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O DISCURSO TÉCNICO-CIENTÍFICO COMO FORMA DE PODER E

DOMINAÇÃO NO CAMPO DO CONHECIMENTO: UMA


PERSPECTIVA SÓCIO IDEOLÓGICA DO USO DA LÍNGUA.

Vera Lúcia Cândida Arcas (UFMG)1

RESUMO

Da possibilidade de que o discurso técnico possa estar sendo utilizado como um recurso
para o domínio sobre o conhecimento e a consequente manutenção de poder no campo do
conhecimento, surge a ideia dessa pesquisa. A observação de certa exacerbação no uso da
linguagem técnica quando da divulgação dos resultados de pesquisas pelo campo
acadêmico-científico suscita a questão da necessidade de dar a conhecer à comunidade em
geral sobre o modo pelo qual essa manipulação poderia se processar. Entende-se que a
compreensão do modo pelo qual esses processos se dão pode possibilitar aos sujeitos
assujeitados alguma apropriação de si e dos contextos sociais em que vivem,
transformando-os em atores sociais. Nessa perspectiva, este trabalho pretende, por meio de
uma breve pesquisa literária sobre argumentação, estruturação linguística e a utilização do
simbolismo e poder linguístico como instrumentos de dominação, conforme os teóricos
José Luiz Fiorin e Pierre Bourdieu, passando por Foucault e buscando explicitar conceitos
como: Discurso, Ideologia, Representação Social e Subjetividade na teoria Marxista e na
Psicologia Social, levantar como a língua pode ser utilizada como sistema de manutenção
de poder, veiculação de ideologias e dominação social.
Palavras-chave: Linguagem. Discurso. Ideologia. Poder. Dominação.

Considerações Iniciais

O emprego da linguagem é reconhecido como um instrumento de dominação desde


os primeiros estudos gerados nesse campo, os quais remontam às históricas apropriações
de territórios e conquista de povos pela Grécia e Roma, na antiguidade clássica, que
impunham também a língua do conquistador às populações submetidas. Mesmo a retórica
aristotélica era mantida como instrumento de convencimento e persuasão. Observa-se que
no decorrer do desenvolvimento cultural da humanidade o uso da língua manteve-se como
importante ferramenta para o controle e manipulação das massas populares.
Ao longo de sua história, a linguagem humana passou por reformulações que ora

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Aluna do Curso de Letras, da FALE – UFMG, com habilitação em licenciatura dupla em língua portuguesa
e italiana.

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lhe agregaram, ora a despojaram de sofisticação, simplicidade, rebuscamento, sutileza e
objetividade, entre outras características, conforme as conveniências e interesses dos
grupos sociais dominantes e do aparelhamento ideológico estatal.
A partir da observação de que, geralmente, as conquistas e resultados das pesquisas
acadêmico-científicas são divulgados à comunidade em geral por meio de uma
terminologia estritamente técnica, compreensível, de fato, somente para seus pares, surge a
questão sobre de que modo a exacerbação no uso do discurso técnico nos meios
acadêmico-científico poderia estar sendo utilizada como um recurso para o domínio sobre
o conhecimento e a consequente manutenção de poder?
Se, hipoteticamente, a linguagem técnica vem sendo utilizada nos meios
acadêmico-científico como forma de retenção de conhecimento, manutenção do poder e
dominação social, poderia ser de grande relevância para comunidade em geral conhecer o
modo pelo qual se opera essa manipulação. Acredita-se que, nesse caso, explicitar e dar a
conhecer sobre possíveis formas de utilização de recursos linguísticos para manipulação e
dominação, permitiria aos sujeitos alguma apropriação de si e de seus contextos, de modo
que possam exercer sua capacidade crítica, mesmo que diversas influências ideológicas
sejam eficientemente veiculadas.
Tomar consciência de que o discurso no qual foi moldado é, de fato, uma
construção social e perceber o jogo ideológico que controla as interações sociais possibilita
aos sujeitos se apropriar das suas ações e questionar as verdades encobertas por trás das
ideologias veiculadas. (FOUCAULT, 2004.).
Pierre Bourdieu, (2004), também se refere à influência dissimulada com intenções
de manipulação ocultas nos discursos, destacando que saber conscientemente de sua
existência possibilitaria aos sujeitos impedir que cumpram sua finalidade. “[...] descobrir
que o jogo que se joga nele tem qualquer coisa de ambíguo e mesmo qualquer coisa de
suspeito” (BOURDIEU, 2004, p. 123).
Nessa perspectiva, este trabalho pretende, por meio de uma breve pesquisa literária
sobre argumentação, estruturação linguística e a utilização do simbolismo e poder
linguístico como instrumentos de dominação, conforme os teóricos José Luiz Fiorin e
Pierre Bourdieu, passando por Foucault e buscando explicitar conceitos como: Discurso,
Ideologia, Representação Social e Subjetividade na teoria Marxista e na Psicologia Social,
levantar como a língua pode ser utilizada como sistema de manutenção de poder,
veiculação de ideologias e dominação social.

