Makes
lime for Mammon’s tower», idem); em «Lone Founts» («dipping in
lone founts thy hand, / Drink of the never-varying lore: / Wise once,
and wise thence evermore», (idem: 320), o objeto funciona como
signo da sabedoria; ou em «The Garden of Metrodorus», onde o
silêncio designa a ambiguidade, um tema caro a Melville («is this
stillness peace or sin / Which noteless thus apart can keep its
dell?», (idem: 317).
Há, todavia, um poema que se distingue pelo facto de se centrar
concretamente no processo de descoberta do artefacto.
Significativa e explicitamente intitulado «Disinterment of the
Hermes», ele recupera a atmosfera que, no início deste capítulo,
encontrámos subjacente à convocação do passado por parte dos
românticos. Lembremos Lessing e aquilo que significou a
emergência, à luz do dia, dos artefactos sepultados ao longo dos
séculos, e a sua posterior exibição ao público em espaços
próprios; lembremos a importância da sua catalogação e inserção
num discurso científico sobre a História; lembremos o que essas
descobertas significaram em termos de reflexão em torno da
perenidade (face ao homem) ou da fragilidade do objeto (face à
ação da natureza).
Melville não retoma uma mera estratégia romântica, já que, para
ele, não é o Museu que surge como espaço de revelação do
artefacto. Para o autor de Moby-Dick, o próprio espaço atualiza a
origem; consagra-se na sua dimensão mítica. Daí que, neste
poema, ele justaponha o olhar do sujeito ao do arqueólogo: «What
forms in adamant fair — / Carven demigod and god, / And hero-
marbles rivalling these, / Bide under Latium’s sod, / Or lost in
sediment and drift / Alluvial which the Grecian rivers sift. // To dig
for these, O better far / Than raking arid sands / For gold more
barren meetly theirs / Sterile, with brimming hands» (idem: 337).
Assim se define um enfoque, o do poeta, que se evidencia por
entre diferentes estatutos, em particular o do arqueólogo. Este é,
portanto, um olhar entre; o poeta assume o seu estatuto de in-
betweenness.
Embora vá abordar mais adiante a autorreflexividade, considero
pertinente sinalizar aqui, ainda que brevemente, a parte final de um
dos poemas contemporâneos mais celebrados sobre o diálogo
entre a palavra e a imagem, Self-Portrait in a Convex Mirror, de
John Ashbery. Refiro-me aos versos: «each part of the whole falls
off / And cannot know it knew, except / Here and there, in cold
pockets / Of remembrance». Sobre eles escreve Stephen Cheeke:

It is an amputated, interrupted relation of part to whole. In their


own way the final lines of Ashbery’s ekphrasis are as enigmatic
as those of Keats’s ode, except in the sense of an incomplete
blankness, bafflement, or aporia. “Each part of the whole […]
cannot know it knew”. The part cannot know that it possessed a
complete knowledge of the whole because it is no longer part of
the whole. […] The poem closes with this fading out. [Cheeke,
2008: 138]

Se, por um lado, a parte, o fragmento, persiste como resto de


algo, por outro, ao poeta pode estar reservada uma certa sensação
de atraso, de ter chegado demasiado tarde, como explicitamente
concede José Emílio-Nelson em «As ruínas de Atenas»: «Na
Grécia. E eu? Cheguei depois de todos» (Emílio-Nelson, 1999: 7).
Em torno deste tópico amiúde convoquei vários poetas
românticos, o que poderia circunscrevê-lo a uma fatia pretérita de
tempo. No entanto, quer a sua emergência num contexto prosódico
em Ashbery quer a melancolia de Emílio-Nelson denunciam a sua
polifónica presença no presente. Daí que tenha optado por
encerrar este momento com uma breve citação de outro poeta
contemporâneo, Antonio Sáez Delgado, a quem se deve um livro
que toma a ruína como título; refere este verso à transfiguração do
espaço, da identidade de um lugar, através dos elementos: «El frío
convierte en ruinas el paisaje de este otoño» (Delgado, 2001: 13).

3.6. O sagrado

E se a écfrase for uma oração?


Retomo Dante Gabriel Rossetti, desta feita para iniciar a reflexão
em torno do tópico do sagrado no registo ecfrástico. Escolhi para
ilustrar esse diálogo «Our Lady of the Rocks», um soneto inspirado
no quadro A Virgem dos Rochedos, de Leonardo da Vinci (cf.
figura 22); um poema de sensibilidade católica e que possui a
capacidade que Hegel via em certas obras de despertarem um
sentimento religioso mesmo num espaço profano, como uma
Galeria de arte ou um Museu (Cheeke, 2008: 66). Esta singular e
inovadora écfrase pertence à acima mencionada sequência
«Sonnets for Pictures», incluída nos seus Poems, escritos entre
1847 e 1853. Nessa sequência evidencia-se a sua sedução pela
pintura renascentista italiana, a qual funciona para ele também
como meditação num solo entre confissão e reflexão existencial.
O quadro de Leonardo organiza-se a partir de uma estrutura
triangular central: a Virgem, o Menino e S. João Batista. Ao
olharmos estes três signos, inevitavelmente recordamos as
potencialidades simbólicas da tradição hermética evocada pelo
alquimista renascentista Henri Corneille-Agrippa: «le nombre
sacré. […] Trois temps […] Troi vertus théologales, l’espérance, la
foi, la charité. Jonas a été trois jours dans le ventre d’un poisson; le
Christ en a été autant dans le sépulcre» (Corneille-Agrippa, 1981:
21-22). Numa tradição neopitagórica, a interação espacial entre
estes três signos — o triângulo — designa a proportio divina, assim
introduzindo a tranquilidade eufórica: a esta se deverá a esperança
face ao futuro. Essa esperança é enfatizada na figura do Cristo e
na sequência (diacronia) temporal que S. João Batista confere ao
conjunto: observa-se o insinuar de uma narrativa, de uma
cronologia, da qual (a morte de Cristo por nós) somos chamados a
participar. Por seu turno, o chiaroscuro (luz vs sombras), ao dar
ênfase ao colo da Virgem/Fonte de Vida (recorde-se a centralidade
acentuada pela mão do anjo), aos corpos, ao divino, reitera essa
euforia. O contraponto desta dimensão surge na luz esbatida no
fundo indiciando o mistério do Tempo, da Morte, da Eternidade. O
processo de representação pictórica estrutura-se, assim, a partir
de uma interação espacial dos signos (perspetiva, profundidade) e
da cor (simpatia, conflito, contraste entre as cores).
Apresenta-se, assim, a seguinte questão: estará a linguagem
verbal limitada a reproduzir estratégias de representação
exógenas, como a interação espacial ou a simpatia/antipatia a
nível da cor? Com efeito, Rossetti escolhe o soneto como forma,
pela concisão e pela transformação que ele implica, o «pregnant
moment» (Cheeke, 2008: 63). Como funcionará, então, esta
reprodução verbal do signo num solo tão singular, no plano
estrutural, como o soneto? Para encontrar uma resposta para esta
pergunta, observemos, em primeiro lugar, o diálogo que o sujeito
desencadeia com o referente, e, em segundo lugar, a configuração
original que Rossetti executa da espacialidade através do ritmo, do
jogo com as tradições e com as convenções a nível do género,
enfim, através da linguagem.
A descodificação implica dois níveis de leitura do quadro
enquanto signo que constituem, simultaneamente, uma interação
entre ambos: significante (visual e fónico) e significado
(semântico). Iniciemos a leitura por este último nível. Rossetti não
reproduz, não recria o referente para o leitor então transformado
em destinatário34. À semelhança do poeta em «Ode on a Grecian
Urn», o sujeito assume-se como observador, interpelando-o; fá-lo,
todavia, através de um solilóquio em que simula o diálogo com um
dos seus signos privilegiados, a Virgem. O objeto torna-se
interlocutor, destinatário da intimidade confessional do sujeito; e o
poema assume-se como espaço intimista, súplica, uma (quase?)
oração. Na sequência deste diálogo, o leitor é instituído como
testemunha, não do quadro, mas dessa íntima confissão; dessa
oração: «Mother, is this the darkness of the end, / The Shadow of
Death? And is that outer sea / Infinite imminent Eternity? / And
does the death-pang by man’s seed sustain’d / In Time’s each
instant cause thy face to bend / Its silent prayer upon the Son,
while he / Blesses the dead with his hand silently / To his long day
which no more hours offend?» (Rossetti: 1870, 259).
A primeira estância organiza-se a partir da perceção que o
sujeito tem do tempo (atente-se nas diferentes formulações desta
categoria), desencadeada pela dimensão espacial; algo que,
apesar de centrado em si, transcende idiossincrasias pessoais.
Esclarece o poeta e ensaísta Yves Bonnefoy: «The question of
space arises because fifteenth-century Italian art found, in
perspective, a way of formulating with admirable clarity several
metaphysical views of time» (Bonnefoy, 1995: 46). Recordando as
palavras de Joaquim Manuel Magalhães a propósito de Sena,
pode-se dizer que «esta descrição se ergue como uma proposta
lírica onde a subjetividade procurava equivalentes verbais
materiais das representações com que se confrontava». Destacar-
se-ão três aspetos denunciados pela subjetividade: o eixo
intersubjetivo instituído pelo vocativo (o sujeito de enunciação
encontra na Virgem uma interlocutora única, capaz de lhe
desvendar um sentido para a [sua] existência); a obsessão pelo
signo espacialmente distante — a luz do espaço/tempo para além
da vida (simbolicamente denunciando a angústia face àquilo que o
aguarda [a eternidade] após o instante desta viagem); a dor do
quotidiano.
A segunda estrofe prossegue esta linha de sentido, introduzindo
novos vetores: «Mother of Grace, the pass is difficult, / Keen as
these rocks, and the bewildered douls / Throng it like echoes,
blindly shuddering through. / Thy name, O Lord, each spirit’s voice
extols, / Whose peace abides in the dark avenue / Amid the
bitterness of things occult» (Rossetti, 1870: 259). A transformação,
endógena à estrutura do soneto, introduz, nesta segunda estrofe,
uma subtileza: a ênfase na vida enquanto transição — «the pass»
— enquanto viagem e consequente instante de passagem. O
vocativo prossegue o diálogo afetivo da primeira estrofe; contudo,
a perífrase acentua a dependência do sujeito face à Virgem. O
derradeiro terceto introduz a nova vertente de esperança: o Verbo
é nomeado enfaticamente pela palavra — «Thy name, O Lord».
Nas duas quadras predomina a mesma instância proporcionadora
do diálogo e da esperança, a Virgem: «Mother» e «Mother of
Grace».
Esta representação do feminino em Rossetti envia para dois
níveis possíveis de leitura: os diálogos com a tradição
neoplatónica, recorrente em textos/signos pré-rafaelitas (o universo
medieval insere-se neste contexto); e as idiossincrasias biográficas
constantes nos quadros de Rossetti, através da representação em
diferentes esferas de significação daquela que foi a paixão da sua
vida, Elizabeth Siddal. Consideremos, a este nível, «Beata Beatrix»
(nas palavras de Ford Madox Hueffer, «[…] a lyric; the setting in a
paint of a mood», Hueffer, s.d.: 129) ou «Astarte Syriaca» («The
drugged melancholy […] with all their resigned longing and feeling
for the lost and unattainable, is obviously close to the facts of
Rossetti’s own life, in which the adoration and expression of beauty
was the only possible response to the unbeautiful broodings of his
own mind», Hilton, 1979: 185). De igual modo, o diálogo específico
com Dante participa de uma interação mais vasta com a
simbologia esotérica, na qual se reconhecem ecos neoplatónicos.
Como objetivo final surge uma idealização da representação do
feminino; algo de reconfortante num percurso em que «the pass is
difficult».
Tendo brevemente enunciado as linhas estruturantes em termos
semânticos, observemos o plano do significante. Não será
displicente a este nível considerar a especificidade prosódica
inglesa, nomeadamente a cadência do pentâmetro jâmbico e a
modelação a nível do troqueu. Estamos, por um lado, perante duas
sequências rítmicas (fónicas) a nível do pentâmetro que
correspondem a duas «respirações» distintas da frase; ilustro-as
através de dois celebrados exemplos de frases/versos com estas
sequências:

Como ilustram estes exemplos, no verso jâmbico a sílaba breve


é seguida de uma longa (tónica), enquanto que no troqueu ocorre
o inverso. Esclarecidas as diferenças estruturais e fónicas,
transitemos para uma outra tradição, aquela que é definida pelo
género, a «spenserian stanza», que recorre tradicionalmente a
uma «respiração» sustentada pelo pé jâmbico. Ora, a sequência
rítmica e as eventuais modulações, resultantes de interferência de
pés estranhos numa estrutura predefinida no plano formal, serão
facilmente percetíveis para o inglês (não para um americano, como
Al Pacino com inteligência e humor exemplifica em Looking for
Richard). As interferências poderão eventualmente sinalizar, para
ouvidos mais educados, uma óbvia entropia. Observe-se, então,
como se inicia o poema no plano formal:

O troqueu inicial, acentuando a interpelação, o vocativo,


contrasta, fonicamente, com a sequência ulterior do verso (de
acordo com a modulação métrica jâmbica). As virtualidades
enfáticas do troqueu permitem destacar a interlocutora privilegiada
da confissão do sujeito; de uma confissão que, como referi,
corresponde a uma reflexão acerca da existência. Mas o
significante não se destaca apenas neste plano, já que, a nível
visual, as maiúsculas acentuam a diferença deste signo. Recorde-
se agora a centralidade da Virgem no quadro de Leonardo.
Rossetti poderia optar por uma descrição de cores, volumes,
perspetivas, designações espaciais, para, dessa forma,
«reproduzir» (com enargeia) o quadro. Poderia igualmente recorrer
a estratégias várias que, ao longo dos tempos, se foram afirmando
no seio da tradição écfrástica. Rossetti optou, todavia, por recorrer
a uma estratégia inovadora, ao utilizar os processos próprios da
linguagem poética, das suas convenções e tradições para assim
reproduzir as ênfases mais radicais daquilo que lhe serviu de
impulso; daí a subtileza do troqueu, percetível apenas ao leitor
educado nas singularidades rítmicas do discurso poético anglo-
saxónico.
A estética pré-rafaelita35 exibe um contraponto de consagração
espiritual (que, numa tradição neoplatónica, será indissociável do
Belo) face ao cenário industrial vitoriano, no qual, segundo a
perspetiva destes artistas, contrária à de autores como Whitman, a
fealdade prevalece; nesta estética o transcendente e a
espiritualidade triunfarão sobre o materialismo. Explorando
vertentes quer no plano do significado (as virtualidades simbólicas
do signo e do discurso poético, ou as fábulas transmitidas ao longo
de gerações, devedoras, nomeadamente, do imaginário popular),
quer no plano do significante (a cor e a composição espacial dos
diferentes elementos — signos, narrativas — que integram o
quadro), esta estética consagra a arte como espaço de encontro
com e reconhecimento do transcendente. Esta é uma época de
intensa e radical mudança na interação do sujeito com o espaço e
com o tempo (a velocidade das novas formas de comunicação —
do caminho de ferro ao telégrafo — questiona as fronteiras
convencionais das sociedades rurais arcaicas; questiona o seu
imaginário, a sua realidade), em que a insegurança face ao mundo
emergente não raro desencadeia posturas marcadas pela
ansiedade e pela angústia. Face a este cenário, ao qual acresce a
ausência de resposta por parte dos discursos religiosos
dominantes, compreende-se a assunção da arte enquanto discurso
passível de preencher o hiato por estes deixado.
São frequentes os exemplos desta perceção de um sublime
ancorado no transcendente, por parte da poesia ecfrástica
oitocentista. Devido à pluralidade de textos existentes, escolho
apenas aqueles que podem identificar diálogos concretos neste
âmbito. Começo por «On the Group of the Three Angels Before the
Tent of Abraham, by Rafaelle, in the Vatican», do poeta e pintor
norte-americano Washington Allston, devido ao facto de ele revelar
exatamente a noção da arte como espaço de revelação do
transcendente. Eis como Allston identifica a sua experiência do
encontro com o quadro: «Oh, now I feel as though another sense /
From Heaven descending had informed my soul! / I feel the
pleasurable, full control / Of Grace, harmonious, boundless, and
intense. / In thee, celestial Group, embodied lives / The subtle
mystery […]» (Hollander, 1995: 133). Trata-se, com efeito, de um
instante de revelação que toca o transcendente, embora o mistério
persista. Ora, em «The Intellect Cannot Measure the Divine», o
poeta russo modernista Aleksandr Blok de algum modo resolve
esse mistério ao transportá-lo para um solo, já por si, radicalmente
misterioso, o espaço onírico; fá-lo através da representação de
uma imagem (revelação) devedora da iconografia cristã: «I dreamt
that I saw the Venus of Russia / wearing a heavy tunic once — /
passionless her purity, joyless beyond measure, / a calm vision
lighting her countenance» (Blok, 2000: 25).
Já o poeta modernista colombiano Guillermo Valencia evidencia
uma sensibilidade face à dimensão reveladora que o encontro com
a arte pode significar, idêntica à que havíamos observado em
Allston. No poema intitulado «Melancolía (Grabado del Durero)»,
Valencia entende o signo visual, a composição, o traço, como algo
que despoleta no observador uma experiência onde o
transcendente se insinua; e, todavia, esse observador é o poeta
que, também brevemente, no segundo verso, através da falácia
patética, enuncia essa revelação: «Oh vagos matices / de
lánguidos grises / que ahutentan la calma / si invaden el alma! / Oh
dolor sincero / de la Fantasía! / Oh Melancolia / de Alberto Durero!
// Quadro que despiertas / las visiones muertas / que forjó el
Anhelo / para mi consuelo, / simbólica mano / con líneas febriles /
trazó en tus perfiles / al Género humano!» (Valencia, 1995: 76).
Sensivelmente coincidente no tempo uma outra perceção algo
singular quer pela estratégia de representação enunciada
(fotografia), quer pelo olhar que o perpassa, da presença do anjo,
surge em «Os anjos da meia-noite», uma sequência poética da
autoria do poeta e dramaturgo brasileiro Castro Alves36,
originalmente publicada em 1870. Subintitulada «Fotografias», esta
sequência encontra-se dividida em oito partes/sonetos — «1.ª
sombra», «2.ª sombra», et seq. —, cada uma das quais é
«explicitada» através de uma designação: Marieta, Bárbara, Ester,
Fabíola, Cândida e Laura, Dulce e Último Fantasma. O subtítulo
introduz um horizonte de expectativas associado à filiação no real,
algo que, nas suas origens, a fotografia indiciava. Contudo, logo
nos versos iniciais o leitor é confrontado (surpreendido?) com uma
atmosfera algo alucinatória, eventualmente devedora de um
imaginário ultrarromântico: «Quando a insónia, qual lívido vampiro,
/ Como o arcanjo de guarda do Sepulcro, / Vela à noite por nós / E
banha-se em suor o travesseiro» (Alves, 1921: 154).
A dimensão alucinatória impõe-se gradualmente até invadir por
completo o texto: «Almas, que um dia no meu peito ardente /
Derramastes dos sonhos a semente, / Mulheres, que eu amei! /
Anjos louros do céu […] / Surgi! aparecei // Vinde, fantasmas! / […]
/ E no éter, que em notas se perfuma, / As visões s’alteando uma
por uma, / Vão desfilando assim!…» (idem: 155). E assim vai-se
configurando uma Galeria de visões/memórias das amantes
entretanto desaparecidas que culminará na «8.ª Sombra», o Último
Fantasma, aquela que, qual cliché ultrarromântico, se confunde
com a morte: «Quem és tu? Quem és tu? — És minha sorte! / És
talvez o ideal que est’alma espera! / És a glória talvez! Talvez a
morte!…» (idem: 162). Estamos, portanto, bem longe de uma
reprodução rigorosa do real que a fotografia possibilitaria; estamos,
sim, em pleno domínio algo gótico do supernaturalismo vitoriano,
em particular da chamada spirit photography, que terá tido a sua
origem na década de 60 do século XIX — recorde-se que Espumas
flutuantes, de Castro Alves, data de 1870 — e que supostamente
registaria a imagem de espetros, ou espíritos.
Como se pode constatar através dos exemplos que tenho vindo
a mencionar ao longo desta secção, o mistério em torno do
referente é algo de recorrente que se expressa em diferentes
modalidades. Uma delas, como acima observámos, será a do
mistério da sua própria identidade. Robert Browning faz desta
dimensão o impulso estruturante para «The ‘Moses’ of Michael
Angelo» quando, logo nos versos iniciais, interroga: «And who is
He that, sculptured in huge stone, / Sitteth a giant, where no works
arrive / Of straining Art, and hath so prompt and live / The lips, I
listen to their very tone?» (Hollander, 1995: 163). Segue-se a sua
identificação — «Moses is He» — e a consequente compreensão
do modo como foi figurado — «Ay, that, makes clearly known / The
chin’s thick boast, and brow’s prerogative / Of double ray» (idem).
Apesar de se tratar de um soneto, o poema é marcado pela
tonalidade coloquial de um monólogo que simula o instante
concreto em que o poeta observa e interpreta a estátua; deste
modo, o poeta cria um simulacro, o de que o leitor está presente e
partilha aquele momento de revelação. Os detalhes do corpo
evidenciam-se, então, como um ponto de chegada na leitura,
decorrente da identidade histórica da personagem, da sua
ancoragem bíblica.
Se os detalhes surgem em «The ‘Moses’ of Michael Angelo»
como instante de chegada, já em «El Cristo yacente de Santa
Clara (Iglesia de la Cruz) de Palencia», de Miguel de Unamuno,
eles são o ponto de partida. Neste poema Unamuno exibe a
singularidade da vivência e da construção — coletiva e individual
— do sagrado: «De su boca entreabierta, / negra como el misterio
indescifrable / fluye hacia la nada, / a la que nunca llega, /
disolvimiento. / Porque este Cristo de mi tierra es tierra. / Dormir,
dormir, dormir…, es el descanso / de la fatiga eterna […]»
(Unamuno, 1980: 70-71). Ora, esta vizinhança de uma realidade
antropológica pode ganhar uma dimensão mais radical quando o
referente é o sujeito corpóreo, físico, como sucede no poema de
Anthony Thwaite «At the Shrine of Santa Zita».
Impulsionado pela presença do corpo mumificado de Santa Zita
— padroeira das empregadas domésticas, depositado num
relicário na Basílica de São Frediano, em Lucca —, o poema
questiona a representação do corpo em si; isto é, tendo sido esta
mulher alguém cuja santidade foi reconhecida pela sua devoção às
pequenas rotinas do quotidiano — os afazeres da casa que, pela
sua entrega, ganhou a dimensão de lar —, então seriam algo
anacrónicas as vestes com que hoje é venerada: «Odd at first sight
that you should be presented / Thus, like a girl dressed for her
confirmation, / Weary of miracles» (Thwaite, 1989: 138). Do signo
que figura, ao ser figurado, é todo um solo de possibilidades de
convocação do sagrado que aqui se evidencia. Daí a própria
dimensão pedagógica do objeto na identificação da pluralidade de
percursos para identificar a presença de Deus ou do… Com efeito,
em «Icone. Insegnare la bruttezza» que integra a segunda parte —
«Un museo interiore» — de La vita dei dettagli — Scomporre
quadri, immaginare mondi, Antonella Anedda convoca Simone Weil
e Elizabeth Bishop para defender a radical ligação entre atenção
estética e reconhecimento do Mal: «[…] scrive Simone Weil: ‘ogni
volta che facciamo attenzione distruggiamo il male in sè’.
L’attenzione permette di vedere nitidamente: ‘Watch it closely’ […]
è l’invito in una poesia di Bishop intitolata The Monument»
(Anedda, 2009: 94). É neste espaço entre, neste entre-Tanto, que,
segundo Anedda, o ícone exerce a sua função, pois ele não é algo
de intransitivo, um fim (estético) em si, mas antes algo de
transitivo, algo que reconhece uma essência, esse Tanto: «L’icone
non disrae, non consola con la bellezza, ma acoglie il mondo
attraverso la materia» (idem: 95).
Que horizonte de expectativas se coloca, porém, quando alguém
se situa no limiar, nesse instante de fronteira, antes de penetrar no
interior desse lugar de simultâneo recolhimento e abertura para
esse Outro que em nós habita? Num poema que deve o seu título
a uma igreja em Veneza, San Giorgio Maggiore, Yves Bonnefoy
exibe o encontro com esse que, para o crente, será o espaço de
reconhecimento do sagrado; fá-lo, todavia, através de um olhar
marcado pela dúvida, pela incerteza: «Se peut-il que derrière ces
façades / […] / Il n’y ait qu’une suite de salles sombres, / L’une
ouvrant sur une autre, à l’infini?» (Bonnefoy, 2014: 119). Um olhar
bem diferente, portanto, daquele que Cernuda exibe em
«Atardecer en la catedral», pois, neste caso, o trânsito, a viagem,
ocorre não na direção de algo que jamais se alcança — algo que
pode até não existir — mas sim ao encontro da proteção que se
desvenda no pai (Pai): «Entre en la catedral, ve por las naves altas
/ De esbelta bóveda, gratas a los pasos / Errantes sobre el mármol,
entre columnas, / Hacia el altar, ascua serena, / Gloria propicia al
alma solitaria. // Como el niño descansa, porque cree / En la fuerza
prudente de su padre» (Cernuda, 1990: 80). Já em «La catedral de
Barcelona», de Miguel de Unamuno, a tensão entre luz e sombra
dá corpo ao mistério que constituiu a experiência de encontro com
o transcendente e com uma noção de tempo cristã: «es solo
sombre, / sombre cuajada en formas de misterio / entre la luz
humilde que se filtra / por los dulces colores de alba eterna»
(Unamuno, 1980: 26).
No entanto, mesmo não sendo o locus próprio do sagrado — a
igreja, ou ícone, isto é, realização desse sagrado, mesmo sendo
um registo de uma banal cena do quotidiano, o quadro pode
funcionar como espaço desse entre-Tanto conceptualizado pelo
teólogo José Frazão Correia, s.j., num diálogo com William
Desmond37. Jessica Powers, poeta carmelita, reconhece essa
dimensão em «Millet’s ‘Feeding Her Birds’», um poema em que o
quadro — um fragmento narrativo em que uma mulher (Mãe)
alimenta os seus três filhos — afirma-se como impulso pedagógico
para um reconhecimento da presença do sagrado no quotidiano;
mais correto será dizer, no quotidiano da poeta: «Millet the artist
has provided me / with all I ask for in biography. // These children
and the mother and a bowl — / here is the scene which
circumscribes my soul. / […] / Her peasant childhood motivates my
will / to take my given portion and be still; // or if there must be
words, to speak none other / than: O my Mother God, my God and
Mother» (Powers, 1996: 138). Jessica Powers de algum modo
antecipa as palavras de José Frazão Correia, s.j., quando refere
que «a fé-na-fronteira regenera um modo de proceder […] o ritmo
de um corpo vivo, marcado pelo discernimento espiritual, […], sob
as condições biográficas e culturais dos diferentes tempos e
lugares» (Correia, 2014: 88). No registo de um simples episódio
quotidiano Millet proporcionou a Powers esse espaço de fronteira
onde ela identificou um modo de proceder que é também um
instante especular no plano biográfico.
Antes de progredir na análise da presença desse espaço
radicalmente ligado ao sagrado que é a igreja no diálogo entre
palavra e imagem, menciono ainda um encontro a esse nível num
tipo de ritual muito concreto, o casamento. Convoco para isso,
«Religious Painting», da poeta britânica de origem paquistanesa
Moniza Alvi. Embora o título sugira a écfrase, os versos iniciais
enviam-nos para o quotidiano, para o referido ritual: «On the day of
our marriage / the angels were fearful and hid // below the unreal,
stippled water. / The youth who held steady on a platter // the head
of John the Baptist gazed at us — / and the ox was purely
astonished» (Alvi, 2008a: 115). Ao não estabelecer uma fronteira
entre uma obra de arte e o evento quotidiano, Alvi concebe uma
atmosfera algo ambígua, como se um instante transcendente fosse
vivenciado. No fundo, regista-se uma espécie de alheamento das
personagens que deveriam estar imersas no ritual e que, em
contrapartida, persistem num estado de absorção, deixando o seu
olhar e a sua atenção divagar pela diversidade (artística e
paisagística) que os envolve: «As the priest read from a heavy
book // my wife listened intently, swished / her peppermint green
sleeves. // Turned from me to contemplate / the extremities of the
landscape» (idem).
Tomemos, então, a presença do tópico igreja neste diálogo entre
a palavra e a imagem. Recorro a «Strasbourg», um poema de Paul
Claudel, escrito em 1913, para iniciar esta reflexão, visto ele
sintetizar diferentes vetores em que esse diálogo é suscitado por
aquele signo. Será legítimo mencionar a écfrase neste contexto,
nesta evocação/descrição do objeto que a catedral é? Sim, como
lembra o legado clássico onde esta estratégia de enunciação se
centrava em monumentos ou edifícios outros, embora devamos
ampliar este conceito de modo a acolher nos seus atributos
descritivos, não apenas a factual reprodução do referente, mas
também aquela que decorre da experiência da fé. Vejamos como.
Observemos os versos iniciais: «La Cathédrale, toute rose entre
les feuilles d’avril, comme un être que le sang anime, à demi
humain, / Le grand Ange rose de Strasbourg qui est debout entre
les Vosges et le Rhin» (Claudel, 1970: 48).
A «poética do corpo eclesial» (Correia, s.j., 2014: 143) que
integra o imaginário cristão, e o católico em particular, implica um
reconhecimento específico daquele referente artístico que participa
do sagrado, e das suas virtudes enquanto índice de Algo. A
experiência do encontro com esse espaço indiciador que a igreja é,
decorre, assim, para o crente, não apenas de alusões aos textos
sagrados suscitadas pelos signos que lhe dão corpo, mas também
de texturas mais impositivas como a pedra, ou mais volúveis e
fluidas como a luminosidade que se altera de acordo com
circunstâncias cósmicas ao longo do dia, ou dos meses. Todos
estes elementos dificilmente descritíveis e, todavia, reais se
inscrevem na realidade objetal da igreja.
Interrompo esta meditação para convocar um poema de Federico
García Lorca que se detém sobre as circunstâncias do lugar que
precedem e integram o espaço ritualístico do sagrado. Lorca atribui
a essas circunstâncias uma ênfase particular em «San Miguel
(Granada)», através de um recurso subtil à hipotipose e à écfrase;
mais correto será dizer que Lorca utiliza a hipotipose de modo a
preparar o solo a partir do qual, num processo de diluição (fade-in),
irá emergir a écfrase. Nos versos iniciais, a hipotipose abre
grandes planos através dos quais se desvenda a singularidade do
espaço — «Se ven desde las barandas, por el monte, monte,
monte, / […] // Un cielo de mulos blancos» (Lorca, 1957: 100). Só
depois a écfrase se impõe — «San Miguel, lleno de encajes / en la
alcoba de su torre, / enseña sus belos muslos, / ceñidos por los
faroles. / Arcángel domesticado / en el gesto de las doce, / finge
une cólera Dulce / de plumas y ruiseñores. / San Miguel canta en
los vidrios […]» (idem: 101) —, para logo também ela se diluir e
dar de novo lugar à hiopotipose — «El mar baila por la playa»
(idem). Assim se configura a radicalidade do lugar do qual o signo
do sagrado participa.
Regressemos a Claudel. Embora não descrevendo
sistematicamente a catedral de Estrasburgo, Claudel enfatizará
elementos vários — por exemplo, «la porte du Saint-Lieu / Comme
cette figure sous le porche latéral qu’on appelle la Synagogue!»
(Claudel, 1970: 51) — que permitem uma convocação visual do
objeto enquanto espaço de mediação com Deus. A enargeia
revela-se, deste modo, numa dimensão não mencionada na
etimologia da écfrase clássica. Afinal, «de quel soleil au dehors ces
feux sont-ils des reflets?» (idem: 49).
Com efeito, a entrada numa igreja, o (re)encontro com espaços
arquitetónicos que lhe são próprios, não é indissociável de uma
experiência estética, à qual não será estranha a intensidade com
que os sentidos percecionam o que de especial o lugar encerra.
Nesse sentido importa não esquecer quão relevante é a
especificidade do lugar de culto, da tradição cristã em que se
insere, para a verbalização poética. Em «Na igreja» Konstandinos
Kavafis revela a singularidade de uma estética, de uma cenografia
ritualística que é simultaneamente uma experiência própria do
sagrado nas igrejas do Oriente38. Antes de vos deixar o poema,
creio ser pertinente reproduzir uma nota na qual Joaquim Manuel
Magalhães e Nikos Pratsinis esclarecem o significado concreto que
«grego» assume neste contexto. Segundo eles, «aqui implica-se a
identidade religiosa dos gregos enquanto cristãos ortodoxos»
(Magalhães e Pratsinis, 2005: 424). Fica assim esclarecida a
minha referência às igrejas do Oriente.
Porque este é um espaço com que o leitor poderá não estar
familiarizado, transcrevo igualmente uma nota dos tradutores
relativamente a um signo referido no poema: «hexaptérigos —
ligados ao ritual litúrgico, formados por varas de madeira em cuja
extremidade está colocada uma insígnia dourada que representa
os rostos dos serafins com seis asas. Normalmente ladeiam o
altar, mas podem ser levadas em momentos especiais da missa ou
em procissões» (idem). Eis, então, o poema:
Amo a igreja — os hexaptérigos dela,
as pratas dos objetos litúrgicos, os enormes castiçais dela,
as luzes, os ícones dela.

Quando entro aí, numa igreja dos gregos;


com os incensos dela de fragrâncias tais,
com as polifonias e as vozes rituais,
as majestosas presenças sacerdotais
e o ritmo sério de cada um dos seus movimentos —
magníficos no adorno dos paramentos —
a minha mente vai para grandes honras da nossa raça,
para o nosso Bizantinismo de gloriosos momentos.

