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RESUMO
1 INTRODUÇÃO
Desde a primeira descrição do autismo pelo pediatra e psiquiatra Leo Kanner (1943),
as concepções e descrições sintomáticas que englobam esse diagnóstico têm sido um campo
profícuo de controvérsias. São polêmicas que ainda se instauram, especialmente, no que se
refere às revisões do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM –
Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), cujas alterações quanto aos conceitos,
critérios e enquadramentos, referentes aos transtornos mentais, são objetos de inúmeras
discordâncias.
Esse material, publicado pela American Psychiatric Association (APA), é elaborado
por uma equipe de pesquisadores e especialistas da Divisão de Pesquisa da APA como um
guia de referência, com o objetivo de respaldar os diagnósticos dos profissionais da área.
Atualmente, em sua quinta versão – DSM-5 (APA, 2014), é o referencial a ser adotado em
consonância com a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas
Relacionados à Saúde – CID-11, outro sistema de codificação para diagnósticos, realizado
pela Organização Mundial de Saúde (OMS) (FERNANDES, TOMAZELLI, GIRIANELLI,
2020).
Com essa reformulação, as limitações no domínio da linguagem, que faziam parte de
uma tríade de comprometimentos, passaram a ser um indicador dos níveis de gravidade do
espectro. Dessa forma, mesmo que tenha sido desvinculado dessa tríade, o uso expressivo e
funcional da linguagem ainda é um aspecto primordial para identificar o autismo. Nesse
sentido, a análise é centrada no uso pragmático da linguagem, especialmente, quanto à sua
compreensão e adequação ao contexto (FERNANDES, TOMAZELLI, GIRIANELLI, 2020).
Assim, de acordo com o DSM-5 (APA, 2014, p. 50-51), observa-se uma díade de
sintomas, a partir de alguns critérios que melhor definem a especificidade diagnóstica do
autismo. O primeiro critério predominante relaciona-se às deficiências persistentes na
comunicação e interação social, que acarretam limitações na reciprocidade social e emocional,
nos comportamentos de comunicação verbal e não verbal em interações, e dificuldades em
entender e adaptar o comportamento às situações e convenções sociais. Já o segundo critério
diz respeito aos padrões restritos de comportamento, interesses e atividades. Nesse caso, a
criança ou sujeito autista realiza movimentos repetitivos e estereotipados corporais, apresenta
interesse restrito em objetos ou atividades, apego a rotinas, padrões de comportamentos
ritualísticos, e reações acentuadas ou mínimas a estímulos sensoriais.
Como é possível notar, os sintomas podem se manifestar pela combinação de critérios
muito diversos e com limites difusos, visto que ocorrem em um contínuo. É frequente, por
exemplo, que sujeitos com TEA apresentem deficiência intelectual e/ou transtorno de déficit
de atenção/hiperatividade (TDAH), ou outros (APA, 2014).
Consoante o referencial DSM-5, a avaliação da gravidade do espectro autista é
definida em três níveis que indicam o grau de apoio necessário em cada domínio de sintomas.
De acordo com a gravidade do quadro e a necessidade de apoio, os níveis de severidade
correspondem aos seguintes indicadores: nível 1 “exige apoio”, nível 2 “exige apoio
substancial, e nível 3 “exige apoio muito substancial” (APA, 2014, p. 52).
Essas divisões de severidade demonstram que conforme o estado de comprometimento
em que se encontra a criança, maior ou menor é sua autonomia e necessidade de apoio.
Ademais é importante pontuar que, no referido DSM, esse quadro não é estanque, pois esses
níveis podem variar de acordo com o contexto e com o decorrer do desenvolvimento.
É importante, por conseguinte, compreender que muitos sujeitos autistas, ainda que
habitualmente desviem o olhar ou evitem o contato com o outro, buscam a atenção no espaço
da interação e da brincadeira. Nessa interação, a criança pode simplesmente ouvir,
acompanhar uma cantiga com o bater dos pés, com um sorriso, com o olhar, ou com
vocalizações. Esse relacionamento social é singular, pouco comum, mas por meio desse
movimento constante do outro em direção a ela, a criança com TEA compreende melhor a
linguagem e aprende a dinâmica do diálogo.