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Discussão e Alguns Conceitos:

Conforme Fiorin, (1989), O discurso combina elementos linguísticos (frases ou


conjuntos de frases), dos quais o falante faz uso, visando à expressão de seus pensamentos,
para transmitir ao mundo externo coisas do seu mundo interno e para atuar no mundo de
seus contextos vivenciais. “A fala é a exteriorização psico-fisio-fisiológica do discurso. Ela
é rigorosamente individual, pois, é sempre um eu quem toma a palavra e realiza o ato de
exteriorizar o discurso.” (p.10).
Para Bourdieu, (1989), o discurso científico pode tornar-se uma ferramenta política,
uma vez que veste a roupagem da objetividade, isenção e imparcialidade. Segundo Pierre
Bourdieu, ocorre uma disputa no campo científico, que seria merecedora de uma análise
mais aprofundada, já que à ciência foi conferido status para definir o que é legítimo e
verdadeiro, socialmente.
O valor que atribuímos à ciência, como aliás, nas religiões, depende, em
suma, da idéia que fazemos coletivamente da sua natureza e do seu papel
na vida; quer dizer, ela exprime um estado de opinião. É que, de fato,
tudo na vida social, inclusive a própria ciência, assenta na opinião.
(MOSCOVICI, 1978, p. 45).

Nesses casos, na falsa ciência, a ideologia passa a ser um dos instrumentos da


reprodução do status e da própria sociedade. Valendo-se do método do discurso lacunar, ela
apresenta uma série de proposições, nunca falsas, que sugerem outras, que o são. Desse
modo, a essência do discurso lacunar é o não dito, porém, o, sutil e dissimuladamente,
sugerido.
[...] os qualificativos e as idéias que lhe estão associadas deixam escapar
o principal do fenômeno próprio de nossa cultura, que é a socialização de
uma disciplina em seu todo, e não, como se continua pretendendo, a
vulgarização de algumas de suas partes. Adotando-se esse ponto de vista,
transfere-se para segundo plano as diferenças entre os modelos científicos
e os modelos não-científicos, o empobrecimento das proposições iniciais
e o deslocamento do sentido, do lugar da aplicação. Vê-se, pois, do que se
trata: da formação de um outro tipo de conhecimento adaptado a outras
necessidades, obedecendo a outros critérios, num contexto social preciso.
(MOSCOVICI, 1978, p. 24).

