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CONTRIBUIÇÕES DO CONCEITO BAKHTINIANO DE GÊNERO PARA


O ENSINO DE CIÊNCIAS HUMANAS NA ESCOLA

Aline de Jesus Maffi – UNESP/Araraquara


Fabrício Silva – UNESP/Bauru
Silvia Aparecida Canonico
Macioniro Celeste Filho – UNESP/Bauru

E-mail para contato: aline.maffi@unesp.br


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E-mail: marciocelestefilho@gmail.com

RESUMO

O presente artigo aborda algumas discussões em torno do dialético conceito de


gênero em Bakhtin, visando refletir sobre as contribuições deste conceito para as
práticas de ensino e aprendizagem de Ciências Humanas na instituição escolar.
Neste sentido, tem por objetivo problematizar o papel da linguagem na construção
dos sujeitos e suas contribuições para a ação pedagógica na área em questão. Ao
final, espera-se que esta análise possa contribuir para a reflexão sobre a práxis
docente e sua ação por intermédio dos gêneros do discurso e da linguagem,
entendida como uma construção social.

Palavras-chave: Ensino e aprendizagem. Gênero. Bakhtin.

Considerações iniciais

O desenvolvimento desse artigo partiu de uma análise teórica da definição


de gênero do discurso em Bakhtin, buscando compreender as contribuições desse
conceito para o ensino e aprendizagem de Ciências Humanas na escola. Dessa
forma, o entendimento da problemática que circunda o conceito de gênero é
imprescindível às disciplinas de Ciências Humanas, assim como o conhecimento
sobre dialogia, alteridade e sua relação com a construção de sentidos pelo sujeito.
As décadas iniciais do século XX, ressalta Puzzo (2017), configuram-se por
marcantes transformações de pressupostos científicos a partir do diálogo com as
teorias científicas fundamentadas nas décadas finais do século XIX. Nesse contexto,
a linguística de Ferdinand de Saussure (1857-1913) se caracteriza como integrante
do processo descrito, aplicando os pressupostos de observação científica à língua,
tendo como prioridade a objetividade.
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Em diálogo crítico com essa perspectiva, intelectuais da filosofia da


linguagem fomentaram o debate ao inferir que a perspectiva de Ferdinand de
Saussure evidenciava o foco nos objetos de investigação e um distanciamento dos
seres humanos no processo, por meio de leis que buscavam uma pontualidade.
Nesse contexto, Bakhtin e o Círculo iniciam uma reflexão sobre a linguagem e os
processos de interação entre os sujeitos, visando resgatar a vida que foi distanciada
pelo objetivismo do experimentalismo cientificista. (PUZZO, 2017, p.131).

Assim, Bakhtin e os integrantes do Círculo discutem os limites que as


teorias científicas da época impunham para a vida vivida, de modo a
esquematizar os dados, analisando os atos humanos por uma
perspectiva científica e abstrata, entre elas a linguística de Saussure,
a psicologia determinista, o marxismo estrutural e mesmo o
reducionismo da estilística por isolar o sujeito enunciador de todo o
contexto social. (PUZZO, 2017, p.133).

Bakhtin (2003) enfatizava que as interações sociais são construídas


historicamente e desenvolvidas em constante dialogismo e dialética pelos sujeitos.
Assim, a reflexão sobre as atividades humanas está interligada ao aparato
discursivo sobre o qual elas incidem. Segundo o autor, a comunicação ocorre nas
esferas da atividade humana através dos gêneros do discurso, cuja construção se
dá, cotidianamente, a partir de enunciados que apresentam formas relativamente
estáveis.
À vista desses pressupostos, explicitados adiante, tem-se por objetivo tecer
algumas reflexões sobre a esfera escolar que, tal como outros campos, é espaço
profícuo de interações sociais específicas, desenvolvidas por meio dos gêneros
discursivos. A partir disso, discorreremos sobre o conceito de gêneros do discurso e
outros pressupostos teóricos, intrinsecamente relacionados, como dialogia,
alteridade e a constituição dos sujeitos.