[Idem: 109]

Que o encontro com o sagrado decorre da imersão numa


sensibilidade cultural, histórica, antropológica mesmo, eis o que
estes versos iluminam; uma imersão que permite ao sujeito
superar a dualidade entre o aqui e o ali, a tal estrutura telescópica
que, segundo Mario Praz, pode persistir no interior da própria
igreja (Praz, 2007: 166).
Idêntica sensação de impacto e imersão encontra-se em
«Navidad según Giotto — Cappella degli Scrovegni», de Narcís
Comadira. O poema segue uma estrutura de enunciação devedora
da écfrase, através de um registo algo elíptico durante o qual são
mencionados os diferentes signos/actantes desta narrativa bíblica,
a Natividade, claro. Todavia, a dimensão narrativa parece ser
sabotada em termos prosódicos através de uma evidente
economia verbal que simula a erradicação do movimento; são
apenas as figuras que despontam: «Está el buey, y la mula, / y
también el pesebre; / Sanjosé, pensativo, / cara al espectador; / un
rebaño de ovejas / y una cabrita parda, / dos pastores de
espaldas» (Comadira, 2015: 301). O poema prossegue num tom
que simula uma quase neutralidade de registo, até aos versos
finais, onde, com a introdução do impacto que o objeto tem no
espectador, com o pathos, ocorre uma transformação: «Todo está
detenido / en un momento eterno. / Lo miran nuestros ojos /
pasmados, y una lágrima / se va formando, cálida, / aquí, en el
corazón de nuestro invierno» (idem: 303).
Neste caso o poema exibe um percurso que irá culminar numa
intensa experiência interior. Algo de oposto pode ocorrer em «El
David de la Catedral de Salisbury» (cf. figura 23), de outro poeta
catalão, Marià Manent, onde o transcendente é indiciado na
palavra que abre o poema; uma palavra que parece contrariar a
materialidade da pedra, para logo prosseguir numa aparente
neutralidade que, simultaneamente, é tensão entre a densidade do
elemento e a dimensão diáfana que dele emerge devido ao génio
do artista/artífice que o concebeu: «Aéreo, en el gris de la piedra,
en el viento, / entre los gritos de los grajos irónicos, te inclinas, /
ensimismado sobre el harpa, a la música ardiente. / Pero una
hierba tiembla sobre las cuerdas finas. // Ahora es verde y menuda
esta arpa, que lleva / hasta tu cuerpo mineral una trémula savia /
del junio soleado y feliz, mientras / escuchas, y quién sabe si una
abeja te ha besado» (Manent, 2013: 33).
Ainda que não mencionado, o artista, enquanto artífice, subjaz a
esta representação; a arte do trabalho da pedra é, desde logo, um
longo processo de aprendizagem até que o inefável se possa
libertar da solidez material. Em Entre o céu e a terra, Rui Chafes
associa esse processo de aprendizagem a uma luta pela conquista
dos detalhes: o «sorriso dos anjos», «os cabelos e as mãos dos
Santos» em obras de Riemenschneider (Chafes, 2012: 19), a
cicatriz no Túmulo de Louis XII e Anne de Bretagne (idem: 23), a
«difícil tarefa de executar a mão de Catarina de Médicis» (idem:
24) no Túmulo de Henri II e Catarina de Médicis, «a tarefa de
esculpir a ferida aberta no pescoço degolado da Santa Cecília»
(idem: 27).
Devido às suas representações de narrativas e/ou signos
religiosos, a igreja pode funcionar assim como instante mnemónico
de representações. Mas o efeito menmónico não se confina a
representações pretéritas; ele pode funcionar também como
evocador de experiências (vivências) pessoais pretéritas do
sagrado, como instante autobiográfico, portanto. Miguel de
Unamuno exibe essa dimensão em «En la basílica del Señor
Santiago de Bilbao»; veja-se como o signo despoleta uma
revisitação do passado autobiográfico: «en tus rincones / brotó mi
alma de entonces y a cantarme / tus piedras se pusieron mis
recuerdos / de anhelos íntimos. // Bajaron compasivas de tus
bóvedas / las oraciones de mi infancia […] // […] debajo de la
imagen de la Virgen / me alumbró el corazón […]» (Unamuno,
1980: 31).
É nesta pluralidade de sentidos que a arte é reconhecida pelo
poema que com ela se confronta. Com efeito, já o crítico de arte
John Ruskin considerara que a intensa absorção de Turner no
mundo natural poderia ser entendida como sacramento e que a
sua pintura era um ato de absorção religiosa (Cheeke, 2008: 173).
Assim se compreende que a arte possa funcionar como impulso
que leva o poeta a questionar os desígnios de Deus, como em
«The Man with the Hoe — written after Seeing the Painting by
Millet», de Edwin Markham, outrora poeta laureado do estado do
Oregon; e que o Museu possa preencher um vazio deixado pela
ausência do discurso religioso, emergindo como espaço do
sagrado (Loizeaux, 2008: 33). Por seu turno, o poeta russo Arseni
Tarkovsky identifica na própria estrutura de um quadro de Paul
Klee o solo onde se indicia uma figuração do sagrado; uma
figuração radicada na dimensão indiciática — «A wing, the crown
of a head — / The Angel of Death» (Chandler, 2015: 404) (uma
eventual abstração?), visto este ser um domínio que não pode ser
representado literalmente — «He never intended his sketches / to
be like passport photos» (idem: 403).
Uma nova forma de expressão artística irá funcionar como
actante privilegiado no preenchimento dessa; refiro-me, como é
óbvio, ao cinema. «Mae Marsh», de Vachel Lindsay (cf. figura 24),
ilustra exemplarmente o modo como o cinema e os seus ícones
como um novo solo do sagrado — «She is madonna in art»
(French e Wlaschin, 1993: 33). Uma dimensão crepuscular, quase
apocalíptica, insinua-se neste poema, neste «Ozymandias» da
modernidade: «when ancient films have crumbled». Não raro, aliás,
o cinema parece adquirir esse estatuto de convocação e revelação
do sagrado. Daí o seu constante revisitar por parte da poesia que,
apesar de elipticamente, deve ser mencionada.
Começo com Frank O’Hara que, em «An Image of Leda»,
através de um diálogo intertextual com o mito, exibe a dimensão
revelatória do cinema: «The cinema is cruel / like a miracle. We / sit
in a darkened / room asking nothing / of the empty white / space
but that it / remain pure. And / suddenly despite us / it blackens.
Not by / the hand that holds / the pen. There is / no message. We
our- / selves appear naked / on the river bank / spread-eagled while
/ the machine wings / nearer» (idem: 314). Neste poema é uma
quase experiência de alegoria da caverna platónica que se
recupera, ou seja, a do público que, na sua singularidade
individual, prevalece.
Outra dimensão religiosa da sétima arte está associada no
imaginário popular à função do artista. John Hollander aborda-a
em «To the Lady Portrayed by Margaret Dumont», onde é a
personagem criada que surge, em detrimento da atriz, embora seja
a esta que está reservada a convocação do transcendente:
«Death, be not bowed by that solidity / But bear her ever upward,
cloud by cloud, / To where she sits, with vast solemnity, /
Enthroned; and may we, some day, be allowed / If not a life of
constant flight there, then a / Glimpse of that fierce green land of
mink and henna» (idem: 188).
Radicalmente irónica face a esta elevação a um estatuto
sagrado, reminiscente de uma certa ética puritana, será «Miss
Scarlett, Mr Rhett and Other Latter-Day Saints», de Maya Angelou.
A sabotagem de uma sensibilidade épica subjacente a E tudo o
vento levou, é desde logo indiciada no título do poema. A História
da América — a escravatura —, justapõe-se à História da Arte —
«bas-relief», «frescoes» —, insinuando a presença do Ku Klux
Klan através de uma legitimação religiosa que culmina na
derradeira ironia, a desmontagem da visão/resolução
melodramática do filme: «(O Sing) / Hallelujah, pure Scarlett /
Blessed Rhett, the Martyr» (idem: 296).
Trata-se, portanto, de um solo fértil pela sua exibição de sentidos
e pela sua capacidade de suscitar diálogos onde se convoca a
pluralidade de posturas face à presença do sagrado no quotidiano
contemporâneo. Consequentemente, o sagrado pode ser
identificado nos momentos mais inesperados; para quem foi
educado numa memória estética clássica, tal pode ocorrer, por
exemplo, quando o lar se configura como reminiscência do oikos.
Em «San Sepolcro», Jorie Graham ilustra esta dimensão: «This / is
my house, // my section of Etruscan / wall, my neighbor’s /
lemontrees, and, justo below / the lower church, / the airplane
factory.» E mais adiante: «It is this girl / by Piero della Francesca,
unbuttoning / her blue dress, / her mantle of weather, / to go into//
labor» (Graham, 1983: 2). E graças a uma memória o distante faz-
se próximo.
É ainda esse reconhecimento do sagrado no encontro com o
quotidiano que prevalece em Venti poesie per Pietro Parigi, de
Angela Zagari. Nesta obra, a poeta estabelece um diálogo com
várias obras do xilógrafo italiano ao longo de quatro secções
temáticas — cinque temi poveri, sei temi religiosi, due temi
popolari, sette temi letterari. Na écfrase «La Fame del Povero» é
todo um imaginário cristão que a poeta desvenda na gravura de
Parigi; um imaginário que nela sedimenta a relação, o olhar sobre
o outro: «A quest’uomo con una bocca troppo grande / come una
sacca da pienare / darei pane e acqua, / vino della celebrazione e
della vita / che a occhi chiusi ingurgita / come I poveri della sua
miseria» (Zagari, 2001: 16).
Nos poemas sobre temas religiosos, a voz, ao desvendar a
gravura, desvenda-se, fazendo da écfrase uma experiência de vida
cristã; por exemplo, «Cristo alla Collona» compreende a
experiência de Cristo, visualizada nos traços de Parigi, através da
sua própria experiência pessoal; a exaustão de Cristo também a
ela se deve: «Ti uccido tutti I giorni e mi pento di mia demenza /
mentre ti guardo indiferente / tu appoggiato angosciato / al pilone a
cui Caifa e Pilato / ti appicceranno a giudicare peccati di rei come
me / muti nella vigliaccheria d’irriconoscenza a Cristo» (idem: 24).
A própria experiência do tempo cristão ecoa em «Resta con noi
perché si fa sera», onde o encontro em Emaús, através da voz do
poema, se transforma numa experiência passível de ser vivida por
cada um de nós: «ecco perché potrete dire d’avermi rivisto sulla
strada a Emmaus / e in futuro… io sarò con voi per sempre / sino
alla fine del mondo» (idem: 26).
Quão diferente é esta ancoragem na fé, daquela que Ana Luísa
Amaral exibe numa convencional representação iconográfica
patriarcal; é esta que desponta na memória pessoal, em
«Iconografias»: «As barbas que recordo do passado / são as de
Deus sentado / numa nuvem, em moldura dourada / e transversal.
/ […] / Ah! que ao menos na nuvem, / no mesmo patamar: / a face
da mulher!» (Amaral, 2005: 267). Como evidencia Ana Luísa
Amaral, a representação não é imune às circunstâncias de espaço
e de tempo, deste modo legitimando as leituras críticas da tradição
em que nos movemos. Leituras críticas estas que podem assumir
uma radical denúncia de uma certa vivência do sagrado, como na
paródia da poeta espanhola Gloria Fuertes em «Virgen de
plástico»: «su manto de nylon / y la corona eléctrica, / con pilas en
el pecho / y una sonrisa triste» (Persin, 1997: 92). Participando de
uma indústria do sagrado, a Virgem surge «[en] las vitrinas de
todos los comercios / y en los sucios hogares de los pobres
católicos» (idem: 93). Não é, todavia, o rico tópico da sátira que
nos interessa nestas páginas, pelo que devemos regressar ao
fluido solo onde a palavra desvenda o sagrado quando vai ao
encontro da imagem.
Jean Starobinski ajuda-nos a iluminar este complexo estatuto da
arte e, consequentemente, do diálogo que o poeta com ela
desencadeia, no ensaio intitulado «La poésie, entre deux mondes»
que abre a coletânea Poèmes, de Yves Bonnefoy. Neste texto,
Starobinski procede a um diagnóstico onde identifica um dos
grandes percursos da poesia moderna, aquele que entende o seu
estatuto privilegiado enquanto verbalizador de um sentido outrora
reservado ao domínio exclusivo do sagrado. Terá este, então,
desaparecido? Responde Starobinski: «Le sacré, s’il ne doit pas
disparaître, se réfugie dans l’expérience ‘intérieure’, se lie à l’acte
de vivre, à la communication, à l’amour partagé — et prend ainsi
pour demeure le sensible, le langage, l’art. Telle est, me semble-t-il,
la condition paradoxale où se trouve la poésie depuis moins de
deux siècles: condition précaire [...]» (Starobinski, 1982: 10-11).
Yves Bonnefoy, um dos poetas contemporâneos para quem a
presença da arte num quotidiano criativo é mais intensa39, ilumina
a dimensão sinalizada por Starobinski em «Chappelle Brancacci».
Antes de convocarmos o poema, talvez seja pertinente explicitar
dois conceitos nucleares para a poética de Bonnefoy; são eles o
de presença e o de imagem. Cito a obra de Anja Pearre onde colhi
esta precisão:

Le mot «présence» implique l’ouverture du sujet conscient à


l’altérité, à «ce qui est», tandis que l'«image» évoque ce que
Baudelaire identifiait comme sa passion, et à laquelle il vouait un
«culte», mots qui accusent le point de vue subjectif. L’image,
selon Bonnefoy, c’est ce qui se compose d’un choix de fragments
d’apparence qui tendent à se constituer en un monde plus
cohérent, plus beau, plus attachant, ou au moins plus
convaincant que le monde réel. [Pearre, 1995: 1-2]

Regressarei em breve a este passo. Para já proponho-lhe a


leitura do poema de Bonnefoy:

Veilleuse de la nuit de janvier sur les dalles,


Comme nous avions dit que tout ne mourrait pas!
J’entendais plus avant dans une ombre semblable
Un pas de chaque soir qui descend vers la mer.
Ce que je tiens serré n’est peut-être qu’une ombre,
Mais sache y distinguer un visage éternel.
Ainsi avions-nous pris vers des fresques obscures
Le vain chemin des rues impures de l’hiver.

[Bonnefoy, 1982: 108]

Por mais estranho que pareça, ao ler este poema não consigo
deixar de recordar o poeta da Escola de Nova Iorque Frank
O’Hara. Tão distante que ele está desta estética, o que me leva a
evocá-lo? Com efeito, tal como para O’Hara, também para
Bonnefoy a arte não significa esse espaço de inevitável alteridade
face ao qual o artista mantém uma relação de reverencial
distância. Para ambos a arte é uma presença natural que ilumina o
quotidiano; alteridade, sim, mas que integra o sujeito, participando
da compreensão do mundo e, obviamente, do ser. Regressemos
ao poema.
O referente, a capela Brancacci, é parte integrante da igreja de
Santa Maria del Carmine, em Florença. Começou a ser pintada por
Masolino da Panicale em 1424, tendo nela posteriormente
intervindo Filippino Lippi e Masaccio. São ali expostas narrações
de episódios do Antigo Testamento, como a tentação de Adão e a
expulsão deste e de Eva do Paraíso, e do Novo Testamento, como
a crucificação de São Pedro. Apesar da abundância de narrativas
ali existentes, o poeta não procede a uma écfrase desse espaço
tão rico no plano imagético, nem sequer de um fragmento seu.
Para alguém que, como ele, a arte integra radicalmente o
quotidiano, distinto será o olhar que ele concebe. Curiosamente,
nele aparece como nuclear o caminho, quer o caminho que se
percorre fisicamente — «Ainsi avions-nous pris vers des fresques
obscures» —, quer o caminho que se constrói, desvenda,
interiormente, numa identificação da imagem — «Mais sache y
distinguer un visage éternel».
Com José Frazão Correia, s.j., podemos então dizer que, afinal,
esse caminho «corresponde bem ao espírito de trânsito, ao mesmo
tempo, ligeiro e dramático, que caracteriza o nosso tempo»
(Correia, 2014: 95). Com efeito, esta noção de viagem, de trânsito,
perpassa a obra do escritor francês, não apenas a sua poesia,
como referi, mas também os seus ensaios, ou os seus escritos de
intencionalidade mais autobiográfica como L’Arrière-pays. Ainda
com O’Hara em mente, interessante será sinalizar apenas —
porque o espaço não permite ir mais longe — a peculiaridade do
conceito de autobiografia, nomeadamente o facto de ela se situar
no tal solo instável do qual memória, reflexão teórica e episódio de
vida participam. Em ambos estes criadores a teoria não é uma
entidade de distante, um compartimento estanque no seu percurso
quotidiano, mas antes algo que emerge naturalmente do olhar
sobre esse mesmo quotidiano. Daí que o sujeito se conceba como
viajante — no espaço e no tempo, daí a centralidade da memória40;
um sujeito marcado, portanto, pelo tal «espírito de trânsito». E será
assim que esse encontro com o quadro, possui uma dimensão
epifânica.
Na sequência de uma reflexão em torno do Moisés de Poussin, o
poeta/ensaísta/autobiógrafo transita para um olhar sobre Father
Time, outro quadro, desvendado noutro local, e confessa: «Moi […]
rivé à cette vitrine, fasciné, je n’excluais pas une autre hypothèse.
Peut-être, me disais-je, […] ce mécanisme marque-t-il, par le
vouloir de son horloger, le temps vrai celui que nous n’osons
concevoir, le temps qui a des hésitations (ou des failles), suspens
qui sont notre chance toujours perdue, surcroît de la précision que
l’on dirait, seraient-ils vécus, des miracles. […] Le souvenir du
canal m’était alors revenu» (Bonnefoy, 2005: 89-90). A
circunstância biográfica é, deste modo, contaminada por um
registo algo subconsciente marcado pela experiência (e pela
revelação) estética, como implicações no próprio processo criativo,
como muito bem assinala Jean-Pierre Jossua: «[…] ces images
agissent de façon non consciente sur la création du poème» (idem:
134). Tanto num plano consciente, como num subconsciente,
aquilo que referi como experiência estética é algo que se inscreve
na produção do texto e que, como se pôde observar através de
«Chappelle Brancacci», não se confina à écfrase convencional,
antes amplia este conceito.
Todas as dimensões acima mencionadas — écfrase,
circunstância biográfica, interiorização estética, formação do olhar
— podem ser reconhecidas logo na primeira vez que um quadro é
explicitamente designado num livro de Bonnefoy. Tal ocorre em
Pierre écrite, e o poema tem por título «Sur une pietà de Tintoret».
Já aqui se nota um traço central na forma como este poeta
convoca a sua experiência estética de encontro com o signo visual,
ou seja, a da recusa de ensaiar a reprodução pela palavra desse
signo, optando antes por uma verbalização do profundo significado
estético e ontológico que significa esse encontro. Para que o leitor
possa ter uma perceção nítida do que refiro, transcrevo este breve
poema:
Jamais douleur
Ne fut plus élégante dans ces grilles
Noires, que dévora le soleil. Et jamais
Élégance ne fut cause plus spirituelle,
Un feu double, debout sur les grilles du soir.

Ici, / Un grand espoir fut peintre. Oh, qui est plus réel
Du chagrin désirant ou de l’image peinte?
Le désir déchira le voile de l’image,
L’image donna vie à l’exsangue désir.

[Bonnefoy, 1982: 247]

A experiência estética e ontológica, particularmente intensa nos


versos iniciais, é aqui indissociável de um reconhecimento de uma
alteridade que ilumina uma nova possibilidade de futuro, aquela
que decorre do reconhecimento da esperança. O encontro com a
morte, não uma morte qualquer, mas a de Cristo, aponta assim um
novo sentido para a vida. É mais nessa descoberta do sentido,
decorrente de uma cultura ancorada no encontro com instantes
relevantes da tradição artística em que nos movemos, do que
numa mera descrição, que a poesia de Bonnefoy afirma a sua
singularidade. No centro dessa singularidade persiste a arte, e a
emoção intelectual que o seu impacto pode e deve ter no
indivíduo. Estes versos exibem ainda a relevância de uma estética
da representação, da singularidade que subjaz a uma forma de
expressão artística. Outros poetas abordaram esta dimensão no
âmbito específico do diálogo com o sagrado. Sinteticamente
menciono apenas quatro, através dos quais podemos identificar
estratégias específicas a este nível.
Começo pelo poeta norte-americano Anthony Hecht. Em «At the
Frick», Hecht ecoa o conceito lessinguiano de artes do espaço
para meditar sobre a relevância que assume a escolha de uma
fatia de tempo de uma narrativa algo extensa; fá-lo ao destacar a
opção do pintor, graças à qual é todo um contexto que assim se
pode enfatizar esteticamente. Observemos esses versos: «Before
a grotto of blue-tinted rock / Master Bellini has set down St.
Francis. / A light split through the Apennines to lock, / Counter, and
splice man’s painful doubleness […]» (Hollander, 1995: 259). É,
deste modo, na atmosfera que se começa a pre-sentir a presença,
a ambiência, do sagrado.
Por seu turno, o poeta canadiano Daryl Hine centra-se, em
«Untitled», na importância que assume a composição para a
leitura. Embora já tenhamos observado este aspeto, refiro-o agora
devido ao facto de, neste exemplo, a composição participar do
modo como o sagrado se insinua. Este poema é uma écfrase do
díptico intitulado Calvário, de Rogier van der Weyden, no qual se
destacam três figuras: à direita, Cristo crucificado; à esquerda, a
Virgem e «the disciple Jesus / loved» (idem: 307). Não será tanto
na forma algo inesperada como Cristo é representado — «not /
nailed to his cross but pinned there» —, que Hine desvenda um
sentido subliminar, mas sim no caráter insubstancial que perpassa
a figuração dos gestos, quer do discípulo — «his fingers parted
and outstretched as if to seize the air» —, quer de Maria — «She
sinks down as if onto a chair, stricken by grief, / sustained in theory
by love» (idem). Afinal, a composição é o solo onde as subtilezas
do sagrado se insinuam, pois como se pode representar o
irrepresentável? Esta dúvida epistemológica é, exatamente, o
ponto de partida para a écfrase do peta norte-americano Richard
Howard sobre O Juízo Final, de Fra Angelico, iniciada com a
questão: «How to behold what cannot be held?» (idem: 311; itálico
no original).
O poema de Howard intitula-se «Giovanni da Fiesole on the
Sublime, or Fra Angelico’s Last Judgment», o que, de imediato,
suscita uma reflexão em torno da identidade a quem é atribuída a
enunciação. Iniciei esta secção com um poema em que o sujeito
enunciador se con-funde com o poeta; ora, neste caso Howard cria
um simulacro em torno daquela identidade: a enunciação cabe a
uma persona, Giovanni da Fiesole. E que persona é esta? Quem
ostenta esta máscara? A quem se deve este monólogo dramático?
Ao próprio pintor. É ele que, tal como o espectador, defronta o
quadro e o descodifica. Fá-lo, porém, convocando um cânone de
representação. E é nesse sentido que esta écfrase nos interessa.
Por que razão, perguntar-se-á. Porque é toda uma tradição de
organização especial dos topoi religiosos que este espectador nos
revela. Fá-lo, todavia, sem deixar de esclarecer parenteticamente,
numa aparente digressão (arbitrária?), a fluidez dos pontos de
vista, e, mais adiante, a eventual justeza dessa tradição: «You may
have noticed how / Hell, in these affairs, is on the right / invariably
(though for an inside Judge, / of course, that would be the left. And
we / are not inside). I have no doctrine / intricate enough for Hell,
which I leave / in its own right, where it will be left» (idem).
Além disso, Howard desencadeia um diálogo com «Fra Lippo
Lippi», de Robert Browning, como sinaliza John Hollander nos
seus comentários ao poema (idem: 314). Neste é Lippo que
descreve o quadro que irá pintar em seguida, Coroação da Virgem,
destinado ao convento de Santo Ambrósio e atualmente
depositado na Galeria dos Uffizi. No seio da cerimónia
intensamente povoada de anjos, o pintor consideraria a hipótese
de se representar, já que fora ele quem havia concebido
esteticamente aquela imagem. Conclui a propósito Stephen
Cheeke, outro ensaísta que sobre este poema se debruçou: «The
artist has a place and function that should be recognised and
honoured. And so Lippo imagines himself welcomed among the
celestial presence, shuffling sideways with his ‘blushing face /
Under the cover of a hundred wings’, which are spread like the
skirts of women, beneath which he has always been happy»
(Cheeke, 2008: 87).
Regista-se uma evidente anacronia por parte de Browning, a
relativa à reflexão de Lippo sobre a noção de belo enquanto cerne
da arte, que o inscreve num solo vitoriano, e que antecipa o
esteticismo de Oscar Wilde em The Critic as Artist. Mas este é um
tópico — a anacronia — sobre o qual não me devo alongar, já que
a ele dedico uma reflexão mais prolongada no capítulo seguinte.
A abordagem do tópico da composição não pode ser encerrada
sem uma referência a Rilke. Em Musical Ekphrasis in Rilke’s
Marien-Leben, o estudo que a musicóloga alemã Siglind Bruhn a
ele consagrou, são mencionados vários poemas de Rilke devido à
forma como verbalizam a dimensão visual da composição. Entre
estes destacar-se-ão «Himmelfahrt Mariae I+II», na sua
interpelação ecfrástica de A Assunção, de El Greco. Considera a
ensaísta: «Of Rilke’s two poems on El Greco’s Assumption, the first
focuses on the process of Mary’s ascent, while the second
describes what her departure leaves behind. Besides this
complementarity, the paired poems are also mutually reinforcing:
both declare her anticipated arrival in heaven a source of
enrichment for the blessed souls above, and both reflect on the
significance of this Assumption for humankind, albeit with different
results» (Bruhn, 2000: 50). Conclui-se desta análise que a écfrase
persiste sem que isso signifique um denegar de uma dimensão
hermenêutica na meditação realizada pelo poeta.
Antes de concluir com um excurso em torno da reconfiguração
do sagrado na poesia contemporânea através do diálogo com a
imagem na poesia de Ted Hughes, desejo apontar exemplos
significativos de convocações poéticas ínvias do sagrado no
encontro com a arte. Fá-lo-ei através de dois poetas nascidos
sensivelmente na mesma altura mas em países diferentes:
Geoffrey Hill, nascido em 1932, e Ruy Belo, nascido em 1933.41 A
minha escolha destes poetas decorre da similitude de posturas
face ao sagrado por eles evidenciada, ou seja, a recusa de
assumirem uma identidade poética condicionada pela religiosa. A
propósito de Hill é, neste âmbito, esclarecedor o comentário do
crítico inglês Donald Davie: «[…] Hill’s continual, perhaps
compulsive, hovering around institutional Christianity (particularly in
its recusant and Anglo-Catholic varieties) without his ever saying
Yea or Nay to that faith, neither giving his assent nor plainly
withholding it» (Davie, 1989: 166). («Neither believer nor an
infidel», o diagnóstico que Nathaniel Hawthorne fez do seu amigo
Herman Melville, é a expressão que, de imediato, recordo ao ler
esta leitura de Davie.) Por seu turno, Ruy Belo, considerado por
Tolentino Mendonça um dos grandes poetas espirituais
portugueses do século XX (Mendonça, 2013: 227), apesar da sua
filiação católica inicial42, assumir-se-ia mais tarde como
«clandestino seguidor de Deus» (Ribeiro, 2004), colocando-se,
deste modo, nas margens de um discurso institucional. De que
forma se configurará, então, um diálogo com o sagrado, mediado
pela arte, nestes dois olhares marcados pela dúvida?
Comecemos por Geoffrey Hill. Embora a estratégia ecfrástica
apenas surja lateralmente no seu corpus poético, ela surge desde
logo em «Picture from a Nativity», do seu primeiro livro de poemas
For the Unfallen, publicado em 1959. «Picture from a Nativity»
pode ser considerada uma écfrase imaginária, devido ao facto de
não convocar um quadro em concreto. Neste texto ocorre algo de
idêntico àquilo que sucede em «Turner», um poema de
Metamorfoses, de Jorge de Sena. Num ensaio dedicado a este
poema, a crítica de arte Barbara Aniello procede a uma close
reading, verso a verso, que a leva a desvendar a presença, não de
um só quadro, mas sim de inúmeros quadros no registo ecfrástico
ali exibido (Aniello, 2009: 412-413). Defende esta ensaísta que,
mais do que interpelação, Sena teria concebido uma convocação
textual de um amplo e diverso Texto visual, a obra de Turner.
Estamos, portanto, no domínio de um certo Museu Imaginário.
Impulsionado por este contexto — o do Museu Imaginário —
Fernando Guerreiro deve a Turner o impulso para a identificação
de uma innerscape: «Atravessando o quarto, / como os Alpes
Anibal / os pensamentos a fundir sinto — (laranja grená verdes
azuis — / como Turner e Brüeghel o pintaram (na juventude)»
(Guerreiro, 1983: 9). Impõe-se nestes versos um registo de
exposição (reconhecimento) confessional decorrente do diálogo
especular; signo como speculum, portanto. Com efeito, também
em Hill é um solo de representações deste tópico que se insinua, o
que permite ao poeta enfatizar o seu próprio ponto de vista, as
suas idiossincrasias. Considera E. M. Knottenbelt que, neste
afastamento de um solo referencial explícito, é a banal intensidade
de um quotidiano que se impõe: «It is a ‘disturbing picture’ because
so ‘unpainterly’ (abstract) in its ‘depiction’ of Revelation reduced to
the common callousness of things» (Knottenbelt, 1990: 49). Tal
como em Caravaggio, também em Hill é a humanidade de um
comum, banal quotidiano que desponta na representação do
sagrado.
Por seu turno, Ruy Belo amiúde convoca as artes visuais na sua
poesia, com particular ênfase para o espaço cinematográfico. Além
deste evidenciam-se outras artes da imagem como a pintura, a
escultura e a fotografia, suscitadas através do discurso ecfrástico
em Transporte no Tempo, nos poemas «Diálogo com a figura do
profeta jeremias, pintada por miguel ângelo no tecto da capela
sistina», «Estátua da rapariga que se prepara para dançar»,
«Meditação sobre uma esfinge», «Friso de raparigas de
jerusalém» e «Mulher sentada». De Keats e Shelley a Sena, os
títulos dos poemas convocam a memória de écfrases
emblemáticas desta tradição. Será, todavia, apenas uma delas que
me interessa no âmbito do tópico que abordo neste instante; refiro-
me a «Diálogo com a figura do profeta jeremias, pintada por miguel
ângelo no tecto da capela sistina», pois será aí, neste poema tão
distante do solo ecfrástico original — enquanto mera descrição,
como o conhecemos na Antiguidade — que Belo evidencia a
riqueza de uma ontologia poética suscitada pelo signo visual.
Este poema exibe uma prolongada meditação sobre o Tempo; é,
aliás, em torno do ato de meditar que todo ele se estrutura, logo a
partir dos primeiros versos: «Pensa tens que pensar bastante
jeremias / sobre ti pesa o peso de pensar por nós que não
pensamos / por nós que temos horas para tudo o que pensar não
seja» (Belo, 2009: 408). O estatuto de pensador do profeta afirma-
se solitário numa dicotomia face à generalidade dos outros —
emblematizados no «rebanho do turista americano / que ruidoso
passa uns vinte metros mais abaixo» (idem: 409), do próprio poeta
que, generosamente, num coletivo se inclui — «não pensamos /
por nós». Será, portanto, nesta meditação sobre o Tempo,
suscitada pela arte, que o sagrado, inviamente, se convoca.
Idêntica estratégia surge em «Ingmar Bergman’s Seventh Seal»,
de Robert Duncan, embora estejamos neste caso perante um
poema decorrente do encontro com a imagem em movimento, com
o cinema. Também aqui o encontro com o filme desencadeia uma
reflexão sobre o tempo: o passado remoto (a experiência de
Cristo), o passado recente (a sua releitura estética por Bergman) e
o presente (o tempo da receção pelo espectador e a transposição
da experiência para a escrita [o poeta]) confluem: «This is the way
it is. We see / three ages in one: the child Jesus / innocent of
Jerusalem and Rome / — magically at home in joy — / that’s the
year from which / our inner persistence has its force» (French e
Wlaschin, 1993: 105). O filme persiste como esse resto que levara
à meditação do poeta; o resto, como vimos acima, um tópico que a
Teologia recente tem vindo a revisitar.
Ruy Cinatti identifica-o com clareza, logo no titulo, em «Depois
de visto o filme O rio de Jean Renoir». O filme, algo de banalmente
secular, desencadeia algo de intensamente pessoal, uma
meditação sobre o nosso lugar no mundo. O poema não se detém,
deste modo, sobre eventuais características, narrativas, estéticas
inerentes ao filme, mas sim sobre o impacto que ele teve no
espectador/poeta. O que resta do filme é esse espaço de reflexão
que o poema é: «Múltiplos são os símbolos de Deus / como as
partículas de areia quando lavadas pelo mar. // Os símbolos de
Deus inspiram. / São como as vozes dos homens / atravessadas
pela alma» (Cinatti, 1986: 248).
Como referi acima, a meditação sobre o sagrado, despoletada
pelo encontro entre a palavra e a imagem, não se confina ao
universo cristão. Ainda antes de abordar um exemplo relevante da
revisitação do sagrado através de outros solos, aquele que é
fornecido pela poesia de Ted Hughes que é suscitada pela obra do
artista plástico Leonard Baskin, devo mencionar um breve poema
de Arseni Tarkovsky. O poema intitula-se «Kore» e, embora neste
poeta seja obsessiva uma meditação da qual participa o sagrado43,
este é um dos raros casos em que o impulso que a desencadeia
se deve a um objeto artístico.
Nas suas preciosas notas aos poemas de Arseni Tarkovsky,
inseridas em Poetry and Film — Artistic Kinship Between Arseni
and Andrei Tarkovsky, Kitty Hunter Blair esclarece que o poeta
conservava no seu escritório uma fotografia de uma estatueta
desta divindade (Blair, 2014: 215). A meditação sobre o Tempo,
predominante em Ruy Belo, adquire aqui uma especificidade
singular, a do registo da transição do tempo para o Tempo; é então
que a figura de Kore se impõe: «When I must drink eternal parting,
/ […] / Don’t turn away, but take my hand / And see me off on my
last road. // Stand at the doorway of death / […] / Stay by me until
darkness falls / […] // Queen Kore’s horrifying mouth / Makes us
welcome with a smile. / The hellish gaze of her blind eyes / Strips
us to our naked souls» (idem: 146). Nestes versos configura-se o
despojamento derradeiro e radical que neste entre-Tanto limite se
exibe. Mas o encontro com aquele solo mítico evidencia um novo
tipo de tensões. Proponho-lhe que, em seguida, observemos o
modo como esse solo mítico se configura nos poemas de Ted
Hughes sobre obras de Leonard Baskin.
Amigo do então casal Sylvia Plath e Ted Hughes desde que
estes o conheceram em 1958, no Massachusetts, Baskin permitirá
a Hughes refletir sobre algo cujo declínio seria posteriormente
anunciado como dominante na pós-modernidade, a já referida
ausência do transcendente no quotidiano. Hughes nutria uma
particular admiração por Baskin que, numa carta sua endereçada a
Charles Monteith, a 8 de agosto de 1959, considera ser o melhor
gravador vivo nos Estados Unidos (Hughes, 2007: 149).
Através deste artista, Hughes aborda o sagrado pela via do mito,
da sua eventual relevância, numa revisitação das forças telúricas
da natureza. Fá-lo em dois momentos específicos, e recorrendo a
duas estratégias distintas: um texto em prosa, destinado a um
catálogo de uma exposição de gravuras do artista realizada em
Londres, e duas sequências de textos poéticos em diálogo com
obras de Baskin — uma, feita a convite deste para acompanhar
uma edição de gravuras suas, que seria publicada em 1971 sob a
designação de Crow, e outra, escrita entre 1957 e 1981, destinada
a acompanhar desenhos de pássaros imaginários, feitos por
Baskin, e que seria publicada em 1982 sob a designação de Cave
Birds.
De acordo com as notas inseridas nos Collected Poems a
propósito de Cave Birds, à sequência dos poemas subjaz um
processo narrativo: «The poems plot the course of a symbolic
drama, concerning disintegration and re-integration, with
contrapuntal roles played by birds and humans» (Hughes, 2003:
1199). As vertentes românticas da «negative capability» keatsiana,
configurada na arte, e da enunciação dramática de Shelley
(«Ozymandias»), convergem na verbalização poética de Cave
Birds, nomeadamente na estrutura por ele concebida. Esclarece, a
propósito, Elizabeth Loizeaux: «The poem-picture pairs are
arranged narratively, not in order of composition. The three
compositional rounds are blended so that ekphrasis and illustration
are intermixed throughout the volume» (Loizeaux, 2008: 149).
Pelo seu caráter exemplar do cosmos delineado nesta obra,
proponho-lhe a leitura de «The Summoner»:

Spectral gigantified,
Protozoic, blood-eating.

The carapace
Of forclosure.

The cuticle
Of final arrest.

Among crinkling of oak-leaves — an effulgence,


Occasionally glimpsed.

Shadow stark on the wall, all night long,


From the street-light. A sigh.

Evidence, rinds and empties,


That he also ate here.
Before dawn, your soul, sliding back,
Beholds his bronze image, grotesque on the bed.

You grow to recognize the identity


Of your protector.

Sooner or later –
The grip.

[Idem: 420]

Num ensaio a propósito deste tópico, Hughes reconhece «[a]


deeper life» no microcosmo estético («form and texture»,
McClatchy, 1990: 290). Este é entendido enquanto palimpsesto
onde se insinua uma essência primeira, enfim, aquilo que o mito
evoca; daí a sua relevância e o seu estatuto. Ao afirmar que o
objeto desvenda «something that survives in the afterglow of
collapsed religion» (idem: 291), Hughes pretende atribuir-lhe uma
função unificadora face a um espaço social onde o discurso
religioso deixou de funcionar como metanarrativa (algo de
semelhante ao que, perante a dissolução de um discurso
unificador neopuritano, se desvendara tanto na retórica
emersoniana como na épica whitmaniana na América de meados
do século XIX).
O objeto artístico é, deste modo, concebido como signo,
hieróglifo que participa de uma sintaxe (recuperando um certo
discurso neopitagórico igualmente convocado por Emerson — «We
are symbols and inhabit symbols» —, e que será estruturante nas
correspondências baudelairianas), que deve ser recuperada para
que o sentido (textual) possa dar um novo sentido à vida (onde o
transcendente seja de novo possível): «[…] his figures both
sharpens our sense of them as hieroglyphs, cryptograms, and
intensifies that atmosphere of Cabala, where each image is striving
to become a syllable of the world as a talismanic word» (idem:
291).
Para além deste aspeto, outro devo registar, aquele que Hughes
considera ser a busca da monumentalidade na escultura de Baskin
(idem: 306) e que decorre da leitura de signos específicos nela
nucleares («Hanged Man» e «Dragonfly»). A dinâmica dialética por
eles desencadeada (idem: 300-305) sustenta um registo épico
(idem: 307), algo que discursos dominantes nas sociedades
ocidentais do pós-II Guerra reiteradamente denegaram. Estas
dimensões projetam-se nas sequências poéticas acima
mencionadas, embora a sua real amplitude apenas possa ser
percetível para o leitor comum após a publicação dos Collected
Poems; refiro-me especificamente a Crow, pois somente aqui se
reunem poemas que, entre 1967 e 1973, surgiram dispersos por
diferentes revistas e edições limitadas (Hughes, 2003: 1254).
Subjaz a esta visão um solo de confluência do sagrado e do mito.
O poeta elucida-a numa carta a Leonard Baskin, escrita a 2 de
março de 1968:

[…] it’s grown into a folk epic which will be the length of a novel
[…] God has a nightmare — a Voice attacks him. He cannot
understand what is wrong. Man comes to heaven and asks to be
permitted to exist since life is too awful. God is flabberghasted
hearing these words from his prime creation. The Voice scorns
man and God his creator. God finally challenges the Voice to do
better. The voice creates Crow. Crow goes into the world and God
tries everything to destroy him, pervert him, educate him out of
himself etc. — an epic of ordeals. [Hughes, 2007: 279-280]

O tópico do trânsito, da viagem, subjaz a este sistemático fluir.


Afinal, como tivemos oportunidade de observar, a meditação em
torno da relação do indivíduo com o Tempo é um traço
determinante da(s) sensibilidade(s) contemporânea(s).
E, regressando ao matiz cristão que foi um solo inevitável desta
secção, talvez ninguém o tenha celebrado poeticamente, como T.
S. Eliot quando, na quinta parte de «Burnt Norton», a primeira
secção de Four Quartets, escreve: «The stillness, as a Chinese jar
still / Moves perpetually in its stillness. / Not the stillness of the
violin, while the note lasts, / Not that only, but the co-existence, / Or
say that the end precedes the beginning, / And the end and the
beginning were always there / Before the beginning and after the
end. / And all is always now […]» (Eliot, 2015: 183).
10. Pela leitura deste e de outros aspetos, o ensaio de Cleanth Brooks «Keats’s Sylvan
Historian» continua a ser, para mim, essencial.

11. Quando o poema foi inicialmente publicado no número de janeiro de 1820 dos Annals
of the Fine Arts, esta expressão não surgia entre aspas. Estas só seriam inseridas mais
tarde aquando da sua publicação no volume de poemas intitulado Lamia, vindo a lume
ainda nesse mesmo ano. Numa carta ao seu amigo Benjamin Bailey, escrita a 17 de
novembro de 1817, Keats refere o seguinte: «What the imagination seizes as Beauty must
be Truth». Nesta declaração pode residir a resposta para o mistério que, ao longo dos
anos, tem alimentado a sua interpretação por parte da crítica.
12. À semelhança da análise de Whitman, as palavras que se seguem decorrem da leitura
por mim realizada em Histórias(s) da Literatura Americana.

13. Para outros poetas que expõem pontos de vista distintos de Auden, cf. Loizeaux, 2008,
75-79.

14. A importância que a arte teve na sua poesia é declarada pela própria poeta numa
entrevista à rádio concedida em 1961 que se encontra disponível na Web em
https://www.youtube.com/watch?v=Vqhsnk6vY8E.

15. Escreve o autor na Nota de Edição: «A Voz mais (im)própria corresponde ao


personagem de Jean-Joseph Surin, padre jesuíta francês (1600-1665) conhecido,
nomeadamente, pela sua intervenção no processo de possessão colectiva das freiras do
convento das Urselinas, em Loudun. A Voz que lhe responde mais frequentemente nos
exorcismos é a de Jeanne de Delciel, também conhecida como Madre Joana dos Anjos. / A
última carta (e cartada) no Jogo é a do Louco, a carta zero de muitos jogos do Tarot»
(Guerreiro, 1987: 42).

16. Para uma análise do impacto que a pintura, nomeadamente o impressionismo, teve na
obra poética de Manuel Machado, cf. Carolina Corbacho Cortés, Poesía y Pintura en
Manuel Machado (Cáceres: Universidad de Extremadura, 1999).

17. Poema sobre o inventor francês Jacques de Vaucanson, pioneiro na criação de


autómatos.