A consciência que se constrói pelo olhar que recebe do outro constitui-se de forma
dialógica, pois a natureza dialógica é característica da vida humana. Como pondera Bakhtin,
viver é participar de um diálogo constante e inconclusivo, que se completa pelo olhar do
outro. Segundo o autor,
Tem-se, então, que o diálogo envolve diversos meios para comunicação de anseios,
objeções e interesses, que não se ancoram exclusivamente no uso da palavra. Assim, o
discurso pode se enunciar pela participação no diálogo, que se dá também pelo próprio corpo
e atividades vividas. O diálogo que se instaura na vida, expõe a dimensão discursiva da
língua, compreendida como “uma atividade de sujeitos inscritos em contextos determinados”
(DEL RÉ, 2006, p.29) aos quais se articulam elementos verbais e extraverbais. Nesse
processo, segundo Del Ré, a aquisição da linguagem se inicia desde o nascimento e continua
ao longo da vida.
Contudo, cabe esclarecer que a dimensão discursiva não exclui a língua de seu lugar.
Bakhtin não nega a materialidade da língua, isto é, o conteúdo verbal elaborado por formas
linguísticas e gramaticais, pois a considera unidade real da comunicação verbal, configurada
em enunciados que se concretizam na relação entre falantes, em uma alternância dialógica que
pressupõe uma compreensão responsiva ativa. (BAKHTIN, 1997). Infere-se, assim, que a
língua – sistema linguístico - ganha sentido entre falantes quando posta em uso, ou seja,
proferida em enunciados concretizados em situações reais.
Sendo assim, como estender o status da língua aos casos tão particulares dos sujeitos
autistas, que muitas vezes apresentam desvios nessa habilidade? É preciso entender,
fundamentando-se por uma visão mais ampliada de linguagem, que a criança autista
desenvolve movimentos discursivos, inserida em um contexto, e que o outro com quem
interage é imprescindível nesse processo, já que se dirige a ela, utilizando uma língua que vai
ser interpretada e que suscita uma resposta.
Tendo em vista o papel exercido por esse interlocutor, é pertinente fazer referência ao
conceito de zona de desenvolvimento proximal (VYGOTSKY, 1994), pressuposto que
explicita a influência do outro mais experiente no desenvolvimento da linguagem e da
cognição da criança durante a interação. Tal pressuposto propõe que, com o auxílio de outro,
a criança possa avançar em suas potencialidades e se tornar independente, consolidando
habilidades latentes.
Sob tal perspectiva, Vygotsky propõe que há dois níveis de desenvolvimento: o nível
de desenvolvimento real, correspondente ao período em que a criança consegue realizar as
tarefas sozinha e o nível desenvolvimento proximal, correspondente ao momento em que ela
consegue realizar tarefas mais avançadas com o auxílio de um adulto ou interactante mais
experiente. A autonomia na realização das tarefas identifica o nível de desenvolvimento real,
etapa em que um ciclo de funções mentais já amadureceu. Já no estágio em que a criança
precisa do auxílio de um adulto ou alguém mais experiente para realizar suas tarefas,
identifica-se o nível de desenvolvimento proximal.
Na aquisição da linguagem é possível evidenciar esse processo, por meio da relação
entre o aprendizado e o desenvolvimento. A linguagem utilizada em situações de
comunicação se converte em fala interior, posteriormente contribuindo para a organização do
pensamento, e tornando-se função mental interna. Reportando-se a Piaget, Vygotsky atesta
que na interação com o outro, as crianças desenvolvem a fala interior e o pensamento
reflexivo, que irá propiciar a autonomia no desenvolvimento de suas ações.