Uma breve reflexão sobre Dialogia e Alteridade

Como ambiente efervescente de relações intermediadas pela linguagem, é


relevante compreender que o processo de ensino e aprendizagem de Ciências
Humanas, desenvolvido na esfera escolar, é consolidado por enunciados que ecoam
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vozes sociais, que manifestam posicionamentos, valores e ideologias resultantes


das relações dialógicas.
Nessa perspectiva, retomamos a concepção de Marx (1999), para o qual os
sujeitos, ao agir transformando a natureza e produzindo a sociedade, transformam a
si mesmos. Tal como o intelectual alemão, Bakhtin (1997) compreende a linguagem
como uma atividade discursiva, cujo sistema de signos ganha sentido nas inter-
relações entre seus/suas interlocutores/interlocutoras, ou seja, é mais que um
sistema abstrato de formas. Ao surgir por meio das necessidades sócio-históricas, a
linguagem se configura como instrumento de atuação, no meio social ao qual ela
está inserida, transformando-se, ao mesmo passo em que os seus produtores se
modificam.
No tocante à relação entre sujeito e objeto, nas Ciências Humanas,
Albuquerque e Souza (2012) enfatizam que a especificidade epistemológica dessa
área em Bakhtin é caracterizada pela relação dialógica e de alteridade, estabelecida
entre sujeito e objeto. O sujeito, entendido como lócus de construção de sentido,
vivencia a condição de incompletude e provisoriedade; ao mesmo tempo que ocupa
a condição de sujeito, também ocupa a condição de objeto, pois ele se constrói,
constantemente, em contato com outros sujeitos.

[...] quando um determinado sujeito se abre para o conhecimento de


outro indivíduo, deve conservar certa distância, pois, abrir-se para o
outro é, neste caso, permanecer também voltado para si. Esta
duplicidade – ser sujeito e, ao mesmo tempo, objeto de
conhecimento – exige que as ciências humanas se definam a partir
de uma problemática que lhes seja própria e de um campo específico
de exploração (ALBUQUERQUE, SOUZA, 2012, p.110).

Para Bakhtin, o objeto de conhecimento das Ciências Humanas é dialógico,


visto que ocupa a condição de sujeito e também de objeto. Nesse sentido, é na
relação entre o eu e o outro, em uma relação de alteridade, que os sujeitos
constroem saberes, posições, valores e a própria identidade.
A alteridade da palavra, lançada nas Ciências Humanas, não se constitui
unicamente através de sentenças linguísticas tradicionais ou por classes gramaticais
abstratas. Tampouco atua como recurso instrumental subjetivo, mas como elemento
concreto, fruto de práticas discursivas, estabelecidas entre locutor/a e interlocutor/a.
Nessa relação dialógica e social, ambos/ambas constroem suas próprias
consciências (SILVEIRA, 1981).
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Diante disso, a palavra é a condição inerente do sujeito de conhecimento,


