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FUNCIONAMENTO DA LINGUAGEM NA CRIANÇA COM TRANSTORNO DO

ESPECTRO AUTISTA:
INTERAÇÃO, MULTIMODALIDADE, FORMATOS

Silvia Aparecida Canonico – UNESP/FCLAr1


Alessandra Del Ré – UNESP/FCLAr2

Resumo
Frente às questões que se impõem em relação às singularidades do desenvolvimento da linguagem,
no Transtorno do Espectro Autista, este trabalho tem por objetivo descrever o funcionamento da
linguagem de uma criança autista, que aos 6,4, possui dificuldades mais expressivas nesse âmbito.
Partindo de concepções mais abrangentes sobre o conceito de língua, o enfoque é direcionado às
vocalizações, balbucios e gestos que essa criança produz. Para tanto, apoia-se teoricamente na
perspectiva dialógico-discursiva (DEL RÉ et al, 2014; DEL RÉ et al, 2021), em estudos sobre
linguagem multimodal (MCNEILL, 1985; CAVALCANTE, 2008; 2012; KENDON, 2000;
ÁVILA-NÓBREGA, 2010; 2017), pelo qual compreende-se que gesto e produção vocal integram
uma mesma matriz de comunicação; e ainda, no conceito de formatos (BRUNER, 2007). Em
termos metodológicos, esse trabalho trata-se de um estudo de caso de cunho qualitativo e
longitudinal, com dados de uma criança autista, dos 5 aos 6,4 anos, em cenas de interação familiar.
Os resultados indicam que sua participação responsiva no diálogo, realiza-se por uma sincronia de
recursos multimodais, como balbucios, vocalizações, olhares e gestos. Sua compreensão dos
sentidos produzidos na interação também destaca o papel das atividades rotinizadas e a importância
do adulto como aquele que a interpreta e a toma como sujeito do discurso.

Palavras-chave: Transtorno do Espectro Autista; Responsividade; Multimodalidade; Formatos

Introdução
Com a disseminação de estudos, trabalhos e o aprimoramento de critérios diagnósticos têm
se ampliado os casos de crianças identificadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Nesse
contexto, consequentemente, emerge a preocupação de pais e interesse de profissionais e
pesquisadores em busca de compreender os fenômenos que caracterizam essa condição.
O TEA, conforme a versão mais atual - DSM-5 (APA, 2014) -, é caracterizado como um
transtorno do neurodesenvolvimento que, em geral, acarreta alterações em duas áreas específicas
do desenvolvimento: a comunicação social e o padrão de comportamento. Nesse quadro
diagnóstico, é bastante comum a identificação de dificuldades no âmbito da linguagem, que podem-
se manifestar em diferentes níveis, dos mais leves aos severos.
De acordo com esse manual, é possível encontrar crianças que se expressam muito bem
pelo sistema de língua, outras que possuem fala ecolálica, ou alguma outra disfluência, e aquelas

1
Graduada em Letras pela Unesp, Araraquara – SP, Mestre pelo Programa de Pós Graduação em Linguística e
Língua Portuguesa da Unesp/FCLAr, Araraquara - SP. E-mail: sa.canonico@unesp.br.
2
Professora do Departamento de Linguística da Unesp/FCLAr- Araraquara-SP e Programa de Pós Graduação em
Linguística e Língua Portuguesa da Unesp/Araraquara-SP. Bolsista Produtividade CNPq. E-mail: del.re@unesp.br
que se encontram no outro extremo, caracterizando-se pelo denominado mutismo, isto é, quando
não há comunicação pela fala, ou pelo que se reconhece como língua (APA, 2014; SCHMIDT,
2017).
Desse modo, alguns questionamentos emergem diante desse contexto: Como ocorre a
comunicação de crianças com essas características, especificamente, quando o repertório de
produção vocal é pouco desenvolvido? Que recursos elas utilizam para se comunicar? Como
interagem e qual o papel de seus interlocutores nesse processo?
Perante esse cenário, temos como enfoque as questões relacionadas às dificuldades mais
severas de linguagem. Nesse sentido, direcionamos o olhar às crianças autistas que possuem
alterações mais significativas no desenvolvimento da fala, o que nos leva a investigar outros
aspectos que ela utiliza para se expressar, como gestos, expressões faciais, risos, dentre outros. Para
isso, adotamos uma perspectiva dialógico-discursiva e multimodal da linguagem, as quais
consideram a língua em sua relação com discursos, sendo estes expressos em diversas
materialidades.
Sendo assim, temos como objetivo geral, observar o funcionamento dialógico de uma
criança autista, durante as cenas de interação familiar, descrevendo os recursos multimodais que
ela emprega para compartilhar informações e construir sentidos. Para analisar esses aspectos,
associa-se um segundo objetivo, com o qual busca-se refletir sobre o papel das atividades
rotinizadas - os formatos - no desenvolvimento de sua comunicação
Para alcançar tais objetivos, partimos de uma perspectiva dialógico-discursiva, a partir das
obras de Bakhtin e o Círculo (BAKHTIN, 2011; Volóchinov, 2017), e dos trabalhos da área da
Aquisição da Linguagem como os de Del Ré et al (2014; 2021). Também trazemos como aporte às
análises pretendidas, as pesquisas sobre multimodalidade, realizadas por pesquisadores McNeill
(1985. 2006), Kendon (1988), Cavalcante (2008) e Ávila Nóbrega (2010), e ainda, os estudos de
Bruner (2007) sobre os formatos, ou seja, as atividades rotinizadas que se constituem por
regularidades de ações e linguagem construídas nos contextos sociais.
Os dados para esse estudo, pautados pela abordagem que se caracteriza como qualitativa e
longitudinal, foram coletados a partir de gravações bimestrais de uma criança autista dos 5 ao 5;7
anos em cenas de interação familiar. Essa criança não se expressa pelo sistema linguístico da língua,
mas apresenta uso frequente de balbucios e vocalizações. Além disso, sua comunicação gestual,
com configurações singulares, em associação ao seu repertório de produção vocal, constitui-se
como um importante meio para a construção de sentidos em conjunto com seus interlocutores.
Os resultados encontrados demonstram que os recursos multimodais empregados pela
criança contribuem para sua inserção na linguagem, o que pode ser identificado pela progressiva
atuação responsiva na interação discursiva. A construção de um olhar mais atento e ampliado aos
movimentos linguageiros produzidos pela criança autista poderá beneficiar educadores, pais e
demais interlocutores, levando-os a se atentar para seus gestos, olhares, ações e vocalizações como
indícios de uma forma particular de se comunicar.