Ainda, ao pensarmos no papel do contexto na aquisição da linguagem, destacamos
Bruner, cujos estudos sobre os formatos e a contribuição do adulto, assistindo a entrada da
criança na linguagem, converge em muitos pontos com o olhar bakhtiniano. Bruner (1997)
discorre que as crianças desde pequenas, e mesmo desde recém-nascidas, adentram-se na
compreensão e produção de significados, e esse processo é decorrente da interação com o
outro – interactante mais experiente – em contextos de uso da língua.
A ênfase dada ao contexto reflete-se na introdução do conceito de formats, termo
cunhado pelo autor para referir-se às situações rotinizadas de interação. Por essa concepção,
entende-se que as situações de interação trazem um formato de atuação em que se insere a
linguagem dos diálogos cotidianos (Bruner, 1984). Com o tempo, os modos de proceder nesse
“microcosmo regulado por regras em que o adulto e a criança fazem coisas com e para o
outro”1 (Bruner, 1984) são internalizados, e a comunicação que primeiramente se faz por
modos gestuais, passa a ser complementada pela linguagem verbal.
Os formatos de interação oferecem regularidades para que a criança compreenda
funções pragmáticas dos contextos de comunicação e uso adequado de formas linguísticas
apropriadas a cada situação. Para o autor, um formato implica em uma interação contingente
1
It is a rule-bound microcosm in which the adult and child do things to and with each other. (BRUNER,
1984, p. 76)
em que cada interactante realiza um ato que depende da ação do outro, que incialmente se faz
pela condução do adulto. Aos poucos, esses atos sequenciais interativos assumem atos de
falas e se tornam implícitos e generalizáveis a outros contextos maiores.
Ademais, o autor destaca que a criança é sensível a esse contexto, mesmo antes de
começar a falar, participando da interação por uma comunicação, considerada pré-verbal, por
meio de gestos, vocalizações e olhares. Esse pressuposto é importante para o estudo da
aquisição da linguagem no autismo, pois o contexto e os elementos extraverbais trazem
significações inerentes. Contudo, os gestos, como comunicação pré-verbal, podem apresentar-
se sob outra ótica nos estudos multimodais, que lhe conferem um estatuto de linguagem.
No original “(e.g., a range of structurally different kinds of sign phenomena in both the stream of
2
speech and the body, graphic and socially sedimented structure in the surround, sequential organization,
encompassing activity systems, etc.).”
O envelope multimodal que o autor propõe tem o objetivo de apresentar a língua
enquanto instância multimodal em cenas de atenção conjunta. Para isso ele trabalha com um
plano de composição constituído pelas ações do olhar, gesto e produção vocal, ocorrendo de
forma concomitante. Valendo-se da teoria sobre Atenção Conjunta de Tomasello (2003), o
autor classifica os tipos de atenção, orientados pela direção do olhar; e para análise dos gestos,
ampara-se na tipologia de gestos proposta por Kendon (1982 apud ÁVILA-NÓBREGA,
2010, P.13). O plano vocal é o último componente analisado, tratando-se tanto das produções
da mãe, dirigida à criança, quanto das vocalizações do próprio bebê.
Esse quadro para descrição do envelope multimodal está representado no quadro
abaixo:
ENVELOPE MULTIMODAL DÍADE X - X MESES E X DIAS
PLANO DE COMPOSIÇÃO MÃE CRIANÇA
OLHAR
GESTOS
PRODUÇÃO VOCAL
Ávila-Nóbrega (2010, P.13)
Com a observação desses três aspectos, o autor procurou demonstrar que o envelope
multimodal emerge em contextos de interação face a face entre mãe e bebê, já a partir dos sete
meses. Em decorrência, ele conclui que a criança adquire a língua por meio da interação e do
uso da multimodalidade, tanto por ela como pela mãe ou outro interactante.
Pelos dados já descritos, pode-se observar que os recursos multimodais estão inseridos
na comunicação linguística, coocorrendo simultaneamente com diversos elementos e
configurações. Na análise da interação, o material gestual pode contribuir com a
referenciação, delimitando movimentos corporais e contribuindo para o processo cognitivo
(VEZALI, 2012). Vezali, assim como Cruz (2018), realiza estudos a partir de concepções
semelhantes, ao considerar a relevância do corpo no processo de significação e de
comunicação.