A subjetividade, conforme a Psicologia Social, a constituição do sujeito acontece


também por meio do processo de formação da sua identidade, no qual subjetividade e
objetividade são dimensões desse sujeito, que, a partir de fenômenos psicológicos
derivados de suas vivências afetivas e interações sociais produzirão significados internos
que afetarão seu mundo social e por ele serão afetados.
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[...] o fenômeno psicológico deve ser entendido como construção no nível
individual do mundo simbólico que é social. O fenômeno deve ser visto
como subjetividade, concebida como algo que se constitui na relação com
o mundo material e social, mundo este que só existe pela atividade
humana. Subjetividade e objetividade se constituem uma à outra sem se
confundir. A linguagem é mediação para a internalização da objetividade,
permitindo a construção de sentidos pessoais que constituem a
subjetividade. O mundo psicológico é um mundo em relação dialética
com o mundo social. Conhecer o fenômeno psicológico significa
conhecer a expressão subjetiva de um mundo objetivo/coletivo; um
fenômeno que se constitui em um processo de conversão do social em
individual; de construção interna dos elementos e atividades do mundo
externo. Conhecê-lo desta forma significa retirá-lo de um campo abstrato
e idealista e dar a ele uma base material vigorosa. (BOCK, 2001, p.23).

No marxismo, a ideologia é concebida como uma forma de consciência parcial,


ilusória e enganadora, fundada em conceitos e preconceitos construídos por aqueles que se
encontram no poder, com a finalidade de preservar a dominação de classes por meio de
amenas explicações, que atenuam e dissimulam as desigualdades sociais. No objetivo de
impedir a eclosão de conflitos diretos entre os que dominam e os dominados, ou seja,
impedindo que aqueles que são dominados despertem do estado de alienação, a ideologia
se vale de instrumentos como a linguagem e os signos socialmente convencionados, as
representações sociais, entre outros artifícios.
As representações sociais é um conceito da Psicologia Social, apresentado por
Serge Moscovici, (1978), descritas como um conjunto de elementos práticos, manifestados
nos diversos grupos sociais, inicialmente, na forma de elementos cognitivos, que
contribuem no processo de apreensão de novas realidades pelos sujeitos sociais. São
elaboradas e apreendidas pelos sujeitos por meio dos processos: no primeiro momento, a
Ancoragem, em que novas realidades e conhecimentos são atrelados a conteúdos já
representados internamente e que, após de estabelecerem internamente, esses conteúdos
caminham para um segundo momento, a Objetivação, processo de formação de imagens,
por meio do qual as noções abstratas se tornam concretas e passam a compor a realidade
externa do sujeito – a naturalização.
Desse modo, as representações sociais, são estruturas dinâmicas, socialmente
negociadas e convencionadas, que participam na construção social da realidade. Sendo
compartilhadas pelo senso comum, se transformam em formações ideacionais, atuando no
imaginário social e passam a compor a visão de mundo e interpretação da realidade dos
sujeitos, atores sociais. Conforme Moscovici, “nos limites em que ela penetrou numa
camada social, também se constitui aí num meio capaz de influenciar os outros e, sob esse

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aspecto, adquire status instrumental”. (MOSCOVICI, 1978, p.75)
Por sua complexidade, as representações sociais, como conhecimento situado no
campo da interdisciplinaridade, requer que seja estudada articulando-se elementos afetivos,
mentais, sociais, à cognição, linguagem e a comunicação, integrando-se às relações sociais
e realidades material, social e ideativa sobre as quais irão atuar. (MOSCOVICI, 1978).
A linguagem, conforme alguns conceitos da teoria Marxista, a linguagem pode ser
distinguida em seus dois aspectos fundamentais: como a de realização ontológica humana e
como forma ferramenta de alienação. Utilizada como instrumento para a alienação dos
sujeitos à língua podem ser atrelados os conceitos de ideologia e hegemonia de
determinados grupos sociais e destacar algumas estratégias discursivas que constituem
formas linguísticas alienadas. Essas práticas discursivas trazem em si estratégias e práticas
sociais que reproduzem e legitimam distintas formas de dominação social.
Portanto, na perspectiva marxista, pensamento e linguagem não são autônomos,
uma vez que ambos derivam de expressões da vida real. Ambos afetam e são afetados
pelos contextos vivenciados pelos sujeitos e por suas ações sociais. A linguagem, na sua
condição de mediador social, precisa ser analisada por diversas perspectivas, inclusive
como instrumento para a veiculação de crenças e ideologias no campo das representações
sociais, exercendo influências nos planos individual e ou coletivo, físico e ou psíquico.
Sendo assim, a língua sofre tanto determinações sociais quanto autônomas e, também por
isso, deve ser considerada em suas diversas dimensões, sem desvincular-se da vida social,
no plano do real e do concreto.
Uma importante questão em discussão na atualidade é a suposta neutralidade da
ciência. Embora, a Psicologia com a descrição da subjetividade humana tenha
desconstruído a ideia da possibilidade de completa isenção científica, permanece o
discurso pretenso a fazer crer que a execução de tais processos e sua divulgação estejam
sempre calcadas na intenção de neutralidade, imparcialidade e isenção por parte dos
envolvidos, intencionando o bem da humanidade.
Contrariando essa premissa, na obra Argumentação, o professor José Luíz Fiorin,
(2016), propõe que a argumentação implica o uso da linguagem e, "a argumentação é uma
questão de linguagem". (p.78) afirmando que a linguagem além de polissêmica é também
susceptível à vagueza e à ambiguidade. Sendo, nesse caso, a linguagem indissociável da
interpretação, e, portanto, objetividade, imparcialidade e neutralidade seriam conceitos
inatingíveis no discurso, concluindo que "a linguagem está sempre carregada dos pontos de

