Você está na página 1de 16

SANTOS, J.B.C. A instância enunciativa sujeitudinal.

Uberlândia: LEP/GPAD/
ILEEL/ UFU. 2008. no prelo.

A INSTÂNCIA ENUNCIATIVA SUJEITUDINAL**

©João Bôsco Cabral dos Santos*

Considerações Gerais

Para entendermos o papel dos sujeitos no processo enunciativo, vamos


caracterizar como se constitui esse processo através da interpelação entre eles.
Observamos que essa interpelação se instaura por ocasião da realização linguageira.
Nesse sentido, torna-se relevante apresentarmos algumas características constitutivas
dela.
A realização linguageira, enquanto ato interpelativo e interenunciativo, traça o
perfil de sujeitos heterogêneos pertencentes a um grupo social, e actantes em sua
constitutividade discursiva. A nosso ver, trata-se de sujeitos circunscritos em processos
identitários, inseridos em práticas sociais, e em ações contextuais, do e no processo
enunciativo. Essa heterogeneidade estabelece uma relação de reciprocidade, quanto ao
lugar discursivo que esses sujeitos ocupam na interpelação.
Assim, no decorrer do processo enunciativo, os sujeitos podem estar inseridos
em um papel social, e numa diversidade de instâncias enunciativas sujeitudinais.

Instaurando uma concepção

Considerando a instância enunciativa sujeitudinal como alteridade de instâncias


sujeito no interior de um processo enunciativo, este trabalho se propõe a refletir sobre as
movências dessa instância sujeito, a partir de suas inscrições discursivas, atravessadas

**
Trabalho apresentado no Seminário Temático “O sujeito no 'ethos' institucional”, no III Simpósio
Internacional sobre Análise do Discurso, evento promovido pelo Núcleo de Análise do Discurso da
Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais.
*
Professor Adjunto do Instituto de Letras e Lingüística da Universidade Federal de Uberlândia.
Coordenador do Laboratório de Estudos Polifônicos (LEP) do Grupo de Pesquisa em Análise do Discurso
(LEP/GPAD/ILEEL/UFU)
pelo interdiscurso e traspassadas pela memória discursiva e pelas condições históricas
que a constituem. A idéia de instância se refere ao fato de que, no funcionamento
enunciativo, o sujeito do discurso oscila entre as facetas de um lugar social e de um
lugar discursivo na alteridade de formas-sujeito que se movem pela interpelação e pelo
atravessamento de discursos outros em seu enunciar.
A denominação ‘enunciativa’ deriva do caráter de unicidade e singularidade que
baliza as inscrições discursivas de uma instância sujeito, oscilando entre uma alteridade
– conforme a natureza da interpelação interdiscursiva que traspassa sua constituição – e
a movência de sentidos por ela operada nessa alteridade. Já o designativo ‘sujeitudinal’
reflete esse caráter de movência contínua em alteridade constitutiva, demarcada por
funcionamentos do interdiscurso. Tais funcionamentos, por sua vez, heterotopizam uma
diversidade de tomadas de posição da instância sujeito, de acordo com as evidências que
sintomatizam sua inscrição em uma rede de significações.
A partir dessa rede de significações emerge uma produção de sentidos que
repercute um processo de subjetivação, determinando um funcionamento dessa instância
sujeito no interior de uma formação discursiva. Para melhor entendemos a noção de
instância enunciativa sujeitudinal, pensemos inicialmente, em um sujeito empírico que
deixa a condição de indivíduo ao circunscrever-se na enunciação. Dessa circunscrição
emerge uma forma-sujeito que o inscreverá numa formação discursiva.
Como essa formação discursiva interpela essa forma-sujeito ideologicamente,
essa forma-sujeito se constituirá como sujeito de um discurso. Esse sujeito do discurso
ou sujeito discursivo fará uma tomada de posição que o conduzirá a um lugar discursivo
ou a um lugar social, ou ainda, uma alteridade constitutiva em ambos. Esse processo
acontecerá porque quando esse sujeito discursivo for interpelado, atravessamentos
interdiscursivos se sobreporão à formação discursiva de inscrição daquela forma-sujeito.
Além disso, não podemos esquecer da constitutividade ideológica que tornou
aquela forma-sujeito em sujeito discursivo. Essa constitutividade ideológica, por
conseguinte, fará com que esse, agora, sujeito discursivo, seja, também, interpelado por
sua memória discursiva. Na interpelação da memória discursiva na constitutividade
ideológica instaura-se, pois, uma memória de sentidos referente à sua inscrição singular
sincrônica naquele acontecimento discursivo em enunciação.
Quando o sujeito ocupa uma posição de lugar discursivo, lugar social ou ambos,
em alteridade, ele instaurará um processo de identificação e desidentificação desses e
nesses lugares. Essa inserção posicional de natureza interpelativo-ideológico-
heterotópica o transforma em instância enunciativa sujeitudinal. Trata-se, pois, de uma
constituição singular da condição de sujeito nos crivos de contradição, equivocidade,
opacidade, movência e deslocamentos do, no, para e entre formações discursivas no
interior de um processo enunciativo e na descontinuidade da construção linguageira em
que se funda uma discursivização.

