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SEMÂNTICA E DISCURSO:

UMA CRÍTICA À AFIRMAÇÃO DO ÓBVIO


Michel Pêcheux

II PARTE – I LÍNGUA E IDEOLOGIA


Concepção saussuriana de que a ideia só poderia ser, em todo seu alcance,
subjetiva, individual. De onde a oposição da subjetividade criadora da fala à
objetividade sistemática da língua.
É pois, sobre a base dessas leis internas que se desenvolvem os processos
discursivos, e não enquanto expressão de um puro pensamento, de uma pura atividade
cognitiva. Todo processo discursivo se inscreve numa relação ideológica de classes.

II PARTE – IV SUJEITO, CENTRO, SENTIDO


Uma teoria materialista, dos processos discursivos não pode, para se constituir,
contentar-se em reproduzir, como um de seus objetos teóricos, o sujeito ideológico
como sempre já dado: na verdade, e isso por razões imperiosas que dizem respeito à
intrincação dos diferentes elementos que acabamos de enunciar, essa teoria não pode, se
deseja começar a realizar suas pretensões, dispensar uma teoria da subjetividade. O
domínio teórico de nosso trabalho se encontra definitivamente determinado por três
regiões interligadas, que designaremos, respectivamente, como a subjetividade, a
discursividade e a descontinuidade ciências/ideologias.
Elementos materialistas: (1) metáfora; (2) sujeito ideológico, identificação-
unificação do sujeito consigo mesmo, identificação do sujeito com o universal; (3)
teoria não subjetivista da subjetividade, a relação entre inconsciente e ideologia, a
ideologia interpela os indivíduos em sujeitos: o indivíduo é interpelado como sujeito
livre para livremente submeter-se às ordens do sujeito, para aceitar, portanto livremente
sua submissão.
O recalque inconsciente e o assujeitamento ideológico estão materialmente
ligados, sem estar confundidos, no interior do que se poderia designar como o processo
do Significante na interpelação e na identificação, processo pelo qual se realiza o que
chamamos as condições ideológicas da reprodução/transformação das relações de
produção.
III PARTE – I SOBRE AS CONDIÇÕES IDEOLÓGICAS DA REPRODUÇÃO
Os aparelhos ideológicos de Estado não são a expressão da dominação da
ideologia dominante, isto é, da ideologia da classe dominante, mas sim que eles são seu
lugar e meio de realização: é pela instalação dos aparelhos ideológicos de Estado, nos
quais essa ideologia é realizada e se realiza, que ela se torna dominante.
Aparelhos ideológicos de Estado constituem, simultânea e contraditoriamente, o
lugar e as condições ideológicas da transformação das relações de produção, isto é, da
revolução.
Condições ideológicas da reprodução/transformação das relações de produção
dizendo que essas condições contraditórias são constituídas, em um momento histórico
dado, e para uma formação social dada, pelo conjunto complexo dos aparelhos
ideológicos de Estado que essa formação social comporta.
Só há prática através de e sob uma ideologia; Só há ideologia pelo sujeito e para
sujeitos.

III PARTE – II IDEOLOGIA, INTERPELAÇÃO, “EFEITO MÜNCHHAUSEN”


Constituição do sentido se junta à da constituição do sujeito, interpelação. O
sujeito e as diversas pessoas morais, as quais, à primeira vista, parecem ser sujeitos
constituídos a partir de uma coletividade de sujeitos, e dos quais se diria, invertendo a
relação, que essa coletividade, como entidade preexistente, que impõe sua marca
ideológica a cada sujeito sob a forma de uma socialização do indivíduo nas relações
sociais concebidas como relações intersubjetivas. Todo individuo seja sempre-já-sujeito.
O sujeito é desde sempre um indivíduo interpelado em sujeito.
Signo, que designa alguma coisa para alguém. Significante, isto é, daquilo que
representa o sujeito para um outro significante. Sujeito como processo interior ao não
sujeito constituído pela rede de significantes, no sentido que lhe dá Lacan: o sujeito é
“preso” nessa rede. O sujeito resulta dessa rede.