De acordo com Vezali (2012) o corpo também produz semiose, pois como veículo de
percepções sensório e motor, atua no processo de significação por meio dos gestos que o
movimentam. Os gestos de cabeça, braços ou mãos se realizam pelo movimento do corpo,
como um objeto em que se admite o encontro da língua como uma prática sociocognitiva
(MARCUSCHI, 2007; MONDADA e DUBOIS, 2003 apud VEZALI, 2012).
O autor pontua que o corpo pode traduzir significados, mas são os gestos que se
constituem como recursos semióticos, porque podem “articular-se em formas fixas vinculadas
a um sentido, exprimir ideias, apresentar estruturação gramatical em línguas de sinais, realizar
descrições pantomímicas” (VEZALI, 2012, p. 1). Ademais, para construir significados e
referenciações é preciso que haja atenção dos interactantes, visto que há um jogo de
interações múltiplas, “multiparty interaction” (NORRIS, 2016), em que a linguagem, mesmo
que seja considerada a forma mais relevante, pode limitar a atenção, se for o único elemento
observado.
Como visto, recursos não verbais como gestos, corpo e grau de atenção se articulam
aos recursos linguísticos para a construção de sentidos nos contextos interativos. Conforme o
exposto, podemos visualizar que nas observações da aquisição e funcionamento da linguagem
de crianças autistas, ainda que não haja produção de fala, sua expressividade se presentifica
pelos gestos, expressões faciais e movimentos corporais, inseridos em um contexto
interacional.
Pelos dados teóricos já apresentados, explicitamos que a linguagem pode ser vista por
um viés mais amplo, considerando os aspectos dialógico-discursivos e as possibilidades
multimodais da língua. Também, expusemos que essas ações comunicativas são
primordialmente interativas, por relações que envolvem um ou mais interactantes que, em um
espaço compartilhado, constroem significações.
Desse modo, trataremos sobre a atenção conjunta, uma condição importante para o
desenvolvimento da cognição humana, especialmente a infantil. Para isso, teremos
embasamento, primordialmente, nos trabalhos de Tomasello (2019), nos quais, investigou-se
a competência cognitiva dos seres humanos no reconhecimento de seus parceiros
coespecíficos, como seres intencionais em cenas de atenção conjunta.
Ao trazer referências teóricas sobre a capacidade de envolvimento na atenção conjunta
pela criança, Tomasello demonstra que, nesses momentos, bebês desenvolvem aos poucos a
compreensão dos objetos do entorno, dos outros como seres intencionais e de si próprio.
Assim, o autor aponta para três competências específicas: a atenção de verificação, a atenção
de acompanhamento e a atenção direta.
A competência relacionada à atenção de verificação consiste na ação de interação
com os objetos e as pessoas do mundo ao redor. Essa atividade pode ser observada quando
bebês, aos três ou quatro meses em média, começam a manipular os primeiros objetos e a
demonstrar certa consciência sobre eles e sobre o mundo físico, orientados pelo olhar do
adulto. Essa percepção dos objetos se estende para a compreensão de que estes existem
independentemente de serem observados, de não estarem em dois lugares ao mesmo tempo e
de não se movimentarem de um para o outro (Baillaigeon, 1995; Spelke, 1992 apud
Tomasello 2019).
A segunda competência da A. C. – a atenção de acompanhamento –, relaciona-se à
compreensão de outras pessoas. Esse processo de reconhecimento do outro pode ocorrer com
os bebês desde a vida intrauterina, ao ouvirem a voz materna, até nos primeiros momentos
após o nascimento, quando podem reconhecer ilustrações de rostos humanos. Dessa forma, o
reconhecimento se estende à diferenciação de seus interactantes como seres animados, ao
contrário dos objetos.