que através dela se revela. A visão que o/a outro/a tem de seu/sua interlocutor/a é
condição para a construção da palavra por aquele/a que a enuncia em uma
reciprocidade bilateral. Volóchinov sustenta que “a palavra é uma ponte que liga o
eu ao outro. Ela apoia uma das extremidades em mim e a outra no interlocutor. A
palavra é território comum entre o falante e o interlocutor (VOLÓCHINOV, 2017, p.
205).”
Tem-se, então, que a palavra é sempre dirigida a um/a interlocutor/a, real ou
imaginário/a, em uma constante relação dialógica. Volóchinov (2017) propõe que
esse/a interlocutor/a pressuposto/a, inserido/a em um grupo social, participa de um
arranjo nesse grupo, e está em uma determinada relação com o sujeito que enuncia,
o que influencia na entonação valorativa e semiótica da palavra.
Conclui-se, por conseguinte, que a palavra é um signo, cujas semioses são
resultantes da consciência individual e da ideologia de diversas esferas de atividade
sociais, por meio das quais circulam os enunciados. Assim, mesmo que ela
represente a expressão de uma necessidade fisiológica, como a enunciação da
fome, por exemplo, sua estrutura, tonalidade e sentido são modulados de acordo
com os falantes mais próximos ou mais distantes, ou pela situação vivenciada.
É concebível inferir, dessa forma, que a alteridade é o elemento que interliga
os conceitos explicitados e é também o entremeio dos enunciados. Nesse sentido, é
importante pontuar que, assim como Volóchinov concebe a palavra como ponte
entre o eu e o outro, Bakhtin considera que todo enunciado é “um elo na cadeia da
comunicação verbal e não pode ser separado dos elos anteriores que o
determinam...” (BAKHTIN, 1997, p. 321).
Pela alternância que ocorre na comunicação social, cada enunciado se
conecta a enunciados já produzidos anteriormente, ou ainda a produzir, formando
uma rede de enunciados ligados entre si, em uma relação dialógica e dinâmica de
alteridade discursiva. Dessa lógica, destaca-se que há uma relação de circularidade
na comunicação, isto é, entre locutor/a e interlocutor/a há um jogo de trocas mútuas,
estabelecidas no processo relacional.
Como todo enunciado é orientado para alguém, à espera de uma resposta, a
mediação entre os/as interlocutores/interlocutoras, de acordo com a ótica
bakhtiniana, advém da reciprocidade, estabelecida entre responsividade e
responsabilidade, por meio da relação dialógica e de alteridade, inseparáveis do
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diálogo, segundo Fernandes, Carvalho e Campos (2012). Nessa perspectiva, a


mediação acontece por meio das tensões entre os enunciados, e tais tensões
constituem laços que, como já supracitado, são caracterizados como pontes entre
os/as interlocutores/interlocutoras.
O princípio dialógico da linguagem, que permeia as obras de Bakhtin e o
Círculo, é inerente à constituição dos enunciados, visto que estes se constroem
dialogicamente. O sujeito para quem um enunciado é dirigido, não é um ouvinte
passivo, mas um interlocutor/a ativo/a que em atitude responsiva, interpreta e se
posiciona dialogicamente e dialeticamente, concordando, refutando, completando e
considerando o que lhe foi dirigido.
Há um jogo dinâmico na relação dialógica, pois o sujeito com quem me
comunico tem papel muito importante e fundamental na constituição dos
enunciados. Mesmo em um texto, considerado do tipo monológico (como textos
científicos, ou filosóficos, que não se dirigem a um/uma leitor/a específico/a), os
enunciados caracterizam-se como resposta a outros saberes já constituídos
socialmente.
A alteridade, portanto, está presente por se direcionar como resposta a
outras interpretações, outros discursos e já-ditos a respeito do objeto/sujeito. Essa
lógica encontra reforço na interpretação de Puzzo, ao discorrer que

Como para Bakhtin todo enunciado é um evento, cujo autor não pode
furtar-se à responsabilidade desse ato (2010), o compromisso
encetado com a sua palavra, responsiva e responsável, lança-o
inexoravelmente para o contexto imediato de produção e para a
cultura que perpassam pela palavra. Sendo assim, não é possível
ignorar na produção enunciativa essa peculiaridade. (PUZZO, 2017,
p.145)

Conhecer o/a interlocutor/a a quem é dirigido o enunciado, ou mesmo


presumi-lo/presumi-la, influencia a forma e o estilo desse enunciado. Além disso,
estes se organizam em gêneros discursivos, de acordo com as esferas de uso da
linguagem. Bakhtin atesta que “cada um dos gêneros do discurso, em cada uma das
áreas da comunicação verbal, tem sua concepção padrão do destinatário que o
determina como gênero.” (BAKHTIN, 1997, p. 321). Deste modo, na utilização da
língua, os sujeitos elaboram seus discursos em forma de gêneros, ou seja, formas
típicas de enunciados adequados às condições específicas das esferas de
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comunicação humana. Pela atividade discursivas, nas relações de alteridade, os


sujeitos constroem sentidos e se constituem pela linguagem.
Considerando o exposto, no tópico subsequente, traremos algumas
elucidações sobre o conceito de gênero do discurso, bem como sobre os elementos
que o constituem, como conteúdo temático, estilo e construção composicional,
procurando relacionar as suas contribuições para o ensino e aprendizagem de
Ciências Humanas.

