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LINGUAGEM E SAÚDE MENTAL NA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA

Conhecendo o desenvolvimento da linguagem, é possível correlacionar as suas


alterações a algumas patologias psiquiátricas. Como dito anteriormente, é necessário
que o profissional envolvido esteja atento a quaisquer paradas, “saltos” ou regressões
bruscas no desenvolvimento normal da linguagem, como um possível indicativo de
problemas relacionados à saúde mental.

É importante ressaltar que não existe uma relação unívoca e direta entre as alterações
citadas neste capítulo e as patologias, ou seja, a presença dessas alterações é um
possível indicativo das patologias em questão, porém não implica no seu diagnóstico
preciso.

O diagnóstico deve ser definido e realizado por médico psiquiatra especialista em


patologias relacionadas à infância e adolescência. As características de linguagem
aqui citadas são um possível indicador da presença dessas patologias e, quando bem
definidas e observadas por um profissional especializado, podem (e devem) facilitar e
agilizar o encaminhamento, o diagnóstico e o processo terapêutico.

O diagnóstico precoce é de grande importância para os profissionais que trabalham na


área da saúde mental. Desse ponto de vista, o profissional da educação pode ser
extremamente importante na observação e encaminhamento de possíveis alterações,
e a linguagem pode ser um meio extremamente eficaz de acompanhar e observar o
desenvolvimento infantil.

Neste capítulo, serão abordadas as principais alterações de linguagem observadas


nas seguintes patologias: transtorno de déficit de atenção e/ou hiperatividade, autismo,
síndrome de Asperger, transtornos afetivos (depressão, Distimia e transtorno bipolar
do humor) e esquizofrenia. É importante ressaltar mais uma vez, que o diagnóstico
definitivo deve ser realizado pelo médico psiquiatra e que as alterações aqui indicadas
representam um quadro com as possíveis correlações entre a linguagem e essas
patologias, porém não é possível estabelecer uma relação direta entre elas.

É importante que o profissional da educação conheça as principais características


diagnósticas dessas patologias na infância e adolescência, as quais, na maioria das
vezes, não possuem uma relação direta com a sintomatologia que pode ser observada
em adultos ou que faz parte do senso comum. Um bom exemplo disso é a depressão,
que, na infância e adolescência, foge dos estereótipos sociais definidos pelo senso
comum de humor deprimido e apatia, podendo ser caracterizada por humor irritável e
agitação.
Este capítulo não se propõe a definir ou mesmo discutir as características diagnósticas
na infância e adolescência das patologias acima citadas, mas sim explicitar possíveis
alterações de linguagem envolvidas nesses quadros. É extremamente importante que
o profissional interessado no tema se aprofunde com a leitura e a realização de cursos
específicos sobre o assunto, e que mantenha esses conhecimentos sempre
atualizados.

Transtorno do déficit de atenção e/ou hiperatividade

Nesta patologia, o déficit de atenção pode ou não se apresentar conjuntamente com o


quadro de hiperatividade e, assim, observam-se algumas características distintas em
relação a linguagem e a aprendizagem.

No caso do transtorno de hiperatividade sem déficit atencional, predominam os


aspectos psicomotores e são comumente observadas alterações fonológicas,
velocidade de produção de fala aumentada (Breznitz, 2003) e disfluências (Redmond,
2004). As dificuldades relacionadas à aprendizagem são bastante comuns e
constantemente causadas pela agitação psicomotora e pela dificuldade em estruturar,
produzir e compreender textos (Mc Innes, 2003).

Em ambos os casos, no transtorno hiperativo (com e sem déficit de atenção) são


também descritas alterações na memória de trabalho (Green et al, 2003) e no
planejamento da produção discursiva (Geurts et al, 2004).

Já nos quadros de hiperatividade com déficit atencional, as alterações envolvidas são


muito mais intensas, principalmente em relação à linguagem, aprendizagem e
escolaridade. A elaboração e compreensão textual encontram-se extremamente
empobrecidas (Renz et al, 2003) e são muitas vezes a principal queixa por parte da
escola e dos pais.

Autismo e Síndrome de Asperger

No espectro autístico, apresentam-se desde casos de autistas que se diferenciam por


sua habilidade verbal (síndrome de Asperger) até autistas não-verbais (ou autismo de
alto funcionamento). As alterações de linguagem comumente observadas nesses
casos foram descritas por Leo Kanner em 1944 e são uma das principais
características dos casos de autismo (Fernandes, 1995). Destacam-se a inversão
pronominal (não uso do pronome “eu”), a rigidez de significados (dificuldade de
associação de diversos significados a um único significante) e a rigidez das funções
comunicativas da linguagem (pragmática).
Dentre as teorias cognitivas que procuram explicar as alterações observadas em
casos de autismo, há aquelas que relacionam o desenvolvimento e a inadequação
social dos autistas (principalmente dos autistas falantes) à falta da “teoria da mente”.
Essa ausência seria responsável pela fala inadequada e estereotipada nesses
indivíduos e por grande parte de suas estereotipias.