Já a atenção direta refere-se à consciência de si mesmo, que ocorre após a
compreensão dos objetos e dos outros como entidades externas. Por essa competência
concebe-se que, ao se relacionar com o ambiente do entorno, crianças aprendem mais sobre
seus próprios comportamentos, pois precisam ajustar suas ações para alcançar seus objetivos,
reconhecendo o que são capazes de alcançar e manipular, ou recebendo ajuda para tanto.
Essas três competências específicas podem ser notadas em conjunto, aos nove meses,
etapa em que bebês já ampliam a capacidade de reconhecer o outro como seres intencionais,
tomar consciência de si, e a compreender e acompanhar a relação desse outro com elementos
presentes ao redor. A partir desse período, os comportamentos passam a ser triádicos, visto
que nessa fase já se consegue coordenar as próprias ações entre itens externos e pessoas, o que
resulta em um “triangulo referencial composto por criança, adulto e objeto, ou evento ao qual
dão atenção.” (TOMASELLO, 2019, p.85).
Por volta dessa idade, as crianças já utilizam gestos dêiticos, apontando para objetos
externos ou seguram-nos para mostrá-los para alguém, em uma coordenação triádica da
atenção entre mundo e pessoas. Segundo Tomasello assinala, os gestos dêiticos podem ser
imperativos, com o objetivo de levar o adulto a fazer algo para elas, ou declarativos, quando
há apenas o objetivo de mostrar um elemento para compartilhar atenção.
Com a finalidade de investigar a emergência do desenvolvimento cognitivo, expresso
em cenas de atenção conjunta, Tomasello, Carpenter e Nagel (1998 apud Tomasello, 2019)
realizaram um estudo com vinte e quatro crianças, dos nove aos quinze meses, envolvendo
várias medidas de atenção, incluindo a análise dos gestos. Suas observações centraram-se em
nove aspectos: envolvimento conjunto, acompanhamento do olhar, acompanhamento do ato
de apontar, imitação de atos instrumentas, imitação de atos arbitrários, respostas a obstáculo
sociais, uso de gestos imperativos e uso de gestos declarativos.
As atividades foram aplicadas em três etapas e desenvolveram-se da seguinte forma: a
primeira atividade consistia na ação de compartilhar/verificar a atenção do adulto bem
próximo (olhando para o adulto durante envolvimento conjunto); a segunda, envolvia tarefas
que exigiam o acompanhamento da atenção do adulto, dirigida a entidades distais externas
(acompanhar o olhar para esses objetos); a última tarefa exigia o direcionar a atenção do
adulto para entidades externas (apontar para que o adulto olhasse para uma entidade distal).
O quadro abaixo ilustra os três tipos de interação investigado por Tomasello (2019)
nas cenas de atenção conjunta.
Como resultado, concluíram que as capacidades de atenção conjunta progridem de
modo muito semelhante em todas as crianças, ainda que algumas demorem mais para alcançar
o nível mais elaborado. Assim, verificaram que conforme as tarefas exigiam mais produção e
participação, maior era a dificuldade de desenvolvimento.
A partir desses estudos, destacou-se então que a compreensão do outro e de si mesmo
como seres intencionais é um passo fundamental para capacitar as crianças para a
aprendizagem cultural e o reconhecimento das perspectivas de outras pessoas. Com a
internalização dos conhecimentos partilhados em cenas de atenção conjunta, desenvolve-se a
capacidade de operar com materiais simbólicos constituídos historicamente, como a
linguagem humana.
Entende-se pela relevância desses estudos que a compreensão do outro como agentes
intencionais, mediada pela coordenação triádica entre objetos, criança e pessoas, fornece uma
base sociocognitiva para a aquisição da linguagem. Para trilhar esse caminho, no entanto,
como reforça Tomasello, é preciso que haja compreensão dos significados construídos, e,
nesse sentido, as cenas de atenção conjunta fornecem fundamentação para esse processo.
5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Para fins deste trabalho (SELIN), foram selecionados três excertos, sendo dois relatos
de familiares e uma transcrição de um recorte de vídeo, correspondente a três minutos. As
descrições abaixo, foram feitas com base no Envelope Multimodal proposto por Ávila-
Nóbrega (2010), assim como em alguns tipos de marcações utilizadas por ele em suas
transcrições.