Configurando posições enunciativas

Essas instâncias enunciativas sujeitudinais podem estar circunscritas em um


papel linguageiro, que corresponda a uma diversidade de papéis sociais. Pensemos, para
ilustrar essa diversidade, no exemplo de Pêcheux (1990, p. 86) quando menciona que:

Uma série de discursos, caracterizados pelo fato único de que se trate da


“liberdade” ; conforme se trate de um professor de filosofia que se dirige a
seus alunos, de um diretor de prisão que comenta o regulamento para uso dos
detentos, ou de um terapeuta que dirige a palavra a seu paciente, assistimos a
um deslocamento ... (o grifo é do autor)

Essa comutatividade lhes permite, inclusive, uma dinâmica discursiva, que os


coloca em constante alteridade, no que tange às realizações linguageiras propriamente
ditas. Dessa forma, no amálgama dessas alteridades, um papel social, em sua
diversidade linguageira, pode se manifestar enquanto diferentes instâncias enunciativas
sujeitudinais. Essas diferentes instâncias, conseqüentemente, implicam diferentes planos
discursivos.
Assim, na constitutividade de um papel social, histórico e ideologicamente
instaurado na circunstancialidade de uma realização linguageira, surge essa noção de
instância enunciativa sujeitudinal, constitutiva, portanto, do funcionamento de um
processo enunciativo. Esse funcionamento se realiza por uma conjuntura discursiva que
envolve traços de um “assujeitamento”, de uma interpelação e de uma
interdiscursividade, elementos constitutivos imbricados que justificam a diferença entre
uma instância enunciativa sujeitudinal e a instauração isolada e estática de uma
manifestação sujeitudinal, concebida em sua diversidade de percepções discursivas.
É preciso pontuar aqui o que estamos tomando por “assujeitamento” no escopo
teórico dessa reflexão em torno da instância enunciativa sujeitudinal. A idéia de
assujeitamento está vinculada à idéia de devir, aqui tomado como a propriedade de um
estado vir-a-ser, emergir sob determinadas condições e, sobretudo, a natureza de
deslocar-se para tornar-se desse estado para uma dada condição de circunstancialidade
enunciativa. O “assujeitamento”, portanto, é da ordem de um integrar-se, de um aderir-
se, de um fundar-se aos e nos aspectos constituintes, constitutivos e constituídos de uma
realização linguageira na condição de “elemento tornado sujeito”.
Além de singularizar o comportamento enunciativo dessas manifestações
sujeitudinais uma instância enunciativa sujeitudinal atribui ao processo enunciativo um
status linguageiro. Isso ocorre porque instância enunciativa sujeitudinal estabelece uma
inter-relação de constituição e funcionamento, que se torna partilhada, imbricada e
entrecruzada na percepção de posições que uma instância sujeito ocupa no interior de
uma enunciação. A noção de instância enunciativa sujeitudinal, pois, assume um caráter
enunciativo-discursivo-distintivo-singularizador do papel do sujeito na realização
linguageira.
A instância enunciativa sujeitudinal se configura, portanto, por condições de
atribuição e de finalidade. Na instauração de um processo interpelativo, ela revela
processos identitários dos sujeitos, decorrentes de uma inserção em um lugar sócio-
histórico. Além disso, uma conjuntura ideológica as configura enquanto influência de
valores referenciais e polifônicos dessas manifestações-sujeito que se instauram.
É relevante deixarmos claro aqui que essas manifestações-sujeito representam
uma alteridade heterogênea de constituição de uma instância sujeito que poderia ser um
sujeito empírico que se discursiviza, uma forma-sujeito que se transpõe, um sujeito do
discurso ou sujeito discursivo que se desloca, um lugar social que se move no interior da
enunciação, ou ainda, um lugar discursivo que se heterotopiza na tomada de posição em
um atravessamento discursivo. Assim, uma instância enunciativa sujeitudinal vai se
configurar na conversão de uma manifestação-sujeito que passa a funcionar
discursivamente no interior de um processo enunciativo. Tal funcionamento é que vai
singularizar uma dada manifestação-sujeito enquanto uma determinada instância
enunciativa sujeitudinal.
Constituindo-se no funcionamento discursivo