O gênero em Bakhtin

Primeiramente, deve-se considerar que a definição de gênero discursivo,


nem sempre pode ser vista como uma tarefa simples, porque há muitos aspectos
envolvidos em sua conceituação. Nessa perspectiva, Bronckart (2003) atribui que a
historicidade e a relativa estabilidade dos gêneros, são propriedades que implicam
na dificuldade de explicá-lo, inferindo que suas definições são parciais e apresentam
múltiplas divergências entre si. Para o autor, o entendimento do conceito de gênero
não deve levar em conta apenas os fatores linguísticos, ou seja, restringir-se ao
estruturalismo, necessitando considerar as transformações implicadas nessa
conceituação durante as interações sociais.
Ao se tratar sobre gêneros do discurso, deve-se compreender sua estreita
relação com o uso da língua em um determinado campo da atuação humana e, no
que tange à sua composição, é necessário que se atente para a forma como as
informações estão distribuídas (KOCH; ELIAS, 2006). Vale dizer que, no diálogo
cotidiano, por exemplo, os enunciados produzidos, tanto orais como escritos,
refletem as condições específicas e finalidades das diversas esferas de atividade
(BAKHTIN, 1997) e, consequentemente, inúmeros são os repertórios de gêneros
criados.
Assim, os gêneros, que incluem todo tipo de diálogo cotidiano e enunciados
institucionalizados, são instrumentalizados como ferramentas através das quais os
conteúdos historicamente acumulados e transformados são ensinados e
apreendidos. Nessa perspectiva, é impossível dissociar a condição dialógica dos
gêneros à utilização da linguagem no processo de interação social (FIORIN, 2011).
Sheila Grillo (2008), em um estudo sobre os gêneros discursivos da teoria
bakhtiniana, destaca seu aspecto dialógico, que se concretiza pelos enunciados
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produzidos nas situações de interação. A condição dialógica se reflete na interação


discursiva, já que todo enunciado ao mesmo tempo que responde a enunciados
anteriores, suscita uma resposta.
Essa alternância dialógica, comum a toda produção de linguagem, ocorre na
comunicação oral e também na comunicação escrita, embora, nessa última
modalidade, a interação não seja imediata. Um exemplo dessa condição pode ser
encontrado em Bakhtin, ao discorrer que até mesmo um material escrito, como um
livro, por exemplo, é também um ato de fala, como transcreve-se a seguir

Livro, isto é, o ato de fala impresso, constitui igualmente um elemento da


comunicação verbal. Ele é objeto de discussões ativas sob a forma de
diálogo e, além disso, é feito para ser apreendido de maneira ativa, para ser
estudado a fundo, comentado e criticado no quadro do discurso interior, sem
contar as reações impressas, institucionalizadas, que se encontram nas
diferentes esferas da comunicação verbal (críticas, resenhas, que exercem
influência sobre os trabalhos posteriores etc.). (BAKHTIN, 2006, p. 126).

Ademais, tendo em vista a multiplicidade de atividades da vida humana e a


diversidade das modalidades do diálogo cotidiano, a heterogeneidade de gêneros
tende a ser inesgotável, assim como as próprias relações humanas. Tal concepção,
portanto, aplica-se das produções dialógicas mais práticas, espontâneas ou mais
elaboradas da comunicação oral, às produções específicas da modalidade escrita
(BAKHTIN, 2016).
Contudo, quando se adentra nos estudos dos gêneros, não pode o/a
pesquisador/a se furtar de refletir sobre um aspecto relevante, e por vezes
controverso: a distinção dos gêneros em primários e secundários. Cabe ressalvar
que no contexto em que Bakhtin escreveu, dentro da conjuntura de pensamento em
que estava inserido, foi importante ser construída tal classificação, sem que
houvesse o objetivo de priorizar um em detrimento de outro.
Essa diferenciação foi estabelecida para especificar que gêneros primários
são construídos a partir das relações discursivas da vida cotidiana e que os gêneros
secundários necessitam de uma elaboração estética mais apropriada, associada a
uma esfera de comunicação formalizada por modelos institucionais particulares.
Destaca-se, portanto, que os gêneros primários são utilizados na esfera
imediata de atuação e surgiram das urgências comunicativas diárias, vivenciadas
pelos sujeitos na realidade empírica. Já os secundários, são advindos de
necessidades discursivas de campos da atividade humana que exigem uma
elaboração específica, incorporando gêneros primários, cujo vínculo com a realidade
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concreta é absorvido durante o processo de congregação. Os gêneros secundários