Para os relatos, optou-se por seguir a ordem das ações e indicar repetidamente os tipos
de composições do Envelope Multimodal a cada ocorrência. As transcrições ainda são
ortográficas, de acordo com a forma como são pronunciadas, o alongamento de sílabas
marcado por dois pontos (:) e a pausas entre sílabas, marcadas pelo sinal “^”. As ações e
contexto das cenas serão indicadas pelo marcador (•), os tipos de atenção e gestos serão
escritos entre parênteses com fonte itálico e negrito, e as falas dos interactantes e balbucios
da criança, entre barras //.
Excerto 1: 18/08/2020
Conforme é possível observar nessa cena, a interação dialógica ocorre por meio de um
formato já rotinizado da família com a criança, que se compõe pela atividade de despedida até
o portão, o auxílio à criança e os enunciados típicos. Nessa situação, especificamente, os
enunciados dirigidos à criança foram poucos, mas o significativo “Sobe aqui”, associado aos
gestos, trazem uma regularidade que auxilia as significações.
A comunicação utilizada, emprega uma mescla de olhar, gestos, e produção vocal, ou
seja, os planos de composição do envelope multimodal, proposto por Ávila-Nóbrega. Na
cena, nota-se que a produção vocal da tia, em conjunto com o gesto emblemático, direcionado
ao carro, tem uma significação muito clara para a criança. Em outras situações vivenciadas,
que devido ao espaço reduzido não serão descritas, percebe-se que o gesto emblemático de
dar “tchau” também é compreendido pela criança, porque ela foi ensinada sobre a relação
desse gesto com a despedida. No entanto, esse gesto tão emblemático precisa ser sempre
retomado, já que a criança não o executa espontaneamente.
Outro ponto a se ressaltar, ocorre quando a criança segue as orientações da tia para
entrar no carro, mas assume a sua vontade quando escolhe não se sentar na cadeira infantil do
automóvel. O olhar sério que G. dirige à tia, quando essa só observa sua ação, demonstra pela
interpretação da mãe, que ele esperava uma contestação. Pela linguagem gestual, inserida e
compreendida nesse contexto, em que praticamente foram utilizados os recursos multimodais,
vivenciou-se um comportamento linguageiro por parte da criança, que por sua vez também
nos faz perceber uma expressão de sua individualidade.
• A avó ri e pede • O avô também pede: /Fala, • G. olha para o avô sorrindo,
para G. /Fala assim/ /Eu sou o G.:!/ enquanto ele fala: /Fala, assim/ /Eu
assim, G – Eu sou sou o G.:!/ (atenção de verificação).
o cara!/
• A avó repete o • O avô se abaixa, • G. olha para o avô (atenção de
pedido: . /Fala aproximando-se de G. verificação), vocaliza: /Ã/, esfrega as
assim, G – Eu sou apontando com as duas mãos mãos sorrindo.
o ca:ra!/ em seu peito, (gesto
emblemático), dizendo:
/Fala assim. Eu sou o G.!/
/Gus^ta^vo^!/
Nesse recorte de uma cena cotidiana, em que G. interage com seus familiares, percebe-
se claramente o estímulo dos interlocutores, inserindo-o no diálogo. De modo muito afetivo,
os avós o estimulam a assumir uma atitude responsiva. Essa ação é mais explícita por parte do
avô que o toca por meio de um gesto emblemático, associado ao enunciado “Eu sou o
Gus^ta^vo!” (na última linha da tabela). A entonação empregada, o movimento corporal e o
toque em G., se não provocam uma produção vocal como ação responsiva, ao menos,
influenciam uma resposta corporal, gestual e de atenção.
Sua expressão responsiva se dá, especialmente, por gestos emblemáticos e olhares de
acompanhamento. É interessante observar que, nesse excerto, há vários momentos de atenção
de acompanhamento, se comparado ao primeiro, mesmo que não seja uma situação de
envolvimento mais ativo de G., especialmente quando a atenção se direciona mais
ostensivamente a ele. Essa cena parece demonstrar que até em momentos mais ociosos, de
simples interação, sem nenhum outro objetivo explícito, a criança pode ser inserida no diálogo
por meio de suas respostas gestuais ou pela atenção conjunta menos complexa.