Para melhor compreendermos como funciona a constituição de uma instância


enunciativa sujeitudinal é relevante que explicitemos como se manifestam os processos
identitários dos sujeitos e como se constitui esse lugar sócio-histórico em que ele se
instaura. Os processos identitários dos sujeitos representam as particularidades
subjacentes à referencialidade polifônica, que funciona como vozes de uma inserção
filosófica, política, histórica, social, cultural, psicológica e lingüística na clivagem da
exterioridade realizada por uma manifestação-sujeito. Já o lugar sócio-histórico
representa as controvérsias situacionais sincrônicas e singulares, permeadas pelos
atravessamentos interdiscursivos e pelas implicaturas de caráter institucional.
Percebemos também que a influência dos processos identitários dos sujeitos no
lugar sócio-histórico de constituição de uma instância enunciativa sujeitudinal é
permeada por conflitos, via de regra, decorrentes do entrecruzamento da
referencialidade polifônica desses sujeitos com as formas de interpelação e a natureza
das formações sociais que envolvem a enunciação, que são determinadas pelo lugar
sócio-histórico. Configuram-se, assim, os ingredientes de uma exterioridade refratária
da tomada de posição que origina uma instância enunciativa sujeitudinal. Como
podemos observar, as condições de produção do processo enunciativo e a dinâmica do
atravessamento interdiscursivo são determinantes na instauração de uma instância
enunciativa sujeitudinal.
A inserção dos sujeitos no processo interpelativo, contempla o grau de
autonomia/assujeitamento em alteridade contínua para significar sentidos. Essa relação
de autonomia/assujeitamento diz respeito às operações enunciativas de funcionamento
da realização linguageira. Essas operações envolvem relações de interdependência
ideológica no tocante à legitimidade e captação de sentidos pelos sujeitos quando
interpelados.

Legitimando-se

A legitimidade é uma relação que transcende o poder de percepção discursiva do


sujeito. Ela revela o status institucional desse sujeito e representa uma instância
enunciativa de “poder-dizer”. Assim, a legitimidade não só assevera o papel social do
sujeito, como lhe atribui uma tomada de posição, na sua inscrição discursiva,
determinada por uma conjuntura de relações de poder que o interpelam.
A legitimidade também representa a evocação de vozes e saberes coletivos.
Essas vozes geralmente são mencionadas como “instância de prestígio” para uma
pontuação interpelativa. Já os saberes coletivos geralmente são citados como suporte de
uma força dialógica na relação entre sentidos no interior de uma inscrição discursiva.
Dessa forma, reconhecida na interpelação dos sujeitos na alteridade interioridade
(referencialidade polifônica) e exterioridade (inscrição ideológica e assujeitamento), a
legitimidade instaura valores de verdade e sentidos postos no amálgama do processo
enunciativo. Esses valores e esses sentidos balizam o processo de
identificação/desidentificação no interior de uma formação discursiva, por meio da
clivagem realizada pela referencialidade polifônica dos sujeitos. Entendemos, pois, essa
legitimidade como um elemento asseverador da amplitude ideológica do processo
interpelativo.