Breve contextualização do quadro diagnóstico do TEA

Desde a primeira descrição do autismo pelo pediatra e psiquiatra Leo Kanner (1943), as
concepções e indicações sintomáticas que englobam esse diagnóstico têm sido um campo profícuo
de controvérsias. Consequentemente, caracterizar a linguagem e a comunicação do sujeito autista
também é adentrar-se em campo rico de abordagens e perspectivas diversas. Embora consideremos
importantes todas essas questões, adotamos para fins de caracterização, as informações e
conceituações elaboradas pelo DSM-5 (APA, 2014).
Como já mencionado na seção de introdução, o TEA, como um transtorno do
neurodesenvolvimento, traz alterações que influenciam qualitativamente no âmbito da
comunicação e do padrão de comportamento. É importante destacar, no entanto, que as descrições
expressas no DSM-5 (APA, 2014), não devem ser vistas de forma taxativa, pois essas características
podem se manifestar em diversos graus de severidade ou até mesmo de forma muito difusa.
No domínio da comunicação social, especificamente, destacam-se os aspectos relacionados
à reciprocidade social e emocional, à compreensão e ao uso de elementos constitutivos da
comunicação verbal e não verbal, bem como, à adaptação às práticas e comportamentos sociais. À
vista disso, é comum que a criança tenha dificuldades em iniciar uma comunicação ou responder
aos seus interlocutores, limitando a fluência de comunicação, devido ao reduzido
compartilhamento de interesse, afetos, emoções. Acresce-se a esses fatores, possíveis alterações no
direcionamento do olhar e na utilização dos recursos gestuais (SCHMIDT, 2017).
Quanto ao segundo domínio, evidenciam-se os padrões restritos e repetitivos de
comportamentos, interesses ou atividades. Segundo o pesquisador Schmidt (2017), esse aspecto
pode ser observado com relação à fala, movimentos e uso de objetos. Isso pode ser percebido, por
exemplo, pelos movimentos ritmados e repetitivos de movimentação de braços, mãos ou outras
partes do corpo – estereotipias –, ecolalias (repetição de palavras ou frases ouvidas), ações de
alinhamento de brinquedos ou girar objetos. Além disso, também é comum o apego a rotinas, e
algumas especificidades no campo sensorial, como reações acentuadas ou mínimas aos estímulos
do ambiente (APA, 2014).
Diante desse cenário, é notório o quanto esses aspectos influenciam na comunicação e a
importância de se adotar uma ótica mais ampla sobre o funcionamento da linguagem. É o que
pretendemos mostrar por meio dos referencias teóricos a seguir apresentados.