Vale destacar que os interlocutores de G. o tratam como parceiro do diálogo, e ainda
que suas atitudes responsivas sejam tímidas (aqui ressaltamos os problemas cognitivos como
dificultadores dessa ação), ele parece entender muito dos enunciados linguísticos que lhe são
dirigidos, especialmente se forem multimodais. Conclui-se que o papel atento de seu
interlocutor, tratando-o como sujeito desse diálogo e utilizando meios multimodais de
comunicação, é essencial para a inserção de G. na linguagem.
Excerto 3: 15/09/2020
Envelope Multimodal – Tríade Avó, Avô e G. - 5 anos, 6 meses e 24 dias.
Avó Mãe L. G.
• Pede à mãe de G. que de • Mãe responde em tom de • Ouve a resposta da mãe, então se dirige à avó,
um banho nele. brincadeira: / Não, nã:o !/, pega em sua mão e a leva até um armário, sobre
/ L. você quer dar um banho olhando para a mãe (atenção o qual está depositada uma grande bacia, que
nele ?/ de verificação). costuma ser usada para seu banho.
(gesto emblemático + imperativo)
• A avó acompanha G. até o
• G. levanta a mão da avó em direção ao alto e
armário onde está a bacia,
com sua própria mão faz um movimento de abrir
dizendo : /Que que você qué,
e fechar os dedos pedindo a bacia. (gesto
G.?/
emblemático + imperativo).
• Enquanto isso olha para ele
• Olha para a avó e para o alto do armário, onde
e para a bacia (atenção de
está a bacia. (atenção de acompanhamento).
verificação)
• A avó, achando graça, • G. arrasta a bacia até o banheiro. Isso ele faz
atende ao pedido e pega a todo sorridente.
bacia, entregando-a a G.
(gesto emblemático)
/ Pronto! Peguei a bacia! Tó!
Pode toma (r) banho!/
7 ENCAMINHAMENTOS FUTUROS
Neste trabalho apresentamos algumas linhas teóricas que inspiraram nosso estudo,
partindo de pressupostos bakhtinianos que apontam para a constituição do sujeito e sua
entrada na linguagem por meio da alteridade e da interação dialógica. Igualmente, buscamos
ilustrar que a linguagem multimodal é uma importante ferramenta para a participação da
criança nas relações dialógicas com o outro. Nesse sentido, nota-se também que os formatos
rotinizados de algumas situações cotidianas, trazem regularidades que contribuem para a
compreensão de gestos e enunciados linguísticos, convencionalizados socialmente ou não.
Ao analisar a inserção de uma criança com TEA no fluxo comunicativo, percebemos
que ela está na linguagem, ainda que não tenha acesso à fala. A exemplo de análises
realizadas em outros estudos, com enfoque na linguagem da criança com TEA, notamos que é
preciso ampliar essa noção de linguagem, considerando gestos, movimentos proxêmicos e
olhar. Aqui também ressaltamos a possibilidade de olhar esse conjunto de elementos a partir
do plano de composição, concebido como envelope multimodal, além do contexto em que
ocorrem as interações.
Destacamos que o outro tem um papel fundamental nessa comunicação, pois é aquele
que interpreta o querer-dizer da criança, atribuindo sentido às suas ações, movimentos e
olhares. Não é possível prever se sua linguagem verbal vai se desenvolver em completude, no
entanto, já é possível vislumbrar que a comunicação multimodal e o apoio do outro na
interpretação de seus atos linguageiros, são aspectos preponderantes para a tomada de
consciência da criança com TEA e para a constituição de sua linguagem, seja ela verbal ou
não-verbal. Como encaminhamentos futuros, pretendemos analisar mais profundamente os
dados, aprimorando as transcrições por meio do software ELAN.
8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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