Sendo captada pela ideologia

A captação diz respeito a características concernentes aos aspectos particulares


dos sujeitos. Tais características envolvem elementos como: i) estado patêmico1; ii)
referência de vozes; iii) natureza do olhar para a exterioridade; iv) natureza da clivagem
decorrente desse olhar e v) significações-outras sugeridas por uma ordem inconsciente.
Na dimensão da interpelação, esses elementos exercem uma influência direta na tensão
constitutiva ao processo enunciativo.
Além disso, esses elementos também interferem na constituição do que estamos
chamando de intervalo histórico de dispersão dos sentidos. Esse intervalo compreende
os pressupostos enunciativos dos sujeitos e a composição de imagens a partir desses
pressupostos. Acreditamos que esses fatores possam ser os responsáveis pela construção
dos efeitos de subjetividade na constituição de uma instância enunciativa sujeitudinal.
Acreditamos, também, que esses fatores são, também, constitutivos dos
imaginários discursivos dos sujeitos envolvidos na interpelação. A justificativa para esta
1
Considerando a patemia, aqui, como marcas enunciativas da tensão sofrida pelo enunciador, a partir de
influências de um ethos social, vinculado às condições de produção do processo enunciativo.
percepção se deve ao fato de que eles comportam saberes partilhados, construídos
longitudinalmente e de forma inconsciente pelos sujeitos, a partir de uma inscrição em
uma formação social. Trata-se, pois, de representações e imagens que evidenciam
práticas sociais de formas-sujeito em suas inscrições em formações discursivas.
Como podemos perceber, essas imagens são constitutivas da referencialidade
polifônica dos sujeitos e são reveladas por meio de formas de significar na instauração
de uma manifestação-sujeito enquanto instância enunciativa sujeitudinal.A nosso ver,
essa instância ocupa um espaço discursivo paritário e mútuo, oscilando entre a instância
de realização linguageira e a instância de realização interpelativa da enunciação. Na
instância da realização linguageira, a instância enunciativa sujeitudinal ocupa
dimensões no imaginário discursivo em que se insere. Já na instância da realização
interpelativa da enunciação, essa instância enunciativa sujeitudinal se insere numa
formação discursiva, que também ocupa dimensões no seu imaginário discursivo.
Na instância de realização linguageira, a instância enunciativa sujeitudinal, além
de manifestação-sujeito instaurada, é heterogênea em sua constitutividade e perpassada
de alteridades, que lhe conferem um lugar discursivo, permitindo sua inserção em uma
relação de poder. Já na instância de realização interpelativa, a instância enunciativa
sujeitudinal, além de histórico-ideologicamente constituída, é traspassada por imagens2,
que revelam desde sua anterioridade3 discursiva, até sua contemporaneidade exógena4,
passando pelas interfaces de sua autogenia5 e endogenia6 discursivas. Assim, a instância
enunciativa sujeitudinal envolve em sua constitutividade um continuum de inscrições
discursivas em constante alteridade, além de uma memória de sentidos (conhecimentos,
eventos, experiências, modelos e representações discursivas) que a perpassa enquanto
manifestação-sujeito singularizada do e no processo interpelativo da realização
linguageira.

2
Convém não silenciar que essas imagens não se referem à constitutividade cognitiva do sujeito e, sim, à
sua constitutividade discursiva, sua capacidade enunciativa de significar com os sentidos na e pela
linguagem.
3
Memória histórico-sócio-ideológica de uma manifestação-sujeito no crivo de sua percepção enunciativa
de sentidos.
4
A sincronia enunciativa de uma manifestação- sujeito vista a partir de uma percepção de suas inscrições
discursivo-ideológicas.
5
Imagem que uma manifestação-sujeito constrói a partir de sua inscrição discursiva, revelando uma
forma-sujeito, em sua auto-referencialidade. Trata-se, pois, de uma percepção enunciativa, vinculada a
um pré-construído.
6
Constituição enunciativa inconsciente, interior à uma manifestação-sujeito.
Na instância enunciativa sujeitudinal opera-se uma alteridade referencial e
polifônica, nas vozes transversalizadas no imaginário das manifestações-sujeito. Além
disso, configura-se uma heterogeneidade, também referencial e polissêmica, no
amálgama de discursos que interpelam essas manifestações descontinuamente. Instaura-
se, pois, uma relação recíproca de subjetividade, advinda da clivagem deslocada dessas
manifestações-sujeito, balizada pela inserção delas em diferentes formações
imaginárias.
Vamos considerar essas formações imaginárias, aqui, como inscrições potenciais
de formas-sujeito quando postas em alteridade na constituição de uma instância
enunciativa sujeitudinal. Tratam-se, pois, de representações que se configuram em
função de uma circunscrição em determinados lugares discursivos distintos que se
caracterizam por perpassarem relações de influência. Essas relações de influência dizem
respeito às condições de interpelação dessas manifestações-sujeito no processo
enunciativo.