18. Designação compósita a partir de fragmentos dos nomes de quatro poetas da mesma
geração: Louis MacNeice (Mac), Stephen Spender (Sp), W. H. Auden (au-n), Cecil Day-
Lewis (day).

19. A versão em galês, intitulada Neb, surgira em 1985. Thomas requisitaria que a tradução
para inglês fosse feita por outrem.

20. O leitor interessado em aprofundar a problemática da écfrase sob um enfoque feminista


deverá ler a obra de Katy Aisenberg intitulada Ravishing Images — Ekphrasis in the Poetry
and Prose of William Wordsworth, W. H. Auden, and Philip Larkin.

21. Nova objetividade.

22. Dannie Abse foi poeta e Joan Abse, historiadora de arte.

23. Em «A Dutch Courtyard» Richard Wilbur questiona de uma forma subtil o próprio
estatuto político do Museu.

24. Embora menos relevantes, estes últimos não deixam de se impor como importantes
solos de meditação sobre a própria materialidade estética do objeto. Vejam-se os versos
finais de «Boião»: «O fundo tem cinza de prata, cinza de pedra. / Que resposta receberia
do azul-cobalto temperado no fogo?» (Fernandes Jorge, 2002: 95).
25. Regressarei a este aspeto na secção dedicada ao sagrado, através da análise de um
poema de Dante Gabriel Rossetti.

26. Particularmente curioso o facto de este mesmo quadro ter sido objeto de um poema
homónimo de Jorge de Sena em Metamorfoses.

27. Para citar poetas russos ao longo destas páginas, recorri em geral a versões em língua
inglesa das suas obras.

28. À semelhança do que sucedeu acima, convoco a abordagem por mim elaborada em
História(s) da Literatura Americana (Lisboa: Universidade Aberta, 2004).

29. Como observámos acima através de um jogo entre a imagem física do Autor e o Livro,
entre o referente e a sua representação, entre as diferentes versões icónicas do Autor,
entre a vida do Autor e a vida do Livro. Convoquei, então, o conceito de imagem
fascinante.

30. Pre-Raphaelite Brotherhood, que João Almeida Flor prefere traduzir por Confraria Pré-
Rafaelita.

31. Devo a leitura deste último aspeto ao comentário ao poema feito por John Hollander
(Hollander, 1995: 265).

32. Cf. respetivamente Ted Hughes, «Notes on Poems. 1956-1963» (Plath, 1981: 275), e,
sobre a frase interiorizada, «What ceremony of words…» (Rose, 1991: 89).

33. «The father is the keeper of the books and the conch; the poet holds only their echoes
in her hear. And her voice is threatened by both the literary past and nature» (Blasing, 1987:
58).

34. «Beholder», como o define Michael Fried em obras como Absorption and Theatricality
ou Realism, Writing and Disfiguration, é um conceito que aprecio pela dimensão de
apropriação que encerra, e para a qual, lamentavelmente, não encontro análogo em
português.

35. Escrevi uma sequência de poemas ecfrásticos estimulada por quadros de pintores pré-
rafaelitas — Dante Gabriel Rossetti, Charles Allston Collins, William Holman Hunt, John
Everett Millais e William Dyce — que se publicou no n.º 3 da revista Suroeste.

36. Em nota a esta sequência poética, Eugênio Gomes refere que: «o título e até certo
ponto a própria ideação teriam sido sugeridos pelo drama O anjo da meia-noite, de
Théodore Barrière e Édouard Plouvier […]» (Ramos Jr., 2005: 284).

37. A leitura metafísica de in-betweenness realizada por Desmond é transposta por Frazão
Correia, s.j., ao domínio da Teologia.

38. Para o leitor interessado em conhecer melhor uma outra sensibilidade estética cristã, a
protestante, recomendo Cuidado com o Alemão — Três dentadas que Martinho Lutero dá à
nossa época, da autoria do pastor Tiago Cavaco (Lisboa: Letras d’Ouro, 2016).

39. Anja Pearre dedica um fascinante estudo a esta dimensão em La Présence de l’image
— Yves Bonnefoy face à neuf artistes plastiques (Amesterdão: Editions Rodopi, 1995). Os
nove artistas mencionados são Piero della Francesca, Miguel Ângelo, Rubens, Constable,
Degas, Ubac, Balthus, Garache e Giacometti.

40. Veja-se este passo de L’Arrière-pays: «Le voyageur se demande: le lieu ne garde-t-il
rien de ce qui pourtant a eu lieu?» (Bonnefoy, 2005: 87).

41. Retomo sinteticamente a minha reflexão em «Geoffrey Hill and Ruy Belo: Poetry and
Art — a Dialogue in the Quest for an Aesthetic Sense of the Ordinary», na obra Religion
and Culture in the Process of Global Change: Portuguese Perspectives.

42. Ruy Belo aderiu ao Opus Dei no início da década de 1950, quando era estudante de
Direito na Universidade de Coimbra. Após ter obtido o seu doutoramento em Direito
Canónico da Universidade de São Tomás de Aquino, em Roma, regressou a Portugal,
tendo abandonado a Obra no início da década de 60.

43. Veja-se a afinidade com o sagrado que a circunstância biográfica exibe em «Like Jesus
crucified upon the cross» — «whose soul, so closely bound to mine, / Was bearer of that
blinding sorrow?» (Blair, 2014: 193), ou mesmo a porosidade face àquele espaço quando o
impulso criativo decorre da secular fotografia em «Photography»: «Once the angel of the
lens / Takes your world beneath his wing» (idem: 121).
4. Autorreflexividade e vanguardas
Ao longo destas páginas temos vindo a desvendar um solo
diversificado de encontros entre a palavra e a imagem, que
conhecem um momento singular no plano textual na figura da
écfrase. Como temos constatado, eles não se confinam a meras
reproduções do referente artístico — seja este um quadro, uma
fotografia, uma escultura, um monumento, um segmento
cinematográfico —, por muito virtuosas que essas reproduções
possam ser. Com efeito, esses encontros implicam, em
contrapartida, uma poética de meditação, por parte do criador, e de
imersão, exigida ao leitor.
Neste capítulo proponho-vos que penetremos mais fundo nas
veredas teóricas que neles se insinuam: a forma como o tempo
aflora no texto poético; as incursões analíticas produzidas pelos
poetas neste âmbito; as vanguardas estéticas; a meditação em
torno da linguagem no solo textual; o mistério envolvendo a
imagem; a perplexidade do confronto com o signo visual quando a
abstração neste prevalece.

4.1. O tempo e o texto — anacronia e trans-memória

A minha reflexão sobre a forma como o tempo se inscreve no


texto poético estrutura-se em torno de dois conceitos,
recentemente formulados ou propostos por dois historiadores de
arte, trans-memória, concebido por Vítor Serrão, e anacronia44,
revisto por Georges Didi-Huberman. É com o objetivo de melhor
compreender a opacidade do investimento criativo neste espaço
entre palavra e imagem que recorro àqueles conceitos. E para os
abordar proponho que regressemos a «Musée des Beaux Arts», de
W. H. Auden.
Escrito no limiar da II Guerra Mundial, como acima referi,
«Musée des Beaux Arts» evidencia a importância desempenhada
tanto pelo conceito de anacronia como pelo de trans-memória no
diálogo entre palavra e imagem: a anacronia, enquanto estratégia
endógena à representação, ainda que indiretamente através dos
signos do quadro de Brueghel, Paisagem com a queda de Ícaro —
a indumentária coeva das personagens e a caravela —, e da
perspetiva filosófica que lhe subjaz; a trans-memória na estratégia
de leitura e de apropriação das imagens.
Ainda antes de prosseguir, lembro um argumento acima
mencionado, o da reconfiguração do estatuto do objeto artístico, do
próprio conceito de arte, que se impõe com o aparecimento do
Museu público, sobre o qual André Malraux medita em O museu
imaginário. Recordo algumas vertentes sinalizadas por Malraux,
relevantes para a compreensão da singularidade do diálogo que
tenho vindo a abordar: a inscrição desta experiência no solo
civilizacional da Europa moderna; a sua novidade — «existe entre
nós há menos de dois séculos»; «uma relação totalmente nova [do
espectador] com a obra de arte»; a sua autonomia — «Se o busto
de César, a estátua equestre de Carlos Quinto, ainda são César e
Carlos Quinto, o duque de Olivares é simplesmente Velásquez»; a
autonomia da imagem face ao referente — «imagens de coisas,
diferentes das próprias coisas»; a obra de arte como microcosmo
com as suas regras próprias; a inevitabilidade de uma meditação
em torno deste para que ele se torne inteligível; uma certa noção
de humanidade — «o museu é um dos locais que nos
proporcionam a mais elevada ideia do homem» (Malraux, 1963:
11-12).
Apesar de refletir sobre um outro tipo de diálogo, o do cinema
com a pintura, Luc Vancheri ajuda a desvendar a profundidade da
rutura inerente a esta leitura de Malraux. Escreve aquele ensaísta
em Cinéma et peinture: «Au XVIIIe siècle, elle [la Madonne de
Cimabue] n’est pas encore un tableau parce qu’elle est d’abord
une image vouée au culte de la Vierge, une image cultuelle.
Malraux rompt ici avec l’idéal de l’ancienne archéologie allemande
qui réclamait que soient vues les oeuvres comme les virent ceux
pour qui elles furent créées. Il sait que rien ne nous rendra les
sentiments du XIIe siècle, et qu’à la fin, c’est toujours la
métamorphose qui gagne. Il y a chez Malraux une forme
d’hégélianisme heureux qui en renverse la lettre, celle si
désenchantée d’une art devenu pour nous une chose du passé»
(Vancheri, 2007: 42). Será com esta consciência da obra em si que
devemos regressar à síntese do modo como Malraux nos ajuda a
olhar para o poema de Auden.
Embora ignorando-o, a leitura deste passo ilumina «Musée des
Beaux Arts». Porquê? Porque lembra aquilo que deveria ser uma
evidência, que a banalidade da «nossa convivência com a arte» só
é possível devido à existência de uma instituição, o Museu; porque
recorda a importância deste para o desvendar de contextos e
diálogos entre obras de arte e criadores, nomeadamente devido à
estratégia utilizada por quem estrutura a sua exibição: num plano
diacrónico possibilita o entendimento de nexos com obras
precedentes — eventuais superações ou reproduções — ao
mesmo tempo que nos ajuda a entender ulteriores subversões;
num plano sincrónico, permite desvendar interações com obras
suas contemporâneas.
Diacronia e sincronia contribuem, deste modo, para a aquisição
não só de uma perspetiva geral (História da Arte) mas também
particular (o percurso de um autor, a evolução estética na
construção da sua identidade). Consequentemente, o Museu
revela perceções várias do sujeito, marcadas por circunstâncias
históricas, idiossincrasias pessoais, buscas estéticas e éticas. Por
fim, através de todas estas vertentes, o Museu não só exerce uma
ação didática, chamemos-lhe cultural, junto do destinatário, como
abre portas a especulações estéticas peculiares. Declarava Sir
John Gielgud a propósito da falta de empatia dos americanos
relativamente aos dramas shakespearianos, que talvez eles não
vão tanto a museus como nós; britânicos, subentenda-se. Recordo
que iniciei a secção 3.1., «Quando os românticos descobrem o
Museu», com uma das mais célebres écfrases, «Ode on a Grecian
Urn», a qual só foi possível devido à existência do Museu
Britânico.
Partindo destes pressupostos, sugiro um retorno a «Musée des
Beaux Arts». Como acima observámos, o título envia para um
espaço concreto, o Museu de Belas-Artes, de Bruxelas, instituição
onde o quadro Paisagem com a queda de Ícaro, de Pieter
Brueghel, o Velho, explicitamente mencionado na segunda estrofe,
está exposto. No entanto, antes desta referência, todo um percurso
propedêutico é percorrido ao longo da primeira estrofe. Retomemo-
lo brevemente. Num primeiro momento Auden esclarece que a sua
reflexão será devedora do encontro com aquilo que Steiner
designaria «as lições dos Mestres», melhor, d’«os Velhos
Mestres».
Mencionei acima a dimensão de abertura cultural a perceções
estéticas que nos precederam, e com as quais somos
confrontados nesse espaço que o Museu é. Com efeito, na
sequência de uma tradição humanista, o poema torna claro que,
ao observarmos os quadros, não só vivemos uma experiência
estética, como aprendemos algo. O encontro não significa apenas
o propiciar de uma emoção estética, como poderá (deverá) ser
instante de um caminho em busca da sabedoria; algo que Alegoria
da Prudência, de Tiziano, entre outras coisas, nos propõe. A
aprendizagem surge, assim, num segundo momento, através da
referência a instantes (narrativas) de objetos concretos; quadros
dos velhos Mestres, pressupõe-se. Que quadros e que Mestres
são estes? Como assinalei na altura, O censo de Belém e O
massacre dos inocentes, ambos de Brueghel. Portanto, não
existem Mestres mas sim apenas um, este pintor, eventual signo
deles representativo.
Num exercício sintático elíptico, qual montagem de planos
aparentemente isolados, o poeta exibe nesta estrofe uma
sequência de diferentes fragmentos cuja origem não é identificada.
Independentemente da intencional opacidade, devida ao facto de
nenhum daqueles quadros ser explicitamente mencionado, não
será displicente saber que O massacre dos inocentes se encontra
depositado bem longe de Bruxelas45. Por que razão terá Auden
arquitetado estas fugas intencionais à factualidade? Com efeito, ao
fazê-lo, ele concebeu uma experiência própria, profundamente
pessoal, possível apenas àquele que se educou, entre outras
coisas, no contacto com os Mestres que a História da Arte nos
legou; isto é, ele concebeu o seu próprio Museu imaginário de que
falava Malraux. Conclui-se que aqueles diferentes signos visuais
funcionam para ele como uma trans-memória das imagens que lhe
permite meditar sobre uma ética da sobrevivência e da ausência
de sentido de comunidade.
É neste âmbito da trans-memória das imagens que o poeta se
assemelha a um «curador» que intelectualiza a sua experiência, o
seu olhar, em torno da representação do sofrimento na arte, com a
qual interage uma conceção de Homem46. A descodificação da
forma como esse sofrimento pode ecoar na experiência quotidiana
aparecerá na segunda estrofe com o exemplo de Paisagem com a
queda de Ícaro, onde Auden revisita a narrativa ovidiana deste
episódio através de três personagens: o pescador, o camponês e o
pastor. Mas Brueghel, numa aparente écfrase à rebours, revê
aquela narrativa ao representar o camponês e o pescador absortos
nas suas atividades, e o pastor distraído, olhando os céus.
Onde se insinua, então, a anacronia? Numa estratégia de
representação e na inclusão de um signo em radical disjunção face
a Ovídio; isto é, na representação das roupas das personagens,
graças às quais Brueghel transporta o mito para o (seu) presente
histórico; e na inclusão de uma caravela, signo do tal presente
histórico que não participa da realidade remota em que a narrativa
de Ovídio se insere. Algo permite uma superação da anacronia, o
estoicismo que une passado e presente. Em tempos de radical
ceticismo, o limiar da II Guerra Mundial, recorde-se, Auden pode
reconhecer uma afinidade no estoicismo do pintor flamengo. A
imagem e o tempo parecem coincidir no âmbito de um registo, de
uma perceção, radicalmente pessoal; porque não, idiossincrática?
«Toujours, devant l’image, nous sommes devant le temps» (Didi-
Huberman, 2000: 9). É com esta constatação (axioma?) que
Georges Didi-Huberman abre o seu estudo sobre a imagem,
significativamente intitulado Devant le temps. Digo
significativamente porque, subjacente a esta expressão, a tensão
face a uma formalização teórica persiste. Refiro-me à distinção
entre artes do espaço e artes do tempo, elaborada por Lessing em
Laokoon. No entanto, quando Didi-Huberman escreve, «Toujours,
devant l’image, nous sommes devant le temps», ele identifica o
tempo como traço endógeno à arte do espaço. Ou seja, a
dicotomia lessinguiana que superou a figura morna do mesmo
enunciada por Horácio — «ut pictura poesis», é agora, também
ela, superada. Desta feita, devido à anacronia. Vejamos como.
Recorramos, para já, à metodologia crítica concebida por outro
historiador de arte, Erwin Panofsky. Através dela poderemos
desvendar a peculiaridade dos diálogos que se exibem neste
encontro entre poema e quadro. Defende Panofsky em Estudos de
Iconologia — temas humanísticos na arte do Renascimento que
existem três níveis na análise da obra de arte: a do conteúdo
temático natural ou primário, a qual é subdividida em factual e
expressiva; a do conteúdo secundário ou convencional; e a do
significado intrínseco ou conteúdo (Panofsky, 1995: 21-23). Sendo
o primeiro nível aquele que corresponde ao reconhecimento,
identificação, de uma determinada temporalidade, então o axioma
de Didi-Huberman poderá ser entendido como expressão de uma
banalidade; uma banalidade que se pode reconhecer na seguinte
afirmação que qualquer um de nós terá já ouvido numa qualquer
sala de um qualquer Museu: «Só lhe falta falar» ou «É como se
estivéssemos lá».
Com efeito, já um dos Gouncourt disse, e isto antes da arte
moderna, que nunca ninguém ouviu tanto disparate como as
paredes de um Museu. Ora, apesar de poder ser correta, aquelas
são, todavia, leituras algo tímidas, recuadas mesmo, pois ficam
aquém da compreensão da complexidade com que o tempo se
inscreve num determinado artefacto. Na realidade, a «análise
iconográfica, que trata das imagens, histórias e alegorias, em vez
de motivos, implica […] muito mais do que a simples familiaridade
com objetos e ações que fomos adquirindo através da experiência
prática. Pressupõe uma familiaridade com temas ou conceitos
específicos» (idem: 24). Ou seja, pressupõe uma consciência —
arriscaria a dizer — antropológica do tempo. Só através desta
consciência se pode atingir o terceiro nível de leitura enunciado por
Panofsky. Escreve ele:
Quando nos limitamos a afirmar que o famoso fresco de
Leonardo da Vinci mostra um grupo de treze homens à volta
duma mesa e que esse grupo de homens representa a Última
Ceia, estamos a tratar da obra de arte enquanto tal e
interpretamos os seus traços compositivos e iconográficos como
sendo as suas propriedades ou características específicas. Mas
quando procuramos compreendê-la como um documento sobre a
personalidade de Leonardo, ou sobre a civilização do Alto
Renascimento italiano, ou duma atitude religiosa em particular,
estamos a tratar a obra de arte enquanto sintoma de outra coisa,
que se exprime numa variedade incontável de outros sintomas, e
interpretamos as suas características de composição e
iconográficas como uma evidência específica dessa «outra
coisa». A descoberta e interpretação desses valores
«simbólicos» […] é o objecto daquilo a que chamámos
iconografia num sentido mais profundo: um método de
interpretação que surge mais como síntese do que como análise.
[Idem: 22-23]

Como age, então, o tempo nesse método que tem como objetivo
derradeiro a síntese?
A convocação do tempo deve aqui ser entendida quer no âmbito
de uma narrativa, da qual um determinado objeto participa, quer no
âmbito de uma experiência a nível da receção. Se, por um lado, a
dinâmica do tempo é algo de endógeno à imagem, ao convocar,
diacronicamente, a memória de um género ou, sincronicamente, a
realização de um artista, a qual, por seu turno, participa, também,
de uma diacronia — a referente ao percurso do próprio artista —,
por outro lado, ela exige uma determinada perceção, e aqui é, de
novo, a memória, desta feita do sujeito, que interfere. Deste modo,
a dinâmica do tempo, sendo endógena à imagem e à experiência
do seu encontro com o espectador, não tem tanto a ver com a fatia
de tempo que o referente representa e com aquilo que é
representado, como defendia Lessing, mas sim com a estratégia
da sua representação, com os índices do passado e do presente, e
com a tensão entre ambos, existentes num determinado
microcosmo.
Publicados com apenas sete anos de diferença, tanto Devant le
temps como A Trans-Memória das Imagens exploram quer o modo
como o tempo se inscreve no objeto, construindo-o numa dialética
de, por vezes, subtis contradições, quer a ulterior perceção por
parte de um destinatário não raro alheio às tensões que a ele
deram corpo.
Defende Vítor Serrão que «a obra de arte […] [é] um laboratório
de memórias acumuladas, que sobrevivem e perduram, seja nas
franjas do subconsciente, seja na prática da criação e da re-
criação dos artistas» (Serrão, 2007: 11). Na sequência de Martine
Joly, em Introduction à l’analyse de l’image, de Louis Marin, em
Des pouvoirs de l’image, e do «[…] conceito iconológico a que Aby
Warburg […] chamou nachleben (memória oculta/migratória dos
códigos de representação) […]» (idem: 37), este historiador
defende a «[…] circularidade dinâmica das imagens artísticas, esta
dialéctica de relação constante entre o que foi e o que é, que
atesta a sua força memorial e valoriza o seu poder de
comunicação face a tempos e públicos distintos» (idem: 19). O
subconsciente, tanto o do artista como o de recetor (seja este o
banal espectador, o crítico, o historiador de arte, ou mesmo o
artista que em tempos ulteriores com ele dialoga — vejam-se as
apropriações do retrato de Inocêncio X, de Velásquez, por Francis
Bacon, nas quais este revisita, lê, inventa, o próprio subconsciente
do referente), enquanto enunciador de traços, signos, vestígios
que se situam para além da evidência, revela-se como elemento
estruturante da identidade do próprio objeto.
Na esteira da arqueologia psíquica benjaminiana, Georges Didi-
Huberman considera, como posteriormente subscreverá Serrão,
que é o inconsciente do tempo que até nós chega através de
traços materiais, vestígios, sintomas ou mal-estares. Cito-o:
«L’inconscient du temps vient à nous dans ses traces et dans son
travail. Les traces sont matérielles: vestiges […] symptômes ou
malaises, syncopes ou anachronismes dans la continuité des ‘faits
du passé’. […] Benjamin exige l’audace d’une archéologie
psychique: car c’est au rythme des rêves, des symptômes ou des
fantasmes […] que le travail de la mémoire s’accorde avant tout»
(Didi-Huberman, 2000: 104). Consequentemente, «l’histoire des
images est une histoire d’objets temporellement impurs,
complexes, surdéterminés» (idem: 22). Objetos temporalmente
impuros, complexos, sobredeterminados. Será partindo deste
pressuposto teórico que Didi-Huberman irá defender uma
reformulação do discurso sobre a História da Arte, algo que Serrão
igualmente ensaia no seu livro através dos exemplos escolhidos
num arco temporal de três séculos, do XVI ao XVIII.
Não é, todavia, esse o aspeto que, apesar de fascinante, nos
interessa para a leitura de «Musée des Beaux Arts». Interessa-nos,
sim, constatar a relevância da intercessão de diferentes texturas
no diálogo entre o texto e o referente visual, isto é, a perceção do
sujeito num tempo presente (o da enunciação que encerra também
memórias de anteriores perceções, a memória pessoal desse outro
criador que é o poeta ou o crítico), a inevitável presença do mito
(na sua ancestralidade radical), e a sua leitura pelo artista, isto é, o
registo antropológico, através da qual se comprova a centralidade
da impureza e da anacronia no registo estético que surge com o
Modernismo novecentista (idem: 16 e 107). Assume, assim,
particular relevo a relação intelectual que o destinatário mantém
com o referente. Considera Vítor Serrão que a perceção exige a
consciência de que «as formas de arte contêm traços de memória
que lhes conferem uma carga cumulativa de informação histórica,
ideológica e simbólica que, aliada à sua qualidade plástica e
inventiva, lhes confere um arco de interesses e de expectativas por
parte de gerações renovadas de público […] Nesta perspectiva da
trans-memória das imagens, todas as obras de arte produzidas
pela humanidade podem ser consideradas contemporâneas, ou,
pelo menos, dotadas de um olhar contemporâneo» (Serrão, 2007:
21).
Importa ainda esclarecer que o argumento construído por Didi-
Huberman em Devant le temps foi desencadeado pela observação
da forma como um detalhe de algo foi diferentemente
percecionado pelo sujeito ao longo de um tempo concreto, o do
tempo do próprio sujeito. Deste modo, a perceção, chamemos-lhe
leitura, exige sempre uma pausa; uma pausa durante a qual a
coerência desse mesmo microcosmo estético é perscrutada e
entendida na mais ínfima das suas componentes ou intercessões,
algo a que o artista/criador não é obviamente alheio. Recorde-se,
por exemplo, a identificação feita por Sylvia Plath, em «Two Views
of a Cadaver Room», do ínfimo pormenor no canto inferior direito
do quadro de Brueghel, O triunfo da morte — «Yet desolation,
stalled in paint, spares the little country / Foolish, delicate, in the
lower right hand corner» (Plath, 1981: 114).
Tanto a identificação do detalhe — resida este no referente ou no
texto que com ele dialoga —, como a das dissonâncias que ele
pode introduzir, exige um repensar da própria estratégia de leitura.
Em O triunfo da morte, por exemplo, a anacronia evidencia-se,
desde logo, na génese da própria criação estética. Recorde-se que
Brueghel terá conciliado aqui um certo imaginário medieval e o
espírito renascentista — a conceção italiana do «Triunfo da morte»
e o tema nórdico da «Dança macabra» (Delevoy, 1990: 102). Por
seu turno, o poeta que dialoga com o quadro parece ignorar a
presença sufocante dos signos evocadores da morte, para se
concentrar no detalhe, através do qual, indiretamente, indicia um
olhar sobre o seu tempo. Ao lermos o poema, constatamos que, à
semelhança do que sucedera com Auden, a estratégia de
enunciação evoca uma estratégia de representação
cinematográfica. Coincidindo com a finalidade da écfrase, também
o poema começa por identificar o panorama. No entanto, num
movimento rápido, o olhar faz um zoom centrando-se no pormenor,
os amantes. Identifico-me, por isso, com a exigência formulada por
Vítor Serrão, e que a secção 3.4., «O detalhe», em particular,
confirmou: «Ousemos, pois, defender o retorno a um salutar
formalismo da análise das obras, a par de uma renovada
perspectiva sociológica no estudo dos seus enquadramentos trans-
contextuais» (Serrão, 2007: 47-48).
O regresso a «Musée des Beaux Arts» evidencia, aliás, a
centralidade da anacronia no quadro de Brueghel.
Parenteticamente, refira-se que, em vez de abordar diretamente
um tópico que marcava o seu tempo, Auden fê-lo indiretamente,
através daquilo que Eliot no seu ensaio sobre Hamlet designaria
um correlativo objetivo. Esta é, obviamente, uma das
potencialidades, simultaneamente especulativas e estéticas, que
semelhante diálogo entre Imagem e Palavra nos oferece; a
relevância do detalhe no poema de Plath confirma esta estratégia.
Não será por acaso que Auden foi um dos poetas fortes que, numa
fase inicial, ela tentou emular.
Não se pense, porém, que a Galeria peculiar e imaginária de
Auden, o seu Museu imaginário, é algo que devemos ao
Modernismo. Se recuarmos à já mencionada «Ode on a Grecian
Urn», desvendamos um referente compósito, concebido pela
imaginação de Keats a partir dos inúmeros vasos gregos que ele
terá observado no Museu Britânico. A écfrase imaginária e aquela
que emerge do encontro com um objeto realmente real,
coexistindo, inscrevem-se, ao longo dos tempos, no cerne do
diálogo entre a Imagem e a Palavra, denunciando uma pedagogia,
uma capacidade de verbalização e uma dimensão especulativa.
Se, por um lado, o texto se configura na dependência do signo que
o precede, por outro, ele pode ser apenas um exercício da
imaginação do autor, uma entidade autónoma que cria a ilusão da
dependência face a um eventual signo preexistente; uma espécie
de episódio do escudo de Aquiles que, todavia, vive no simulacro
de uma existência física. Falamos, portanto, de um trompe l’oeil
textual. É este trompe l’oeil textual que persiste em écfrases
imaginárias de Baudelaire como «À une moderne» e «Un martyr,
dessin d’un maître inconnu», ou, por exemplo, no romance A
segunda morte de Ramón Mercader, de Jorge Semprun. Neste
caso a descrição de um espaço, do qual emerge uma personagem
que o leitor julga tratar-se de um interveniente na narrativa,
corresponde a uma écfrase de Vista de Delft, de Vermeer. Com o
trompe l’oeil não é apenas uma estratégia estética que se
desvenda, mas também a intercessão de tempos distintos, ambos
decorrentes da presença de espaços referenciais (ficcionais)
exógenos.
Simulacro, palimpsesto que denega a sua natureza, esta
estratégia decorre de uma radical interiorização de um Museu
imaginário e das virtualidades que este confere àquele que cria
através da palavra, seja este poeta ou prosador. No entanto, para
além desta dimensão que participa daquilo que poderemos
designar imaginário textual, uma outra deve ser apontada, a
hermenêutica. Esta pode ser subliminar ou explícita. Subliminar,
quando o referente introduz o seu próprio tempo, sem que o sujeito
(o poeta, ou o prosador) interfira expondo os seus argumentos,
como sucede com o exemplo de Semprun. Explícita, quando essa
interferência é evidente. Um bom exemplo desta última
interferência poderá ser o poema «Naufrágio», de João Miguel
Fernandes Jorge, acima mencionado.
Como na altura sinalizei, este poema impõe-se como argumento,
o qual, por seu turno, pode enunciar um agon — termo que utilizo
aqui na sua significação radical e não na perspetiva bloomiana —
com argumentos precedentes, eventualmente dominantes. Neste
exemplo esse argumento abre, de forma inesperada, o poema.
Refiro inesperada, visto surgir entre parênteses, forma algo
displicente de indiciar a irrelevância dos tais argumentos
precedentes, isto é, aqueles que pretendem interpretá-lo através
de eventuais afinidades tópicas com Turner. Fernandes Jorge
afirma a irrelevância dessas leituras, justificando a sua na própria
tradição cultural da qual Sequeira participa. Depreende-se que,
mais do que a tal eventual afinidade com o pintor inglês, será
relevante ter presente, não uma tradição pictórica, mas sim
tradições endógenas como, por exemplo, a História Trágico-
Marítima.
Idêntica metatextualidade e consequente impulso hermenêutico,
pode ser reconhecido em instantes da obra de autores como
Marcel Proust ou Paul Claudel, onde, uma vez mais, Vermeer se
destaca. Em Proust é a pedagogia, a lição sobre aquele que deve
ser a derradeira finalidade da arte, através de um peculiar
(interdisciplinar, assim nos impele a dizer o cânone nos tempos
que correm) processo de anagnorisis. Vejamo-lo no passo seguinte
de La Prisonnière, de Proust:
[…] Bergotte […] entra à l’exposition. Dès les premières
marches qu’il eut à gravir, il fut pris d’étourdissements. Il passa
devant plusieurs tableaux et eut l’impression de la sécheresse et
de l’inutilité d’un art si factice, et qui ne se valait pas les courants
d’air et de soleil d’un palazzo de Venise, ou d’une simple maison
au bord de la mer. Enfin il fut devant le Ver Meer qu’il se rappelait
plus éclatant, plus différent de tout ce qu’il connaissait, mais où,
grâce à l’article du critique, il remarqua pour la première fois des
petits personnages en bleu, que le sable était rose, et enfin la
précieuse matière du tout petit pan de mur jaune. Ses
étourdissements augmentaient; il attachait son regard, comme un
enfant à un papillon jaune qu’il veut saisir, au précieux petit pan
de mur: «C’est ainsi que j’aurais dû écrire, disait-il. Mês derniers
livres sont trop secs, il aurait fallu passer plusieurs couches de
couleur, rendre ma phrase en elle-même précieuse, comme ce
petit pan de mur jaune.» [Maurrisson, 2006: 220-221]

O encontro com o quadro, e a consequente descoberta da


figuração de um detalhe, funciona como uma espécie de estrada
de Damasco estética, iluminando um novo rumo para a obra do
criador, que aqui funciona como um mero espectador. No entanto,
no objeto, naquela que poderemos considerar a sua essência
formal, pode igualmente desvendar-se uma outra arte.
Paradoxalmente, esta pode ser uma arte inexistente ao tempo.
Uma outra temporalidade indicia-se assim. Um exemplo do que
refiro é ainda proporcionado por Vermeer, e por este mesmo
quadro, Vista de Delft. A descoberta cabe agora a Paul Claudel.
Numa leitura onde Proust ecoa, refere Claudel em Introduction à la
peinture hollandaise: «Ce qui me fascine, c’est ce regard pur,
dépouillé, stérilisé, rincé de toute matière, d’une candeur en
quelque sorte mathématique ou angélique, ou disons simplement
photographique, mais quelle photographie! en qui ce peintre, reclus
à l’intérieur de sa lentille, capte le monde extérieur. On ne peut
comparer le résultat qu’aux délicates merveilles de la chambre
noire et aux premières apparitions sur la plaque du daguerréotype
de ces figures dessinées par un crayon plus sûr et plus acéré que
celui d’Holbein, je veux dire le rayon de soleil. La toile oppose à
son trait une espèce d’argent intellectuel, une rétine-fée» (idem:
22).
O olhar fotográfico, de um detalhe quase mecânico, é aqui
descoberto e enunciado através de uma afinidade estética avant la
lettre e de uma anacronia improvável. Contudo, uma outra
anacronia, desta feita, não só provável, como possível, pode ser
reconhecida num dos mais fascinantes diálogos entre artes que,
na minha opinião, surgiram nos últimos anos. Refiro-me a
Variações metálicas, um livro onde as esculturas de José Aurélio
são revisitadas pelos poemas de Vasco Graça Moura, diálogo esse
que seria posteriormente captado pela objetiva da fotógrafa Ana
Gaiaz. O livro está dividido em doze secções, às quais
correspondem doze poemas e um número variável de fotografias
que interpretam o diálogo antes referido. Ilustro a singularidade
desta obra através do primeiro poema, «oitavas da oficina»:

canto o rebite, o cravo, a dobradiça,


a luz coada junto das limalhas,
o alicate, a grade onde se eriça
um animal de pregos e cisalhas.
canto a chapa dobrada ou inteiriça,
o rigor milimétrico das calhas.
canto a paz mineral deste recinto
da dura criação, no labirinto

habita o minotauro, o que devora


no mais fundo do antro materiais
que despedaça à serra e à tesoura
e agrega depois noutros sinais,
o monstro vagaroso que elaboração
a dúctil lentidão dos seus metais
e nas formas que engendra tem ofício
de conjugar silêncio e desperdício.

[Graça Moura, 2004: 17]


A anacronia é aqui endógena ao poema; desde logo pela
escolha do género inscrito no título — oitavas — que envia para
um tempo remoto, clássico, obviamente distinto do da
materialidade do referente que lhe serviu de impulso, o presente, o
metal, o fragmento. A própria estratégia de enunciação — «canto»
— começa por enfatizar essa dissonância, algo que a última
palavra, ao designar um espaço de ruína industrial —
«desperdício» — confirma. A descrição do atelier do artista, na sua
minúcia exaustiva, coexiste, portanto, com um olhar dissonante,
crítico; ou seja, com uma certa distanciação face ao que é
«cantado». A anacronia impõe-se, neste caso, no próprio processo
dialógico, e a trans-memória é a do género que, qual fantasma,
desponta, com ironia, da memória histórica.