apresentam propriedades relativamente desenvolvidas e organizadas, e são
predominantemente escritos, artísticos, científicos e sócio-políticos (BAKHTIN, 2003,
p. 263).
Grillo (2008) descreve que a distinção entre gêneros primários e secundários
foi fundamentada por Bakhtin/Volóchinov, no marxismo da época em que o conceito
foi construído. Nos anos 20, na Rússia, circulava a teoria de Plekhânov “sobre a
psicologia do corpo social enquanto elo intermediário entre a infraestrutura e a
superestrutura” (GRILLO, 2008). Por esse pressuposto entende-se que a concepção
de mundo da psicologia social reflete a luta de diferentes grupos sociais e a
flutuação pela ideologia por um nível ou outro da conjuntura social.

Plekhânov (1978[1908]), ao criticar a leitura “unilateral” da ação


histórica da economia, argumenta que “numa sociedade primitiva a
atividade produtiva exerce uma ação direta sobre a concepção do
mundo e sobre o gosto estético”, porém “numa sociedade dividida
em classes a influência direta da atividade produtiva sobre a
ideologia se torna bem menos aparente. Neste caso, o fator
econômico cede lugar ao fator psicológico” (p.53).

De acordo com Grillo (2008), quando Volóchinov produziu o texto "’A


construção do enunciado’ (1983[1930])”, sistematizou que as diferentes modalidades
de comunicação social refletem, respectivamente, a esfera de produção, a ideologia
do cotidiano e as ideologias de esferas institucionais. Consoante esse raciocínio, as
formas de comunicação influenciam a organização dos enunciados e de seus
gêneros, que se constituem por uma parte verbal (linguística) e outra não-verbal (as
diferentes esferas de comunicação).
A psicologia social se revela nas formas concretas de interação social pela
linguagem, ou seja, pelos gêneros do discurso (GRILLO, 2008). Vale ressaltar que
os gêneros primários e secundários recebem e incorporam as influências das
distintas esferas ideológicas. Ocorre uma simbiose, isto é, uma circularidade, de
pressupostos ideológicos entre os dois tipos de gêneros, pois, as esferas ideológicas
como arte, ciência, religião etc., incorporam as relações do cotidiano, que por sua
vez estão em relação com as perspectivas ideológicas das esferas
institucionalizadas (GRILLO, 2008)
É importante destacar, como descreve Fiorin (2011), que há uma
dinamicidade na construção dos gêneros, pois, como meios de apreender a
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realidade, podem ocasionar a formação de novos gêneros conforme se alteram e


atualizam os modos de ver e de conceituar essa realidade. Além disso, os gêneros
podem hibridizar-se, formando novos formatos de enunciados e textos. E, como já
mencionado, os gêneros secundários incorporam os gêneros primários do cotidiano,
mas estes podem ser influenciados pelos secundários, como ocorre quando surge
uma discussão filosófica sobre algum fato da vida em uma conversa entre amigos.
Apreende-se, então, que os enunciados formam textos que refletem as
transformações conceituais, ideológicas e culturais dos processos interativos. Como
afirma Manzoni (2007), retomando Bronckart, “a observação da interioridade do
texto só tem sentido se articulada a uma exterioridade sócio-histórica” (MANZONI,
2007, p. 82). O texto, então, deve ser pensado em sua relação direta com o contexto
de construção social e cultural ao qual ele está inserido.
De modo semelhante, salienta Marcuschi (2005),

Já se tornou trivial a ideia de que os gêneros textuais são fenômenos


históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social. Fruto de
trabalho coletivo, os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar
as atividades comunicativas do dia-a-dia. São entidades sócio-
discursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer
situação comunicativa. No entanto, mesmo apresentando alto poder
preditivo e interpretativo das ações humanas em qualquer contexto
discursivo, os gêneros não são instrumentos estanques e
enrijecedores da ação criativa (com MARCUSCHI, 2005, p. 19).