A linguagem no autismo - uma visão dialógica-discursiva

Os trabalhos em Aquisição da Linguagem são base para estudos das mais diversas áreas
que tratam sobre o desenvolvimento linguístico de crianças, sejam elas típicas - sem nenhum desvio
– sejam elas acometidas por patologias e limitações, como TEA, deficits cognitivos, intelectuais,
surdez etc. (DEL RÉ, 2015). Nesse sentido, a abordagem dialógico-discursiva pode contribuir para
essas questões, a partir de um enfoque diferenciado sobre a linguagem.
Como é concebido por pesquisadores que partilham dessa perspectiva (BRUNER, 1985,
1994, 2007; BAKHTIN, 2011; VOLÓCHINOV, 2017; DEL RÉ et al 2006; 2014; 2021), o discurso
compreende a linguagem tanto em seus enunciados verbais – aos quais identificamos a utilização
da língua e demais expressões vocais –, como também em seus aspectos gestuais e visuais,
empregados nas interações discursivas.
Primeiramente, então, destacamos das obras de Bakhtin e o Círculo (BAKHTIN, 2011;
VOLÓCHINOV, 2017), noções como dialogismo, responsividade e alteridade, importantes para
nossas análises. No fluxo da comunicação discursiva, esses aspectos, constitutivos da linguagem,
ocorrem independente da forma de expressão utilizada, expondo o papel ativo de cada falante
diante do discurso do outro e demonstrando sua compreensão quanto às semioses construídas
dialogicamente.
Por essa ótica, a realidade fundamental da linguagem não se refere apenas ao uso da língua
– sistema de formas linguísticas – ou mesmo a um enunciado isolado, mas a sua realização enquanto
“acontecimento social da interação discursiva que ocorre por meio de um ou de vários enunciados”
(VOLÓCHINOV, 2017, pp. 218-219). E, na interação com o outro, com o discurso do outro, a
língua se materializa por meio de enunciados organizados em um material determinado como “no
material ideológico da palavra, do desenho, das tintas, do som musical etc” (VOLÓCHINOV,
2017, p. 212).
Essa materialização da língua, compreendida, muitas vezes, apenas como a expressão da
fala, também é concebida de maneira mais ampla por outros autores. A respeito disso, Cavalcante,
reportando-se a Marcuschi, pontua que a fala “caracteriza-se pelo uso da língua na sua forma de
sons articulados e significativos, bem como aspectos prosódicos e uma série de recursos
expressivos de outra ordem: gestualidade, movimentos corporais, mímica” (CAVALCANTE,
2008, p. 157). Dessas formulações, concebe-se, então, que a fala é um recurso muito amplo do qual
o falante se serve para fins de expressão.
Além disso, sendo essencialmente dialógica, a língua/linguagem só pode ser compreendida
no fluxo da comunicação discursiva, o que demonstra o caráter dialógico dos enunciados, sempre
em relação com outros discursos. Para Bakhtin, todo dizer possui uma dimensão dialógica que se
orienta para um já dito, operando como uma resposta a esses dizeres; orienta-se para uma resposta,
ou seja, já espera uma réplica; e é internamente dialogizado, constituindo-se interiormente por
múltiplas vozes sociais (FARACO, 2009). O dialogismo é concebido, então, como a relação entre
os discursos que se entrelaçam no contexto social, retomando palavras e enunciados já produzidos
em outro tempo (BAKHTIN, 2011).
Por meio das trocas dialógicas reflete-se uma ação responsiva ativa do falante, que ocorre
ante a compreensão do discurso alheio, ainda que, de acordo com Bakhtin, o grau de ativismo
possa ser maior ou menor. E no relacionamento com o outro, a criança aprende seus limites,
apreende e participa da construção de sentidos, porque, da mesma forma que o diálogo é essencial,
a interação também é vista como “realidade fundamental da língua” (VOLÓCHINOV, 2017, p.
219).
Desta maneira, pelo olhar bakhtiniano, a constituição do sujeito na e pela linguagem passa
por um processo dialógico e interacional que se insere no fluxo da comunicação verbal. Nesse
processo, a criança é introduzida nessa dinâmica pelo interlocutor – o outro –, o qual vai interpretar
e dar sentido a seus enunciados e atos linguageiros. (DEL RÉ, 2014; HILÁRIO, 2011) até que ela
possa expressar-se por si mesma.
Até mesmo nos primeiros meses de vida, quando a criança não faz uso de um sistema
linguístico - que escuta pelas falas dirigidas a ela -, sua comunicação se reflete em outras formas de
linguagem, evidenciando uma atitude responsiva cada vez mais ativa. Na relação com o outro, ela
responde aos seus interlocutores, enunciando-se por meio de vocalizações e balbucios, gestos,
olhares, choro, sons guturais (DEL RÉ; HILÁRIO; VIEIRA, 2021), ou seja, por meio dos recursos
multimodais constitutivos da linguagem.
Por meio da alteridade entre a criança e o adulto, este tem um papel fundamental, pois, é
aquele que dá acabamento às expressões linguageiras e linguísticas da infante. Ademais, como
interlocutores mais experientes - os pais geralmente - têm um excedente de visão sobre a criança,
desde o seu nascimento, que os leva a reconhecer e interpretar essa linguagem ainda em
desenvolvimento (DEL RÉ; HILÁRIO; VIEIRA, 2021).
Outro aspecto que favorece o reconhecimento e compreensão da linguagem, são as
atividades rotineiras e habituais desenvolvidas durante os cuidados e interação com as crianças.
Essas atividades, assim como jogos e brincadeiras interativas, realizadas pelos adultos com a
criança, são o que Bruner (2007) denomina de formatos. Eles podem ocorrer em forma de atos
sequenciais relativamente padronizados que, quase sempre, associados a uma linguagem mais
simplificada, levam a criança a compreender comportamentos, regras e semioses.
Jogos e brincadeiras de esconder, atividades como a hora do banho, da refeição, festas de
aniversário e outras tantas situações que desenvolvem-se por meio dos formatos, fornecem uma
estrutura para a organização do discurso e das ações, trazendo regularidades ao olhar da criança
(Bruner, 2007). E por meio de sua participação, ela vai também protagonizar e contribuir para a
construção de sentidos.
Como visto, o entendimento sobre formas mais abrangentes de linguagem ampliam a
compreensão sobre os diversos aspectos envolvidos na comunicação. Deste modo, os trabalhos
sobre multimodalidade, que dialogam com essas noções, contribuem para uma análise mais
sistematizada sobre a materialidade dos gestos e seus significados. É sobre isso que trataremos no
próximo tópico.