Os estudos de Baron-Cohen (1988) abordaram a capacidade de compreensão dos


autistas quanto aos aspectos mecânicos, comportamentais e intencionais de estórias
em quadrinhos. O autor observou que a compreensão somente ocorria quando a
sequência poderia ser compreendida em termos causais-mecânicos ou simplesmente
descritivos. Em 1990, foi observado pelo mesmo autor que as crianças com autismo já
falhavam em provas de “teoria da mente” ao redor dos 10 a 14 meses de vida,
mostrando pouca compreensão e produção de condutas de “atenção conjunta”,
incluindo dar, mostrar objetos e sinalizar para objetos (estender o dedo para um objeto
como sinal de “me dê”, por exemplo).

Os estudos de Shah e Frith (1983) mostraram que indivíduos autistas apresentavam


falta da “teoria da mente” por um déficit de funções cerebrais mais elevadas ligadas a
meta-representações, determinando mudanças nos padrões básicos da interação
social. Os autistas seriam capazes de chegar às representações primárias (relativas
ao mundo físico), mas não atingiriam as secundárias ou meta-representações
(conceitos e crenças sobre os estados mentais alheios, que incluem percepção de
desejos, necessidades, sentimentos e emoções dos outros), tornando aos autistas
impossíveis prever o comportamento do outro numa situação de relacionamento
interpessoal.

Na síndrome de Asperger, são também observadas habilidades mecânicas de


capacidade (ilhas de capacidade), sinais da dificuldade dessas crianças de levar em
conta o contexto, faltando a elas a força coesiva central.

Para Baron-Cohen (1991), a meta-representação é necessária para o


desenvolvimento dos padrões simbólicos. A falta de teoria da mente e,
conseqüentemente, de meta-representação justificaria muitas das alterações
observadas nos indivíduos com autismo quanto ao jogo de faz-de-conta, ao jogo
simbólico e à capacidade para a criatividade e originalidade e na adaptação
pragmática do mundo.

Para Happé (1994), apenas os comportamentos sociais que requerem mentalização


estariam prejudicados em sujeitos com o diagnóstico de síndrome de Asperger, ao
contrário dos comportamentos que podem ser baseados em condutas observáveis ou
em aprendizado por memória. O mesmo aconteceria com a comunicação: quando a
linguagem é usada como código, não se observam impedimentos gerais e o
vocabulário e a sintaxe podem ser preservados, mas, quando a linguagem é usada
como expressão dos pensamentos do falante ou é para ser compreendida como
expressão de significados intencionais, esses indivíduos podem mostrar sérios
prejuízos.

Transtornos afetivos: Distimia, depressão e transtorno bipolar do humor.

O desempenho de crianças com depressão é considerado flutuante ao longo do dia,


sendo isso atribuído ao estado de humor no qual o indivíduo se encontra. O estado de
humor é considerado por diversos autores como facilitador ou dificultador da forma de
percepção e de como as informações são armazenadas por essas crianças (Teasdale,
1983; Blaney, 1986; Cole and Jordan, 1995; Danion et al, 1995; Segal e col, 1995;
Watkins et al, 1996).

De acordo com o oitavo critério proposto pelo DSM-IV (1995) para a definição do
diagnóstico de depressão, as queixas de dificuldade de concentração, capacidade
diminuída de pensar e indecisão podem evidenciar a presença de déficits cognitivos.

Queixas escolares e de dificuldade de aprendizagem são muito comuns na prática


clínica e são de rende importância na depressão, alterando e prejudicando o
rendimento escolar.

Não há como estabelecer uma relação unívoca entre a depressão e os transtornos de


aprendizagem, porém a comorbidades mais comum são os problemas emocionais e,
entre eles, a depressão infantil merece destaque (Emslie, Kennard & Kowatch,
1995).

Os estudos de Lawrie (2000) mostraram que crianças com depressão possuem baixa
performance em medidas de inteligência não-verbal e verbal. A depressão pode ter
efeitos negativos a longo prazo, como alterações na aquisição das habilidades verbais
e acadêmicas.

As pesquisas são unânimes em relatar que a permanência de características


depressivas na criança por longos períodos de tempo levam a complicações
importantes.
Weinberg (1995) observou que, para esses indivíduos, a escola tende a se tornar um
ambiente altamente frustrante, já que os déficits atencionais, o sono excessivo durante
o dia, a baixa tolerância às frustrações, a irritabilidade e as dificuldades de memória
trazem frequentemente consigo o fracasso escolar.