Por intermédio da oralidade e da escrita, além de várias outras formas de


enunciados, a comunicação se estabelece, emissor e receptor dialogam dentro dos
mais diversos campos de atividade humana, e os enunciados refletem as temáticas
abordadas no processo comunicacional, bem como o estilo da linguagem utilizada.
Isso ocorre não apenas pelos conteúdos gramaticais e fraseológicos, mas
principalmente devido à construção composicional. Através dela os enunciados,
seus temas e estilos se interligam dando sentido à comunicação.
Desta forma, os gêneros são entendidos quando ligados ao todo do
enunciado, por meio da construção composicional, do conteúdo temático e do estilo.
Esses três elementos compõem as “regras específicas de cada gênero” (MANZONI,
2007, p. 83). Assim, segundo Bakhtin (2003, p. 262):

O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos)


concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo
da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas
e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático)
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e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais,


fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua
construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo
temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente
ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela
especificidade de um determinado campo de comunicação. Evidentemente,
cada enunciado particular e individual, mas cada campo de utilização da
língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais
denominamos gêneros do discurso.

Tem-se, então, que os gêneros são formas relativamente estáveis de


enunciado e possuem uma estrutura com três elementos básicos (conteúdo
temático, o estilo, a construção composicional) que se constroem e se reelaboram a
cada situação específica. A partir disso, é pertinente que discorramos acerca dos
componentes destacados, todavia é importante ressaltar que eles não são fixos e
estão sujeitos a constantes transformações.
O tema, segundo Fiorin (2011), pode ser definido como um domínio de
sentido, em que se configura um assunto mais geral relacionado ao gênero. Por
exemplo, as cartas de amor têm como tema mais geral, as relações amorosas, e
cada carta, seu tema mais específico, direcionado a cada situação particular.
Segundo Manzoni (2007), há uma relação entre o tema, domínio de sentido
mais geral, relacionado ao gênero (tipologia textual), e os temas mais específicos,
que vão se construindo pela forma como são encadeados no texto. Isso quer dizer
que um gênero específico, seja ele qual for, antecipa um conjunto de expectativas
temáticas, que mesmo não sendo estanques, relacionam-se aos direcionamentos
temáticos frequentemente impressos nesses gêneros, que se vinculam e atualizam
conforme a situação de comunicação.
Já o estilo, segundo a definição de Bakhtin (2003, p. 261) aponta que ele se
caracteriza como a “seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da
língua”, integrando, juntamente com o conteúdo temático e a construção
composicional, o todo do enunciado. O enunciado, por sua vez, é determinado pelas
particularidades do campo de conhecimento sobre o qual foi produzido. Nesse
complexo mecanismo entram em ação a voz do autor que enuncia e se posiciona,
as vozes sociais inscritas nos enunciados e a voz dos personagens, todas
direcionadas a um receptor que as interpreta.
Em referência a Fiorin (2004), Manzoni destaca que o estilo é definido pelas
“marcas linguísticas”, construídas pela ação do enunciador na elaboração do
discurso, ou seja, pelas particularidades dos sujeitos que operacionalizam a língua,
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em diálogo com a sociedade. Isto é, por meio das interações sociais, nelas os
sujeitos compartilham os significados linguísticos implícitos no discurso.

Em outros termos, “o estilo e o conjunto de marcas linguísticas


exigidas por um gênero” (FIORIN, 2004d, p. 02). Na verdade, essas
marcas constroem-se pela maneira de “operar do enunciador no
momento da produção do discurso”, isto e, pelas escolhas feitas no
ato de discursivizar. Assim, a ênfase e dada na construção de um
estilo “individual” e a recorrência desse estilo na produção discursiva
de outros sujeitos, que partilham da mesma situação discursiva,
constitui uma totalidade. (MANZONI,2007, p.92).