Aspectos multimodais da linguagem

No contexto da comunicação, a multimodalidade se insere nas relações dialógicas,


produzindo sentidos em comunhão com a língua. Aspectos como contexto, movimentos corporal
e gestual, direcionamento do olhar, espaço, distanciamento entre os interlocutores, associam-se às
produções vocais, denotando posicionamentos, valorações, interesses, e assim contribuindo para a
construção de significados.
Tendo como enfoque esses aspectos, os estudos sobre multimodalidade, especialmente, os
aqui adotados, partem da premissa de que gesto e fala fazem parte de uma mesma “estrutura
psicológica” de produção de linguagem (MCNEILL, 1985). Uma das autoras da Aquisição da
Linguagem que partilha desse princípio, Cavalcante (2008), tomando como ponto de partida,
especialmente, pesquisas realizadas por McNeill (1985) e Kendon (1988), pontua que gesto e fala
se encontram integrados numa mesma matriz de produção e significação, constituindo um único
sistema linguístico.
Outro pesquisador a adotar essa perspectiva, Ávila-Nobrega (2010; 2017), desenvolveu
relevantes estudos para analisar momentos de envolvimento dialógico entre adultos e crianças,
observando a sincronia no uso de gestos, olhar e produção vocal. Por meio de uma categoria de
análise, que cunhou como Envelope Multimodal, o autor observa a emergência da língua enquanto
instância multimodal nas cenas de atenção conjunta entre mãe-bebê, em que ambos direcionam a
atenção para um dado objeto de interação.
Em continuação a esse trabalho, o autor ainda analisa o engajamento atencional entre
crianças com Síndrome de Down e seus interlocutores, direcionando o olhar aos recursos
multimodais utilizados em suas comunicações. Os resultados dessas pesquisas demonstram que
durante a interação entre crianças e adultos, os tópicos de interesse passam por uma negociação,
que não ocorrem de imediato, já que passam por uma nuance de ações, que se estabelecem por
meio de diversos recursos multimodais, tais como gestos, direcionamento do olhar, produções
vocais, expressões faciais e movimentos proxêmicos.
Tanto Ávila-Nóbrega (2010; 2017), cujos trabalhos norteiam nossas análises, quanto
Cavalcante (2012), utilizam a classificação dos gestos, elaborada por Kendon (1988), que mostra a
relação de gestos com a fala em um contínuo. Nesse quadro, Kendon apresenta quatro tipos de
gestos: gesticulação, pantomimas, emblemas e língua de sinais.
Pela gesticulação empregam-se os gestos que possuem propriedades linguísticas e ocorrem
no fluxo da fala, para dar ênfase, ilustrar dimensões ou formatos de objetos ou ideias. As
pantomimas são os gestos que simulam uma ação e, a princípio, não são empregadas em conjunto
com a fala, embora, como indica Cavalcante (2008), na comunicação entre mães e crianças,
costumam ser acompanhadas por produções vocais.
Os gestos emblemáticos, por sua vez, são representados pelos gestos convencionalizados
socialmente. Possuem propriedades linguísticas, pois, às vezes, substituem expressões verbais
como o ato de acenar dando tchau, o balançar da cabeça em sinal de assentimento ou negação, por
exemplo. A língua de sinais, por sua vez, é o sistema linguístico utilizado pela comunidade surda.
Além da análise dos gestos, na multimodalidade, o olhar de atenção da criança também é
um importante indicador de seu envolvimento dialógico. Para tanto, apresentamos um sistema
classificatório também empregado por Ávila-Nóbrega (2017), com base em estudos de Tomasello
(2019). Destacamos, então, três tipos de direcionamento do olhar:
 Olhar de verificação: olhar direcionado ao parceiro de comunicação para verificar seu
posicionamento ou ação.
 Olhar de acompanhamento: olhar mais atento para a ação do outro ou ao que lhe é
demonstrado.
 Olhar de partilha de expectativa: olhar que busca maior atencionalidade do parceiro de
interação. Esse tipo de olhar demonstra uma nuance de ações de engajamento entre os
parceiros.

Cada direcionamento do olhar denota um envolvimento e nível dialógico maior por parte
da criança. O olhar de verificação é um olhar mais breve para o interlocutor ou objeto que ele
partilha. O segundo, indica uma participação mais atenta ao parceiro de interação ou a suas ações
e objetos de interesse. Já o último olhar, demonstra a constituição de um engajamento atencional
e de maior reciprocidade entre os interlocutores. Nesse olhar, um parceiro busca a atenção do outro
para um assunto ou objeto de referência, o que pode se dar de forma dinâmica e negociada, à
medida que um interlocutor se engaja no campo de atencionalidade do outro.
Como é possível notar pelo exposto, concepções mais abrangentes sobre linguagem
assumem especial importância no caso das crianças autistas que possuem questões e alterações
nesse âmbito. Tendo em vista essas informações, apresentamos no próximo tópico, algumas
categorias de análise e especificidades metodológicas que desenvolvemos com base nessa
ancoragem teórica.