Sendo influenciada pela interpelação

No que se refere à influência, trata-se de um entrecruzamento discursivo que se


opera entre a referencialidade polifônica e um processo de atravessamento por
interdiscursividade. São formas de interpelação nos, pelos e sobre os sentidos, crivados
pelas manifestações-sujeito, utilizadas para mover e deslocar processos de
discursivização, de modo a torná-los uma discursividade-outra. Os elementos de
influência se caracterizam como direções da finalidade enunciativa, a saber: i) uma
direção factível; ii) uma direção informativa; iii) uma direção persuasiva e iv) uma
direção motivacional.
Na direção factível existe uma presunção na atributividade dos sentidos, que
pressupõe um processo de identificação das manifestações-sujeito, ainda que essa
atributividade seja permeada por controvérsias e conflitos. Essa identificação advém de
uma relação de comutatividade entre os sentidos atribuídos e se configura em uma
freqüência de significações, cuja direção sentidural se encaminha para uma determinada
inscrição ideológica predominante sobre os sentidos.
Na direção informativa, seqüências de sentidos correspondem a determinados
encaminhamentos enunciativos. Essas seqüências se fundam na vinculação de
significações acerca de uma imagem a ser construída pelas manifestações-sujeito, com o
intuito de compor uma representação dessa imagem. Trata-se, pois, de uma interposição
de imagens, perpassada de representações, que vão demarcar a natureza dos sentidos
direcionados para instituir um saber.
A direção persuasiva busca essencialmente uma relação de poder sobre os
sentidos. Ela se funda na possibilidade de evidenciar assimetrias linguageiras no
decorrer da atividade enunciativa. Essas assimetrias, por sua vez, são dotadas de uma
alteridade de tomadas de posições, que incidem sob as significações na instauração dos
sentidos.
Nessas oscilações, a persuasão se constitui à medida que transposições de
sentidos com valor sentidural pontual se configuram, apagando uma necessidade
premente de sobrepor o potencial de significação dessas transposições na construção de
sentidos. É na pontualidade do valor sentidural que se funda o efeito de relevância e de
convicção, atribuído a um sentido transposto, no processo de persuasão. Já o
apagamento da sobreposição de significações representa uma opacidade sêmica dessas
transposições na configuração de sentidos, constituindo-se, assim, uma condição
essencial para a ênfase centrada no sentido transposto.
A direção motivacional diz respeito ao nível de assujeitamento dessas
manifestações-sujeito no processo enunciativo, provocando movimentos na
configuração de significações na produção de sentidos. Esses movimentos são fundados
em deslocamentos, omissões ou valorização do amálgama de significações que fundam
a enunciatividade desses sentidos. A influência se dá na tensão inerente a esse
assujeitamento, que instaura nas manifestações-sujeito uma alteridade acional
consciente ou inconsciente – mas sobretudo voluntária – de constituir-se sujeito na
enunciação.

Sendo regulada pela enunciação

O princípio de regulação determina as condições pelas quais as manifestações-


sujeito são interpeladas e se reconhecem na constitutividade enunciativa da realização
linguageira. Trata-se de traços indicadores do nível de conflito, do encadeamento de
controvérsias discursivas e de oscilações de assimetria no processo discursivo. Esses
traços se configuram no nível de tensão entre essas manifestações-sujeito, nível este
estabelecido pela natureza da inscrição ideológica, nas relações de
continuidade/descontinuidade do processo de realização linguageira.
Existe, portanto, uma dimensão de dispersão, enquanto elemento constituinte do
processo de trans-significação de sentidos no processo enunciativo. Dentre os fatores
que se evidenciam nesse processo destacam-se: a) a natureza da tensão instaurada na
interpelação; b) a constituição dos apagamentos discursivos; c) a imprevisibilidade dos
esquecimentos enunciativos; d) a ocorrência de silêncios do e no discurso e e) a
dissuasão dos implícitos nos sentidos. Trata-se de fatores que atuam na
interdiscursividade das manifestações-sujeito e no intervalo histórico de dispersão dos
sentidos, no encaminhamento da realização linguageira.
A natureza da tensão instaurada na interpelação diz respeito à dicotomia
consciência/inconsciência da realização dos planos sentidurais no processo enunciativo.
Essa tensão situa-se no entreposto do enunciável e do realizável, em termos de ação
discursiva das manifestações-sujeito. Nessa entreposição existe uma linguagem
potencial (pressuposta e subentendida) e uma linguagem efetiva (posta através de
marcas de uma materialidade lingüística na superfície dos dizeres). Na linguagem
potencial evidenciam-se sinais de pré-construtividade e potencialidade de sentidos,
enquanto que, na linguagem efetiva, ocorre uma interposição de efeitos pontuais e
efeitos decorrentes de um devir discursivo que se instaura.
Na extensão dessa entreposição, permeiam-se: inscrições imaginárias, oscilações
patêmicas e a atividade de coerência na relação condições de produção-estado-de-ser. A
tensão revela o que na anterioridade discursiva pressupõe a fragilidade de uma
composição enunciativa, crivada pela referencialidade polifônica das manifestações-
sujeito envolvidas no processo enunciativo. Essa fragilidade, por sua vez, pode ser
traduzida no decorrer da realização linguageira, como um ponto cego7, no qual uma
memória de sentidos se dispersa e inibe uma potencial percepção sentidural.