Deste modo, o estilo se caracteriza por uma forma de dizer, compartilhada


por um grupo, e a ele integram-se ideologias vinculadas ao seu contexto de
produção. Essas ideologias remetem às particularidades dos sujeitos que estão
arraigadas na linguagem. A singularidade do contexto, assim como, a subjetividade
identitária, imprime marcas recorrentes no discurso.
A construção composicional, que já revela um tema e um estilo dela
dependentes, está vinculada às tipologias textuais e ao modo como elas estão
organizadas. Assim, segundo Fiorin, a construção composicional se caracteriza
como uma forma de estruturar o texto, isto é, um modo de “ancorá-la num tempo,
num espaço e numa relação de interlocução” (FIORIN, 2011). Essas referências
dêiticas, portanto, situam o conteúdo em um determinado momento, lugar, e em
relação aos/às interlocutores/interlocutores, apontando para uma esfera de atuação
social.
Por oportuno, vale finalizar, pontuando que os gêneros estão vinculados às
atividades humanas e não é possível distanciá-los da realidade concreta. Como são
constituídos pela linguagem, utilizada em processos dinâmicos de comunicação,
esses elementos constitutivos não devem ser considerados como formas fixas, pois
estão sujeitos a processos graduais de transformação.
Ressalta-se ainda que discussões contemporâneas, como a protagonizada
por Faraco (2009), por exemplo, asseveram que deve haver especial atenção ao se
estruturar e normatizar os gêneros para fins pedagógicos, porque eles se relacionam
às situações discursivas da vida, inúmeras e heterogêneas. Nesse sentido,
salientamos que pensar o gênero de modo fechado, apenas a partir de estruturas,
acaba por tirá-lo da dinâmica das relações sociais.
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Resultados e discussões
A partir da perspectiva apresentada por Bakhtin, é possível inferir que, no
ensino e aprendizagem, as relações estabelecidas entre docentes e estudantes são
perpassadas pela mediação de elementos linguísticos. Nessas relações, as tensões
fazem parte do processo e podem possibilitar a construção de pontes e instrumentos
de trocas de conhecimentos entre locutores/locutoras e interlocutores/interlocutoras,
a partir da mobilização e da criação de gêneros que expressam essas possibilidades
relacionais.
Por meio desse processo educativo, mediado pela linguagem, nas práticas
de ensino, em especial nas disciplinas de Ciências Humanas, as/os estudantes
podem se reconhecer como sujeitos que estão inseridos em uma conjuntura social.
Em referência a Bakhtin, Albuquerque e Souza (2012, p. 373-374) atestam,

Tudo o que me diz respeito, a começar pelo meu nome, chega do


mundo exterior à minha consciência pela boca dos outros (da minha
mãe, etc.), com a sua entonação, em sua tonalidade valorativa-
emocional. A princípio eu tomo consciência de mim através dos
outros: deles eu recebo as palavras, as formas e a tonalidade para a
formação da primeira noção de mim mesmo.

A relação dialógica, portanto, estabelecida através dos gêneros do discurso,


pode possibilitar que locutores/locutoras e interlocutor/interlocutoras reconheçam a
si mesmos/as por intermédio das relações sociais. O que também ocorre na esfera
escolar, pois todo o conhecimento, na perspectiva em questão, parte, de modo
radical, de um ponto de vista de alteridade, visto que o sujeito se reconhece como tal
a partir da interlocução. Nesse sentido, em Bakhtin o eu e o outro são, antes de
tudo, construções sociais, existindo e tomando consciência de si na medida em que
se relacionam por meio da linguagem.
O dialogismo, característico das Ciências Humanas, constitui-se
inseparavelmente por seu objeto, que também é sujeito. Ele ocorre dentro dos
campos de atuação da área em questão (antropológico, histórico, social, filosófico,
linguístico, literário, entre outras) e cada campo efetua um, ou vários, tipos de
enunciados.
Compete ressaltar ainda que para Bakhtin (2003, p. 319 e p. 307), o “texto é
o dado (realidade) elementar e o ponto de partida de qualquer disciplina nas
Ciências Humanas”. É relevante reconhecer que os textos são enunciados, nos
quais se configuram aspectos composicionais, textuais e discursivos, que
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expressam posicionamentos e valores a serem interpretados e discutidos


dialogicamente e dialeticamente entre enunciadores/enunciadoras e
coenunciadores/coenunciadoras. Para o autor, é por meio dos textos que as
disciplinas de Ciências Humanas atuam, nesse sentido, "onde não há texto, não há
objeto de pesquisa e pensamento”.