4.2. Incursões analíticas e vanguardas

Numa reflexão dedicada a Jorge de Sena em Os dois


crepúsculos, Joaquim Manuel Magalhães refere ser o autor de
Sinais de fogo «responsável, nos anos 60, por uma mudança
qualitativa na nossa poesia ao publicar Metamorfoses»
(Magalhães, 1981a: 59). De acordo com este poeta e ensaísta, tal
dever-se-ia ao facto de Sena aí ter erguido «a uma prática nossa a
possibilidade de ultrapassagem do lirismo objectivo da heteronímia
pessoana, propondo uma sequência de descrições subjectivas de
objetos artísticos» (idem). Magalhães destaca dois aspetos: em
primeiro lugar, a assimilação de uma tradição poética exógena,
anglo-saxónica, com a consequente abertura a novos diálogos e a
novos encontros estéticos; em segundo lugar, a possibilidade de
superação de, recorrendo à terminologia consagrada por Harold
Bloom, um poeta «forte» precedente, ou seja, Fernando Pessoa.
Começando por observar este último aspeto, recordo que o
próprio Sena definira de uma forma muito clara a sua relação com
Pessoa no posfácio a Metamorfoses, datado de janeiro de 1963.
Escrevera então que já se gastara «o desafinado disco de me
acharem discípulo», acrescentando algo de particularmente
relevante: «quando ele é o que é meu, pelo muito que,
criticamente, o expliquei por mim» (Sena, 1978: 167). Ora, será
exatamente através desta relação com o poeta de Mensagem, que
o primeiro aspeto acima citado, o da interação com as tradições
poéticas anglo-saxónicas, se insinua. Ainda que elipticamente,
importa, deste modo, explicitar de que forma.
Na esteira de Maria Irene Ramalho, Bloom considera em O
cânone ocidental que Pessoa edifica uma poética através das
possibilidades de enunciação oferecidas por Walt Whitman. As três
vozes do poeta norte-americano oitocentista (me, real me e soul)
projetar-se-iam, em Pessoa e nas identidades autónomas, os
heterónimos Alberto Caeiro e Ricardo Reis, respetivamente. Por
outras palavras, Pessoa convocara aquela que seria uma
incontornável tradição anglo-saxónica. A que tradição me refiro,
então? Àquela que temos vindo a convocar ao longo destas
páginas, uma tradição poética dramática que remonta a William
Shakespeare. Mesmo contornando os seus textos
convencionalmente poéticos, as personagens dos seus textos
dramáticos não se desvendam apenas através de uma
participação em ações e conflitos que se desenvolvem no espaço
cénico: Hamlet, Lear, Othello ou Brutus, captam a atenção do
espectador pela sua capacidade de se revelarem e — porque não
dizê-lo? — agirem através da linguagem. Independentemente dos
seus atos mais ou menos impressionantes, estas personagens
persistem para além do seu tempo pela forma peculiar como
espelharam numa linguagem nova as inquietações mais profundas
do ser humano num mundo em transição: a passagem do século
XVI para o XVII, isto é, o início daquilo que a historiografia designa
era moderna.
Em Shakespeare poder-se-á considerar central uma expansão
paradigmática da linguagem. Com efeito, as personae (máscaras)
shakespearianas são concebidas pelo caráter indissociável de dois
percursos: o sintagmático — a sua participação na ação; o
paradigmático — a (sua) linguagem. Por outras palavras, em
William Shakespeare a poesia participa do texto dramático; torna-
se parte integrante dele. T. S. Eliot explora esta dimensão no
ensaio intitulado «Hamlet» — «Encontramos o Hamlet de
Shakespeare não na acção, não em quaisquer citações que
pudéssemos selecionar tanto como num tom inequívoco» (Eliot,
1992: 20), elaborando e convocando o conceito de «correlativo
objectivo»:

O único modo de expressar emoção na forma de arte é


descobrindo um «correlativo objectivo»; por outras palavras, um
conjunto de objectos, uma situação, uma cadeia de
acontecimentos que será a fórmula dessa emoção específica; de
tal maneira que quando os factos exteriores, que devem resultar
em experiência sensorial, são facultados, a emoção é
imediatamente evocada. Se examinarmos qualquer das mais
bem-sucedidas tragédias de Shakespeare, descobriremos esta
equivalência exacta; descobriremos que o estado de espírito de
Lady Macbeth, ao caminhar durante o sono, nos foi transmitido
por uma hábil acumulação de impressões sensoriais imaginadas;
as palavras de Macbeth ao saber da morte da mulher atingem-
nos como se, dada a sequência de acontecimentos, estas
palavras fossem automaticamente provocadas pelo último
acontecimento da série. [Idem]

Estamos perante uma estratégia de sugestão, de evocação


subtil, indireta, na qual a linguagem, promovida a instrumento de
progressão dramática, desempenha uma função central nessa
dinâmica. Na Inglaterra seiscentista, com os chamados poetas
metafísicos, observa-se a consagração de um processo algo
inverso. Neste caso, George Herbert ou John Donne, entre outros,
transportam a dimensão dramática para a poesia. Talvez por isso
Eliot veja neles os «sucessores dos dramaturgos do século
dezasseis» (idem: 29). De que forma se processa essa
transposição e como se realiza essa herança? Em primeiro lugar,
através da dramatização de uma enunciação poética que se revela
suportada por personae, por personagens, máscaras. Em segundo
lugar, através da «riqueza de associação», sustentada por uma
«linguagem simples e elegante» (idem: 27). Defende a este
propósito Eliot: «A estrutura das frases […] está por vezes longe
de ser simples, mas isto não é um defeito; é fidelidade ao
pensamento e ao sentimento. […] como esta fidelidade origina
variedade de pensamento e de sentimento, também origina
variedade de música» (idem). Depreende-se que no espaço do
poema confluem logos e emoção, bathos e pathos, numa
superação do dualismo ontológico.
Será esta tradição poética e intelectual que, no início do século
XIX, servirá à segunda geração romântica inglesa, nomeadamente
a John Keats e a Percy B. Shelley, como forma de denegar o
caráter confessional da geração anterior, a primeira geração
romântica de viragem do século XVIII para o XIX, cujos vultos
maiores são William Wordsworth e Samuel Taylor Coleridge. Como
vimos, Keats e Shelley recorrem a várias entidades, entre as quais
se destacam objetos artísticos, que eles fazem despertar do
silêncio para «se substituírem» à imagem e à voz do poeta. Alguns
anos depois, em meados do século XIX, e ainda em Inglaterra,
Robert Browning inova esta estratégia de enunciação através da
transposição explícita de estratégias dramáticas para a poesia: o
monólogo dramático. Segundo João Almeida Flor, esta solução
daquilo que designa impessoalidade:

[…] permite-lhe propor leituras caleidoscópicas do real a


adoptar estratégias de dissociação, multiplicação e alterização do
Eu, o culto (mas também revelado) nas personagens-máscaras
que assume para por ele dizerem o mundo. O monólogo de cada
persona é apenas uma das cores do espectro solar que o prisma
do poeta decompõe no processo de contínua fragmentação e
análise, que decorre no espaço plural da consciência. Tomado
isoladamente, cada monólogo dramático apresenta uma
interpretação unilateral do mundo; é no complexo coexistir da
intertextualidade que se torna possível reunificar as experiências
e iluminar as questões dos mais diversos ângulos. [Flor, 1980:
14]
Estaremos perante uma estratégia de impessoalidade ou de um
confessionalismo gerado pela refração no encontro com o objeto?
Creio ser esta a perspetiva que mais se aproxima das enunciações
que tenho vindo a convocar e propor. Posteriormente, já no século
XX, em pleno Modernismo, essa estratégia de impessoalidade será
recuperada por vozes fundamentais da poesia coeva, como os
acima mencionados Fernando Pessoa e T. S. Eliot. Eliot fá-lo-á
com o intuito de denegar aquela que é a presença maior e
constrangedora do confessionalismo romântico, William
Wordsworth. A dissimulação — o simulacro — da tal
impessoalidade (a sua teatralidade) surgirá como alternativa
poética ao caráter mais evidente do confessionalismo de
Wordsworth. O seu conceito de «correlativo objetivo» representa,
assim, a filiação na acima mencionada tradição de dissimulação da
entidade autoral — numa determinada personagem, máscara,
dramatis persona —, a afirmação de uma originalidade criadora, e
ainda os limites de enunciação que o seu tempo — o ethos — lhe
permite (determinados temas considerados tabu, como, por
exemplo, a homossexualidade, podem ser evocados através das
personae escolhidas pelo autor, sem que exista uma exposição
óbvia deste).
Numa breve síntese, desvendemos as virtualidades de
enunciação decorrentes da estratégia que tenho vindo a delinear:
recusa de uma certa conceção de lirismo e do pathos a ele
associado; denegação de um confessionalismo apoiado em
narrativas autobiográficas; contenção; expressão indireta da
emoção; assunção da enunciação por parte de entidades várias,
como personae; recurso solos estéticos que são assumidos
enquanto potenciadoras de enunciação. Ora, é nesta estratégia
que Sena, tanto enquanto poeta como crítico, se movimenta; é
esta estratégia que ele reinventa através daquilo que Joaquim
Manuel Magalhães designa «expressão enquadrada», a qual se
«acrescenta» ao monólogo dramático de Browning, ao correlativo
eliotiano e à heteronímia pessoana (Magalhães, 1981a: 59). Uma
vertente, em particular, desta estratégia será nuclear para o estudo
que proponho, o da interação da poesia com as artes. Será aqui
que, como vimos acima, o génio de Sena se projeta. É no solo
desta tradição poética especulativa que o Modernismo anglo-
saxónico assume a sua singularidade, particularmente devedora
do encontro entre a palavra e a imagem.
Comecemos por observar os traços gerais das estéticas então
emergente, para melhor compreendermos depois a pluralidade de
percursos seguidos após o(s) Modernismo(s) e das ruturas por
este(s) enunciadas. Com efeito, na ausência de marcos precisos
para designar a emergência do(s) Modernismo(s), tomo como
motivo de reflexão a provocadora declaração de Virginia Woolf:
«On or about December 1910 human nature changed… All human
relations shifted — those between masters and servants, husbands
and wives, parents and children. And when human relations
change there is at the same time a change in religion, conduct,
politics, and literature» (Bradbury, 1976: 33). Trata-se, obviamente,
de uma elocução irónica, já que uma tão abrangente e radical
alteração de comportamentos, mentalidades ou estéticas não se
processa num instante nitidamente delimitado no tempo. A ideia de
rutura a ela subjacente é, todavia, relevante e merecedora de
análise, já que se afigura indissociável da interação entre a poesia
e as artes visuais no tópico que evoco neste instante, o dessa
entidade polifónica que conhecemos sob a designação de
Modernismo.
Para uma breve reflexão em torno deste tópico, regresso a
Cézanne, tomando como ponto de partida Cerejas e pêssegos, um
quadro por ele pintado entre 1883 e 1887; através deste abordarei
um conceito nuclear na revolução modernista, o de representação,
de mimese. Ao convocar os primeiros anos do século XX, somos
inevitavelmente confrontados com a presença de Cézanne, e deste
quadro em particular; de tal modo que, a par de Ceci n’est pas une
pipe, de Magritte, ele pode funcionar como um ícone desses
tempos. Justifica-se esta designação — ícone — através de um
intencional «erro» mimético. Onde reside esse «erro»?
Em Cerejas e pêssegos (cf. figura 25) Cézanne ignora, mais
correto seria dizer, sabota, a noção de perspetiva, a ilusão de
profundidade, e de consequente tridimensionalidade, herdadas da
Renascença. «N[est]a natureza-morta […], o prato de cerejas está
de tal modo inclinado para a frente que se tem a impressão de a
estar a ver de cima. Passa-se a mesma coisa com a parte traseira
da mesa, ao passo que a parte da frente está pintada de tal
maneira que se julga estar à mesma altura. O prato de pêssegos e
o pichel estão igualmente representados numa perspectiva mais
chã» (Becks-Malorny, 2001: 55). Subjacente a esta sabotagem da
perspetiva, surge a recusa da reprodução da realidade; em
contrapartida, Cézanne compõe uma realidade. Para ele, «[n]ão
são os objectos próprios que devem atrair a atenção, mas a
disposição das colorações e das formas segundo a concepção do
pintor. Mediante esta maneira de ver subjectiva […] Cézanne cria
uma nova realidade» (idem: 56). Com efeito, é toda uma tradição
de representação, remotamente radicada na Antiguidade Clássica,
prolongada na história da cultura ocidental, e atingindo o auge no
Renascimento (uma tradição que Erich Auerbach analisa no seu
clássico Mimesis), aquela que, neste ícone, é superada.
Registe-se outro aspeto, a banalidade «democrática», do
referente. Para criar «um novo plano da realidade», Cézanne «não
tem necessidade nem de objectos artísticos nem de decorações
sumptuosas: as coisas mais simples são aquelas que melhor o
ajudam a concretizar as suas concepções sobre a profundidade, a
consistência e o peso numa estrutura plana» (idem; itálico meu).
Recorde-se que semelhante banalidade referencial constitui, para
William Carlos Williams, um traço identificador daquela que,
segundo ele, seria a identidade americana. No ensaio «Painting in
the American Grain», ao abordar um certo início de uma tradição
pictórica norte-americana, Williams descreve-a por contraposição
com um cenário artístico europeu profundamente devedor da
ancestralidade do tempo. Escreve ele no início deste ensaio:
«HOW NOT TO begin an article on American primitives in painting:
You don’t begin by speaking about Giotto and Fra Angelico or even
Bosch, but of a cat with a bird in his mouth — a cat with a terrifying
enormous head, enough to frighten birds, or of a six-foot Indian in a
yellow breech clout» (McClatchy, 1990: 29). Esta será, afinal, uma
identidade marcada pela denegação da culpa — «There is no
serpent here» — decorrente da afirmação de uma vitalidade
adâmica, original, que a intensidade da luz sinaliza — «at their
[Adam and Eve’s] ease sit together our primordial parents, naked
and unashamed, bathed in sunlight» (idem: 29-30). Este é o Novo
Mundo democrático indiciado numa estratégia de representação
pictórica — a intensidade da luz.
Sensivelmente na mesma altura em que Cézanne desvendava
novos caminhos estéticos, do outro lado do oceano, numa
pequena cidade da Nova Inglaterra, um compositor norte-
americano, Charles Ives, antecipava as ruturas a nível do
atonalismo e dodecafonismo que Arnold Schoenberg iria formalizar
na cena musical do início do século XX. Para entender a amplitude
da sua inovação, recorro ao segundo movimento da peça Três
lugares na Nova Inglaterra, intitulado «Putnam’s Camp, Redding,
Connecticut», uma fantasia composta a partir de uma
reminiscência da infância de Ives.
Durante uma celebração do 4 de Julho, este observou duas
bandas que se encontravam em extremidades opostas do parque.
Cada uma seguia o seu percurso em direção ao local onde ele se
encontrava, criando, no momento em que ambas se cruzaram,
uma impressionante dissonância. O músico retoma este episódio
na peça, representando a absorção, a intimidade do jovem através
de instrumentos de sopro, e daquilo que, convencionalmente, se
considera o registo da música erudita. Gradualmente, o tecido
musical (erudito) é invadido pela alteridade (um registo popular);
num determinado instante, quando as bandas se cruzam na mente
do sujeito, dá-se uma fusão entre registos distintos, o erudito e o
popular; aspeto fundamental: cria-se uma nova identidade, uma
nova dimensão estética. Coloca-se, assim, a questão de saber
como definir este novo registo artístico, já que ele não se enquadra
nos cânones, na convenção?
As ruturas modernistas, preanunciadas, entre outros, por
Cézanne ou por Ives, geram uma óbvia perplexidade de um leitor
ou de um espectador que são confrontados com realidades
estéticas que iludem, ignoram, sabotam, até, as convenções que
as precederam. Ora, a perplexidade evidencia-se face àquelas
vertentes estéticas que, na pintura, se afastam gradualmente da
figuração, perturbando a legibilidade convencional e abrindo
caminho para a chamada abstração. Curiosamente, será na
poesia, em particular na de Mallarmé, que a pintura pode
reconhecer um impulso significativo para esses novos caminhos —
«[…] ils [les pionniers de l’art abstrait] étaient fascinés par le
glissement de la fonction dénotative des mots vers leur force
expressive et émotionnelle intrinsèque» (Roque, 2003: 19) — e
para um reposicionamento face ao próprio conceito de
representação — «De même que la poésie constituait un langage
‘pur’, ils ont conçu analogiquement un art ‘pur’, lui aussi, par
l’accent mis sur les moyens de la peinture (lignes et couleurs) pris
par eux-mêmes et non plus mis au service de la dénotation
d’objets» (idem). Este processo, marcado por uma radical
intelectualização, implica um afastamento face à natureza. Refira-
se que, na opinião de Reynolds, o belo ideal decorreria da
depuração das imperfeições da natureza.
Entre as inúmeras ampliações estéticas, destaco o fauvismo
devido ao facto de, nesta vasta reformulação de conceitos e
objetivos, ele se impor pela defesa da artificialidade da pintura, e
pela ênfase na construção através da cor em detrimento da
imitação da natureza: quanto mais se afasta das cores da imitação,
mais se destaca a cor em si. Daí que Matisse tenha trabalhado um
«alfabeto das tonalidades» e um «alfabeto das linhas» com o
objetivo de as decompor nos seus constituintes mínimos ou
essenciais (cf. figura 26). Abstração e essência (belo?) confluem,
portanto. Nuno Júdice, um poeta que tem mantido um continuado
diálogo com as artes plásticas, medita sobre um instante
específico desse «alfabeto» em «Matisse (Période Fauve)».
Radicado num solo entre a subjetividade do olhar e o impulso
analítico, este poema evidencia as subtilezas estéticas que
caracterizam a obra de Matisse nessa fase Fauve — «chegou ele
à libertação da cor, à expressão intensa / de superfícies sólidas, à
regulação da obscuridade» (Frias, 2016: 121) —, e uma
singularidade que momentos ulteriores ultrapassariam — «O
volume do corpo, em obras posteriores, veio no entanto a marcar /
as harmonias periféricas de um movimento de reflexos» (idem).
Assume particular relevo nestes versos a consciência de uma nova
estética da perceção e, consequentemente, da representação, que
perpassam na obra de Matisse e que Júdice verbaliza
superiormente do seguinte modo: «Cada imagem mental, dando
origem a grandes ordens de revelação, / condensa as tempestades
do olhar na reconstituição do modelo» (idem: 122).
Esta meditação do autor de A Noção de Poema exige um breve
regresso ao conceito de representação. Em Inner Vision — An
Exploration of Art and the Brain, um estudo fascinante sobre as
subtis relações entre a pintura e o funcionamento do cérebro,
Semir Zeki esclarece que a noção de perspetiva tradicional
assenta numa conceção errónea, a de que a imagem do mundo
visual é «impressa» na retina e depois transferida para ser
«recebida» pelo córtex «visual» onde seria descodificada e
analisada. Segundo a perspetiva científica atual, a «impressão» da
imagem na retina constitui apenas um estádio inicial no processo
elaborado da visão que se estende a áreas superiores do cérebro;
a retina funciona como filtro e regista transformações na
intensidade da luz, ou nas ondas de luz entre um campo de visão e
outro, e depois transmite estas informações para o córtex cerebral.
A retina não consegue excluir a informação desnecessária, nem
selecionar apenas o que é fundamental para representar as
características essenciais e constantes do objeto. Além disso, ela
está ligada apenas a uma parte do córtex cerebral e não ao seu
conjunto (área V1).
De acordo com esta perspetiva, Zeki conclui que,
neurologicamente, a grande arte poderá ser definida como a que
mais se aproxima da representação do maior número de facetas
da realidade, deste modo satisfazendo a busca do maior número
possível de essenciais por parte do cérebro. Como se caracteriza,
então, a constância face a um determinado objeto? A partir de um
desdobramento deste conceito. Teríamos, assim, a constância
situacional — uma dada situação tem características comuns a
muitas outras análogas, permitindo ao cérebro reconhecê-la como
representativa, e a constância implícita — obras «incompletas»
que o cérebro pode interpretar sob diferentes perspetivas.
Estamos, portanto, em pleno solo de ambiguidade (de sentido) e
de convocação da memória (de outros signos).
Deduz-se que um quadro não poderia representar um objeto;
apenas o cérebro teria a capacidade para o fazer, visto tê-lo
percecionado sob diferentes ângulos e tê-lo categorizado como
representando uma classe particular. Se lembrarmos a obra de
Magritte, por exemplo, concluímos que ele explorou a memória
visual armazenada no cérebro, introduzindo uma espécie de
trompe de l’esprit análogo ao que Picasso descreveu nos seus
quadros de cubismo sintético. As relações entre objetos são tão
previsíveis que passam despercebidas, o que diminui o seu valor.
Ora, Magritte alterou essas relações, assim sabotando a noção de
representação (Zeki, 1999: 1-36).
Às inovações a este nível introduzidas por Cézanne e pelos
fauvistas, e às reformulações estéticas de Ives (coabitação e
posterior fusão de sistemas referenciais com origens distintas —
erudita e popular), deverão ser acrescentadas aquelas que, entre
finais do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX,
noutras formas de expressão artística vão tendo lugar. Tendo em
vista o propósito da leitura que tenho vindo a elaborar, destaco as
seguintes: na narrativa, e no romance, em particular, a chamada
corrente da consciência que se deve ao impacto da livre
associação estruturante na psicanálise freudiana; na poesia, o
processo de desconstrução das formas tradicionais — soneto,
sextina, redondilha, et al., e a consequente celebração do verso
livre, e dos processos de colagem e montagem, nomeadamente,
de registos discursivos oriundos de níveis culturais distintos que se
insinuam em estéticas pessoais; por fim, a emergência do cinema
(refira-se a elevação da montagem a categoria estética e narrativa,
realizada pelo cineasta russo Eisenstein) e da fotografia, como
formas de expressão artística autónomas.
A par destas alterações radicais assiste-se a uma, explícita ou
implícita, crescente interação entre diferentes assunções estéticas,
algo que a poesia de Cesário revelou. Como pudemos constatar
através dos seus poemas, em Cesário a dimensão emocional —
pathos — surge a par da especulação intelectual — bathos —,
decorrente da articulação entre a linguagem poética e a
componente visual. Como temos vindo a observar, esta
especulação emocional é algo de relevante na tradição poética
anglo-saxónica, como referia, aliás, Jorge de Sena: «Os ingleses
nunca puseram em causa a grandeza lírica de Wordsworth ou de
Shelley filosofando em verso, nem acharam que o lirismo deles se
concentrava exclusivamente nos poemas breves» (Sena, 1978:
161). Ou seja, a estes poetas deve-se um radical encontro entre
estratégias convencionalmente associadas a outros géneros mais
narrativos, como a épica, e o olhar idiossincrático do sujeito; um
andar em profundidade sob a superfície das coisas, à semelhança
do que Emily Braun considera ser a estética visual inovadora de
Klimt (Kandel, 2012: 49). Afinal, «Wordsworth e os poetas
modernos pensam o objeto. Ao fazê-lo, estabelecem uma relação,
constituem o objeto como fenómeno» (Feijó, 2015: 44).
Concluir-se-á que, no Modernismo anglo-saxónico, o discurso
poético e, em particular, a interação entre este e outros solos
artísticos, nomeadamente a pintura, participa de uma reformulação
mais vasta daquilo que então alguns poetas de vanguarda
entendiam dever ser a poesia. Através desta interação celebram-
se tanto a reflexão e a consequente intelectualização do objeto,
como a hospitalidade para acolher inovações operadas por esses
outros solos; por exemplo: a montagem cinematográfica que se
refletirá no caráter multivocal, fragmentário e elíptico do discurso
poético; a técnica de colagem ou a sobreposição de várias
camadas de tinta, assim criando diferentes texturas que se
refletirão na poesia através da óbvia ou, tantas vezes, subliminar,
coexistência e/ou sobreposição de vários registos, narrativas e/ou
máscaras — personae; e ainda a confluência de registos culturais
e sociais distintos — o erudito e o popular — num só espaço
textual, como sucede com a música de Charles Ives, e que se
refletirá na poesia em termos de uma coabitação de níveis de
linguagem radicalmente diferentes (entre o erudito e o familiar /
popular).
Além destes aspetos insinuam-se ainda uma nova conceção de
artista e um novo diálogo do criador com o espaço que o rodeia.
Segundo Roston, o Modernismo revela: «[a] new conception of the
writer or artist, including the fictional projection of himself into the
created work […]». É a partir desta conceção que se opera a
reformulação do diálogo com o referente. O criador distancia-se
dos topoi celebrados pelas primeiras gerações românticas — «in
the picturesque hamlet, in the dark mists shrouding the city, in the
lonely shepherd, or in the wilderness of storm and tempest» — e
aprofunda o legado das gerações românticas ulteriores e das que
lhes sucederam, buscando motivos «[…] within the sculptor’s
studio, the art gallery, and the museum where, isolated from the
vulgarity of the outside world and from the ephemeral setting of
nature, he could apply to the eternal artefacts they contained the
aesthetic discrimination of a cultivated mind» (Roston, 2000: 176).
A identidade artística afirmada no Modernismo implicaria, portanto,
um «realignment of interest», uma nova relação, mais distanciada,
crítica e cerebral, entre o sujeito e a obra de arte: «[…] emotional
identification became replaced by the more detached scrutiny of
the critic, for whom life had now itself become a form of artefact, to
be judged and evaluated rather than experienced» (idem: 176-
177).
Sustentados por uma superação das tradições realistas e
naturalistas, com os seus inerentes e inevitáveis intuitos
moralistas, destacam-se o caráter experimental do processo de
criação artística, a busca de formas de expressão inovadoras,
eventualmente reveladoras de uma estratégia individual, a
artificialidade, e a abertura a discursos provenientes de espaços
culturalmente excêntricos. Ainda antes de os artistas surrealistas
terem assimilado as potencialidades referenciais e estéticas
oferecidas por culturas asiáticas ou africanas, a abertura do
Ocidente ao espaço cultural japonês irá providenciar um
prolongamento do «culto oitocentista do artefacto» e da estratégia
de representação simbolista. Murray Roston define, do seguinte
modo, a assimilação daquela cultura: «The expressionistic
drawings by the Japanese artist Kiyotada, with areas of
unmodulated colour sharply outlined in defiance of mimetic realism,
the ceremonial porcelain vases with their sophisticated
ornamentalism, and the ritualized drama of the Noh and Kabuki
plays, where a bamboo rod, held horizontally, sufficed symbolically
to represent a bridge, provided cultural credentials from the past for
the stylized forms remote from the natural to which the new
generation was attracted» (idem: 174).
Neste solo de descoberta, encontro e assimilação da alteridade é
toda uma vertente de vanguarda que se insinua no início do século
XX, dando corpo a meditações teóricas e a práticas estéticas
singulares. Considerem-se dois exemplos. Em primeiro lugar, o
ensaio pioneiro de Wassily Kandinsky, Do espiritual na arte, onde o
artista explora, entre outros aspetos, a forma como a cor
impressiona espiritualmente o espectador, levando-o a concluir: «Il
est donc clair que l’harmonie des couleurs doit reposer uniquement
sur le principe de l’entrée en contact efficace avec l’âme humaine»
(Lichtenstein, 1995: 581). Em segundo lugar, a composição
sustentada por formas elementares geométricas realizada por Piet
Mondrian. Segundo Werner Haftmann, «[a]trás dele [Mondrian]
encontra-se uma nova figura de artista que está próxima do
matemático-teórico e que cria, à base de relações numéricas e
modelos fundamentais geométricos, a ordem formal em que se
baseia a harmonia. Estes quadros fabricados de forma
severamente geométrica […] têm alguma coisa de ícones, as
transparentes filigranas de números de um espírito inteligente que
contempla» (Sedlmayr, s.d.: 107). À semelhança do que sucede
com a música, a pintura não-figurativa evolui no sentido de
representar, não o fenómeno, mas sim a essência interna (idem:
69). No discurso poético, uma tradição configura esse objetivo, a
da «poesia pura» de Mallarmé, Rimbaud ou Verlaine. Pelo
contrário, com o poeta norte-americano Wallace Stevens, a
representação do fenómeno será indissociável do logos; daí que
em Notes toward a Supreme Fiction o processo se confunda com a
estrutura do poema. Como adiante veremos, outro poeta norte-
americano, Robert Duncan, identifica-se com ainda uma outra
vertente da representação do fenómeno.
A estética emergente desta demanda é assim indissociável, em
Stevens, da função da arte, a qual será por ele amplamente
exposta na ensaística de The Necessary Angel. Em «The
Relations Between Poetry and Painting», encontramos a resposta
teórica para aquele poema, a qual participa de uma conceção
neoplatónica que concede à arte essa capacidade de ordenação,
de afirmação de um sentido que, noutros discursos, o autor não
reconhece. Logo no início do ensaio Stevens cita um passo de
Appreciation, de Leo Stein, onde essa resposta teórica se
evidencia:

He [Stein] says that, when he was a child, he became aware of


composition in nature and gradually realized that art and
composition are one. He began to experiment as follows:

I put on the table […] an earthenware plate […] and this I


looked at everyday for minutes or for hours. I had in mind to see
it as a picture, and waited for it to become one. In time it did.
The change came suddenly when the plate as an inventorial
object […] a certain shape, certain colors applied to it […] went
over into a composition to which all these elements were merely
contributory. The painted composition on the plate ceased to be
on it but became part of a larger composition which was the
plate as a whole. I had made a beginning to seeing pictorially.

What had been begun was carried out in all directions. I wanted
to be able to see anything as a composition and found that it was
possible to do this. [McClatchy, 1990: 112-113]

Através da experiência de Stein convoca-se a urgência primeira


face à poesia e à arte contemporâneas, isto é, a de treinar, de
educar o olhar, de aprender a ver de novo: entender o signo «as an
inventorial object»; passar a enquadrar o fragmento do real
enquanto microcosmo, composição com uma estrutura, uma lógica
própria. A arte reeduca (a sensibilidade, a perceção d)o sujeito,
assim cumprindo uma função social, «in an age in which disbelief
is so profoundly prevalent or, if not disbelief, indifference to
questions of belief, poetry and painting, and the arts in general, are
[…] a compensation for what has been lost» (idem: 120).
Esta função social adquire em Ezra Pound uma dimensão
superior; com ele o texto participa da paideia. Pound é um dos
grandes poetas de língua inglesa do século que findou, assim
como um crítico e teorizador particularmente arguto. A ele se deve
uma radical agitação da cena literária inglesa modernista,
nomeadamente através da dinamização de dois movimentos
relevantes, o Imagismo e o Vorticismo. De reter ainda a sua
influência no já então consagrado Yeats; uma influência geradora
de uma viragem no seu percurso criativo e que o fará abraçar
aspetos relevantes da estética modernista anglo-saxónica. Aponto
apenas a vertente dessa influência relevante para esta minha
leitura. No inverno de 1913-1914, Pound deu a conhecer a Yeats
as obras dos jovens escultores Henri Gaudier-Brzeska e Jacob
Epstein, e o teatro japonês Nô. A escultura e o teatro Nô projetar-
se-iam, de formas obviamente diferentes, na poesia de Yeats.
Nesta forma de expressão teatral o poeta reconheceu uma
estratégia dramática que lhe permitia libertar-se do naturalismo e
dos constrangimentos cénicos convencionais; na escultura foi
colher a pluridimensionalidade que o levou a superar a
bidimensionalidade pré-rafaelita, inaugurando, a partir de
Responsabilities (1914), um novo diálogo da sua poesia com as
artes visuais e a possibilidade de uma nova representação
espacial no texto.
Uma das questões centrais nestes ensaios, de inovação ou
eventual rutura, é a da inteligibilidade do texto quando a abstração
se insinua, algo de que Yeats tinha consciência e que tentou
superar através da assimilação pelo discurso poético de
estratégias visuais, o símbolo e o padrão. A abstração na pintura47,
ou o atonalismo musical, se radicalmente reproduzidos
(transpostos para) no texto poético, torná-lo-iam ilegível. Daí que a
assimilação das ruturas celebradas noutras artes não tenha
significado transposição, mas sim refração; a refrações várias se
devem as inovações poéticas modernistas, como serão os casos
do Imagismo e do Vorticismo.
Importa sinalizar igualmente a intensidade do diálogo do poeta
irlandês com a estética pré-rafaelita. Recorde-se que aos pré-
rafaelitas se deve a exploração da potencialidade decorativa da
arte — tapeçarias, papéis para forrar paredes, vitrais, etc. —, o que
permitiu que esta invadisse o quotidiano, e o trabalho colaborativo,
inerente ao espírito de confraria48 envolvendo diferentes ofícios. Se
considerarmos que a espiritualidade é algo de endógeno à criação
pré-rafaelita, constataremos que essa potencialidade decorativa
permite a superação da dicotomia entre o espiritual e o funcional.
Entre os artistas que exploraram esta potencialidade destaca-se
William Morris. Refiro-o, em particular, devido à sua influência num
dos nomes maiores da poesia de expressão inglesa que
igualmente convocou a tradição em análise, W. B. Yeats. Devido à
extensão e complexidade da sua presença na poesia de Yeats,
restringir-me-ei a uma síntese que permita delineá-la.
Na obra de Morris, Yeats reconhece uma relação filosófica entre
as artes visuais e a poesia. Não estamos, portanto, perante a
dicotomia definida a partir da especificidade dos meios, na qual
suporta a superação do equívoco horaciano, elaborada por
Lessing. Para Morris, tal como posteriormente para Yeats, a
aproximação entre as artes visuais e a poesia deve-se à
coincidência na essência evocada e representada. Segundo o
poeta irlandês, a arte não-mimética corresponderá a este objetivo;
daí que ele considere William Blake um precursor da estética pré-
rafaelita. O desejo de evitar a abstração aproxima-o, inicialmente,
de um diálogo em atraso com a noção convencional da «ut pictura
poesis»; vejamos como: «[…] in the long process of composing
‘The Wanderings of Oisin’ (1889) he had refined his original notion
of song as a painted and be-pictured argosy and developed a more
satisfactory way of countering abstraction with picture» (Loizeaux,
2003: 42). Escrevi «aproxima-o», devido ao facto de Yeats ir
interiorizando a ideia de poesia enquanto visão. Ora, esta ênfase
permite-lhe pôr o texto em diálogo com (e assimilando) a essência
e a potencialidade do signo visual, evitando, todavia, a écfrase. No
ensaio que tenho vindo a convocar, Elizabeth Bergmann Loizeaux
define do seguinte modo esta articulação:

The visions that Yeats courted during the 1890s had “none of
the confusion of dreams” […] They possessed, rather, the
qualities he admired in the paintings of Blake and Pre-
Raphaelites: color and the separation of form by the wiry,
bounding line. The better the vision, the “more clear in color, more
precise in articulation” it would be […] For Yeats, the Pre-
Raphaelites represented in their pictures the same world of
imagination that was tapped by vision. Although the Pre-
Raphaelites depicted what is often called “dream,” their paintings,
especially in the early days of the Brotherhood, possessed the
clarity Yeats associated with vision. [Idem: 44]

A centralidade da visão, e do signo simbólico que lhe é


endógeno, devem ainda ser entendidos no âmbito de um diálogo
com tradições esotéricas que será uma constante na vida de Yeats
e que passa, igualmente, pela sua participação em várias
sociedades secretas. Entre estas, destaco a Order of the Golden
Dawn (Yeats aderiu a esta organização em 1890, tendo a ela
ficado ligado durante mais de trinta anos), devido ao facto de a
simbologia visual ser aí nuclear no processo de mediação
ritualístico. O símbolo permitia-lhe superar a dicotomia entre
abstração e objeto a representar, evitando, portanto, tanto uma
estética abstrata (que entretanto se delineava em certas
tendências das artes visuais), como aquela que ele considerava
ser uma estética descritiva. O símbolo era por ele entendido, algo
sincreticamente, como instrumento de expressão do abstrato. Eis
como o recurso ao símbolo, para além de participar de uma
renovação do sentido da vida, permite superar a dicotomia
lessinguiana entre artes do espaço e artes do tempo.
Decorrente desta superação surge a exploração poética do
espaço, como no poema dramático «The Island of Statues», onde
Yeats concebe um cenário pastoral devedor de um conhecido
quadro de Turner, The Golden Bough. Em «The Wanderings of
Oisin», um poema temporalmente próximo de «The Island of
Statues» (1889 e 1885, respetivamente), tentou transpor para o
plano textual elementos estruturantes das tapeçarias de Morris,
como a cor e o padrão. A bidimensionalidade não é, todavia,
superada na sedução que sente pela representação espacial na
pintura, pois os artistas que ele admira, ou recusam a ilusão da
tridimensionalidade herdada do Renascimento, ou introduzem
distorções na perspetiva que sabotam uma eventual estética
realista. Yeats associaria, então, a ausência de perspetiva à arte
imaginativa (idem: 52-53). A denegação de um presente marcado
pela industrialização, e da estética que o representa, condu-lo à
elaboração de cenários algo nostálgicos onde um sentido
essencial (uma ordem original) se desvenda. Seria necessário
aguardar pelo virar do século, e pelo seu encontro com o jovem
Ezra Pound que o conduziria às inovações modernistas, para que
ele se sentisse seduzido pela tridimensionalidade, transpondo-a
para o texto. Mas, para tal, deverá ter ainda lugar a sua descoberta
das potencialidades da escultura.
Retomando o impacto de Pound nestes movimentos, recordo
que me interessa registar apenas o que neles se assinala de
acolhimento, pelo texto poético, das estéticas visuais. Começarei
pela agenda imagista através da leitura do diálogo em análise,
levada a cabo por uma voz da geração que lhe sucedeu, Stephen
Spender. Refere este poeta inglês: «The Imagists tried to turn
poetry into word-painting or sculpture. They wanted to release
poetry from the burden of past conventions and traditional ways of
thinking by concentrating upon reproducing the image which
springs naked into the mind from the impact of modern life» (idem:
224). Ora, o próprio Pound abordaria a estética de vanguarda num
ensaio de 1915, intitulado «Vorticism». A novidade dos tempos
modernos é por ele aqui evocada em termos da necessidade de
reformular a perceção estética e de, consequentemente, encontrar
formas de expressão artística que a ela se adequem. Admite ele:
«Vorticism, especially that part of Vorticism to do with form […] has
brought me a new series of perceptions […] What was a dull row of
houses is become a magazine of forms. There are new ways of
seeing them. There are ways of seeing the shape of the sky as it
juts down between the houses. The tangle of telegraph wires is
conceivable not merely as a repetition of lines; one sees the shape
defined by the different branches of wire» (McClatchy, 1990: 20-
21).
Subjacente a este enunciado está uma mudança de paradigma
estético e a noção de composição evidente em Stevens; daí que
Pound afirme mais adiante: «It is possible that this search for form-
motif will lead us to some synthesis of western life which we find in
Chinese and Japanese painting. That lies in the future» (idem: 21).
Com efeito, naquele espaço de alteridade cultural a presença do
referente artístico desencadeia uma perceção, por parte do poema,
em tudo distinta do detalhe descritivo que perpassa a écfrase na
tradição literária ocidental. Enquanto nesta última a enargeia
decorre da forma como uma acumulação de pormenores permite a
recomposição visual do objeto, na tradição que encontramos no já
distante Shijing49, a enargeia é, de imediato, suscitada por uma
imagem vigorosa; é dessa sua energia que a enargeia se afirma.
O celebrado poema de Pound intitulado «In a Station of the
Metro», na sua contenção e energia simbólica devedor do haiku
japonês, ilustra esta conceção de enargeia, onde se desvenda
uma singular associação entre a palavra e a impressão visual que
ela deve suscitar: «The apparition of these faces in the crowd, /
Petals in a white wet bough.» Como demonstram estes versos,
Pound recupera o legado horaciano, mas não o reproduz, o que
poderia constituir uma regressão face à inovação proposta por
Lessing. Repare-se que Pound apresenta no primeiro verso aquilo
que poderia constituir uma écfrase. No entanto, ao lermos o
segundo verso, reparamos que este introduz um desvio semântico
face ao anterior, recusando, portanto, a função meramente
descritiva que o primeiro poderia indiciar. Encontramos um eco
desta tradição estética em «Vetusto templo ancestral», onde o
verso inicial — «Formoso templo brilhando» — designa, por si só,
uma atmosfera a partir da qual toda uma narrativa pode surgir: «Os
muitos Auxiliares — silêncio / Os que oficiam — sem mácula /
Dotados de inteira virtude. // É no Céu que há resposta /
Reverentes passos dão, rápidos / Nem será brilho ou glória / Os
homens não, nunca enfadam» (Carvalho, 2010: 39).
Ainda a propósito do Vorticismo, e antes de prosseguir, enfatizo o
facto de a designação escolhida para aquele movimento exibir a
importância do ritmo acelerado dos tempos modernos. Com efeito,
a relação do sujeito com o espaço é marcada por uma
intensificação desse ritmo, e pelo consequente dinamismo a ele
inerente, algo que Nu descendo as escadas, de Marcel Duchamp50
(cf. figura 27), demonstra. Dever-se-á referir a este nível a
importância do cubismo que Apollinaire definiria como «l’art de
peindre des ensembles nouveaux avec des éléments empruntés
non à la réalité de vision, mais à la réalité de conception» (Roque,
2003: 81). O cubismo faria deslocar o eixo da imitação para a
conceção. A revolução por ele enunciada radica, afinal, na
subversão de convenções que haviam persistido desde o
Renascimento, exibindo a simultaneidade da perspetiva e do olhar,
e deste modo indiciando a convivência de múltiplos tempos. Neste
sentido, o cubismo poderá ser entendido como uma tentativa de
resolver o paradoxo entre a realidade da perceção e a perspetiva
única do quadro, à qual Platão aludira.
Segundo Juan Gris, o cubismo é uma espécie de análise, uma
representação estática resultante do movimento em torno de um
objeto destinado a captar diferentes e sucessivas aparências, as
quais, fundidas numa só imagem, o reconstituem no tempo. O
conceito de relatividade inserir-se-á assim num processo de
subversão do olhar que, ao pôr em causa o sistema referencial
galileico, irá eliminar toda a possibilidade de convocação do
Absoluto. Talvez por isso se justifique que Hulme entenda a
passagem do Absoluto para o relativo como o traço distintivo da
arte moderna. Pound expõe, portanto, uma reformulação estética
da perceção do real, assente na energia vocabular, a qual, por seu
turno, decorre do recurso ao símbolo e da sua capacidade de
revelação visual. Conclui-se que o sincretismo de Pound revisita,
sem o reproduzir, o legado horaciano.
O eco na poesia das inovações levadas a cabo por outras formas
de expressão artística pode ainda ser observado através dos
exemplos acima citados de Williams e, como veremos em seguida,
de T. S. Eliot. Murray Roston associa vários aspetos
idiossincráticos da poesia de Eliot a experiências estéticas levadas
a cabo por vários movimentos da vanguarda artística do princípio
do século, nomeadamente dada, cubismo e surrealismo. À
semelhança de dada, acentuar-se-ia o caráter não convencional do
texto. Por outro lado, na esteira do cubismo surgiriam quer a
estrutura elíptica e fragmentária do verso, com a consequente
justaposição de perspetivas simultâneas e divergentes, quer a
forma fragmentária como a cidade é representada em «Preludes».
Roston acentua, além disso, a noção de quadro enquanto
palimpsesto, tal como ele surge em certos momentos da obra de
Picasso, como Les demoiselles d’Avignon, onde se sobrepõem
diferentes pontos de vista. Pela ampliação que nos permite deste
olhar, retomo, ainda que brevemente, o estudo de Semir Zeki:

Neurologically, and in terms of visual perception, what is


especially interesting is the ambiguity in the figure seated to the
bottom right, the last part to be painted. She could be facing us,
or facing to the right or to the left. Indeed she could even have her
back to us, with the head turned sharply toward us. There is also
an ambiguity about the direction of her face. The critic John
Golding, whose article on Cubism interestingly reads more like a
chapter on visual perception than on aesthetics, tells us that, “For
five hundred years, since the beginning of the Italian
Renaissance, artists had been guided by the principles of
mathematical or scientific perspective, whereby the artist viewed
his subject from a single, stationary viewpoint”; the “supreme
originality” of Les Demoiselles lies in the impression that “Here it
is as Picasso had walked 180º around his subject and had
synthesised his impressions into a single image” resulting in what
has been called “simultaneous vision”. [Zeki, 1999: 52]
Após ter elaborado esta síntese no plano estético, o autor
elabora em torno da estratégia de representação cubista a partir de
um ponto de vista estritamente neurológico: «The strategy that
Cubist art used was to present a view of an object from many
different angles, just as the brain views an object from many
different angles. But while the brain is able to combine these
different views and obtain knowledge about an object, and
categorise it, with the result that no individual viewing angle is
critical for the brain’s capacity to recognise that particular object, in
Cubist art this is not so. Its compositions […] are not recognisable
by an ordinary brain as the objects that the titles declare them to
be» (idem: 56). Será neste vasto solo de encontro e hospitalidade
a diferentes perceções (estéticas ou científicas) da realidade,
radical na Viena modernista, que uma nova sensibilidade vai
emergindo e que novas formas de representação são exigidas. E o
plano prosódico não será alheio às exigências que então se
colocam, como evidenciam as experiências ensaiadas por poetas
modernistas norte-americanos.
Com efeito, estes poetas que amiúde identificaram nas artes
visuais um solo para as suas meditações estéticas, para as suas
inovações prosódicas — como vimos através de poemas de
Williams, Pound, Stein ou Eliot —, e para a ínvia enunciação de
cenários mais íntimos, prolongaram uma poética de imersão quer
em ensaios sobre artistas e obras cujas afinidade ou suspeita eram
por eles considerados relevantes, quer em ensaios que iluminavam
as suas criações literárias. Mencionei o exemplo de Williams sobre
os primitivos, ou de Pound sobre o Vorticismo. Detive-me com
algum pormenor na importância que assume a dimensão reflexiva
no anglicista Jorge de Sena. Devo igualmente lembrar os textos
que Mark Strand dedica a Edward Hopper, visto ser através deles
que o modo como as circunstâncias de espaço e de tempo ecoam
na arte, são desvendadas, e assim uma identidade se insinua.
Sintetizo os tópicos detetados por Strand: numa subtil releitura
de Lessing, a escolha, por parte do pintor, de uma fatia significativa
de tempo para o seu impulso criativo — «Hopper’s paintings are
short, isolated moments of figuration that suggest the tone of what
will follow just as they carry forward the tone of what preceded
them. The tone but not the content» (Strand, 2007: 26; itálico meu);
a dimensão nostálgica que emerge da afinidade entre espectador e
referente — «It was a world glimpsed in passing» (idem: 3); uma
representação da cidade que, sob um simulacro realista, denuncia
o formalismo, através do recurso a uma luminosidade que, em
Nighthawks (cf. figura 28), afasta o espectador do drama
subentendido (idem: 5); a luz como configuradora da personagem
— «she seems sculpted in light» (idem: 35), a propósito de
Morning Sun; o olhar do espectador (do poeta?) que se afirma num
perturbante espaço de in-betweenness — «we are looking both at
and in, moving between the two as we shift our attention from one
side of the canvas to the other» (idem: 45).
As circunstâncias de espaço e de tempo enfatizam a
centralidade desse lugar entre; de um lugar entre que, na sua
figuração, nas suas tonalidades peculiares, na luz perturbante, na
suspensão, indicia o mistério. Ira Sadoff verbaliza e sintetiza a
singularidade desta suspensão que determina o nosso encontro
com o referente nas linhas iniciais do poema em prosa intitulado
«Hopper’s ‘Nighthawks’ (1942)»: «Imagine a town where no one
walks the streets. Where the sidewalks are swept clean as ceilings
and the barber pole stands still as a corpse. There is no wind. The
windows on the brick buildings are boarded up with doors, and a
single light shines in the all-night diner while the rest of the town
sits in its shadow» (Buchwald, 1984: 72).
Semelhantes incursões analíticas evidenciam a pluralidade e a
densidade que o diálogo entre a palavra e a imagem assume em
certas tradições criativas. Devemos observar, em seguida,
instantes poéticos em que prevalece a consciência desse diálogo;
refiro-me, portanto, ao tópico da autorreflexividade.

4.3. Autorreflexividade, meditando em torno da linguagem

Talvez pareça exótico iniciar esta secção com um regresso ao


passado oitocentista, com um regresso a Walt Whitman, mas o
poeta de «Song of Myself» impõe a sua presença nas mais
diferentes facetas do diálogo entre a palavra e a imagem. Afinal,
Whitman parece ter antecipado tudo; e a autorreflexividade
também. Com efeito, a par de uma reiterada interação entre texto e
imagem, registar-se-á, a nível da linguagem, a convocação de um
léxico marcado pela composição e impressão; por exemplo: no
capítulo 41 de «Song of Myself» surge «Lithographing Kronos,
Zeus, […] / Buying drafts of Osiris, […] / In my portfolio placing
Manito loose, […] / Accepting the rough deific sketches […]»
(Loving, 1990: 67; itálico meu); noutro instante de «Song of
Myself», capítulo 11, Whitman dialoga com o pintor seu
contemporâneo Thomas Eakins (Eakins era amigo do poeta e fez
um retrato dele); por outro lado, no poema «Once I Pass’d Through
a Populous City», de Children of Adam, refere: «Once I pass’d
through a populous city imprinting my brain for use with its shows
[…]» (idem: 94, itálico meu). Esta poética de imersão radical,
desvendada num léxico visual que se (con)funde com o texto
poético, confere a este último uma dimensão de autorreflexividade
que parece antecipar os novos rumos abertos pelo Modernismo e
ampliados em percursos estéticos que lhe sucederam, como
reconhece Carlos de Oliveira ao atribuir o título de «Colagem» a
um dos seus poemas (Oliveira, s.d.: 8). Comecemos por observar
de que modo esta poética se insinua no espaço anglo-saxónico,
antes de transitarmos para outros solos. Quatro nomes impõem-
se, então, a este nível: Wallace Stevens, Ezra Pound, T. S. Eliot e
William Carlos Williams.
Embora Stevens tenha explicitado esse diálogo em poemas
como «The Man with the Blue Guitar», onde Picasso é convocado,
será em «Anecdote of the Jar» que ele assimila o registo visual e a
sua função nuclear na reformulação, reordenação do espaço:

I placed a jar in Tennessee,


And round it was, upon a hill.
It made the slovenly wilderness
Surround that hill.

The wilderness rose up to it,


And sprawled around, no longer wild.
The jar was round upon the ground
And tall and of a port in air.

It took dominion everywhere.


The jar was gray and bare.
It did not give of bird or bush,
Like nothing else in Tennessee.

[Stevens, 1990: 76]

O signo, elemento artificial («não natural»), que, por ação


humana, é inscrito na natureza, leva à recomposição desta. Por
seu turno, a natureza, antes independente da intervenção exterior
(«wilderness»), é reenquadrada visualmente. Passando a existir
em função do signo, ela não é, propriamente, domesticada, ela
passa a ser apropriada pelo texto, em função do qual e no qual
ganha uma nova identidade, uma nova existência. Banal, simples e
despojado, sem vida, «gray and bare», este «jar» tem, contudo, o
poder de estruturar uma nova perceção do espaço, «It took
dominion everywhere»: é a partir desta figura geométrica que a
natureza e os seus elementos ganham novas identidades. O
próprio Tennessee, citado no último verso, surge em função desse
signo; a sua identidade não é já a de um Estado norte-americano,
com características socioculturais específicas, mas sim a de (mais)
um signo artificial dentro de uma moldura que o poema designa.
Em Raconti con figure, uma obra escrita após o Modernismo, que
devido à sua filiação narrativa elidi desta análise, Antonio Tabucchi
insere um breve poema ecfrástico a propósito de uma fotografia de
Gérard Castello-Lopes que, de algum modo, dialoga com a
formulação teórica enunciada por Williams. Escreve Tabucchi nos
derradeiros versos da segunda estrofe de «In mezzo al mare»:
«Non dimenticherò mai che in mezzo al mare / Gérard aveva
posato una pietra […]» (Tabucchi, 2011: 289). A natureza revela-se
aqui como uma construção da objetiva do fotógrafo, do seu olhar; é
nesse olhar que radica o espanto verbalizado pelo poema.
Por seu turno, William Carlos Williams apresenta uma assunção
consciente das inovações modernistas delineadas por Stevens.
Teresa Costa convoca extensivamente este aspeto em Williams
Saw it all… (2003). Ao seu ensaio recorro, em seguida, de modo a
observar alguns exemplos por ela analisados que ilustram essa
assunção. Relembro o acima mencionado «History», de Al Que
Quiere! (1917), poema que devemos inscrever num tempo
histórico-cultural — o Modernismo — e lembrar que ele participa
da civilidade descrita por Ezra Pound: «To be civilised is to have
swift perception of the complicated life of today; it is to have a
subtle and instantaneous perception of it, such as savages and wild
animals have of the necessities and dangers of the forest»
(McClatchy, 1990: 20). Mas, porque a convocação das artes
visuais, e da pintura, em particular, é algo de reiteradamente
presente na poesia de Williams, devo restringir a sua enunciação a
algumas vertentes que possibilitam entender a amplitude do
diálogo em análise. Nesse sentido sugiro que prossigamos com
outros dois poemas de Al Que Quiere!, «Woman Walking» e «Love
Song», que permitem observar outro tipo de problemática, a da
assimilação da estética cubista por parte da escrita. Comecemos
por «Woman Walking». A sua leitura integral é fundamental para
que se possa entender os ensaios prosódicos realizados por
Williams. Ei-lo:

An oblique cloud of purple smoke


across a milky silhouette
of house sides and tiny trees —
a little village —
that ends in a saw edge
of mist-covered trees
on a sheet of grey sky.

To the right, jutting in,


A dark crimson corner of roof.
To the left, half a tree:

— what a blessing it is
to see you in the street again,
powerful woman,
coming with swinging haunches,
breasts straight forward,
supple shoulders, full arms
and strong, soft hands (I’ve felt them)
carrying the heavy basket

I might well see you oftener!


And for a different reason
than the fresh eggs
you bring us so regularly.
Yes, you, young as I,
with boney brows,
kind grey eyes and a kind mouth;
you walking out toward me
from that dead hillside!
I might well see you oftener.

[Williams, 1987: 66-67]

Refere Teresa Costa a propósito deste poema que as estratégias


de representação cubistas podem ser desvendadas apenas nas
duas primeiras estrofes, as quais «são puro registo visual, com
total apagamento do sujeito» (Costa, 2003: 81). A descrição do
espaço revela uma aproximação às formas cubistas, como se
torna claro nas expressões marcadas por um visualismo
geométrico («oblique cloud», «saw edge», «silhouette» ou «corner
of a roof»), nas interações (interferências) entre os signos expostos
nos dois primeiros versos («An oblique coud of purple smoke /
across a purple silhouette»), na simultaneidade de perspetivas sem
aparente ligação entre si, e no caráter bidimensional indiciado em
«sheet of a grey sky».
Passemos, em seguida, para «Love Song». Uma vez mais
proponho-vos uma leitura integral do poema, pois só assim será
possível desvendar a presença dessa estética:

Daisies are broken


petals are news of the day
stems lift to the grass tops
they catch on shoes
part in the middle
leave root and leaves secure.
Black branches
carry square leaves
in the wood’s top.
They hold firm
break with a roar
show the white!

Your moods are slow


the shedding of leaves
and sure
the return in May!

We walked
in your father’s grove
and saw the great oaks
lying with roots
ripped from the ground.

[Williams, 1987: 71-72]

Antes de mais, lembro que, entre outros aspetos, o cubismo


expõe uma simultaneidade de pontos de vista e a representação
dos diferentes signos de acordo com uma perspetiva geométrica.
Coloca-se, assim, a questão de saber como se pode transpor para
a poesia essas vertentes? Uma forma muito óbvia de representar a
simultaneidade de pontos de vista será através da coexistência de
vários sujeitos de enunciação. No entanto, outra, mais subtil, há;
aquela que recorre ao jogo sintático através de especificidades de
versificação, o enjambement, o encavalgamento ou quebra de
verso. Se lermos atentamente os dois primeiros versos, reparamos
que eles apresentam duas perspetivas distintas: uma, decorrente
da leitura apenas do primeiro verso, segundo a qual «daisies are
broken»; outra, decorrente do enjambement, segundo a qual
«daisies are broken petals». Como explicita Teresa Costa, «‘petals’
é sujeito a uma dupla função sintáctica, servindo como nome
predicativo do sujeito da primeira frase e como sujeito da segunda.
Cria-se, portanto, uma duplicidade de perspectiva sobre a palavra
semelhante à utilizada nas composições cubistas» (Costa, 2003:
81). Desta forma, a ambiguidade associada ao jogo com o
enjambement permite uma simultaneidade de pontos de vista que
irá definir, desde o início, uma atmosfera estética para o poema.
Coloca-se, em seguida, a questão de saber como transpor para
o poema a perspetiva geométrica? Ora, a geometrização é, neste
poema, algo de inerente à representação da natureza, enunciada,
em sinédoque, através de uma palavra-chave, sistematicamente
repetida ao longo das diferentes estrofes, «leaves». Na segunda
estrofe a natureza revela-se na sua geometricidade: «Black
branches carry / square leaves». Aparentemente, o poema parece
retomar o tópico tradicional da renovação cíclica das estações
(«the shedding of leaves / and sure / the return in May!»). No
entanto, considerando a geometrização da natureza («square
leaves»), constata-se que este tópico não é apenas retomado; ele
é, com efeito, reformulado, ao capturar a natureza para o domínio
da sua representação.
Observemos, em seguida, «Metric Figure», outro poema de Al
Que Quiere! que levanta questões interessantes relativamente à
eventual assimilação de estéticas pictóricas. O primeiro verso
(«There is a bird in the poplars!», Williams, 1987: 66) parece
convocar uma temática romântica, em particular, através de signos
aí recorrentes, «bird» e «poplars» (o qual participa do campo
semântico «tree»). A ênfase introduzida pelo ponto de exclamação
atribui-lhe um caráter algo eufórico, celebratório, mesmo. Contudo,
o verso seguinte («It is the sun!») desconstrói este espaço de
significação; afinal, este «bird»: «[…] is the sun!». Semelhante
transposição abrupta para outro campo semântico, introduzindo
uma atmosfera algo fantástica ou alucinatória, prossegue no verso
seguinte quando as folhas se transfiguram em pequenos peixes
amarelos, e os ramos e o espaço circundante dão lugar a um rio
(«The leaves are little yellow fish / swimming in the river»). É esta
atmosfera que prevalece nos quinto e sexto versos, «The bird
skims above them, / day is on his wings». Não esqueçamos a
contaminação de campos semânticos; este pássaro é o sol. A
única palavra do sétimo verso explicita esta referenciação
recorrendo, todavia, à designação clássica, «Phoebus!».
Recordo a explicação de José Pedro Machado, no terceiro
volume do seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa:
«Phoebus […] tem origem no gr. phoîbos, à letra, o brilhante,
sobrenome de Apolo (phoîbos Apóllõn), donde Febo, ‘Apolo, o
Sol’» (Machado, vol. III, 2003: 29). Desde o século V. a. C. que
Apolo, o deus celebrado pela sua beleza, é identificado com o sol.
Todo este tipo de informação, etimológica e cultural, participante de
uma memória coletiva, surge condensada na palavra que Williams
escolhe para designar o sol no sétimo verso. Além disso, essa
palavra permite reler o verso anterior: de acordo com a lenda,
Zeus, pai de Apolo, ofereceu-lhe um carro puxado por cisnes, aves
consideradas sagradas. As asas constituem, portanto, um dos
signos aos quais o deus se encontra associado. Tanto as
condensações ao nível de várias evocações culturais, como o
poder sugestivo da imagem gerada, lembram uma vertente da
vanguarda literária acima referida, o Imagismo.
Com o oitavo verso assiste-se à introdução de uma nova
dimensão através do recurso à prosopopeia, «It is he that is
making / the great gleam among the poplars», que prossegue nos
versos seguintes com os quais o poema termina: «It is his singing /
outshines the noise / of leaves clashing in the wind.» Semelhante
subversão do registo semântico convencional evocará uma
atmosfera surrealista (Costa, 2003: 81). Todo este processo de
flutuação entre diferentes campos semânticos, apoiado, entre
outros aspetos, nas evocações culturais clássicas, permite
observar uma subtil assimilação de estratégias de representação
artísticas por parte do texto poético. «The Great Figure» revela
essa radical assimilação. À semelhança do que referi acerca de
alguns poemas de Drum-Taps, também aqui o visualismo é
endógeno, participa da estrutura do poema. Fá-lo, todavia, não
através de uma descrição do movimento veloz de um carro de
bombeiros, mas através de uma estratégia devedora do
Vorticismo: o número 5 irrompe, qual núcleo de um vortex,
centralizando esse movimento.

Among the rain


and lights
I saw the figure 5
in gold
on a red
fire truck
moving
tense
unheeded
to gong clangs
siren howls
and wheels rumbling
through the dark city.

[Williams, 1987: 174]

Por esse motivo, o pintor Charles Demuth tomou-o como eixo da


sua representação visual do poema em The Figure 5 in Gold (cf.
figura 29).
Porque alguns críticos identificam ainda uma certa presença do
surrealismo nos poemas acima citados, lembro que, ainda antes
de Plath convocar subliminarmente o surrealismo, através de De
Chirico, será em Gertrude Stein que este conhece algumas das
suas representações verbais mais radicais.
Tender Buttons leva ao limite esta estética sustentada por uma
intensa presença visual; por exemplo, observe-se a sabotagem da
solenidade logocêntrica através das analogias selvagens de «A
Red Hat»: «A dark grey, a very dark grey, a quite dark grey is
monstrous ordinarily, it is so monstrous because there is no red in
it. If red is in everything it is not necessary. Is that not an argument
for any use of it and even so is there any place that is better, is
there any place that has so much stretched out» (Stein, 2003: 252).
Devo recordar quão significativa é a leitura em voz alta destes
textos, pois só assim a fluidez e os equívocos sintáticos adquirem
uma esteticamente subversiva intensidade.
Para além das incursões surrealistas em Tender Buttons, Stein
explora em «Susie Asado», um poema sobre uma bailarina
espanhola, eventuais fusões entre surrealismo e cubismo. Se a
dimensão surreal é evidente numa leitura silenciosa, já a leitura em
voz alta que lhe sugiro, caro leitor, será essencial para também
neste caso entender o movimento inerente à estética cubista:

Sweet sweet sweet sweet sweet tea.


Susie Asado.
Sweet sweet sweet sweet sweet tea.
Susie Asado.
Susie Asado which is a told tray sure.
A lean on the shoe this means slips slips hers.
When the ancient light grey is clean it is yellow, it is a silver seller.
This is a please this is a please there are the saids to jelly.These
are the wets these say the sets to leave a crown to Incy.
Incy is short for Incubus.
A pot.   A pot is a beginning of a rare bit of trees. Trees tremble,
the old vats are in bobbles, bobbles which shade and shove
and render clean, render clean must.
Drink pups.
Drink pups drink pups lease a sash hold, see it shine and a
bobolink has pins. It shows a nail.
What is a nail. A nail is unison.
Sweet sweet sweet sweet sweet tea.

[Lauter, 1998: 1260]

O facto de os poetas de expressão inglesa ocuparem um lugar


relevante nesta reflexão não se deve apenas ao meu perfil
analítico primordial, mas, como tenho vindo a demonstrar, à sua
continuada meditação textual suscitada por signos visuais. Tal não
significa, porém, que esta a eles se confine, como tem ficado bem
claro. Entre os exemplos de horizontes culturais onde esta
meditação ganha relevância, surge o da poesia espanhola,
nomeadamente daquela que se situa num arco relativamente
amplo e diversificado que costumamos identificar como
Modernismo e a partir do qual, em Espanha, surge a chamada
Geração de 27. Observámos instantes de várias incursões em
solos como o Museu ou o sagrado, pelo que será importante
sinalizar Rafael Alberti no âmbito do tópico que me ocupa neste
momento.
Margaret H. Persin identifica em pormenor a presença das artes
visuais, e do Museu em particular, na poesia de Alberti,
concedendo particular enfoque a Los 8 nombres de Picasso y no
digo más que lo que no digo. À semelhança da subversão do
conceito de livro promovida por Whitman, também o poeta andaluz
o assume como um organismo produtor de sentido. Persin
menciona a este nível a sua incorporação da tradição de colagem
logo a partir da forma como, num plano paratextual, ele subverte a
representação convencional do cólofon utilizando-o como espaço
de indiciação lírica. Deste modo, uma margem do livro é integrada
na meditação poética global.
Ainda segundo Persin, ao incluir aqui um texto sobre Picasso,
Alberti incorpora indiretamente no texto os conceitos de fragmento
e de enquadramento visual, o que irá suscitar uma alteração do
estatuto de leitor que, neste espaço fluido entre diferentes
estratégias de representação, é reconvertido num espectador
(Persin, 1997: 64). Por seu turno, o diálogo específico com Picasso
permite-lhe desenvolver uma estratégia de reflexão sobre a sua
própria criação poética, através da conceção de uma espécie de
correlativo textual das estratégias estéticas do pintor, em particular
do seu uso da arte primitiva; refere Persin: «Alberti gives echo to
Picasso’s cubist undertaking by constructing a verbal text of
exquisitively crafted verbal shards, collagelike scraps of language
that one recall models of composition and beauty as well as signal
that the stylishness of these art forms has long since passed»
(idem: 74). A ensaísta ilustra este argumento com os versos
dedicados a Les Demoiselles d’Avignon.
Concluir-se-á que Rafael Alberti usa a écfrase quer como
estratégia autobiográfica (idem: 53), quer como avaliação crítica do
objeto artístico, como sucede na sua convocação de Picasso —
«By utilizing both styles of temporal representation, the fixed-point
narrative style of the Renaissance tradition and the
multiperspectivalism of the avant-garde, Alberti’s Text on Picasso is
metatextual and metacubist» (idem: 60).
Devo recordar que uma meditação poética suscitada pelo
fragmento em Picasso havia surgido num poema de um dos
grandes vultos do Modernismo norte-americano, o acima
mencionado Wallace Stevens. Com efeito, na parte XV de The Man
with the Blue Guitar, a persona questiona: «Is this picture of
Picasso’s, this ‘hoard / Of destructions,’ a picture of ourselves, //
Now, an image of our society?» (Stevens, 1990: 61). O leitor terá
identificado nestes versos um fragmento de óbvia
autorreflexividade, aquele que o poeta colocou entre aspas. Trata-
se, portanto, como denunciam as aspas, de uma citação.
Consequentemente coloca-se a questão de saber a quem
devemos atribuir a sua autoria. Ora, numa conversa em 1935,
Picasso descreveu o seu processo de criação artística como «une
somme de destructions» (Cheeke, 2008: 128).
O processo de construção artística sustentado pelo fragmento —
eventualmente por esse derradeiro signo de alteridade que o resto
é — será promovido por Stevens ao estatuto de espelho do
indivíduo seu contemporâneo. Nesta hipotética dimensão
especular — recorde-se a interrogação do poema — é toda uma
identidade contemporânea que, por sinédoque, se revela. Não
posso, por isso, esquecer o eco nestes versos de outro diagnóstico
modernista daquele início do século XX, aquele que T. S. Eliot fez
em «The Burial of the Dead», a secção inicial de The Waste Land:
«you only know / a heap of broken images» (Eliot, 2015: 55). Tanto
o título do poema como o título da secção suscitam uma profunda
reflexão pelos diálogos culturais, literários, religiosos e míticos que
desencadeiam. O eficiente contributo de B. C. Southam, A
Student’s Guide to the Selected Poems of T. S. Eliot, havia já
identificado a amplitude das convocações que deles emana. No
entanto, a recente edição anotada da poesia eliotiana, da
responsabilidade de Christopher Ricks e Jim McCue, vai muito
mais longe na identificação dessas convocações, pelo que será o
instrumento mais valioso para quem pretenda tomar contacto com
a rica meditação levada a cabo naquele ponto alto da poesia do
século XX.
Com Eliot, Stevens e Alberti, na sua esteira, situamo-nos,
portanto, no plano de uma meditação promovida pela contenção,
pelo índice que o título é. Antes de progredir para outras
estratégias, devo lembrar João Candeias, um poeta nosso
contemporâneo. Exemplo desta estratégia subtil, não explícita, de
enunciação será o seu poema intitulado «el sordo». Este título é
acompanhado de um asterisco enviando para uma nota de fim de
página com a seguinte inscrição entre parênteses: «(Goya)»
(Candeias, 2002: 22). Se, por um lado, esta referência associa o
signo em causa — «el sordo» — a um artista em concreto, por
outro, ela exige ao leitor que o identifique em toda a sua plenitude
biográfica, pois só assim poderá compreender não só as eventuais
alusões existentes no texto, como a sua própria natureza.
Afinal, que signo é este? Um quadro? Um desenho? Um
esboço? Se assim for, então a natureza do texto poderá ser
associada à écfrase. E se não o for? Com efeito, «el sordo»
designa a quinta perto de Madrid onde Goya viveu entre 1819 e
1824, e onde concebeu as catorze obras que ficaram conhecidas
como Pinturas negras, entre as quais se destacará o famoso
Saturno devorando um filho. É com este contexto narrativo
biográfico que o poema dialoga:

na noite dos tormentos, nessa noite


em que os fantasmas deambulavam
pelo coração, olhou as paredes nuas
cegou-se de branca ausência, tamanho
cerco, e abriu janelas ao silêncio:
pintou terror, inferno, eternidade.
sonhara o sonho da razão
e o seu testamento escorreu lesto
pelos olhos da solidão.
aí, porque ouvira de novo o mundo
produziu monstros, como seria de esperar
do mundo.

[Idem: 22]

Neste simulacro especulativo em torno da atmosfera que terá


suscitado a produção estética de Goya naquela fase do seu
percurso, reside um pathos que, em instante algum, pode ser
confundido com sentimentalismo subjetivista. Eis uma virtude
desta tradição dialógica que João Candeias revisita.
Como instante propedêutico para um novo estádio desta análise
do título como instante de autorreflexividade, lembro o diálogo de
Jaime Gil de Biedma com imagens que não participam do cânone
visual da «alta cultura», um manual escolar: «Como aquellos
paisages, en la Geografía / Elemental de Efedeté, / con ríos y
montañas abrieéndose hacia el mar […]» (Biedma, 1996: 95). Com
efeito, a fuga ao cânone, ou, no limite, a sua denegação, algo que,
como é óbvio, não se coloca perante um manual pedagógico, pode
constituir o cerne do próprio impulso para a criação artística. A
chamada Arte povera, que emergiu em Itália no final da década de
1960, será um exemplo seminal dessa denegação.
Em pleno período de desenvolvimento desta corrente, Eugenio
Montale escreveu «L’arte povera». Neste poema Montale toma-a
como designação para verbalizar uma intenção programática
através daquele que será o olhar de quem a pratica; um olhar de
dentro, qual monólogo dramático, como observámos no capítulo
dedicado ao Museu. E assim revela aquilo que ela nos permite
redescobrir esteticamente nos banais signos do quotidiano.
Curiosamente, é todo um processo/percurso social e económico —
a criação, a compra, a exposição — que se desvenda:

La pittura
da cavalletto costa sacrifizi
a chi la fa ed è sempre un sovrappiù
per chi la compra e non sa dove appenderla.
Per qualche anno ho dipinto solo ròccoli
con uccelli insaccati,
su carta blu da zucchero o cannelé da imballo.
Vino e caffè, tracce di dentifricio
se in fondo c’era un mare infiocchettabile,
queste le tinte.
Composi anche con cenere e con fondi
di cappuccino a Sainte-Adresse là dove
Jongkind trovò le sue gelide lucci
e il pacco fu protetto da cellophane e canfora
(con scarso esito).
È la parte di me che riesce a sopravvivere
del nulla ch’era in me, del tutto ch’eri
tu, inconsapevole.
[Montale, 1984: 424]

Uma outra dimensão a nível da autorreflexividade do título pode


ser aquela em que este funciona como simulacro, como sucede
em «Trompe l’oeil», de Jaime Gil de Biedma (1996, 95-96). Talvez
seja, aliás, esta a conceção que subjaz à asserção de John
Ashbery, segundo a qual Parmigianino seria um antecessor de
Picasso devido à função que a distorção tem na sua obra (Cheeke,
2008: 129).
Exemplos há, todavia, em que o título do poema funciona por
excesso, isto é, por exibir uma carga tão impositiva de informação
que mais parece designar a entrada de uma qualquer Enciclopédia
ou fonte de pesquisa num motor de busca na Web. Delineia-se,
deste modo, um horizonte de expectativas junto do leitor, pois,
através desta designação, será inevitável ficar na posse de dados
factuais face a um objeto, a um autor. Pense-se num poema cujo
título corresponde ao nome de um artista; Max Ernst, por exemplo.
Porque este é, efetivamente, o título de um poema de Paul Éluard,
convoco-o para assim observarmos de que forma esse
condicionamento se impõe ao leitor… e ao poeta.
Devemos ter presente que a obra de Paul Éluard se caracteriza
por uma coabitação entre poesia e imagem, que se manteve ao
longo de toda a sua vida. Eis alguns exemplos: Premiers poèmes
(1913), quatro ilustrações de Ciolkowski; no frontispício de Le
Devoir et l’Inquiétude (1917), uma gravura de André Deslignères;
Les Animaux et leurs Hommes, les Hommes et leurs Animaux
(1920), cinco desenhos de Andé Lhote; Répétitions (1922), onze
colagens de Max Ernst; Les Malheurs des immortels (1922),
igualmente com colagens de Max Ernst; Au défaut du silence
(1925), com vinte desenhos deste mesmo artista; Nuits partagées
(1935), com duas ilustrações de Salvador Dali; Facile (1935), com
treze fotografias de Man Ray; Les Mains libres (1937), com
sessenta e oito desenhos de Man Ray acompanhados de poemas
de Éluard; Médieuses (1939), com trinta e cinco litografias de
Valentine Hugo; À Pablo Picasso (1944), com iconografia de Pablo
Picasso; Le Dur Désir de durer (1946), com vinte e cinco desenhos
de Chagall; Hommage aux martyrs et aux combattants du ghetto
de Varsovie (1950), com trinta e um desenhos de Maurycy
Medrzycki. Muitos outros exemplos poderiam ser ainda indicados.
O poema acima mencionado, «Max Ernst», que abre Capitale de
la douleur (1926), é, portanto, um instante apenas de um encontro,
de uma coabitação, de um diálogo central no percurso criador de
Éluard; um encontro, nomeadamente, com referências maiores da
arte contemporânea que, logo nesse livro inicial, se clarifica em
poemas como «Giorgio De Chirico», «Pablo Picasso», «André
Masson», «Paul Klee», «Georges Braque», «Arp», «Joan Miró».
Destaco-o por aquilo que, de singular, ele significa no âmbito desta
minha reflexão. Como referi, o título pode confundir-se com o de
uma entrada de uma enciclopédia, com tudo o que de informativo,
de registo denotativo isso implica. Contudo, é algo de radicalmente
diferente aquilo que o poema exibe. Desde logo, pelo título do
próprio livro em que ele se insere, Capitale de la douleur.
No prefácio à edição que utilizo, André Pieyre de Mandiargues
convoca um léxico visual para enunciar aquela que será, na sua
opinião, a singularidade deste livro: «[…] je vois en ces livres
[Capitale de la douleur, L’Amour, la poésie] des tableaux de la vie
commune telle que par l’amour elle est rendue poétique, c’est-à-
dire illuminée. Il n’est personne qui, pour un temps bref au moins,
n’ait fait l’expérience de pareille illumination […]» (Éluard, 1966: 8).
Quotidiano, perceção pessoal e transfiguração, eis alguns traços
deste registo inevitáveis na leitura do poema. Mas antes de
progredir, impõe-se uma breve digressão; uma digressão
sustentada pelo olhar penetrante de um ensaísta acima
convocado, Charles Taylor, sobre o paradigma cultural
contemporâneo.
Como acima referi, na introdução a Sources of the Self — The
Making of the Modern Identity, Taylor designa duas grandes
vertentes que participam da identidade moderna e que nos podem
ajudar a reconhecer com nitidez o lugar de Éluard no seu tempo: o
da intimidade (confessional) moderna, e o da afirmação da vida
comum, uma atitude intelectual que emerge com a Reforma, que
ganha uma dimensão secular mais profunda no Iluminismo, como
se pode observar nas normativas pragmáticas da Autobiografia, de
Benjamin Franklin, e que culmina na noção expressivista da
natureza como fonte moral interior (Taylor, 1989: x). É neste solo
onde se cruzam a intimidade (e a consequente peculiaridade de
cada olhar) e o quotidiano que Capitale de la douleur, e o poema
em apreço devem ser entendidos.
Eis, então, «Max Ernst»:

Dans un coin l’inceste agile


Tourne autor de la virginité d’une petite robe
Dans un coin le ciel délivré
Aux épines de l’orage laisse des boules blanches.

Dans un coin plus clair de tous les yeux


On attend les poissons d’angoisse.
Dans un coin la voiture de verdure de l’été
Immobile glorieuse et pour toujours.
A la lueur de la jeunesse
Des lampes allumées três tard.
La première montre ses seins que tuent des insectes rouges.
[Éluard, 1966: 13]

Que estes não são versos que iluminam o leitor face a dados
biográficos ou estéticos sobre o artista que lhe confere o título,
parece ser algo de evidente. Mas será? Recordemos os
contributos hermenêuticos de Taylor; convoquemo-los para a
leitura deste texto. Intimidade e quotidiano, numa breve síntese.
Atentemos na forma como ele, através de um léxico intensamente
visual — a reiterada designação do espaço através da anáfora, e a
intensidade da presença da luz —, parece libertar-se do sentido,
palavra esta que intencionalmente reduzo aqui a uma dimensão
denotativa. O imaginário surrealista simula prevalecer neste
espaço onde a prosopopeia impera, o que implicaria uma
sustentação do sentido nesse mesmo imaginário.
É, deste modo, num solo difuso que este quadro se delineia; um
quadro pintado pelo olhar do poeta, por uma subjetividade
profundamente radicada na sua intimidade, e, consequentemente,
por uma tensão emocional — «inceste», «angoisse». Todos eles
se projetam na conceção das imagens que lhe dão corpo. Será aí,
na expressão ínvia de uma inquietude quotidiana marcada pelas
tensões de uma narrativa (de traição?) amorosa — a relação do
pintor com Gala, a mulher do poeta — que os versos iniciais —
«l’inceste agile / Tourne autor de la virginité d’une petite robe» —
podem ser entendidos. Assim, intimidade e quotidiano definem os
seus contornos neste solo que a perspetiva estética do poeta
concebeu estranho; ou, como declarou André Pieyre de
Mandiargues, «la vie commune […] est rendue poétique, c’est-à-
dire illuminée».
A contaminação do texto poético por parte de registos visuais ou
de estéticas de determinados artistas, pode ser algo de banal num
quotidiano onde criadores de várias proveniências se encontram,
como sucede com a chamada Escola de Nova Iorque. Tão óbvio e
estruturante do quotidiano é essa banalidade, que poderíamos
considerar serem os textos poéticos então produzidos, solos de
uma autorreflexividade natural. Veja-se, por exemplo, «Alla
maniera di Filippo de Pisis nell’inviargli questo libro», de Eugenio
Montale, onde este poeta italiano assume conscientemente o
impacto que teve nestes seus versos a estética daquele pintor
modernista, deles fazendo mais um banal instante do quotidiano, à
semelhança do que amiúde sucede com Frank O’Hara:

Una botta di stocco nel zig zag


del beccaccino —
e si librano piume su uno scrìmolo.