7
Este conceito aparece inicialmente em Frege (1978) como sendo o limite de materialização dos sentidos.
Aqui, aplicamos uma heterotopia extensiva e passamos a concebê-lo como significação inferenciada,
integrante de uma polifonia/polissemia, no interior de um espaço discursivo de produção de sentidos, mas
ainda não referencializada enquanto representação enunciada, na conjuntura sentidural das manifestações-
sujeito.
A constituição dos apagamentos discursivos é pressuposta numa filtragem de
sentidos (economizados ou re-significados), no processo enunciativo. Tal omissão de
sentidos na realização linguageira toma lugar, quer por denegação, quer por um
processo de opacidade sentidural, ocasionando, assim, uma redução do dizer. Trata-se,
pois, de uma remoção voluntária/involuntária, portanto, dialética, que faz desaparecer
do amálgama de significação os sentidos não convenientes às exigências da situação
enunciativa.
Já a imprevisibilidade dos esquecimentos enunciativos diz respeito às lacunas
sentidurais do processo enunciativo em si. Essas lacunas representam a ausência de um
dizer, traspassado pela ilusão de um “dito que não foi dito”. Trata-se, assim, de sentidos
não concebidos, entretanto, constitutivos, mas não proscritos, na realização linguageira.
As ocorrências de silêncios do e no discurso se referem à essencialidade do
significar em si – o não-dito implícito dos e nos sentidos. Representam significações
veladas que se ocultam na dispersão dos sentidos, no intervalo histórico de dispersão de
sentidos na realização linguageira. Os silêncios, por serem múltiplos no processo de
significação de sentidos, não são depreendíveis na superfície enunciativa de um
discurso. Sua existência se configura em traços enunciativos que revelam escolhas
sentidurais embutindo-os na perspectiva do dizer.
Os silêncios não são interpretáveis, mas reconhecíveis como elementos
constitutivos dos sentidos. Eles atravessam os sentidos porque significam em si, daí sua
constitutividade se fundar, também, na relação entre as manifestações-sujeito. Dessa
maneira, é possível inferir que os silêncios se situam na anterioridade da memória de
sentidos e na descontinuidade de sentidos resgatados pela memória discursiva.
A dissuasão dos implícitos nos sentidos se refere ao “não-dito posto que remete
ao dito”. Essas implicitudes comportam subentendidos sentidurais e seus conseqüentes
pressupostos não-ditos. A dissuasão se realiza numa dinâmica de transmutabilidade de
sentidos no encadeamento da realização linguageira.
Como pudemos observar, a instância enunciativa sujeitudinal contempla um
processo de subjetividade, que se desencadeia no interior da enunciação, fundado a
partir de inscrições ideológicas que se confrontam e se imbricam com formações
imaginárias, subjacentes à constituição interpelativa de uma manifestação-sujeito. Nesse
processo de subjetividade percebemos um percurso dialético e dialógico. Seu
funcionamento enunciativo constrói sua trajetória a partir de uma tomada de posição nos
processos discursivos.