Considerações finais
Na medida em que o texto se caracteriza como um elemento vivo, nele o
sujeito social comunica concepções que dizem respeito tanto ao sujeito que as
produziu quanto aos grupos sociais aos quais ele/ela se insere. A língua, como
instrumento social, é repleta de coerções, coerções essas que remetem a vozes
sociais implícitas em seus dizeres.
Deste modo, a comunicação se dá por meio da palavra emprestada do
outro. E da mesma forma, a linguagem se constitui como uma ação social, e, como
tal, é fundamentalmente, baseada na alteridade.
Inseridas nesse processo, as práticas escolares se constroem,
impulsionadas pela urgência da palavra, tal como o ensino e aprendizagem de
Ciências Humanas, que se configura como área de conhecimento construída sobre
a perspectiva da alteridade. De modo similar, ocorrem as suas práticas de ensino e
aprendizagem, por meio e intermédio da linguagem, em um processo dialógico que
perpassa as formas de dizer, através dos gêneros do discurso. Diante do exposto, é
possível inferir que se a palavra é texto, ela também é relação.
Doravante, apoderar-se da linguagem, entendendo os elementos que foram,
historicamente, convencionalizados para pensar os gêneros do discurso e os seus
contextos de construção, como elementos não fixos, pode possibilitar as/aos
professoras/professores e estudantes, uma perspectiva multidisciplinar e novas
possibilidades de reflexão. Estas podem se dar tanto no âmbito do uso da linguagem
quanto na relação entre os mais distintos sujeitos das Ciências Humanas, com seus
campos, ensinados e apreendidos por intermédio dela.
Os gêneros do discurso, portanto, são dialéticos, produzidos para atender as
necessidades comunicativas, e podem ser compreendidos como matéria viva,
repleta de sentido e de pressupostos múltiplos, transmutando-se na mesma
proporção em que se constituem, tais como as relações sociais.
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Referências

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Dados das/dos autoras/autores por ordem de autoria

Aline de Jesus Maffi


Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais pela Faculdade de
Ciências e Letras - UNESP- Araraquara-SP.
Endereço pessoal: Rua Mauricio Galli, 2029, Vila Sedenho – Araraquara-SP, CEP
14806-155
E-mail: aline.maffi@unesp.br

Fabrício Silva
Mestre em Docência para a educação básica pela UNESP-Bauru-SP.
Professor de Educação Básica do Estado de São Paulo na escola PEI Antônio
Guedes de Azevedo /Jd. Pagani - Bauru.
Endereço pessoal: Rua Mário Gonzaga Junqueira, 6-35 - Vila Souto - Bauru/SP,
CEP 17051-080
E-mail:fsfabricio.81@gmail.com

Silvia Aparecida Canonico


Mestranda no programa de Pós-graduação em Linguística e Língua Portuguesa pela
Faculdade de Ciências e Letras - UNESP - Araraquara-SP
Professora de Língua Portuguesa na Educação Básica do Estado de São Paulo - EE
Antônio dos Santos, Araraquara-SP
Endereço pessoal: Av. Adelaide Ferraz de Carvalho, n. 569, Jd das Estações,
Araraquara-SP, CEP 14810360
E-mail: sa.canonico@unesp.com

Macioniro Celeste Filho


Doutor em Educação pela PUC-SP
UNESP - Faculdade de Ciências - Departamento de Educação - campus de
Bauru/SP
Rua Ibraim Nobre, 5 - 45, ap. 43. CEP 17012-440. Bauru – SP
E-mail: marciocelestefilho@gmail.com

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