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vista" (p.83), encontrando-se num plano muito distante da neutralidade. Os discursos são,
então, orientados a uma finalidade e se valem de diversos artifícios e estratégias para
alcançar seu objetivo. (FIORIN, 2016).
De acordo com Foucault, (2004), desde a tenra infância, ideias e valores são
inculcados nos indivíduos pelas diversas instituições valorizadas no seu nicho social,
visando enquadrar os sujeitos nos papeis a eles socialmente destinados.
Nesse sentido, o sistema educacional será o local onde se tem acesso aos diversos
discursos vigentes e sua reprodução é apreendida, sendo também onde se reparte o saber. A
escola cumprirá a função de exercer pressão e coerção sobre esses indivíduos, modelando
seus pensamentos e ações para que estes estejam alinhados com as ideologias de interesse
dos grupos detentores de poder. “todo o sistema de educação é uma maneira política de
manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que estes
trazem consigo. (FOUCAULT, 2004, p. 12)”.
Fiorin, (1998), menciona Bakhtin, (1992), e aponta que todo signo é ideológico. E
toma como exemplo do pão que, de fato, é um produto de consumo, mas é transformado
em um signo ideológico quando usado para representar o corpo de Cristo nos rituais
religiosos e complementa afirmando ser a linguagem uma instituição social, utilizada
também para veicular ideologias e mediar a comunicação entre os homens.
Ao discutir as bases da argumentação e as principais organizações discursivas,
referenciando-se no dialogismo de Bakhtin, o professor José Luíz Fiorin, (2016), ressalta
que todo o discurso tem uma dimensão argumentativa e inclui a retórica no discurso. Sobre
a argumentação enquanto recurso, afirma que "Um argumento são proposições destinadas a
fazer admitir uma dada tese" (p.70), tomando como equivalente o "fazer admitir" à
"finalidade de persuadir". Induzindo à inferência de que todo discurso, por sua dimensão
Dialógica, contém um “interdiscurso” e uma “retórica”, elementos comumente utilizados
com a finalidade de persuasão.
Ainda segundo esse autor, "A semântica discursiva é o campo da determinação
ideológica [...] O enunciador é o suporte da ideologia". (FIORIN, 1998, p.18.). O discurso
é determinado pelas formações ideológicas, ocorrendo a manipulação consciente e a
determinação inconsciente, a sintaxe discursiva é utilizada na manipulação consciente, em
que a semântica discursiva serve para apresentar determinada visão de mundo. Nesses
casos, O orador vale-se de estratégias argumentativas, criando assim o efeito de verdade
para o interlocutor.