Discursivizando no interior de um funcionamento enunciativo

Na sua concepção enquanto manifestação-sujeito funcionando no interior de um


discurso, a instância enunciativa sujeitudinal estabelece um continuum no
entrecruzamento entre os processos de interpelação e de assujeitamento. Nesse
continuum se instauram: i) uma identidade para as manifestações-sujeito; ii) a
explicitação de sua referencialidade polifônica; e, conseqüentemente, iii) a alteridade de
um posto, de um atribuível e de um instituível, no que tange à natureza dos sentidos
produzidos na enunciação. Trata-se de uma percepção e interpretação da realização
desses sentidos num espaço sócio-historicamente constituído em que se operam
processos de transformação no âmbito de uma subjetividade identitária, de uma
apropriação particularizada, de uma interpelação causativa e de uma distinção
representativa.
A subjetividade identitária ocorre numa relação diádica percepção-
transformação, indicativa de uma realização dialética da/na produção de sentidos. Essa
relação oscila entre um existente-aceito-consagrado e um idealizado-pressuposto-
atribuído. Para melhor compreendermos o caráter de realização dialética, é relevante
percebermos que se trata de uma apropriação particularizada que perpassa uma relação
todo-especificidades. Essa relação todo-especificidades evidencia uma reciprocidade e
uma alternância de estados enunciativos como um concebido-próprio-estabelecido, ou
ainda um particularizado-pontual-transposto.
Dessa forma, percebemos como uma instância enunciativa sujeitudinal se
instaura para corresponder à uma inserção de manifestações-sujeito na singularidade de
uma realização linguageira. Tal singularidade está inscrita em uma dinâmica de atitudes
determinantes e determinadas, que oscilam desde um prescrito-inscrito-transcrito até
um imprevisto-provável-construído, passando por um assujeitado-interpelado-
deslocado. Essas oscilações constituem uma alteridade que movimenta uma instância
enunciativa sujeitudinal no crivo de suas tomadas de posição, geradas a partir de
atravessamentos interdiscursivos e de ressonâncias de identificação/desidentificação
com suas inscrições na heterogeneidade de formações discursivas que se heterotopizam
na enunciação.
A interpelação causativa está relacionada a uma motivação intrínseca, extrínseca
ou compulsória, em que as manifestações-sujeito se inscrevem/refutam a partir de seu
envolvimento na produção de sentidos. Esse envolvimento emerge num intervalo
enunciativo que compreende um desejo-reconhecimento-ação e uma realização-
implicação-efeito. Esse intervalo enunciativo revela uma distinção representativa que se
situa entre uma fundação-concepção-inserção de uma inscrição em uma formação
imaginária e uma dimensão-operação-transformação de sentidos na instauração da
instância enunciativa sujeitudinal no interior da realização linguageira.
Estamos, portanto, diante de um processo de transformação que atua na
singularidade do processo enunciativo. Esse processo constitui condições sentidurais,
propriedades qualitativas e sinais distintivos. Essa singularidade, por sua vez, se
configura por um contínuo movimento de sentidos no encadeamento da enunciação.
Essa continuidade atribui ao processo enunciativo um caráter de unicidade.
Esse processo de transformação é permeado por processos de transição em que
figuram os pré-construídos acerca da prática discursiva em construção. Assim, no
interior de um intervalo histórico de dispersão dos sentidos considera-se: i) a natureza
da interpelação; ii) dispositivos de influência; iii) princípios de regulação e iv) uma
dimensão para a dispersão. A seguir descreveremos as implicações concernentes a cada
um desses elementos na instauração de uma instância enunciativa sujeitudinal.
A natureza da interpelação pressupõe inscrições de natureza ideológica que
traspassam as manifestações-sujeito. Trata-se de uma movência em alteridade
descontínua e reciprocidade enunciativa, em que se instauram uma interconstituição e
uma co-existência de manifestações-sujeito. Essa interconstituição e essa co-existência
são perpassadas e entrecruzadas, num amálgama de representações imagéticas dessas
manifestações-sujeito, oriundas no encadeamento de um processo interpelativo.
Os dispositivos de influência entrecruzam a confluência dessas manifestações-
sujeito em sua referencialidade polifônica e em sua relação de interpelação, a partir do
atravessamento de um processo de interdiscursividade. Trata-se de formas de
deslocamento de discursos no interior de formações discursivas, produzidas no, pelo e
sobre o interdiscurso. A partir desses deslocamentos as manifestações-sujeito significam
para constituir-se e inscreverem-se nos discursos.

Considerações Finais

Esta reflexão foi concebida para problematizar a noção de instância enunciativa


sujeitudinal enquanto uma extensão da noção de sujeito na Análise do Discurso
Francesa, preconizada por Michel Pêcheux. Trata-se, pois, de uma heterotopia teórica,
uma extensão epistemológica que problematiza a rede conceitual da área, construindo
singularidades teóricas para dar suporte a questões investigativas acerca de práticas
discursivas do cotidiano. O intuito principal foi tomar a obra de Pêcheux como memória
discursiva de uma construção teórica no interior da Análise do Discurso.
Nesse sentido procedemos a um deslocamento teórico que teve por meta
construir uma re-significação da noção de sujeito.Um dos axiomas que balizou esta
extensão epistemológica diz respeito à força do interdiscurso nas formações discursivas,
o que provoca múltiplos movimentos na produção de sentidos. Existe, portanto, uma
força interpelativa, uma influência ideológica, que faz o interdiscurso operar no interior
das formações discursivas, provocando uma diversidade de movimentos.
Tais movimentos, oriundos de um processo de interpelação e de assujeitamento,
balizados pelo crivo do inconsciente, nos convida á construção de uma heterotopia da e
na noção de sujeito no interior da Análise do Discurso. Retomando a idéia de que um
sujeito empírico deixa a condição de indivíduo ao circunscrever-se na enunciação e que
dessa circunscrição emerge uma forma-sujeito que o inscreverá numa formação
discursiva é que observamos um primeiro deslocamento da noção de sujeito rumo a uma
percepção da instância enunciativa sujeitudinal. Um segundo deslocamento ocorre
quando essa forma-sujeito, inscrita em uma formação discursiva, é interpelada por sua
inserção em uma dada formação ideológica, o que torna essa forma-sujeito em um
sujeito de um discurso.
Tornar-se sujeito de um discurso implica numa tomada de posição no interior da
formação discursiva. Isso significa que esse sujeito do discurso, uma vez constituído
ideologicamente, ocupará um lugar distinto no processo enunciativo. Esse lugar terá
uma natureza social na medida em que esse sujeito do discurso estará constituído
ideologicamente por força de inscrições em formações imaginárias, determinantes de
relações de outricidade.
Essas relações de outricidade o constituirão em uma formação social, o que
demarcará seu grau de assujeitamento na enunciação. Demarcado em uma tomada de
posição em relação ao outro, esse sujeito do discurso estará ocupando um lugar
discursivo, uma vez que sua tomada de posição também será uma decorrência de um
processo de interpelação desse e nesse lugar que ocupa. Tal interpelação advém de
atravessamentos interdiscursivos, provocando deslocamentos desse sujeito do discurso.
O comportamento heterotópico desse sujeito do discurso estará em um contínuo
processo de alteridade enunciativa, ora identificando-se em sua inscrição enquanto
forma-sujeito na formação discursiva, ora desidentificando-se pela própria interpelação
sofrida pelos atravessamentos interdiscursivos. Não podemos deixar de dizer que esses
atravessamentos se constituem porque essa interpelação, além da historicidade
subjacente à forma-sujeito, também se funda por meio de uma clivagem da memória
discursiva vinculada a esse sujeito do discurso. Assim, na medida em que esse sujeito
do discurso se constitui enquanto lugar discursivo, esse crivo da memória discursiva dá
lugar uma memória de sentidos, na unicidade da enunciação.
Dessa forma, a instância enunciativa sujeitudinal se configura nessa
simultaneidade de lugares, em contínua alteridade e em descontínua interpelação,
enquanto movimentações desse sujeito do discurso no interior de uma formação
discursiva. Uma oscilação decorrente da própria dinâmica enunciativa de um
funcionamento discursivo que colocam a forma-sujeito, o lugar social e o lugar
discursivo numa condição dialética dessa alteridade do sujeito do discurso. Essa
conjuntura de deslocamentos nessa diversidade de manifestações-sujeito e lugares
ocupados por elas no interior do acontecimento enunciativo é que nos faz denominar
esse sujeito do discurso de uma instância enunciativa sujeitudinal.