III PARTE – III A FORMA-SUJEITO DO DISCURSO


Quanto ao sujeito ideológico que o reduplica, ele é interpelado – constituído sob
a evidencia da constatação que veicula e mascara a “norma” identificadora. É a
ideologia que, através do “hábito” e do “uso”, está designando, ao mesmo tempo, o que
é e o que deve ser, por meio de desvios linguisticamente marcados entre a constatação e
a norma e que funcionam como um dispositivo de retomada do jogo.
O sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, não existe em
si mesmo, mas ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em
jogo no processo sócio histórico no qual as palavras, expressões e proposições são
produzidas. Mudam de sentido segundo as posições, em referência as formações
ideológicas. Chamaremos, então, formação discursiva aquilo que, numa formação
ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determina
pelo estado da luta de classes, determinada o que pode e deve ser dito.
Os indivíduos são interpelados em sujeitos-falantes (em sujeitos de seu discurso)
pelas formações discursivas que representam na linguagem as formações ideológicas
que lhes são correspondentes.
Uma mesma expressão e uma mesma proposição podem receber sentidos
diferentes porque uma palavra, uma expressão ou uma proposição não tem um sentido
que lhe seria próprio.
O sistema de relações de substituição, paráfrases, sinonímias, que funcionam
entre elementos linguísticos – significantes – em uma formação discursiva dada.
Interdiscurso a esse todo complexo com dominante das formações discursivas.
A interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela
identificação com a formação discursiva que o domina: essa identificação, fundadora da
unidade do sujeito, apoia-se no fato de que os elementos do interdiscurso que
constituem, no discurso do sujeito, os traços daquilo que o determina, são reinscritos no
discurso do próprio sujeito.
Forma-sujeito. Sujeito do discurso. Esquecimento. O sujeito só é sujeito por ser
assujeitamento ao campo do Outro, o sujeito provém de seu assujeitamento sincrônico a
esse campo do Outro. Forma-sujeito: todo indivíduo humano, isto é, social, só pode ser
agente de uma prática se se revestir da forma de sujeito. A “forma-sujeito” de fato, é a
forma de existência histórica de qualquer indivíduo, agente das práticas sociais. O termo
esquecimento não está designado aqui a perda de alguma coisa que se tenha um dia
sabido, como quando se fala de perda de memória, mas o acobertamento da causa do
sujeito no próprio interior de seu efeito.1
O pré-construído corresponde ao sempre-já-aí da interpelação ideológica que
fornece-impõe a realidade e seu sentido sob a forma da universalidade. A articulação
constitui o sujeito em sua relação com o sentido, de modo que ela representa, no
interdiscurso, aquilo que determina a dominação da forma-sujeito.
1
Está na nota de rodapé.
O intradiscurso, isto é, o funcionamento do discurso com relação a si mesmo (o
que eu digo agora, com relação ao que eu disse antes e ao que eu direi depois, o
conjunto dos fenômenos de correferência que garantem aquilo que se pode chamar o fio
do discurso, enquanto discurso de um sujeito).
O interdiscurso enquanto discurso-transverso atravessa e põe em conexão entre
si os elementos discursivos constituídos pelo interdiscurso enquanto pré-construído, que
fornece, por assim dizer, a matéria-prima na qual o sujeito se constitui como sujeito
falante, com a formação discursiva que o assujeita. O intradiscurso, enquanto fio do
discurso do sujeito, é a rigor, um efeito do interdiscurso sobre si mesmo, uma
interioridade inteiramente determinada como tal do exterior. A forma-sujeito tende a
absorver-esquecer o interdiscurso no intradiscurso, isto é, ela simula o interdiscurso no
intradiscurso, de modo que o interdiscurso aparece como o puro já-dito do intradiscurso,
no qual ele se articula por correferência.
Reconhecimento mútuo entre os sujeitos e o Sujeito, e entre os próprios sujeitos,
e finalmente o reconhecimento de cada sujeito por si mesmo. É nesse reconhecimento
que o sujeito se esquece das determinações que o colocaram no lugar que ele ocupa –
entendamos que, sendo sempre-já sujeito, ele sempre-já se esqueceu das determinações
que o constituem como tal.
Esquecimento 2 ao esquecimento pelo qual todo sujeito-falante seleciona no
interior da formação discursiva que o domina, isto é, no sistema de enunciados, formas
e sequencias que nele se encontram em relação de paráfrase – um enunciado, forma ou
sequência, e não um outro, que, no entanto, está no campo daquilo que poderia
reformulá-lo na formação discursiva considerada. Esquecimento 1, que dá conta do fato
de que o sujeito-falante não pode, por definição, se encontrar o exterior da formação
discursiva que o domina.
Identificação simbólica. Toda representação verbal, portanto toda palavra,
expressão, ou enunciado, se reveste de um sentido próprio, absolutamente evidente, que
lhe pertence.
O esquecimento 2 cobre exatamente o funcionamento do sujeito do discurso na
formação discursiva que o domina, e que é aí, precisamente, que se apoia sua liberdade
de sujeito-falante.
IV PARTE – III A FORMA-SUJEITO DO DISCURSO NA APROPRIAÇÃO
SUBJETIVA DOS CONHECIMENTOS CIENTÍFICOS E DA POLÍTICA DO
PROLETRARIADO