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Na manipulação discursiva é comum o uso da distorção e inversão de valores, bem
como a discrepância entre os níveis em que são elaborados os discursos, entre o nível
profundo e o nível superficial. Neste caso, dois discursos embora trabalhem com os
mesmos elementos semânticos, pode revelar visões de mundo totalmente diferentes, por
meio da valoração que o discurso confere aos elementos semânticos naquele contexto
específico, considerando alguns positivamente (eufóricos) e outros negativamente
(disfóricos). (FIORIN, 1998).
A aplicabilidade e eficácia do uso de estratégias para manipulação no discurso
também podem ser confirmadas a partir da análise da tessitura inferencial, de três pontos
de vista: o lógico, o semântico e o pragmático. Fiorin, (2016), aponta que as inferências
semânticas, articulam a relação entre o explícito e o implícito, marcando que o
subentendido possui a característica de “dizer sem dizer” ou “sugerir, mas não afirmar”
(p.39); explicitando como, por meio do discurso indireto, ideias e ideais são disseminados,
melhor assimilados, e, finalmente, incutidos na mente dos indivíduos, confundindo os
enunciatários do discurso a tal ponto que esses creem, com total convicção, que tais ideias
são descobertas, originalmente, suas. Essas estratégias destituem os sujeitos do poder sobre
si, sobre suas opiniões e em consequência, sobre suas decisões, transformando-os em
objetos da manipulação política.
No artigo Língua, Discurso e Política, o professor José Fiorin, (2009),
fundamentando-se em Aristóteles, define que “política diz respeito à obtenção, ao exercício
e à conservação do poder governamental.” (p.148), porém, nos tempos atuais observa-se
que não se trata apenas do poder do Estado, mas que nas sociedades podem ser
encontrados diversos nichos de poder, aprimorando-se, assim, a concepção de política para
o diz respeito aos diversos poderes instaurados e instalados nas sociedades. Nessa
perspectiva, Fiorin, 2009, p.149, descreve possíveis formas de análises da língua no campo
das relações de poder: “a) a natureza intrinsecamente política da linguagem e de suas
manifestações, as línguas; b) as relações de poder entre os discursos e sua dimensão
política; c) as relações de poder entre as línguas e a dimensão política de seu uso; d) as
políticas linguísticas.”,
Continuando suas inferências linguísticas, o professor Fiorin, 2009, conclui que a
linguagem e as línguas possuem arraigadas em si a natureza política, uma vez que
assujeitam o falante à sua ordenação. O discurso opera verdadeiros silenciadores que
mostram uma relação de poder com seus enunciatários. E será a partir dos usos linguísticos

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que os falantes são destinados ao pertencimento ou à exclusão social. A língua mostra estar
muito distante da neutralidade na comunicação, ao contrário, ela comunica com
intencionalmente e a serviço de seus articuladores, sendo perpassada pelas relações de
poder e políticas vigentes nos contextos sociais em que é empregada.
Tais afirmações confirmam a possibilidade do uso político da língua para a
manutenção do poder nas diversas interações sócio-políticas que os sujeitos vivenciam no
seu cotidiano. Referindo-se ao discurso e citando Edward Lopes, Fiorin, 1998, p.42,
desabafa que: "combinando uma simulação com uma dissimulação, o discurso é uma
trapaça: ele simula ser meu para dissimular o que é do outro.".
As grandes massas humanas que, atualmente, ocupam os centros urbanos têm seu
tempo, seu interesse, e mesmo, suas vidas tomados por inúmeras ocupações, já que a moda
é “produzir algo”, seja na manutenção do sustento e sobrevivência, sejam pela busca de
melhores condições de trabalho, pela conquista de riquezas e bens materiais ou outros
elementos distratores oferecidos pelo desenvolvimento tecnológico.
Dessa forma, o indivíduo é distraído de sua própria vida e distanciado de suas
questões internas, bem como das questões sócio políticas em que vive e barganha seu
direito à reflexão e poder de decisão por ideias e ideais coletivos prontos para uso e
consumo, que lhes poupam o tempo que seria empregado em reflexões e divagações
“inúteis”, sobrando-lhes esse tempo para as atividades de recreação e entretenimento, que
prometem aliviar a tensão e o estresse causados, supostamente, pela vida em sociedade,
pelo processo civilizatório e pelo “mal estar” que esses possam gerar.
Nesse curso, contrariamente ao prometido, a alienação de si, longe de aliviar o mal
estar, cria nesses sujeitos um sentimento de desencaixe, desapropriando-os de sua
autonomia pessoal, pertencença social e, por fim, de sua subjetividade.
Sobre as relações de poder surgidas a partir do conhecimento científico, Foucault,
(2007), declara que nas sociedades modernas as relações de poder e saber são práticas
políticas e econômicas, que visam a produção de supostas verdades com o intuito de
manipulação e dominação por aqueles que detém o poder. “O exercício do poder cria
perpetuamente saber e, inversamente, o saber acarreta efeitos de poder.” (FOUCAULT,
2007, p. 80). Tais verdades seriam produzidas pelos intelectuais, a partir de recursos e
discursos da classe burguesa na finalidade de persuadir as massas populares alienadas.
Pierre Bourdieu, (1989), em seu trabalho O poder simbólico, conduz o leitor a uma
reflexão sociológica sobre o poder dos recursos simbólicos e sobre como estes recursos