Aspectos metodológicos
O corpus dessa pesquisa é constituído por gravações de Gu, uma criança do sexo masculino
com TEA e Cromossomo X frágil, que à idade de 6;8 anos, comunica-se por gestos, vocalizações,
olhares e outros movimentos proxêmicos.
A abordagem da pesquisa é do tipo qualitativa e longitudinal, pois se trata de uma análise
descritiva e indutiva com o propósito de investigar a entrada da criança na linguagem pelo processo
dialógico-discursivo em cenas de interação. Os excertos analisados compõem-se de dois recortes
dos dados utilizados para a pesquisa de Mestrado da autora que aqui escreve, e correspondem a
gravações realizadas entre a idade de 5 a 6;8 anos da criança.
Para essa análise, partimos de uma abordagem teórica de cunho dialógico e discursivo pela
qual “entende-se a aquisição da linguagem muito mais como a entrada da criança em um universo
de sentido, no discurso, do que como a emergência de categorias linguísticas na fala infantil.”
(HILÁRIO; DEL RÉ; 2015, p. 59).
Dessa forma, buscamos observar quais meios linguageiros multimodais a criança emprega
durante o diálogo, nas situações de interação. Ao analisarmos sua produção vocal, levamos em
conta os elementos multimodais empregados, relacionando-os ao envolvimento dialógico com seus
parceiros interativos. Para identificarmos esse envolvimento, direcionamos o olhar para suas ações
responsivas e também autônomas em relação aos discursos do outro.
Para melhor visualização das categorias de análise, organizamos o seguinte quadro:

Categorias

Direcionamento do olhar Olhar de verificação


(Descrito entre os sinais Olhar de acompanhamento
(**)) Olhar de partilha e expectativa
Emblemas (gestos de apontar: imperativos – utilizados para pedir -
Gestos
ou declarativos – utilizados para mostrar algo)
(Antecedidos por um
Pantomimas
marcador •)
Gesticulação
Risos
Expressão vocal
Sorriso
(Expressa entre duas Balbucios
barras //) Vocalizações
Enunciados/fala

Análise e discussão de dados

Os dados estão organizados em um quadro, e cada linha corresponde aos recursos


multimodais dos participantes da interação. As colunas organizam respectivamente: 1) os frames,
isto, é número da cena; 2) participantes; 3) Produção vocal; 4) direcionamento do olhar, e 5) gestos.
Como primeiro dado de análise, trazemos a cena denominada “Batuque”. Nesse exemplo,
apresentamos um excerto em que identificamos um envolvimento dialógico com a avó.

Cena 1 – Batuque
Idade da criança: 5 anos e 10 dias
Contexto: A criança interage com o avô e a avó, participando de uma brincadeira rotineira: cantar
músicas diversas acompanhadas por um batuque em um móvel.

Frames Produção vocal Direcionamento do olhar Gestos


• batendo as mãos sobre o
//eu quero, quero (**) olhando para a criança
móvel enquanto canta,
xxx, quero tuca (**) (olhar de partilha de
1 Avô acompanha o ritmo batendo
com meu vô// expectativa)
o pé direito no chão. (gesto
pantomímico e ritmado)
• de frente para o avô coloca
as mãos sobre o móvel e bate
(**) olha para o avô e desvia levemente com uma das
2 Gu o olhar para baixo (**) (olhar mãos e com o pé esquerdo
de verificação) no chão, seguindo o ritmo.
(gesto pantomímico e
ritmado)
//batuque na
• bate a mão esquerda na
cozinha a sinhá não
cômoda, depois bate com a
quer..// ai tô com
mão direita. Aponta com o
meu dedo
3 Avó dedo indicador direito
cortado!// vamô
fazendo sinal de negação.
com essa aqui
(gesto pantomímico,
então. Meu dedo
ritmado e emblema)
cortado//
• segura a mão direita da avó.
4 Gu [a-aaah]
(emblema –imperativo)
//ôo, batuque na
cozinha a sinhá não
5 Avó quer, por causa do
batuque eu queimei
meu pééé//
//dá uma (**) olha para a avó(**) (olhar
6 Gu
risadinha// de partilha de expectativa)