Praticas discursivas. Sabemos que toda pratica discursiva está inscrita no


complexo contraditório-desigual-sobredeterminado das formações discursivas que
caracteriza a instancia ideológica em condições históricas dadas. Essas formações
discursivas matem entre si relações de determinação dissimétricas de modo que elas são
o lugar de um trabalho de reconfiguração que constitui, segundo o caso, um trabalho de
recobrimento-reprodução-reinscrição ou um trabalho politicamente e/ou cientificamente
produtivo.
A questão do discurso na forma-sujeito: uma vez que não existe prática sem
sujeito, uma vez que os indivíduos-agentes agem sempre na forma de sujeitos enquanto
sujeitos, todo sujeito é constitutivamente colocado como autor de e responsável por seus
atos (por suas condutas e por suas palavras) em cada prática em que se inscreve. Pela
determinação do complexo das formações ideológicas (e, em particular, das formações
discursivas) no qual ele é interpelado em “sujeito-responsável”.

ANEXO – ALGUMAS REPERCUSSÕES POSSÍVEIS NAS PESQUISAS


LINGUÍSTICAS
Questões linguísticas. Era menos para delimitar as fronteiras de uma nova região
científica do que para designar alguns elementos conceptuais (principalmente o de
formação discursiva) os quais, até que venham a ser retificados, podem ser utilizados
pelos linguistas materialistas preocupados em trabalhar no interior do materialismo
histórico: trata-se no fundo, de começar a formular as condições conceptuais que
permitem analisar cientificamente o suporte linguístico do funcionamento dos aparelhos
ideológicos de Estado.

ANEXO – SÓ HÁ CAUSA DAQUILO QUE FALHA...


A forma-sujeito do discurso, no qual coexistem, indissociavelmente,
interpelação, identificação e produção de sentido, realiza o non-sens da produção do
sujeito como causa de si sob a forma da evidencia primeira. Portanto limite da reflexão
marxista em que (a ideologia interpelando o indivíduo em sujeito) se toca no impossível
de uma forma-sujeito tomada na História como processo sem Sujeito nem Fim (s).
A noção de luta ideológica de classes, os Aparelhos Ideológicos de Estado são
caraterizados como a sede e o motivo de uma luta de classes: a luta ideológica de
classes como um processo de reprodução-transformação das relações de produção
existentes, de maneira a inscrever nessa noção a própria marca de contradição de classes
que a constitui.
O leitor talvez se surpreenda com essa insistência na autocritica, ao que
responderei que não se deixa jamais um erro dormir impunemente em paz, pois esse
será um meio seguro para que ele perdure. É preciso discernir o que falha não por
pretender com isso se amparar definitivamente no verdadeiro, mas para tentar avançar
tanto quanto se possa em direção à justiça.
Não há dominação sem resistência, é preciso ousar se revoltar. Ninguém pode
pensar do lugar de quem quer que seja, é preciso ousar pensar por si mesmo.

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