(Poi discendono là, fra sgorbiature


di rami, al freddo balsam del fiume)

[Montale, 1984: 133]

Detenhamo-nos, porém, durante alguns instantes sobre dois


instantes da literatura norte-americana que ficariam conhecidos
como Black Mountain e Escola de Nova Iorque.
Reunido na universidade experimental da Carolina do Norte,
Black Mountain College, sob a direção de Charles Olson51, um
grupo de poetas, pintores, músicos, arquitetos, coreógrafos,
exploraram nos seus trabalhos as possibilidades de inovação (e
rutura) decorrentes das experiências exógenas. Num quotidiano
marcado pela partilha de experiências e descobertas, poetas como
Olson, Robert Duncan ou Robert Creeley (embora não integrando
formalmente o grupo, Denise Levertov colaborou nas revistas
Black Mountain Review e Origin), artistas oriundos do mundo da
dança como Merce Cunnigham, pintores como Robert
Rauschenberg e Josef Albers, e músicos como John Cage,
tentaram recuperar uma certa tradição experimentalista, em certa
medida devedora de Pound, com o objetivo de elaborar obras-
síntese onde contributos vários se fundiam. Incorporando
ensinamentos do mestre Arnold Schoenberg, do dadaísmo de
Duchamp, do budismo zen, e de escritores como Joyce, Pound e
(a poesia de) John Cage, através dos seus mesósticos (variantes
do acróstico), o grupo desenvolverá uma síntese de radical
dimensão visual onda a paideia se insinua.
No âmbito deste grupo interessa-me, em particular, Robert
Duncan, devido à forma como essa paideia nele se configura numa
interseção entre poesia, crítica de arte e religiosidade. Em «An Art
of Wondering», um ensaio sobre as explorações do signo verbal na
obra do artista Jess Collins, Duncan identifica o trabalho do pintor
com um «processo de comunhão e comunicação» do qual se
afirma uma mensagem espiritual. À semelhança do «ouija board»,
onde as palavras vão sendo formadas, soletradas, «do outro
mundo», também aqui as palavras participam de um processo de
autorreflexividade onde uma estrutura gradualmente se vai
configurando; daí a sua importância enquanto visão e revelação.
Duncan considera, assim, que a pintura de Jess (como o artista é
conhecido) é simultaneamente devedora das tradições herméticas
renascentistas e dos hieróglifos dos «mystery cults and alchemical
theaters» (McClatchy, 1990: 227-228). Na sua poesia ecfrástica,
Duncan prossegue esta perceção sincrética do real. Em «A Poem
Beginning with a Line by Pindar», por exemplo, a interpretação de
um quadro de Goya é intensamente determinada, condicionada,
por uma insistente articulação entre sensualidade e espiritualidade
(algo que não é estranho às tradições poéticas místicas e
herméticas):

In Goya’s canvas Cupid and Psyche


have a hurt voluptuous grace
bruised by redemption. The copper light
falling upon the brown boy’s slight body
is carnal fate that sends the soul wailing
up from blind innocence, ensnared
by dimness
into the deprivations of desiring sight.

But the eyes in Goya’s painting are soft,


diffuse with rapture absorb the flame.
Their bodies yield out of strength.
Waves of visual pleasure
wrap them in a sorrow previous to their impatience.
A bronze of yearning, a rose that burns
the tips of their bodies, lips,
ends of fingers, nipples. He is not wingd.
His thighs are flesh, are clouds
lit by the sun in its going down,
hot luminescence at the loins of the visible.
But they are not in a landscape.
They exist in an obscurity.

[Hall, 1976: 60-61]

Competirá assim à poesia penetrar essa obscuridade e


desvendá-la.
Será, todavia, com a chamada Escola de Nova Iorque, que este
diálogo entre a poesia e as artes visuais atingirá dimensões mais
peculiares, bem distantes das intensões didáticas da paideia.
Corriam os anos 50, os anos da guerra da Coreia e do macartismo,
quando um grupo de jovens poetas residentes em Nova Iorque,
reconhecendo as suas afinidades estéticas e artísticas, iniciaram
uma intensa vivência comum, criativa e cultural. Frank O’Hara,
John Ashbery, Kenneth Koch (que se tinham conhecido em
Harvard) e James Schuyler tinham em comum uma pose
anticonvencional, antiformalista (o formalismo poético neoeliotiano
prevalecia ainda nas universidades através dos seus sucedâneos
do new criticism), uma herança poética francófona (Rimbaud,
Mallarmé e os surrealistas, para O’Hara, o qual sentia ainda
profundas afinidades com Mayakovsky; os surrealistas e Raymond
Russell, para Ashbery; Pierre Reverdy, René Char e Paul Éluard,
para Koch), e partilhavam ainda um quotidiano cosmopolita no qual
imperavam as deambulações pelos cafés, pelos bares, pelas
inaugurações de exposições, pelos Museus, pelos ateliers dos
artistas plásticos.
O seu envolvimento com o mundo artístico estendia-se ainda ao
plano profissional: O’Hara, Ashbery e Schuyler foram editores da
revista ART News; todos eles foram críticos de arte; e tanto
Schuyler como O’Hara foram curadores do Museum of Modern Art.
Estes eram os anos do internacionalismo artístico e estético, do
mecenato; os anos em que Nova Iorque sucedera a Paris como a
grande metrópole das artes; os anos em que artistas exilados,
devido à II Grande Guerra, abriam a sensibilidade daquele espaço
às novas estéticas de vanguarda. Esta abertura culminaria na
criação de um idioma estético americano, o expressionismo
abstrato ou Action Painting, indissociável da figura icónica de
Jackson Pollock.
O diálogo transdisciplinar que para os Black Mountainists
correspondia a uma estratégia programática deliberada, tornar-se-
ia algo de natural para a Escola de Nova Iorque.
Independentemente de eventuais ecos literários de precursores
fortes como Whitman ou Williams, será nas estéticas artísticas que
fervilhavam na cidade, no banal convívio entre artistas e escritores,
e na hospitalidade face à inovação, que poderemos desvendar as
inovações destes poetas. A estética baseada quer no caráter
acidental de uma poesia que flui naturalmente de um quotidiano
marcado pela vivência da arte, quer na irrelevância do referente, é
evidente em «Why I Am Not a Painter». Neste poema Frank
O’Hara evoca (narra?) uma visita ao estúdio do pintor Michael
Goldberg, a quem dedicaria, aliás, uma ode, «Ode to Michael
Goldberg (’s Birth and Other Births)»:
I am not a painter, I am a poet.
Why? I think I would rather be a
painter, but I am not. Well,

For instance, Mike Goldberg


is starting a painting. I drop in.
“Sit down and have a drink” he
says. I drink; we drink. I look
up. “You have SARDINES in it.”
“Yes, it needed something there.”
“Oh.” I go and the days go by
and I drop in again. The painting
is going on, and I go, and the days
go by. I drop in. The painting is
finished. “Where’s SARDINES?”
All that’s left is just
letters, “It was too much,” Mike says.

But me? One day I am thinking of


a color: orange. I write a line
about orange. Pretty soon it is a
whole page of words, not lines.
Then another page. There should be
so much more, not of orange, of
words, of how terrible orange is
and life. Days go by. It is even in
prose, I am a real poet. My poem
is finished and I haven’t mentioned
orange yet. It’s twelve poems, I call
it ORANGES. And one day in a gallery
I see Mike’s painting, called SARDINES.

[O’Hara, 1974: 112]

Num registo coloquial que, todavia, é sustentado por uma


modelação prosódica oscilante entre o troqueu e o jâmbico, algo
não percetível ao leitor que não está familiarizado com estas
subtilezas anglo-saxónicas, O’Hara reproduz o encontro
quotidiano, registando quer o acaso e a acidentalidade que marca
o processo de conceção artística e poética, quer a irrelevância do
referente, se o entendermos no âmbito de uma conceção estética
determinada pela, ou ao serviço da moral.
Mais do que eventuais antecedentes poéticos, Dada pode
funcionar como instrumento para a compreensão da poesia de
Frank O’Hara. Com efeito, «para uma diretriz fundamental da arte
moderna, a casualidade tem um papel decisivo. No Dadaísmo […]
eleva-se a casualidade na pintura e na poesia à categoria de
criadora, à categoria de compositora» (Sedlmayr, s.d.: 63). Ora, a
casualidade é estruturante em «Why I Am Not a Painter». A par
dela surge uma estratégia de «debunking», também ela radical em
O’Hara. Observemo-la em «On Seeing Larry Rivers’ Washington
Crossing the Delaware at the Museum of Modern Art», um poema
que, como o próprio título explicita, toma como leitmotiv um quadro
de Larry Rivers, um pintor do círculo frequentado pelo grupo.
Embora o referente do poema não seja Washington mas sim o
diálogo de Rivers com uma representação sua, recordo a
dimensão histórica deste Founding Father, enquanto personagem
respeitável e respeitada, caracterizada por sólidos princípios
éticos. Apesar de esta perspetiva ter sido recentemente
questionada, em finais da década de 1950 e no início da de 1960
ela persistia ainda. Estamos, assim, perante uma personagem
histórica e perante a sua representação artística. Será essencial
ter estes dois elementos presentes quando analisamos tanto o
quadro de Larry Rivers como o poema de O’Hara.
Rivers concebe o seu quadro numa tensão com a História da
Arte, mais precisamente com outro quadro, o de Emanuel Gottlieb
Leutze que, em 1851, representou a ação heroica de Washington
na Batalha de Trenton, durante a Guerra da Independência. Neste
trabalho a óleo de grandes dimensões (378,5 x 647,7 cm) (cf.
figura 30), Leutze expôs Washington entre onze dos seus homens,
num barco, atravessando as águas geladas do rio Delaware no dia
seguinte ao Natal de 1776. O movimento da bandeira e as reações
de algumas personagens dão ênfase ao vento forte e ao tempo
agreste. Visto estarmos face a uma representação supostamente
realista, anoto dois aspetos: a luz e o tamanho do barco. Por um
lado, a luz cria uma espécie de halo, sacralizando Washington,
herói da independência e primeiro presidente dos Estados Unidos.
Por outro, a luz foca a bandeira, assim simbolizando a autonomia
da América, a sua separação da Inglaterra. No entanto, de acordo
com os registos históricos, Washington atravessou o Delaware de
oeste para leste, ao amanhecer, pelo que o sol deveria despontar
no lado esquerdo do quadro. Refira-se, além disso, que surgem
sombras que parecem ser oriundas de outra (misteriosa?) fonte de
luz. O realismo envolvendo a representação da luz é, portanto,
questionado.
Detenhamo-nos, em seguida, sobre as dimensões do barco.
Importa assinalar que seria praticamente impossível transportar
doze homens num barco tão pequeno. Aliás, Washington usou o
chamado barco Durham, o qual era muito maior, podendo
transportar até quarenta homens. Ao optar por um barco mais
pequeno, o pintor pôde dar mais ênfase ao esforço requerido
durante a travessia. Estamos, assim, perante estratégias artísticas
de representação que participam de agendas políticas ou estéticas
subliminares.
Numa entrevista que Rivers concedeu a Frank O’Hara, o pintor
evidenciou a dimensão do quadro enquanto conflito (debate) com
ícones primeiros da cultura americana. Insinua-se ainda outro
conflito, agora no plano estritamente artístico, o da estética sobre a
qual apoia Washington Crossing the Delaware e as estéticas então
dominantes na cena artística nova-iorquina, entre as quais pontua
o acima referido expressionismo abstrato52. Este conflito é
explicitado na resposta de Rivers à pergunta formulada por
O’Hara, «What was the reaction when George [the painting] was
shown?» Eis as palavras de Rivers: «About the same reaction as
when the Dadaists introduced a toilet seat as a piece of sculpture in
a Dada show in Zurich. Except that the public wasn’t upset — the
painters were. One painter, Gandy Brodie, who was quite forceful,
called me a phony. […] all this was a reaction to the painting as
idea» (O’Hara, 1975: 113).
Para além deste conflito enunciado pelo pintor, outro subjaz à
conceção do quadro, aquele que Rivers exibe face ao que
pretende superar, embora não deixando de emular Washington
enquanto signo histórico. Refere Rivers:
[…] I was energetic and egomaniacal and what is even more:
important, cocky, and angry enough to want to do something no
one in the New York art world could doubt was disgusting, dead,
and absurd. So, what could be dopier than a painting dedicated to
a national cliché — Washington Crossing the Delaware. The last
painting that dealt with George and the rebels in hanging in the
Met and was painted by a coarse German nineteenth-century
academician who really loved Napoleon more than anyone and
thought crossing a river on a late December afternoon was just
another excuse for a general assume a heroic, slightly tragic
pose. He practically put you in the rowboat with George. What
could have inspired him I’ll never know. What I saw in the
crossing was quite different. I saw the moment as nerve-racking
and uncomfortable. I couldn’t picture anyone getting into a chilly
river around Christmas time with anything resembling hand-on-
chest heroics. [Idem: 111-112]

A descrição feita por David Lehman da atmosfera prevalecente


nos círculos artísticos e literários nova-iorquinos nas décadas de
50 e 60 do século passado (Lehman, 1998: 19-64) ajuda a
compreender as estratégias poéticas de O’Hara. Mais do que
recorrer às tradições literárias canónicas ou críticas (o formalismo
continuador do «New Criticism»), para desvendar uma tradição
para O’Hara, importa convocar o impacto que as vanguardas
artísticas europeias tiveram na sua geração e, consequentemente,
na sua poesia; um impacto que fará da autorreflexividade que
perpassa pelos seus poemas, algo de natural como respirar.
Entre estas, destaca-se a estética Dada; através dela ilumina-se
a poesia de O’Hara, nomeadamente o sentido de humor
subjacente ao caráter putschista com que sabota a solenidade e o
convencionalismo artístico e literário [numa ampla digressão
suscitada por esta dimensão, devo sinalizar a écfrase de Adília
Lopes intitulada «As duas irmãs Cholmondeley da Tate Gallery»:
«Biodegradáveis como a arte // Macabras como fotocópias / de
Maria e do bebé // Limão do Entroncamento / dupla esfinge / para
os turistas // Quatro trompas de Falópio contentes / que nem ratos
// (Eram gémeas53 / e deram à luz / no mesmo dia / do século
XVII)», Lopes, 1997:18], evidenciado, por exemplo, no seu texto
«Personism: A Manifesto». O título do poema que evoca este
quadro, desvenda essa sabotagem e essa dívida para com Dada.
«On Seeing Larry Rivers’ Washington Crossing the Delaware at the
Museum of Modern Art» atribui ênfase ao processo e ao ato
gerador do texto («On Seing»). Na sua banalidade e naturalidade,
este ato decorre de um contexto cultural, o da atmosfera
quotidianamente vivida pela Escola de Nova Iorque: o Museu
funciona, afinal, como um substituto do estúdio do artista (Mike
Goldberg) no poema «Why I Am Not A Painter».
Em écfrases mais convencionais como «Ode on a Grecian Urn»,
de Keats, ou Pictures from Brueghel, de Williams, o momento a
partir do qual o poeta constrói o seu diálogo com o signo visual é
algo de solene. Apesar das diferenças radicais entre ambos, tanto
Keats como Williams preenchem uma certa agenda teórica
clássica, ambos evidenciam uma moral. Ora, nos poemas de
O’Hara a écfrase surge como algo equivalente a «[having] a
hamburger and a malted and buy / an ugly NEW WORLD
WRITING to see what the poets / in Ghana are doing these days»
(O’Hara, 1974: 146), como ele escreve em «The Day Lady Died».
A Literatura e a Arte deixam de se impor na sua solenidade
institucional, à semelhança daquilo que Dada já propusera. E a
banalidade dos signos invade o próprio texto.
Ao lermos os primeiros versos do poema, constatamos que
tantos os heróis como a própria História são nivelados com os
restantes signos do quotidiano; tornam-se signos apenas, signos
entre outros signos — o conflito com a dimensão hagiográfica
decorrente da luz (o halo) no quadro de Leutze. A hagiografia está
ausente na ligeireza da tonalidade dos versos: «Now that our hero
has come back to us / in his white pants and we know his nose /
trembling like a flag under fire […]» (idem: 101). E no humor
revelado alguns versos mais adiante: «To be more revolutionary
than a nun / is our desire, to be secular and intimate / as, when
sighting a redcoat, you smile / and pull the trigger» (idem). Embora
este aspeto seja óbvio, não se pode ignorar o facto de estes
encontros (sabotagens?) com a História e com os seus signos
mais representativos, respeitados, emulados, só serem possíveis
em sociedades abertas, algo que o próprio O’Hara evidencia ao
escrever: «[…] how free we are! as a nation of persons» (idem).
Quão diferente este contexto cultural (de abertura de
sensibilidades e de livre realização da inteligência) daquele que, na
mesma altura, abafava um Portugal provinciano, e que Sena
desmonta (politicamente, também) em «Camões dirige-se aos
seus contemporâneos»!
A poesia de O’Hara é assim indissociável de um quotidiano onde
as diferentes sensibilidades e experiências criativas fluem
espontaneamente, e do seu ofício enquanto curador e crítico de
arte; daí a importância dos seus escritos sobre Jackson Pollock,
Franz Kline, David Smith, Robert Motherwell, Reuben Nakian,
Helen Frankenthaler, George Spaventa, Alex Katz, entre outros,
para uma ínvia compreensão da sua própria estética. Daí o caráter
torrencial da sua escrita e o impressionante número de poemas
registando, quais páginas de um Diário, as impressionantes
banalidades desse quotidiano. Algo de idêntico ocorre com o seu
amigo John Ashbery.
Crítico de arte na revista Art News e no jornal New York Herald
Tribune, Ashbery exibe na sua poesia uma reiterada sensibilidade
visual decorrente da assimilação das inovações a nível da pintura
com que quotidianamente se confronta (a música funciona como
outro solo de contaminação, mas a sua leitura deverá ser
convocada num estudo com outros objetivos). Some Trees, o seu
primeiro livro publicado em 1956 pela mão de W. H. Auden,
explícita ou, subliminarmente, desvenda essa presença em
poemas como «Two Scenes», «The Picture of Little J. A. in a
Prospect of Flowers», «Illustration», «The Painter» (uma sextina) e
«Le Livre est sur la table», nos quais o visualismo ecfrástico é
reiteradamente convocado. O seu livro seguinte, The Tennis Court
Oath, publicado em 1963, evidencia logo no título essa presença.
Le Serment du jeu de paume é uma obra de David sobre os
representantes do Terceiro Estado que assumiram a sua
autonomia institucional em plena época revolucionária. Refere
António M. Feijó «[q]ue o quase solipsismo de The Tennis Court
Oath acolha no título o exemplo paradigmático de uma arte pública
monumental denota a construção do volume como uma ironia
prolongada e configura o título como declinação paródica» (Feijó,
1995: 272). Que o texto recuse a écfrase indiciada no título, num
processo (jogo) de refração, é algo que dececiona um leitor por
esse título orientado (condicionado) num determinado sentido de
leitura, de reconhecimento; a ironia predomina assim. Mas a ironia
de um ínvio diálogo com a História projeta-se ainda na assimilação
de fragmentos discursivos com proveniências várias, à
semelhança das colagens de Rauschenberg.
Após Rivers and Mountains, The Double Dream of Spring, Three
Poems e The Vermont Notebook, surge em 1975 uma obra
radicalmente inovadora no âmbito desta tradição, Self-Portrait in a
Convex Mirror. Uma vez mais Ashbery exibe a presença explícita
da pintura no título do livro, o qual envia para Autorretrato, do
pintor quinhentista Francesco Parmigianino. Recorro à síntese
deste diálogo elaborada por Blasing:

Parmigianino’s painting questions Renaissance perspectivism


from within by a meticulous application of perspectival
techniques, coupled with the distortion of a convex
representation. Specifically, this distortion magnifies the painter’s
organizing hand as the centripetal focal point of the dispersal that
speeds up at the periphery of the convex mirror. Here, the
technique is played up to question a metaphysic. Ashbery’s
strategy is similar: in his «convex» composition, a «near-sighted»
focus on successive present moments of attention disperses the
past and the future. [Blasing, 1987: 202]

A par desta dispersão temporal surge a dispersão de registos do


discurso, oscilando entre a leitura da tradição ecfrástica, a crítica
de arte, e episódios quotidianos. No início, a tonalidade descritiva
simula a convencional écfrase — «As Parmigianino did it, the right
hand / Bigger than the head, thrust at the viewer / And swerving
easily away, as though to protect / What it advertises. A few leaded
panes, old beams, / Fur, pleated muslin, a coral ring run together /
In a movement supporting the face, which swims / Toward and
away like the hand / Except that it is in repose. It is what is /
Sequestered. […]» (Ashbery, 1987: 196). No entanto, algumas
expressões denunciam a intervenção do sujeito, a leitura subjetiva
que aí se realiza; considere-se, por exemplo, «as though to protect
/ What it advertises» e «It is what is / Sequestered».
Em seguida, o sujeito convoca a reflexão crítica, introduzindo a
leitura de Vasari (recorde-se quão significativo ele fora para
Browning): «Vasari says, ‘Francesco one day set himself / To take
his own portrait, looking at himself for that purpose / In a convex
mirror […]’» (idem). A erudição de Ashbery pode implicar uma
certa opacidade e, consequentemente, significar uma resistência
face ao leitor menos familiarizado com a tradição de representação
na qual o espelho, speculum, explícita ou implicitamente,
desempenha uma função primeira na estrutura do quadro (dos
autorretratos de Rembrandt ao espelho incluso no Autorretrato do
artista enquanto jovem, de Dürer); ou com a interseção desta
tradição ecfrásica com o monólogo dramático (de novo o eco de
Vasari em «Fra Lippo Lippi», de Robert Browning); ou com os
textos fundadores da tradição (Imagines, de Filostrato); ou com os
estudos de arte que influenciaram esta tradição ecfrásica nos
Estados Unidos (por exemplo, a influência de Craven e de Glück
em Pictures from Brueghel, de Williams); ou ainda com os estudos
de arte mais recentes (por exemplo, a monografia de Sydney
Freedberg sobre Parmigianino publicada em 1950).
Mas a erudição de Ashbery pode ainda significar uma certa
opacidade face ao leitor menos familiarizado com as écfrases mais
relevantes. Segundo Heffernan:

If “Self-Portrait” recalls both Whitman and Stevens, its debts to


Keats — and specifically to the ekphrastic Keats — are nowhere
more evident than in this nearly final passage of the poem [vs
530-40]. Like the passionate figures of the urn who finally retreat
into the ’overwrought’ pattern of a “cold Pastoral,” the erotic
image freezes and flattens out, taking with the dream of iconic
realization, of the two-dimensional figure three-dimensionally
materialized. […] “Do I wake or sleep?” [“Ode to a Nightingale”]
Ashbery turns Keats’s provocative question into a troubled
statement. “The ache / Of this waking dream” is, I gather, the
ache of a conventionally awake self-conscious dreaming of
‘reality’ […] [Heffernan, 1993: 188]

A este leitor escapará o diálogo com a tradição órfica que algures


interage com Shakespeare: «The figure of the englobed and
captive soul [vs. 56-65] […] recalls the ancient Orphic doctrine […]
that the soul is a prisoner of the body. The englobed soul evokes
Shakespeare’s sonnet 146, where the speaker apostrophizes his
own soul as ‘the center of my sinful earth’ and asks: ‘Why dost thou
pine within and suffer dearth, / Painting thy outward walls so costly
gay?’» (idem: 179).
O poema recusa a indigência intelectual, a indolência de quem
aguarda uma mera catalogação de banalidades patéticas; de quem
considera que a emoção nada tem de intelectual. Em
contrapartida, o poema exige uma elevação do leitor, um saudável
esforço de abertura e de aprendizagem, também; o que não
significa que a leitura se reduza a uma experiência dominada pelo
logos. Com efeito, essa erudição flui em Ashbery naturalmente; o
poema revela-se como comentário, solo do confessional, onde o
gosto e a perceção peculiar emergem. Posteriormente, esse
registo confessional intensifica-se na enunciação de eventos vários
envolvendo o sujeito; por exemplo, «Vienna where the painting is
today, where / I saw it with Pierre in the summer of 1959» (Ashbery,
1987: 203). Simula-se uma fuga à écfrase, à sua solenidade.
Contudo, como referi, o predomínio do registo ecfrástico não
significa uma rasura da dimensão confessional, a qual persiste,
mesmo que subliminarmente, ao olhar sobre o objeto, e às
próprias escolhas críticas, eruditas. Afinal, as escolhas, os
contributos de estudiosos como Vasari, são, também eles,
subjetivos. O confessional não se reduz a uma dimensão
freudiana, de registo de patologias ou de idiossincrasias
sustentadas por dramas familiares; o confessional participa,
portanto, de uma autobiografia… intelectual. Voltamos a Sena:
especular emocionalmente em verso. A distorção do signo visual
encontra eco nas sucessivas distorções (fugas) existentes no
texto. E assim a estética maneirista invade o texto.
A pintura não figurativa foi alvo de especulações ensaísticas
(entre as quais se situam a destes poetas), que refletiam,
nomeadamente, «sobre a natureza da pintura abstrata [e]
procuravam […] estabelecer as condições da sua inteligibilidade
[…]» (Feijó, 1995: 273). Nesse sentido Clement Greenberg irá
considerar que «o primeiro pintor moderno é Courbet, [por]que
tentou reduzir a sua pintura à transcrição dos ‘dados imediatos dos
sentidos’, como se o olhar fosse uma ‘máquina não ajudada pela
mente’» (idem: 273). Do mesmo modo, apontará o expressionismo
abstrato a «proposta pictórica mais revolucionária depois de
Mondrian», devido ao seu esforço para «rejeitar o contraste dos
valores como fundamento da composição» (Lichtenstein, 1995:
587). Clyfford Still inovaria, assim, segundo ele, por se libertar em
absoluto das «referências legíveis do cubismo» (idem: 587). A
ausência de uma autolegibilidade referencial ou alegórica pode
desencadear um discurso crítico decorrente dos meios específicos
do microcosmo: ênfases e/ou contrastes de cor, textura,
dimensão54, etc.; eventualmente, neles poderá desvendar
metonímias de uma agenda pessoal ou da agenda de um grupo.
Mas essa é uma reflexão para a secção seguinte. Para já um dado
persiste na nossa memória, o de uma estratégia de construção
poética concebida na consciência de uma alteridade, exógena — o
signo visual, ou endógena — a autorreflexividade, que
inevitavelmente se inscreve no quotidiano.
A interação com o quotidiano adquire assim uma evidente
centralidade que pode emergir do texto sob diferentes formas.
Uma delas será a que ocorre quando o texto opera um simulacro
diarístico, como sucede nas colagens que dão corpo à quinta parte
de La vita dei dettagli — Scomporre quadri, immaginare mondi, de
Antonella Anedda, onde fotografia (nomeadamente um autorretrato
em que a representação do sujeito surge diluída) e palavra
coabitam. Se neste caso os fragmentos visuais podem funcionar
como sinédoques de instantes biográficos do autor, criando assim
uma opacidade que apenas estudos biografistas se sentem
cómodos para deles se avizinharem, noutras circunstâncias a
opacidade pode, perdoai o paradoxo, ser invisível. Explico-me
melhor. Em determinados casos o signo visual é portador de uma
ambiguidade narrativa visível apenas para o crítico. Aponto dois
exemplos, distintos no tipo de ambiguidade que convocam: «On a
Painting by William Etty», de Landeg White, e «Interior, Degas», de
Moniza Alvi.
No primeiro caso, «On a Painting by William Etty», Landeg White
promove um diálogo com um quadro, no qual subliminarmente
convoca o percurso artístico deste pintor inglês da primeira metade
do século XIX. Celebrado pelas suas representações de narrativas
míticas e pela forma como nelas tornou centrais as figurações dos
nus, Etty voltar-se-ia, já no final da carreira, para as chamadas
naturezas-mortas. É sobre este percurso crepuscular, sobre esta
atmosfera da qual a vida parece lentamente alhear-se, que White
concebe o seu olhar: «Towards the end he painted / pheasants,
plumed iridescente / cock and drab hen together / limp with apples
and mirrored nuts / on an oak table» (White, 2015: 61). A
atmosfera de suspensão inerente à designação deste género
pictórico em inglês (Still life), prevalece, além disso, no detalhe
semântico com que o quadro é descrito: «these / stiffening
overdressed game birds, / fruits, fruits» (idem: 61; itálico meu).
«Interior, Degas», de Moniza Alvi, dialoga com o quadro de
Degas citado no título (cf. figura 31). Este quadro, concebido entre
1868 e 1869, e apenas exibido em 1905, transporta consigo
alguma opacidade face ao referente que o terá inspirado: um
episódio de Thérèse Raquin, de Émile Zola, de Madeleine Férat,
igualmente de Zola, de Les Combats de Françoise Du Quesnoy, de
Louis Edmond Duranty, ou ainda Les Lorettes, uma litografia de
Paul Gavarni vinda a lume numa publicação satírica intitulada Le
Charivari (Sidlauskas, 1993: 671-696). O tópico que ela convoca, o
conflito latente entre uma mulher (uma prostituta?) que surge
sentada em desalinho, de costas voltadas para um homem que,
em pé, encostado à porta do quadro, a enclausura, evoca The
Awakening Conscience, do pré-rafaelita William Holman Hunt.
A polémica envolvendo a fonte parece ficar à margem da
interpelação que Alvi dele faz, embora os versos iniciais sejam,
também eles, ambíguos: «We must save this room from itself, /
from its wallpaper cage// straked grey-green» (Alvi, 2008a: 19).
Mais do que uma leitura que tenta desvendar a eventual fonte
narrativa de Degas, Moniza Alvi inscreve o seu poema numa linha
de continuidade — que é também de contiguidade — face ao
tópico estruturante do seu livro, Europa, onde o rapto e a violação
participam do mito fundador. É neste contexto que o espaço, o
quarto, com os seus signos — «the rug», «the oval picture», «the
clothes», «the mirror», a sua luminosidade, adquirem uma
dimensão claustrofóbica que impede a fuga da mulher: «This room,
closed as a body, / with no visible window». Ou, já no final do
poema, «the hard-eyed man across the floorboards» (idem). É,
portanto, no domínio da composição que a poeta detém o seu
olhar sobre o objeto para aí desvendar aquela que será a
intensidade dramática da atmosfera que nele prevalece. A
alteridade exógena parece manter assim uma relação especular
com a poeta, ajudando-a a situar-se no seio de uma tradição de
diálogo entre palavra e imagem, a que surge associada ao
conceito de género.
Mencionei acima a obra de Katy Aisenberg Ravishing Images —
Ekphrasis in the Poetry and Prose of William Wordsworth, W. H.
Auden and Philip Larkin pela sua relevância para a compreensão
da intensidade política, violência mesmo, que subjaz ao olhar,
nomeadamente aquele que decorre de uma imposição do género
no encontro entre palavra e imagem; um encontro que, segundo
Aisenberg, «turned out to be less of a marriage than a rape»
(Aisenberg, 1995: 1). O texto poético que coincide com o discurso
ecfrástico não deixará de verbalizar esse conflito, como vimos na
subtil reescrita de «Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de
Goya», feita por Ana Luísa Amaral. A ironia inteligente e serena
desta poeta transparece também numa outra desmontagem do
olhar masculino como sucede em «Lines to a Teapot», onde a
poeta escocesa Joanna Baillie55 concebe aquela que pode ser
considerada uma versão feminina de «Ode on a Grecian Urn».
Num registo igualmente decoroso, «In an Artist Studio», Christina
Rossetti coloca no centro da enunciação um olhar masculino que
na representação da mulher — «a nameless girl» — projeta as
suas idiossincrasias. Para que esta tensão entre pathos e bathos
seja percetível, transcrevo este soneto na íntegra:

One face looks out from all his canvases,


One selfsame figure sits or walks or leans:
We found her hidden just behind those screens,
That mirror gave back all her loveliness.

A queen in opal or in ruby dress,


A nameless girl in freshest summer-greens,
A saint, an angel — every canvas means
The same one meaning, neither more or less.

He feeds upon her face by day and night,


And she with true kind eyes looks back on him,
Fair as the moon and joyful as the light:

Not wan with waiting, not with sorrow dim;


Not as she is, but was when hope shone bright;
Not as she is, but as she fills his dream.

[Gilbert e Gubar, 1996: 915]