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vêm sendo utilizados como instrumento de poder e dominação social. Os símbolos, neste
caso, sentido dado ao uso da língua, são percebidos como instrumentos de integração
social. O poder simbólico deriva de uma construção da realidade em que o sentido do
mundo supõe um conformismo lógico, ou seja, a estruturação social compreende um
consentimento tácito por parte de seus componentes. “O poder simbólico é, com efeito,
esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não
querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 1989, p.7).
Atendo-se às situações em que a intenção de poder, geralmente, é ignorada, e que
justamente por isso, atinge seus objetivos com melhores resultados, ao tratar dos sistemas
simbólicos existentes nas estruturações sociais, Bourdieu (1977), refere-se às produções
simbólicas como instrumentos de dominação, destacando o instrumento “linguagem”.
A estrutura da relação de produção linguística depende da relação de
força simbólica entre os dois locutores, isto é, da importância de seu
capital de autoridade (que não é redutível ao capital propriamente
linguístico): a competência é também portanto capacidade de se fazer
escutar. A língua não é somente um instrumento de comunicação ou
mesmo de conhecimento, mas um instrumento de poder. Não procuramos
somente ser compreendidos mas também obedecidos, acreditados,
respeitados, reconhecidos. Daí a definição completa da competência
como direito à palavra, isto é, à linguagem legítima como linguagem
autorizada, como linguagem de autoridade. A competência implica o
poder de impor a recepção. (BOURDIEU, 1977, p.5).
O poder simbólico, um poder quase mágico, que cumpre a finalidade de se obter o
que de outra forma somente poderia ser obtido pela força física ou econômica, passando
despercebido pelos já desfavorecidos nas interações sociais desiguais.
Partindo da teoria Marxista sobre as funções políticas dos sistemas simbólicos,
Bourdieu, (1989), explica como a cultura dominante irá contribuir para a integração real
dessa classe, assegurando uma integração comunicacional entre seus membros e separando
os demais como instrumento de distinção, legitimando a diferenças e distinções sociais
entre dominantes e dominados.
Os sistemas simbólicos são então tidos como instrumentos estruturados e
estruturantes de comunicação e conhecimento, que cumprem uma finalidade política de
imposição e de legitimação da dominação imposta por uma e sofrida pela outra classe, daí
surgindo o conceito de “violência simbólica”.
violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se
exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e
do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do
reconhecimento ou, em última instância, do sentimento. (p. 7-8).