Essa cena se organiza de acordo com o gênero Música, tendo como elementos
composicionais, razoavelmente estabilizados, os enunciados multimodais de estímulo à
participação da criança. Os avós marcam o ritmo da música com os movimentos de batuque em
um móvel, criando assim um ambiente lúdico de brincadeira.
Tal brincadeira trata-se de um formato rotinizado, bastante comum nessa microcultura
familiar. Consiste basicamente na ação do avô, cantando músicas diversas, enquanto batuca,
olhando para a criança e buscando seu envolvimento na atividade. Nota-se, a princípio, que a
criança não parece muito atenta, pois apenas dirige um olhar de verificação ao avô, o que conforme
descrevemos no referencial teórico é um olhar direcionado ao parceiro de comunicação para
verificar seu posicionamento ou ação (TOMASELLO, 2019; ÁVILA-NÓBREGA, 2017).
No entanto, os avós conseguem envolvê-la em seu campo de atencionalidade, o que a leva
aos poucos a desenvolver um engajamento dialógico com eles. No frame 2, observa-se que a criança
participa da animação do avô, batendo os pés no chão de forma ritmada e batendo a mão levemente
sobre o móvel, mas seu simples olhar de verificação, demonstra que realizar essas ações não indica
um engajamento completo.
No frame 4, a criança vocaliza para a avó, enquanto segura sua mão em direção ao móvel,
convidando-a para batucar. O gesto utilizado é um emblema que classificamos como imperativo,
porque substitui uma expressão linguística, como o pedir, por exemplo.
No último frame, o olhar de partilha de expectativa da criança evidencia que ela se envolveu
no campo de atencionalidade dos avós, já que também dá uma risadinha, demonstrando seu prazer
em participar e partilhar da atenção dos adultos. Esses movimentos de distanciamento e
aproximação em relação aos avós encontram respaldo em uma das observações de Ávila-Nóbrega,
quando pontua que os parceiros de interação se engajam “em um processo de atencionalidade
procurando negociar um com o outro o desenrolar da interação.” (2017, p. 70)
Importa destacar que o gesto imperativo, empregado no frame 4, tem um objetivo que vai
além de um simples gesto de obter a realização de um desejo, como é descrito na literatura sobre
o autismo. Um desses estudos, de Goodhart e Baron-Cohen, apontados por Bosa (2002), observa
que a criança autista emprega primordialmente os gestos de apontar ou mostrar, para buscar
assistência, em detrimento aos utilizados para compartilhar experiência.
Esse excerto, analisado com base no embasamento teórico exposto, demonstra que o gesto
imperativo da criança evidencia um movimento autônomo e espontâneo, que pode significar
também o interesse em compartilhar da atenção do adulto durante uma brincadeira agradável.

Cena 2: Interagindo com livros


Idade da Criança: 5 anos, 10 meses e 17 dias
Contexto: Nesse excerto, o avô mostra livros infantis à criança, destacando personagens e os
objetos das ilustrações, relacionando-os a objetos concretos do entorno e à própria criança.
Produção vocal Direcionamento do Gestos
Frame
olhar
// vamo dá o têtê pro (**) olhando para o • pega a mamadeira da criança
porco, toma // livro (**) e coloca-a em frente a boca
1 Avô
do personagem porco. (gesto
emblemático – declarativo)
[a::a::A:A:] (**) olhando para o • (balançando o corpo para
livro (**). (olhar de frente e para trás)
2 Gu
partilha de
expectativa)
//ó o peixe // pexi // • toca no peixe com o dedo
3 Avô peixe // indicador esquerdo. (gesto
emblemático – declarativo)
[i:: i:: i:] • pula no mesmo lugar
4 Gu [a: aã]
[a:] [a:]
// e a bexiga? // • aponta para a figura do livro.
5 Avô // é a bexiga do (gesto emblemático –
aniversário // declarativo)
[ã:ã] • (toca com o dedo indicador
[i::::::] nas bexigas). (gesto
6 Gu
emblemático –declarativo)
• (inclina a cabeça para trás)