Referências Bibliográficas

AMORIM,M. “Temática da Alteridade”. In: O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas


ciências humanas. São Paulo:Musa. 2004. p.23-91.
AUROUX,S. A Filosofia da Linguagem. trad. José Horta Nunes. Campinas:Ed.
UNICAMP. 1996. 500p.
AUSTIN,J.L. Sentido e Percepção. trad. Armando Manoel Mora de Oliveira. São
Paulo:Martins Fontes. 1993. 193p.
AUTHIER-REVUZ, J. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo
do sentido. Porto Alegre:EDPUCRS. 2004. 257p.
COURTINE, J.J. Metamorfoses do Discurso Político: derivas da fala pública. São
Carlos:Claraluz. 2006. 157p.
GADET,F. & HAK,T. (org.) Por uma Análise Automática do Discurso: uma
introdução à obra de Michel Pêcheux. trad. Bethania S. Mariane et al. Campinas:Ed.
da UNICAMP. 1990. 319p.
GADET,F. & PÊCHEUX, M. A língua inatingível: o discurso na história da
lingüística. Campinas:Pontes. 2004. 223p.
GELLNER,E. Legitimation of Belief. London: Cambridge University Press. 1974.
HENRY,P. A Ferramenta Imperfeita. trad. Maria Fausta Pereira de Castro.
Campinas:Ed. da UNICAMP. 1992. 241p.
INDURSKY,F. & LEANDRO-FERREIRA, M.C. (org.) Michel Pêcheux e a análise
do discurso: uma relação de nunca acabar. São Carlos:Claraluz. 2005. 301p.
MALDIDIER, D. A inquietação do discurso: (re) ler Michel Pêcheux hoje. Trad. Eni
P. Orlandi. Campinas:Pontes. 2003. 110p.
PÊCHEUX,M. Semântica e Discurso. trad. Eni Pulcinelli Orlandi et al. 2 ed.
Campinas:Ed. da UNICAMP 1995. 317p.
___________ O Discurso: Estrutura ou Acontecimento. trad. Eni Pulcinelli Orlandi.
Campinas:Pontes. 1990. 57p.
___________ Analyse automatique du discours. Paris:Dunod. 1969.
RICOEUR,P. Interpretação e Ideologias. trad. Hilton Japiassu. 4 ed. Rio de Janeiro:F.
Alves. 1990. 172p.
SANTOS,J.B.C. “Entremeios da Análise do Discurso com a Lingüística Aplicada”. In:
FERNANDES,C.A. & SANTOS,J.B.C. Percursos de Análise do Discurso no Brasil.
São Carlos:Claraluz. 2007. p. 187-206.
SEARLE,J.R. Expressão e Significado. trad. Ana Cecília G. A. de Camargo e Ana
Luiza Marcondes Garcia. São Paulo:Martins Fontes. 1995. 294p.

Você também pode gostar