Christina Rossetti evoca neste poema o estúdio do seu irmão,


Dante Gabriel, onde ele várias vezes desenhou e pintou Elizabeth
Siddall, com quem manteve uma relação intensa até à morte
desta. É o seu rosto que não raro reconhecemos nos quadros de
Rossetti, nessa busca em torno de uma Ideia que, segundo a
poeta, será toda a sua obra. Um detalhe que nos permite
compreender melhor o decoro que perpassa estes versos, deve
ser sinalizado; refiro-me a «screens», os biombos ou telas que
protegiam a nudez dos modelos dos olhares de quem passava
pelos estúdios. Assim se cria um efeito de ambiguidade textual.
Outro aspeto deve ser mencionado, o da transformação que, como
afirmei aquando da leitura de «Our Lady of the Rocks», de Dante
Gabriel, é nuclear na estrutura do soneto inglês. É neste instante
que se desvenda o cerne da figuração estética, pois, afinal, não é
a realidade aquilo que o quadro reproduz, mas sim o modo como o
artista olha o objeto que se impõe: «Not as she is, but as she fills
his dream». Afinal, é também um agon — não no sentido
bloomiano, entenda-se — com esse olhar que Rita Dove concebe
ao questionar a leitura de Rossetti no seu soneto sobre Fiammetta
e na imagem idealizada que dela dá Bocaccio (Loizeaux, 2008:
184-185).
Ainda no plano da representação, impõe-se a breve convocação
de modulações em torno deste tópico onde se evidencia uma
autorreflexividade da qual o género participa; e, curiosamente, o
silêncio é algo que se vai impondo. Desde logo, cito Edna St.
Vincent Millay que, em «To Inez Mulholland, read November
eighteenth, 1923, at the unveiling of a statue of three leaders in the
cause of Equal Rights for Women», recorre ao texto poético para
reiterar o resgate do silêncio consagrado pela estátua. Uma outra
forma de resgate do silêncio tem lugar em «Sea Unicorns and
Land Unicorns», de Marianne Moore. Neste poema em torno do
trabalho anónimo de várias mulheres na confeção de tapeçarias,
Moore cria uma écfrase imaginária onde despontam figurações
várias, nomeadamente de Leonardo Da Vinci. Que figurações são
essas (Loizeaux, 2008: 84-89)? Que texto lhes subjaz no silêncio?
Ora, em «Charity Overcoming Envy», Marianne Moore surge como
uma mediadora entre o referente e o leitor com o objetivo de
desvendar esse silêncio: «Have you time for a story / (depicted in
tapestry)?» (Hollander, 1995: 297). O poema revela, assim, uma
dimensão política.
Por seu turno, Adrienne Rich radicaliza esse resgate dessa
margem que é o silêncio em «Mourning Picture» quando atribui a
enunciação à menina morta figurada no quadro. Neste despertar
dos mortos, é o despertar de uma consciência, uma consciência
feminista, que a poeta sinaliza inviamente (idem: 104-106). O
fantasma parece emergir do mundo dos mortos para assombrar
um certo ethos, um ethos vitoriano, diga-se. Com efeito, este é um
tópico que não seria estranho a esse ethos e que um dos seus
nomes maiores, Walter Pater, já havia abordado em The
Renaissance. Escreve ele a propósito de La Gioconda: «She is
older than the rocks among which she sits; like the vampire, she
has been dead many times, and learned the secrets of the grave;
and has been a diver in deep seas, and keeps their fallen day
about her; and trafficked for strange webs with Eastern merchants:
and, as Leda, was the mother of Helen of Troy, and, as Saint Anne,
the mother of Mary; and all this has been to her but the sound of
lyres and flutes […]» (Cheeke, 2008: 178).
Existe, portanto, um legado reflexivo que não será estranho à
meditação poética destas autoras mesmo quando a dimensão
confessional — entendida com um desses cries from the heart com
os quais Sylvia Plath não simpatizava — parece predominar. Um
excelente exemplo da autorreflexividade numa poeta
habitualmente situada na persuasão confessional, é o eco textual
que reverbera em «The Starry Night», de Anne Sexton. Nesta
écfrase do quadro homónimo de Van Gogh, Sexton proclama «This
is how I want to die» (Sexton, 1981: 53-54). O leitor poderá incorrer
no equívoco de ver neste simulacro verbal um desabafo da poeta.
No entanto, ele é isso mesmo, um simulacro, pois, qual fantasma,
é Van Gogh que ali irrompe, visto esta ser uma frase por ele escrita
numa carta ao irmão Theo. Assim se indicia uma dramatização do
sujeito de enunciação; esta é, de facto, uma persona e não uma
instância que literalmente se expõe.
Quando Katy Aisenberg chega ao termo da sua reflexão em
torno da configuração política do olhar, ela recorda uma sua
premissa inicial: «[…] why do we believe that anything worth saying
is worth saying clearly?» (Aisenberg, 1995: 193). Os breves
exemplos por mim evocados ilustram quão relevante pode ser a
interpelação poética do signo visual para insinuar solos de
alteridade a nível do género, para resgatar do silêncio quem a ele,
por circunstâncias históricas, foi remitido. Na autorreflexividade do
discurso poético, na forma como nele ecoam fragmentos textuais
ou a trans-memória de certas imagens, é uma outra forma de dizer
que se insinua.
Para desvendar ainda uma outra modelação neste encontro com
a arte marcado pela autorreflexividade, regresso uma vez mais a
uma poeta que me tem acompanhado ao longo dos anos, Sylvia
Plath. Interessa-me expor-vos duas vertentes desta
autorreflexividade em Plath, aquela que decorre de uma
assimilação de estratégias de representação devedoras das artes
visuais, e aquela que especificamente lhe é suscitada pela obra de
Paul Klee.
Relativamente à primeira modulação, a da ambiguidade
decorrente de um registo estético exógeno, torna-se relevante
«Magnolia Shoals», um poema em que, embora não convocando
um pintor ou quadro, a componente visual é estruturante. Trata-se,
portanto, de um poema singular na apropriação de um registo
visual, enquanto metatexto e alvo de formulação de uma Poética.
Construído segundo uma lógica de variação musical sobre um
mesmo tema, o poema retoma a dicotomia lessinguiana, detendo-
se sobre duas estratégias específicas de representação do real, a
do poeta e a do pintor. Os seis primeiros tercetos sustentam
subliminarmente o enfoque do poeta; subliminarmente, porque o
poeta não é evocado: o discurso flui através de um olhar de atores
aos quais inocentemente se justapõe a voz do criador. Nesta fase
surgem referências que permitem situar o sujeito no espaço e no
tempo; a estratégia assenta então curiosamente numa categoria
narrativa, a descrição: «Up here among the gull cries / we stroll
through a maze of pale / red-mottled relics, shells, claws // as if it
were summer still. / That season has turned its back» (Plath, 1981:
121). Simultaneamente, insinua-se a dimensão visual e uma
estratégia devedora do discurso pictórico, a perspetiva, e os
indicadores a ela associados — atente-se na insistência de
indicadores como «up», «through», «behind», «below», «over».
Deste modo, uma estratégia exógena invade a expressão poética,
possibilitando um olhar peculiar. Algo inviamente, o poema
transforma-se numa reflexão, indissociável do ponto de vista; dele
dependerá a perceção do espaço.
A par deste percurso (físico) no espaço, tem lugar o percurso no
tempo, através de sucessivas evocações, o que será inevitável
num discurso reflexivo. Em seguida, após ter surgido uma
perceção coincidente com a do poeta, são desvendadas a
perceção e a interiorização do pintor: «The watercolorist grips / his
brush in the stringent air. / The horizon’s bare of ships, // the beach
and the rocks are bare. / He paints a blizzard of gulls, / wings
drumming in the winter» (idem: 122).
«Magnolia Shoals» expõe assim a interação e a consequente
porosidade entre diferentes perceções artísticas, não deixando de
indiciar um certo relativismo — decorrente do confronto de pontos
de vista distintos, e culminando numa perceção do real ligada a um
subgénero artístico em concreto, a aguarela. A especificidade
técnica será indissociável da interiorização daquele espaço, e do
modo como o artista o representará. As características próprias
deste subgénero tinham estado já presentes em «Watercolor of
Granchester Meadows». Trata-se, portanto, de uma reflexão que
vai percorrendo esta fase criativa e que será indissociável do
diálogo com Klee.
Mas «Magnolia Shoals» suscita ainda outra questão: aqui não é
apenas o sujeito pintor que representa artisticamente algo; ele
próprio — sujeito — é igualmente objeto dentro do quadro da
representação do poeta. Refira-se que a complexidade deste jogo,
com diferentes formas de diálogos e representações, decorre do
facto de ela enviar quer para o domínio da técnica — as
estratégias de representação — quer para o da epistemologia — a
perceção do tempo e o conceito de acaso, por exemplo. J. D.
McClatchy observa estas questões na introdução à coletânea de
ensaios Poets on Painters, abordando todo o sistema de
implicações na escolha de um referente artístico por parte do
poeta: «[…] by ‘describing’ a painting a poet may study figurative
problems: the composition of subject matter, colour, and scale, or
the relationship between chance occurence and formal patterns.
Describing is also homage; to trace the beloved’s body is a
traditional poetic feat, and a painting is as beguiling as any
idealized lip or lash, any fetish. By writing about a contemporary
painting, a poet may cannily have found a useful way to let the
poem talk about itself» (McClatchy, 1990: 102).
As diferentes convocações do diálogo de Plath com a pintura, ao
longo destas páginas, mostram que, apesar de ele não abarcar um
grande número de poemas, como sucede com Williams ou
Fernandes Jorge, é, todavia, bastante amplo nas questões que
desencadeia. Para obtermos uma perspetiva mais nítida dessa
amplitude, devemos transitar para a articulação específica que a
poesia de Plath promove com a obra de Paul Klee.
A poeta escreveu quatro poemas que tomam como impulso
obras de Klee — «Virgin in a Tree», «Perseus», «Battle-Scene» e
«The Ghost’s Leavetaking» —, três dos quais devido a uma
encomenda da revista Art News.
«The Gost’s Leavetaking» exibe-se como espaço hermenêutico
por excelência. Daí que os primeiros versos abordem a obra de
arte a partir das mutações no tempo, algo devedoras de um registo
impressionista. O poema evoca um limiar, um solo onde se
identifica um espaço e um tempo entre, de junção que,
simultaneamente, corresponde a uma rutura inevitável de
contrários, um instante captado pelo discurso, como tantas vezes
sucede aquando de uma narratividade do objeto artístico. Aqui
será «this joint between two worlds and two entirely / Incompatible
modes of time» (Plath, 1981: 90). Tudo envia para a transição,
para um percurso no espaço e no tempo — «toward a region
where our thick atmosphere / Diminishes, and God knows what is
there» (idem: 90-91) —, no qual se indicia a dúvida face ao futuro.
O sujeito é um observador, alguém que assiste a uma partida, a
uma partida para viagem que não é ainda a sua. Começando
numa descrição de signos do (nosso) quotidiano, o poema transita
para um universo irreal que permite uma reflexão sobre o destino e
sobre aquilo que existirá para além da morte.
Por seu turno, «Virgin in a Tree» não se restringe ao objeto
artístico que o desencadeou, evoluindo para um questionar da
credibilidade de uma tradição literária. O desenho é já por si uma
metalinguagem que motivará uma metalinguagem em segundo
grau, o texto poético. Este revela ser então um espaço reflexivo
por excelência. Signo de uma metalinguagem meditando sobre um
resíduo cultural e histórico, e também elemento que mina (sabota)
os fundamentos e a credibilidade da tradição, a ironia preside à
expressão artística e à expressão poética. Os últimos versos
denunciam a sua presença nuclear no texto: «Tree-twist will ape
this gross anatomy / Till irony’s bough break» (idem: 82). Tomando
como tema a sedução e a sexualidade, a ironia desmonta o
discurso de permanência de um ethos colonial («puritan lip») que,
interiorizado, se projeta nos artifícios e sinuosidades da moral
dominante («moral mousetraps»), de um ethos macartista. Distante
está o referente. Plath encontrou afinal nele um correlativo que lhe
permite refletir com ironia sobre uma sociedade que a constrangia.
«Battle-Scene», subintitulado «From the Comic Operatic Fantasy
The Seafarer», igualmente sobre um quadro de Klee, subscreve
essa dimensão reflexiva. Neste caso, Plath começará pela écfrase;
mas ela não significará uma substituição do objeto, já que a autora
não só apela à memória que lhe confere a tradição literária, como
evoca a cor e a dimensão simbólica. Por seu turno, a memória
subscreverá um caráter regressivo que no referente se indicia —
«This little Odissey / In pink and lavender / Over a surface of gently
— / Graded turquoise tiles / That represent a sea / Which
chequered waves and gaily / Bear up the seafarer, / Gaily, gaily, / In
his pink plume and armor» (idem: 84).
A memória da tradição literária, por natureza constrangedora,
não se revela, todavia, como um espaço contra o qual o sujeito
constrói agonisticamente a sua identidade. «Battle-Scene»
convoca o imaginário da fábula, das narrativas mais ou menos
maravilhosas, dos heróis que dão corpo ao (nosso) imaginário da
infância e da adolescência: Sindbad, «monsters», «the whale»,
«the shark», «Ahab». Embora pertencendo à memória (tradição)
literária, eles inscrevem-se fundamentalmente num imaginário
específico de um determinado estádio de crescimento. Em
confronto com este imaginário, surge a desmontagem racionalista
do adulto e a recomposição da (sua) realidade.
A convocação da tradição literária leva-me a fazer um hiato nesta
reflexão sobre o eco das artes visuais, em particular da pintura, na
poesia de Plath, para apontar outro exemplo dessa convocação
noutro horizonte cultural. Refiro-me a um exemplo no cenário
modernista francês, Le bestiaire ou Cortège d’Orphée, de
Guillaume Apollinaire, uma sequência de poemas ilustrada por
gravuras de Raoul Dufy. A dimensão formal aparentemente singela
dos textos — amiúde quadras —, evocadora de uma certa tradição
popular, quiçá oral, de alguma forma ilude o leitor face à
complexidade que deles emerge através de um profundo
diálogo/memória intertextual. Numa estimulante integração didática
deste livro no ensino liceal, Delphine Lelièvre escalpeliza e
sistematiza essa dimensão. A ela recorro em seguida. Desde logo,
a partir do título — bestiário —, o autor procede à convocação de
um imaginário medieval. Através deste é todo um processo de
reescrita do género — de Plínio a Esopo, das evocações bíblicas
do Antigo ao Novo Testamento, e ainda La Fontaine-, que se torna
evidente. Com essas reminiscências são também várias
dimensões — moral, didática, ética — que se insinuam, todas elas
atravessadas pela presença de Orfeu; presença irónica, talvez,
visto ser o seu um olhar privilegiado face ao conhecimento de
mundo que transcende o do nosso dia-a-dia (Lelièvre, 2004: 62-
68).
A todas estas vertentes assinaladas, com precisão, por Delphine
Lilièvre, acrescento uma outra, a das notas ao livro. Escritas pelo
autor, elas, em certa medida, trazem à mente as notas de um outro
poeta, a um dos livros/poemas centrais da(s) estética(s)
modernista(s); refiro-me às notas que T. S. Eliot concebeu para
The Waste Land. Se, por um lado, ambas podem contribuir para a
superação de uma eventual opacidade textual, por outro, elas
divergem no seu objetivo face à receção. Com efeito, Eliot, através
dos referentes textuais que insere, e nos que opta por não
mencionar, de algum modo designa um percurso de leitura que
condiciona a receção do texto. Ora, Apollinaire escolhe um
percurso diferente, pois as suas notas funcionam como uma
extensão natural dos poemas, quer indicando explicitamente
sugestões de leitura, quer ampliando a reflexão que os versos
podem não exibir para um leitor menos atento. Observemos
apenas o exemplo da primeira referência que abre essa secção do
livro:
Admirez le pouvoir insigne
et la noblesse de la ligne.

Il loue la ligne qui a formé les images, magnifiques ornements de


ce divertissement poétique.
Elle est la voix que la lumière fit entendre
Et don’t parle Hermès Trismégiste en son Pimandre.

«Bientôt, lit-on dans le ‘Pimandre’, descendirent des ténèbres…


et il en sortit un cri inarticulé qui semblait la voix de la lumière.»
Cette «voix de la lumière», n’est-ce pas le dessin, c’est-à-dire la
ligne? Et quand la lumière s’exprime pleinement tout se colore. La
peinture est proprement un langage lumineux.

[Apollinaire, 1920: 175]

Um outro exemplo da interferência intertextual na verbalização


ecfrástica surge em «The New Colossus», de Ema Lazarus, com o
eco dos versos de Dante — «lasciate ogni speranza, voi
ch’entrate» (Hollander, 1995: 185). Se a écfrase de Lazarus
celebra uma certa dimensão mítica da América, então não deixa
de ser irónica a disforia desta ténue reverberação textual.
Tendo sinalizado o modo como a relação entre o texto e uma
obra de arte pode decorrer de um singular diálogo intertextual,
proponho-lhe um regresso a Plath, para concluir a aproximação
desta à obra de Paul Klee, através de «Perseus, The Triumph of
Wit Over Suffering», um poema que exibe outro tipo de diálogo
com o referente artístico. Com efeito, ao instituir o herói na
narrativa mítica como interlocutor do diálogo com o sujeito, o
poema desencadeia uma reflexão sobre o próprio herói. A
aventura mítica (e metonimicamente através dela o discurso
mítico) de Perseus — o passado — transforma-se então num
exemplo para o quotidiano — para um presente onde a segurança
conferida pelo mito não existe. Essa aventura introduz ainda um
tópico que se tornará importante em Sylvia Plath: o do difícil
equilíbrio entre loucura e sanidade — «the celestial balance /
Which weighs our madness with our sanity» (Plath, 1981: 84).
Diferentemente dos outros poemas referenciados em Klee,
«Perseus» reconhece na obra de arte uma narrativa moral que o
sujeito interioriza através da poesia. O metatexto parece
desvanecer, aproximando o poema das estratégias que
observámos nos diálogos de Plath com De Chirico onde o
confessionalismo inviamente se insinua.
Regressemos ao tópico do fantasma para observarmos uma
outra vertente da autorreflexividade, aquela que é devedora do
encontro do texto poético com essa arte elegíaca, crepuscular, que
é a fotografia, e com os memento mori (Cheeke, 2008: 143) que
ela lega ao poeta. Nesse sentido começo por referir a poeta
andaluz Ana Rossetti, pelo seu subtil diálogo com formas de
cultura popular e/ou marginal, entre as quais se destaca a
fotografia. Como referi, o seu diálogo amplia-se a outras
expressões estéticas desta cultura como a publicidade e o graffiti.
Será nesta polifonia, onde diferentes estéticas confluem, que se
exibe uma sensualidade com a qual quotidianamente convivemos;
é à sua perceção que, não sem sentido de humor, Rossetti dá voz
em «Chico Wrangler»: «Dulce corazón mío de súbito asaltado. /
[…] / Porque una camiseta incitante señala, / de sup echo, el
escudo durísimo, / y un vigoroso brazo de la minima manga
sobresale. / Todo porque unas piernas, unas perfectas piernas, /
dentro del más ceñido pantalón, frente a mí se separan» (Rossetti,
1980: 99). Longe vão felizmente os tempos em que, como referi,
uma ensaísta afirmava a propósito de Whitman: «the effeminate
world needed thee»…
Outra perspetiva do encontro entre a palavra e a figuração
fotográfica pode ser a de filiação no solo onde esse encontro
ocorre, como Jenaro Talens exibe em La mirada extranjera. Nesta
obra de 1986, os seus poemas e as fotografias de Michael Nerlich
constroem um espaço textual baseado na complementaridade e
simultaneidade, criando uma história baseada na disjunção, na
fragmentação, na desfamiliarização, no desejo e na alienação
(Persin, 1997: 208). Apesar das fronteiras condicionadoras de uma
leitura construídas a partir do discurso e da imagem, persiste neste
livro um espaço de liberdade para o leitor. Não se trata, todavia, de
uma obra aberta, mas sim entre-aberta. Por que razão? Perguntar-
se-á. Com efeito, cada unidade texto-imagem é antecipada por
uma frase em maiúsculas e outra em itálico, cabendo ao leitor a
escolha de qual a que, na sua opinião, melhor se identifica com o
segmento em causa. A autorreflexividade participa, assim, da
essência radical da obra, num apelo à complementaridade que
decorre do encontro com o leitor. Algo de idêntico ocorre em «La
muerte en Beverly Hills», do poeta catalão Pere Gimferrer.
Esclarece Persin:

The snares inherent in discursive space point to the Otherness


of language, the slipperiness of the sign which is not content to
remain attached to one particular meaning. […]
Based on this perspective, the reader is given the opportunity to
view the text in a new light. Rather than being a closed system,
the text is now viewed as a concourse of voice, gaze, and threads
of signification that reflect, echo, parody, and otherwise repeat is
a refracted and dispersed manner each other and their entire
cultural context […]. Keeping this in mind, the reader can then
proceed to the succeeding poems of the collection, and look upon
them as yet other perspectives in the poet’s meditation upon
poetry and other art forms as differing yet connected reflections of
and upon a much larger system that we know as culture. [Idem:
197]

Estes solos textuais fluidos que interpelam e questionam a sua


essência, e que se completam apenas quando o encontro com o
leitor tem lugar, adquirem a sua singularidade num outro encontro,
o encontro com o mundo das imagens onde muito da identidade
contemporânea se fundamenta. Quando refiro contemporânea, o
universo cinematográfico (dominante em Gimferrer) ou o da
publicidade (evocado em Talens) de imediato se impõem perante o
nosso olhar.
No entanto, a nossa relação singular com a imagem na
modernidade recua mais longe no tempo, como tivemos
oportunidade de observar. Além disso, a própria construção da
imagem é devedora de um passado, com o qual dialoga e com o
qual se confronta também. Veja-se o exemplo de Le Cheval blanc,
o quadro de Paul Gauguin (cf. figura 32), que reproduz a forma e a
postura de um cavalo existente num friso do Pártenon. É este
quadro e esta memória que a poeta norte-americana Vicki Hearne
interpela em «Gauguin’s White Horse». Refiro interpela devido ao
facto de o poema oscilar entre diferentes registos, da écfrase à
meditação sobre o tempo e as circunstâncias do lugar, passando
pelo próprio registo ético que, segundo ela, subjaz à imagem —
«an ethics of texture» (Hollander, 1995: 327). É neste solo que
emana da polifonia de registos, que o poeta e ensaísta John
Hollander reconhece a própria autorreflexividade textual — «[…]
the poem continues in pursuit of questions, about the very act of
poetic questioning, about ropes and replacements […]» (idem:
328).
Gauguin permitiu-nos observar um, não explícito, revisitar de um
hipotexto visual em Le Cheval blanc, a partir do qual o poema
emergia. Outro tipo de revisitação, neste caso intertextual, pode
ser observado em «El arte de la fuga», de Narcís Comadira. Neste
poema do livro homónimo, o sujeito promove um diálogo
intertextual com o poeta catalão Joan Vinyoli i Pladevall, para
evidenciar a forma como o texto, eventualmente a écfrase, pode
substituir o objeto, o signo visual. Neste caso, Pladevall
«conheceria» o artefacto através daquela que foi a sua grande
influência, Rilke, sendo assim que entende a obra de arte como
instante de autorreconhecimento: «También huyó Vinyoli, /
deslumbrado por aquel torso de mármol / que brillaba en el poema
de Rilke y en el museo / del Louvre y que hacía que se sintiese /
un hombre absurdo» (Comadira, 2015: 55 e 57). Parece este um
regresso ao conhecimento de Laocoonte através do olhar de
Virgílio, antes da sua recuperação física em inícios do século XVI.
A pluralidade de meditações poéticas suscitadas pelo encontro
com o signo visual que tenho vindo a expor, demonstra quão fértil
é este solo na poesia contemporânea; uma fertilidade que não
teme, até, reconhecer a sua incapacidade ecfrástica. Donald Hall
verbaliza-a em «The Scream», sobre o quadro homónimo de
Munch, quando admite: «Will never equal / The painting»
(Hollander, 1995: 285). Talvez esta questão não tenha que se
colocar quando o poema tenta emular determinadas atmosferas
predominantes no signo visual, através dos seus próprios
processos prosódicos. Observámos essa estratégia no soneto-
écfrase-oração de Dante Gabriel Rossetti sobre Leonardo; Mark
Strand retoma-a ao optar por uma sinuosa interpelação prosódica
tendo como objeto dois quadros de De Chirico.
Em Two De Chiricos, Strand realiza duas écfrases de The
Philosopher’s Conquest e do acima referido The Disquieting
Muses. Formalmente estamos perante vilanelas, isto é, poemas
compostos por dezanove versos, com cinco tercetos e uma quadra
final. O primeiro verso da primeira estrofe é repetido no último
verso da segunda e da quarta estrofes, enquanto o terceiro verso
da primeira estrofe é repetido no último verso da terceira e da
quinta estrofe. Estes dois versos que se vão repetindo ao longo
dos tercetos surgem, sequencialmente, no penúltimo e no último
verso da quadra. O esquema de rima é aba.
Aspeto relevante a reter: Strand utiliza esta estrutura para
acentuar o mistério (a melancolia) e os signos que dele participam,
em «The Philosopher’s Conquest», e a atmosfera de estase e de
ameaça, em «The Disquieting Muses». Transcrevo este último, na
íntegra, para que seja percetível a notável interação entre écfrase
e vilanela, não só no que a enargeia diz respeito mas também pela
forma como o poeta assim recria (e pela estrutura do subgénero
que utiliza, reitera) essa atmosfera de estase e ameaça, e a
perceção de estranheza com a qual o observador se confronta:
BOREDOM sets in first, and then despair.
One tries to brush it off. It only grows.
Something about the silence of the square.

Something is wrong; something about the air,


Its color; about the light, the way it glows.
Boredom sets in first, and then despair.
The muses in their fluted evening wear,
Their faces blank, might lead one to suppose
Something about the silence of the square,
Something about the buildings standing there.
But no, they have no purpose but to pose.
Boredom sets in first, and then despair.

What happens after that, one doesn’t care.


What brought one here — the desire to compose
Something about the silence of the square,

Or something else, of which one’s not aware,


Life itself, perhaps — who really knows?
Boredom sets in first, and then despair…
Something about the silence of the square.

[Strand, 1999: 29]

Strand funde de tal modo a autorreflexividade na prosódia que


ela deixa de ser percetível; existe, está lá, mas pode não ser
identificada. No entanto, quando a indeterminação, a ambiguidade
radical face ao referente e ao solo onde reside a enunciação,
emerge desse mesmo solo, como em «Todo es un cuento roto en
Nueva York», de Martín Gaite — a mulher na história, é a do
poema, que é a do filme, que é a do quadro (Persin, 1997: 108) —,
então é o mistério, uma espécie de abstração que se insinuam. W.
D. Snodgrass sinaliza-os em «Matisse: The Red Studio», quando
uma outra instância, o artista, se ausenta, ficando apenas fica a
cor, o «vermelho».
Aqui fica o convite para que observemos o mistério e a abstração
na secção seguinte.

4.4. Do mistério à abstração


Perante um espectador, perante um qualquer sujeito que o
interpela, o objeto artístico persiste, desde logo, no silêncio, um
silêncio que, todavia, deverá ser superado. Quando refiro silêncio,
refiro-me ao estado que precede a leitura, o desvendar de um
sentido. Nesse silêncio é o ainda não dito, um certo espaço fora de
campo, um mistério que prevalece, como assinala Camilo
Pessanha no soneto intitulado «Estátua»: «Cansei-me de tentar o
teu segredo: / No teu olhar sem cor — frio escalpelo, / O meu olhar
quebrei, a debatê-lo, / Como a onda na crista dum rochedo»
(Pessanha, 1973: 34). Outro exemplo poderá ser o primeiro dos
«Dois poemas a partir de uma tela de Manet», de um poeta
português contemporâneo, Fernando Guerreiro: «Mallarmé olha
para mim / e o medo une-nos — / como em segredo, no bule, / se
depõe a tinta» (Guerreiro, 1983: 29). Curiosamente, o poeta não se
detém sobre a desconstrução formal deste quadro, mas sim
naquele que será o seu processo de individuação estético no seio
de um percurso criativo autoral, o de Manet: «Não, nunca Manet
assim reduziu o uno / sustendo os contornos, do corpo, que com
sono / ainda nos fita» (idem). É nesta singularidade que o poeta
identifica a afinidade, a qual decorre da empatia: «Sê-lo o sou, /
uma indiferença que mal se distingue / ou uma presença, ausente,
/ que aqui se irregulariza…» (idem).
O espaço fora-de-campo pode ser igualmente suscitado pela
composição do signo visual, como ocorre na linha definida pelo
olhar do protagonista na célebre gravura de Albrecht Dürer O
Cavaleiro, a Morte e o Diabo (cf. figura 33). Na écfrase com o título
homónimo, Randall Jarrell verbaliza os diferentes elementos que
dão corpo ao segmento narrativo representado. Fá-lo, todavia, de
modo a proceder a um enquadramento que permite abordar o
mistério nuclear deste signo, aquele que se prende com o espaço
fora-de-campo suscitado pelo olhar do cavaleiro. O poema
verbaliza formalmente (visualmente) esse mistério na suspensão
que interrompe o verso: «looks past steadily / At — at —»
(Hollander, 1995: 255). Ao admitir uma certa incapacidade de
oferecer uma leitura final, Jarrell exibe um hiato que competirá ao
leitor preencher.
Deste modo, o objeto que funciona como impulso para a criação
poética pode ser, ele próprio, um solo de ambiguidade da qual
emana o mistério. Se em Dürer ela decorria da composição,
noutros casos pode dever-se a uma coabitação de microcosmos
distintos. Um exemplo de estética que se afirma nesse espaço in-
between será o que oscila entre a alucinação explícita da
simbologia surrealista e um registo visual do quotidiano, de Eine
Kleine Nachtmusik, da pintora americana Dorothea Tanning.
Eco irónico da peça musical de Mozart, o divertimento torna-se
aqui uma atmosfera opressiva. Para melhor a compreender devo
ensaiar uma breve écfrase deste. O quadro exibe quatro portas —
uma das quais entreaberta, deixando entrever uma intensa luz com
tonalidades amarelas, laranjas e ocres, junto ao que parece ser um
longo corredor com uma passadeira vermelha; o corredor é
ladeado por um corrimão, interrompido pelos degraus de uma
escada. Ainda no corredor, mas frente a esta escada, surge um
enorme girassol que é observado por uma menina (uma boneca?),
cujos cabelos se erguem estranhamente no ar. Ao seu lado está
outra menina, encostada a uma porta, num estado de aparente
sonolência. Ambas têm as roupas rasgadas. Que drama (trama?)
se insinua aqui?
Compreende-se agora a ironia do título, evocador da serenata
homónima de Mozart, com a sua atmosfera jovial, que contrasta
com a intensidade disfórica, no limiar do gótico, insinuada pelo
quadro — não esqueçamos a raiz simbólica do girassol, a ninfa
Clítia apaixona-se por Hélio que a troca por Leucoteia; a partir de
então, Clítia fixa os seus olhos no sol durante o dia, e volta-os para
o chão durante a noite; ao fim de algum tempo ganha raízes e o
seu rosto metamorfoseia-se numa flor.
O quadro parece dialogar com o mito a este nível ao confundir as
roupas desgrenhadas com as raízes que parecem surgir da flor.
Ora, Moniza Alvi interpela o quadro a partir dessa dimensão
simbólica, radicada na sedução, que ele exibe, explorando a
construção da sexualidade na adolescência — «You can lock the
doors, even / bolt the air, but there’s no way / of keeping your
daughters in at night», e concluindo com a inevitabilidade da sua
assunção, independentemente dos constrangimentos que a
sociedade — representada por sinédoque na figura parental —
pode querer impor-lhes: «Your daughters grow giant sunflowers / in
the gloom. / Their hair streams upwards / thick as cypress trees»
(Alvi, 2008a: 217).
Ao justapor as duas facetas criativas — como pintor e como
poeta, Dante Gabriel Rossetti exibe uma aproximação singular ao
mistério que radica no símbolo. Com efeito, em «Venus
Verticordia», sobre o seu quadro homónimo (cf. figura 34), Rossetti
revela uma postura analítica baseada na denegação do excesso.
Refere Stephen Cheeke a propósito da profusão de símbolos no
quadro: «what we might call an overdetermined image, loaded with
iconographic signs and symbols» (Cheeke, 2008: 69). No entanto,
Rossetti, o poeta, num efeito de zoom radical, opta por confinar o
seu olhar à maçã, às mãos e, acima de tudo, ao olhar da
personagem. Contrariamente ao Rossetti-pintor que exibe uma
estética de excesso simbólico, o Rossetti-poeta opta pela
especulação em torno de um número restrito de signos.
Regressarei a esta estratégia mais adiante devido ao modo
singular como Rilke a retoma, para já importa ainda evocar alguns
exemplos em que a constatação do mistério participa da estrutura
do poema.
Começo por uma écfrase de Retrato de Francesco Maria della
Rovere, Duque de Urbino, de Tiziano, elaborada por Pietro Aretino.
Em consonância com um certo espírito dos (seus) tempos, este
poeta quinhentista italiano atribui ao artista uma capacidade
estética superior, a de desvendar uma Essência: «Titian […] /
shows outwardly all invisible ideas» (Hollander, 1995: 107). Quase
sacraliza o artista, portanto. Este diagnóstico é relevante devido ao
facto de nos ajudar a compreender quão determinante é a
dimensão histórica deste encontro entre a palavra e a imagem.
Com efeito, se o enquadrarmos historicamente e tivermos presente
o debate coevo em torno do paragone, deduzimos qual ser o
estatuto que Aretino reserva ao poeta numa hierarquia estética, o
de mero tradutor da obra de arte.
No entanto, semelhante estatuto diluir-se-á em pleno
Romantismo. Mesmo quando assume que a sua leitura tem limites,
Shelley ilustra uma nova assunção do lugar do poeta enquanto
intérprete de um qualquer ícone. Veja-se o breve fragmento
modalizante em «On the Medusa of Leonardo da Vinci in the
Florentine Gallery», quando este poeta afirma: «Upon its lips and
eyelids seem to lie / Loveliness like a shadow» (Hollander, 1995:
143; itálico meu). Algernon Charles Swinburne, autor da écfrase
«Before the Mirror (Verses Written Under a Picture Inscribed to J.
A. Whistler)», admite esses limites mas não no corpo do texto.
Será numa carta ao próprio artista, a Whistler, que Swinburne
refere: «the notion of sad and glad mystery» (idem: 194).
Como acima observámos, com a modernidade a consciência do
mistério será enfrentada pelo poeta através dos instrumentos
críticos exigidos pelo objeto. O poeta assume, então, um estatuto
de hermeneuta que tem a capacidade de interpelar a singularidade
que, ainda que subliminarmente, persiste na aparente banalidade
dos actantes de um texto visual. Entre outros actantes, como a
perspetiva, o enquadramento, ou uma memória narrativa, surge a
luz; é o mistério que dela pode participar a que Antonio Moreno
convoca em «Tejado con Musgo»: «No hay un silencio completo en
la luz, lo mismo que hay un sonido distinto en la sombra?»
(Magalhães, 1997: 838).
O mistério pode decorrer, portanto, de uma pluralidade de
fatores, podendo mesmo situar-se noutros níveis, nomeadamente
o da inversão do diálogo entre texto e objeto. Estamos, deste
modo, em solos que, embora radicalmente ligados ao diálogo entre
a palavra e a imagem, não se inscrevem na tradicional écfrase.
Ainda no âmbito da diversidade de percursos que podemos
identificar em torno deste tópico, assinalo «Mariana», um poema
de juventude de Tennyson, pelo facto de nele o mistério decorrer
de uma radical inversão dos processos que tenho vindo a
observar: neste caso, o texto precede o quadro, pelo que ignorar o
contexto que lhe é inerente significa o erguer de uma barreira de
opacidade à sua compreensão; uma barreira de opacidade
reiterada na aparente banalidade do instante figurado — uma
jovem que sensualmente se espreguiça!
Ora, o nome que dá título ao poema pertence a uma
personagem da peça de Shakespeare Measure for Measure, na
qual o poeta se inspirou. Mariana é a jovem noiva de Angelo que a
rejeita quando ela se vê privada do seu dote de casamento. Ela
opta então por uma existência isolada numa «moated grange».
Posteriormente, após peripécias e erros vários de Angelo,
intercederá junto do poder a favor dele, salvando-lhe a vida.
Tennyson ignora a evolução da personagem ao longo das
diferentes atribulações dramáticas, concentrando-se num breve
episódio do acto IV, cena I, que lhe permite explorar o pathos que
marca a vida de Mariana após ter sido abandonada por Angelo.
A sequência dramática explora naturalmente as ações das
personagens, as suas atitudes, gestos e conflitos, mesmo quando
estes ocorrem na linguagem; este aspeto é ainda acentuado em
Measure for Measure devido ao facto de Shakespeare não
apresentar detalhes cénicos circunstanciados. Tennyson opta por
sustentar o seu olhar sobre Mariana numa descrição
pormenorizada do espaço. É este que fornece um cenário propício
ao pathos, simultaneamente funcionando como correlativo das
tensões emocionais vividas pela personagem, sem atingir, porém,
o limite da falácia patética. Vejamos os versos iniciais: «With
blackest moss the flower-plots / Were thickly crusted, one and all: /
The rusted nails fell from the knots / That held the pear to the
gable-wall. / The broken sheds look’d sad and strange: / Unlifted
was the clinking latch; / Weeded and worn the ancient thatch /
Upon the lonely moated grange» (Tennyson, 1954: 62).
«Lonely», signo que caracteriza espacialmente a «moated
grange», funciona como correlativo da personagem na sua solidão
e isolamento, antecipando os quatro versos finais da estrofe. Com
pequenas variações, estes versos irão repetir-se ao longo do
poema num efeito mnemónico, como se de um refrão se tratasse.
Ora, neste refrão é a voz da própria Mariana que se desvenda
enunciando o pathos: «She only said, ‘My life is dreary, / He
cometh not’» (idem). Ao longo das estrofes seguintes Tennyson
explora a disforia espacial que, por seu turno, acentua o estado
disfórico (o sofrimento) da própria personagem, insistentemente
lembrado nos versos finais de cada estrofe — o tal efeito
mnemónico. A degradação do espaço que mais ênfase dá ao
abandono de Mariana, culmina na sexta estrofe com a introdução
de um pormenor: «[…] the mouse / Behind the mouldering waistcot
shriek’d, / Or from the crevice peer’d about» (idem: 63). Mariana
persiste como personagem abandonada, solitária e triste,
desejando a morte: «Oh God, that I were dead!» (idem: 64) são as
últimas palavras do poema.
Ora, o pintor pré-rafaelita John Everett Millais retoma no seu
quadro intitulado Mariana in the Moated Grange (cf. figura 35) a
atmosfera desenvolvida por Tennyson, expandindo-a na sua
figuração do feminino e no diálogo com uma simbologia com
ressonâncias medievas. À semelhança de Tennyson, o quadro de
Millais restringe a representação desta personagem a um
momento específico do texto dramático. Millais opta por centralizar
a sua representação na atitude de Mariana e no espaço que ela
habita por escolha própria. Atente-se num pequeno pormenor no
canto inferior direito, o rato. Através dele o pintor recupera a
atmosfera dominante no poema, marcada pelo abandono e pela
degradação.
O quadro desvenda a sedução do artista pelo imaginário e pela
estética medievais recorrentes em vários pintores pré-rafaelitas.
Esta dimensão repercutir-se-á numa estética (onde não estão
ausentes ressonâncias góticas) que não é obviamente alheia à
representação do espaço, do qual participam os seguintes
aspetos: o imaginário religioso inspirado nos vitrais na capela de
Merton College; a mesa, funcionando como correlativo simbólico
do altar, com a lamparina, o tríptico sagrado e o incenso. Ao
transformarem o quarto de Mariana numa cela conventual, estes
signos contribuem para a criação de uma atmosfera onde o
transcendente se insinua. Com esta transformação é a própria
personagem que adquire um estatuto superior. Recorde-se que
esta não é uma celibatária enclausurada por imposição social;
Mariana não é uma mulher dependente ou dominada pelas
convenções sociais e éticas, mas sim alguém que está naquele
local por escolha própria. Simbolizará, assim, o estatuto de
igualdade para a mulher, desejado e defendido por setores cada
vez mais amplos na sociedade vitoriana (Roston, 1996: 66). O
gesto sensual e lânguido acentuam a sua autonomia. Esta
vertente, algo ausente do poema de Tennyson, contrapõe uma
perspetiva eufórica à disforia, ao pathos naquele dominante.
No pormenor do gesto insinua-se, afinal, toda uma carga
semântica, ideológica, até. E assim, num texto e numa imagem
onde prevalecem a narrativa, ganha relevância o não-dito — o
não-dito, esse fantasma onde algo nos acena, e os pormenores
que persistem nas margens. Observe os seguintes exemplos.
Rainer Maria Rilke, em «Römische Fontäne Borghese», poema de
Neue Gedichte, de 1907, e antes dele o escritor suíço Conrad
Ferdinand Meyer, produziram écfrases daquela fonte existente nos
jardins Borghese. No entanto, estes poemas de algum modo
ignoram a representação iconográfica global — as identidades ou
posturas figuras representadas — para se centrarem no motivo da
concha, o que leva John Hollander a concluir serem estas écfrases
que se autodenegam: «For the poems, the fountains might almost
be abstract […]» (Hollander, 1995: 273).
Quando na esteira do Modernismo as estéticas não figurativas se
intensificam, é toda uma nova abordagem conceptual que se
impõe, e outro tipo de interpelações do signo visual que se exigem.
No plano conceptual devemos questionar se dará sentido falar
ainda de mistério? Stephen Cheeke esclarece brilhantemente esta
questão na sua análise do acima mencionado Self-Portrait on a
Convex Mirror, de John Ashbery:

Paradoxically, and like the illusion of convex depth upon the


surface of the wood/mirror, this surface «is not / Superficial but a
visible core». The «illusion», then, arises from the depths, is
deep; it is a measure of profundity even as it exists only in the
surface. The trick of the picture, like that of the soul, is to
persuade us of its truth and substance. In a poet such as Keats or
Rossetti, this capacity of the artwork to convince us of a «visible
core» would have been deemed a «mystery». For Ashbery,
however, the notion of ‘mystery’ has been downgraded or
demystified into that of illusion.