Neste excerto, o avô mostra os personagens do livro ao neto, enquanto busca sua atenção
e compreensão quanto a outros objetos da ilustração. Toda a comunicação do avô se faz por meio
de diversos recursos multimodais como produção vocal, gestos emblemáticos e direcionamento do
olhar para o referente.
Logo na linha 1, nota-se que o avô busca a atencionalidade da criança para a personagem,
relacionando-a a objetos do mundo concreto. Para isso, utiliza o recurso de levar a mamadeira ao
personagem, conjuntamente com a expressão “vamo dá o têtê pro porco, toma”. Isto é, há uma
associação entre sua fala e o gesto emblemático – declarativo, contando com a participação da
criança. É um tipo de gesto emblemático, já que, de acordo com Kendon (2016), os gestos culturais,
construídos socialmente, podem ser combinados com o uso da fala, representando uma palavra ou
sentença inteira.
Esse recurso multimodal contribui para que a criança compreenda os sentidos tanto da
ação quanto da linguagem e, com isso, o objetivo de obter sua atencionalidade em um nível
dialógico é alcançado. É perceptível esse engajamento, já que Gu, responsivamente, direciona
olhares de acompanhamento e partilha de expectativa à ação do avô, como também manifesta-se
por gesticulações – estereotipias - e vocalizações [ããi:i::], [a::a::A:A:].
Nas linhas 3 e 5, o avô continua instigando a criança a participar dialogicamente, novamente
apontando para outras figuras, por meio do gesto declarativo, que reforça sua fala. Nessa
comunicação multimodal, o avô cria um jogo interativo, em que ele se enuncia e aguarda a atitude
responsiva da criança, que ora vocaliza, ora aponta para os objetos mostrados. E o olhar de partilha
de expectativa, em alguns momentos da interação, também fazem parte desses movimentos
enunciativos.
Nesse excerto, é presente que a criança utiliza o gesto declarativo conforme os pedidos do
avô. Esse gesto pode ser considerado declarativo, pois, como pontua Tomasello (2017), ocorre
quando há o objetivo de mostrar um elemento para compartilhar atenção, ou seja, é um indício
relevante do envolvimento dialógico da criança.
É importante ressaltar, ainda, o papel dos formatos que essa atividade deflagra. É uma
brincadeira que, desenvolvida cotidianamente como um jogo, acontece de forma recorrente entre
o avô e o neto. Inicialmente coordenadas pelo interactante mais experiente, essas atividades lúdicas
ocorrem em um espaço colaborativo que, aos poucos, vai sendo protagonizado pela criança, uma
vez que, “fornecem um esqueleto ou uma estrutura formal, na qual variantes ricas e mais de tipo
linguístico podem ser, mais tarde, introduzidas.”, ou seja, formam uma estrutura profunda sobre a
qual se aplicam outras variações (BRUNER, 2007, p. 55).
Também é possível notar que as estereotipias não são movimentos desprovidos de sentido
já que se articulam aos atos da criança, demonstrando, nesse momento específico, uma ênfase ao
seu envolvimento prazeroso na brincadeira. Se ela compreende todos os sentidos, não é possível
saber exatamente, mas, por seus gestos, ela parece entender boa parte do que acontece,
principalmente, porque essas atividades se relacionam dialogicamente aos discursos anteriores,
desenvolvidos em contextos semelhantes.

Cena 3: Olha o pote de creme


Idade da Criança: 6 anos, 12 dias
Contexto: A criança está no quarto com o avô, que a envolve em um diálogo por meio da
ludicidade, contando-lhe os dedos os pés. No momento dessa atenção, a criança olha para a
cômoda pedindo um pote de creme.

Direcionamento do
Frame Produção vocal Gestos
olhar
// contar, um, dois // • (segura o dedo mínimo
um, um, um, um, do pé da criança).
1 Avô um// (pantomima e gesto
emblemático – dêitico
declarativo)
[huum, hum hum (**)Olha para frente • (estica o braço esquerdo
hum] e em seguida olha para frente com a mão
2 Gu para o avô(**). (olhar aberta, apontando para
de partilha de algo). (gesto emblemático
expectativa) - dêitico imperativo)
3 Avô (**) mantém a
direção do olhar
dividida entre olhar
para os dedos da
criança e manter
contato visual com
ela (**). (olhar de
verificação)
(**) olha para o avô e • (passa a mão esquerda no
desvia o olhar em antebraço direito, alisando).
4 Gu seguida (**). (olhar (pantomima)
de partilha de
expectativa)
(**)olha para a
5 Avô criança(**). (olhar de
acompanhamento)
• (caminha até o avô, segura
na mão direita do mesmo,
volta para o armário). (gesto
emblemático dêitico
imperativo)
6 Gu
• (Passa o dedo indicador
direito em volta da tampa do
creme, Pega o creme com as
duas mãos e entrega ao avô).
(pantomima)
// cê passa, cheira isso, • (mostra o creme aberto para
cheira, iih // a criança cheirar). (gesto
7 Avô
emblemático – dêitico
declarativo e pantomima)
[i::: i: A:A] (**) olha para toda a • (a criança se aproxima do
movimentação que creme e cheira).
8 Gu faz (**). (olhar de (pantomima)
partilha de
expectativa)