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Bourdieu (1989), ao descrever o conceito de violência simbólica, explicita a
existência de mecanismos sutis de dominação e exclusão social, que quando direcionados
ao desejo de pertencimento dos sujeitos sociais são utilizados com êxito por indivíduos,
grupos ou instituições com a finalidade de dominação social.
Nesse sentido, a ciência e alguns de campos de produção de conhecimento,
historicamente, contribuíram para a perpetuação desses processos, tendo em vista que o
saber produzido, compartilhado entre os grupos dominantes, torna-se mais um instrumento
de dominação e exclusão social.
A linguística reduz uma relação de força simbólica baseada numa relação
autoridade-crença, a uma operação intelectual cifração-decifração.
Escutar é crer. Como vemos claramente no caso das ordens (no sentido de
comando) ou, melhor ainda, das palavras de ordem, o poder das palavras
nunca é somente o poder de mobilizar a autoridade acumulada num
campo. [...] A produção é comandada pela estrutura do mercado ou, mais
precisamente, pela competência (no sentido pleno) na sua relação com
um certo mercado, isto é, pela autoridade linguística como poder que
confere às relações de produção linguística uma outra forma de poder.
(BOURDIEU, 1977, p.6).

Considerações finais

A partir dessa discussão infere-se sobre o quanto é importante que se entenda a


subjetividade humana, padrões ideológicos no uso da língua que possam atuar como
mantenedores de alguns status de desigualdade e dominação social. As representações
sociais perpassam a visão de mundo dos sujeitos, mas também conta com a interpretação
subjetiva das realidades e construções próprias do indivíduo.
Todos os processos humanos incluem a linguagem e todos os processos sociais
fazem uso do discurso como forma de comunicação e interação social. O discurso provém
das crenças internas dos sujeitos e de suas apreensões da realidade social. A ciência como
resultante de processos nos quais a linguagem e a subjetividade humana irão atuar,
encontra-se muito distante da possibilidade de total objetividade, imparcialidade e isenção,
que são conceitos inatingíveis no discurso.
Outrossim, as relações humanas são fundadas em sistemas de poder e esses
sistemas encontram-se perpassados por discursos ideológicos, contribuindo para a
manutenção e perpetuação de contextos nos quais a manipulação dos sujeitos sociais
ocorre por meio da linguagem, sendo responsável pela manutenção de status em
prevalecem os abusos do poder saber e a dominação social, no campo do conhecimento.

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Nos contextos sociais atuais, para manter a aparente civilidade, a violência física foi
substituídas pela violência simbólica e o uso da língua tomou espaço no meio político
como forma de controle emocional. Esses processos se dão por meio da alienação dos
sujeitos, com completa eficiência, principalmente, sobre aqueles que não compreendem as
estratégias e artifícios de que a linguagem dispõe. A sugestão ocorre de modo tão sutil e
intensamente que o indivíduo passa a acreditar que o conteúdo dissimulado é, na verdade,
um produto de sua própria opinião.
Desde os primórdios da história da humanidade esses recursos vêm sendo utilizados
com o fim de despersonalizar, desempoderar e desapropriador os sujeitos sociais
convencendo-o a adotar ideias e ideais que lhes desfavorecem, privilegiando uma classe
minoritária, que se mantém em situação de poder e dominação.
A linguagem, como mediador social, exerce influências nos planos individual,
coletivo, físico e psíquico, e, quando usada como ferramenta de alienação, ela distrai o
indivíduo de sua própria vida e o distancia de suas questões internas, bem como das
questões sócio políticas em que vive. Desapercebendo-se das diversas situações que
compõem sua vida interna e social, estes sujeitos deixam de exercer sua autonomia e
capacidade de reflexão.
Neste ponto, é essencial compreender que o êxito do uso do discurso como forma
de poder e manipulação acontece devido ao fenômeno da representação social, processo
em que o sujeito internaliza e participa da construção de uma realidade social que não lhe
beneficia, desse modo, torna-se cada vez mais suscetível ao papel de objeto de
manipulação política das classes dominantes.
Portanto, entende-se, que explicitar e dar a conhecer sobre possíveis formas de
utilização de recursos linguísticos para manipulação e dominação permitiria aos indivíduos
domínio intelectual e alguma apropriação de si, passando eles a apoderar suas ações e a
questionar as verdades encobertas por trás das ideologias veiculadas.

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