Catts (1993) descreveu nesses pacientes déficits importantes relacionados à


compreensão e à produção da linguagem. Pantano (2001), em seu trabalho com
indivíduos depressivos, também verificou alterações importantes quanto à
compreensão oral e escrita e à repetição, de modo diretamente proporcional à
complexidade sintática e silábica e extensão do material a ser compreendido. Na
leitura, evidenciou-se a predominância de processamento Peri-lexical e leitura silábica
nesses indivíduos. Dessa forma, a autora concluiu que, nessa população, o
processamento de informações lexicais, sintáticas e semânticas complexas produz
uma sobrecarga na memória de trabalho e, conseqüentemente, baixo desempenho.

Outro mecanismo cognitivo estudado nesta patologia por Pantano (2001) diz respeito
à “memória relacionada com o humor”, que é um mecanismo cognitivo de facilitação
para a instalação de (ou para a manutenção de) um quadro depressivo através de
pensamentos e processamentos condizentes com o estado de humor do indivíduo.
Esse processamento alterado seria capaz de provocar prejuízos importantes no
processamento e compreensão da linguagem.

Quanto ao discurso de indivíduos depressivos, comparado ao discurso de pacientes


com transtorno bipolar do humor, Cavalcanti et al (2003) observaram que, nos quadros
de depressão, a recordação e a produção de material predominantemente negativo
traz consequências importantes para a compreensão e o processamento de
informações. Nesse estudo, nos indivíduos com transtorno depressivo, o discurso se
mostrou mais estruturado quanto à coesão e à coerência, porém o conteúdo foi
predominantemente negativo. Já nos pacientes com transtorno bipolar do humor, o
discurso apresentou-se menos estruturado e mais extenso, entretanto com prejuízos
maiores na coerência textual.

De acordo com o DSM-IV (1995), no transtorno afetivo bipolar são comumente


observadas alterações como: nível de atividade profundamente perturbado; flutuações
relacionadas à autoestima, à necessidade de sono, à produção e elocução de fala;
fuga de ideias; distraibilidade e agitação psicomotora. Um estudo recente nessa
população (Papolos, 2002) observou alterações relacionadas à memória e à
concentração, distraibilidade acentuada (Akiskal e Weller, 1989; Harrington, 1994) e
fuga de idéias
(Weller e Weller, 1995). Os trabalhos com essa população ainda são bastante
recentes, necessitando ainda ser ampliados e aprofundados.

Esquizofrenia na infância e adolescência

Nos casos de esquizofrenia na infância e adolescência, são bastante frequentes as


alterações relativas aos processamentos auditivo e visual e à estruturação da
linguagem (principalmente a nível discursivo), havendo também déficits relacionados à
compreensão e à elaboração da linguagem.

Dificuldades bastante importantes foram apontadas com relação à estruturação e à


compreensão de frases (Kaplan et al, 1997), estórias (Weylman et al, 1989),
elementos do discurso (Beeman, 1993) e metáforas (Battini et al, 1994), que poderiam
justificar muitas dificuldades sociais observadas nesses indivíduos.

As principais alterações de linguagem observadas nessa patologia relacionam-se a


uma produção vaga, concreta, repetitiva e estereotipada, com dificuldades na
elaboração e compreensão de formas mais abstratas e complexas de expressão
(Strandburg et al, 1997).

Quanto à produção textual, têm sido destacadas dificuldades na organização


hierárquica das sentenças, poucas uso de pistas coesivas, pouca organização
temporal, alto uso de redundâncias e dificuldades na ordenação entre conceitos
subordinados e superordenados, resultando numa produção de fala incoerente.

Também têm sido relatadas alterações importantes na memória de curto prazo e no


estabelecimento de relações entre conteúdos textuais, causando prejuízos na
compreensão e na estruturação discursiva.

Falhas também têm sido observadas na memória autobiográfica (Crowe & Alavi,
1999) e nas memórias episódica, semântica e lexical (Kircher et al, 2001), além de
lentificação dos processos cognitivos e baixa performance na memória de trabalho,
como resultado da lentificação dos processos de entrada de informação (Hartman et
al, 2002).

É importante ressaltar que as características de linguagem de cada patologia


apresentada neste capítulo podem ter uma variação importante de acordo com a idade
de início da sintomatologia do quadro psiquiátrico em relação à fase de
desenvolvimento do indivíduo, podendo dessa forma haver acentuação das alterações
fonológicas, sintáticas, semânticas, pragmáticas, discursivas ou relacionadas à
linguagem escrita (caso o quadro patológico se inicie durante ou conjuntamente com a
aprendizagem formal da escrita) e à aprendizagem escolar (decorrentes das
alterações cognitivas próprias de cada patologia).

As alterações relacionadas à linguagem também podem ser influenciadas por


comorbidades que ocorram simultaneamente às patologias psiquiátricas, devendo
sempre ser analisadas e observadas por um profissional especializado.

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