[Cheeke, 2008: 132-133]

A pintura não figurativa foi alvo de especulações ensaísticas


(entre as quais se situam a dos chamados poetas de Nova Iorque),
e de incursões poéticas que nela reconheceram um impulso
criativo.
Chegamos, assim, ao segundo aspeto acima mencionado, o do
outro tipo de interpelações do signo visual. Qual o lugar para a
écfrase quando a figuração se ausenta do quadro? A denegação
do figurativo poderá significar o fim da écfrase? Para podermos ter
uma perceção dos eventuais rumos que então se configuram,
recorro a dois poemas, «Number 1 by Jackson Pollock (1948)», de
Nancy Sullivan, e «To Mark Rothko of Untitled (Blue, Green),
1969», de Anne Cherner.
Central no âmbito das vanguardas estéticas americanas do pós-
guerra, Pollock ironicamente conhecido por «Jack, The Dripper»,
devido à sua técnica de pintura através do «dripping», foi
destinatário de inúmeros estudos que identificaram zonas de
sentido várias na sua obra. Apenas a título ilustrativo, e de uma
forma necessariamente elíptica, refiro os ensaios de Clement
Greenberg, Frank O’Hara e Terree Grabenhorst-Randall.
Greenberg desvenda Pollock no âmbito de uma tradição
«vocabular de formas barrocas», da qual participam Picasso, Miró,
Siqueiros, Orozco e Hofmann. Superando-a em quadros como She
Wolf (1943) e Totem I (1945), Pollock não construirá através da cor
mas sim através de um «sentido superior dos jogos de oposição de
sombra e luz», para conseguir propor uma superfície carregada de
pintura que se expande como uma única imagem sinóptica
(Greenberg, 1988: 236).
Esta leitura de Greenberg é relevante no âmbito da minha
reflexão, visto permitir evidenciar um sentido num espaço onde o
signo natural se oculta. Frank O’Hara subscreve esta perspetiva
histórica, ao definir o diálogo do pintor com o Surrealismo; diálogo
esse decorreria de uma preservação do signo: «Very few things
[…] were assimilated or absorbed by Pollock. They were left intact,
and given back. Paint is paint, shells and wires are shells and wire,
glass is glass, canvas is canvas. You do not find, in his work, a
typewriter becoming a stomach, a sponge becoming a brain»
(McClatchy, 1990: 199). De igual forma, a designada presença da
mitologia (Pasiphaë and Others) não funcionaria como alegoria. E.
H. Gombrich considera, aliás, que o reconhecimento, a
identificação do «action painter» com o destinatário não deve ser
procurado na leitura («He must try to prevent us from interpreting
the marks on the canvas as representations of any kind […]»,
Gombrich, 1989: 287), mas sim a outro nível, «with his [the artist’s]
Platonic frenzy of creation, or rather with his creation of a Platonic
frenzy» (idem).
A eventual presença ou denegação da alegoria poderá ainda ser
abordada numa leitura que em O’Hara apenas se insinua, a da
psicologia junguiana. Subscrevendo esta metodologia analítica,
Terree Grabenhorst-Randall identifica a presença de Jung em
obras como Mask (Barnaby, 1990: 193) propondo, ainda, uma
leitura de objetos particulares no quadro mais geral de um
processo criativo:

Jung’s theory that the processes of alchemy were similar to the


creative process was embraced by many artists of the period
[Pollock’s]. Alchemy is the art of transformation. The
transmutation of lead into gold is a metaphor for the evolution of
the lead of personality into the gold of spirit. Pollock effected the
transformation of the self by becoming part of his work. In his
mature work of the 1950s, Pollock abandoned the traditional
technique of painting a canvas on an easel or upright against a
wall. Instead, the canvas was laid on the floor so that he could,
literally, “get into the painting,” dripping and splattering paint on it
from loaded brushes while walking around it. This all-over,
spontaneous effect is an example of how, in Peter Busa’s words,
“Pollock created a new basis for physical involvement with the
idea of where man’s space is.”
[…] Clearly then, for Pollock, art provided an effective means of
expressing the unconscious. [Idem: 194-195]

Após termos tomado contacto com estas diferentes hipóteses


analíticas, proponho-lhe a leitura de «Number 1 by Jackson Pollock
(1948)», de Nancy Sullivan: «No name but a number. / Trickles and
valleys of paint / Devise this maze / Into a game of Monopoly /
Without any bank. Into / A linoleum on the floor / In a dream. Into /
Murals inside of the mind. / No similes here. Nothing / But paint.
Such purity / Taxes the poem that speaks / Still of something in a
place / Or at a time. / How to realize his question / Let alone his
answer?» (Sullivan, s.d.: s. n.º; itálico meu).
A écfrase desencadeada por signos figurativos, explícita ou
subliminarmente, dialoga com signos naturais, pelo que estes, de
algum modo, determinam o texto. Em contrapartida, neste caso,
serão leituras como as de Greenberg, O’Hara e Grabenhorst-
Randall que determinam o próprio texto poético, balcanizado, pelo
objeto, para o espaço da elaboração teórica. A dimensão
especular, o speculum, não implica a enargeia, mas sim a
especulação teórica. Nesse sentido, um verso ganha aqui uma
particular relevância, aquele em que a poeta proclama «No similes
here». A mimese, como a concebemos ao longo da História da
Arte, parece não funcionar já como instrumento operativo.
A leitura do poema implica um processo, uma diacronia; o leitor é
exposto perante o objeto numa gradual sucessão de descoberta e
especulação: desde logo, a denegação de uma eventual alegoria
insinuada na designação, no título (verso 1); em seguida, a
perplexidade perante a textura do quadro (os contrastes de cor —
a superfície — são transmutados para a profundidade — numa
releitura da perspetiva; versos 2-5); à qual se sucede a evidência
do próprio processo criativo (versos 5-6) que, todavia, como referiu
Grabenhorst-Randall, pode ser entendido no âmbito de uma
hermenêutica pessoal (versos 7-8); transitando-se, depois, para a
especificidade de apropriação dos signos por parte do artista
(versos 9-10), como Greenberg muito bem explicou; e concluindo-
se com os limites que o quadro designa ao poema (versos 10-15).
Embora a enargeia persista, insinuando-se apenas em «trickles
and valleys of paint», ou mais vagamente em «maze of Monopoly»,
isso não significa que a outra vertente original da écfrase, aquela
que a ligava à dimensão ética, não seja convocada; simplesmente,
aqui ela decorre da reflexão teórica.
O outro poema por mim escolhido, «To Mark Rothko of Untitled
(Blue, Green), 1969», de Anne Cherner, revela uma diferente
atitude face àquilo que toma como impulso. Para vermos de que
modo a interpelação da obra de arte se configure, devemos
começar por ler o poema: «Never this scratched world, its human /
brows like dry point, your harmonies / are liquid glycerin, soothing, /
the lingering bath. Who knew / better than you, Mark Rothko: / color
has not root nor core. / Into each other at the first / kiss fusing, a
metamorphosis! / Blue paint laps about our toes, / our skin is going
deep deep green — / the wild smell, the spruce, / the evergreen
pricking its cool needles» (Buchwald, 1984: 18).
À semelhança de um certo discurso crítico, a subjetividade é
ostensivamente explícita. O efeito no sujeito naquele que o
observa, explica uma leitura arbitrária, através da qual se
estabelecem nexos de sentido entre o objeto, o mundo, e,
obviamente, esse sujeito. Recorde-se que, a propósito do efeito da
«arte abstrata» naquele que a observa, Gombrich assinala a sua
ambiguidade explícita (Gombrich, 1989: 286). Essa ambiguidade
radicaliza-se nos quatro últimos versos, quando, num oxímoro, o
objeto se transforma em sujeito, condicionando, absorvendo,
mesmo, a identidade do espectador. Poder-se-á considerar que
produz esse efeito devido à intensidade nuclear da cor. Com efeito,
Greenberg considera que aquilo que, à semelhança de Still e
Newman, torna a cor tão original em Rothko é o calor (Greenberg,
1988: 244-245); isto é, o efeito mencionado pelo sujeito. Mas esse
efeito é mais amplo; Duncan Phillips cita: «[the painting’s ability] to
‘not only pervade our consciousness but inspire contemplation’»
(Rothko, 2001: s. n.º). Prossegue Phillips:

Colour-atmosphere in painting is as old as Giovanni Bellini and


his mountain backgrounds before sunrise or after sunset. We
think also of late Turner and of late Bonard. But in Rothko there is
no pictorial reference at all to remembered experience. What we
recall are not memories but old emotions disturbed or resolved —
some sense of well-being suddenly shadowed by a cloud —
yellow ochres strangely suffused with a drift of gray, prevailing
over an ambience of rose, or the fire diminishing into a glow of
embers, or the light when the night descends. [Idem]

A ênfase no espiritual, no transcendente, tão relevante nos


quadros do início da década de 1960, e que João Miguel
Fernandes Jorge toma como impulso para a acima mencionada
sequência de poemas de O roubador de água, intitulada «Rothko
Chapel, para coros, viola e percussão, de Morton Feldman»,
parece dar lugar a uma dimensão sombria nas obras em negros,
cinzentos, e castanhos, da Primavera de 1969 (ano anterior ao seu
suicídio); uma dimensão que pode recuperar a vertente distópica
antes insinuada na representação da cidade nas suas obras do
pós-guerra. É através da intensidade da cor que a tensão disfórica
impressiona o sujeito/espectador; daí o caráter radicalmente
subjetivo do texto.
Perante a ausência do figurativo restringir-se-á a écfrase a uma
balcanização teórica, ou a um registo de impressões subjetivistas?
Ou persistirá na sobrevivência do signo natural? Talvez não para
uma resposta a estas questões, mas pelo menos para uma mais
prolongada reflexão, prossigamos nesta digressão motivada pelo
poema de Fernandes Jorge acima mencionado. Peço-lhe, caro
leitor, que atente na segunda parte do extenso título — «para
coros, viola e percussão, de Morton Feldman» —, e naquilo que
ela introduz. Com efeito, mais do que uma eventual meditação
suscitada pela obra de arte, o poema de João Miguel Fernandes
Jorge surge na sequência da atmosfera criada por uma leitura
estética inicial, aquela que o compositor Morton Feldman concebeu
a partir do espaço, a capela que ostenta o nome do pintor.
Existem, portanto, diferentes níveis estéticos que, entre si,
interagem — pintura (quadros), arquitetura (capela), obra musical;
será neste espaço entre, nesta confluência que o poema ganha
corpo.
Outro percurso neste encontro pode ser vislumbrado no poema
de Vicente Gallego intitulado «XIII (pintura)», de Teoría Solar
(1992), Gallego enuncia aqui o paradoxo de o excesso de
visibilidade — «Lo que se ve: blanco roto, blanco de texturas
insulares, / blanco rugoso y blanco geométrico. Blanco abierto por /
el pecho una tarde de octubre. Blanco sobre blanco: música. / Más
blanco» (Magalhães, 1997: 760) — não designar a visibilidade de
um significado, de um sentido, «Lo que no se ve».
A abstração pode ainda ser convocada a partir de uma subtil
inversão dialógica. Ao referi-lo tenho em mente «The hireling
shepherd», de João Almeida. Neste caso, o título do poema
menciona explicitamente um quadro de 1851 da autoria de William
Holman Hunt, na qual este pintor pré-rafaelita suscita uma reflexão
em torno de uma ética do trabalho: entregue a um devaneio
erótico, o pastor permite que uma das ovelhas que deveria cuidar
se afaste do rebanho. Ora, a escolha daquele título confina o leitor
a um determinado horizonte de expectativas. No entanto, este
horizonte é perturbado pela inexistência de referências explícitas à
obra de Hunt. Em contrapartida, é um contexto confessional —
entendido este no âmbito de uma atmosfera algo freudiana —,
radicado num espaço urbano: «a veia poética secou / as luzes
todas apagadas / o olhar vermelho do despertador / vou por onde
não te encontras // outro dia que começa às duas / deprime o
cheiro / que sai das casas históricas» (Almeida, 2005: 18). É
apenas de uma forma algo ínvia que a ética do trabalho se insinua;
tal sucede, porém, de um modo distante da responsabilidade
individual inerente à ética protestante daqueles poetas: «onde vou
não é comigo / nem como ganho o pão de cada dia» (idem). Ou
será que nestas ressonâncias bíblicas, neste eco do Sermão da
Montanha revelado em Mateus 5-6 — «o pão nosso de cada dia
nos dai hoje», se pode reconhecer a presença de uma entidade
superior que será a responsável primeira por um percurso de vida?
Ou estará destinado este diálogo a confinar-se à ominosa
proclamação de Sir Philip Sidney nesse distante século XVI:
«Annihilating all that’s made / To a green Thought in a green
Shade»?
44. Remeto o leitor interessado numa reflexão sobre a presença deste conceito na
representação do tópico paisagístico através do signo «rio», para o meu ensaio «O rio e a
anacronia numa estética da paisagem» (Colóquio/Letras, 179, janeiro/abril 2012: 51-61).

45. Como acima referi, está depositado em Viena de Áustria, no Kunsthistorisches


Museum.

46. Recordo a referência acima ao facto de as evocações do Martírio de Cristo e da


Natividade participarem dessa reflexão.

47. Abordarei em seguida este tópico no âmbito das respostas proporcionadas pela poesia
escrita após o Modernismo.

48. Convocado, aliás, em brotherhood. Como acima referi, João Almeida Flor traduz a sua
designação por Confraria Pré-Rafaelita, na entrada destinada ao grupo, na Enciclopédia
Luso-Brasileira de Cultura.

49. Refere Gil de Carvalho nas suas «Notas a poemas e poetas», inseridas em Antologia
de poesia chinesa: «O Shijing (o ‘Cânone’ de Poesia) é a mais antiga antologia de poesia
chinesa. Crê-se tradicionalmente ter sido compilado por Confúcio […] que o inclui entre os
Clássicos, livros ‘canónicos’ da civilização chinesa» (Carvalho, 2010: 398).

50. «Duchamp himself wrote that The Nude was ‘the convergence in my mind of various
influences, of which the cinema, then still in its infancy, and the separation of static positions
in the photocronographs of Marey, are examples […] the anatomical nude does not exist, or
at least cannot be seen, since I discarded the naturalistic image in favour of some twenty
abstract pictures of the nude in the successive act of descending`» (Zeki, 1999: 146).

51. Olson desempenhou as funções de reitor entre 1951 e 1956 (ano de encerramento da
instituição), sucedendo ao seu mentor Edward Dahlberg.

52. Segundo Clement Greenberg, a expressão «expressionismo abstrato» deve-se a


Robert Coates, do New Yorker. Já a expressão «action painting» foi cunhada por Harold
Rosenberg na revista Art News.

53. Apesar de este comentário ecfrástico ser intencionalmente sabotador da convenção,


devo assinalar que entre os diferentes aspetos polémicos a propósito deste quadro reside o
de as duas personagens figuradas não serem gémeas.
54. Refere O’Hara a propósito da pintura de Pollock: «Scale […] has to do […] with the
emotional effect of the painting upon the spectator» (McClatchy, 1990: 212).

55. A sua existência coincide com a das gerações românticas inglesas, vindo a terminar em
1851, já em pleno apogeu da geração pré-rafaelita.
Epílogo

«I cannot sympathise with these cries from the heart […]»


(Wagner-Martin, 1988: 278), declarou Sylvia Plath a Peter Orr
numa entrevista a ele concedida em 196256. Trata-se de uma
declaração perturbante por parte de quem tem sido habitualmente
associada à tradição confessional; aliás, a alguém que, a par de
Theodore Roethke, Robert Lowell, John Berryman e Anne Sexton,
tem sido vista como um dos instantes mais significativos dessa
tradição confessional na poesia contemporânea. Contribuirá para a
aura que, em torno deles, se criou, o facto de a generalidade se ter
suicidado. Para a aura, e também para os equívocos que
envolvem a sua leitura, nomeadamente aquele que associa
confessionalismo a sinceridade — seja lá o que isso for… em
poesia — e, em consequência, o entendimento do poema como
solo especular de uma qualquer verdade acerca do poeta devido
ao impacto da psicanálise freudiana.
É com este conjunto de poetas em mente que Philip Larkin
escreve o célebre ensaio intitulado «The Horror Poets». Considera
então o autor de The Less Deceived que eles criam um simulacro
em torno de uma eventual verbalização da loucura, e acrescenta
que os poetas, quando loucos, não falam da loucura mas de
tópicos como «my Cat Joffrey» — uma alusão ao poeta
Christopher Smart que foi internado num hospital psiquiátrico
quando vivia sozinho (não propriamente sozinho, apenas na
companhia do seu gato Joffrey). Num eventual eco de Larkin,
Joaquim Manuel Magalhães assinalava Ângelo de Lima que
tomava como impulso criativo a bandeira nacional. Com efeito,
nesta noção de simulacro reside um diagnóstico certeiro para
poetas como Plath que não entendem ser a poesia um mero «cry
from the heart». A leitura dos seus textos que tomam como
impulso obras de De Chirico, Klee ou Rousseau, ao desvendar as
complexas articulações, meditações e reflexões existentes nesse
espaço entre, nesse espaço de mediação, terá evidenciado a
dimensão analítica que perpassa a sua poesia.
Enquanto os poetas de Boston terão desvendado, devido a
Freud, a componente dramática que preside ao horror de uma
paisagem endógena — uma paisagem que já levara Emily
Dickinson a proclamar «One need not be a Chamber — to be
Haunted — / One need not be a House — / The brain has
Corridors — surpassing / Material Place» (Dickinson, 1987: 333),
sensivelmente na mesma altura, entre nós, a paisagem exógena
— a ditadura, a guerra colonial — instituiu-se como figuração do
horror. Será na resposta a este horror que podemos vislumbrar um
confessionalismo próximo do literalismo com que esta estratégia
de verbalização é identificada. No entanto, um poeta habitualmente
a ela associado distinguir-se-á pelo facto de, não ignorando esse
horror quotidiano, o problematizar esteticamente num solo fluido
entre a palavra e a imagem; refiro-me a um nome algo esquecido,
Moita Macedo.
«Pintei versos, escrevi quadros», declarou um dia este poeta
que, todavia, seria reconhecido primordialmente como pintor.
Nesta frase o leitor terá, de imediato, reconhecido os ecos
clássicos do grego Simónides de Ceos — a pintura é poesia
silenciosa, a poesia é pintura que fala —, e do romano Horácio
quando, séculos mais tarde, proclamaria na sua Arte Poética: «Ut
pictura poesis». Como observámos, seria necessário esperar pelo
ensaio de Lessing para que as duas tradições artísticas — as que
surgem associadas à palavra e as que se afirmam pela imagem —
conhecessem uma clarificação teórica: artes do tempo e artes do
espaço. Coloca-se, deste modo, uma questão: ao superar a
dicotomia lessinguiana, como sugere a declaração «Pintei versos,
escrevi quadros», Moita Macedo estará a exprimir uma afinidade
radical entre as duas expressões artísticas por ele praticadas?
Uma afinidade análoga àquela que identificámos em Dante Gabriel
Rossetti, poeta e pintor?
Gostaria, assim, de, neste momento crepuscular, vos deixar uma
brevíssima reflexão em torno deste tópico. Com efeito, ao lermos
os poemas de Moita Macedo desponta na nossa memória uma
tradição poética que será facilmente identificável por parte
daqueles que viveram ou conheceram os círculos intelectuais de
resistência ao regime, em particular, na década de 60 do século
passado. São inúmeras as vozes que, de imediato, recordo; vozes
hoje algo esquecidas como Vicente Campinas, Mário Gonçalves,
Francisco Viana, José Bação Leal, ou mesmo Daniel Filipe, ou não
esquecidas, como Manuel Alegre; vozes que evocam um
neorrealismo tardio e que, também por isso mesmo, pela sua
filiação política, não raro são confinadas a um marxismo ortodoxo.
No entanto, mesmo quando trazemos à mente nomes da
geração anterior que se inscrevem no mesmo cenário ideológico e
estético, como Sidónio Muralha, aquilo que me parece ser mais
evidente é a dimensão confessional; a afirmação de uma
sensibilidade face ao mundo que, por muito que pudesse custar a
esse marxismo, e a eles próprios, está mais próximo de um certo
pathos existencial que, numa sensibilidade coletiva marcada pela
saudade, declara a melancolia do indivíduo face a uma realidade
constrangedora. Talvez estes poetas estejam, afinal, mais
próximos do Santo Agostinho, das Confissões, ou de Rousseau,
do que de Marx. Por isso mesmo, creio que a designação que
melhor os identifica será a de confessionalistas, pois será nessa
dimensão que se evidencia o melancólico testemunho do poeta.
É deste modo que ela se exibe naquele que, para mim, é a voz
mais forte dessa tradição, Daniel Filipe; curiosamente, aquele a
quem Moita Macedo dedica «Quando morre um poeta». Este
poema de Moita Macedo denuncia uma óbvia afinidade com Daniel
Filipe; uma afinidade estética, política e, reitero, existencial,
firmada numa partilha radical, em termos etimológicos, do
quotidiano. No entanto, o reconhecimento dessa afinidade não nos
deve constranger em termos de leitura.
Embora o testemunho seja evidente nos poemas de Moita
Macedo, essa exposição de um rosto, de uma sensibilidade, que o
testemunho pressupõe, não funciona como derradeiro limite do
texto. Não estou a denegar a existência dessa vertente, central nos
seus versos intitulados «Desejo ao poema» — «Queria // Que os
meus poemas fossem pedras / Que à noite, / Tradição
arremessasse! // Queria // Que cada pedra fosse uma canção /
Que o povo cantasse!» (Moita Macedo, 2003: 80). Com efeito,
essa é um vertente, de facto, recorrente. Mas outra, eventualmente
mais indireta e reflexiva, deve ser lembrada, e aqui desvendamos
a vizinhança com os textos ecfrásticos de Plath. Veja-se o poema
significativamente intitulado «Colagens». Nele é a estética visual
suportada pela palavra, aquilo a que a tradição ecfrástica grega
designava enargeia que pontifica: «N’elas / Recortados, colados,
estendidos / Esfaimados e adormecidos / Estão arautos
despertados / De ânsia de ideal, de ânsia dos / sentidos / N’elas /
Estão pedaços-de-Paula / Lançados sobre as telas» (idem: 11).
Nestes dois exemplos define-se um rosto: o do cidadão/poeta e o
do artista. Curiosamente, quando transitamos para a obra pictórica
de Moita Macedo, a evidência do rosto dilui-se. Fernando António
Baptista Pereira, com a argúcia analítica que fez dele uma das
vozes mais penetrantes sobre a arte em Portugal, abordou esta
relação entre a palavra e a imagem em Moita Macedo. Tal não
significa, porém, que esse trabalho de reflexão não deva ser
prosseguido. Fá-lo-ei sugerindo apenas um caminho, o do
aprofundamento da análise daquela que considero ser a seminal
relação entre autobiografia estética e representação. Com efeito,
em tempos que recusam a sistematização, Baptista Pereira teve a
coragem de avançar com uma abordagem sistemática e tópica da
obra do artista. Por seu turno, Vítor Serrão, essa outra figura
cimeira da História da Arte entre nós, assinalou, com o
brilhantismo que lhe é habitual, quais os seus tópicos nucleares.
Numa obra que oscila entre a abstração e a representação, e em
que as fronteiras entre ambas se diluem, Baptista Pereira identifica
tópicos como «Os outros Eus», «as Tauromaquias», «os
Quixotes», «Cristos e Calvários», «Caravelas», «Cidades». É
neles que o sujeito, que um rosto, uma identidade, se projetam.
Ora, o rosto que se explicita na palavra, parece denegar aqui a sua
presença. Um dos momentos em que essa denegação será mais
evidente, é um quadro de 1976, intitulado Um quasi auto-retrato.
Uma das vertentes que mais me parece relevante na obra de
Moita Macedo, para o percurso analítico que prossegui ao longo
destas páginas, é aquela em que predomina a ausência de um
referente — chamemos-lhe abstrata; aquela em que a pintura,
claramente devedora do Modernismo, é apenas isso, pintura.
Escreve a propósito o crítico de arte norte-americano, Clement
Greenberg que os Velhos Mestres criaram uma ilusão do espaço
que nós podemos imaginar a palmilhar. Em contrapartida, a ilusão
criada por um modernista é a de um espaço que nós podemos
percorrer apenas com o olhar. Lembra, nesse sentido, Manet e os
impressionistas a partir dos quais a questão deixou de ser definida
como oposição entre cor e desenho, e tornou-se uma questão de
pura experiência ótica (Fried, 1967: 20).
É, portanto, uma relação diferente entre pintura e observador,
uma relação marcada pela oticidade, que se impõe. Para a abordar
em Moita Macedo, recorro ao crítico de arte que mais me inspira, o
norte-americano Michael Fried, e ao seu conceito de absorção.
Gostaria de meditar sobre aquela vertente não figurativa da obra
de Moita Macedo, partindo da análise de Forma, enquanto
estrutura pictórica, que surge do reconhecimento dos limites do
quadro. Gostaria de ver em que medida, também para ele, a forma
se terá ou não tornado algo de diferente do que era na pintura
convencional — um «objeto de convicção» (idem: 78). Gostaria de
identificar qual a relação de continuidade entre o exterior e o
interior. Ou ainda como se pode reconhecer uma sintaxe da
análise da relação entre elementos arbitrários (sem sentido)? E
que tipo de experiência cognitiva se suscita? Não temei, porém,
pois isso exigiria mais espaço e tempo, e ambos escasseiam neste
crepúsculo. Deixarei, portanto, essa reflexão para outra
oportunidade.
Regressemos, então, a Um quasi auto-retrato. O autorretrato
constitui uma tradição pictórica particularmente relevante na arte
ocidental. Nela destacaria duas dimensões algo recorrentes, a da
interpelação do espectador através do olhar do retratado, e a
dramática. Com efeito, no autorretrato é recorrente o olhar do
artista convocando aquele que o observa para a sua intimidade, ou
antes, para a intimidade que ele deseja exibir. Artistas como Dürer
fizeram-no amiúde em vários momentos da sua vida, revelando
determinadas singularidades, sem ignorar a presença do
espectador. Mesmo quando narcisicamente diluído em instantes
solenes como a Natividade, em Boticelli, ei-lo que nos interpela.
Implícita ou explícita a dimensão dramática manifesta-se no
autorretrato. Veja-se a ironia de Judite com a cabeça de
Holofernes, de Cristofano Allori, onde, sob a narrativa bíblica,
desponta a autobiográfica: Allori autorrepresenta-se como
Holofernes, enquanto a amante que o abandonara é figurada como
Judite, acompanhada por sua mãe.
Nenhum destes aspetos surge em Um quasi auto-retrato. Afinal,
porque, como explicita o paratexto, ele é quasi, porque não chega
a ser assumido como participando de um arquitexto — convenção
do género autorretrato —, a representação do artista, dos seus
traços, da sua expressão, dá lugar a uma massa, transformada em
índice, onde o corpo, apenas delineado, sugerido, num movimento
algo furtivo, se insinua. Neste quadro, o testemunho é indiciado, é
indireto. Nada aqui se evidencia da estratégia confessional.
Será este, porventura, o verdadeiro autorretrato? Aquele em que
o corpo se transformou no objeto, na textura da tinta, na própria
matéria que, ela sim, dá corpo, vida, ao objeto artístico. Poderá,
afinal, este quadro, algo singular e excêntrico, em termos
tipológicos, face ao conjunto da sua obra, ser uma espécie de arte
poética sua? A figuração de uma síntese? A configuração do
corpo, de um rosto? No espaço entre poesia e pintura, é, afinal, um
olhar sobre o mundo aquilo que Moita Macedo sugere. E assim,
devedora do índice e da ambiguidade desse lugar entre, revela-se
uma outra estratégia confessional, distinta daquela que este artista
geracionalmente integra.
Enquanto em Moita Macedo a tensão entre palavra e imagem
participa da construção de uma identidade, em Variações
metálicas são três artistas — Vasco Graça Moura, Ana Gaiaz e
José Aurélio — que, através das suas formas de expressão
próprias, concebem um corpo único, o livro. Este encontro a três —
artista plástico, fotógrafa, poeta — que faz desta obra algo de
singular, único mesmo, no vasto solo do encontro entre palavra e
imagem, não se confina, porém, a esse produto final, para o qual
contribui a montagem gráfica de João Machado que, segundo
Graça Moura, «levou ainda mais longe [os] contrapontos» (Graça
Moura, 2004: 11) resultantes da colaboração a três. No mesmo
ano em que Variações metálicas vem a lume — 2004 —, surge um
extenso ensaio de José Afonso Furtado, a ele dedicado; intitula-se
este O escultor, o poeta, a fotógrafa. Embora Variações metálicas
valha por si só, a publicação, sob a forma de livro, do ensaio, em
coabitação com fotografias de fragmentos de obras e do atelier de
José Aurélio (cf. figura 36), prolonga a meditação estética por
aquele suscitada para um nível absolutamente único.
O título do ensaio de José Aurélio denuncia um percurso de
precedência na conceção do objeto: as esculturas metálicas
antecederam os textos poéticos que, por seu turno, antecederam
as fotografias. Na nota prévia, «Sobre estas variações metálicas»,
Vasco Graça Moura explicita qual o estatuto da fotógrafa neste
encontro:

Propus a Ana Gaiaz que se encarregasse de um itinerário


fotográfico que fizesse um contraponto a preto e branco com as
minhas propostas textuais. Porque não se tratava de apresentar
meramente poesia «ilustrada» com imagens mas de fazer
funcionar em paralelo linguagens e modos de expressão
diferentes, esse itinerário vai desde uma imensa e intrincada
floresta de ferragens e ferramentas até à leitura de peças
individualmente consideradas, em acentos de uma melancolia
que sabe ser delicada e lúdica, e é atravessada por luz, sombra e
ar, se mostra sensível a pesos e a volumes, a texturas, a brilhos
e a silêncios, às relações com o espaço e à «música dos
metais», ao fazer e ao refazer nos seus ritmos e interrupções, e
assim deriva livremente ao sabor das descobertas feitas no
atelier e suas adjacências. Afinal, o escultor, o escritor e a
fotógrafa acabaram os três a participar no mesmo desafio
dialogante, sem perda da individualidade das linguagens
respectivas, e a discorrer longamente sobre a criação. [Idem: 11]

Vasco Graça Moura reconhece a relevância da alteridade neste


estranho solo que é o decorrente do encontro entre formas de
expressão artística distintas. Assume particular importância, neste
âmbito, o esclarecimento do estatuto estético da autora de A
caneta de Fernando Pessoa (cf. figura 37), algo que o criador
(debato-me com a necessidade de encontrar a palavra certa para
definir qual o perfil de Graça Moura neste texto, visto ser ele aqui o
ensaísta que é também o poeta, que é ainda, de certa forma, o
editor e autor, meditando sobre este — seu — produto final;
identidade, portanto, concebida numa radical in-betweenness)
define com clareza através de uma imersão na sintaxe e no léxico
dessa alteridade que é a fotógrafa e a estética em que ela se move
e que também ela cria. O ensaio de José Afonso Furtado amplia,
naturalmente, a leitura da contribuição da Ana Gaiaz em Variações
metálicas.
Na sequência de uma descrição sobre os instantes mais
significativos da consagração da fotografia como arte e,
consequentemente, como microcosmo estético autónomo
possuidor de regras próprias no seio das artes visuais, Afonso
Furtado conclui que «[f]otografar esculturas é sempre um risco e
um desafio, pois trata-se de um trasladar numa paisagem
bidimensional objetos que se caraterizam essencialmente pela sua
volumetria» (Furtado, 2004: 31). Nesse sentido, identifica
diferentes problemas que a fotógrafa teve que enfrentar como «a
questão da luz e da iluminação» (idem: 36), a «utilização ou da
imagem frontal ou de pontos de vista menos óbvios, oblíquos,
anfractuosos» (idem: 40), a «utilização do foco e da profundidade
de campo» (idem: 43), e a da complementaridade destas
estratégias.
Subjacente a esta representação e dela indissociável, surge o
texto, e aqui, como acima referi, prevalece a ironia, decorrente da
anacronia, algo que tanto o paratexto como a prosódia sinalizam.
Com efeito, é nesse resto, nesse fragmento, nesse despojo, por
José Aurélio elevado à dimensão de arte, que o poeta identifica
o(s) objeto(s) que merece(m) ser «cantado(s)».
Para que seja percetível a intensidade do jogo intertextual
concebido por Graça Moura, reproduzo os títulos dos poemas que
compõem Variações metálicas: «oitavas da oficina» (Graça Moura,
2004: 17); «anjo de ferro» (idem: 23), «ascese» (idem: 29), «jogo
da jóia» (idem: 35), «soneto inglês da sucata» (idem: 41), «as
gárgulas» (idem: 45), «o busto do vate» (idem: 49),
«tartarugamente sobre» (idem: 55), «glosa para josé aurélio»
(idem: 59 e 61), «projecto em selva oscura» (idem: 67), «balada
das coisas da luz» (idem: 70-71), «redondilhas dos gestos» (idem:
75, 77, 79, 81), «post-scriptum sobre o 25 de Abril» (idem: 85 e
87).
A anacronia decorrente das ressonâncias arcaicas ligadas a
subgéneros poéticos, é por demais evidente em alguns destes
títulos — oitavas, soneto, glosa, balada, redondilhas. Esta imersão
no passado, teimosamente persistindo nesta «idade do ferro» que
será o presente, regressa ao longo de textos, dominados por uma
moldura formal, num constante jogo de tensão entre passado e
presente; ou, se preferirmos, de um passado que teimosamente
insiste em não ser denegado por um ethos do presente. Numa
dimensão mnemónica face à obra de arte que funcionou como
impulso para os poemas de Vasco Graça Moura, erguem-se as
fotografias de Ana Gaiaz (cf. figura 38), precedendo-os sempre e
interrompendo-os quando a sua extensão obriga a exibi-los em
diferentes páginas, como sucede com «glosa para josé aurélio»,
«balada das coisas da luz», «redondilhas dos gestos» e «post-
scriptum sobre o 25 de Abril».
Citei acima esse poema marcado por uma profunda ironia que é
«oitavas da oficina». Outros poderão ser evocados. Confino-me,
porém, a três que evidenciam a polifonia deste solo criativo.
Começo por lembrar «o anjo de ferro». Faço-o devido ao confronto
entre o etéreo do anjo em confronto com a materialidade que lhe
dá corpo, algo que estes versos exibem: «um anjo de metal
pousou adrede / na gaze ou na quadrícula de um mapa. / vista de
perto, a gaze é uma rede / e as asas são de chapa. // visto de
perto, o anjo é todo em ferro / e entre hélices girando se transtorna
/ a figura rangente no seu berro / e é martelo no vento e é bigorna.
// vulcano o engendrou» (idem: 23). Duas contradições se impõem
nestes versos: a do etéreo, traço identitário do anjo, coabitando
com a realidade da matéria; e o solo onde passado (História, mito
— Vulcano) coexiste com os signos industriais do presente (chapa,
hélice, bigorna, et al.).
Recordo, em seguida, «redondilhas dos gestos» pela radical
anacronia em que assenta: os ecos de um subgénero poético
caído em desuso — redondilha —, e de um evidente e subversivo
diálogo intertextual com Camões — «sôbolos ferros que vão / por
babilónia me achei» —, coexistindo com a ostensiva amálgama da
ruína do presente — «e lá passando encontrei / bronzes, arames,
latão, / chumbo, zinco, ouro de lei» (idem: 75). O espaço entre é
assim a substância do próprio poema, esse objeto temporalmente
impuro (Didi-Huberman, 2000: 22), competindo ao leitor desvendar
os subtis diálogos e insinuações que despontam nessa impureza,
numa espécie de metatextualidade à-rebours. Por seu turno, ao
poeta estará destinado um reiterado encontro com essa mesma
impureza, pois será a partir dela que o texto se revela, o que me
conduz ao terceiro poema, «soneto inglês da sucata».
É sustentado por este diagnóstico que o poema se inicia numa
consciência da viagem que o percurso poético é: uma viagem,
nesta waste land; uma viagem de reconhecimento e incorporação
da alteridade: «ir pelo mundo, andar pela sucata, / não recear dos
olhos que se sujem, / encontrar uma forma que se engata / a outra
forma em sombra de ferrugem // e de uma a outra ir engendrando
amarras / e explosões contínuas» (idem: 41). No resto é, afinal, um
começo que se insinua. Tal é o testemunho do poeta sobre o seu
(nosso) tempo.
Mencionei acima o leitor. Com efeito, não é apenas o texto, o
referente visual, a fotografia, mas também o leitor que é colocado
nesse espaço entre a partir do qual deve proceder à sua leitura.
Daí que a singularidade dos poemas que nascem deste encontro
com uma obra de arte exija ao leitor uma capacidade de
identificação dos signos e da trans-memória que neles se insinua e
que o poeta convoca de acordo com a perspetiva que apenas a ele
pertence; recorrendo a um certo léxico crítico cinematográfico,
chamemos-lhe «assinatura». Ao leitor exige-se, portanto, «a
memory longer than the ‘thought-bites’ of immediate relevance», de
que falava William Desmond. Uma outra relevância deve, assim,
ser descortinada, aquela que leva o leitor a identificar a
singularidade desta terceira personalidade criativa autora da obra
que desponta deste encontro entre vozes distintas.
E assim se configura uma noção de confessionalismo, não como
estratégia que se confina à representação de topoi psicológicos,
mas que se densifica, fazendo do texto esse espaço e instante
fluidos de in-betweenness, do qual emerge a reflexão ontológica, a
reflexão sobre o tempo, sobre as circunstâncias históricas das
quais somos, ainda que invisíveis, atores, sobre as tradições
estéticas e as memórias que nos interpelam; enfim, o testemunho.
Uma reflexão suscitada pelos objetos que impulsionam o poeta a
meditar esteticamente sobre esse entretanto que será a vida; um
entretanto que, para alguns, será, como vimos, um entre-Tanto. E
tudo isto devido ao encontro estético entre a palavra e a imagem.
56. Esta entrevista está disponível em áudio na Web em https://www.youtube.com/watch?
v=g2lMsVpRh5c.
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Zeki, Semir (1999). Inner Vision — An Exploration of Art and the Brain. Oxford: Oxford
University Press.
38 Figuras
Figura 1: Escudo de Aquiles
Figura 2: O grupo de Laocoonte ou Laocoonte e seus filhos
Figura 3: O caminho para o Calvário, de Brueghel, o Velho
Figura 4: Elgin Marbles ou Mármores de Elgin, também conhecidos como Mármores do
Pártenon
Figura 5: Um vaso grego
Figura 6: Paisagem com a queda de Ícaro, de Pieter Brueghel, o Velho
Figura 7: O sonho, de Henri Rousseau
Figura 8: Caçadores na neve, de Pieter Brueghel
Figura 9: Os fuzilamentos de três de maio, de Goya
Figura 10: A Breton Landscape, David’s Mill (Uma paisagem bretã, o moinho de David),
de Gauguin
Figura 11: Lady with a Parasol (Mulher com Sombrinha, ou Madame Monet e o Filho, ou
O Passeio, ou ainda Camille e Jean na Colina), de Monet
Figura 12: The Gare Saint-Lazare (A estação de Saint-Lazare), de Monet
Figura 13: Ofélia, de John Everett Millais
Figura 14: David, de Miguel Ângelo
Figura 15: Walt Whitman. Gravura em aço por Samuel Hollyer a partir de um
daguerreótipo perdido por Gabriel Harrison
Figura 16: Desenho da borboleta que surge na edição de 1860

de Leaves of Grass, de Walt Whitman


Figura 17: Walt Whitman, fotografia de W. Curtis Taylor
Figura 18: L’anglais au Moulin Rouge (O homem inglês no Moulin Rouge), de Henri
Toulouse-Lautrec
Figura 19: Marlene Dietrich em O Anjo Azul
Figura 20: O triunfo da morte, de Pieter Brueghel
Figura 21: Verão, de Giuseppe Arcimboldo
Figura 22: A Virgem dos Rochedos, de Leonardo da Vinci
Figura 23: Estátua O David da Catedral de Salisbury
Figura 24: Mae Marsh
Figura 25: Cerejas e pêssegos, Cézanne
Figura 26: Mulher com chapéu, de Henri Matisse
Figura 27: Nu descendo as escadas, de Marcel Duchamp.
Figura 28: Nighthawks, de Edward Hopper
Figura 29: I Saw the Figure 5 in Gold (Vi a Figura 5 em Ouro), de Charles Demuth
Figura 30: Washington Crossing the Delaware (Washington atravessando o Delaware),
de Emanuel Leutze
Figura 31: Interior, de Degas
Figura 32: Le Cheval blanc (O Cavalo branco), de Paul Gauguin
Figura 33: O Cavaleiro, a Morte e o Diabo, de Albrecht Dürer
Figura 34: Venus Verticordia, de Dante Gabriel Rossetti

Figura 35: Mariana in the Moated Grange (Mariana), de John Everett Millais
Figura 36: Um quasi auto-retrato, de Moita Macedo
Figura 37: A caneta de Fernando Pessoa, de Ana Gaiaz
Figura 38: Oitavas, de Ana Gaiaz

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