Nesse recorte, ocorre mais uma cena rotinizada de interação com o avô, que brinca de
forma lúdica, contando os dedos dos pés da criança. À altura do seu olhar (frame 2), sobre a
cômoda, a criança observa um pote de creme que lhe chama a atenção e estica o braço esquerdo
com a mão aberta, apontando-o, executando um gesto emblemático - dêitico imperativo. Seu olhar
é de partilha de expectativa, pois alterna o olhar entre o objeto de seu interesse e o que o avô fazia,
promovendo “uma nuance de ações levando o parceiro a se envolver diretamente no campo de
atencionalidade” (ÁVILA NÓBREGA. 2017, p. 67). Isto é, a AC ainda não ocorreu, porque os
dois interlocutores têm focos de interesse distintos.
Assim, na sequência, frame 4, a criança tenta dirigir a atenção do avô para esse objeto,
realizando um gesto pantomímico, passando a mão esquerda no antebraço direito, alisando,
enquanto alterna o olhar (de partilha de expectativa) entre o avô e o que quer. Em ação responsiva,
o avô direciona um olhar acompanhamento à ação da criança, enquanto ela caminha até o avô,
segurando-lhe a mão direita e voltando-se para o armário, em um gesto emblemático - dêitico
imperativo (frames 5 e 6). Cabe destacar que esse gesto não é um simples apontar convencional,
mas se assemelha no propósito, o que pode ser considerado um gesto dêitico, pois ela o usa para
mostrar um objeto.
Nota-se também que a atenção da criança é bastante volátil, pois se envolve
superficialmente com a brincadeira inicial do avô. De acordo com as premissas tomasellianas, a AC
acontece quando os interactantes do diálogo prestam a atenção a um terceiro referente por um
tempo razoável. Nesse caso, então, observa-se que ainda não se estabeleceu a AC, uma vez que ao
buscar outro objeto do discurso, a criança precisa conduzir o avô para novo engajamento.
Na linha 7, o avô mostra o creme aberto para a criança cheirar em um gesto emblemático
– dêitico declarativo e pantomima, ao mesmo tempo que diz para ela cheirar, ou seja, percebe-se
que ele utiliza dois recursos multimodais. A criança, por sua vez, atende se enunciando por
vocalizações (frame 8), olhar de partilha de expectativa e movimentos proxêmicos, aproximando
para cheirar. Isso demonstra sua compreensão do que o avô pede e também uma compreensão
ativa. Como reflete Bakhtin, a ação responsiva ativa do falante indica uma compreensão do discurso
alheio no decorrer das trocas dialógicas.
Fica nítido que o engajamento conjunto, que leva à AC, ocorre aos poucos, de forma
colaborativa, por meio da busca pela atenção do outro, pela percepção e partilha de interesses por
objetos do entorno. É o que G. faz, ao reforçar seu desejo por meio da vocalização mais enfática
(frame 2).
Destaca-se também que a pantomima, relacionada ao ato de passar creme nos braços, é
construída a partir da compreensão de outras ações que a criança observa no seio familiar e,
também, no momento histórico de pandemia, que tem como orientação, a desinfecção das mãos
com álcool gel. Como a criança já havia se habituado a ver essa cena, ao acompanhar a mãe ao
mercado, esse gesto passou a ser usado quando quer pedir algum produto de cuidado corporal,
como o creme
Essa fato também demonstra que a criança está atenta aos discursos que circulam no
ambiente familiar e social, e que estes adquirem sentido para ela porque são expressos por meios
multimodais. Nesse sentido, as ações da criança são um indício de seu entendimento desses
enunciados e atividades que se organizam de acordo com um formato padronizado que cada
situação demanda.
Considerações finais
Nesse trabalho, partimos de alguns questionamentos quanto às condições mais severas de
desenvolvimento da linguagem de crianças com TEA. Para tanto, buscamos mostrar o
funcionamento da linguagem de uma criança autista que manifesta-se essencialmente por gestos,
vocalizações, balbucios e olhares. Com isso, não deixamos de reconhecer que há singularidades
impostas pelo TEA, mas procuramos refletir que sua entrada na linguagem se faz por meio de
recursos multimodais, associados aos formatos de interação e ao apoio do adulto.
Para respondermos aos questionamentos elencados inicialmente, apresentamos algumas
descrições teóricas que têm como premissa uma visão mais ampla sobre o conceito de língua.
Fundamentando nosso olhar pela abordagem dialógico-discursiva (BRUNER, 1985, 1994, 2007;
BAKHTIN, 2011; VOLÓCHINOV, 2017; DEL RÉ et al 2006; 2014; 2021), que tem no diálogo
sua base fundamental, passamos a observar, em nossos dados, os indícios que denotassem a
responsividade da criança em relação às brincadeiras e discursos de seus interlocutores, o que
indicaria sua compreensão dos sentidos construídos socialmente.
Ademais, trouxemos referências sobre a classificação dos tipos de gestos (KENDON,
1988; 2016) e direcionamento do olhar (ÁVILA-NÓBREGA, 2017) que compõem, conjuntamente
com a produção vocal, uma visão da linguagem a partir dos conceitos de multimodalidade. Por
meio da análise dos dados, foi possível compreender que a criança autista está na linguagem e
participa do processo dialógico, ainda que não consiga se expressar por um sistema linguístico.
Essa participação é ativa e responsiva, especialmente em relação aos formatos de interação
conhecidos por ela, pois os contextos rotinizados fornecem regularidade ao seu olhar. Além disso,
os discursos proferidos nas diversas situações comunicativas se entrelaçam e estão sempre em
relação, aspectos que a criança reconhece por estar inserida nesses contextos.
Não é possível perceber, ainda, se a criança irá se apropriar adequadamente do sistema
linguístico que reconhecemos como língua, mas já é possível perceber que ela exerce um papel
responsivo e ativo na comunicação com seus interlocutores.
Por fim, vale destacar que considerar a criança autista como sujeito de potencialidades,
pode contribuir para a promoção e evolução de sua linguagem. Para isso, ela deve ser vista e
reconhecida pelo outro como um sujeito de interlocução, parceiro de interação.

Referências
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contextos de atenção conjunta. 190 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade
Federal da Paraíba, João Pessoa, 2010.
ÁVILA-NÓBREGA, Paulo Vinícius. O sistema de referenciação multimodal de crianças
com síndrome de down em engajamento conjunto. 206 f. Tese (Doutorado em Linguística)
– Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017.

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Vólkova Américo; ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. 373pp

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